sociologia do corpo, le breton (resenha)

3

Click here to load reader

Upload: amanay-parangaba-gomes

Post on 28-Oct-2015

333 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Sociologia Do Corpo, Le Breton (Resenha)

livros

A vasta obra de David Le Bretonsobre a sociologia e antropologia docorpo, originalmente publicada emlíngua francesa, está pouco disponívelem português e foi parcialmentedivulgada em espanhol. O autor temformação em sociologia, antropologia epsicologia, é professor de sociologia daUniversidade Marck Block deEstrasburgo, França, e membro dolaboratório Cultures et Sociétés enEurope. Desde a década de 1980,dedica-se à sociologia e antropologiado corpo, passando, também, suaprodução científica pela dor; a paixãopelos riscos e aventura; as identidadese as marcas corporais; o silêncio; o usode remédios e outros temas.

O assunto recebeu atenção de umclássico da antropologia no século XX,Marcel Mauss (1950), que deixouseguidores, e, posteriormente, deautores como: Merleau-Ponthy; NorbertElias; Bernard Michel; Luc Boltanski;Michel Foucault, dentre outros.Feministas, na década de 1970,reclamaram o controle sobre o própriocorpo, concedendo-lhe status políticona luta contra sua exploração.

A sociologia interessou-se, maisintensamente, pela corporeidade nadécada de 1980, sendo nítida suaimportância para a sociologia da saúde

Le Breton, D. A sociologia do corpo. 4.ed. Rio de Janeiro: Vozes,2010.

Ana Maria Canesqui1

1Departamento deMedicina Preventiva e

Social, Faculdade deCiências Médicas,

Universidade Estadual deCampinas. Rua Tessália

Vieira de Camargo,126.Barão Geraldo, Campinas,

SP, Brasil. 13083-887. [email protected]

v.15, n.36, p.321-3, jan./mar. 2011 321COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

e doença, à medida que “aenfermidade limita o funcionamento“normal” do corpo, com profundasconseqüências sociais, políticas,econômicas e psicológicas, assim comoo corpo é objeto das intervençõesmédicas” (Nettleton, 2003).

Adeus ao corpo: antropologia esociedade (2003) foi o primeiro livro deLe Breton editado em português ecomentado por Gomes (2004), onde oautor reflete sobre o corpo moderno:acessório, modelado, fabricado,parceiro (alter ego); administrado,marcado, rascunho, transexualizado ebody art. Chama a atenção para a forteintervenção das tecnociências nosrearranjos corporais, como ainterferência do biopoder, que submetee aprisiona os sujeitos às ideologiasdominadoras do aprimoramentocorporal, que certamente ultrapassa adimensão física, para inseri-la tambémem novas representações do corpo naordem dos valores.

Objeto incerto e ambíguo, ofenômeno da corporeidade écomplexo, conclama ainterdisciplinaridade entre as ciênciassociais e humanas (etnologia,psicologia, sociologia, psicanálise) e asciências biomédicas. Isto porque o“corpo é a interface entre o social e o

Page 2: Sociologia Do Corpo, Le Breton (Resenha)

322 COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.321-3, jan./mar. 2011

LIVROS

individual, a natureza e a cultura, o psicológico eo simbólico” (Le Breton, 2003, p.97). Estaambiguidade complexa requer prudência eprecisão do sociólogo ou do antropólogo nadelimitação das fronteiras de seu objeto deinvestigação simultânea à manutenção do diálogoe interlocução interdisciplinar.

O pequeno livro comentado nesta resenha, Asociologia do corpo - editado originalmente naFrança, em 1992, e disponível em português, nasua quarta edição - é leitura obrigatória aos quequerem investigar e compreender a corporeidadehumana, como fenômeno cultural e social, repletode simbolismo, representações e imaginários,inscrevendo-se o corpo nas moldagens social ecultural, tanto no plano do sentido e do valor,quanto no âmbito relacional, lugar e tempo dohomem, imerso na singularidade de sua história.

Le Breton recusa a sociologia do corpo comodisciplina autônoma da reflexão sociológica, umavez tributária de sua epistemologia e metodologia.Antes de apontar uma agenda de investigaçõessobre o corpo, alguns capítulos reconstroem,detalhadamente, as diferentes epistemologias dasreflexões sociológicas e etnológicas do corpo,introduzindo o leitor na síntese do estado da artedeste objeto.

O capítulo I dedica-se às etapas históricas dareflexão da corporeidade humana, nos primórdiosdas ciências sociais no século XIX, destacando trêsetapas: a primeira é a sociologia implícita aocorpo, ignorando-o e mostrando a miséria física emoral da classe trabalhadora na RevoluçãoIndustrial. A segunda etapa concentra-se nasupremacia biológica do corpo, à qual seopuseram Hertz e Mauss e outros autores quedesenvolveram pesquisas e inventários etnológicossobre os usos sociais do corpo, enquadrados naterceira etapa, designada, pelo autor, desociologia detalhista.

O capítulo II indaga, pertinentemente, sobreas ambiguidades dos discursos sociológicos sobreo corpo, perguntando-se: de que corpo se estáfalando? “Corpo não é fetiche, omitindo ohomem”, diz o autor (Le Breton, 2010, p.25),sendo imprescindível referir-se ao ator que oporta. Um conjunto de estudos etnográficosdemonstra: as representações do corpo e dapessoa, inseridas na visão de mundo; a fisiologiasimbólica da mulher e suas relações com ocontexto; as concepções modernas do corpo,separadas do cosmos; as concepções anatômicas e

fisiológicas do pensamento ocidental; o corpoenquanto imaginário social; a corporeidadehumana e seus elos com a natureza; o corpo nasmedicinas chinesa e indígena. O argumentocentral do capítulo reforça a imersão dacorporeidade no imaginário, nas representações econdutas que variam segundo as diferentessociedades.

Para definir o corpo de que se fala, dos pontosde vista sociológico e antropológico (capítulo III),distancia-se da ideia de ser ele atributo da pessoa,um pertencimento da identidade em recusa àideologia individualista. O autor abraça a ideia darealidade construída do corpo, com múltiplassignificações culturalmente operantes e associadasaos atores, vistos como corporeidade.

O corpo inexiste em estado natural, insere-sena trama dos sentidos, inclusive naquelasmanifestações mais físicas, como na dor e naenfermidade, expressas nas percepções sensoriaise corporais dos atores. A análise sociológicadistingue-se das intervenções corporaisterapêuticas (médicas, xamânicas, religiosas, outrasmedicinas) que buscam reinserir o homem em suacomunidade. Nas palavras do autor, “a sociologiaaplicada ao corpo distancia-se das asserçõesmédicas que desconhecem as dimensões pessoal,social e cultural de suas percepções sobre ocorpo” (Le Breton, 2010, p.36).

Ao detalhar as investigações das lógicas sociaise culturais do corpo (capítulo IV), o autor parte deMarcel Mauss (1950), sobre as técnicas corporaise as expressões dos sentimentos, das emoções eda dor. Acrescenta contemporâneos queestudaram assuntos como: os especialistas dastécnicas corporais circenses, desportivas,artesanais; de ars amandi; a gestualidade; asetiquetas corporais e infrações às regras; aspercepções sensoriais, as inscrições corporais e astraduções físicas da enfermidade (sintomas oucomportamentos).

O corpo, como universo das representações,dos valores e do imaginário social, ocupa ocapítulo V, distinguindo esta abordagem dosenfoques biológicos e sociobiológicos,percorrendo-se estudos antropológicos clássicos econtemporâneos sobre: sexualidade; o uso docorpo; o corpo como suporte de valores e o corpoincapacitado. O capítulo VI enfoca os estudossobre o corpo como reflexo do social-coletivo:suporte das relações de poder e do controlesocial; das apresentações das aparências corporais;

Page 3: Sociologia Do Corpo, Le Breton (Resenha)

livros

v.15, n.36, p.321-3, jan./mar. 2011 323COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

da modernidade; do estigma; do gosto pelo riscoe aventuras; o envelhecimento do corpo e oimaginário do descartável ou das mudançasimprimidas ao corpo pelas tecnologias médicas,que nem sempre suscitam reflexões éticaspertinentes.

Ao concluir sobre a situação da sociologia docorpo, no último capítulo, Le Breton reafirma apertinência da corporeidade, a amplitude daspesquisas sociológicas e antropológicas noassunto, onde o pesquisador, como um verdadeiroartesão prudente e competente, é desafiado aentrecruzar saberes, diante de sua complexidade.

Enfim, a sociologia aplicada ao corpo, segundoo autor, deve produzir muitas investigaçõessignificativas, cuja agenda inclui, dentre os váriositens: o inventário e a comparação das diferentesmodalidades corporais, significações,representações e valores nos distintos grupossociais; as mudanças das atitudes frente ao corpoem certas enfermidades, assim como asintervenções das novas tecnologias médicas sobreo corpo. A sociologia do corpo refere-se ao“enraizamento físico do ator no universo social ecultural” (Le Breton, 2010, p.99), nãonaturalizando o corpo.

Recomenda-se a leitura deste pequeno edenso livro aos que pretendem iniciar-se nasabordagens sociológicas e etnológicas do assunto.

Recebido em 13/08/10. Aprovado em 05/11/10.

Referências

GOMES, R. Resenha: LE BRETON, D. Adeus aocorpo: antropologia e sociedade. Cienc. SaudeColet., v. 9, n.1, p.247, 2004.

LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia esociedade. Campinas: Papirus, 2003.

______. A sociologia do corpo. 4.ed. Rio de Janeiro:Vozes, 2010.

MAUSS, M. Sociologie et Anthropologie. Paris: PUF,1950.

NETTLETON, S. The Sociology of health & illness.Cambridge: Polity, 2003.