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Sociedade Civil Organizada Global Prof. Diego Araujo Azzi BRI 2018.3

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Sociedade Civil Organizada Global

Prof. Diego Araujo Azzi

BRI

2018.3

Aula 2 (19/09)

Introdução teórica – Esfera pública

Leitura base:

HABERMAS, Jürgen

Mudança Estrutural da Esfera Pública

Cap. 1 – Introdução. pp. 13-41

Leitura complementar:

AVRITZER, Leonardo; COSTA, Sérgio. Teoria Critica, Democracia e Esfera Publica: concepcoes e usos na America Latina.

FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: a contribution to the critique of actually existing

democracy.

A emergência histórica da Esfera Pública burguesa

Os usos da palavra público e esfera pública remetem a diferentes períodos históricos

Quando fundidos na sociedade burguesa – industrialmente avançada e constituída sob o Estado de bem-estar social – eles se transformam em um amálgama difuso

Chamamos de públicos, p. ex., os eventos e ocasiões que são abertos a todos

Edifícios públicos não são abertos a todos mas são assim considerados por hospedarem instituições estatais e como tais, públicas.

O Estado é a autoridade pública

Numa recepção pública (diplomática, p. ex.) um poderoso conjunto de representações é performado e sua publicidade é um elemento de reconhecimento público

Reputação pública: renome ou prestígio pessoal

Outras categorias comumente associadas: Opinião pública, público informado, publicidade, publicar, publicizar

O sujeito ao qual se dirige qualquer publicidade é o público enquanto portador de uma opinião pública

A mídia de massa moderna modificou o significado da opinião pública como sujeito do juízo crítico.

Antes dependente da opinião pública, a publicidade se tornou um atributo de qualquer coisa que atraia a opinião pública

A esfera pública não precisou ser assim nomeada até o séc. XVIII, sendo uma parte específica da sociedade civil, a qual naquele período se estabelecia como o domínio do comércio de commodities e do trabalho governado segundo suas próprias leis

No entanto, noções referentes ao que é público e ao que não é – ou seja, é privado – podem ser traçadas muito mais longe no passado, na Grécia Antiga

A participação na vida pública, assim, dependia da sua autonomia econômica privada e do status como senhores de famílias e do oikos (oikodéspotas)

Pobreza e falta de escravos impediam a participação na polis

Desta forma, o domínio das necessidades vitais permanecia imerso na escuridão da esfera privada

Durante a Idade Média, o quadro ideológico da formação social grega foi transmitido via Direito Romano (oikodespotas = pater familias)

Público e privado (publicus e privatus), assim como esfera pública (res publica) eram entendidos segundo a tradição romana, mas não tinham uso corrente

A organização social do trabalho medieval colocava todas as relações de dominação centradas no domínio feudal

Inexistência de uma clara diferenciação entre esferas pública

e privada na Idade Média

Não havia status previsto na lei privada que definisse de alguma forma a capacidade de pessoas privadas adentrarem a esfera pública

Nos documentos medievais, as palavras senhorio e publicus eram usadas como sinônimos e publicare significava exaltar o senhor feudal

Significa dizer que uma esfera pública – no sentido de um domínio separado e distinto da esfera privada – não pode ter existido na sociedade feudal da Alta Idade Média

Meados do séc. XVI: consolidação do uso das palavras privat em alemão, private em inglês e privé em francês

“Privado” designava a exclusão da esfera do aparato de Estado, enquanto “Público” se referia ao Estado que, no meio tempo, havia se desenvolvido sob o absolutismo, como uma entidade possuindo uma existência objetiva sobre a pessoa do soberano

Os atributos de nobreza e senhorio, como o selo ducal ou insígnias eram chamados de públicos e em torno destes símbolos havia uma representação pública das pessoas

Mas a publicidade desta representação não era constitutiva de um campo social, isto é, uma esfera pública

Era, na realidade, algo mais próximo de um atributo neutro com relação aos critérios de público e privado, mas que deveria ser representado em público pelo portador

A representação pretendia tornar visível algo invisível, através da presença pública da pessoa do senhor

Um estrito código de conduta simbólico se baseava em insígnias, vestimentas, formas de se cumprimentar e formas de retórica discursiva

O auge desta performance representativa e simbólica ocorreu nas cortes francesas e espanholas do séc. XV e XVI (ver Versailles – Netflix)

Surge a concepção dos “parques de castelo” (Versailles, p. ex.) que permitiam uma vida cortesã afastada do mundo real

Ainda assim, a representação ainda dependia da presença de outras pessoas para quem ela se dirigia. “As pessoas comuns, contentes em assistir, se divertiam e enchiam as ruas”

Uma nova forma de publicidade representativa tinha origem na cultura da nobreza do Norte da Itália no início do capitalismo, se espalhando de Florença, para Paris e Londres

Seu principal componente era o humanismo, característico da cultura burguesa emergente e herdeiro do Iluminismo

O humanismo progressivamente se tornou parte da vida e da cultura de corte, sendo o veículo da transformação deste mesmo estilo de vida, dando forma ao período Renascentista

Somente após a emergência de poderosos Estados nacionais e territoriais no capitalismo nascente que essa nobreza de corte pôde desenvolver o quadro de sociabilidade altamente individualizada, demarcando claramente uma esfera da boa sociedade no séc. XVIII

O recuo da nobreza e sua corte para dentro dos palácios, intensificando ainda mais os rituais de representação pública na sua forma final intra-corte, acarretou no distanciamento desta Aristocracia com relação ao conjunto da sociedade (Elias, N. A sociedade de Corte; O Processo civilizador)

Enquanto autoridades públicas ou servidores públicos, estes atores estavam em contraste com aqueles excluídos do aparato estatal. Os primeiros deveriam servir os últimos, que por sua vez deveria buscar seus interesses privados

Por volta do final do séc. XVIII (Rev. Francesa) os poderes feudais, a Igreja, o Rei e a nobreza - que eram os portadores da representatividade pública - se desintegram

O status da Igreja se transformou progressivamente após a Reforma e a âncora da autoridade religiosa (a religião) se tornou um assunto privado

A chamada liberdade de crença historicamente assegurou a primeira esfera de autonomia privada (coletiva e individual)

Em torno da figura do Rei, a marca mais visível da transição da autoridade real à esfera privada foi a separação do orçamento público das posses privadas do soberano

A burocracia, o exército, o tesouro e em alguma medida o judiciário se tornaram instituições independentes da autoridade pública, separados da cada vez mais privada esfera da corte

A partir da herança estamental feudal e depois aristocrática (estados gerais), Parlamentos foram constituídos relativizando o poder absoluto do soberano

As corporações de ofício que se desenvolviam no contexto de crescente urbanização das cidades foram entre os primeiros atores a constituir sociedade civil, como um domínio de autonomia privada que se opunha ao Estado

Papel do Teatro na sociedade burguesa: a comédia social assume papel de destaque diante do público e as relações de classe se tornam um tema crucial (atinge um público popular, não leitor)

Personagens subservientes no enredo passam a servir como porta-vozes da crítica social do próprio autor, traçando analogias entre ficção e realidade

Princípios e valores de autoridade nobiliar e hereditária altamente contestados pelo teatro – ironia, sátira, deboche

Com a emergência das finanças (letras de crédito, notas promissórias) e do capitalismo comercial, os elementos de uma nova ordem já estavam tomando forma num lento processo desde o séc. XIII

Formação de grandes centros na Holanda para a troca de mercadorias (Bruges, Luttich, Bruxelas, Gent) e de grandes feiras comerciais nos cruzamentos das rotas comerciais de longa distância (Abu-Lughod)

Tanto o fluxo de commodities quanto o fluxo de informações (se difunde a ideia de “notícia”, news) seriam decisivos na passagem dos regimes absolutistas para o capitalismo nascente

O crescimento do comércio de longa distância demandava um fluxo de informações mais preciso do que até então. Mercadores organizaram as primeiras rotas postais, com partidas em dias pré-determinados para as principais cidades

Boletins de notícias (news letters) se tornaram um ativo valioso na mão de comerciantes que passaram a vende-las num mercado privado de informações “privilegiadas”

O elemento decisivo da publicidade, no entanto, ainda estava ausente

Uma imprensa propriamente dita, com informações divulgadas regularmente e acessíveis a todo o público só virá a se constituir no final do séc. XVII

Desde o princípio os primeiros jornais eram jornais políticos que reportavam a agenda oficial de viagens e reuniões do soberano, a visita de dignatários estrangeiros, bailes, eventos especiais na Corte, etc

Este contexto de notícias da Corte pode ser entendido como um tipo de transposição simbólica da publicidade representativa para uma nova forma de esfera pública

A imprensa nascente rapidamente foi também colocada a serviço dos governos, transmitindo mensagens do soberano ao seu público

A partir do séc. XVI a ascendência britânica via imperialismo do livre comércio inaugurava uma nova fase no capitalismo

A conquista de mercados no exterior era encarada como um negócio institucional: resultava de um esforço conjunto da esfera política e da esfera militar

Companhias mercantis se multiplicaram e logo assumiram a forma de companhias de ações, com o objetivo de financiar os altos custos e distribuir os riscos

A formação de economias nacionais (nacionalização da tradicional economia municipal, paroquial) exigiu a ampliação e consolidação de monopólios tributários, visando sustentar a máquina burocrática e as ações estatais

A partir do séc. XVIII, o termo público se referia basicamente a assuntos estatais. Não se referia mais a corte representativa que uma pessoa tivesse recebido do soberano

Mas sim ao funcionamento de um aparato com esferas reguladas de jurisdição e detentor do monopólio do uso legítimo da violência

A sociedade civil passa a existir como consequência de um Estado despersonificado (em oposição ao Estado absolutista – “l’État c’est moi”)

Relações dependência e o mundo das necessidades emergiram do confinamento da esfera privada para passarem a ter relevância na esfera pública nascente, caracterizando a emergência histórica da esfera do social (Hannah Arendt)

Arendt: a emergência da sociedade moderna coincide com o reconhecimento de que a dependência mútua pelo bem da vida tem significado público e que as atividades relativas à mera sobrevivência podem aparecer em público

A emergência da esfera do social tem impactos sobre a Economia como disciplina: da gestão do oikos à gestão no mercado, à gestão da oikonomia nacional

Junto ao aparato do Estado moderno, uma nova camada de pessoas novo-burguesas emerge e passa a ocupar um posição central dentre o público:

- juristas

- médicos

- pastores

- policiais

- professores

- intelectuais

+

- banqueiros

- comerciantes

- industriais

- Estes atores passaram a difundir e compartilhar situações comunicativas e de interlocução em novos espaços que se difundiam nas cidades em transformação, como os salões literários, os cafés, os teatros e os saraus

Estas classes novo-burguesas não eram os burgueses tradicionais (craftsman and shopkeepers), que foram deslocados para baixo socialmente, mas constituíam os reais portadores do público, que desde o início sempre foi um público leitor

No final do séc. XVII revistas científicas se uniram aos diários de notícias, levando a razão crítica e o debate à esfera pública, e fomentando assim a formação de juízos coletivos (H. Arendt)

As autoridades reagem questionando o direito de pessoas privadas em seu juízo virem a público para questionar e até mesmo desaprovar as ações, leis e ordens do soberano e suas cortes

A esfera pública tomava progressivamente a forma de uma esfera portadora de uma opinião pública perante a qual a autoridade pública é chamada a se legitimar

Já no início do séc. XVIII o publicum passivo se desenvolveu em um público crítico e o subjectum em sujeito pensante, o recebedor de ordens de cima para baixo se tornou o adversário da autoridade dominante