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    BIBLIOTECA FUNDAMENTALDA

    LITERATURA PORTUGUESA

    CLEPSIDRA

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    BIBLIOTECA FUNDAMENTALDA

    LITERATURA PORTUGUESA

    Camilo Pessanha

    CLEPSIDRABarbara SpaggiariEDIO DE TEXTO

    Carlos ReisCOORDENAO

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    IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA, S.A.Av. de Antnio Jos de Almeida

    1000-042 Lisboa

    www.incm.ptwww.facebook.com/[email protected]

    Reservados todos os direitosde acordo com a legislao em vigor

    2014, Imprensa Nacional-Casa da Moeda

    As obras da BFLP observamo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990.

    Apoio coordenaoValria Cavalheiro

    Publicado em maio de 2014Depsito legal

    335141/11

    ISBN978-972-27-1995-7

    Edio n.1018337

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    Camilo Pessanha Clepsidra 7

    Nota prvia

    Carlos Reis

    A integrao do volume Clepsidra, de Camilo Pessanha, naBiblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa corresponde

    amplamente aos propsitos desta coleo, propsitos que so tam-bm indissociveis dos pblicos que com ela se pretende atingir.No quadro de uma misso que envolve uma inegvel componentede salvaguarda patrimonial, a Imprensa Nacional-Casa da Moedadeu corpo iniciativa de publicao, numa srie especialmenteconcebida para o efeito, de um conjunto alargado de ttulos daliteratura portuguesa cuja importncia literria nem sempre

    acompanhada por iniciativas editoriais que facultem o acesso doleitor a esses ttulos. Acontece assim no caso de no poucos dostextos que aqui vo aparecendo; curiosamente, tendo vivido umtrajeto editorial um tanto atpico, o livro Clepsidra foi objeto, nosltimos anos, de uma ateno que, traduzida em edies de origeme qualidade desigual, no prejudica, antes refora a legitimidadeda publicao que agora surge; acresce a isto a vantagem (e tam-bm a segurana) de ser ela baseada na edio crtica que, em1997, a editora Lello deu estampa e que foi preparada por Bar-bara Spaggiari.

    Profunda conhecedora da poesia de Camilo Pessanha, da suahistria literria e da histria editorial dos seus textos, Barbara

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    Spaggiari elaborou, para esta edio, uma introduo e uma cir-cunstanciada nota biobibliogrfica que, cada uma sua maneira,

    ajudam o leitor a entrar no denso, s vezes sombrio, mas semprefascinante universo literrio deste grande poeta portugus. Tendoprotagonizado um percurso pessoal de descentramento e mesmode relativo isolamento, designadamente pela sua experinciaoriental, durante os anos em que viveu em Macau, Pessanha foi,como aconteceu com outros (Fernando Pessoa, que o admirou, o caso mais conhecido), um poeta de notoriedade pblica tardia.

    Depois do aparecimento de cerca de uma dezena e meia de poe-mas seus na revista Centauro, em 1916, por iniciativa de Ana deCastro Osrio, Pessanha ficaria a dever a primeira edio deClepsidra (e a nica que em vida conheceu) mesma zelosa edi-tora, tendo-se aquela edio concretizado num singelo livrinhoimpresso em 1920. Seis anos depois, o poeta morria, ficando paraa nossa histria literria, tal como aconteceu com o grande Cesrio

    Verde (que s postumamente foi editado em livro), como autorde um s livro.

    E contudo, conforme o estudo introdutrio de Barbara Spag-giari expressivamente mostra, bastou esse ttulo para atribuir aCamilo Pessanha o lugar absolutamente crucial que ele detm nanossa literatura, em direta relao com o simbolismo europeu fi-nissecular, nos primrdios do modernismo. S as circunstncias

    acidentais daquela publicao tardia, ocorrida j no sculo XX,aliadas aos acidentes de uma vida pessoal um tanto dispersa, ex-plicam que este parea um poeta tardio, relativamente aos movi-mentos poticos de que em boa parte se nutriu a sua escritapotica. dessa teia de ligaes literrias que trata tambm a in-troduo que aqui pode ler-se.

    Procedendo a um enquadramento epocal e periodolgico minu-cioso, Barbara Spaggiari fundamenta nesse tempo muito fecundo,muito intenso e no raro dominado por afirmaes provocatriase por gestos de subverso a potica e a poesia de Camilo Pessanha,os temas que nela predominam e as opes tcnicas que levaram configurao de uma lngua potica prpria. Sem perder de vista

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    os incidentes da biografia (bem caracterizados sobretudo na notabiobibliogrfica), Spaggiari no esgota, todavia, na estreiteza de

    explicaes biografistas os caminhos de leitura que aqui nos pro-pe. E assim, os grandes veios temticos que atravessam Clepsidradialogam com um contexto histrico-literrio complexo e comuma estilstica s vezes radicalizada em procedimentos que deli-beradamente fugiam quela que era, para Pessanha e para vriosoutros poetas do seu tempo e sintonizados com o seu ethos lite-rrio, a trivialidade da lngua do vulgo. Ou seja, tudo o resto que

    ficava fora dos restritos limites da poesia concebida como de lamusique avant toute chose, como sobranceiramente dizia Ver-laine, na famosa arte potica que enunciou num poema deJadiset nagure (1884).

    Camilo Pessanha no certamente um poeta de grande p-blico; hoje talvez pudssemos dizer at, para usar uma expressocorrente, que se trata de um poeta de culto. A sofisticada e quase

    elitista complexidade que caracteriza os seus textos remete a suapoesia sobretudo para leituras e para leitores empenhados em es-tudar a literatura portuguesa na transio do sculo XIX para osculo XX, incluindo-se nessa transio a emergncia de um mo-

    vimento com a relevncia do modernismo; leituras e leitores comresponsabilidades no sistema de ensino, designadamente profes-sores de literatura portuguesa, estudantes e investigadores que ca-

    ream de um texto seguro e devidamente contextualizado, naquelesaspetos que j aqui foram referidos. E nem o facto de se saber quea existncia social e a funo formativa dos textos literrios sohoje afetadas pela chamada crise das Humanidades uma criseno raro afirmada com a cumplicidade de poderes polticos e cor-porativos que a acentuam, para alm do que seria tica e cultural-mente aceitvel , nem isso retira pertinncia a edies comoesta. Com ela contribui-se para reafirmar, tendo em conta o lugarcultural e tambm institucional que lhe cabe, o significado dapoesia de um grande poeta portugus. Esse significado ostentauma densidade que vale por si, para alm ou para aqum de pro-cedimentos de legitimao que esta srie tambm assume.

    Camilo Pessanha Clepsidra 98

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    Souviens-toi que le Temps est un joueur avide

    Qui gagne sans tricher, tout coup! c'est la loi.

    Le jour dcrot; la nuit augmente; souviens-toi!

    Le gouffre a toujours soif; la clepsydre se vide.

    Charles Baudelaire, Lhorloge

    (Spleen et Idal, Les fleurs du mal)

    Sentir tudo excessivamente

    Porque todas as coisas so, em verdade, excessivas

    E toda a realidade um excesso, uma violncia,

    Uma alucinao extraordinariamente ntida

    Que vivemos todos em comum com a fria das almas.

    lvaro de Campos

    (heternimo de Fernando Pessoa)

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    Camilo Pessanha Clepsidra 13

    Introduo

    1.

    At ao fim do sculo XIX, os movimentos poticos domi-

    nantes, a saber Parnasianismo, Decadentismo, e Simbolismo agregam e emanam mltiplas e multiformes personalidades,no entanto, todas reconhecem um irredutvel ncleo comum deideais e de princpios estticos 1. Na realidade, estes trs movi-mentos coexistem, sobrepem-se, convergem ou divergem, semque seja possvel, muitas vezes, desenredar os infindos fios queligam uma experincia a outra. Os protagonistas so, em larga

    medida, os mesmos, impedindo consequentemente uma clas-sificao rgida, no respeitante ao enquadramento ideolgico decada um no devido lugar. Os poetas maiores, que permanecemcomo referncia ou modelo para a literatura finissecular Bau-delaire, Verlaine e Mallarm no pertencem a nenhum movi-mento em particular, ou melhor, distanciam-se amide daquelascorrentes poticas que eles prprios inspiraram e acompanharamno seu posterior desenvolvimento.

    1 Como sempre acontece, as novas tendncias nasceram em oposio ao conjuntode Romantismo, Positivismo e Naturalismo que, na literatura, na filosofia e nasartes plsticas, tinha at ento dominado o meio cultural europeu.

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    O Parnasse contemporain 2 nasceu na sobreloja do PassageChoiseul, em Paris, local onde invariavelmente se reuniam vrios

    letrados em redor do livreiro-editor Lemerre. Entre 1866 e 1876,deste grupo heterogneo de poetas promanaram no total trsantologias com o mesmo ttulo, que surpreendem pela variedadede tom e estilo 3. Com efeito, o elemento que aproxima e carac-teriza os Parnasianos a revolta contra os excessos do lirismoromntico, que se convertia frequentemente na ostentao com-prazida dos sentimentos mais ntimos. Disciplina, rigor formal

    e frieza rompem com a sensibilidade de um sicle tout de nerfset dmois (Verlaine).

    A impassibilidade do emissor lrico pretende demonstrar odomnio do poeta sobre a matria 4. Assim, temas tradicionaiscomo o amor, a morte, a natureza ou a religio, so apresentadoscomo um mero desgnio de objetividade, de tal maneira que adescrio impessoal se torna uma constante que associa iniludi-

    velmente a poesia parnasiana pintura e escultura, dimanadasda mesma fonte de inspirao 5.

    Os Parnasianos, em boa verdade, restauram o ideal de lartpour lart, e, com isso, o conceito de poesia pura, sancionandoa dissociao entre a arte e o mundo. exigncia da perfeioformal, defesa do verso tradicional (o alexandrino), ou das for-mas mtricas fixas (mormente, o soneto)6, justape-se ento um

    pendor tendente ambientao mtica ou extica. Por um lado,

    2 O nome Parnasse remete para uma tradio secular de compilaes poticas, inti-tuladas Parnaso, com aluso ao monte homnimo consagrado s Musas. No serpreciso lembrar o lendrio Parnaso camoniano, cujo ttulo foi retomado na ediodas Rimas de Cames por Tefilo Braga.

    3 Nas pginas do Parnasse, Verlaine, com a sua vertente intimista e a musicalidadesugestiva do verso, encontra-se lado a lado com Jos-Maria de Heredia, estrnuodefensor da antiguidade clssica e da versificao mais rigorosa.

    4 Vd. Adolphe Racot, Les Parnassiens (1875): Ctait le lyrisme qui avait t la causede la dcadence potique; donc, tout prix, la nouvelle cole rsolut de combattreavec acharnement le lyrisme. Elle dcrta, comme rgles primordiales, la proscrip-tion de lmotion, la srnit du vers, limpassibilit.

    5 Alguns dos poetas parnasianos so tambm pintores, como Jules Breton e ClaudiusPopelin, ou ento, crticos de arte como Georges Lafenestre. Os poemas de JulesBreton, em particular, merc do vocabulrio tcnico que evoca as formas, as corese os volumes da arte plstica, so parecidos a quadros em versos.

    6 Vd. Thodore de Banville, Trait de posie franaise (1872).

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    persegue-se o retorno ao classicismo e beleza marmrea dasesttuas, e, por outro, ressalta-se o pitoresco dos pases longn-

    quos, depositrios de antigas tradies, tal como a ndia e, maisgenericamente, o Oriente 7.Do ponto de vista da potica, importa salientar uma propen-

    so dos Parnasianos analogia como meio de representao domundo sensvel. Esse sistema analgico, por si s muito rudi-mentar (On dirait..., Dir-se-ia...), no chega a imitar a teoriabaudelairiana das correspondncias, nem to pouco a antecipar

    as complicadas sinestesias eleitas pelos Simbolistas. Sob o pontode vista existencial, pelo contrrio, os Parnasianos comparticipamda atitude de pessimismo e desgosto perante a realidade contem-pornea, trao comum trade de movimentos sob anlise.

    Sobre todo o perodo finissecular, com efeito, impende o mitode um Crepsculo do Ocidente, segundo o qual a civilizao

    viria a ser inevitavelmente destruda por novas hordas de Brba-

    ros, tal como j acontecera na queda dos imprios de Roma e Bi-zncio. Surge, concomitantemente, nos ambientes intelectuais,um sentimento de irresistvel decadncia.

    No decerto por acaso que o terceiro quartel do sculo XIXcoincide com uma fase de retrocesso e de degradao sociocul-tural, que iria conduzir, em Frana, derrocada do Segundo Im-prio de Napoleo III e, em 1870, derrota na guerra contra os

    Alemes8. Em Portugal, sob o reinado de D. Lus I desencadeiam--se as primeiras revoltas quer populares (aJaneirinha dos finaisde 1867), quer militares (a de maio de 1870, chefiada pelo Duquede Saldanha), que mostram a existncia de sentimentos antimo-nrquicos, abrindo caminho para os ideais republicanos. Entre-tanto, na dcada de 70 tornam-se igualmente ntidas as bases do

    Camilo Pessanha Clepsidra 1514

    7 O mestre incontestado dos Parnasianos foi Leconte de Lisle, que recuperou mitose formas da tradio grego-latina, mas buscou a sua inspirao tambm nas fontesbblicas ou do hindu. Desdenhando o seu tempo, to desprovido de grandeza,preferiu ambientar a sua poesia em pocas heroicas. Entre as suas obras, evoquemosto-s a ttulo de exemplo maux et cames (1852) e Pomes barbares (1862).

    8 exatamente a partir desta data de 1870 que, entre os intelectuais, vai predominar osentimento de uma decadncia irreversvel, que Paul Bourget o autor do volume emversos La vie inquite (1875) resume nas palavras une mortelle fatigue de vivre.

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    declnio da potncia colonial portuguesa, a comear pela frica, data, alvo de inmeras pretenses.

    A literatura, por seu lado, animada pela Questo Coimbr.A Gerao de 70 insurge-se contra os expoentes do ultrarroman-tismo e, significativamente, Antero de Quental profere a primeiraConferncia do Casino, intitulada Causas da decadncia dos povospeninsulares nos ltimos trs sculos.

    No plano filosfico, conforme a doutrina de Schopenhauer 9,afirma-se que o mal inerente existncia do homem, enquanto

    a vontade algo de irracional e inconsciente, que gera necessa-riamente a dor. O que se percebe como felicidade, ento, apenasa interrupo momentnea do nosso sofrimento, ou seja, a tem-porria ausncia de dor, a suspenso transitria das mgoas. Porconseguinte, a salvao para o homem pode ser encontrada tos na renncia ao mundo e a todas as suas solicitaes, na autoa-nulao da vontade e na evaso para o Nada.

    O pessimismo existencial de Schopenhauer encadeia-se noniilismo de Nietzsche. Com esse termo, por si expressivo, aponta-sea essncia da crise que vem arrastar as crenas e os valores tradi-cionais em que se baseava a civilizao ocidental, trazendo consigonecessariamente decadncia, desorientao e inadaptao. Daquiem diante, julga-se que a vida desprovida de qualquer sentido;o tdio, motivo do qual Baudelaire j se tornara profeta 10, trans-

    forma-se em desejo de aniquilamento; a aspirao suprema dohomem assim a reduo a nada, ou seja, a no-existncia.

    Esse mal de fin de sicle, essa difficult dtre, a que damoso nome de Decadentismo, exprime-se pela recusa da realidade

    9 O pensamento de Arthur Schopenhauer, reconhecido matre penser do Deca-dentismo, foi introduzido na Frana por Thodule Ribot, La philosophie de Schopen-hauer, 1874; contudo, s em 1886, saiu a verso francesa de Le monde commevolont et comme reprsentation (1819).

    10 Sem obliterar o prprio Schopenhauer, que afirma: O que pe em ao os seresvivos o prprio desejo de viver. Uma vez assegurada essa existncia, porm, nosabemos que fazer dela, nem de qual forma utiliz-la. Nesse momento que surgea segunda fora capaz de nos pr em ao: a saber, o desejo de libertar-nos dopeso da existncia, de torn-lo insensvel, de matar o tempo: ou seja, esquivar otdio. O tdio, alis, no mal de que se possa descuidar: com o tempo, uma ver-dadeira expresso de desespero surge no rosto.

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    concebida como insustentvel; pela viso fundamentalmente pes-simista do ser; pelo idealismo filosfico que, alm do niilismo, se

    manifesta nas correntes mstica e esotrica; e, finalmente, pelavalorizao do sonho o do subconsciente, com que a sensibilidadefinissecular antecipa a perscrutao freudiana da psique.

    So duas, com efeito, as linhas diretivas do Decadentismo emliteratura. A primeira recupera o paradigma de Baudelaire, en-quanto poeta do spleen (aborrecimento e desgosto pela existncia),dos Paradis artificiels 11 e dos aspetos mrbidos da morte (putres-

    cncia e decomposio). Permanentemente em busca de sensaesdesconhecidas e exacerbadas, muitas vezes vtimas de nevroses,seno mesmo de doenas psquicas maiores, esses Decadentesescolhem a fuga da realidade atravs de um qualquer meio quefacilite a evaso no sonho ou na insensibilidade total.

    A segunda direo tomada pelo Decadentismo estimulada,pelo contrrio, por Verlaine e, nomeadamente, pela sua compila-

    o intitulada Romances sans paroles (1874). Os poetas desta ver-tente percebem a realidade como mistrio, tentam vislumbrar oincgnito atravs das prprias sensaes e impresses. Afinandopelo mesmo diapaso de Verlaine, adotam um lirismo ntimo,eivado de melancolia, que reproduz na tcnica do verso (verselivre oupomes en prose) o ritmo variado das sensaes efmeras,num padro musical de modo menor.

    Esta mundividncia fenece com o fim do sculo, ao passoque o imaginrio decadente sobrevive, transformando-se grada-tivamente, at desenvolver o movimento surrealista.

    A ecloso oficial do Simbolismo convencionalmente fixadano ano de 1886, mas no h dvida alguma de que a maioria dosSimbolistas derivaram do Decadentismo 12. Basta lembrar as pa-lavras que precedem o texto doManifeste du symbolisme de Jean

    Camilo Pessanha Clepsidra 1716

    11 Substncias alucinognias, tal o ter, o pio e a morfina, tornam-se moda entre osartistas da poca, na esteira de Thomas de Quincey, cujas Confessions dun mangeurdopium foram traduzidas por Baudelaire j em 1860.

    12 Segundo a tese de Jean Pierrot, Limaginaire dcadent 1880-1900, Paris, P.U.F.,1977, o Decadentismo constitui a tendncia fundamental do esprito do Fim-de--Sculo, que pode remontar at Poe e Baudelaire. O Simbolismo, ento, no seriaque um aspeto parcial e efmero do Decadentismo.

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    Moras, publicado no Suplemento Literrio do jornal Le Figaro,a 18 de setembro de 1886: Depuis deux ans, la presse parisienne

    sest beaucoup occupe dune cole de potes et de prosateursdits dcadents. [...] M. Jean Moras, un des plus en vue parmices rvolutionnaires des lettres, a formul, sur notre demande,pour les lecteurs du Supplment, les principes fondamentaux dela nouvelle manifestation dart. Note-se, em particular, o eptetode revolucionrios das letras que compete aos novos poetas, e,ainda mais surpreendente, o facto de o manifesto simbolista

    ser escrito para explicar os princpios da escola dos denominadosdecadentes. Outro terico do Simbolismo, Ren Ghil, publicano mesmo ano de 1886 um Trait du verbe, prefaciado por Mal-larm, onde se prope um mtodo de instrumentao verbal,que faz corresponder, a cada vogal, uma cor e um instrumentomusical especficos: A, noir, les orgues; E, blanc, les harpes;I, bleu, les violons; O, rouge, les cuivres; U, jaune, les fltes. Res-

    peitando essas correspondncias, nas palavras do prprio Ghil,le Pome devient un vrai morceau de musique suggestive etsinstrumentant seul: musique des mots vocateurs dimages co-lores, sans dommage pour les Ides 13.

    Smbolo, correspondncia, mistrio, sugesto, aluso, musi-calidade, so outros tantos elementos pertinentes que concorrempara definir a esttica simbolista. E, efetivamente, todos nsitos

    na obra dos trs grandes predecessores do Simbolismo, nomea-damente, Baudelaire, Mallarm e Verlaine: disons donc que Char-les Baudelaire doit tre considr comme le vritable prcurseurdu mouvement actuel; M. Stphane Mallarm le lotit du sens du

    13 evidente a afinidade com o clebre soneto Voyelles, em que Rimbaud inventaa cor e o significado das vogais, mesmo se Rimbaud no teve significativa influnciasobre a poesia simbolista: A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles, / Jedirai quelque jour vos naissances latentes: / A, noir corset velu des mouches cla-tantes, / Qui bombinent autour des puanteurs cruelles, / Golfes dombre; E, can-deurs des vapeurs et des tentes, / Lances des glaciers fiers, rois blanc, frissonsdombelles; / I, pourpres, sang crach, rire des lvres belles / Dans la colre ou lesivresses pnitentes; / U, cycles, vibrements divins des mers virides / Paix des ptissems danimaux, paix des rides / Que lalchimie imprime aux grands fronts studieux;

    / O, suprme Clairon plein des strideurs tranges, / Silences traverss des Mondeset des Anges: / O lOmega, rayon violet de Ses Yeux! (1870-1871).

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    mystre et de lineffable; M. Paul Verlaine brisa en son honneurles cruelles entraves du vers (Moras,Manifeste du symbolisme).

    Com efeito, Baudelaire enuncia j em junho de 1861 a teoriadas correspondncias, na Revue fantaisiste: nous savons queles symboles ne sont obscurs que dune manire relative [...].Chez les excellents potes, il ny a pas de mtaphore, de compa-raison ou dpithte qui ne soit dune adaptation mathmatique-ment exacte dans la circonstance actuelle, parce que ces compa-raisons sont puises dans linpuisable fonds de luniverselle

    analogie, et quelles ne peuvent tre puises ailleurs.A analogia constitui o instrumento tropolgico essencial nesta

    busca de correspondncias, que por sua vez gera a metfora, comu-nicando por esta via aos leitores a viso do poeta 14. Atravs dametfora, o poeta sugere a relao entre o universo suprassensoriale o mundo natural. Em outra perspetiva, a sinestesia produz inter-ferncias entrecruzadas das vrias ordens de sensaes (visual,

    auditiva, ttil, olfativa, gustativa), multiplicando e desenvolvendoas percees. Estas correspondncias horizontais, relativas ssensaes, esto evidentemente ligadas s correspondncias ver-ticais, entre o mundo sensvel e a esfera espiritual, de tal formaque levam o poeta decifrao do mistrio.

    Coincidente o facto de o passamento de Baudelaire ter sidoem 1867, precisamente no ano em que nasciam em Portugal,

    Camilo Pessanha e Antnio Nobre. Na Frana, entrementes, aherana potica de Baudelaire seria transmitida gerao sim-bolista atravs da mediao de Stphane Mallarm. No salo dasua casa, em Paris, reuniam-se regularmente os jovens escritorese artistas que reconheciam em Mallarm o pote absolu, a refe-rncia imprescindvel do meio cultural nos finais do sculo XIX.

    Um dos elementos fundamentais da potica de Mallarm asugesto: Nommer un objet, cest supprimer les trois quarts de

    Camilo Pessanha Clepsidra 1918

    14 A metfora em Baudelaire , notoriamente, oposta metfora clssica. Muitasvezes, limita-se a sugerir a relao entre concreto e abstrato; o smbolo atua in ab-sentia, ou seja, pe em primeiro plano s o abstrato, ou comparante, enquantoomite o concreto, ou comparado. Por este motivo, ao nefito a poesia parecemuitas vezes obscura e indecifrvel.

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    la jouissance du pome qui est fait du bonheur de diviner peu peu; le suggrer, voil le rve. A verdadeira arte, ento, consiste

    na aluso ao objeto; e, efetivamente, o smbolo que permite apassagem, ou a transposio, do objeto concreto noo pura,revelando a rede de relaes que subsistem entre os elementosdo universo.

    A partir do conceito j formulado por Baudelaire, na reflexoterica de Mallarm o smbolo concebido como um concentradode significados, de tal modo que cada palavra, ou cada imagem,

    adquire uma valncia polissmica, designadamente, a coexistnciade mltiplos significados, que surgem entrelaados por uma redeinfinita de correlaes.

    Em lugar da descrio naturalista, do intento didtico ou doraciocnio positivista, privilegiam-se, ento, a intuio e a emoo.A poesia h de ser apenas sugestiva, no sentido em que o poetapossibilita a apreenso da ideia sem a definir, prolongando ilimi-

    tadamente a emoo que surge da perceo inerente 15.Na esteira de Baudeaire e Mallarm, o smbolo acaba por

    confundir-se com o prprio ato potico; segundo as palavras deVerhaeren, Le Symbole spure [...] toujours, travers une vo-cation, en ide: il est un sublim de perceptions et de sensations;il nest point dmonstratif, mais suggestif; il ruine toute contin-gence, tout fait, tout dtail; il est la plus haute expression dart et

    la plus spiritualiste quil soit (Le symbolisme, 1887) 16.Ao lado do smbolo, Mallarm solicita a criao de uma lin-

    guagem potica pura e incontaminada, em que as palavras possamrecuperar o seu sentido originrio. Os arcasmos tm direito decidadania a par dos neologismos, do momento em que a msica

    verbal torna o verso mais fludo e mais mvel, criando vnculosharmnicos entre as palavras. Assim, a sintaxe e a gramtica so

    15 mile Verhaeren, outro terico dos movimentos poticos do Fim de Sculo,exprimir-se-ia desta forma: Le Symbolisme actuel [...] sollicite vers labstractiondu concret. [...] On part de la chose vue, oue, sentie, tte, gote, pour en fairenatre lvocation et la somme par lide (Le symbolisme, 1887).

    16 Como sabido, na origem, os termos Decadentismo e Simbolismo (como, alis, osucedneo Modernismo) pertencem ao vocabulrio da histria da Arte e das ArtesDecorativas, e a partir da foram aplicados literatura do mesmo perodo.

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    preteridos em relao aos acordes musicais que surgem da conti-guidade anmala de certas palavras. a msica, enquanto pro-

    sdia, sonoridade e ritmo, que vaza os elementos da frase nomolde do verso.Este aspeto da potica de Mallarm encontrar a aplicao

    mais clebre no poemaArt potique de Paul Verlaine: De la mu-sique avant toute chose / [...] De la musique encore et toujours! /Que ton vers soit la chose envole / Quon sent qui fuit dune meen alle / Vers dautres cieux dautres amours. // Que ton vers

    soit la bonne aventure / parse au vent crisp du matin / Qui vafleurant la menthe et le thym... / Et tout le reste est littrature(Jadis et nagure, 1884) 17.

    A publicao do poema supracitado precede de dois anosa divulgao dos textos tericos sobre o Simbolismo 18. Verlaine,que alis no pertence ao movimento simbolista, reage contraa perfeio impassvel dos poemas parnasianos, libertando o

    verso das antigas regras e constrangimentos. Mesmo respei-tando o rigor formal da versificao, a medida do verso e a pre-sena da rima, respetivamente, Verlaine abre novas fronteirasno ritmo, na colocao dos acentos e das pausas, de maneiraa conferir ao verso uma fluidez at ento desconhecida. Suges-to, emoo, musicalidade so as palavras-chave para definir asua potica, que vm ento patentear certos aspetos da sensi-

    bilidade simbolista 19.A euritmia nasce do acordo harmonioso das cadncias e das

    modulaes. O verso recria o seu prprio ritmo baseando-se no

    Camilo Pessanha Clepsidra 2120

    17 Verlaine acabava de regressar a Paris, tendo j uma certa fama entre os letradosda nova gerao. Entre 1883 e 1884, escreveu na revista decadente Lutce umasrie de retratos consagrados, respetivamente, a Rimbaud, Mallarm, TristanCorbire e Villiers de lIsle-Adam, sob o ttulo Les potes maudits. Ele cria, nestemodo, o mito do poeta marginal, desconhecido ou incompreendido pela culturaoficial.

    18 Alm dos escritos de Moras, Ghil e Verhaeren, supracitados, vd. tambm GustaveKahn, Les origines du symbolisme, dans le volume Symbolistes et dcadents, 1902.

    19 Le Rythme: lancienne mtrique avive; un dsordre savamment ordonn; la rimeillucescente et martele comme un bouclier dor et darain, auprs de la rime auxfluidits absconses; lalexandrin arrts multiples et mobiles; lemploi de certainsnombres premiers sept, neuf, onze, treize rsolus en les diverses combinaisonsrythmiques dont ils sont les sommes (Moras, Manifeste du symbolisme).

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    andamento da atividade cognitiva. Neste sentido, a esttica sim-bolista legitima a adoo do verso livre, malevel, flexvel, varivel,

    dctil, por si capaz de organizar as palavras e as imagens seguindocritrios de sugesto e de musicalidade 20.As conquistas do Simbolismo no plano formal constituem

    uma aquisio durvel, lanando as bases da poesia moderna.A partir dos finais do sculo XIX, libertao do verso e da es-trutura mtrica une-se a recusa definitiva da eloquncia, da des-crio ou da narrao. O aspeto fnico da palavra (significante)

    conquista o mesmo valor do significado e, por vezes, o poemaprescinde definitivamente de qualquer sentido lgico, confiandoa mensagem potica apenas sugesto musical ou icnica.

    2.

    Apesar da marginalidade que marcou a sua vida, contraba-lanada entre o provincianismo portugus e o exotismo macaense,

    concretamente, entre a periferia da Europa e as terras longnquasdo Oriente, Camilo Pessanha insere-se de direito entre os poetaseuropeus que souberam encarnar e ilustrar o movimento simbo-lista, dentro de uma mundividncia profundamente marcada pelasensibilidade decadente.

    A sua personalidade literria, na verdade, abrange traos per-tinentes aos trs movimentos que dominaram a poesia finisse-

    cular, acima analisados de forma muito sucinta. possvel, de facto, reconhecer em algumas caractersticas

    da sua obra certos vestgios da potica parnasiana e at surpreen-der fenmenos de intertextualidade que ligam um pequeno grupode poemas da Clepsidra a Trophes de Jos-Maria de Heredia.

    No que diz respeito ordenao dos poemas na Clepsidra, ainfluncia parnasiana marcadamente visvel na valorizao dosoneto como elemento estruturante do macrotexto. Na verdade,a Clepsidra de 1920 compreende no total trinta poemas, distri-budos em duas seces simtricas, intituladas respetivamente

    20 Conforme a definio de Mallarm, o verso livre uma modulation individuelle,parce que toute me est un nud rythmique (La musique et les lettres, 1895).

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    Sonetos e Poesias 21. A vontade de organizar o volume baseando-sena oposio estrutural entre soneto e no-soneto um reflexo

    evidente das teorias parnasianas. Foi, como unanimementesabido, Jos-Maria de Heredia quem, no declinar do sculo XIX,relanou a moda do soneto com a compilao Trophes (1893):Le sonnet, par la solide lgance de sa structure et par sa beautmystique et mathmatique, est sans contredit le plus parfait despomes forme fixe. Elliptique et concis, dune composition lo-giquement dduite, il exige du pote, dans le choix de peu de

    mots o doit se concentrer lide et des rimes difficiles et pr-cieuses, un got trs sr, une singulire maitrse 22.

    valorizao do soneto, associa-se, por outro lado, a neces-sidade de ordenar os poemas de forma no casual. O poeta temconscincia de escrever apenas os elementos dispersos de umaobra, a (re)construir e organizar numa fase posterior composi-o. No conceito de macrotexto, enquanto dimenso terica, um

    poema no existe apenas em si, mas vive no interior dum orga-nismo mais amplo, onde os textos, na sua contiguidade, adquiremum significado suplementar: a cadeia dos textos tem ela mesmaum sentido, que se soma mensagem de cada poema, isolada-mente considerado.

    Em Pessanha, como em outros autores da mesma poca, con-vivem duas mentalidades contrastantes: por um lado, a poesia

    apenas fragmento, disperso, evocao momentnea da realidade,que nunca se fixa, num continuum de sensaes que vivem notempo; por outro lado, existe a ambio, dessultria, de organizar,uma nica vez, os versos em forma de livro, subtraindo os poemasao fluxo da incessante mutabilidade.

    Camilo Pessanha Clepsidra 2322

    21 So quinze os sonetos e treze os poemas vrios. Na realidade, porm, estes ltimoschegam tambm a quinze, incluindo a Inscrio e o poema Final, que abrem eencerram o livro.

    22 Traduo: O soneto, pela slida elegncia da sua estrutura e pela sua belezamstica e matemtica, sem dvida nenhuma o mais perfeito dos poemas de formafixa. Elptico e conciso, composto com lgica rigorosa, o soneto exige do poeta na escolha quer das poucas palavras onde a ideia h de concentrar-se, quer dasrimas difceis e raras um gosto sem falha, uma mestria no comum (Discoursprononc linauguration de la statue de Joachim du Bellay, publ. em 1894).

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    Quanto aos fenmenos de intertextualidade que se podemdesvelar entre Pessanha e Heredia, no ser arriscado demais

    afirmar que a produo excecional do ano de 1895, em que Pessa-nha comps dez poemas 23, ter sido desencadeada pela publicaode Trophes em 1893. Basta apenas citar Tatuagens complicadasdo meu peito, que se inspira no Blason cleste de Heredia, onde ogosto pela herldica se conjuga com o brilho dos materiais preciososda ourivesaria (mail, argent, cuivre, or), at coincidir no sintagmabesant dor que, a partir do ltimo verso do soneto francs, se reper-

    cute no verso, tambm este final, do soneto de Pessanha: Quereala de oiro um colar de besantes. O maior nmero de sugestesheredianas, porm, manifestam-se nos poemas Castelo de bidose Esvelta surge, em que Pessanha exprime a exaltao utpica e por conseguinte dolorosa de um jovem que aspira a ser herie guerreiro, a fim de lutar contra o destino e contra a morte. Essesmotivos encontram-se, todos, na seco Hercules et les centaures

    de Trophes. Na sua emulao, Pessanha transcende a inspiraoclssica da fonte, para manifestar as pulses do orgulho ferido,

    juntamente com o gosto amargo do inevitvel desengano 24.Em relao corrente simbolista, a obra de Pessanha mostra,

    indiscutivelmente, uma afinidade que nasce no de uma adesoprogramtica e refletida a um qualquer manifesto de potica 25,

    23 A saber, Paisagens de inverno II, Depois das bodas de oiro, gua morrente,Na cadeia, Quando?, Queda, No claustro de Celas, Foi um dia de inteisagonias, Quem poluiu, quem rasgou os meus lenis de linho, Quando volteiencontrei os meus passos: dez no total, repartidos entre cinco sonetos e cincopoemas vrios (dos quais um s, gua morrente, iria ser excludo da primeiraedio da Clepsidra).

    24 Um confronto pontual diz respeito ao v. 5 do soneto Centaures et Lapithes,Rires, tumulte... Un cri! Lpouse pollue, que inspirou com certeza Pessanha,at no ritmo sincopado do verso, ao escrever Rixas, tumultos, lutas no v. 9 dePorque o melhor enfim (onde, alis,gritos aparece em rima no v. 40 e rir-me emrima no v. 47). Quanto lpouse pollue, este sintagma de perturbante cruezaecoa no verso inicial do soneto dedicado me, Quem polluiu, quem rasgou osmeus lenis de linho, onde os lenis so, evidentemente, o smbolo da purezavirginal da esposa, poluda e perdida para sempre.

    25 Em contraste, por exemplo, com Eugnio de Castro, que gozava de uma sobre-exposiomeditica at na Frana. Lembre-se como, em Paris, Eugnio de Castro foi convidadopelos Parnasianos e pelos Simbolistas, enquanto o Mercure de France lhe dedicava ar-tigos elogiosos, assinalando a sada dos seus volumes (Oaristos, 1890 e Horas, 1891).Por seu lado, publicou na revistaArte colaboraes de Verlaine e Verhaeren.

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    mas, bem pelo contrrio, de uma proximidade instintiva e de coin-cidncia espontnea, no concernente sensibilidade, s temticas

    e s tcnicas expressivas do Simbolismo.Os seus autores de cabeceira, em Macau, nos finais de 1925,ou seja, pouco antes de morrer, eram Baudelaire, Mallarm,Verlaine e Rimbaud 26. Desde a poca estudantil, em Coimbra,Pessanha nunca cessou de se estimular por meio de verdadeirasfontes da sua aspirao, a saber, os grandes nomes da literaturafrancesa que, a partir da metade do sculo XIX, marcaram uma

    rutura com o Romantismo, o Positivismo e o Naturalismo, in-troduzindo experincias rtmicas e inovaes estilsticas que iriamrevolucionar a poesia do Fim-de-Sculo.

    Se pudermos aplicar ao Simbolismo portugus as categoriasde Symbolisme manifeste e Symbolisme latent, elaboradas pela crticafrancesa, evidente que Pessanha pertence de pleno direito ltima.De facto, procurou o prprio caminho potico sem deter-se nas

    questes tericas que agitavam o meio cultural. Longe dos crculosliterrios e dos ditames da moda, Pessanha veio formular o prprioconceito de poesia, lendo e relendo os poemas dos mestres pre-cursores do Simbolismo francs, simultaneamente com um nmerobastante limitado de autores portugueses da Gerao de 70 (Joode Deus, Antero de Quental, Cesrio Verde, Gomes Leal).

    Pessanha, que gostava de se definir como um modesto diletante

    das letras, demonstrava ter formado ideias precisas e pessoaissobre o que a poesia, quando ainda era estudante universitrioem Coimbra 27. Para ele a poesia mais o reflexo de um modo de

    Camilo Pessanha Clepsidra 2524

    26 o jornalista A. de Albuquerque que nos oferece estas notcias, sendo um dosraros que lhe rendiam visita nos ltimos meses da sua vida, na casa de Macau.

    27 Dois documentos, pelo menos, atestam uma atividade de reflexo terica dePessanha no ano de 1888. Primeiro, a resenha crtica dos Versos da mocidadede Antnio Fogaa, em que Pessanha ressalta tanto a necessidade de um planode produo do livro, como a distino entre soneto e no-soneto enquantoelemento estruturante duma compilao. Segundo, a carta enviada a seu primo,Jos Benedito Pessanha, em que fala de dois projetos de livro, um que recolheriaas prosas, sob o ttulo Solides, outro os versos: O verso no teria nome. Dividi-lo-iaem duas partes. A primeira havia de ser a luta por uma aspirao falsa. Seria talvezpessimista: o prazer, no tendo realidade sua, era o aniquilamento do desejo, deforma que esta luta representaria ansiar a morte. A outra parte excees, con-solaes, aniquilamentos parciais do eu, xtases, espasmos e modorras.

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    ser e de viver, do que a aplicao voluntria de teorias literrias oufilosficas. Em primeiro lugar, a poesia, diz ele, arte essencialmente

    subjetiva, nesse sentido comparvel msica. Tal como a msica,a poesia h de ser ouvida, mais do que lida. O som, ou melhor, aeuritmia, com o seu poder evocativo e fonossimblico, est na basede toda e qualquer elaborao do texto potico.

    A inspirao potica deve orientar-se para a realidade, renun-ciando aos lugares-comuns da conveno literria. Colocadofrente ao mundo real, o poeta, com a sua sensibilidade, colhe

    dele alguns aspetos, que ir valorizar sob dois pontos de vistacomplementares: como esteta, intui a quantidade de belezaque esses aspetos so suscetveis de produzir e, por conseguinte,escolhe os meios tcnicos e estilsticos mais adequados paraos representar. Como consciencioso observador cientfico,interpreta os fenmenos e perscruta o fundo escondido atrs daaparncia superficial da realidade, indaga as relaes ntimas im-

    plcitas nas coisas, tendo sempre a conscincia da intervenoracional e emotiva do eu na perceo do mundo. A alma dopoeta como o espelho em que se reflete a aparncia superficialdas coisas; a tarefa da poesia evocar a realidade, no s repro-duzindo-lhe a beleza exterior, mas tambm captando essa tramadensa de relaes que liga cada parte do universo ao todo.

    Como se pode inferir, as consequncias de tal premissa terica

    no plano da potica vm inevitavelmente coincidir com aspetosj codificados no mbito do Simbolismo francs. Se a misso dopoeta decifrar o mistrio do universo, a poesia deve necessa-riamente nascer da sntese entre inspirao e tcnica: la posieest lexpression, par le langage humain ramen son rythme es-sentiel, du sens mystrieux des aspects de lexistence (Mallarm).

    As linhas de fora da potica de Pessanha podem condensar-seem poucas proposies fundamentais: a identificao, j verlai-niana, entre poesia e msica; a euritmia e a valorizao fonos-simblica do texto potico, em que o som alude, com o seu poderevocativo, a uma realidade externa no racionalmente cognoscvel;a interseco entre o plano da objetividade e o da subjetividade

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    na formulao da mensagem potica; o poder de dissociao dointelecto humano que, atravs da perscrutao da realidade, atinge

    a ideia da morte e do nada; e, por fim, a possibilidade de, pormeio da poesia, lanar um olhar sobre o abismo e o ignoto.

    3.

    Pessanha testemunha nas suas poesias a fidelidade absoluta aum ncleo restrito de temas, que a projeo, no plano potico,de um n existencial nunca resolvido. Nem a razo, nem Deus

    conseguem dar um sentido qualquer existncia, a partir do mo-mento em que a razo lhe nega a evaso pela abstrao onrica, ea falta de f lhe retira qualquer suporte metafsico. A fuga para opassado um modo de continuar a iludir-se. At a memria,consequentemente, cessa de dar conforto, uma vez que a racio-nalidade do adulto tem destrudo todas as iluses, num desesperoirrevogvel pondo a nu a incomensurabilidade entre o desejo e o

    objeto real.No olhar do poeta, ora aceso, ora cansado, ora absorto, a rea-

    lidade refrata-se como num espelho partido; assim dissociada efragmentada, oferece as suas fraes cortantes para construir cor-relaes e analogias, smbolos e metforas, em que as coordenadasespaciais se anulam, as referncias histrico-biogrficas se tornamfugazes, contornos, tons e cores adquirem uma fluidez que se

    transmite ao ritmo do verso.A perceo lcida de um movimento incessante, to vo

    quanto intil, faz com que as imagens, reflexo do real, sejam tam-bm elas imparveis e fugidias, formas transitrias e evanescentesque debalde se tentam fixar. As categorias percetivas fundem-see subvertem-se na sinestesia, associadas apenas pela natureza ef-mera do seu ser. Iludida a noo de lugar e de espao, o mundoexterno colhido no seu devir fragmentrio.

    Atravs a fugacidade das sensaes, Pessanha percebe a dura-o do tempo, a que faz aluso o smbolo recorrente da gua, queescorre inexorvel, sem nunca parar nos rios, nos mares e, evi-dentemente, na clepsidra (relgio de gua). O nosso ntimo desejo

    Camilo Pessanha Clepsidra 2726

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    seria ficar como que suspensos entre o presente e o futuro, mas opresente no existe, j passado ou j futuro, amargo concentrado

    de nostalgias e temores, de saudades e de iluses. As imagenssobrepem-se, os sons confundem-se, os planos da perceo inter-secionam-se num tecido analgico cuja trama pode ser desvendadaem qualquer momento por uma centelha de lcida ironia.

    No registo mais propriamente decadente, evidencia-se o temada morte, interpretado ora como decomposio e putrescncia,ora como purificao e assepsia. Exemplar da primeira vertente,

    o soneto Vnus subverte o tpico do nascimento da deusa, quetradicionalmente sai, despida e esbelta, da espuma do mar. Recu-sando a iconografia clssica e renascentista, a Vnus de Pessanha,, antes de mais, uma representao simblica da morte (no da

    vida que nasce, no do amor que gera). Mais similar Oflia dosquadros pr-rafaelitas, do que Vnus de Botticelli, a figura femi-nina que s o ttulo identifica com a deusa um cadver

    que flutua flor da gua. Surge, como primeira imagem, o cabeloverde, j apodrecido, que o remoinho da gua enreda e desenreda.Do corpo exala-se o cheiro a carne, um odor ftido que embebe oar, at nos inebriar. O olhar demora no ventre da mulher,ptrido...azul e aglutinoso 28. A densa onda do mar, no seu vaivm, absorveas escrias da putrefao com um murmrio de gozo, num sorvo,como se bebesse (prosopopeia). Surgem logo outras ondas que se

    agitam, lutam e bramem como animais selvagens, para se disputara lia do corpo desfeito, abandonado a seus assaltos. Essa figura demulher, de p, flutua, levemente curva... os ps atrs, como voando:da Vnus evocada no ttulo resta apenas um esboo na gua trbidada marinha, s um perfil a boiar, tona da gua, enquanto as

    vagas arrastam na areia os vestgios da deusa.A areia, justamente, permite ligar o tema da putrefao ao

    outro tema, oposto e complementar, da morte como instrumentode purificao. Durante uma das viagens por mar, do parapeito

    28 A trplice aposio insiste sobre o processo orgnico de putrefao, sobre as coresque se desprendem da degradao das substncias (o verde dos cabelos, o azuldoventre), e, finalmente, sobre a consistncia viscosa da matria decomposta.

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    do navio, Pessanha olha para as distncias infinitas do desertoafricano, soltando uma srie de invocaes aos elementos da pai-

    sagem: as nesgas agudas do areal, asgaivotas que voam em redordo navio, as guasverde-esmeralda do Canal (de Suez), as guasque filtram na areia, o sol sem mancha, rtilo e triunfante. Insis-tente e lamentoso, o poeta pede aos elementos da natureza, quenesse ambiente extremo adquirem uma fora e um vigor inusita-dos, que lhe outorguem o aniquilamento fsico do ser, a comearpelo crebro mole, inconsequente e doentio, fonte de sofrimentos

    irregulares. Na luz alucinada e deslumbrante do deserto, sob osol que queima e enxuga, afria e exangue liquescncia do corpoir volatilizar-se, sem embaciar de veneno o brilho e a viva trans-parncia do ar. Em paralelo, os recortes vivos das praias abriroas suas veias, derramando o sangue que ser espalhado e absor-

    vido na areia branca como em um lenol. E, finalmente, as crista-lizaes salinas iro ressecar oplasma vivaz, de maneira que no

    se desenvolvam as ptomanas, com o seu olor obsessivo e adoci-cado. Uma vez absorvida e eliminada qualquer liquescncia, restao crnio a rolar insepulto no areal: uma caixa vazia, purificadapelo sol e pelo sal, abandonada ao vento quente do deserto.

    4.

    No atinente tcnica potica, a singeleza aparente do verso

    de Pessanha, com a sua musicalidade encantatria, resulta de umesforo incomum. A contnua preocupao formal revela-se nabusca obsessiva da palavra capaz de condensar a polissemia dosmbolo, no esforo de multiplicar os efeitos onomatopeicos, naprocura de um ritmo indito no verso que, embora respeite asregras tradicionais, adquire uma plasticidade extraordinria euma flexibilidade at ento desconhecidas.

    Trechos tipicamente simbolistas manifestam-se na valorizaodo espao branco, da margem vazia que circunda o texto; nas re-ticncias que invadem os versos; na suspenso do discurso, quefica muitas vezes interrompido; na voz que se cala, at deixaruma slaba vazia.

    Camilo Pessanha Clepsidra 2928

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    Outros recursos concorrem para a valorizao fonossimblicado texto, tal como a iterao sistemtica de macro e microele-

    mentos, o paralelismo, a insistncia em certos timbres das vogais,em determinados sons ou sucesso de sons, cuja repetio fun-cional mise en relief dos pontos nevrlgicos do texto.

    , precisamente, no plano dos microelementos que Pessanhademonstra uma habilidade invulgar na construo da tramafnica do poema, insistindo sobre os mesmos fonemas ou gruposde fonemas para evocar, atravs do som rebatido, uma imagem

    ou uma sensao.Neste sentido, Violoncelo indiscutivelmente a verdadeira

    obra-prima de Pessanha 29. A msica grave do violoncelo evocauma inexplicvel tristeza, uma dor surda e contnua, que produzuma srie de imagens aparentemente incongruentes. Num casoexemplar de polissemia, a dupla aceo de arcadas refere-sequer ao movimento do arco sobre as cordas do instrumento,

    quer estrutura daspontes, constituda por um conjunto de ar-cos. As pontes, por sua vez, so aladas porque aludem ao voodo arco e ao vibrar convulso das cordas. A impresso de ummovimento febril e ansioso completa-se nopesadelo que concluia primeira estrofe, e, sobretudo, no verbo esvoaam, imediata-mente articulvel com a rea semntica de aladas. Os barcospassam, despedaados, na corrente violenta do rio. Depois, o

    tom desce, fazendo-se mais sombrio, enquanto a luz branca eespetral, que ilumina os primeiros versos, desaparece. Na escu-rido, pontes e barcos afundam-se e despedaam-se nas guasturbulentas do rio; mas, logo, a corrente de msica, de pranto alarga-se num lago. O movimento abranda; luz de trmulosastros, na solido da superfcie plana das guas, ressaltam isoladasas runas dos balastres, os pedaos dos barcos naufragados,lemes e mastros. Finalmente, as urnas quebradas, os blocos degelo, igualmente brancos e fragmentados, sugerem a inutilidade

    29 No por acaso, em 1912, Mrio de S-Carneiro rogava a Fernando Pessoa, em cartaenviada de Paris, que lhe fizesse chegar os violoncelos do Pessanha e o sonetosobre a me, porque os queria mostrar ao futurista Guilherme de Santa Rita.

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    no ininterrupto movimento perptuo: do tempo, das guas edas sensaes transitrias.

    Neste poema, sinestesia de fundo, em virtude da qual a m-sica remete para uma realidade sentimental e simblica, sobre-pem-se duas imagens geradas uma da outra por metonmia: osarcos do violoncelo tornam-se arcadas de uma ponte, e a melodiasoluante, com o seu ritmo quebrado, evoca a fragmentao doreal. Se, no incipit, ainda manifesto um eco do spleen baudelai-riano, na segunda parte da poesia impe-se uma viso surrealista,

    um pesadelo materializado na arquitetura gtica da ponte.Cabe, por fim, acrescentar algumas observaes no que con-

    cerne, por um lado, lngua potica de Pessanha, e, por outrolado, grafia por ele escolhida tendo em vista a primeira edioda Clepsidra.

    A adeso programtica realidade, unida recusa do ins-trumentismo verbal, faz com que o lxico de Pessanha se colo-

    que no registo mdio, quase prosaico. So as palavras da vidaquotidiana que irrompem nos seus versos. Essas palavrascomuns convertem-se em poesia e em msica, rigorosamente,merc da tcnica requintada com que Pessanha trabalha osseus versos.

    No respeitante a essa lngua de grau-zero, evidenciam-seduas constelaes semnticas recorrentes e, entre si, opostas.

    A primeira, de inspirao nitidamente parnasiana, abrange aterminologia herldica, os metais e as pedras preciosas, certoselementos do passado medieval ou da epopeia dos descobri-mentos. A outra tendncia torna patente uma predileo porcertos vocbulos tcnicos, pertencentes a sectores especializadosdo lxico, como a linguagem agrcola (a poda, a cava e a redra),e, especialmente, o mbito da medicina e da qumica: nessegrupo cabem o escalpelo para a dissecao dos cadveres, o mr-more anatmico onde se efetua a autpsia, a anemia e a hemoptise,e, por ltimo, a sequnciaplasma vivaz,ptomanas,putrescina,cadaverina que descreve o processo de decomposio do corpo,na areia onde aguarda que o sol e o sal o purifiquem.

    Camilo Pessanha Clepsidra 3130

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    A grafia que Pessanha adotou nos seus autgrafos, e que foiconservada na Clepsidra de 1920, constitui um elemento supras-

    segmental em relao sua linguagem potica. De facto, man-tendo-se fiel ao sistema grfico antigo, de tipo etimolgico, Pessanhaprivilegia o aspeto icnico da palavra, que desta feita se torna sig-nificativo no plano da mensagem, assim como os espaos brancose as reticncias que permeiam os seus versos. Na verdade, em vo-cbulos de origem grega, como lyrio, lagrymas, crypta ou clepsydra,que surgem com grande frequncia nas lricas do Fim-de-Sculo,

    a presena do yparece aludir profundidade do mistrio e darealidade que nos precipita no abismo. Esse aspeto icnico, porconseguinte, est ligado, sobretudo na Frana, aos motivos deca-dentes dogouffre e do abme 30.

    5.

    Quem ler, pela primeira vez, os poemas de Camilo Pessanha,

    ficar inevitavelmente impressionado pela sensibilidade exacerbadaque transparece dos seus versos. Essa hiperestesia, recetiva a qualquerestmulo negativo, fez com que Camilo Pessanha vivesse perpetua-mente exposto a feridas tanto profundas como insanveis.

    A sua biografia, que se reduz a poucos eventos salientes, foimarcada por uma srie de desgostos, a comear pela sua condiode filho ilegtimo, que perdurou at matrcula na Universidade

    de Coimbra. A humilhao sofrida pela me, por quem CamiloPessanha sempre nutriu uma afeio estremecida, acabou porprovocar nele uma atitude de revolta contra um destino de misrias,alis aceite com muda resignao (No vagabundes mais, / Almada minha me... No andes mais neve, / De noite a mendigar sportas dos casais).

    A imagem da me, smbolo de pureza profanada (aMadalenado homnimo soneto), continuou a habitar a imaginao do poetatal como um fantasma do lar perdido, ou melhor, que nunca existiu,

    30 Tal era a difuso desses vocbulos, que Joo de Deus j tinha imitado essa modafrancesa em alguns versos pardicos: Aquele Manuel de Rego / rapaz de tantotino, / que em lirio pe sempre ygrego / e em lyra pe ilatino!

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    a no ser no amor maternal e na branda ternura das irms, as duasMadalenas por ele to queridas. No por acaso que o prprio

    Pessanha, numa carta ao pai, falou da sua infncia virtual, poisele no se lembrava de ter tido uma infncia.O segundo desgosto, que iria orientar o resto da sua vida, coin-

    cidiu com o Ultimatumbritnico de 11 de janeiro de 1890. Na poca,Camilo Pessanha cursava Direito em Coimbra. O meio universitriofoi, como sabido, um dos sectores que mais alto fizeram ouvir oseu protesto quer contra os Ingleses, quer contra o Governo e o

    prprio rei D. Carlos I, responsveis pela aquiescncia humilhantedas condies do Ultimatum. De facto, Portugal extinguiu, naquelaocasio, no apenas a possibilidade de concretizar o projeto doMapa Cor-de-Rosa, i. e., a ocupao da faixa interna que ligava,de costa costa, os territrios de Angola e Moambique mas, so-bretudo mais grave, por aquela mesma ocasio dirimiu o reconheci-mento internacional do chamado princpio dos direitos histricos,

    substitudo pelo princpio da ocupao efectiva dos territrios.Tornando-se invivel qualquer ambio para dilatar os domnioscoloniais, punha-se, deste modo, fim prpria epopeia dos desco-brimentos, ao mito nacional do mar sem fim, isto , a uma parte es-sencial da identidade portuguesa.

    Ao nvel da opinio pblica, o Ultimatum desencadeou adimenso trgica de derrota nacional. Quando, no primeiro verso

    da Inscrio que abre a Clepsidra, Pessanha exclama Eu vi a luz emum pas perdido, no quer apenas aludir ao mero dado autobio-grfico (o pas natal, abandonado para o exlio voluntrio noOriente); mas sobretudo, ao pas perdido que Portugal, a ptriadesonrada, onde se encarnava o antigo sonho imperial.

    Quando Camilo Pessanha se formou, em junho de 1891, oorgulho patritico, to profundamente ferido, tinha produzidono meio intelectual sentimentos antimonrquicos em prol do idealrepublicano. Na casa do seu condiscpulo e amigo de sempre, Albertode Castro Osrio, Pessanha teve a oportunidade de entrar emcontacto tanto com os novos ideais republicanos, quanto com asaspiraes vagamente humanitrias e filantrpicas da maonaria

    Camilo Pessanha Clepsidra 3332