sobre o ceticismo cartesiano: propostas … · argumentos céticos formulados por descartes, apesar...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA SOBRE O CETICISMO CARTESIANO: PROPOSTAS ANTICÉTICAS DE WITTGENSTEIN EM DA CERTEZA Geraldo das Dôres de Armendane Dissertação apresentada ao Mestrado em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), sob orientação da Prof. Drª. Maria Cristina de Távora Sparano, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Teresina (PI) 2011

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Page 1: SOBRE O CETICISMO CARTESIANO: PROPOSTAS … · argumentos céticos formulados por Descartes, apesar da quantidade de “tinta” gasta com eles continuam a ser ainda um problema insolúvel

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA

SOBRE O CETICISMO CARTESIANO: PROPOSTAS ANTICÉTICAS DE

WITTGENSTEIN EM DA CERTEZA

Geraldo das Dôres de Armendane

Dissertação apresentada ao Mestrado em Ética e

Epistemologia da Universidade Federal do Piauí

(UFPI), sob orientação da Prof. Drª. Maria

Cristina de Távora Sparano, como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre em

Filosofia.

Teresina (PI)

2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA

SOBRE O CETICISMO CARTESIANO: PROPOSTAS ANTICÉTICAS DE

WITTGENSTEIN EM DA CERTEZA

Geraldo das Dôres de Armendane

Teresina (PI)

2011

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FICHA CATALOGRÁFICA

Universidade Federal do Piauí

Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco

Serviço de Processamento Técnico

A728s Armendane, Geraldo das Dôres de Sobre o ceticismo cartesiano: propostas anticéticas de

Wittgenstein em Da Certeza/Geraldo das Dôres de Armendane.

– 2011. 114f.

Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal

do Piauí, 2011. Orientação: Profª. Drª. Maria Cristina de Távora Sparano

1. Certeza. 2. Ceticismo cartesiano. 3. Wittgenstein, Ludwig. 4. Epistemologia. I. Sparano, Maria Cristina de Távora.

II. Título.

CDD: 121.63

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TERMO DE APROVAÇÃO

Geraldo das Dôres de Armendane

SOBRE O CETICISMO CARTESIANO: PROPOSTAS ANTICÉTICAS DE

WITTGENSTEIN EM DA CERTEZA

Dissertação defendida em _________ de ____________ de 2011, considerada

_________________________ pela banca examinadora do MEE.

Teresina, _____de__________ de 2011.

____________________________________________________

Prof. Drª. Maria Cristina de Távora Sparano – UFPI (Orientadora)

____________________________________________________

Prof. Drº. Plínio Junqueira Smith – UNIFESP (Examinador Externo)

____________________________________________________

Prof. Drº. Gerson Albuquerque de Araújo Neto – UFPI (Examinador/MEE)

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AGRADECIMENTOS

Quero agradecer à professora Drª. Maria Cristina de Távora Sparano, a minha

orientadora do mestrado, pelo carinho e dedicação. Sem a sua colaboração primorosa,

certamente, eu não teria chegado até aqui. Ao Professor Drº. Plínio Junqueira Smith, pela sua

generosidade, ao se colocar à disposição para participar dessa banca examinadora, e pela

valiosa contribuição que ofereceu com críticas e sugestões ao meu trabalho. Aos professores

do mestrado: Professor Drº. Emerson Carlos Valcarenghi, que com sua exigência e rigor

analítico me fez compreender as novas abordagens analíticas do pensamento epistemológico

contemporâneo; Professor Drº. Gerson Albuquerque de Araújo Neto, que me ajudou a

entender o pensamento do filósofo da ciência Karl Popper. Esse grande pensador austríaco me

levou a rever os meus conceitos em relação aos procedimentos científicos e à ação política;

Professor Drº. Sérgio Duarte da Fonseca, que me fez compreender a importância de unir as

duas tradições do pensamento filosófico ocidental contemporâneo: a tradição anglo-saxônica

(Analítica) e a tradição continental (Hermenêutica); Professor Drº. Jorge Adriano Lubenow,

que me fez conhecer o pensamento oceânico de Jürgen Habermas; Professor Drº. Helder

Buenos Aires de Carvalho, que com sua competência e profissionalismo à frente do mestrado,

contribuiu muito para que esse meu trabalho fosse concluído. Aos colegas do mestrado:

Osvaldino Marra, pela sua inteligência e ternura; Maria de Jesus, Dayvide Magalhães, Luiz

Fernando, João Caetano, Hellen Maria e André Wallas, que compartilharam comigo da

riqueza e profundidade do pensamento filosófico ocidental, e da necessidade sempre de

mergulharmos no oceano da filosofia para melhor entender o mundo, os outros e a nós

mesmos.

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ABREVIATURA DAS OBRAS DE WITTGENSTEIN CITADAS

BlB – O Livro Azul

BrB – O Livro Castanho

MS – Manuscritos

OC – Da Certeza

PG – Gramática Filosófica

PI – Investigações Filosóficas

RP – Observações Filosóficas

RPP – Observações Sobre a Filosofia da Psicologia

TLP – Tractatus Logico-philosophicus

Com exceção do Tractatus Logico-philosophicus (TLP), título latino da primeira

obra de Wittgenstein, as demais abreviaturas acima citadas, são de títulos das obras em

língua inglesa.

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RESUMO

O objetivo desta dissertação é apresentar as contribuições do filósofo austríaco Ludwig

Wittgenstein para o debate filosófico em torno do problema do ceticismo cartesiano ou

ceticismo sobre o mundo exterior, a partir de uma leitura aprofundada do derradeiro trabalho

do pensador intitulado Da Certeza. Esse texto aponta o fracasso do filósofo britânico George

Edward Moore em sua tentativa de refutar o idealismo filosófico. Em seus dois ensaios: Uma

defesa do senso comum e Prova de um mundo exterior, Moore defende um conjunto de

truísmos óbvios do senso comum como prova contra o idealismo filosófico. Wittgenstein

reconhece que as proposições mooreanas são interessantes do ponto de vista filosófico, mas

não respondem ao desafio posto pelo filósofo idealista e cético. O ceticismo cartesiano,

segundo o filósofo austríaco, é derivado do mau uso da linguagem, e é na linguagem,

portanto, que esse problema filosófico deve ser diagnosticado, tratado e curado por meio dos

procedimentos terapêuticos do uso da gramática dos operadores epistêmicos de

duvidar/saber, dentro dos contextos de forma de vida (Lebensform). Dessa forma, esta

dissertação busca analisar as duas contribuições de Wittgenstein em Da Certeza: a terapia dos

usos dos operadores epistêmicos de duvidar/saber e a noção de contexto de uso dos jogos de

linguagem, o fundamento lógico de sentido da ação e do pensamento humano, e ligado a essa

noção, buscaremos estabelecer uma interface com as teorias contextualista contemporâneas

trabalhadas por epistemólogos contextualistas contemporâneos como Stewart Cohen e Keith

DeRose, buscando identificar o que existe de semelhante e diferente entre as essas duas

abordagens anticéticas.

Palavras-chave: Ceticismo cartesiano; Da Certeza; Gramática dos operadores epistêmicos;

Noção de contexto; Contextualismo epistêmico.

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ABSTRACT

The goal of this dissertation is to present the contributions of the philosopher Ludwig

Wittgenstein to philosophical debate around the problem of skepticism Cartesian or

skepticism about the external world, from a thorough reading of the ultimate thinker's work

entitled On Certainty. The text indicates the failure of the British philosopher George Edward

Moore in his attempt to refute idealism philosophical. In his two essays: Defense of common

sense and Proof of an external world, Moore defended a set of obvious truism sense common

as evidence against the idealist philosopher, that challenges the most genuine human

knowledge about the things from the outside world. Wittgenstein recognizes that Moorean

propositions are interesting from the point of philosophical views, but do not respond to the

challenge posed by the idealist and skeptic philosopher. The skepticism Cartesian, according

to the philosopher, is derived from the misuse of language. It is in language, therefore, that

such a problem should be diagnosed, treated and cured through therapeutic procedures for the

use grammar epistemic operators to doubt/know, within the context of life

form (Lebensform). Thus, this dissertation seeks analyze the two contributions of Wittgenstein

in On Certainty: the therapy of the uses epistemic operators to doubt/know and the notion of

context of use of language games, the rationale of the sense of action and human thought in a

and linked to this notion, we will seek interface with contextual theories worked by

contemporary epistemologists contextualist and contemporaries such as Stewart Cohen and

Keith DeRose, seeking to identify what is similar to and different between approaches two

anti-skeptic.

Keywords: Cartesian Skepticism; On Certainty; Grammar of epistemic operators; The notion

of context; epistemic Contextualism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10

I – O CONTEXTO HISTÓRICO E FILOSÓFICO DO TEXTO DA CERTEZA...........15

A. Gênese do Da Certeza..........................................................................................................16

a.1. A certeza em Descartes......................................................................................................19

a.2. A certeza em Moore...........................................................................................................21

a.3. A certeza em Wittgenstein.................................................................................................22

B. O contexto filosófico do Da Certeza....................................................................................25

II – O CETICISMO SOBRE O MUNDO EXTERIOR NAS MEDITAÇÕES

METAFÍSICAS DE DESCARTES........................................................................................36

A. Os argumentos céticos na Primeira Meditação...................................................................39

a.1. O argumento da Ilusão dos sentidos..................................................................................39

a.2. O argumento do sonho.......................................................................................................42

a.3. O argumento do Deus Enganador......................................................................................45

B. Críticas de Wittgenstein ao ceticismo filosófico..................................................................47

b.1. No Tractatus Logico-philosoficus......................................................................................48

b.2. Nas Investigações Filosóficas............................................................................................49

b.3. Em Da Certeza...................................................................................................................52

III – PROPOSTAS ANTICÉTICAS DE MOORE EM DEFESA DO SENSO

COMUM............................................................................................................................. ......56

A. Senso comum e Filosofia.....................................................................................................58

a.1. Moore e o recurso ao senso comum...................................................................................60

a.2. Prova de um mundo exterior..............................................................................................64

a.3. Moore e Wittgenstein.........................................................................................................70

B. Críticas de Wittgenstein às proposições mooreanas.............................................................71

IV – PROPOSTAS ANTICÉTICAS DE WITTGENSTEIN EM DA CERTEZA............80

A. A gramática dos operadores epistêmicos.............................................................................81

a.1. A gramática de duvidar......................................................................................................83

a.2. A gramática de saber..........................................................................................................86

B. A noção de contexto de Wittgenstein em Da Certeza..........................................................90

b.1. O contextualismo epistêmico.............................................................................................92

b.1.1. O contextualismo de Stewart Cohen...............................................................................94

b.1.2. O contextualismo de Keith DeRose................................................................................97

CONCLUSÃO.......................................................................................................................102

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................109

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INTRODUÇÃO

Certamente causaria estranheza em meu leitor que não esteja familiarizado com o

debate filosófico em torno do ceticismo, a filosofia se ocupar com questões aparentemente tão

estapafúrdias e irrelevantes para a vida cotidiana, como o ceticismo sobre o mundo exterior,

elaborado por Descartes nas Meditações Metafísicas há mais de 350 anos. Diante disso, o

homem comum pode levantar as seguintes indagações: como é possível se gastar tanto tempo

discutindo problemas tão irrelevantes para a nossa vida prática? Ora, se estou sonhando ou

sendo enganado por um gênio maligno, que diferença isso faz em minha vida cotidiana?

Este mesmo leitor certamente ficaria mais perplexo ainda quando souber que os

argumentos céticos formulados por Descartes, apesar da quantidade de “tinta” gasta com eles

continuam a ser ainda um problema insolúvel para a filosofia contemporânea (WILLIAMS,

2008, p. 81). Esses argumentos, embora aparentemente fracos e hiperbólicos, colocam em

questão a nossa pretensão mais genuína de saber aquilo que cremos saber. O filósofo cético

cartesiano busca desafiar a confiabilidade de nossas crenças derivadas dos sentidos e, desse

modo, indaga a respeito das origens, das fontes e dos critérios para saber. É somente a partir

dessas questões relevantes levantadas pelo cético, que é possível reconhecer a importância do

ceticismo filosófico para debate na filosofia contemporânea.

Embora o ceticismo filosófico seja considerado por muitos como um desafio ao

conhecimento humano mais genuíno sobre as coisas, é importante registrar aqui que existem

pensadores da atualidade que buscam aproximar o ceticismo filosófico da vida cotidiana.

Oswaldo Porchat Pereira e Plínio Junqueira Smith, por exemplo, vão nessa direção. Para eles,

o filósofo cético que a princípio nos pareceu desafiar o conhecimento humano mais genuíno

sobre as coisas, principalmente na sua forma mais trivial e banal, o que está buscando, na

realidade, é preservar o conhecimento do homem comum do ataque do filósofo dogmático.

O filósofo dogmático tem em mente a concepção de um tipo de conhecimento muito

forte e com isso requer um nível elevado de justificação racional de crenças para garantir um

conhecimento verdadeiro e absoluto acerca da realidade. E diante desse nível exigente de

conhecimento, o dogmático desqualifica o conhecimento do homem comum, o conhecimento

da vida cotidiana. Para o filósofo cético, esse ataque do dogmático à vida cotidiana não se

justifica. Ele procura mostrar para o dogmático que a sua pretensão de um conhecimento

metafísico, que busca a justificação da realidade absoluta, é inalcançável ou impossível

(SMITH, 2004, p. 49-52).

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O debate filosófico em torno do problema do ceticismo como podemos perceber é

controvertido e instigante. Esta dissertação, nesse sentido, pretende discutir esse referido

problema filosófico a partir das contribuições anticéticas do filósofo austríaco Ludwig

Wittgenstein em suas últimas anotações intituladas Da Certeza, para tentar extrair desse texto

respostas anticéticas frente ao problema do ceticismo cartesiano na filosofia contemporânea.

Wittgenstein representa um dos pensadores do século XX que mais contribuíram para

o debate anticético na filosofia contemporânea. As críticas do pensador austríaco ao ceticismo

filósofo já se fazem presentes em sua primeira obra, o Tractatus Logico-philosophicus, mais

precisamente no aforismo 6.51, quando o filósofo ataca a postura humeana de Bertrand

Russell. De acordo com Russell, o ceticismo filosófico é “irrefutável do ponto de vista lógico

e estéril do ponto de vista prático”. Para Wittgenstein, contudo, o ceticismo “não é irrefutável,

mas manifestadamente um contrassenso, se pretende duvidar onde não pode perguntar. Pois

só pode existir dúvida onde existir uma resposta; e esta onde algo possa ser dito”.

Nas Investigações Filosóficas, obra que marca a segunda fase do pensamento de

Wittgenstein, as críticas anticéticas do filósofo são dirigidas contra o argumento da linguagem

privada, sugerido por Descartes nas Meditações Metafísicas. Além disso, nessa obra,

Wittgenstein definiu a atividade filosófica como terapia da linguagem, cuja finalidade da

filosofia, nesse sentido, consiste em dissolver os problemas filosóficos por meio da análise

conceitual do pensamento e da clarificação da linguagem. Desse modo, sendo o ceticismo

cartesiano um problema filosófico, deve ser, portanto, submetido a procedimentos

terapêuticos. Com isso, o filósofo austríaco dá o diagnóstico do problema do ceticismo no

horizonte linguístico. É na base dos jogos de linguagem1, portanto, que o ceticismo deve ser

submetido aos procedimentos terapêuticos. Esse é, portanto, o ponto fundamental de nossa

discussão nessa dissertação.

Sendo assim, pretendemos discutir as propostas anticéticas de Wittgenstein em suas

últimas anotações intituladas Da Certeza, tendo como “solo firme” os jogos de linguagem, o

1 A noção de jogos de linguagem (Sprachspiele) representa o núcleo central da segunda fase do pensamento de

Wittgenstein. Ao recorrer a essa metáfora, o filósofo austríaco pretende mostrar que a linguagem se constitui

como um conjunto de ações e práticas partilhadas socialmente pelos falantes dentro de uma de forma de vida. Para Wittgenstein, os jogos de linguagem é parte de uma atividade, de uma forma de vida, e dominar um jogo de

linguagem significa dominar uma técnica (PI § 199). Sendo assim, há uma variedade imensa de emprego de

signos linguísticos, palavras e frases. Essa variedade não é fixa ou dada de uma vez por todas, mas se constitui

num processo dinâmico, pois novos tipos de linguagem surgem, outros envelhecem e são esquecidos (§ 23). O

uso da metáfora jogos de linguagem por Wittgenstein tem a sua origem no formalismo da matemática. Segundo

o filósofo austríaco, a aritmética representa um jogo prático com símbolos e o significado de um signo

matemático é a peça no tabuleiro de um jogo de xadrez. É a soma das regras desse jogo, portanto, que determina

os seus lances possíveis (GLOCK, 1998. p. 225).

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fundamento de sentido do agir humano dentro de uma forma de vida (Lebensform)2, que tem

como “pano de fundo” uma imagem de mundo (Weltbild)3. E é na linguagem, o “fundamento

sem fundamento” de nossa imagem de mundo, que o problema do ceticismo filosófico deve

ser diagnosticado, tratado e curado.

Embora esteja em continuidade com a segunda fase de Wittgenstein, que corresponde

às Investigações Filosóficas, o Da Certeza se liga ao problema do conhecimento. Esse texto

tem como alvo um conjunto de truísmos óbvios do senso comum presente em dois ensaios

escritos pelo filósofo britânico George Edward Moore: Uma defesa do senso comum e Prova

de um mundo exterior. Nesses ensaios, Moore reconhece que proposições empíricas como:

Aqui está uma mão e aqui está outra mão; Somos seres humanos ou A Terra existe há muitos

anos são sentenças do senso comum fundadas em evidências empíricas e que podemos saber

com certeza absoluta. Em Da Certeza, Wittgenstein critica o uso filosófico dessas proposições

contra o cético idealista como forma de garantir conhecimento absoluto e indubitável do

mundo exterior. Os seus ataques foram também dirigidos contra o argumento do sonho de

Descartes (OC § 383, 676). Para ele, o argumento do sonho é um absurdo porque qualquer

afirmação pressupõe consciência e discurso com sentido. O que não acontece, portanto, no

caso de uma pessoa que está em estado onírico. Uma pessoa que está sonhando não está

consciente, e se não está em estado de consciência, não pode proferir discursos com sentido.

Esta dissertação se divide em quatro capítulos: (i) o primeiro situa o texto Da Certeza

em seu contexto histórico e filosófico; (ii) o segundo apresenta o problema com o qual

pretendemos discutir, a saber: o ceticismo cartesiano presente nas Meditações Metafísicas de

Descartes e a posição anticética de Wittgenstein em suas três obras fundamentais: no

Tractatus Logico-philosophicus, nas Investigações Filosóficas e em Da Certeza; (iii) o

terceiro apresenta a proposta externalista de Moore frente ao problema do ceticismo

2 Para Wittgenstein, forma de vida (Lebensform) significa o todo de uma linguagem e a possibilidade que existe

nela de se posicionar diante do mundo e de tudo que existe. A forma de vida não se refere de imediato ao

conteúdo, mas sim à forma humana de ver mundo (KELLER, 2009, p. 115). Ela indique a totalidade das

atividades culturais, comunitárias e sociais dos seres humanos. O termo forma de vida aparece meia dúzia de

vezes nas obras de Wittgenstein. 3 Wittgenstein define imagem de mundo (Weltbild) como um quadro de referências ou “pano de fundo” herdado

pelos seres humanos dentro de uma forma de vida. E é nesse pano de fundo, portanto, que as pessoas distinguem

o verdadeiro do falso (OC § 94). Essa imagem de mundo, que representa o contexto das convicções humanas,

não deriva de uma reflexão metódica cartesiana, mas é dada pela consistência proporcionada pela estruturação

dos estados mentais relacionada com a forma biológica e a prática social dos seres humanos. A confluência

destes fatores produz um sistema de proposições assumido pelo ser humano sem uma postura crítica e consciente

do mesmo (SUMARES, 1994, p. 42).

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cartesiano; (iv) o quarto e último apresenta a proposta anticética de Wittgenstein em Da

Certeza.

O primeiro capítulo trata de situar o texto Da Certeza em seu contexto histórico e

filosófico. O capítulo está dividido em duas partes: (I) a primeira busca apresentar o

posicionamento de comentadores como Kim Van Gennip e Rush Rhees4, que contestam a

versão de E.G. Anscombe e Von Wright, presente no prefácio do texto Da Certeza, de que

esse referido texto tenha sido organizado por Wittgenstein. Van Gennip, no entanto, contesta

essa versão argumentando que o Da Certeza deriva de 05 manuscritos (172, 174, 175, 176 e

177), que constitui o Nachlass5, e desses manuscritos, derivaram também outros dois textos

de Wittgenstein: Anotações sobre as cores (MS 172, 176) e Cultura e valor (MS 174). Em

seguida, apresentaremos a noção de certeza em Descartes, Moore e Wittgenstein. (II) a

segunda parte situa o Da Certeza em seu contexto filosófico. Veremos que essa obra se situa

no contexto da reviravolta pragmático-linguística na filosofia contemporânea, no qual

Wittgenstein é considerado o maior expoente. Nesse contexto se insere também o debate

conduzido por alguns comentadores como Danièle Moyal Sharrock e outros em torno da tese

de um terceiro Wittgenstein, em oposição à ideia de continuidade com as Investigações

Filosóficas, e em meio a essa discussão buscarei me posicionar em defesa da ideia da

continuidade.

O segundo capítulo apresenta o ceticismo sobre o mundo exterior nas Meditações

Metafísicas, problema com qual discutiremos no desenrolar de nossa dissertação. Em primeiro

lugar analisaremos os argumentos céticos de Descartes presente na Primeira Meditação:

argumento da ilusão dos sentidos, argumento do sonho e argumento do Deus enganador. O

ceticismo cartesiano é um ceticismo metodológico, ou seja, constitui o ponto de partida do

itinerário da dúvida metódica de Descartes, que tem como ponto de chegada a certeza de um

4 De acordo com Oliveira: “Em 1969, Rhees redigiu um prefácio à edição alemã de Da Certeza que, por alguma

razão, não foi publicado. A edição alemã de Da Certeza incluiu o prefácio de G. E. M. Anscombe e G. H. Von

Wright, escrito para a sua edição inglesa. O prefácio redigido por Rhees foi publicado em seu livro

Wittgenstein’s On Certainty. Em carta enviada por Rhees, em junho de 1969, a Anscombe e Von Wright

esclarecem o porquê da não publicação de seu prefácio. Nela, Rhees comenta a versão preliminar de seu prefácio

e, antes de mais nada, diz discordar de que o Da Certeza seja uma polêmica contra Moore. Além de assinalar que

o interesse de Wittgenstein por “Uma defesa do senso comum” é muito anterior ao debate com Malcolm em 1949, ressalta que o interesse de Wittgenstein pelas proposições de Moore estaria conectado com questões que

tocam diretamente no desenvolvimento da filosofia do que se convencionou chamar de primeiro Wittgenstein.

Por fim, a perspectiva assumida por Rhees discorda radicalmente da perspectiva de Anscombe e Von Wright,

que todavia prevalecem editorialmente” (Cf. OLIVEIRA, 2008, p. 33). 5 Palavra composta em alemão (nach: ‘depois’ e o verbo lassen: ‘sair’), usada no meio acadêmico para descrever

uma coleção de manuscritos, notas e correspondências, deixados por algum estudioso de um determinado tema

relevante, e que são estudados depois de sua morte. No caso de Wittgenstein, o nachlass é constituído pela

coleção de manuscritos, produzidos pelo filósofo austríaco há 17 meses antes de sua morte, que dão origem ao

texto Da Certeza.

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conhecimento sólido e infalível; em seguida apresentaremos as críticas de Wittgenstein ao

ceticismo cartesiano em suas principais obras: no Tractatus-Logico-philosophicus, nas

Investigações Filosóficas e em Da Certeza.

No capítulo terceiro está presente a proposta realista de Moore contra o filósofo cético

idealista. A proposta anticética mooreana é interessante na medida em situa o conhecimento

no mundo exterior, ou seja, num mundo público, partilhado pelos seres humanos que

interagem entre si por meio da linguagem. Mediante isso, apresentaremos, em primeiro lugar,

os argumentos de Moore presentes em seus dois ensaios: Uma defesa do senso comum e

Prova de um mundo exterior; e em seguida, trataremos de apresentar as críticas de

Wittgenstein a esses argumentos mooreanos. Wittgenstein diagnosticou em Da Certeza, que o

filósofo britânico usou de maneira indevida os argumentos do senso comum em sua tentativa

de provar a existência de objetos físicos. Além disso, Moore usou esses argumentos com

intenção filosófica, não levando em conta os jogos de linguagem, o “fundamento inamovível”

sobre o qual repousam as nossas certezas.

O último capítulo trata da resposta anticética de Wittgenstein frente ao problema do

ceticismo cartesiano em Da Certeza. Diante da diagnose do problema do ceticismo cartesiano,

Wittgenstein apresenta duas propostas: a terapia dos usos dos operadores epistêmicos; e a

noção de contexto de uso dos jogos de linguagem, e ligado a essa noção, o contextualismo

epistêmico trabalhado por epistemólogos contextualistas contemporâneos como Stewart

Cohen e Keith DeRose. Assim, trataremos de mostrar que Wittgenstein por meio de

procedimentos terapêuticos dentro do contexto de uso dos operadores epistêmicos, realizou o

diagnóstico do ceticismo de Descartes na Primeira Meditação, que com suas hipóteses céticas

radicais e hiperbólicas, colocou em xeque o sentido da linguagem, do pensamento e da ação

humana no mundo. E uma vez que o sentido repousa na linguagem, e sem a qual não é

possível pensar e proferir discursos com significado, Descartes, então, ao colocar em xeque a

lógica dos jogos de linguagem, solapou os fundamentos de sentido, sem os quais é impossível

atingir a certeza do cogito. Eis, então, o grande paradoxo do cético cartesiano.

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I – O CONTEXTO HISTÓRICO E FILOSÓFICO DO TEXTO DA CERTEZA

No atual contexto filosófico ocidental, o problema do ceticismo sobre o mundo

exterior elaborado por Descartes na Primeira Meditação, se constitui como objeto de interesse

para muitos epistemólogos contemporâneos. A epistemologia contemporânea, quando busca

tratar desse problema considera também as discussões que envolvem a certeza do

conhecimento, que para Descartes significa certeza absoluta fundada em razões

suficientemente fortes que não podem ser abaladas por qualquer outro tipo de razão mais forte

ainda. Dessa forma, para alcançar um conhecimento infalível, o filósofo impõe um nível

elevado de justificação de crenças. Contudo, no atual contexto filosófico, este nível exigente

de justificação do conhecimento em Descartes é bastante discutido por parte da epistemologia

contemporânea. Nesse sentido, pretendemos debater o ceticismo acerca do mundo externo a

partir de uma leitura aprofundada das últimas anotações de Wittgenstein intituladas Da

Certeza (On Certainty)6.

Todavia, é importante esclarecer que, embora Wittgenstein não tenha deixado

explícito em suas últimas anotações, a sua pretensão de oferecer uma proposta teórica às

questões epistemológicas levantadas por Descartes nas Meditações Metafísicas; muitos

epistemólogos, porém, vêm em Da Certeza uma tentativa de dissolução do problema do

ceticismo cartesiano.

Em Da Certeza, Wittgenstein busca esclarecer que seu projeto filosófico pode

interessar a um filósofo que busca pensar por conta própria. Esse filósofo, no entanto, ao ler a

obra do pensador austríaco, reconhecerá quais eram os alvos que estaria constantemente

apontando em suas anotações (OC § 387). Os alvos são Moore7 e sua filosofia do senso

comum (commom sense) que, por sua vez, se voltam contra a filosofia idealista, o ceticismo

filosófico e o solipsismo cartesiano.

As críticas de Wittgenstein em Da Certeza às proposições mooreanas têm como pano

de fundo o conhecimento humano, porque nessa referida obra o filósofo busca refletir sobre a

possibilidade humana de conhecer o mundo exterior, sobre a diferença entre conhecimento e

crença e sobre o problema da dúvida cética versus certeza. Com isso, é possível concluir que

6 Em alemão Über Gewissheit. 7 Conforme W. Spaniol, em Da Certeza a referência de Wittgenstein ao nome de Moore aparece mais de vinte

vezes (SPANIOL, 1989, p. 24-25).

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o trabalho filosófico de Wittgenstein, em Da Certeza, trata-se, acima de tudo, de um de

projeto epistemológico.

Esse capítulo se divide em duas partes: a primeira busca (A) situar o texto Da Certeza

em seu contexto histórico, bem como a noção de certeza em Descartes, Moore e Wittgenstein;

e a segunda, trata de (B) situar o Da Certeza em seu contexto filosófico, buscando inserir

também em meio a essa discussão, o debate conduzido por alguns comentadores como

Danièle Moyal Sharrock e outros em torno da tese de um terceiro Wittgenstein, em oposição à

ideia de continuidade com as Investigações Filosóficas.

A. Gênese do Da Certeza

Em Conexões e divisões em Da Certeza, Van Gennip8 defende a tese de que o texto

Da Certeza não deve ser visto como um trabalho de Wittgenstein, mas como um conjunto da

enorme coleção de material produzida pelo filósofo austríaco, que constitui o Nachlass.

Anscombe e Von Writgh, nesse caso, estariam equivocados quando sugeriram no prefácio9,

que Wittgenstein tenha concebido as quatro seções do Da Certeza como partes separadas.

Na verdade, o Da Certeza é uma invenção de seus editores. A obra resulta de uma

compilação editorial bastante difusa de anotações derivadas de cinco diferentes manuscritos

escritos por Wittgenstein durante um período de 17 meses. Deve haver, certamente, motivos e

razões nas escolhas desses manuscritos por parte dos editores, mas isso não é o foco de nossa

investigação. O nosso propósito, nesse sentido, é seguir o percurso de Van Gennip que trata

de fundamentar a sua argumentação sobre a origem do Da Certeza, comparando criticamente

as fontes da referida obra, que são os manuscritos 172, 174, 175, 176 e 177 do Nachlass.

8 VAN GENNIP, K. Connections and Divisions in On Certainty. Disponível em

<http://sammelpunkt.philo.at:8080/1607/1/gennip.pdf> Acesso em: 21 Jan. 2011. 9 Conforme a versão do prefácio do texto Da Certeza, a motivação maior de Wittgenstein em escrever sobre o

tema da certeza, por ocasião do último o ano e meio de sua vida, foi um conjunto de teses escritas pelo filósofo

britânico George Edward Moore em defesa do senso comum. Trata-se de um conjunto de proposições baseadas

nas crenças do senso comum e que podia garantir a certeza inconteste de um conhecimento absoluto acerca do

mundo exterior. A obra remonta de um encontro entre o pensador norte americano Norman Malcolm e Wittgenstein por ocasião da segunda metade do ano de 1949. Nesse referido ano, o filósofo visitou os Estados

Unidos a convite de Malcolm e ficou hospedado em Ithaca, Nova York, onde está situada Cornell University, na

qual Malcolm era professor. E.G. Anscombe e G.H. Von Wright apresentam a divisão do Da Certeza em 04

partes que, segundo eles, foram escritos e retomados em períodos distintos. A primeira parte é constituída pelos

primeiros 65 parágrafos; a segunda vai do parágrafo 66-192; a terceira, do 193-299; e o quarto, do 300-676. Eles

afirmam, no entanto, que a numeração e a datação dos referidos parágrafos foi de responsabilidade de seus

editores (Cf. Prefácio do Da Certeza, 2000, p. 11).

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Desses manuscritos derivaram também outros dois textos de Wittgenstein como: Anotações

sobre as cores (MS 172, 176) e Cultura e valor (MS 174).

Em Da Certeza, o filósofo austríaco buscou desenvolver um conjunto de reflexões

epistemológicas em forma de aforismos sobre o conhecimento, cujo objetivo foi curar o

pensamento dos problemas derivados do mau uso da linguagem. Essas reflexões de

Wittgenstein nesse texto estavam em andamento e não se tratavam, portanto, de teorias

epistemológicas prontas e acabadas. Em relação ao Da Certeza Moreno faz o seguinte

comentário:

Estamos em presença de um projeto original a respeito do conhecimento em que não

se trata de construir um sistema de teses, mas um conjunto sistemático de

esclarecimentos sobre os usos filosóficos confusos, e dogmáticos, de conceitos

epistemológicos – esclarecimentos cuja finalidade é exclusivamente terapêutica. Este conjunto de esclarecimentos pretende ser terapêutico para o pensamento ao

fornecer uma visão perspícua dos diversos usos – efetivos, possíveis e sem-sentido –

de termos e expressões linguísticas sobre estados psicológicos relativos ao

conhecimento, nas diversas áreas dos saberes exploradas por Wittgenstein

(MORENO, 2010, p. 45).

O texto Da Certeza é derivado de quatro cadernos diferentes e de um maço de folhas

soltas. Para Van Gennip, os aforismos 01-65 estão contidos no MS 172, um manuscrito

formado por 24 páginas soltas. Sendo que as últimas 05 páginas foram impressas como a

segunda parte de Anotações sobre as cores. O manuscrito completo não está datado.

Anscombe pressupõe que Wittgenstein tenha escrito estas observações entre dezembro de

1949 e março de 1950.

Os aforismos 01-65 tratam de fazer uma terapia do ponto de vista filosófico de Moore.

Em outras palavras, Wittgenstein trata de expor a sua perplexidade filosófica frente aos

argumentos mooreanos, submetendo-os aos procedimentos terapêuticos. Esse momento inicial

de investigação do Da Certeza é pródigos em ramificar-se em variadas direções, mas isso não

desobriga Wittgenstein de mobilizar o seu aparato terapêutico contra as posições filosóficas

de Moore em Uma defesa do senso comum e em Provas de um exterior (OLIVEIRA, 2008, p.

13).

Nos manuscritos originais, Wittgenstein curiosamente não separou claramente a seção

Sobre a Certeza da seção Sobre as Cores. O aforismo 65, na página 20 do manuscrito

original, é seguido por uma e outra observação e, imediatamente, Wittgenstein continua com

comentários sobre a análise fenomenológica das cores de Goethe. Além disso, ao final da

seção da primeira parte do Da Certeza, entre os aforismos 60-66, o filósofo traça linhas entre

cada observação individual. Para Van Gennip, isso pode indicar a importância que

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Wittgenstein dava a cada uma dessas observações, ainda que não se note no texto nenhum

propósito especial do filósofo para isso. No entanto, o agrupamento dessas observações por

parte dos editores do Da Certeza, com base nessas linhas, não se trata, portanto, de

agrupamentos feitos pelo próprio Wittgenstein.

Os aforismos 66-192, que representam a segunda parte do Da Certeza, foram

derivados de um caderno de 40 páginas (MS 174), um manuscrito que contém uma única data,

24 de abril de 1950. Wittgenstein traça uma linha na página 14 desse referido manuscrito.

Com exceção de algumas observações (impressas em Cultura e valor) – notas anteriores são

publicadas nos últimos escritos do segundo volume de Anotações sobre as cores – e notas

subsequentes são impressas como a segunda parte do Da Certeza. O cerne desses aforismos é

a noção de imagem de mundo (Weltbild).

Nesse sentido, no aforismo 92, Wittgenstein sugere o caso de um rei que teria sido

educado em sua crença que “a Terra teria começado com seu nascimento”. E se Moore se

encontrasse com esse rei e tentasse convertê-lo de que a Terra começou antes de seu

nascimento? Wittgenstein afirma que caso Moore conseguisse converter o rei à sua opinião,

seria uma conversão de um gênero especial. O rei, nesse caso, seria levado a encarar o mundo

de um modo diferente.

Toda a terceira parte do Da Certeza, que vai dos aforismos 193-637, tem como fonte

um grande caderno de 79 páginas (MS 175-176). Este manuscrito contém diversas datas: a

primeira, na página 33 – 23 de setembro de 1950, e a última na página 74 – 21 de março de

1951. Os editores, no entanto, omitiram uma das observações escrita em 10 de março.

O primeiro conjunto de observações no MS 176 possui data e impressão como a

primeira parte de Anotações sobre as cores. Van Gennip observa que na página 22 encontra-

se registrada a data de 21 de março de 1951. Em seguida seguem-se as observações do Da

Certeza, que vai dos aforismos 426-523. Na página 51 dos MS 176, encontra-se o aforismo

524 de Da Certeza que continua até o aforismo 637, e a última data é do dia 24 de abril de

1951.

Contudo, considerando a quantidade de textos produzidos por Wittgenstein é

improvável que o filósofo tenha escrito todas as últimas 09 páginas de MS 175 e as primeiras

22 páginas do MS 176, em 21 de março. É possível, portanto, que o filósofo tenha escrito a

primeira seção em períodos completamente diferentes. Estas diferenças cronológicas,

possivelmente, tenham levado os editores a publicar ambas as partes em diferentes edições.

A última parte do Da Certeza, que vai do parágrafo 638-676, foi escrita em um

pequeno caderno (MS 177). As primeiras observações foram datadas em 25 de abril de 1951,

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e a última, em 27 de abril, do mesmo ano, dois dias antes da morte de Wittgenstein. Nesses

últimos aforismos Wittgenstein trata especificamente sobre a questão da certeza versus dúvida

cética.

Em seguida, trataremos de apresentar a noção de certeza em Descartes, Moore e

Wittgenstein. O nosso propósito, com isso, é mostrar as diferentes concepções que cada

pensador tinha a respeito desse tema. Assim, veremos que para Descartes a certeza está

radicada no cogito; para Moore, a certeza está fundada nos truísmos óbvios do senso comum,

e para Wittgenstein, a certeza tem como fundamento os jogos de linguagem, e que se estende

à ação dos seres humanos dentro de uma forma de vida (Lebensform).

a.1. A certeza em Descartes

Nas Meditações Metafísicas, o projeto filosófico de Descartes visa atingir a certeza de

um conhecimento sólido e infalível. Dito de outro modo, o filósofo francês exige um tipo de

saber que não pode ser abalado por nenhum tipo de dúvida, por menor que seja ela. Dessa

forma, a infalibilidade do conhecimento humano para Descartes significa certeza absoluta e

completa. Para isso, o filósofo francês percorre, na Primeira Meditação, o itinerário de uma

dúvida hiperbólica e radical que mantém a suspensão do juízo acerca do mundo exterior. Essa

referida dúvida cartesiana representa um procedimento metodológico que busca alcançar a

certeza absoluta do conhecimento. Em seguida, após percorrer a via da dúvida, o filósofo

alcança a sua primeira certeza, o “ponto arquimédico”. Esse ponto fixo e seguro é a certeza do

cogito, conforme o filósofo francês relata no início da Segunda Meditação:

Arquimedes, para tirar o globo terrestre de sua posição e transportá-lo para outro

lugar, nada pedia senão um ponto que fosse fixo e assegurado. Assim, terei direito de conceber altas esperanças, se for o bastante para encontrar somente uma coisa

que seja certa e indubitável (DESCARTES, 2005, p. 41-42).

Com isso, Descartes atinge a sua primeira certeza por meio de uma intuição simples

da mente. Melhor dizendo, o filósofo francês chega à conclusão de que a proposição eu sou,

eu existo, é necessariamente verdadeira toda vez em que ela for pronunciada ou concebida em

seu pensamento, após ter pensado e examinado todas as coisas. Assim, a certeza do cogito

cartesiano deve ser considerada um argumento epistemicamente sólido e, desse modo, se

constituir, com relação à construção do conhecimento científico, um primeiro princípio, um

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axioma. É sobre esse primeiro princípio, portanto, que o filósofo Descartes busca estabelecer

os fundamentos do saber científico e filosófico moderno.

A certeza completa, segundo Descartes, significa conhecimento infalível e indubitável.

Melhor dizendo, convicção fundada em razões suficientemente fortes que jamais pode ser

abalada por qualquer outro tipo de razão mais forte ainda. Segundo o projeto cartesiano, para

alcançar a “rocha inabalável do infalibilismo”, é necessário examinar a totalidade de nossas

crenças e opiniões de uma maneira sistemática e completa (LANDESMAN, 2006, p.118-121).

De acordo com o pensador francês, uma crença é considerada conhecimento somente quando

for capaz de provar contra toda dúvida.

Assim, para eu saber, por exemplo, se uma determinada proposição mundana J é

verdadeira, é necessário que eu tenha acesso a razões fortes e inabaláveis, após tê-las

contemplado conscientemente em algum momento. Ao proceder assim, estarei numa posição

privilegiada para provar para mim que sei. Dessa forma, para que eu possa saber é preciso

saber que sei. Essa concepção defendida por Descartes é chamada de internalismo. Esse tipo

de internalismo apresenta algumas dificuldades, pois nos leva a um regresso ao infinito,

porque, para que as minhas condições de conhecimento sejam fortes e inabaláveis, eu preciso

saber, e para saber, precisarei saber que sei que sei, e assim ad infinitum (Ibidem, p. 136-137).

O internalismo cognitivo cartesiano faz parte de um projeto fundacionalista radical

sobre o conhecimento humano. Para tanto, Descartes parte do pressuposto de que as crenças

fundacionais humanas que são certas e verdadeiras garantem a certeza das crenças

fundamentais que sobre elas se apoiam (MOSER; MULDER; TROUT, 2009, p. 96). Desse

modo, para um fundacionalista radical cartesiano, o processo de justificação de crenças requer

sempre o apoio de outras crenças na qual se baseiam. Contudo, se essa cadeia de crenças

justificadas regredisse ao infinito, sem terminar numa crença que fosse de certa maneira e

segura, e que fornecesse um fundamento sólido para outras crenças, aparentemente teríamos

uma falta de justificação para qualquer crença dessa cadeia. Nesse sentido, é necessário,

então, que haja crenças que não necessitem de justificação ou que se autojustifiquem para

servir de base epistêmica para outras crenças.

A ‘metáfora do edifício’ usada pelos epistemológos contemporâneos serve para

ilustrar a teoria fundacionalista sobre o conhecimento em Descartes. Num determinado

edifício, assim como cada apartamento se sustenta um sobre o outro, do mesmo modo, num

determinado sistema de crenças, cada crença se sustenta uma sobre a outra. Assim, o edifício

como um todo, para se sustentar necessita de fundamentos firmes e sólidos. Da mesma

maneira, o sistema de crenças como um todo, para se sustentar necessita de crenças com base

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epistemicamente sólida e forte que sirvam de fundamento para outras crenças (GREYLING,

2002, p. 45).

O exemplo, a seguir, nos ajuda a entender melhor a teoria fundacionalista sobre o

conhecimento. A crença que uma determinada pessoa tem de que agora vê um livro sobre a

mesa, pode ser justificada diretamente pela sensação visual de um dicionário de filosofia. Por

outro lado, a sua crença de que a maior parte desse livro está cheia de palavras, pode não ser

justificado pela sua experiência da visão atual, e sim pelas crenças gerais sobre o jeito mais

comum de se imprimirem livros. Desse modo, a pessoa crê que a maioria das páginas de um

dicionário de filosofia está cheio de palavras, e essa crença, por inferência, sustenta a sua

crença de que este livro tem palavras escritas no restante de suas páginas (MOSER;

MULDER; TROUT, 2009, p. 95).

a.2. A certeza em Moore

Em Uma defesa do senso comum, Moore recorre a um conjunto de proposições

empíricas ou truísmos óbvios do senso comum que podem ser conhecidos com certeza

absoluta, como por exemplo: Somos seres humanos; A terra existe há muitos anos e Este

corpo nasceu num determinado momento do passado e vem existindo desde então. Com esse

conjunto de truísmos fundados em evidências empíricas, o filósofo britânico tratou de provar

que podemos saber com certeza sobre a existência de objetos físicos e, com isso, provar a

existência do mundo exterior independente da mente.

É importante destacar que a abordagem cognitiva do senso comum passou a exercer

forte influência sobre a epistemologia contemporânea. Encontramos versões dela no século

XVIII, nas obras do filósofo escocês Thomas Reid; e no século XX, em Moore e Chisholm

(MOSER; MULDER; TROUT, 2009, p. 172).

Em Prova de um mundo exterior, Moore toma como exemplo as suas próprias mãos

como prova de que objetos físicos existem, conforme a estrutura argumentativa formulada a

seguir:

(A) Aqui está uma mão e aqui está outra.

(B) Portanto, dois objetos físicos existem.

(C) Portanto, um mundo exterior existe.

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Ao proceder assim diante de um determinado público, Moore observa que seria um

“absurdo” negar que ele sabe com certeza que suas mãos existem, e apenas crê que elas existem

nos lugares indicados por seus gestos (MOSER; MULDER; TROUT, 2009, p. 172). Com isso,

o filósofo inglês situa a certeza dentro do esquema conceitual do senso comum e, assim, concede

as esses mesmos truísmos óbvios, valor epistêmico e força conclusiva maior do que qualquer

outra forma de argumento. É com esses argumentos, portanto, que Moore busca refutar idealismo

de Berkeley e o ceticismo de Descartes.

Sendo assim, embora Moore reconheça que a certeza do conhecimento seja resultado

da conjunção da memória de um passado imediato com os dados dos sentidos, nesse processo

de justificação de crenças sobre mundo externo, no entanto, não se deve levar tanto em conta

os mecanismos cognitivos internos de um sujeito epistêmico, mas os fatos desse mesmo

mundo externo. Com isso, esse sujeito epistêmico busca justificar as suas crenças acerca do

mundo externo por meio de receptores sensoriais, tendo por base os fatos do mundo exterior

(GRAYLING, 2002, 47).

a.3. A certeza em Wittgenstein

A certeza para Wittgenstein se constitui como um conjunto de proposições no interior

de um sistema de formas de vida que fundamenta a ação e o pensamento dos seres humanos

no mundo. Essas sentenças fundamentais desempenham um papel primariamente lógico-

linguístico dentro de nossas proposições gramaticais. Para explicar o papel que as proposições

lógicas desempenham em nosso sistema de convicções, Wittgenstein recorre à metáfora de

um rio. Para o filósofo austríaco, a margem de um rio é formada por rochas duras, noutra

parte, a margem é formada por areia, que ora é arrastada ora depositada (§ 99). Assim, é

possível imaginar:

[...] algumas proposições, com a forma de proposições empíricas, se tornavam

rígidas e funcionavam como canais para as proposições empíricas que não

endureciam e eram fluidas, e que esta relação se altera com o tempo, de modo que as

proposições fluidas se tornavam rígidas e vice-versa (OC § 96).

Ao recorrer à metáfora de um rio, Wittgenstein trata de mostrar que dentro de uma

forma de vida humana algumas proposições são rígidas como as proposições da matemática

(12 X 12=144) (§ 652-654); outras que mudam com o tempo se tornaram rígidas, como as

proposições descobertas decorrentes de investigação científica posterior (§ 167). Entre essas

proposições da ciência existem aquelas que funcionam como normas de descrição empírica do

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mundo e são aprendidas explicitamente nos manuais escolares (A Terra gira ao redor do sol e

A água ferve a 100% graus) e outras aprendidas implicitamente; e existem ainda aquelas

proposições líquidas, que são ora verdadeiras, ora falsas (SMITH, 2010, p.67).

No leito do rio, as proposições empíricas têm como fundamento as normas linguísticas

aprendidas dentro de uma forma de vida. É dessa forma, portanto, que as certezas são

formadas a partir do aprendizado de uma língua. Elas constituem a expressão e o fundamento

lógico de uma dada forma de vida herdada pelos seres humanos, e na qual formam uma

imagem de mundo. É a prática do uso desses jogos de linguagem, portanto, que nos oferece a

certeza indubitável de podemos saber o que cremos saber. E uma vez encontrada o “solo

firme” dos jogos de linguagem não cabe buscar razões ou fundamentação última do

pensamento.

De acordo com Moreno, no texto Da Certeza, as proposições empíricas não formam

uma “massa homogênea”, ou seja, não possuem o mesmo estatuto, uma vez que alguns desses

enunciados são aplicados como normas (2010, p. 37). Elas se dividem em dois grupos: (a)

transistóricas; e (b) as que se alteram com o tempo. Sendo que as proposições transistóricas

ou gramaticais (Grammatischer Satz), são as sentenças mooreanas, ou seja, proposições

rígidas, que não se baseiam em investigação e em evidências, e qualquer pessoa sensata as

sustentaria. Elas representam as sentenças mais básicas que servem de fundamento para

nossas crenças, como por exemplo, de que “A Terra existe há muito tempo” e “Gatos não

nascem em árvores” (GLOCK 1996, p. 75).

Essas proposições são como certezas-dobradiças que operam como condições de

possibilidade universais imprescindíveis para estabelecer jogos de linguagem em geral (PICH,

2011, p. 179-175). Dessa forma, a dúvida com relação a estas proposições estaria totalmente

deslocada, pois quebraria com o sistema que a própria dúvida se insere e confronta-se com a

nossa imagem de mundo que pressupõe, por exemplo, que “crianças possuem pais mais

velhos do que elas” e que “as casas resistem aos anos” (GIANNOTTI, 1995, p. 239).

Elas são aprendidas e podem transformar o caráter de certezas em meras pretensões de

conhecimento, pois uma vez adquiridas por instrução, elas podem desabonar outras certezas

(PICH, 2011, p. 189-193). Para Wittgenstein, estarmos completamente seguros com relação a

essas proposições, não significa apenas dizer que cada um está seguro disso, mas que

pertencemos a uma comunidade que está unida pela ciência e pela educação (OC § 298).

Numa comunidade humana, a certeza se mostra pelo comportamento e ação dos seres

humanos no mundo. Quando digo, por exemplo, a um amigo sente-se naquela cadeira, feche

a porta (OC § 6) ou ainda quando se pergunta a uma pessoa se ela sabe ou não andar de

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bicicleta, em ambos os casos, acabam-se os jogos de linguagem de pedir razões, o que

importa são os gestos e atitudes da pessoa ao se sentar na cadeira e aos seus procedimentos e

movimentos que constituem o que é andar de bicicleta, melhor dizendo, o que interessa é que

a pessoa execute concretamente o que lhe foi solicitada.

Desse modo, as certezas de uma dada prática não podem ser justificadas dentro dessa

mesma prática; visto que a sua “verdade” é tida ali por certa; portanto, qualquer tentativa de

justificação desta mesma prática chega ao fim. Isso significa dizer que uma vez que as

certezas constituem o fundamento de nossa ação, qualquer tentativa, portanto, no sentido de

buscar justificar esses fundamentos, significa raciocinar em círculo. Sendo assim, uma vez

encontrada a “rocha firme” de nossa ação, onde a pá, escavando, entorta, não cabe mais

perguntar pelas razões que nos levam a agir desta ou daquela maneira, eu busco agir com

certeza completa, e essa certeza é minha própria (OC §174).

Ademais, Wittgenstein observa que é dentro de uma forma de vida que se forma a

nossa imagem de mundo. E essa imagem de mundo forma o substrato de nossa ação no

mundo e se constitui como o “pano de fundo” que herdamos por meio de um processo de

persuasão e sobre a qual distinguimos o verdadeiro do falso (OC § 94). Ela tem como base os

nossos jogos de linguagem. É nesse sentido que entendemos a afirmação de Wittgenstein

quando diz que uma criança poderá ser persuadida a crer no que os adultos lhe dizem

seriamente (§ 106), porque ela não foi capaz de aprender determinados jogos de linguagem (§

283).

É dessa maneira que Wittgenstein entende a linguagem como uma extensão do

comportamento mais primitivo do ser humano (RPP § 151). E o processo de aprendizagem de

uma língua consiste numa espécie de treinamento, onde as crianças aprendem com adultos a

se posicionarem diante do mundo e da comunidade onde estão situadas. Essa ação dos

pequenos aprendizes com relação ao mundo e aos adultos, segundo o filósofo, é de uma

confiança instintiva. Dessa forma, a certeza completa se manifesta em nossas ações “como

algo que está além do legitimado ou não legitimado, portanto, como algo animal” (OC § 359;

475).

Para Wittgenstein, então, a certeza representa o eixo de nossos jogos de linguagem

epistêmicos que, por sua vez, depende de seu entorno vivo e dinâmico, formado por meio das

relações sociais e práticas constituídas entre indivíduos e comunidade dentro de um horizonte

linguístico. Sendo assim, a certeza não pode ser vista como conhecimento absolutamente

certo e verdadeiro a partir de processos internos de uma mente isolada do mundo, como

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postula o fundacionalismo cartesiano, mas como fundada no agir e no operar dos seres

humanos no mundo.

B. O contexto filosófico do Da Certeza

O século XX representou, para o panorama filosófico ocidental, a mudança de uma

concepção filosófica centrada na consciência ou na questão do conhecimento, para uma

filosofia da linguagem. Essa transformação da filosofia, que teve início no final do século

XIX, recebeu o nome de virada linguística (linguistic turn)10. A partir dessa mudança, a

linguagem deixou de ser mero instrumento de representação do mundo para ser a condição de

possibilidade do conhecimento humano construído intersubjetivamente pelos falantes dentro

de uma comunidade linguística. Para Araújo (2004, p.106), isso se deve, sobretudo, à

mudança paradigmática da epistemologia tradicional, que vem desde Platão, ganha

significado na filosofia moderna com Descartes, Hume e Kant. Esse modelo tradicional de

epistemologia centrado na consciência buscava valorizar a subjetividade da consciência

humana em seu momento de representação mental do mundo. Nesse processo de

representação mental da realidade, a linguagem e a comunicação desempenhavam um papel

secundário no processo de construção do conhecimento.

Com isso, a reviravolta linguística veio “jogar por terra” a herança do paradigma

representacionista da epistemologia tradicional. Segundo esse paradigma epistemológico, o

intelecto humano é capaz de produzir por si só o conhecimento. Esse conhecimento, por sua

vez, deve estar fundado num tipo de certeza absoluta cuja fonte é o cogito, entendido aqui

como uma substância pensante sem extensão. Na perspectiva de Kant, por exemplo, o

intelecto humano é dotado de estruturas a priori que constituem as condições de possibilidade

para qualquer apreensão racional do mundo. Dessa forma, a concepção epistemológica

tradicional tem como pressuposto um dualismo entre a mente, inteligência e razão pura (res

cogitans), de um lado; e a sensibilidade, corpo e emoção (res extensa), de outro (p. 107).

Mesmo após a virada linguística, embora houvesse críticas pesadas à noção metafísica

de um tipo de sujeito que constitui o conhecimento do mundo por meios de processos internos

10 Para Richard Rorty, a expressão virada linguística (linguistic turn) foi provavelmente cunhada por Gustav

Bergmann. Esse termo foi também tratado por Karl Otto Apel em sua obra fundamental intitulada

Transformation der Philosophie, que foi traduzida para o português como Transformação da Filosofia, V.1 e 2.

São Paulo: Loyola, 2000.

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à mente; o conhecimento ainda era tido para muitos pensadores do século XX, como algo

fundado em critérios seguros. Desse modo, Araújo observa que

[...] tanto a fenomenologia como certas concepções da filosofia analítica ainda têm

pretensão fundacionalista. A primeira considera imprescindível chegar à essência e a

verdades apodíticas. Na filosofia analítica, Russell advoga um atomismo e uma

análise lógico-empírica do mundo, e Carnap adota uma noção de significado como verdade juntamente com um critério verificacionista de sentido. Este último afirma

que há dois “problemas centrais da teoria do conhecimento, o de como uma sentença

possui significado cognitivo-factual”, e o de “como chegamos a conhecer alguma

coisa, como podemos verificar se uma dada sentença é verdadeira ou falsa”

(CARNAP, 1980, p. 171). Mesmo quando Carnap afirma que os enunciados

metafísicos são pseudos enunciados, sem significado, reafirma a metafísica do dado

empírico. Para todos eles há um esteio para o conhecimento, ou melhor, há a

questão do conhecimento (ARAÚJO, 2004, p. 106).

No século XX, a virada linguística ganhou relevância maior a partir das contribuições

dos filósofos matemáticos Gottlob Frege e Ludwig Wittgenstein. Eles reconhecem que o

sentido (Sinn) existente no pensamento é expresso em proposições linguísticas. Dessa

maneira, a estrutura do pensamento passou a ser lida na estrutura das proposições gramaticais.

Frege tratou de mostrar a diferença entre pensamento e representações, sendo que o

pensamento, que vai além da consciência do sujeito, permanece o mesmo, ainda que os

indivíduos o apreendam de maneira diferente, e as representações, por sua vez, são do sujeito,

a quem são dados os objetos. Aqui, é possível perceber a diferença entre Frege e Descartes. Se

para Frege, por um lado, existe diferença entre o sujeito de representação e o pensamento,

para Descartes, por outro, o sujeito de representação se identifica com o próprio pensamento

(res cogitans). Frege buscou mostrar que o sentido veritativo de uma proposição contém a sua

forma gramatical, ou seja, a análise das sensações, das representações e dos juízos deve ser

feita pela análise semântica das expressões linguísticas, e não o mero resultado da atividade

de uma mente ou de um intelecto como postulava Descartes.

No Tractatus Logico-philosophicus, a preocupação central de Wittgenstein era mostrar

o caráter transcendental da linguagem, ou seja, a linguagem como a condição de possibilidade

de compreensão do mundo. Para Wittgenstein, o mundo se constitui numa totalidade de fatos

lógicos (TLP, 1.1) e a linguagem, por sua vez, representa a figuração (Bild) lógica desses

fatos. E uma vez que a linguagem representa a figuração dos fatos no espaço lógico do mundo

e reproduz a sua estrutura lógica, assim o pensamento sai da esfera da consciência do sujeito

para habitar o horizonte público da linguagem (OLIVEIRA, 2001, p. 101-109).

A segunda fase da reviravolta linguística, denominada linguístico-pragmática, foi

possível a partir dos estudos da pragmática linguística feitos por Pierce e pelo segundo

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Wittgenstein. A pragmática linguística leva em consideração os usuários de uma língua e os

diversos contextos de fala (ARAÚJO, 2004, p. 109). Sendo assim, o sentido da linguagem

para os usuários de uma determinada língua depende não só de sua forma gramatical, mas,

sobretudo, dos usos dessa mesma língua nos diversos contextos de formas de vida. A noção

de uso (Gebrauch) da linguagem, desenvolvida por Wittgenstein nas Investigações

Filosóficas, será, portanto, o eixo central da virada linguístico-pragmática na filosofia

contemporânea. A partir da reviravolta pragmática, a linguagem passou a significar uma

forma de ação e uma prática social, ou seja, passou a representar uma atividade humana como

outra qualquer como: andar, passear, jogar, e que se realiza sempre em contextos de ação,

denominados formas de vida (OLIVEIRA, 2001, p. 138).

Com a virada linguístico-pragmática, o conhecimento que era concebido como algo

produzido pelos processos internos da mente de um sujeito epistêmico, passou a ser visto

como uma atividade, cuja relação entre o indivíduo e a comunidade tem como base a

linguagem humana. Dessa forma, o tema da representação cartesiana deixa de ser uma

categoria privilegiada dentro do processo produção do conhecimento e torna-se um jogo de

linguagem dentre outros. No lugar de um sujeito de representação, característica da

epistemologia moderna cartesiana, o que passou a existir foram os modos de apresentação de

um sujeito que age e atua no mundo tendo por base os diversos usos dos jogos de linguagem.

Com isso, a nova epistemologia emergente a partir da filosofia contemporânea, “situa-

se no paradigma pós-metafísico, antifundacionista e pragmático” (ARAÚJO, 2004, p. 112-

114). É no contexto desse novo paradigma epistemológico emergente e forjado a partir da

virada linguístico-pragmática, na filosofia contemporânea, que está situado o Da Certeza de

Wittgenstein. Para o filósofo austríaco, a certeza demanda acordo entre os falantes de uma

determinada língua. Sendo assim, a certeza não é um estado mental, mas um comportamento

humano que se manifesta, tendo como “solo firme” o horizonte da linguagem.

Na esteira dessa discussão em torno da virada linguístico-pragmática, é importante

ressaltar que há um grupo de comentares que argumenta em defesa da tese de uma terceira

fase do pensamento de Wittgenstein. Uma das grandes entusiastas dessa ideia é Danièle

Moyal-Sharrock11. A raiz da tese de um terceiro Wittgenstein, segundo Moyal-Sharrock,

reside na ideia de que o Da Certeza representa um trabalho pós-Investigações Filosóficas de

11 D. Moyal-Sharrock idealizou um fórum para discutir as ideia de um terceiro Wittgenstein. Em seguida, ela

reuniu e organizou os artigos de doze autores que partilhavam a mesma opinião em seu livro intitulado The Third

Wittgenstein – The Post-Investigation works. Nesse trabalho é possível identificar duas posições: os que

acreditavam em uma nova direção do pensamento de Wittgenstein; e os que apenas acreditavam que a ideia de

um terceiro Wittgenstein constitui apenas uma demarcação cronológica (PÁDUA, 2007, p. 63).

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Wittgenstein (Wittgenstein’ post-Investigations works). Para os defensores de um terceiro

Wittgenstein, a primeira parte das Investigações foi concluída em 1945, e a partir de 1946,

houve uma nova direção do pensamento do filósofo austríaco.

Segundo Pádua, os defensores da ideia de um terceiro Wittgenstein acreditam que o

autor elaborou três filosofias distintas: (a) na primeira está concentrada até a publicação do

Tractatus; (b) na segunda estão incluídas a produção pós-Tractatus até a primeira parte das

Investigações Filosóficas; e (c) na terceira estão incluídos a segunda parte das Investigações e

os escritos de Wittgenstein a partir de 1946, como o texto Da Certeza, Anotações sobre as

cores, Zettel, os escritos sobre filosofia da psicologia (PÁDUA, 2007, p. 60).

Na primeira edição das Investigações Filosóficas, publicada de 1952, os seus editores

Von Wright, Anscombe e Rhees afirmam que “se o próprio Wittgenstein estivesse vivo,

talvez ele mesmo tivesse deixado fora de sua obra grande parte do que agora perfaz mais ou

menos as trinta últimas páginas da primeira parte, e em seu lugar teria colocado o conteúdo da

segunda parte, acrescentando outro material” (PI 2008, p. 05).

Outro comentador que defende essa mesma posição é Hacker. Ele afirma que se

Wittgenstein incorporaria ou não a segunda parte das Investigações Filosóficas, isso se trata

de uma mera suposição. A questão é que ele não a incorporou. Além do mais, na opinião de

Hacker, a segunda parte não é uma continuação, mas uma parte integrante das Investigações

(MOYAL-SHARROCK, 2004, p. 02). Para ele, o texto das Investigações como foi composta

por Wittgenstein termina no parágrafo 693 (HACKER, 2000, p. 16 apud SOUZA, 2007).

Conforme Souza, no último volume de seus comentários sobre as Investigações

Filosóficas, Hacker faz a seguinte afirmação:

Prof. G.H. Von Wrigth escreveu que ele ‘inclina-se à opinião de que a parte I de IF é

um trabalho completo e os escritos de Wittgenstein de 1946 em diante representam

de certa maneira partidas em novas direções’ (1982, p. 136), uma opinião com a

qual eu concordo. De acordo com isso, não é, e nunca foi, minha intenção é

continuar este comentário analítico nas IF além do parágrafo 693. Se Wittgenstein

teria ou não incorporado a Parte II na Parte I em algum ponto, não importa, o fato é

que não fez. A parte II não é uma parte do mesmo livro (HACKER, 2000, p. 16-17

apud SOUZA, 2007, p. 119).

De acordo com Hacker, a segunda parte das Investigações Filosófica pertence às

últimas investigações de Wittgenstein sobre a psicologia filosófica. Moyal-Sharrock observa

que quando se busca afirmar que a partir do ano de 1946, o pensamento de Wittgenstein

assumiu uma nova direção, não se pretende dizer com isso, que o filósofo não tenha tratado

em seus trabalhos anteriores sobre temas de epistemologia, filosofia da psicologia e filosofia

das cores. O que ocorre é que nessa nova fase do pensamento do autor de Da Certeza, esses

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temas ganharam um nível de profundidade e originalidade formidável. Segundo ela, os temas

epistemológicos nos primeiros trabalhos de Wittgenstein, não foram apresentados claramente

e até passaram despercebidos. No terceiro Wittgenstein, porém, e notadamente em Da

Certeza, a questão do conhecimento, da certeza e do ceticismo filosófico ganharam um nível

maior de clareza e profundidade (MOYAL-SHARROCK, 2004, p. 03).

Será que o fato de Wittgenstein ter tratado desses temas com maior profundidade e

originalidade, como afirma Mayal-Sharrock, é razão suficiente para defender uma terceira

fase do pensamento do filósofo austríaco? Acreditamos que uma reviravolta no pensamento

do filósofo implicaria mudanças de perspectivas e isso não houve, como ocorreu na passagem

do paradigma da análise lógica da linguagem do Tractatus, para uma visão pragmática do uso

dos jogos de linguagem nas Investigações Filosóficas. O que houve, segundo Moyal-

Sharrock, foi uma maior profundidade e compreensão desses temas tratados por Wittgenstein

em Da Certeza.

Essa passagem do paradigma da linguagem como representação para uma linguagem

pragmática, como bem sinalizou Hacker, só foi possível com a desintegração progressiva do

Tractatus nos anos 1929 e 1931. Com isso, emergem uma nova visão e um novo método em

filosofia. Wittgenstein percebeu que o Tractatus foi pensado segundo o paradigma da

filosofia tradicional essencialista. E ao admitir um novo método, o filósofo engendrou a

grande revolução na história da filosofia ocidental (HACKER, 2005, p.273).

A analogia da linguagem com o cálculo foi o primeiro movimento de Wittgenstein no

sentido de ‘desmantelar’ com o antigo modelo de investigação lógica da linguagem. Em

Algumas observações lógicas e no capítulo VIII das Observações filosóficas, o filósofo

sinalizou com a ideia de sistema proposicional (Satzsystem). Desse modo, a linguagem

humana passou a ser concebida como um cálculo e suas proposições como um sistema. Para

isso, Wittgenstein recorreu à analogia do jogo de xadrez.

As regras de um jogo de xadrez são: (I) autônomas, ou seja, elas não são fundações e

nem podem ser justificadas tendo como referência a realidade. Da mesma forma, as regras da

linguagem não têm fundações; (II) arbitrárias, isto é, não sendo responsáveis pela

representação da realidade, elas podem ser diferentes. Assim também as palavras podem

significar algo a mais na linguagem; (III) são constitutivas do jogo, pois é o movimento das

peças no tabuleiro que vai dizer qual será a melhor estratégia para ganhar o jogo. Assim

também são as regras da gramática que determinam o significado das expressões linguísticas;

(IV) determinam as possibilidades de movimentar a peça. Do mesmo modo, a sintaxe lógica

de uma palavra determina o seu lugar na gramática, ou seja, as suas possibilidades

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combinatórias na linguagem; (V) o método de aplicação das regras diferencia a linguagem (da

matemática aplicada) do jogo (da matemática pura) (Idem, ibidem, p. 47-48).

Embora o jogo de palavras “Luz” em resposta a luz elétrica sendo ligada, e “Trevas”

em resposta a luz sendo desligada, tenha sido introduzido por Wittgenstein bem antes, num

manuscrito que foi perdido; a noção de jogo de linguagem, no entanto, apareceu pela primeira

vez nos manuscritos de março de 1932 (MS 113 (Vol. IX), 45r; cr. MS 115 (Vol. XI), 80)

(HACKER, 2005, p. 57-58).

No Livro Azul, Wittgenstein introduziu a noção de jogos de linguagem da seguinte

maneira:

De futuro, chamarei muitas vezes a vossa atenção para aquilo que chamarei jogos de

linguagem. Estes são maneiras mais simples de usar signos do que as da nossa

linguagem altamente complicada de todos os dias. Os jogos de linguagem são as

formas de linguagem com que a criança começa a fazer uso das palavras. O estudo dos jogos de linguagem é o estudo das formas primitivas da linguagem ou de

linguagens primitivas. Se pretendemos estudar os problemas da verdade ou da

falsidade, de acordo e desacordo de proposições com a realidade, de natureza da

asserção, da suposição e da interrogação, teremos toda vantagem em examinar as

formas primitivas da linguagem em que estas formas de pensamento surgem, sem o

pano de fundo perturbador de processos de pensamento muito complicados. Quando

examinamos essas formas simples de linguagem, a névoa mental que aparece

encobrir o uso habitual da linguagem desaparece. Descobrimos atividades, reações,

que são nítidas e transparentes. Por outro lado, reconhecemos, nestes processos

simples, formas de linguagem que não diferem essencialmente das nossas formas

mais complicadas. Apercebemo-nos da possibilidade de construir as formas complicadas pela edição gradual de novas formas a partir das formas primitivas

(BlB, 2008, p. 44-45).

Nesse texto, porém, tal noção ainda estava incompleta. Ela será amadurecida e

aparecerá com maior frequência no Livro Castanho: “mais ou menos o que na linguagem

comum chamamos jogos, as crianças são ensinadas em sua língua nativa, por meio de tais

jogos. Aqui elas têm o entretenimento como caráter de jogos” (BlB, p. 81). Com isso,

percebemos o início do itinerário da grande virada pragmático-linguística no pensamento

filosófico de Wittgenstein, cujo ponto culminante será o livro Investigações Filosóficas.

Nas Investigações Filosóficas, os jogos de linguagem constituem parte de uma

atividade, de uma forma de vida e dominar um jogo de linguagem significa dominar uma

técnica (PI § 199). O filósofo toma como exemplo os seguintes jogos linguísticos presentes

em nossa vida corrente:

Ordenar, e agir segundo as ordens.

Descrever um objeto de acordo pela aparência ou pelas suas medidas.

Produzir um objeto de acordo com uma descrição (desenho).

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Relatar um acontecimento.

Fazer suposições sobre o acontecimento.

Levantar uma hipótese e examiná-la.

Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas.

Inventar uma história; e ler.

Representar teatro.

Cantar cantiga de roda.

Adivinhar enigmas.

Fazer uma anedota; contar.

Resolver uma tarefa de cálculo aplicado.

Traduzir de uma língua para outra. Pedir, agradecer, praguejar, cumprimentar, rezar (PI, § 23).

A ideia de linguagem enquanto atividade é a característica marcante no segundo

Wittgenstein. É o domínio prático e público dos jogos de linguagem dentro das formas de

vida, que possibilita aos seres humanos criarem novas linguagens e construir novos discursos

de acordo com os diferentes contextos de fala. Não podemos confundir uso com utilidade. A

ideia de utilidade está associada a instrumento descartável, e a linguagem humana não deve

ser entendida dessa maneira. A linguagem é constitutiva de formas de vida humana. Ela é a

base de nosso atuar e pensar no mundo.

Notamos que o método dos jogos de linguagem, em torno do qual giram conceitos

fundamentais como: gramática, seguimento de regras, semelhança de família, forma de vida

(Lebensform) e imagem de mundo (Weltbild), constitui o núcleo central do pensamento que

marca a segunda fase de Wittgenstein, e esses conceitos permeiam também o texto Da

Certeza. Esse texto, em continuidade com as Investigações Filosóficas, realça a noção

pragmática da linguagem. Nele, o significado das palavras é o gênero do uso das mesmas na

linguagem, ou seja, é aquilo que empregamos quando a palavra é incorporada em nossa

linguagem ordinária. Wittgenstein compara o significado da função de uma palavra com a

função de um determinado funcionário, e os diferentes significados das palavras com as

diferentes funções. Dessa forma, quando ocorrer mudanças dos jogos de linguagem ocorrerá

também mudanças nos conceitos das palavras (OC §§ 61; 64-65).

Moyal-Sharrock observa, por exemplo, que em Da Certeza e em Anotações sobre as

cores, o conceito de gramática para Wittgenstein segue a corrente da vida. Em outros termos,

o uso da gramática não consiste somente em expressar sentenças, mas se manifesta também

como agir humano no mundo, cuja ação é partilhada dentro de uma forma de vida. O filósofo

afirma no aforismo 204: “Não se trata de uma espécie de ver da nossa parte; é o nosso atuar

que está no fundo do jogo de linguagem”.

Em Wittgenstein, a linguagem é tratada como a base de nossa ação no mundo, ou

melhor, o fenômeno linguístico se constitui o fundamento de nossas certezas dentro de uma

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forma de vida. Na opinião de Moyal-Sharrock, em Da Certeza, as certezas dobradiças, em

torno das quais giram o nosso atuar no mundo, atestam que um dos fios condutores do

terceiro Wittgenstein é a gramatização da experiência. Para ela, na medida em Wittgenstein

expandiu a sua noção de gramática a novos territórios, ou seja, aos territórios de nossas

experiências cotidianas no mundo, o filósofo realizou a refutação do ceticismo acerca do

mundo exterior. A comentadora sugere que o filósofo cético confunde a expressão de uma

regra da gramática com uma proposição empírica. Ele faz confusão com sentenças do tipo

como “Há objetos físicos” ou “O mundo existe”, e acredita que pode duvidar

significativamente dessas sentenças e, assim, entra no “barco furado” da metafísica.

Essa observação de Moyal-Sharrock no tocante à ideia de gramatização da

experiência é interessante. Em Da Certeza, a noção de gramática é tratada como um sistema.

Esse sistema, por sua vez, compreende de forma simultânea a gramática, os usos e os jogos de

linguagem. É no interior desse mesmo sistema, portanto, que nascem todos os nossos critérios

de verificação, confirmação e invalidação de hipótese (OC § 105).

No interior desse sistema, formado pela lógica dos jogos de linguagem, repousam as

nossas certezas que nos levam agir dentro de uma forma de vida. Ele constitui as nossas

convicções mais inabaláveis, que não dependem de uma linha de raciocínio especial, no qual

estão ancoradas todas as nossas perguntas e respostas (§ 103). Nesse sistema, onde são

formadas nossas certezas inabaláveis, a dúvida cética em relação às certezas dobradiças, as

certezas “fundamento”, representa um desafio instigante a ser enfrentado pela filosofia.

Na opinião de Moyal-Sharrock, ao formular os seus argumentos céticos, na Primeira

Meditação, Descartes transferiu para a vida real, uma situação desenhada num contexto

ficcional. E isso aconteceu devido ao fato de uma proposição empírica e uma regra gramatical

(certezas dobradiças) serem expressas como uma sentença idêntica (doppelgänger). Tais

sentenças são idênticas às proposições gramaticais, mas com diferentes usos e,

consequentemente, com diferentes status (MOYAL-SHARROCK, 2002, p. 140 apud

SOUZA, 2007, p. 96-97).

De acordo com Mayal-Sharrock, existem quatro tipos de certezas dobradiças:

linguísticas, pessoais, locais e universais. As certezas linguísticas são aquelas dobradiças

presentes no segundo Wittgenstein, que são aparentemente proposições metafísicas ou

necessárias como: “Vermelho é mais escuro do que o rosa”. As certezas pessoais, locais e

universais, estão presentes no terceiro Wittgenstein como: “Eu estou aqui” (dobradiça

pessoal); “A Terra é redonda” (dobradiça local); “Nesse lugar vivem outras pessoas como

eu” (dobradiça universal). Para ela, o erro do ceticismo filosófico reside na tentativa mal

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conduzida de negar essas certezas que são, na realidade, as regras da gramática de nossas

experiências no mundo (MOYAL-SHARROCK, 2004, p. 42-62).

Conforme a observação de Souza, Moyal-Sharrock e Requejo consideram também que

a noção de terapia da linguagem de Wittgenstein, forte nas Investigações Filosóficas, é

atenuada em Da Certeza.

Ao concluir esse item ressaltam-se as ideias de Sharrock expressas nas seguintes

palavras, a saber, que, a introdução terapêutica fundamental de “Investigações” é

muito atenuada em Da Certeza. Nesta obra, Wittgenstein se volta para preocupações

filosóficas clássicas sobre a natureza da certeza e sua relação com o conhecimento

humano e indica não somente os casos em que há o mau uso dos conceitos como

“Eu sei” para então dissolvê-los ou neutralizá-los. Ele está, além disso, preocupado

com as múltiplas inflexões do termo “Eu sei” e examinando-o de forma minuciosa. Esta diferença não deve ser vista de forma indiferente pelos leitores de DC

(SOUZA, 2007, p. 92).

Consideramos essa observação de Moyal-Sharrock e Raquejo equivocada. Não é

verdade que Wittgenstein tenha atenuado o seu método terapêutico em Da Certeza. Ao

examinarmos esse texto é visível a preocupação do filósofo austríaco em elucidar o emprego

incorreto dos operadores epistêmicos como os verbos saber, crer, duvidar, supor, que Moore

usa de forma inadequada em seus dois ensaios: Uma defesa do senso comum e Prova de um

mundo exterior.

O filósofo principia o Da Certeza fazendo referência à famosa prova mooreana “Aqui

está uma mão”, presente em Prova de um mundo exterior (OC § 01). Em Da Certeza,

Wittgenstein evidencia a sua discordância em relação ao mau uso dessa afirmação feita por

Moore. Para ele, o que podemos perguntar, nesse caso, é se faz sentido duvidar de tal prova. E

se alguém duvidar que “sabe que existe uma mão”, o filósofo pede a essa pessoa que “observe

melhor”, e essa possibilidade de cada um convencer faz parte de um jogo de linguagem (§ 01,

02, 03).

Ademais, a grande maioria dos comentadores reconhece o sucesso da terapia do uso da

linguagem em Da Certeza. Moreno, por exemplo, afirma que nesse referido texto, a reflexão

terapêutica de Wittgenstein é marcadamente de natureza epistemológica, e não tem a

finalidade de expor teses, mas, como sempre, de esclarecer e elucidar as confusões

conceituais no campo da teoria do conhecimento (MORENO, 2010, p. 38).

Nesse sentido, o nosso trabalho objetiva mostrar que o trabalho terapêutico de

Wittgenstein em Da Certeza, representa uma tentativa do filósofo de dissolver o problema do

ceticismo filosófico. Se essa foi, porém, uma empreitada bem sucedida é o que veremos em

nossas considerações finais.

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Avrum Stroll, outro defensor da tese de um terceiro Wittgenstein, apresenta uma das

características nova do pensamento epistemológico do filósofo austríaco em Da Certeza, a

ideia de um fundacionalismo proposicional contra o fundacionalismo da tradição. Para ele, o

fundacionalismo de Wittgenstein apresenta alguns aspectos que o difere do fundacionalismo

da tradição. Se para o fundacionalismo da tradição segundo o modelo cartesiano, por um lado,

o “fundamento” repousa no cogito, para o fundacionalismo proposicional de Wittgenstein, por

outro, existe um fundamento, mas tal fundamento não é nem verdadeiro nem falso (§ 234). O

fundamento, portanto, está “depositado” no “solo firme” dos jogos de linguagem. Stroll

observa ainda que em Da Certeza, Wittgenstein emprega alguns termos linguísticos como:

solo, base, fundo, fundação, que indicam explicitamente a perspectiva fundacionalista do

filósofo austríaco, e essas palavras são recorrentes em todo texto Da Certeza (STROLL, 1994,

p. 139-159).

Outra característica que Stroll destaca em Da Certeza é a ideia de metáfora (leito do e

margem rio, rocha dura, dobradiça, eixo), trabalhada por Wittgenstein, e que diferencia o

referido texto dos demais trabalhados pelo filósofo. De fato, percebemos que o Da Certeza é

rico em metáforas que ajudam a retocar a ideia de forma de vida (Lebensform). O uso de

metáforas por Wittgenstein, nesse caso, representa um procedimento pedagógico interessante,

porque o recurso a imagens concretas do cotidiano concede maior inteligibilidade aos temas

filosóficos refletidos pelo pensador. Aliás, o uso de metáforas é recorrente em Wittgenstein,

principalmente em seus escritos do período de transição, e notadamente nas Investigações

Filosóficas.

Com relação à ideia de um fundacionalismo proposicional, será que Wittgenstein era

um fundacionalista como sugere Stroll? É importante deixar claro que não somos partidários

dessa ideia. Em Da Certeza, Wittgenstein defende a noção de uma linguagem pública, ou

seja, uma linguagem partilhada pelos seres humanos dentro de uma forma de vida, que

constitui o fundamento do agir humano no mundo. Desse modo, podemos afirmar que o texto

Da Certeza apresenta uma forte posição antifuncionalista frente ao fundacionalista da

tradição, do qual Descartes é legítimo representante.

Com o seu projeto fundacionalista de justificação epistemológica, Descartes busca na

certeza do cogito, o fundamento último do conhecimento humano. Ora, essa postura é

incompatível com a forte posição externalista anticartesiana que marcou o pensamento de

Wittgenstein, principalmente, em sua segunda fase. Para o filósofo austríaco, a linguagem é

um fenômeno público. Sendo assim, o agir humano no mundo, que não é produto de

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raciocínio e intelecção, repousa no fundo de um jogo de linguagem. Por tudo isso, é estranho

acreditar na defesa de um fundacionalismo wittgensteiniano como sugere Stroll.

Considerando o que vimos até aqui há de se reiterar que não partilhamos da tese de um

terceiro Wittgenstein. Acreditamos, portanto, que o Da Certeza se insere no contexto da

segunda fase do pensamento do filósofo austríaco. Se examinarmos as obras de Wittgenstein

publicadas a partir da segunda metade da década de trinta, período correspondente ao início

da virada pragmático-linguística do pensador austríaco, observamos que existe uma coerência

no pensamento do filósofo, e não se trata, portanto, de um novo pensamento filosófico do

pensador austríaco. O que muda, porém, é o foco temático dos problemas filosóficos

abordados que, no caso do Da Certeza, nota-se que o pano de fundo do debate filosófico gira

em torno do problema epistemológico.

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II – O CETICISMO SOBRE O MUNDO EXTERIOR NAS MEDITAÇÕES

METAFÍSICAS DE DESCARTES

Muitos epistemólogos contemporâneos que se interessam em discutir o problema do

mundo exterior e que buscam refutar o ceticismo cartesiano se apoiam nas Meditações

Metafísicas de Descartes. O filósofo formulou, na Primeira Meditação, o que é considerado

por parte da epistemologia contemporânea, os argumentos céticos mais fortes e poderosos de

todos. Ele buscou mostrar que até mesmo as nossas crenças a respeito de objetos

ostensivamente evidentes são vulneráveis a alternativas céticas relevantes. É importante

deixar claro que a dúvida cética de Descartes representa o ponto de partida de um itinerário

filosófico que visa atingir um conhecimento sólido e infalível. Nesse sentido, o ceticismo de

Descartes presente na Primeira Meditação significa um procedimento metodológico tendo em

vista a certeza infalível do conhecimento humano. E ao atingir a infalibilidade do

conhecimento, o filósofo francês tinha como alvo o ceticismo antigo12, a fim de que não

deixasse nenhuma plataforma sobre a qual o cético pudesse se sustentar.

Ao considerar o caráter hiperbólico e radical das hipóteses céticas cartesianas,

Landesman busca aproximar o ceticismo de Descartes do ceticismo pirrônico13. Smith, no

entanto, não partilha dessa mesma opinião. Para ele, sendo o ceticismo cartesiano um tipo de

ceticismo epistemológico negativo, segue-se que ele é incompatível com o pirronismo. Smith

observa que o ceticismo cartesiano se assemelha mais ao ceticismo acadêmico, na forma

como foi interpretado por Sexto Empírico, isto é, na forma de um dogmatismo negativo

(SMITH, 2000, p. 106).

De acordo com DeRose, muitos consideram o ceticismo cartesiano como exagerado e

extravagante; mas esse tipo de ceticismo, na realidade, é forte e poderoso para ser considerado

12 O ceticismo antigo era formado por dois grupos: os pirrônicos e os acadêmicos. Os céticos pirrônicos tinham

como fundador Pirro de Elis. Esse tipo de ceticismo defendia a posição de que diante de dois discursos

contraditórios, sendo um tão exatamente verdadeiro como outro, não era possível assentir saber aquilo que

cremos saber. O que os pirrônicos questionavam, na realidade, eram as alternativas de discursos dogmáticos

oferecidas, principalmente, pelos céticos acadêmicos, que segundo eles, desembocavam em aporia, ou seja, em

impasse. Diante disso, Pirro de Elis defendia, então, a “suspensão do juízo” (epokhé). Os céticos acadêmicos, por sua vez, tinham como principais representantes Arcesilau e Carnéades. Eles defendiam uma postura moderada

diante do conhecimento. Os acadêmicos acreditavam que não era possível um saber rigoroso, e uma vez que

nunca podemos ter certeza de que nossos juízos concordam com a realidade, não podemos, assim, dizer também

qual era a proposição verdadeira. O máximo que podíamos dizer é que uma dada proposição parecia ser

verdadeira, portanto, que era “provável” (HESSEN, 1987, p. 41-42). 13 Charles Landesman faz a seguinte observação a respeito do ceticismo de Descartes: “Na primeira Meditação,

ele tenta dar ao ceticismo o mérito devido formulando o que considera os argumentos céticos mais fortes de

todos. Ele vai mais longe do que Sexto Empírico, mostrando que até mesmo nossas crenças a respeito de objetos

ostensivamente evidentes são vulneráveis à dúvida” (LANDESMAN, 2006, p. 115).

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como hiperbólico e extravagante. Ele observa que é comum nas aulas de filosofia, quando se

busca discutir os argumentos céticos, os estudantes reagirem com desprezo. Esse tipo de

comportamento, segundo DeRose, advém da impaciência dos estudantes em reconhecer o

poder e a força desses argumentos. E os argumentos céticos mais poderosos são aqueles que

procedem de hipóteses céticas, como as hipóteses do Sonho e do Gênio maligno, formuladas

por Descartes na Primeira Meditação (DEROSE, 1999, p. 01-02).

A estrutura argumentativa da hipótese cética cartesiana é assim formulada:

(A) Eu não sei que Não-H (Sendo que Não-H representa uma hipótese cética qualquer,

por exemplo, de que eu possa estar “sonhando” ou sendo enganado por um “gênio

maligno”).

(B) Se eu não sei que Não-H, então não sei que O (Sendo que O representa uma

sentença da linguagem ordinária, por exemplo, a proposição de que estou sentado

diante da tela de um computador digitando esse argumento).

(C) Portanto, não sei que O.14

Para Descartes, as nossas crenças ordinárias fundadas em evidências sensíveis são

vulneráveis a alternativas céticas relevantes15. Por exemplo, no argumento acima formulado,

nota-se que a proposição “Eu sei que estou sentado diante da tela de um computador digitando

esse argumento”, pode ser abalada pela hipótese cética de que “Eu possa estar sonhando”,

porque as características inerentes ao estado de vigília são similares às do estado onírico.

Sendo assim, a possibilidade de eu estar sonhando constitui uma hipótese cética relevante,

porque não há limites ou marcos precisos que diferenciam o estado de vigília do estado de

sonho.

14 A hipótese cética cartesiana está fechada dentro de um princípio lógico conhecido como Princípio de

Fechamento (PF). A estrutura argumentativa do Princípio de Fechamento é a seguinte: Se um sujeito S qualquer

sabe que P (sendo que P representa aqui uma proposição cotidiana) e P implica Q (sendo que Q representa uma

hipótese cética), então S sabe que Q. O cético usa esse princípio para desafiar o nosso conhecimento cotidiano

sobre as coisas e mostrar que não podemos conhecer o mundo exterior. Alguns epistemólogos contemporâneos,

porém, como Robert Nozick e Fred Dretske se dedicam a combater o ceticismo ao mostrar o fracasso do

Princípio de Fechamento (DEROSE, 1999, p. 13-18). 15 Dretske atacou o Princípio de Fechamento (PF) via teoria do conhecimento das alternativas relevantes.

Segundo o Princípio de Fechamento usado pelo cético, se um sujeito qualquer “sabe que tem mãos” implica saber que “ele não é o cérebro numa cuba” ou que “não está sendo enganado por um gênio maligno”. O cético

argumenta que para haver conhecimento, esse mesmo sujeito deve excluir todas as hipóteses céticas relevantes.

Para Dretske, algumas alternativas relevantes como propõe o cético, são irrelevantes para que uma pessoa possa

saber num contexto normal. Dretske usa como exemplo o caso das zebras. Num zoológico, por exemplo, alguém

que não é cético vê zebras num cercado escrito zebras; outra pessoa representando o cético pode levantar a

seguinte dúvida: e se aqueles animais vistos como zebras não forem zebras e sim mulas disfarçadas de zebras?

Dretske afirma que a pessoa pode saber que aqueles animais que estão no cercado são zebras sem precisar saber

que não são mulas pintadas de zebras, porque num contexto normal isto é uma alternativa irrelevante. Assim, o

princípio de fechamento para Dretske fracassa (Idem).

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Contudo, é importante salientar de antemão que embora Descartes tenha sido algumas

vezes acusado de cético por ter desenvolvido nas Meditações Metafísicas, um tipo de

ceticismo forte e radical, o filósofo francês não tinha a pretensão de assumir a defesa do

ceticismo filosófico. A sua finalidade, no entanto, era atingir a certeza de um conhecimento

infalível. Assim, aos adversários dogmáticos que acusavam Descartes, ele replicava

afirmando que tal acusação era tão absurda, que era como culpar o médico de fomentar

doença, em vez de tratá-la. Como podemos, pois, tratar uma doença sem antes conhecê-la?

Desse modo, então, o filósofo francês colocava-se como um médico que tinha como missão

curar a doença do ceticismo. E essa doença, segundo o filósofo francês, para ser tratada, devia

ser antes analisada (COTTINGHAM, 1986, p.58).

Nas Meditações Metafísicas, o projeto cartesiano consiste em “limpar o terreno” e

permitir que a certeza do cogito venha servir de fundamento para uma filosofia positiva e

sistemática e, dessa forma, construir o edifício seguro do saber científico moderno

(PORCHAT PEREIRA, 1994, p. 124). Para isso, o filósofo francês percorreu um itinerário

que tinha como ponto de partida um tipo de dúvida radical e hiperbólica, um tipo de dúvida

que se constituiria como um meio e não um fim e si mesma. A dúvida, para Descartes, era um

procedimento metodológico com a finalidade de remover do caminho as “pedras” que

representavam as opiniões humanas preconcebidas (Idem, ibidem, p. 57).

Com isso, o filósofo francês tratou de eliminar os obstáculos que impediam a

construção desse edifício do conhecimento seguro e indubitável. Ao proceder assim,

Descartes não pretendia copiar o filósofo cético que duvida apenas por duvidar, mas alcançar

a certeza do conhecimento (LANDESMAN, 2006, p. 120). O conhecimento certo e

indubitável para Descartes devia ser entendido como algo que não fosse passível do mínimo

motivo de dúvida. Isso significa, portanto, que para o filósofo francês bastava um menor

motivo de dúvida para que se colocassem em dúvida as próprias certezas (SCRIBANO, 2007,

p. 30).

Este capítulo trata, em primeiro lugar, de analisar (A) os argumentos céticos

formulados por Descartes na Primeira Meditação; em segundo, apresentar (B) as críticas de

Wittgenstein ao ceticismo cartesiano em suas principais obras e, dessa forma, colocar o leitor

sintonizado com o que será o objeto de debate desta dissertação, a saber: o problema do

ceticismo acerca do mundo exterior a partir de uma leitura aprofundada do último trabalho de

Wittgenstein intitulado Da certeza.

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A. Os argumentos céticos na Primeira Meditação

Ao formular um conjunto de argumentos céticos fortes e poderosos sobre mundo

exterior, o filósofo Descartes chega à conclusão ao final da Primeira Meditação, de que não

podemos ter conhecimento sobre o mundo material ao nosso redor. Para isso, o filósofo

francês apresenta as seguintes razões para duvidar: (a.1) o argumento da ilusão dos sentidos;

(a.2) o argumento do sonho; (a.3) o argumento do Deus Enganador. Esses argumentos

formulados por Descartes obedecem a uma hierarquização quanto ao nível e ao alcance das

hipóteses céticas levantadas na Primeira Meditação (SMITH, 2000, p. 121).

Williges (2009, p. 20-27) nos apresenta quatro estágios de desenvolvimento dos

argumentos céticos cartesianos: (a) o primeiro diz respeito à confiabilidade das bases de

nossas crenças que são os cinco sentidos. Os sentidos, segundo Descartes, nos enganam e, por

isso, necessitam ser submetidos a exames para verificar o seu status epistêmico ou sua

legitimação acerca da existência do mundo exterior; (b) o segundo concerne à criação de um

cenário cético que possibilite a um sujeito epistêmico avaliar de uma só vez a confiabilidade

de suas opiniões fundadas nos sentidos; (c) o terceiro diz respeito à pergunta feita pelo sujeito

epistêmico sobre a suficiência de suas crenças. Assim, nesse estágio aparece pela primeira vez

a hipótese cética, como as hipóteses do sonho e do gênio maligno, tratadas por Descartes na

Primeira Meditação; (d) por fim, o quarto estágio concerne à revisão de crenças feita pelo

sujeito epistêmico e que se caracteriza como o estágio da descoberta. Esse estágio consiste em

reconhecer que um determinado conjunto de conhecimento tido como seguro mostra-se, por

meio de exame, inteiramente duvidoso.

a.1. O argumento da Ilusão dos sentidos

No início das Meditações Metafísicas, como parte do projeto de afastar a mente dos

sentidos, Descartes reflete sobre a confiabilidade de nossas percepções sensoriais. O filósofo

francês inicia a Primeira Meditação colocando em dúvida as suas crenças que recebera desde

sua infância. Para tanto, em primeiro lugar, ele considera que muitas dessas crenças formadas

a partir de seus primeiros anos de vida e consideradas como certas, não passavam de certezas

infundadas e que era preciso desvencilhar-se delas para estabelecer as bases sólidas e seguras

de um conhecimento infalível e indubitável. E essas bases sólidas constituiriam os

fundamentos do edifício do saber filosófico e científico (DESCARTES, 2005, p. 29).

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Descartes afirma na Primeira Meditação que ao atingir a sua maioridade achava-se

capacitado para executar tal empreendimento. Contudo, não era necessário que se examinasse

cada opinião em particular, o que levaria a um trabalho infinito, mas a totalidade de nossas

crenças para reduzir o número das falsas, e assim, preservarmos os fundamentos do edifício

na qual estão assentadas essas opiniões (p. 29-30).

O filósofo francês busca abordar, em seguida, os princípios sobre os quais as suas

antigas opiniões estavam alicerçadas. Essas opiniões foram apreendidas por meio dos sentidos

que nos enganam. Ora, se os sentidos nos enganaram algumas vezes no tocante às coisas

pouco sensíveis e mais distantes, não é prudente que confiemos neles (DESCARTES, 2005, p.

31). Conforme ressalta Williams:

Todos nós damos por certo que aprendemos o que acontece à nossa volta por meio

de nossos sentidos. Agora mesmo estou sentado em frente de uma mesa olhando

para um monitor de um computador. Como sei? Posso ver que estou. Mas como é

que nossos sentidos transmitem esse tipo de informação? A resposta pode ser que

eles produzem uma percepção consciente dos objetos e eventos que encontramos.

Somos os sujeitos de uma correnteza constante e mutável de experiência consciente:

visual, tátil, olfativa e assim por diante. Concebemos nossa experiência do mundo

como um produto final de uma cadeia de eventos bem complexa (WILLIAMS,

2008, p. 81-82).

Descartes compreende que a exigência de fundamentos seguros do conhecimento

humano acerca do mundo exterior tem como ponto de partida a análise e a avaliação da

confiabilidade de nosso conhecimento sensorial ou empírico (STROUD, 2003, p. 09). Uma

vez encontrado o princípio ou a fonte de nossas crenças, nesse caso, as perguntas que devem

ser feitas são: como podemos ter acesso aos tipos de conhecimentos que nos vêm destas

fontes? Qual é o grau de confiabilidade destas fontes? A nossa rede de crenças que nos vem

por meio dos sentidos nos garante a certeza do conhecimento?

Descartes era partidário da noção tradicional de que o conhecimento é crença

verdadeira justificada 16. Assim, por exemplo, se alguém disser para João que Teresina é

capital do Ceará, e João acreditar que Teresina seja capital do Ceará, João não sabe, porque

Teresina não é capital do Ceará. A sua crença, portanto, é falsa. Contudo, alguém poderá

perguntar para João como ele sabe. Uma das boas razões para João justificar a falsidade de

sua crença é recorrer à evidência dos sentidos. João irá examinar o mapa do Brasil e, assim,

16 A concepção tradicional de conhecimento como crença verdadeira justificada é amplamente discutida pela

epistemologia contemporânea. Segundo Luiz H. A. Dutra, os dois lugares clássicos dessa discussão são o

capítulo XII da obra de B. Russell, The Problem of Philosophy, publicada em 1912, e o artigo de E. Gettier, Is

Justified True Belief Knowledge?, publicado em 1963. Nesse artigo, Gettier provocou inúmeras reações entre

vários epistemólogos contemporâneos, marcando profundamente o debate epistemológico acerca do

conhecimento humano no século XX (DUTRA, 2001, p. 120).

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perceber que a sua crença não é verdadeira. Ele observa no mapa do Brasil que a cidade de

Teresina é capital do Piauí. Então a crença de João não tinha correspondência com a evidência

adequada de seus sentidos. Para a concepção tradicional de conhecimento, o conhecimento só

é produzido quando uma determinada evidência adequada é adicionada a uma opinião ou

crença verdadeira (CHISHOLM, 1974, p.18). Dessa forma, dizemos que uma pessoa sabe

alguma coisa quando: (a) ela crê no que diz ou pensa; (b) a sua crença tem que ser verdadeira;

(c) ela precisa justificar adequadamente a sua crença (SMITH, 2004, p. 11).

Para Descartes, porém, as evidências por si só não são suficientes para garantir a

certeza do conhecimento, e qualquer crença que seja colocada sob suspeita, ou seja, que tenha

alguma razão para duvidar dela, será suficiente para tomá-la como falsa, mesmo que o sujeito

tenha boas razões para acreditar naquilo que crê.

A análise cartesiana do conhecimento empírico parte da instituição de um cenário

cético, onde existe um sujeito epistêmico que busca examinar este cenário para determinar se

sabe o que supostamente afirma saber (WILLIGES, 2009, p. 17-19). Esse referido sujeito

busca estabelecer uma postura reflexiva numa perspectiva de primeira pessoa, isto é, o sujeito

volta-se para o self na forma de um self. O sujeito reflexivo em primeira pessoa é denominado

de sujeito de representação. Segundo o pensador americano Charles Taylor, na modernidade:

Temos de nos voltar para dentro de nós mesmos e tomar consciência de nossa

própria atividade e dos processos que nos constituem. Temos de assumir a

responsabilidade de construir nossa própria representação do mundo que, caso

contrário, é feita sem ordem e, consequentemente, sem ciência; temos de assumir a

responsabilidade pelos processos por meio dos quais associações formam e moldam

nosso caráter e nossa visão. O desprendimento requer que deixemos de viver simplesmente no corpo ou de acordo com nossas tradições ou hábitos e, ao torná-los

objetos para nós, submetamo-los a rigoroso exame e reforma (TAYLOR, 1997, p.

128).

A noção de um sujeito de representação, isto é, de um sujeito que constitui o

conhecimento do mundo, representou a grande virada da filosofia moderna. Smith observa,

portanto, que na Primeira Meditação de Descartes, o eu que duvida é o eu empírico que, a

certa altura de sua vida, resolve fazer a revisão de seus conhecimentos.

É um “eu” que teve infância, na qual recebeu uma série de opiniões, é um “eu” que está maduro para empreender uma crítica ferrenha daquilo que a infância tomou por

verdadeiro; é um “eu” que procura solidão e a tranquilidade para se dedicar com

maior afinco a esse empreendimento; é um “eu” que senta ao pé da lareira para

aquecer-se e dorme nu à noite debaixo de seu cobertor; é um “eu” que ainda disporá

de tempo para promover a ciência que pretende fundamentar de maneira definitiva e

absoluta. Só depois após a descoberta do cogito e de um mundo interior é que se

poderá falar propriamente da questão da existência do mundo exterior. Antes o

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cogito, tratava-se da existência do mundo, simplesmente e sem uma determinação

ou qualificação (SMITH, 2000, p. 111).

Nessa citação, percebemos que para Descartes, o ponto de partida para a nossa

atividade filosofante é o eu reflexivo em primeira, isto é, um eu constituído de um mundo

interior que tem primazia sobre o mundo exterior. Uma vez que o mundo interior, pelo

processo reflexivo em primeira pessoa, conhece o mundo exterior, assim, os cinco sentidos

que pertencem a esse mundo exterior, passam a ser vistas com desconfiança. E uma vez não

sendo confiáveis, os sentidos podem nos iludir.

É importante ressaltar que os argumentos céticos de Descartes obedecem a uma

hierarquia quanto ao alcance de sua radicalização, que vai do argumento da ilusão dos

sentidos ao argumento do Deus enganador. O argumento da ilusão dos sentidos, em

Descartes, tem um curto alcance, porque podemos distinguir facilmente as condições

favoráveis de percepção de condições desfavoráveis, sendo que as ilusões só aconteceriam nas

condições desfavoráveis (SMITH, 2000, p.117). Podemos citar como condições desfavoráveis

das percepções os seguintes exemplos: (a) um remo dentro d’água em movimento, que parece

quebrado; (b) uma parede branca atingida pela luz vermelha, que parece vermelha; (c) uma

torre quadra, que a certa distância, parece redonda. Em todos esses casos, o alcance da visão

humana é limitado. Assim, Smith observa que a ausência de um critério, que não seja ele

mesmo ilusório, limitaria o alcance do argumento dos sentidos.

No entanto, o argumento do sonho se acha livre desse limite, e essa ausência de

fronteira ou limite faz do argumento do sonho, um dos argumentos mais radicais de

Descartes.

a.2. O argumento do sonho

Na Primeira Meditação, Descartes observa que talvez tenha encontrado muitas outras

razões das quais não pudesse duvidar dos sentidos, como por exemplo, de que está sentado

próximo ao fogo, vestido com um roupão e com um papel entre as suas mãos. Nesse caso,

como poderia negar a existência de suas mãos e de seu corpo? A não ser que se compare com

os dementes, que asseguram constante serem reis, e na realidade são paupérrimos, ou que

estão vestidos de ouro e púrpura, e na realidade estão nus, ou ainda imaginam-se cântaros ou

ter um corpo de vidro. Essas pessoas, porém, são loucas e não seria menos extravagante se

alguém se deixasse guiar por seus exemplos (DESCARTES, 2005, p. 33).

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Com o argumento da loucura, o filósofo busca mostrar que numa estrutura de um

entendimento pré-filosófico existem algumas experiências sensoriais das quais seriam loucura

duvidar, isso porque estamos numa posição privilegiada para conhecer o mundo exterior

(LANDESMAN, 2006, p.128). Desse modo, uma vez não havendo nenhuma possibilidade

para erro, parece que o filósofo francês chegou a uma posição indubitável sobre o qual o

ceticismo seria refutado. Em seguida, Descartes avança mais em seu ceticismo, ao formular

um de seus argumentos mais forte e radical, a hipótese do Sonho:

Todavia, tenho de considerar aqui que sou homem e, por conseguinte, que costumo

dormir e representar-me em meus sonhos as mesmas coisas, ou algumas vezes

menos verossímeis, que aqueles insensatos quando estão em vigília. Quantas vezes

aconteceu-me sonhar, à noite, que estava neste lugar, vestido junto ao fogo, embora

estivesse todo nu em minha cama? Parece-me presentemente que não é com olhos

adormecidos que olho este papel, que esta cabeça que remexo não está dormente, que é com desígnio e propósito deliberado que estendo esta mão e que a sinto: o que

acontece no sono não parece tão claro nem tão distinto quanto tudo isto. Mas,

pensando nisso cuidadosamente, lembro-me de ter sido frequentemente enganado,

quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me nesse pensamento, vejo tão

manifestamente que não há indícios concludentes nem marcas bastante certas por

onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que fico muito espantado, e

meu espanto é tal que é quase capaz de persuadir-me de que durmo (DESCARTES,

2005, p. 33).

Assim, com argumento do sonho, a pretensão de Descartes era atacar as nossas

evidências sensíveis em condições epistemicamente ideais e ótimas (WILLIGES, 2009, p.

16). Nesse caso, podemos tomar como exemplo o calor que o filósofo francês sentia ao se

aquecer diante de uma lareira numa noite fria do inverno europeu, agasalhado num roupão e

com um papel entre as suas mãos. Essas sensações, Descartes também as sentia quando estava

em estado onírico. Nesse caso, qual será o marco ou sinal seguro entre o estado de vigília e o

estado de sonho? Não existe um limite ou um marco preciso entre o sonho e a vigília. É

exatamente essa falta de limite que permitirá ao cético cartesiano lançar uma dúvida radical

ou geral sobre as percepções.

O argumento do sonho tem provocado críticas consideráveis por parte alguns filósofos

contemporâneos. Esses pensadores têm buscado negar que a suposição de que se está

sonhando faça sentido; porque a própria capacidade humana de alimentar dúvidas, estando

consciente, já implica que não se está sonhando, mas acordado. O filósofo americano Norman

Malcolm, discípulo de Wittgenstein, por exemplo, ao analisar o argumento do sonho de

Descartes observa que “se uma pessoa afirma, duvida, pensa ou se interroga sobre se está

dormindo profundamente, então não está dormindo profundamente [...]. Se uma pessoa se

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encontrar em num estado qualquer de autoconsciência, acontece que não está dormindo”

(MALCOLM, apud COTTINGHAM, 1986, p. 53-54).

Para Norman Malcolm:

Uma dúvida para ser compreendida deve ser situada no contexto da vida corrente

onde se expressa numa determinada atitude: “[esta] dúvida se expressa em ações de

duvidar”. Também implica o conceito de prova na medida em que eu posso dar uma

razão por que penso que “aquilo é uma casa” se alguém me pede justificações

quanto à minha afirmação; no contexto de dúvida filosófica tenta-se valer o conceito

de conhecimento onde um conceito de prova não é com efeito operativo: só uma investigação pode resolver uma eventual questão relativa à existência ou não-

existência da casa: “Uma prova resulta de uma investigação. Se o contexto não

permite uma investigação, não permite tão pouco uma prova” (SUMARES, 1994, p.

24).

Na opinião de Malcolm, é necessário estabelecer três critérios para o uso correto de

uma proposição normal do tipo: “Eu sei que aquilo é uma casa”. Em primeiro lugar, (i) essa

frase deve envolver uma questão de “sim” ou “não” para a questão que trata da casa e um

esforço para solucionar a dúvida; em seguida, (ii) a pessoa que faz a afirmação deve dar

razões porque pensa que é uma casa; e, por fim, (iii) pode-se fazer uma investigação para

verificar se de fato é uma casa ou não, no caso de persistir a dúvida (SUMARES, 1994, p. 23).

Ao analisar o argumento do sonho de Descartes, Landesman (2002, p. 130-132)

apresenta algumas características que nos ajudam a compreender a estrutura desse tipo de

argumento: (i) pensamentos similares ocorrem quando as pessoas estão em estado de vigília e

em estado onírico; (ii) experiências como imagens de cores e formas, que ocorrem quando as

pessoas estão sonhando, têm os mesmos constituintes gerais das experiências sensíveis, no

momento em que estão acordadas; (iii) pensamentos que ocorrem com as pessoas durante o

sono são capazes de enganá-las, por isso, os sonhos não podem ser confiáveis; (iv) quando as

pessoas estão sonhando, geralmente elas não acreditam que estejam sonhando, ou ainda,

quando estão acordadas não acreditam que estejam sonhando, então é necessário identificar

algum sinal ou critério pelo qual os sonhos possam ser distinguidos na vida desperta das

pessoas, para que seus pensamentos oníricos possam ser identificados; (v) as experiências que

desencadeiam pensamento quando as pessoas estão acordadas, por exemplo, o gesto de

sacudir a cabeça ou de estender a mão, não significa, em si mesmo, sinal seguro de que as

pessoas estejam acordadas; por fim, (vi) não havendo um sinal seguro por meio do qual as

pessoas possam distinguir entre o estar em vigília e o estar adormecido e não tendo uma base

racional ou critérios para distinguir o estado de vigília do estado do sonho, então, é possível

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que qualquer um de seus pensamentos esteja equivocado, e qualquer uma de suas crenças a

respeito do mundo exterior esteja também equivocadas.

Na Primeira Meditação, a formulação cartesiana do argumento do sonho tem por

objetivo desafiar e atacar a justificação de nossas crenças sobre o mundo exterior. Se eu digo,

por exemplo, que “estou sentado diante da tela de um computador escrevendo sobre o

argumento do sonho de Descartes”, e diante da possibilidade cética de eu estar sonhando,

alguém poderia me perguntar pelas razões que justificam a minha crença. Com isso, na

perspectiva de Descartes, a possibilidade de eu estar sonhando constitui uma alternativa cética

relevante que ataca a minha justificação doxástica de que estou diante da tela de um notebook

digitando esse argumento. Sendo assim, enquanto essa possibilidade cética do sonho não for

afastada, a minha justificação doxástica, portanto, torna-se vulnerável frente ao ataque do

cético, pois para Descartes qualquer possibilidade de dúvida, por menor que seja ela frente à

justificação de nossas crenças e opiniões, já é suficiente para torná-las em questão falsa

(WILLIGES, 2009, p. 18-19).

a.3. O argumento do Deus Enganador

Descartes inicia o seu argumento do Deus enganador afirmando que não teria como

levantar qualquer suspeita de falsidade ou incerteza com relação à verdade da geometria e da

aritmética, assim como de outras ciências da mesma natureza, que tratam de coisas simples e

gerais, pois o conhecimento das operações matemáticas é tão claro e simples que, seja em

estado de vigília ou em estado onírico, a soma de dois mais três sempre será cinco e o

quadrado nunca terá mais do que quatro lados.

Em seguida, o filósofo francês levanta algumas interrogações céticas: quem poderá me

garantir que um Deus todo poderoso não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum

céu, nenhum corpo, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar, e que não obstante

me faça que eu tenha sentimentos de todas essas coisas, e que isso não me pareça existir de

modo diferente do que o vejo? Pode esse Deus querer que eu me engane sempre quando faço

a adição de dois mais três ou quando enumero os lados de um quadrado? (DESCARTES,

2005, p. 35).

Neste ponto é possível perceber a diferença fundamental entre o argumento do Deus

enganador do argumento do sonho. O argumento do sonho atinge apenas a evidência de coisas

compostas, deixando intocadas as ciências que trabalham com coisas simples e gerais, como a

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geometria e a aritmética. Smith (2000, p. 122) ressalta que essa tarefa, portanto, cabe ao

argumento do Deus enganador e a hipótese do Gênio maligno.

Ora, como é possível estar enganado acerca das operações matemáticas, uma vez que

as ciências da matemática se constituem como formas de saber onde não há espaço para

contradição e indubitabilidade de seus resultados? Para Scribano (2007, p. 37), é importante

observar, no entanto, que a razão humana é incapaz de conceber a falsidade daquilo que

implica não-contradição, como os entes matemáticos, por exemplo. Quer esteja acordado ou

dormindo, a soma de dois mais três sempre será cinco. Nesse sentido, as verdades da

matemática dependem unicamente das leis que regem o raciocínio e o pensamento. Contudo,

ao buscar colocar em dúvida as operações matemáticas, ou seja, àquelas ciências que têm por

objeto o fundamento racional, Descartes atingiu os limites últimos do pensável, pois só seria

possível duvidar dessas proposições saindo da própria da razão.

Segundo Descartes, o único ente que a razão julga em condição de ir além dela mesma

é o Deus onipotente, criador de todas as coisas e da própria faculdade da razão. Scribano

observa ainda que o argumento de um Deus todo poderoso, capaz de enganar o ser humano

acerca dos entes matemáticos, representa a grande novidade do ceticismo cartesiano na

filosofia moderna. Já que para o ceticismo antigo era até possível duvidar da experiência

sensível, da existência dos objetos exteriores e da semelhança deles com as sensações, mas

era inconcebível duvidar das operações matemáticas (p. 38).

Para Scribano (2007, p. 40), o projeto fundacional da ciência moderna em Descartes

começa justamente no momento em que o filósofo francês coloca à prova a indubitabilidade

da geometria e da aritmética, porque as razões que colocam em dúvida a confiabilidade da

razão são mais poderosas que a própria hipótese de um Deus enganador. Desse modo, a

dúvida contra a qual deve ser combatida diz respeito à possibilidade daquilo que a razão não

consegue duvidar, por exemplo, as equações matemáticas. Negar a indubitabilidade das

ciências matemáticas significa negar a própria capacidade da razão de não poder levantar

dúvidas acerca das proposições analiticamente verdadeiras.

Em seguida, Descartes introduz a hipótese de uma divindade menor denominada

Gênio maligno:

Suporei, pois, que há um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte de verdade, mas

que certo gênio maligno, não menos astuto e enganador que o poderoso, que

empregou toda sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as

cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos não passam de

ilusões e enganos. Considerai a mim mesmo como não tendo mãos, nem olhos, nem

carne, nem sangue, como não tendo nenhum sentido, mas crendo falsamente, ter

todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se,

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por esse meio, não está em meu poder alcançar o conhecimento de alguma verdade,

pelo menos está em meu poder suspender meu juízo (DESCARTES, 2005, p. 38).

Assim, o filósofo Descartes resumiu todas as razões e os motivos precedentes

alimentos pela dúvida cética sobre a existência do mundo exterior. O gênio maligno

representa um artifício psicológico, uma ilusão metafísica criada pelo filósofo para radicalizar

a dubitabilidade das crenças humanas acerca do mundo exterior. Dessa maneira, Descartes

busca atacar as nossas crenças ordinárias fundadas nos sentidos. Nesse sentido, Scribano

observa que a dúvida cética cartesiana, derivada da hipótese do gênio maligno, servirá como

um contrapeso à tendência espontânea que tem o ser humano de se acomodar frente às suas

opiniões preconcebidas (SCRIBANO, 2007, p. 45).

Por fim, ao concluir a Primeira Meditação, Descartes se compara a um escravo que

sonha com sua própria liberdade e teme despertar-se de suas ilusões agradáveis cultivadas

durante o sonho. Do mesmo modo, porém, o filósofo francês receava acordar de seu sono,

temendo que o estado de vigília, em vez de lhe trazer alguma luz para o conhecimento, não

fosse suficiente para esclarecer as dúvidas lhe foram levantadas durante o sono.

Em seguida, Descartes inicia a sua Segunda Meditação afirmando que as dúvidas que

lhe ocuparam o seu espírito eram tão grandes que ele não sabia como dirimi-las. É como se de

repente tivesse caído em águas profundas de um rio e não conseguisse tocar com os seus pés o

fundo desse rio e nem chegar até a sua superfície a nado (DESCARTES, 2005, p. 39-41).

Ao aprofundarmos em nossa reflexão sobre o ceticismo metodológico de Descartes,

notamos que o filósofo, na Segunda Meditação, depois de lutar muito para se salvar das

incertezas causadas pela dúvida radical, ele atinge a superfície do rio a nado, e com isso,

consegue chegar até a sua margem e se agarrar à “rocha firme do infalibilismo”. Essa “rocha”

representa, pois, a certeza do cogito, o ponto arquimediano, o ponto seguro, no qual

conhecimento humano deve se sustentar.

B. Críticas de Wittgenstein ao ceticismo filosófico

Wittgenstein representa um dos maiores críticos ao ceticismo filosófico na filosofia

contemporânea, e notadamente ao ceticismo cartesiano. Nas principais obras do filósofo

austríaco como: (b.1) no Tractatus Logico-philosophicus; (b.2) nas Investigações Filosóficas

e (b.3) em Da Certeza, é possível observar vários elementos dessa crítica.

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b.1. No Tractatus Logico-philosophicus

Comecemos por examinar as críticas de Wittgenstein dirigidas ao ceticismo filosófico

no Tractatus Logico-philosophicus.

O ceticismo não é irrefutável, mas manifestamente um contrassenso, se pretende

duvidar onde não se pode perguntar.

Pois só pode existir dúvida onde existir uma resposta; e esta só onde algo possa ser

dito (6.51).

Nesse aforismo, Wittgenstein se volta contra a postura humeana de Bertrand Russell

que afirma que o ceticismo é “irrefutável do ponto de vista lógico” e “estéril do ponto de vista

prático”. Com isso, o filósofo austríaco realça no Tratactus a sua postura anticética ao dizer

que “o ceticismo não é irrefutável, mas manifestamente um contrassenso” (GLOCK, 1998, p.

79). Embora as críticas de Wittgenstein ao ceticismo sejam dirigidas a Russell, elas se

aplicam também ao ceticismo cartesiano, porque para o filósofo austríaco só pode existir

dúvidas onde houver questões para duvidar; e só podem existir questões para duvidar onde

houver respostas; e respostas onde algo possa ser dito. Sendo assim, é possível concluir que

para Wittgenstein o conjunto de argumentos céticos cartesianos como as hipóteses do sonho e

do gênio maligno, formuladas na Primeira Meditação, além de não dizer nada sobre o mundo

representa, acima de tudo, um absurdo.

Wittgenstein salienta, ao finalizar o aforismo 6.51, que só é possível existir resposta

onde “algo possa ser dito”. O que significa para o pensador vienense “algo que possa ser

dito”? Para esclarecer esse ponto é importante distinguir o significado dos verbos em alemão

dizer (Sagen) e mostrar (Zeigen). O que pode ser dito representa as proposições das ciências

da natureza (TLP, 6.522), e o indizível significa o místico, isto é, o que se mostra ao ser

humano.

Com isso, mesmo que as ciências tenham obtido respostas para todas as questões

científicas possíveis, os problemas da existência humana não serão sequer tocados (6.52), isso

porque essas questões são de ordem ética, estética, religiosa e metafísica. Por se tratar do

universo místico do ser humano, Wittgenstein trata de esclarecer no aforismo (6.521), que

aquelas pessoas que vivenciaram longas dúvidas em suas vidas, e quando o sentido da

existência torna-se claro para elas, não são capazes de dizer em que consiste esse sentido.

Com isso, o filósofo finaliza o Tractatus com a seguinte afirmação, “o que se não pode falar,

deve se calar” (7).

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b.2. Nas Investigações Filosóficas

Nas Investigações Filosóficas, as reflexões filosóficas de Wittgenstein que ajudaram a

inspirar os argumentos anticéticos contra o ceticismo cartesiano têm como “pano de fundo” as

críticas do pensador vienense à noção cartesiana de uma linguagem privada, isto é, à ideia de

que por meio de processos mentais internos ao ser humano, é possível saber, infalivelmente,

como as coisas se apresentam a nós.

O que acontece então com a linguagem que descreve minhas vivências interiores e que só eu mesmo posso entender? Como designo minhas sensações com palavras? –

Como de costume? As palavras de minhas expressões naturais de minhas sensações?

– Neste caso, minha linguagem não é ‘privada’. Uma outra pessoa seria capaz de

compreendê-la como eu. – E se eu não tiver expressões naturais da sensação, mas

somente às sensações e emprego estes nomes numa descrição (PI, § 256).

Assim, as nossas sensações interiores, embora subjetivas podem ser compreendidas e

descritas, porque são expressões naturais de nossas sensações internas designadas por

palavras e que são produzidas pelo processo social de aprendizagem. Dessa forma, a

linguagem das aparências subjetivas é tributária de uma linguagem dos objetos e qualidades

perceptuais. Nós aprendemos primeiramente o sentido de está chovendo para, posteriormente,

aprendermos o significado subjetivo da sentença, parece-me que está chovendo. Assim, o

sentido de está chovendo é pressuposto da sentença subjetiva parece-me que está chovendo

(GLOCK, 1998, p.79).

O leitor pode estar se perguntando o que isso tem a ver com o ceticismo cartesiano?

Ora, se para Descartes as experiências interiores do ser humano são resultados de processos

internos de uma mente separada do mundo, isso desembocará, então, a uma espécie de

linguagem privada, ou melhor, a um solipsismo linguístico e, dessa forma, esse mesmo ser

humano não poderia conhecer outras mentes. Melhor dizendo, a pessoa não poderia inferir a

partir de manifestações exteriores, como gestos e palavras, o que se passa em outras mentes,

como por exemplo, a sensação de ‘dor de dente’, e isso conduziria, então, a uma dúvida

universal acerca do mundo externo.

É contra o solipsismo cartesiano que Wittgenstein se volta nas Investigações

Filosóficas. Segundo o filósofo, por meio de observações exteriores, o ser humano é capaz de

interpretar e compreender as sensações interiores de outras mentes. Para ele, uma criança que

está aprendendo a falar, por exemplo, “aprende o uso das palavras “estar com dores” e

também aprende a simular dores. Isso faz parte do jogo de linguagem que ela aprende” (RPP,

§ 142). Wittgenstein caracteriza como expressões da esfera do mental, os gestos e as

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manifestações de emoção como gritos, sorrisos ou caretas. Essas vivências psicológicas,

interiores dos seres humanos, são socialmente partilhadas em atitudes e palavras no seio de

uma comunidade linguística17. No parágrafo 257 das Investigações, Wittgenstein nos

esclarece esse ponto:

Como seria se os homens não exteriozassem suas dores (não gemessem, não

contraíssem o rosto.)? Então não poderíamos ensinar a uma criança o uso da

expressão ‘dor de dente’.” – Suponhamos que a criança seja um gênio e invente por

si mesma um nome para esta sensação! – Mas então ela poderia, certamente, fazer-se

entender com esta palavra. – Portanto, ela entende o nome, mas não é capaz de

explicar seu significado a alguém? – Mas o que significa que alguém ‘deu

significado a alguém ‘deu nome à sua dor’? – Como fez isto: dar nome à dor?! E,

independente do que fez, que finalidade tem isto? – Quando se diz “Ele deu nome a

sensação”, esquece-se que muita coisa já tem que estar preparada na linguagem para que o simples dar nome tenha um sentido. E quando dizemos que alguém dá nome à

dor, então a coisa preparada é aqui a gramática da palavra “dor”; ela mostra o lugar

onde nova palavra se coloca (PI § 257).

Wittgenstein nos propõe contra a dúvida universal cartesiana, um modo de filosofar

experimental. O que se entende por experimental são todas as experiências humanas

partilhadas socialmente na linguagem. Com isso, seríamos então “incapazes de duvidar

mesmo em questões que se pode imaginar que poderiam comportar-se de modo bem diverso

do que pensamos poder pensar” (KELLER, 2009, p. 104).

No parágrafo 420 das Investigações, Wittgenstein mostra que é possível imaginar ou

pensar sozinho, isolado num quarto, o absurdo e o sem sentido (Unisinn). Por exemplo,

imaginar que pessoas que estão à nossa volta sejam meros robôs, destituídas de consciência.

Todavia, em se tratando de nossas experiências ordinárias, como sair à rua de uma cidade e

observar o comportamento das pessoas que dirigem sua atenção para o semáforo ao atravessar

a faixa de pedestre ou ainda quando ficam atentas à espera do transporte coletivo, diante

disso, afirma o filósofo, admitir que as pessoas sejam autômatos e destituídas de consciência é

totalmente sem sentido.

Para Wittgenstein, a filosofia é muito mais do que pura atividade especulativa. Ela

representa uma atitude, uma prática de vida. Com isso, o filósofo nos interpela a deixar de

lado o nosso pensamento e a observar para os diversos usos dos jogos de linguagem (PI § 66),

isso porque os problemas filosóficos derivam do mau uso desses jogos linguísticos. Para ele,

17 A esse respeito Arley Moreno observa que para Wittgenstein não existe em relação aos estados psicológicos,

nenhuma técnica epistêmica privilegiada que dominamos, mas apenas técnicas comuns e públicas de nomeação,

de comportamentos originários e naturais das sensações e emoções: aprendemos palavras que substituem tais

comportamentos. Não temos qualquer acesso imediato e privilegiado às sensações e emoções, como se fossem

qualidades únicas. Nesse caso somos obrigados a passar pelo aprendizado de palavras e por seus usos em jogos

de linguagem. Sendo assim, ainda que as minhas dores sejam minhas, exclusivamente minhas, o acesso a elas é

público, não privado (MORENO, 2010, p. 28).

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os problemas filosóficos são produtos inadequados da linguagem e, ao permanecer confinado

às questões conceituais da filosofia e metafísicas, o filósofo, por meio de suas investigações

filosóficas não obterão um novo e mais profundo conhecimento das coisas (SMITH, 2000, p.

205).

Qual será então o papel da atividade filosofante para Wittgenstein? Tal atividade,

nesse caso, consiste numa luta contra o “enfeitiçamento” de nosso entendimento (PI § 109).

Mediante isso, a tarefa da filosofia é terapêutica, isto é, consiste em curar a linguagem

humana das doenças produzidas pela especulação filosófica e metafísica que busca por trás

das palavras essências. E o filósofo, nesse caso, trata reconduzir as palavras de seu emprego

metafísico para o seu emprego ordinário (§ 116). Conforme observa Smith, para Wittgenstein,

fazer filosofia significa dominar uma técnica.

Essa habilidade é, como todas as outras, “muito difícil de adquirir”. Para isso, diz Wittgenstein, não basta assistir aulas de filosofia18, mas a discussão é indispensável.

Tal como o médico, o filósofo deve aprender uma técnica, deve adquirir uma

habilidade para curar; assim como o médico deve diagnosticar a causa verdadeira e

receitar o remédio apropriado, Wittgenstein deve investigar que erro gramatical está

na origem de determinada ilusão filosófica, bem como o modo de fazer o filósofo

abandonar o seu jeito particular de falar (SMITH, 2000, p. 206).

Essa técnica consiste em diagnosticar os problemas filosóficos na linguagem e, desse

modo, dissolvê-los. Com isso, por se tratar de um problema filosófico e, por conseguinte, uma

doença da linguagem, o ceticismo cartesiano presente na Primeira Meditação deve ser objeto

de uma análise terapêutica por parte da filosofia. Nesse sentido, Smith observa:

Para Wittgenstein, a exclusão da dúvida está enraizada na gramática e não na

natureza daquilo que é tido como certo; por exemplo, nada é considerado como uma

dúvida sobre nossos estados internos: não tem sentido dizer “eu posso ter dores, não

estou seguro”. Assim, o cético permaneceria preso à concepção tradicional da

filosofia, pois atribuiria a impossibilidade de duvidar a propriedade intrínseca do

fenômeno, quando, de fato, a ausência de sentido dessa dúvida repousa na nossa

linguagem (SMITH, 2000, p. 223).

É no solo da gramática, com suas regras, que os seres humanos atuam e constroem

discursos com sentido. O cético cartesiano, porém, não levando em conta que a dúvida radical

repousa na linguagem, condição de sentido para construir discursos com sentido, acaba caindo

em contradição. Com isso, a dúvida universal cartesiana, para Wittgenstein, é muito mais do

que um mero erro, porque um erro é passível de ser corrigido, pois, quando alguém, por

exemplo, comete um erro existe uma causa e um fundamento, e para corrigi-lo, basta inserir a

18 Negrito nosso.

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pessoa naquilo que ela sabe corretamente (OC § 74). A dúvida cartesiana, por sua vez,

aparece para o filósofo como um sintoma de perturbação do espírito que beira à loucura, na

medida em que o filósofo cético busca colocar em dúvida proposições que empregamos na

linguagem ordinária. É como alguém que duvida de seu próprio nome, do endereço de sua

residência e do número de seu telefone.

b.3. Em Da Certeza

Em Da Certeza, encontram-se as discussões mais substanciais de Wittgenstein que

envolvem o ceticismo cartesiano. O Da Certeza inspira-se na defesa do senso comum feita

pelo filósofo britânico George Edward Moore19. Segundo Moore, existem verdades empíricas

que podemos saber com certeza, como por exemplo: (i) “A Terra existiu muito antes do meu

nascimento”, ou ainda; (ii) “Eis aqui uma de minhas mãos e eis aqui a outra”. Nessa segunda

proposição, segundo o pensador britânico, existem pelo menos duas coisas que não podemos

duvidar: as minhas duas mãos. Essas certezas do senso comum, denominadas truísmos, se

constituem provas rigorosas da existência do mundo externo (GLOCK, 1998, p. 180).

Wittgenstein, por sua vez, admite que com relação aos truísmos do senso comum, de

fato Moore tem certeza. O filósofo austríaco nega, contudo, que Moore saiba com base nessas

proposições. Wittgenstein rejeita também a pretensão do filósofo inglês de ter provado a

preposição filosófica de que “Há objetos físicos”.

Para Wittgenstein, não é dessa forma que Moore deve responder ao filósofo cético

idealista, porque o que o idealista está questionando é todo o jogo de linguagem do discurso

sobre objetos físicos. Ao alegar, portanto, que “Aqui há duas mãos”, Moore está supondo um

quadro conceitual que o cético cartesiano trata de combater. O cético cartesiano considera que

provar ou não que objetos físicos existem não altera em nada o curso de nossa experiência

ordinária.

Nessa luta entre o cético idealista, de um lado, representada por Descartes; e o

anticético realista, de outro, representada por Moore, o que está em jogo são dois tipos de

dúvidas: a dúvida prática, presente em nossa vida ordinária, e a dúvida idealista, de caráter

filosófico, levantada por Descartes na Primeira Meditação. No que diz respeito à dúvida

prática, o homem realista e o idealista estão em pleno acordo. Nesse caso, não haveria

19 Sobre a discussão de Moore em defesa do senso comum, ver capítulo III.

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discordância entre Moore e o filósofo idealista com relação à proposição, “Eis aqui uma de

minhas mãos e eis aqui a outra”. O grande equívoco do pensador britânico, segundo

Wittgenstein, foi tratar o idealista como um louco e não compreender a sua pergunta, que

seria mais ou menos assim: “com que direito eu não posso duvidar da existência de minhas

mãos?” (OC § 24).

Dessa forma, a resposta de Moore não podia ser tentando provar que as minhas mãos

existem, porque o que há além da disputa entre idealista e realista é um tipo racionalidade

interna à nossa vida prática. E as tentativas do filósofo idealista de buscar instituir uma forma

de racionalidade dogmática e metafísica que transcenda a esfera prática da vida humana não

passam de ilusões e, ao proceder assim, o filósofo idealista não está questionando a sua

própria dúvida. Do mesmo modo, com respeito a Moore, é possível dizer que o filósofo inglês

concede aos truísmos do senso comum um caráter metafísico e dogmático, quando se busca

atribuir, por exemplo, à expressão “eu sei” importância que não comporta em nossa

linguagem ordinária (SMITH, 2000, p. 251).

O que temos de considerar, acima de tudo, é que as discussões que envolvem realistas

e idealistas se instalam num “terreno” pré-filosófico ou metafisicamente neutro. E esse

“campo neutro” é a linguagem humana com suas regras gramaticais (Idem, p. 299). Na

opinião de Condé (2004, p.155), “da gramática e das interações dos jogos de linguagem em

uma forma de vida” emerge um novo tipo de racionalidade frente à crise da razão moderna.

Essa concepção de racionalidade que se depreende da filosofia da linguagem de

Wittgenstein está assentada em algumas características centrais, das quais destaco

quatro, embora elas estejam extremamente imbricadas: 1 – o abandono de uma

perspectiva semântica em função de uma predominantemente pragmática; 2 – uma

dimensão holista, embora não totalizante e não hierárquica, caracterizada pela sua

peculiar concepção de “sistema”; 3 – sua postura antiessencialista e

antifundacionista, possibilitada pela noção de “semelhanças de família”; 4 – o papel

da análise na gramática (CONDÉ, 2004, p. 153).

Com isso, a dúvida cética só faz sentido dentro de um jogo de linguagem com suas

regras gramaticais que demarcam os limites da própria dúvida e que orientam o uso de

expressões envolvidas dentro desse jogo. Segundo Wittgenstein, o significado de uma palavra

é um gênero de utilização desta em nossa linguagem (OC § 61). E é no fundo dos jogos de

linguagem que repousam o nosso atuar (§ 204). E isso só é possível

[...] na medida em que esse atuar é um atuar no jogo de linguagem aberto a

inúmeros outros jogos, o nosso julgar, e os critérios para fazê-lo, se estabelecem a

partir das regras que regem esses vários jogos, isto é, da gramática de uma forma de vida. Assim, dizer que a racionalidade se constitui numa em uma forma de vida é,

entre outras coisas, observar que nossos critérios de julgamento, elaborados a partir

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do nosso atuar (S.C. § 232), não constituem na singularidade de apenas “uma” regra

para “um” jogo de linguagem (I.F § 199), mas a partir do conjunto das regras que

compõem a gramática (CONDÉ, 2004, p. 155).

Por isso, é necessário entrar no jogo de linguagem do cético cartesiano para poder

dirimir a sua dúvida universal, porque o seu jogo de linguagem não é o nosso (OC § 255). É

preciso, portanto, mostrar ao filósofo cético que ele faz uma imagem falsa de sua dúvida (§

249). Wittgenstein toma como exemplo o estudante que se recusa a acreditar que uma dada

montanha tenha estado num determinado lugar desde tempos memoráveis (§ 322). O que

fazer diante desta situação? Segundo o pensador austríaco, devemos mostrar para o aluno que

seria insensato acreditar em tal coisa, porque toda dúvida racional deve ser fundamentada em

razões. E não há razão para se acreditar nisso (§ 323).

Nesse aforismo, é possível notar que para Wittgenstein a dúvida filosófica parece não

ter nenhuma razão de ser, porque “isso só pode ser decidido em função das crenças que

recebemos ou da imagem de mundo que temos, pois é contra essas crenças que se levantam

nossas dúvidas” (SMITH, 2000, p. 233). Nesse sentido, de acordo com Wittgenstein, uma

criança só aprende a duvidar depois que aprendeu com o adulto a crer. É dessa forma,

portanto, que a dúvida vem depois da crença (OC § 160).

Por fim, a crítica mais forte de Wittgenstein ao ceticismo cartesiano está presente no

último aforismo do Da Certeza. Essa crítica como podemos observar é notadamente dirigida

ao argumento do sonho de Descartes.

Mas, mesmo se nestes casos eu não posso estar enganado, não será possível que

esteja drogado? Se estiver e se a droga me tornou inconsciente, então realmente não

estou a falar e a pensar. Não posso supor que estou a sonhar neste momento.

Alguém que disser “estou a sonhar”, mesmo se disser audivelmente, ao fazê-lo, não

mais razão do que disser “está a chover”, quando chove realmente, mesmo se o seu

sonho estiver, na verdade, ligado ao ruído da chuva (OC § 676).

Nesse aforismo, Wittgenstein critica o fato de Descartes não levar em conta uma

consciência enquanto sonha. Segundo o pensador austríaco, toda atividade do pensamento

humano está ligada à possibilidade de exteriorização desses mesmos pensamentos e, além

disso, todo discurso linguístico pressupõe sentido. Nesse caso, não haveria razões para

alguém dizer durante o sonho: Estou sonhando, mesmo que o diga de forma audível. É como

se essa pessoa dissesse está chovendo, enquanto de fato chove, mesmo que o seu sonho

estivesse efetivamente associado ao barulho da chuva, isto porque não há uma consciência

que possibilite construir um discurso com sentido, e Descartes, portanto, ao elaborar a

hipótese cética do sonho, pressupõe um discurso com sentido.

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No aforismo 383, Wittgenstein explicita melhor o seu ataque ao argumento do sonho:

“O argumento “Posso estar a sonhar” é um absurdo por este motivo: se estou a sonhar, esta

observação também é um sonho – e, na verdade, também é sonho que estas palavras tenham

qualquer significado” (§ 383).

O que Wittgenstein está dizendo com isso? Para ele, o argumento do sonho é um

absurdo porque qualquer afirmação pressupõe consciência e discurso com sentido. O que não

acontece, portanto, no caso de uma pessoa que está em estado onírico. Uma pessoa que está

sonhando não está consciente, e se não está em estado consciência, não pode proferir

discursos com sentido. No caso do argumento do sonho de Descartes, a sua própria

observação de que está sonhando será sonho e suas palavras proferidas com sentido será

também um sonho. Com isso, o argumento do sonho de Descartes destrói-se a si mesmo. É

como o se próprio cético serrasse o galho em que está se apoiando. Dessa forma, Wittgenstein

busca, então, dissolver o discurso cético pela via do sentido do uso linguagem e da

consciência.

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III – PROPOSTAS ANTICÉTICAS DE MOORE EM DEFESA DO SENSO

COMUM

Nas Meditações Metafísicas, Descartes defende a primazia do mundo interior sobre o

mundo exterior, e dessa maneira assume uma postura internalista do conhecimento. Para um

filósofo internalista como Descartes, o conhecimento humano é resultado do trabalho interno

da mente de um sujeito que exige um nível elevado de justificação racional. Isso não significa

dizer, porém, que o filósofo francês tenha negado o mundo exterior. O que ele enfatiza,

portanto, é que esse mesmo mundo exterior não é apenas um “dado” do qual tudo se parte,

mas que toda a sua evidência está radicada no cogito, ou melhor, no espaço privilegiado da

mente, o lugar da representação do mundo exterior. Descartes reconhece, com isso, que esse

mesmo mundo exterior deva ser colocado entre “parêntese” a fim de ser posteriormente

justificado (MORA, 1998, p. 346).

Embora reconheça o trabalho interno da mente humana no processo de produção do

conhecimento (SPANIOL, 1989, p. 24-29), o filósofo britânico George Edward Moore,

contemporâneo de Wittgenstein na Universidade de Cambridge, defende uma posição

externalista do conhecimento20. Para um filósofo externalista como Moore, o mundo exterior

constitui fonte confiável de conhecimento na medida em que garante ao senso comum a

certeza absoluta da existência da matéria. Dessa forma, o filósofo britânico sustenta que não

há nenhuma razão para supor que algum objeto físico lógica ou causalmente seja dependente

de algum fato mental como faz o cético idealista (MOORE,1989a, p. 258).

Ao defender o esquema conceitual do senso comum contra o idealismo e o ceticismo

filosófico, Moore busca restaurar a ontologia que fora negada a esse mesmo senso comum.

Para isso, em sua iniciativa de provar que podemos saber com certeza que objetos físicos

existem, o filósofo britânico se volta contra o idealismo de Berkeley21.

Em Problemas fundamentais da filosofia, Moore rebate a postura idealista de

Berkeley:

20 Moore é definido como externalista na medida em que o filósofo compartilha com o homem comum a ideia de

que o mundo exterior constitui mecanismo causal de formação de crenças verdadeiras. Para o projeto

externalista de conhecimento, o processo de formação de crenças não se trata de um processo de conhecimento a

priori nem de mecanismos de introspecção da mente humana, mas pertence, acima de tudo, a um tipo de relação contingente causal entre a própria pessoa e seu ambiente circundante (SOSA, 2008, p. 236-370). 21 George Berkeley em seu Terceiro diálogo entre Hylas e Philonous evidencia a sua postura idealista: “[...]

Madeira, pedras, fogo, água, carne, ferro e coisas parecidas, as quais nomeio e sobre as quais converso, são as

coisas que conheço. E não as teria conhecido se não as tivesse percebido por meio de meus sentidos; e as coisas

percebidas pelos sentidos são imediatamente percebidas, e as coisas imediatamente percebidas são ideias; e

ideias não podem existir fora da mente; a sua existência, portanto, consiste em ser percebidas. Quando, então,

elas são realmente percebidas, não pode haver dúvida quanto à sua existência” (BERKELEY, 2010, p. 206).

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Ele [Berkeley] diz que não está negando a existência da matéria, mas apenas

explicando o que a matéria é. Porém, é comumente considerado, em minha opinião,

com acerto, que ele tenha negado a existência da matéria. Pois ele afirmou que essas

Aparências não existem exceto no momento em que as vemos; e qualquer coisa para

qual isso seja verdadeiro não pode, certamente, ser considerada objeto material: o

que pretendemos afirmar, quando declaramos a existência de objetos materiais, é

certamente a existência de algo que continua a existir mesmo quando não estamos

conscientes deles [...]. Acho que pode ser dito com bastante justiça que Berkeley

nega a existência de qualquer objeto material, no sentido em que o senso comum afirma a existência (MOORE, 1953, p. 34-35 apud LANDESMAN, 2006, p. 159).

No ensaio Prova de um mundo exterior, o filósofo britânico realça a sua posição em

defesa da existência da matéria independente da mente. Para ele, uma coisa para “estar no

espaço” necessita: (i) existir exatamente no momento, sem ser percebida; (iii) existir noutro

momento, sem ser percebida; (iii) e durante todo período de sua existência, pode existir em

qualquer tempo (MOORE, 1989b, p. 283). Na opinião de Moore, Berkeley, mesmo não tendo,

talvez, a pretensão de ser idealista, porém, ao negar a existência de objetos materiais

independentes de serem percebidos pela mente humana, ele acabou desembocando numa

espécie de idealismo dogmático.

Além de uma forte posição contrária ao idealismo berkeliano, Moore era também um

crítico do ceticismo filosófico. Embora não seja visível que o ceticismo filosófico fosse o alvo

direto de suas críticas em Uma defesa do senso comum e em Provas do mundo exterior;

podemos deduzir, porém, que o filósofo britânico, em sua tentava de provar a existência do

mundo exterior, a questão do ceticismo está inextricavelmente ligada ao tecido de seu

argumento.

Retomemos aqui à estrutura argumentativa da hipótese cética cartesiana:

(A) Eu não sei que não estou dormindo.

(B) Se eu não sei que não estou dormindo, segue-se que eu não sei que estou de pé.

(C) Portanto, eu não sei que estou de pé.

No ensaio de 1941, intitulado Certeza, Moore desafia o argumento do sonho da

seguinte forma:

Eu concordo, portanto, com a parte desse argumento que afirma que eu não sei que

não estou agora dormindo, segue-se que não sei que estou de pé, mesmo que esteja realmente de pé e penso que estou. Mas essa primeira parte do argumento é uma

faca de dois gumes. Pois se é verdadeira, segue-se também que é verdadeiro que se

eu não sei que estou de pé, então sei que não estou dormindo. Eu posso, portanto

argumentar: “uma vez que estou de pé, segue-se que eu sei que não estou dormindo,

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assim como meu oponente pode argumentar: Uma vez que você não está dormindo,

segue-se que você não sabe que está de pé”. Um argumento é tão bom quanto o

outro, a menos que o meu possa dar razões melhores para afirmar que não sei que

não estou dormindo do que eu posso dar para afirmar que sei que estou de pé

(MOORE, p. 114, apud SMITH, 2004, p. 59-61).

Nessa passagem, Moore mostra que o argumento cético e o argumento do senso

comum, embora opostos em suas estruturas argumentativas, são válidos do ponto de vista

lógico, isso porque as verdades de suas premissas implicam as verdades de suas conclusões.

Em seguida, o filósofo desafia o argumento do sonho proposto pelo cético em modus tollens.

Ele concorda com a 2ª premissa do argumento cético, mas ao invés de concordar com o cético

de que “ele não sabe que está de pé”, Moore se agarra logo à posição de que “Se ele sabe que

está de pé, segue-se que ele sabe que não está dormindo”. Assim, o cético argumenta: 1; 2,

então C., Moore, por sua vez, argumenta: 2; não-C; logo, não-1.

A estrutura do argumento de Moore é assim formulada:

(A) Eu sei que estou de pé.

(B) Se eu sei estou de pé, segue-se que eu sei que não estou dormindo.

(C) Portanto, eu sei que não estou dormindo.

Com isso, Moore chega à conclusão de que podemos conhecer muitas coisas a cerca

do mundo exterior, e assim, o filósofo busca defender o nosso conhecimento cotidiano diante

do desafio do cético. Se a estratégia anticética mooreana, porém, responde a esse desafio é o

que pretendemos tratar nesse capítulo. Para isso, discutiremos, em primeiro lugar, os dois

ensaios de Moore: (A) Uma defesa do senso comum e Prova de um mundo exterior; em

seguida, trataremos da relação entre Moore e Wittgenstein, e (B) da crítica do pensador

austríaco às proposições mooreanas.

A. Senso comum e Filosofia

Na filosofia moderna, o projeto cartesiano presente nas Meditações Metafísicas, tratou

de submeter o senso comum a um questionamento plausível. Kant partilha também dessa

posição cartesiana. Sendo um tipo de conhecimento dogmático, afirma o filósofo alemão:

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Recorrer ao senso comum quando o discernimento e a ciência falham, e não antes –

esta é uma das descobertas mais sutis dos tempos modernos, por meio da qual o

arengador mais superficial pode entrar com segurança nas liças com o pensador mais

completo e manter a sua posição. Porém, enquanto persistir uma partícula de

discernimento, ninguém pensaria em recorrer a esse subterfúgio. Visto sob uma luz

clara, isso não passa de recurso à opinião da multidão, de cujo aplauso o filósofo se

engendra, enquanto o charlatão popular nele se glorifica e confia (KANT, 1783, p. 5

apud LANDESMAN, 2006, p. 24).

Embora a visão de mundo do senso comum tenha sido objeto de críticas por um

número considerável de filósofos ao longo de toda tradição filosófica ocidental, alguns

pensadores, no entanto, reconhecem que tais conceitos são indispensáveis para a construção

do conhecimento humano. Para esse grupo de filósofos não importa quais mudanças ocorram

no conhecimento humano sobre o mundo exterior, mas a visão de mundo do senso comum

continuará enraizada em nossos esforços em descrever, compreender e interpretar as

experiências humanas e, dessa maneira, pensar o mundo como contendo ocorrências reais

dessa visão de mundo (LANDESMAN, 2006, p. 146).

O caso do filósofo cínico Diógenes de Sinope, ilustra bem esse interesse dos filósofos

pelos conceitos do senso comum. Conforme relata Diógenes Laércio em sua obra Vidas dos

Filósofos, “quando alguém declarava não existir movimento, ele [Diógenes] se levantava e

caminhava” (DIÓGENES LAÉRCIO, 1991, II, p. 41 apud LANDESMAN, 2006, p. 147).

Dessa maneira, Diógenes de Sinope buscava restaurar a ontologia que fora negada ao senso

comum e, com isso, provar a existência do movimento da matéria a um algum filósofo que

nega ou parece negar esse fato.

Foi com o filósofo escocês Thomas Reid (1710-1796), que a questão do senso comum

ganha relevância no debate filosófico contemporâneo. Em suas duas obras Uma investigação

da mente humana e Ensaios sobre as faculdades da mente humana, o filósofo se volta contra

a lógica dos argumentos céticos encontrados em Sexto Empírico e Descartes, que leva,

segundo ele, a conclusões niilistas extremadas. Reid trata, portanto, de superar a lógica niilista

do ceticismo filosófico recorrendo ao esquema conceitual do senso comum. Segundo o

filósofo escocês, o ceticismo global representa um absurdo pelo simples fato de violar as

crenças ordinárias que fazem parte deste referido esquema conceitual. Para isso deveríamos,

então, rejeitar a teoria das ideias e teoria representacionista do conhecimento que dão suporte

ao ceticismo global (LANDESMAN, 2006, p. 23).

No século XX, o recurso ao senso comum como antídoto contra o idealismo e o

ceticismo global, especialmente contra o ceticismo cartesiano, ganha força maior ainda no

pensamento de Moore.

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a.1. Moore e o recurso ao senso comum

O homem comum vive num mundo rodeado de coisas e de outros seres humanos. A

partir de sua interação direta e familiar com os objetos físicos num mundo partilhado por

outras mentes, o homem comum conhece muitas coisas e, dessa maneira, forma a sua visão de

mundo, a sua imagem de mundo22.

Moore, desde o início de sua carreira filosófica, demonstrou um grande apreço e

admiração pelo senso comum. Em Uma defesa do senso comum, o filósofo buscou esclarecer

a sua posição filosófica: “penso que se deveria expressá-lo que sou um desses filósofos que

sustentaram que a visão do mundo Senso Comum é, em certas características fundamentais,

totalmente verdadeiras” (MOORE, 1989a, p. 253). O que é que o Moore entende por senso

comum aparece explícito na citação a seguir:

As frases “visão do mundo do Senso Comum” ou “crenças do Senso Comum”

(usadas pelos filósofos) são extraordinariamente vagas; e, de tudo que sei, podem

existir muitas proposições que se podem chamar apropriadamente características da

“visão do mundo do Senso Comum”, ou das crenças do Senso Comum, que não são verdadeiras, e que merecem ser mencionadas com desprezo com que alguns

filósofos falam das “crenças do Senso Comum”. Mas falar com desprezo daquelas

“crenças do Senso Comum” que mencionei é certamente o máximo do absurdo. E

há, obviamente, grande número de outras características na “visão do Senso

Comum” que, se aquelas são verdades também: por exemplo, que viveram sobre a

superfície da terra não apenas seres humanos, mas também muitas espécies

diferentes de plantas e de animais, etc, etc (MOORE, 1989a, p. 253).

Aqui, podemos observar o descontentamento de Moore com o grupo de filósofos que

desprezam a visão do senso comum. Quem são esses filósofos? O alvo de Moore em seu

ensaio Uma defesa do senso comum são, sem sombras de dúvidas, os filósofos idealistas. Para

Moore, negar a visão do senso comum, além de ser contraintuitivo representa um absurdo.

Significa, portanto, negar o óbvio. Significa negar, por exemplo, que “estou diante da tela de

um computador digitando esse texto nesse momento”. Negar isso, na opinião do filósofo

britânico, significa negar o “movimento” e a “matéria”, ou seja, negar as nossas certezas mais

óbvias.

Nesse sentido, Moore nos apresenta em seu ensaio Uma defesa do senso comum, um

conjunto de truísmos óbvios ou proposições do senso comum sobre os objetos do mundo

22 A esse respeito, há um artigo interessante de Linda Zagzebski intitulado O que é conhecimento?. Nesse artigo,

Zagzebski distingue duas formas de conhecimento: uma de forma direta chamado conhecimento por

familiaridade (acquaintance). Esse tipo de conhecimento deriva de nosso contato cognitivo com a realidade. E

uma vez que aquilo que o sujeito conhece é uma proposição verdadeira sobre o mundo, a outra forma de

conhecimento, portanto, é denominado conhecimento proposicional (ZAGZEBSKI, 2008, p. 153-190).

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exterior que nos dão a garantia de que podemos saber com certeza que são verdadeiras. Ele

divide essas proposições em dois tipos: o primeiro trata-se de uma extensa lista de

proposições, cada uma das quais sei com certeza ser verdadeira; o segundo refere-se ao

truísmo simples, que depende dessa referida lista de truísmos. Em primeiro lugar,

apresentaremos (1) uma seleção da lista de truísmos; em seguida, (2) o truísmo simples.

Existe presentemente um corpo humano vivo, que é meu corpo. Este corpo nasceu

há algum tempo no passado, e existiu continuamente desde então, embora não sem

sofrer mudanças; ele, por exemplo, muito menor quando nasceu, e durante algum

tempo posterior foi menor do que é agora. Desde que nasceu sempre esteve em

contato com a superfície da terra ou não longe dela; e, em todo momento desde que

nasceu, existiram também muitas outras coisas, possuidoras de forma e tamanho em

três dimensões [...]. Entre as coisas que, neste sentido, fizeram parte de seu ambiente (isto é, estiveram em contato com ele ou a alguma distância dele, por maior que seja

essa distância), existiu, a todo momento desde o seu nascimento, um grande número

de outros corpos humanos vivos, cada um dos quais, como ele, (a) nasceu em algum

tempo, (b) continuou a existir durante algum tempo após o nascimento, (c) esteve,

em todo momento de sua vida após o nascimento, em contato com a superfície da

terra ou não muito longe dela; e muitos desses corpos já morreram e deixaram de

existir. Mas a terra existiu também por muitos anos antes que meu corpo nascesse; e,

por muito desses anos, também por muitos anos que meu corpo nascesse; e, por

muitos desses anos, também, em todo momento, grande número de corpos humanos

estiveram vivos sobre ela; e muitos desses corpos morreram e deixaram de existir

antes que meu corpo nascesse. Finalmente (para chegar a uma classe diferentes de

proposições), sou um ser humano, e tive, em tempos diferentes desde que meu corpo nasceu, muitas experiências diferentes de cada uma de muitas espécies diferentes:

por exemplo, percebi frequentemente meu corpo e outras coisas que faziam parte de

seu ambiente, incluindo-se também outros corpos humanos; [...] (MOORE, 1989a,

p. 243-44).

Segundo Moore, há um tipo de truísmo simples tipo (2) implicado à lista de sentenças

óbvias tipo (1), sem o qual não é possível pensar e estar consciente do presente, do passado ou

mesmo cultivar expectativas com relação ao futuro, e assim muitas outras crenças tanto

verdadeiras como falsas.

Em outras palavras, o que (2) afirma é somente (o que parece ser um truísmo

bastante obvio) que cada um de nós (significando-se por “nós” muitos seres

humanos da classe definida) frequentemente soube, com relação a si próprio ou a

seu corpo e ao tempo em que o sabia, tudo o que, ao escrever minha lista de

proposições em (1), eu afirmava saber sobre mim próprio ou meu corpo e do tempo

em escrevi aquela proposição, isto é, exatamente como eu sabia (quando escrevi que

“existe presentemente um corpo vivo que é meu corpo”, cada um de nós sabia

frequentemente com relação a si próprio e a algum outro a proposição diferente mas correspondente, que ele poderia então expressar apropriadamente por “existe

presentemente um corpo que é meu corpo”; exatamente como eu sei que “muitos

corpos humanos diferentes do meu viveram antes do momento atual na terra”, assim

cada um de nós frequentemente soube a proposição diferente mas correspondente

“muitos corpos humanos diferentes do meu viveram antes do momento atual na

terra; exatamente como eu que muitos seres humanos diferentes de mim próprio

perceberam, sonharam e sentiram antes do momento atual”, assim cada um de nós

soube frequentemente a proposição diferente mas correspondente “muitos seres

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humanos diferentes de mim mesmo perceberam, sonharam e sentiram antes do

momento atual”; e assim por diante, no caso de cada uma das proposições

enumeradas em (1) (MOORE, 1989a, p. 245).

Com isso, Moore busca mostrar para os filósofos idealistas, que a posição defendida

por eles contra a visão do senso comum, além de absurda é contraditória. Os filósofos

idealistas sustentam que os truísmos óbvios do senso comum são verdadeiros na medida em

que expressam alguma coisa na qual acreditam realmente. Contudo, esses mesmos filósofos,

acreditam que por expressarem o uso ordinário do senso comum, esses truísmos incorporam

algum erro. Para eles, o que essas sentenças expressam é questão de fé e não de conhecimento.

Eles acreditam que existem e existiram no passado muitos seres humanos que compartilham

dessas mesmas crenças, contudo, não podemos saber que são verdadeiras. Diante disso,

Moore considera que o argumento apresentado pelo idealista é contraditório, porque o fato de

o idealista cético negar que ele próprio tenha esse conhecimento, não prova que ele não tenha

conhecimento, assim como alguém pode não saber algo que acredita saber (LANDESMAN,

2006, p. 151).

Ora, como não acreditar que sentenças ordinárias como: sou um ser humano que tenho

um corpo ou a terra existiu há anos no passado são verdadeiras? É um absurdo. Diante dessas

sentenças não há ambiguidades. Elas são claras em seus significados. Se existir, portanto,

algum filósofo ou ser humano que se enquadra nessa classe de sentenças, todo resto que se

afirma é verdadeiro. E se existir algum filósofo que afirma que nenhuma proposição do senso

comum é verdadeira, prova que nenhum filósofo jamais existiu. Com isso, Moore busca

mostrar para o filósofo idealista que sua afirmação é contraditória, ou seja, que a negação das

verdades do senso comum põe em contradição quem a faz (MOSER; DWAYNE; MULDER;

TROUT, 2009, p. 173).

Em Uma defesa do senso comum, Moore critica também a posição do filósofo idealista

que defende a ideia de que de os fatos físicos são logicamente dependentes dos fatos mentais

ou ainda que os fatos físicos sejam causalmente dependentes de algum fato mental, “no

sentido em que a proposição “o que estou vendo agora” implica a proposição “estou

consciente agora” (MOORE, 1989a, p.257). Ele afirma:

O fato de aquela cornija de lareira estar atualmente mais próximo de meu corpo que

daquela estante de livros, não é como acabei de explicar, até onde posso ver

logicamente dependente de qualquer fato mental, poderia ter sido fato, mesmo se não estivesse existido fatos mentais (MOORE, 1989a, p. 258).

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Moore deixa claro nessa citação que ele está discordando do idealismo de Berkeley,

que afirma que as coisas são “ideias” ou que um fato físico é logicamente dependente de um

fato mental. Ao combater o idealismo de Berkeley, o filósofo britânico realça a sua posição

realista afirmando que as “coisas materiais são reais”, o “tempo é real”, o “ego é real”.

A posição realista de Moore em defesa do senso comum é interessante na medida em

o filósofo situa o conhecimento humano fora da mente, ou seja, no mundo exterior compostos

por corpos e de pessoas que interagem entre si. Em outros termos, o filósofo situa o

conhecimento humano num mundo natural, cujas pessoas compartilham por meio da

linguagem uma visão de mundo, uma mesma forma de vida. Dessa forma, podemos afirmar

que o realismo do senso comum mooreano é mais conforme a vida cotidiana, e parece ser uma

posição epistemológica mais interessante que o internalismo cartesiano.

A posição internalista defendida pelo idealismo, ao contrário, concebe a mente

humana, isolada no mundo, como sendo responsável por resolver os problemas que envolvem

o mundo exterior e outras mentes. Com isso, o mundo interior, ou seja, o mundo mental passa

a ter primazia sobre o mundo exterior. Desse modo, o internalismo introduziu uma separação

entre o mundo mental e o mundo exterior. Ora, essa posição defendida por Descartes levaria

ao solipsismo metodológico. E isso significaria um absurdo, porque se imaginarmos uma

mente isolada do mundo exterior e de outras mentes que interagem entre si, não podemos

atribuir-lhe sensações e menos ainda pensamentos, pois não existe pensamento isolado do

mundo, isto é, pensamos com os outros no mundo. Assim, a posição tradicional internalista

desembocaria, inevitavelmente, no ceticismo sobre o mundo exterior.

O pensamento só pode ser entendido num mundo natural e social, no qual os seres

humanos mantêm relações intersubjetivas. Tais relações têm como base a linguagem formada

a partir de impressões causadas pelo contato humano com os objetos exteriores. É desse

modo, que entendemos a linguagem como constitutiva das formas de vida humana e,

consequentemente, de imagens de mundo.

Em seguida, trataremos de apresentar o outro ensaio de Moore, Prova de um mundo

exterior, em sua tentativa de provar contra o cético idealista a existência do mundo exterior.

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a.2. Prova de um mundo exterior

Moore inicia o seu ensaio escrito em 1939, Prova de um mundo exterior, com a

citação do prefácio da segunda edição da Crítica da razão pura de Kant, traduzida pelo

professor Norman Kemp Smith23:

Ainda permanece um escândalo para a filosofia [...] que a existência de coisas

exteriores a nós [...] devam ser aceitas simplesmente como artigos de fé, e que, se

alguém acha bom duvidar de sua existência, somos incapazes de enfrentar suas

dúvidas com qualquer prova satisfatória (KANT, apud MOORE, 1989b, p. 277).

Com essa citação do prefácio da Crítica da razão pura, o filósofo britânico chama a

nossa atenção para o termo “escândalo” usado por Kant. Ele afirma que se o filósofo alemão

não considerasse ser tão importante assim dar uma prova da existência do “mundo exterior”,

não teria considerado escândalo o fato da filosofia não ter apresentado nenhuma prova

satisfatória até então. Diante disso, Kant considerava que seria tarefa importante para a

filosofia apresentar tal prova. Com isso, Moore se propõe a discutir nesse ensaio algum tipo

de prova da “existência do mundo exterior”.

Para isso, em primeiro lugar, o filósofo inglês busca analisar a expressão “coisas

exteriores a nós”. Essa expressão parece não ser perfeitamente clara para Moore, e por isso

considera interessante, ao invés de usar “coisas exteriores a nós”, usar simplesmente “coisas

exteriores”. O problema é que ao longo da tradição filosófica ocidental três expressões, a

saber; “coisas exteriores”, “coisas exteriores a nós” e “coisas exteriores a nossa mente” foram

usadas como equivalentes entre si, sem a devida preocupação de esclarecer o significado de

cada uma delas. Com isso, longe de ser a expressão perfeitamente mais clara, Moore

considera o uso “coisas exteriores a nossa mente”, como o mais apropriado (p. 278-79).

Em seguida, o filósofo britânico apresenta uma lista de coisas que considera exteriores

a nossa mente, “no sentido transcendental kantiano de que “as coisas que se devem encontrar

no espaço” englobam não somente os objetos da experiência real, mas também da experiência

possível”” (MOORE, 1989b, p. 284).

Meu corpo, os corpos de outros homens, os corpos dos animais, as plantas de todas

as espécies, a pedras, as montanhas, o sol, a lua, as estrelas e os planetas, as casas e

outras construções, os artigos manufaturados de todos os tipos – as cadeiras, as mesas, as folhas de papel, etc., são todos eles “coisas que se devem encontrar no

23 O filósofo escocês N.K Smith ganhou notoriedade graças à excelente tradução para a língua inglesa da Crítica

da razão pura de Kant. Essa tradução era a mais usada pelos professores nas universidades inglesas. Ver.

SMITH, N. K. Disponível em: <http://www.scottishphilosophy.org/normankempsmith.html>. Acesso em: 20

Jan. 2011.

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espaço”. Resumindo, todas as coisas do tipo que os filósofos se habituam a chamar

de “objetos físicos”, “coisas materiais” ou “corpos” estão, obviamente, enquadrados

neste item (MOORE, 1989b, p. 279).

Moore está trabalhando em Prova de um mundo exterior com duas categorias

metafísicas: uma mental e outra física. Ele está tentando estabelecer um limite exato entre

elas. Assim, dizer que algo é físico significa afirmar que algo é no mínimo localizável. Moore

busca também incluir as “sombras” entre os objetos que devem ser encontrados no espaço. As

sombras, para o filósofo britânico, existem independentes de serem percebidas pela mente

humana. Nesse sentido, é importante destacar a diferença entre Moore e os demais filósofos.

Os filósofos normalmente concebem objetos físicos como possuindo três dimensões, ou

melhor, que contêm massa, que se deslocam e que ocupam certa posição no espaço ao mesmo

tempo. Para Moore, ao contrário, um fenômeno físico pode ter duas dimensões, ou seja, pode

ser localizado num dado espaço sem se deslocar ou ocupar alguma parte nesse mesmo espaço.

As sombras, por exemplo, têm duas dimensões. Elas podem ser localizadas na mesma parte de

um espaço, numa mesma extensão ocupada por uma parede, por exemplo. Dessa maneira, as

sombras têm existência no espaço sem substituir o espaço (STROLL, 1994, p. 74-75).

Em seguida, Moore apresenta algumas experiências psicológicas que existem em

nossa mente e que podem levar as pessoas a acreditarem que as “coisas podem ser

encontradas no espaço”, mas que na realidade não passam de experiências subjetivas ou

psicológicas. O filósofo toma como exemplo, o experimento em psicologia, que alguns

psicólogos denominam imagem-posterior-negativa ou sensação-posterior-negativa. De

acordo com esse experimento, após olharmos firmemente para uma mancha branca numa base

preta e ao voltarmos os nossos olhos para um fundo branco, veremos uma mancha cinza, e

qualquer pessoa que realizar individualmente esse experimento terá a mesma sensação. Desse

modo, “seria um absurdo supor que duas pessoas diferentes sempre podem ver a exatamente a

mesma imagem-posterior no mesmo momento, pois se y está na mente de y, então seria um

absurdo supor que algum outro y perceba x”.

Esse princípio de mooreano é denominado Princípio de Privacidade (PP), e ao

formulá-lo, o filósofo britânico estava pensando na Lei de Leibniz que diz o seguinte: “x não

pode numericamente ser identificado com y e que, portanto, seria impossível ou inconcebível

que duas pessoas sentissem numericamente a mesma dor ou a percebessem a mesma imagem-

posterior”. De acordo com Stroll, para Moore, além do Princípio de Privacidade existe

também o Princípio de Dependência (DP), que diz o seguinte: “é autocontraditório supor que

se x está na mente de y, x existe ao mesmo tempo quando y não está tendo experiência”. Desse

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modo, é autocontraditório supor, por exemplo, que uma imagem-particular ou uma dor que

está na mente de y possa existir quando y não está consciente, sonhando ou tendo certo tipo de

experiência visual (STROLL, 1994, p. 61-69).

De acordo Moore, seria normal dizer que a imagem-posterior se “apresenta no

espaço”, e seria errôneo afirmar que ela se “encontra no espaço”, porque o que se “encontra

no espaço” é alguma coisa que um homem pode perceber num dado momento no espaço e

que deve ser também percebida por outras pessoas. Moore nos apresenta outros exemplos de

experimentos psicológicos que podem ser inseridos entre aqueles que podem se

“apresentarem no espaço”. Ele cita o caso da dor. Quando uma pessoa sente uma dor de

dente, por exemplo, ela a sente em uma região particular de seu maxilar ou em um dente

particular; ou ainda, quando alguém perde uma perna em um acidente ou em uma cirurgia,

essa pessoa pode sentir dor no pé ou em alguma outra região do membro amputado como se

não tivesse o perdido. Dessa maneira, então, Moore afirma que é natural entender a expressão

“apresentada no espaço”, e seria estranho, porém, dizer que as dores devem “ser encontradas

no espaço”.

O que Moore quer dizer com isso? É que as sensações privadas como a sensação dor e

as fantasias criadas pela mente individual de uma pessoa não podem ser compartilhadas por

outras mentes. Já os corpos materiais, por sua vez, podem ser compartilhados por outras

mentes. Eles “existem no espaço”, independente da mente humana. Stroll (1994, p. 68-69)

sugere, nesse sentido, que para Moore a diferença entre um cachorro de estimação e uma dor

é que duas pessoas podem ver o cachorro de estimação ao mesmo tempo e, no entanto,

somente uma pessoa pode sentir uma dor específica.

Podemos citar ainda outros exemplos, como o caso de uma pessoa que diz que está

sendo perseguida por uma “serpente venenosa”. Assim, na perspectiva de Moore, o animal

“cobra venenosa” presente na mente da pessoa alucinada, existe somente na mente dela e,

portanto, trata-se de uma “coisa que se apresenta no espaço”. Já o animal “cobra venenosa”

existe independente de ser percebida pela mente humana e, portanto, trata-se de “coisa que se

encontra no espaço”. Com isso, Moore conclui afirmando que “do fato de que uma “coisa” se

apresentar no espaço não segue de modo algum que deva encontrá-la no espaço [...] e do fato

de que se deve encontrar uma “coisa” no “espaço” não se segue de modo algum que ela deva

ser apresentada no espaço” (MOORE, 1989b, p. 283). Em outras palavras, do fato de existir

“coisas exteriores a nossa mente”, não significa que sejam percebidas por nós; e do fato de

existir “coisas em nossa mente”, não significa que as coisas existam de fato.

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Com relação às “coisas encontradas no espaço”, e que existem independentes de serem

percebidas pelos seres humanos, podemos citar alguns exemplos: (a) espécies de animais

desconhecidas, que existem no planeta e que ainda não foram catalogadas pela Biologia,

porque ainda não foram descobertas pelo ser humano; (b) planetas e estrelas que são

encontradas no espaço sideral, mas que ainda não foram descobertos pela Astronomia; (c)

minerais preciosos, que existem em nosso subsolo ou nas águas profundas dos oceanos e que

ainda não foram descobertos, como o caso da recente da descoberta de petróleo abaixo da

camada do pré-sal, nas profundezas do Oceano Atlântico do litoral brasileiro. Nesse sentido,

na perspectiva mooreana, não haverá nenhuma contradição em dizer que o petróleo

encontrado abaixo da camada do pré-sal existiu antes de ser percebido e continuará a existir se

deixar de mesmo se não for percebido pelos seres humanos.

Com esses exemplos, segundo Moore, é possível provar a existência de “objetos

físicos” exteriores a nossa mente, independentes de serem percebidos por nós. Assim, é

possível entender também o sentido kantiano de que “as coisas encontradas no espaço”

englobam não somente os objetos da experiência real, mas também da experiência possível.

Ao comentar esse princípio de Moore, Stroll (1994, p. 69) observa que existe uma

dificuldade imediata na compreensão de tal princípio mooreano inspirado em Leibniz, de que

se x e y existem em diferentes lugares, x não está identificado com y. Esse princípio, segundo

Stroll, pode ser aplicado nos casos dos fenômenos psíquicos. Contudo, se considerado no

sentido geral, o referido princípio não é verdadeiro, porque é claramente possível perceber a

existência de universais, tais como cor ou certos tipos de substancias disseminados, por

exemplo. Esses universais podem existir em mais de um lugar ao mesmo tempo sem serem

dois objetos.

Moore desenvolve, em seguida, a conhecida prova da existência do mundo exterior

que ele considera ser a prova mais rigorosa e perfeita em defesa do senso comum. Todavia,

negar essa prova, segundo o pensador britânico, como se propõe o filósofo idealista, significa

um absurdo, um contrassenso.

Parece-me que, longe de esta opinião ser verdadeira, como Kant a declara ser, que

há somente uma prova possível da existência de coisas exteriores a nós, a saber a

prova que ele apresentou, posso agora apresentar um grande número de provas

diferentes, cada uma das quais é uma prova perfeitamente rigorosa; e que em muitos

outros tempos estive em uma posição de dar muitas outras. Posso provar agora, por

exemplo, que duas mãos humanas existem. Como? Segurando minhas duas mãos e

dizendo, à medida que faço um certo gesto com a mão direita, “ aqui está uma mão”,

e acrescentando, à medida que um certo gesto com a mão esquerda, “e aqui está a

outra”. E se, fazendo isto, provei ipso facto a existência de coisas exteriores, todos

nós veremos que posso também fazê-lo de várias outras maneiras: não existe

nenhuma necessidade de multiplicar os exemplos (MOORE, 1989b, p. 292).

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Para isso, segundo Moore, é necessário que três condições sejam satisfeitas: (a) que a

premissa “aqui há uma mão e aqui há outra” seja diferente da conclusão, “duas mãos humanas

existem neste momento”; (b) que a premissa seja de fato aquilo que se expressa no momento

da prova. Por exemplo, Moore expressa, combinado com gestos no momento da prova, que

“aqui há uma mão e aqui há outra”; (c) que a conclusão siga da premissa. Sendo assim, é tão

certo que se “aqui há mão e aqui há”, então, segue-se que há duas mãos humanas agora, ou

melhor, que coisas exteriores existem neste momento (Idem, ibidem).

Em seguida, Moore trata de remover a ideia kantiana de que permanece um escândalo

para a filosofia o fato não ter provado a existência de objetos exteriores a nossa mente no

passado. Para isso, o filósofo busca apresentar a prova de que objetos exteriores à nossa

mente existiram também no passado: “Posso dizer: “eu mantive minhas mãos sobre esta

escrivaninha há muito tempo; portanto pelo menos dois objetos exteriores existiram durante

algum tempo no passado” (MOORE, 1989b, p. 293).

Há indícios nos textos de Moore de que a sua prova seja constituída de duas

conclusões distintas24:

Premissa: Esta é uma mão e esta é outra.

(1) Primeira conclusão: Duas mãos existem neste momento.

(2) Segunda conclusão: Dois objetos exteriores existem neste momento.

O objetivo de Moore, na maior parte do ensaio Prova de um mundo exterior, é buscar

explicitar como obter a última conclusão a partir da primeira. Esta prova mooreana não é uma

prova formal, cuja conclusão decorre das premissas de acordo com as regras da lógica formal.

O que Moore pretendia mostrar com sua prova é que ela representa um conjunto de sentenças

com valor epistêmico. Sendo assim, é possível afirmar que Moore conhece de fato a verdade

de suas proposições. E a razão pela qual seria um absurdo negar que ele conhece a verdade

das mesmas é o fato de ele estar de pé diante de uma plateia mostrando suas mãos à vista de

todos e que ninguém poderia negar isso ou deixar de vê-la. Desse modo, por se tratar de um

mecanismo causal formação de crenças verdadeira que tem como fonte o mundo exterior, essa

prova não será somente bem fundamentada, mas também justificada, isto é, tratava-se de

prova epistemicamente sólida (LANDESMAN, 2006, p. 161-180).

24 Landesman chama essa prova mooreana de prova P (LANDESMAN, 2006, p. 156).

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A partir desta prova é importante observar que é óbvio que a premissa leva à primeira

conclusão, não é óbvio, porém, que a primeira conclusão acarrete a segunda. Uma vez que a

prova mooreana não produz uma manifestação efetiva quanto à existência das coisas

exteriores à mente humana e sim uma manifestação das próprias coisas, isso nos leva a

indagar se de fato a prova de Moore tinha como alvo o ceticismo filosófico. Na opinião de

Tomas Baldwin, essa prova mooreana não é uma refutação do ceticismo, nem pretendia ser.

Ela pretendia ser uma refutação do idealismo, e como tal, podemos observar que foi um

fracasso total (BALDWIN, 1990, p. 225 apud LANDESMAN, 2006, p. 159-161).

Em seu ensaio Certeza, dedicado ao problema do ceticismo filosófico, Moore concluiu

afirmando que a prova de que ele não esteja sonhando, reside no fato de dispor da

“combinação da memória das experiências do passado imediato com suas experiências

sensoriais presentes”. E isso pode ser suficiente para saber que ele não está sonhando.

Contudo, se o filósofo cético disser para Moore que isso não é suficiente para saber que ele

não está sonhando e oferecer algum contra-argumento como prova, o filósofo britânico afirma

que não vê como negar que não seja possível saber com certeza que ele não está sonhando. E

alguma razão pode ser dada para dizer que isso é logicamente possível: “Eu sei que estou de

pé de pé e, portanto, sei que não estou sonhando” (MOORE, 2003, p. 31-32).

Com isso, será que Moore consegue refutar o ceticismo sobre o mundo exterior? E de

que forma um filósofo cético reagiria perante os argumentos de Moore contra o ceticismo

filosófico? Ora, é próprio do ceticismo filosófico pensar as experiências humanas com o

mundo exterior como derivadas do mundo interior. Assim, para o cético, não podemos

encontrar nas aparências mesmas das coisas do mundo exterior critérios para distinguir o

sonho da realidade. Ele afirma que o fato de algo parecer como evidente para Moore como

sendo “duas mãos” não implica que seja realmente “duas mãos”, ou melhor, não é razão

suficiente para o filósofo provar a existência do mundo exterior. Com isso, a inferência da

prova mooreana pareceria aos olhos do cético idealista como frágil para se constituir como

conhecimento (LANDESMAN, 2006, p. 189-190).

Para o cético, diante das crenças do senso comum que se apresentam como pré-

filosóficas e pré-científicas, não é possível verificar a confiabilidade das mesmas. Mediante

isso, esse referido sistema de crenças não pode ser justificado e menos ainda se constituir

conhecimento.

Moore foi contemporâneo de Wittgenstein na Universidade de Cambridge, e os dois

filósofos nutriram grande amizade e respeito mútuo. Porém, em se tratando de atividade

filosófica, havia entre eles divergências profundas. Nas seções a seguir trataremos da relação

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entre Moore e Wittgenstein, assim como crítica do pensador austríaco aos argumentos

apresentados por Moore em seus dois ensaios: Uma defesa do senso comum e Prova de um

mundo exterior.

a.3. Moore e Wittgenstein

Wittgenstein teve uma estreita relação de amizade com Moore; primeiro, ainda como

estudante, e depois como professor na Universidade de Cambridge. Em 1912, quando iniciou

os seus estudos em Cambridge, Wittgenstein frequentou as conferências de Moore sobre

psicologia. Russell era um grande admirador de Moore devido à postura do pensador britânico

contrária ao idealismo e de sua defesa intransigente do realismo. E foi o próprio Russell quem

apresentou o jovem Wittgenstein a Moore. Nessa ocasião, o filósofo britânico era sem dúvida

o pensador mais influente de Cambridge. Ele deu contribuições importantes para o debate

filosófico contemporâneo sobre certeza e ceticismo, linguagem, lógica e ética. Dizem que

durante a participação das aulas de Moore, o jovem Wittgenstein era o único a olhá-lo

enigmaticamente. Por isso, o filósofo britânico ficou logo fascinado pelo jovem estudante

vienense25.

Em 1914, Wittgenstein se exilou numa pequena aldeia ao norte de Bergen, na

Noruega, para estudar lógica, e convidou Moore para visitá-lo, a fim debater algumas teses

filosóficas defendidas por Russell e Frege. Nessa época, dizem que enquanto Wittgenstein

falava e ditava, Moore escutava e fazia algumas anotações sobre as soluções encontradas por

Wittgenstein para os problemas filosóficos apresentados por Russell, como a questão da

distinção entre os verbos em alemão dizer e mostrar (SUMARES, 1994, p.12-13).

A primeira obra de filosofia de Wittgenstein, o Tractatus, foi apresentada em 1921

com o título original em alemão Logisch-philosophische Abhandlung. Moore sugeriu, no

entanto, que o filósofo austríaco adotasse um título latino à sua obra, Tractatus Logico-

philosophicus, em alusão ao Tractatus Theologico-politicus do filósofo Baruch Spinoza.

Dessa forma, contra a sugestão de Russell que propôs um título inglês Philosophical Logic,

venceu a sugestão de Moore. O filósofo britânico participou também em 1929 da banca

25 Mais tarde Moore escreveu: “Eu logo senti que ele era muito mais talentoso para a filosofia do que eu, e não

apenas mais talentoso, mas também muito mais profundo e possuidor de percepção muito mais aguda para o tipo

de investigação que era a que mais importava e que valia a pena fazer, assim como para o melhor método de

realizá-la” (MOORE apud EDMONDS; EIDINOW, 2003, p. 71-72).

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examinadora do doutorado de Wittgenstein em Cambridge, cuja tese apresentada foi

justamente o Tractatus26.

Por fim, é importante salientar que Wittgenstein nutria um profundo respeito e

admiração pessoal por Moore. O pensador austríaco admirava os valores cultivados pelo

filósofo britânico como: a vitalidade intelectual, o amor pela verdade e a ausência de vaidade.

Já com relação à filosofia de Moore, no entanto, não era possível fazer o mesmo juízo de

valor. Wittgenstein considerava Moore uma prova viva de como alguém podia ir tão longe

sem “absolutamente nenhuma inteligência” (EDMONDS; EIDINOW, 2003, p. 73).

Trataremos, a seguir, das críticas de Wittgenstein presentes em Da Certeza aos

argumentos de Moore contra o idealismo e o ceticismo cartesiano, contidos em Uma defesa

do senso comum e Prova de um mundo exterior.

B. Críticas de Wittgenstein às proposições mooreanas em Da Certeza

Wittgenstein apresenta em Da Certeza um conjunto de objeções às proposições

mooreanas, presentes em Uma defesa do senso comum e em Prova de um mundo exterior. De

acordo com Strool, Wittgenstein foi original em perceber, em Da Certeza, que Moore deixou-

se cooptar pelo esquema da filosofia tradicional. Para ele, filósofo austríaco reconhece que

Moore e a maioria dos epistemólogos contemporâneos trabalhavam dentro de um poderoso

modelo epistemológico derivado de Descartes. Esse referido modelo cartesiano busca

identificar a interioridade do ser humano com o estado mental; o estado mental, por sua vez,

com o que é privado, ou melhor, com o que é acessível somente ao sujeito pensante; e o

privado com o que é seguro para outras mentes. Sendo assim, o ser humano estará

“encapsulado” dentro deste círculo ou dentro de suas próprias ideias (STROLL, 1994, p. 98-

99).

Essa observação de Stroll a respeito de Moore é muito estranha. Será que o filósofo

britânico deixou-se cooptar pelo internalismo cartesiano? Ora, essa não é a postura de Moore

em sua defesa firme do senso comum e da existência do mundo exterior. Conforme vimos até

aqui, Moore é representante de uma posição externalista do conhecimento, ou seja, a noção de

que o conhecimento humano se situa num mundo exterior e natural constituído por pessoas

que interagem entre si e compartilham os corpos físicos.

26 Nessa ocasião, dizem que Moore escreveu no formulário de inscrição da defesa do doutorado de Wittgenstein,

a seguinte observação: “É minha opinião pessoal que a tese do Sr. Wittgenstein é uma obra de gênio; seja como

for, ela atende com certeza ao padrão exigido para o grau de Doutor em Filosofia em Cambridge” (MOORE

apud EDMONDS; EIDINOW, 2003, p. 71-72).

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É importante salientar que embora Moore reconheça que os processos mentais sejam

responsáveis pelo conhecimento27; o filósofo, no entanto, reconhece ainda a existência dos

dados dos sentidos (sense data) na apreensão direta dos objetos físicos. Vimos ainda que nos

dois ensaios: Uma defesa do senso comum e Provas de um exterior é explícita a postura

realista de Moore contra o idealismo filosófico.

Ademais, em seu ensaio Certeza, escrito contra o argumento do sonho de Descartes,

Moore manifesta a sua oposição ao cético cartesiano ao afirmar que a prova maior de que ele

não está sonhando reside no fato que ele dispõe da “combinação da memória das experiências

do passado imediato com suas experiências sensoriais presentes”. O que Moore quis dizer

com isso é que as nossas crenças cotidianas mais genuínas, fundadas em nossas experiências

derivadas dos processos mentais, como lembranças, imaginações, sentimentos e recordações,

estão ligadas às nossas experiências sensoriais presentes, derivadas dos cinco sentidos. Sendo

assim, tudo isso nos leva a considerar que não há dúvida quanto à posição externalista de

Moore em sua luta contra o cético, e que a visão de Stroll em relação a Moore está

equivocada.

Contudo, é importante ressaltar que as críticas de Wittgenstein em Da Certeza são

dirigidas à intenção filosófica das proposições mooreanas. Ele observa que Moore empregou

expressões do tipo sei/eu creio de maneira equivocada (OC § 407). Para Wittgenstein, os

termos filosóficos “enfeitiçam” o nosso entendimento, e as pessoas muitas vezes não

percebem isso. Elas se deixam enfeitiçar por palavras com significado filosófico (§ 435).

Moore e muitas pessoas, afirma o filósofo austríaco, ao empregar tais expressões não colocam

o problema do sentido das mesmas, mas o que significa isso e aquilo e, a partir daí, buscam

tirar algumas conclusões filosóficas (§ 388).

Além disso, Wittgenstein reconhece que o uso incorreto que Moore faz dessas

expressões revelam também um estranho e importante estado mental (§ 7). Ele pressupõe um

estado mental ao expressar palavras pelo tom da voz ao falar, pelos gestos (§ 42). Ora, uma

experiência interior não pode mostrar que eu sei qualquer coisa (§ 569) e não me dá qualquer

garantia ao que acontecerá (§ 356).

Nessa perspectiva, Stroll compara o caráter nonsense do uso do “Eu sei” por parte de

Moore, a uma suposta “Fountain de Youth” existente na Flórida e que na realidade tratava-se

27 Para W. Spaniol, a existência de atos ou processos mentais parece ser ponto pacífico para Moore. Assim,

quando vemos, ouvimos, sentimos, lembramos, imaginamos, pensamos, cremos, desejamos, gostamos, não

gostamos, queremos, amamos, temos raiva e medo, todas estas coisas que realizamos são atos mentais – atos da

mente ou consciência. Na opinião de Moore, portanto, todos esses verbos, que poderíamos chamar de verbos

psicológicos, referem-se a atos ou processos que ocorrem na mente das pessoas (SPANIOL, 1989, p. 25).

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de uma entidade fictícia. Ele afirma que ao procurar essa referida entidade na Flórida, um

explorador procurava algo errado no lugar errado. Não a encontrando não significa que ele

deva procurá-la no Arizona. A partir do momento em que essa entidade não existe, não é um

tipo de coisa que possa ser encontrada em algum lugar. Assim, Moore é como esse

explorador, que procura dentro de seu mundo interior, o que é conhecimento. Contudo, o

domínio interior não é o lugar onde ele deva ser encontrado (STROLL, 1994, p. 129-30).

Wittgenstein alerta para o perigo das pessoas pretenderem encontrar o significado de uma

expressão ao considerar a própria expressão e a disposição de espírito em que ela é usada, em

vez de pensar sempre na prática.

Aqui, Wittgenstein ressalta a importância de se pensar na prática do uso dos jogos de

linguagem, e o erro de Moore, portanto, reside no fato de não reconhecer que o saber está

associado a um jogo de linguagem (§ 560). É, pois, no fundo de um jogo de linguagem que

está situada a nossa ação. Assim, a afirmação “Eu sei tudo isso” se revela no modo como

procedo e no modo como falo das coisas em questão (§ 395).

Em Da Certeza, Wittgenstein distingue ainda o uso da expressão “Eu sei” de “Eu

acredito”, ou melhor, trata da distinção entre conhecimento e crença. De acordo com o

filósofo, se uma pessoa acredita em alguma coisa, não é necessário que ela sempre seja capaz

de responder à questão “por que acredita?”. Por outro lado, se ela sabe ou conhece alguma

coisa, deve ser capaz de responder à questão “como sabe?” (OC § 550). Em outras palavras, a

pessoa deve estar “pronta a indicar razões soberanas” (§ 243). Isso porque “a certeza é

subjetiva, mas não o saber” (§ 245).

Para Wittgenstein, o saber envolve um tipo de objetividade que não pode ser fundada

em crenças. Dessa forma, se alguém afirma que sabe que p, a sua afirmação possui um caráter

interpessoal e não-subjetivo. Por outro lado, se alguém acredita em alguma coisa, por uma

razão pessoal ou subjetiva, pode legitimamente recusar a divulgá-la, ou seja, negar dizer “por

que sabe” e “como sabe”. Sendo assim, afirma Wittgenstein: “Em vez de “Eu sei isso”, pode-

se dizer, em certos casos, “Eis como as coisas são – confio nisso. Em alguns casos, todavia,

“Aprendi isso há muitos anos”: “Tenho certeza de que é assim” (§ 176).

No texto Da Certeza, há uma variedade dessas sentenças usadas por Moore e que

Wittgenstein buscou submetê-las ao procedimento terapêutico. Elas são proposições

científicas (A água ferve a 100% graus); proposições pessoais (Eu me chamo L.

Wittgenstein); proposições históricas (É ridículo duvidar da existência de Napoleão);

proposições geográficas (A Terra existe há mais de 150 anos); proposições sobre objetos

físicos (Isto é uma árvore); proposições sobre identificação de coisas (Isto é uma mesa) e

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muitas outras. Smith observa que se os seres humanos não fossem capazes de aceitar essas

frases, jamais seriam capazes de duvidar de outras sentenças como: “A água da piscina está a

18 graus centígrados”, “com você se chama?”, “o homem foi à lua”, “quando ocorreu a

Batalha de Waterloo”?, “existe ipês roxo em seu jardim”?, e assim muitas outras proposições

(SMITH, 2010, p. 66-67). A seguir, analisaremos algumas dessas sentenças.

(1) Eu sei que aqui está uma mão [...], está a minha mão para a qual estou olhando (OC,

§ 1,19). Um homem sensato, para Wittgenstein, não pode duvidar de tal sentença e

menos ainda um filósofo cético idealista. A pergunta que cabe a essa afirmação é se

faz sentido duvidar dela. Ora, uma afirmação dessa natureza só faz sentido dentro de

um jogo de linguagem. E o jogo de linguagem nos dá a garantia e segurança de seu

sentido. Ensinamos a uma criança “isto é uma mão”, e não “isto talvez seja uma mão”.

Buscamos fazer isso relacionando a palavra “mão” com inúmeros outros jogos de

linguagem. E investigar, portanto, se “isto é realmente é uma mão” nunca lhe ocorreu.

Nesse caso, existe uma ausência completa de dúvida, e mesmo quando diríamos que

pode existir dúvida “legítima”, isso não falsifica forçosamente um jogo de linguagem.

Uma afirmação desse tipo está subjacente à lógica dos jogos de linguagem (§§ 374;

375). E é dentro dos jogos de linguagem que ela faz sentido. Do mesmo modo, se

alguém disser “sei que isto é um pé”, eu posso dizer com veemência, mas o que

significa isso? Nada no mundo me convencerá do contrário. Esse fato está na base do

saber (§§ 376; 379; 382).

(2) Eu sei que a Terra existiu muito antes do meu nascimento (§ 84). Wittgenstein

observa que essa sentença mooreana é dogmática. Mesmo em se tratando de uma

proposição sobre o mundo físico exterior, tal sentença parece ser uma afirmação

pessoal de Moore, e ele a usa com intenção filosófica. Wittgenstein afirma que se

Moore tivesse oferecido alguma informação adicional de que conhecia a distância

entre certas estrelas, poderíamos chegar à conclusão que ele fizera alguma

investigação. Mas o que Moore escolheu precisamente foi um fato em que todos nós

podemos saber, mesmo se ele não fosse capaz de dizer como. Ele usou os enunciados

do senso comum como prova contra o idealista. Além do mais, segundo Wittgenstein,

Moore empregou esses enunciados com uma forte intenção filosófica. O filósofo

austríaco, contudo, busca mostrar que Moore se ilude ao acreditar que esses

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enunciados correspondam a legítimos conhecimentos, ou seja, que sejam

conhecimento verdadeiros por serem indubitáveis.

(3) Eu sei que nunca estive na Lua (§ 111). Para Wittgenstein, aqui temos mais um caso

de sentença frágil e sem sentido quando dita fora de contexto. Faria sentido, portanto,

indicar algum fundamento para esse conhecimento, caso a sentença fosse proferida no

contexto em que vários homens pisaram a superfície lunar, e alguns desses homens

sem saber que havia pisado na Lua, proferir a sentença de que nunca havia estado na

Lua. Contudo, não há nenhuma referência nesse sentido. Sendo assim, afirma

Wittgenstein, “eu não ter estado na Lua”, é uma coisa tão segura como quaisquer

outros argumentos que se apresentasse a respeito disso.

(4) Parecer-me-ia ridículo duvidar da existência de Napoleão (§ 185). Wittgenstein

afirma que essa afirmação de Moore é tão certa, que não faz nenhum sentido ocupar-se

com ela. Todavia, se alguém duvidasse da existência da Terra há 150 anos, até que

valeria a pena prestar-lhe atenção, isso porque, nesse caso, o que essa pessoa estaria

colocando em dúvida era todo o nosso sistema de evidências. Assim, afirma

Wittgenstein, podemos até supor que a existência de Napoleão trata-se de uma fábula,

mas duvidar que a Terra tenha existido há 150 anos representa um absurdo. Ao

comentar esse aforismo, Smith afirma que existem dois tipos de proposições empíricas

(§ 167): uma que pode ser verdadeira ou falsa e outra que funciona como uma espécie

de norma descritiva. A dúvida em relação à primeira é diferente da dúvida em relação

à segunda. No caso da proposição “parecer-me-ia ridículo duvidar da existência de

Napoleão”, embora sendo ridícula, não há problema duvidar dela. Contudo, a dúvida

da existência da Terra há mais de 150, longe de ser ridícula é muito séria, porque

coloca em xeque “todo o sistema de provas” (SMITH, 2011, p. 66).

(5) Eu acredito que a Terra é um corpo na superfície do qual nos deslocamos e que não

desaparece subitamente tal como qualquer outro corpo sólido [...] (§ 234). Duvidar

da existência da Terra antes do meu nascimento significa duvidar de muitas coisas que

são pontos assentes para mim. É como duvidar da existência de várias cidades, dos

fatos da história e da geografia que foram aprendidos nos manuais escolares, ou

mesmo que estou sentado diante da tela deste computador, escrevendo sobre as

sentenças mooreana. Smith observa que essas sentenças empíricas sobre o mundo

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físico dependem de seu lugar no interior de um sistema que formam a nossa imagem

de mundo. Para ele, alguém que comparar a frase “a água da piscina está a 18 graus”

tem de pressupor (conscientemente ou não) a frase “a água ferve a 100 graus”, ou

ainda, se alguém diz que “César atravessou o Rubicão”, a pessoa tem de aceitar muitas

coisas sobre a história humana (SMITH, 2011, p. 67).

(6) É absolutamente certo que os carros não nascem da terra (§ 279). Wittgenstein

observa que diante dessa sentença, se alguém acreditar no contrário, significa negar

aquilo que consideramos como verdadeiro, e assim essa pessoa coloca em questão

tudo o temos por seguro e certo. Esse sistema de convicções é adquirido pelo

conhecimento através da observação e instrução. Depois ter visto isto e aquilo, e

ouvido umas e outras, não existe possibilidade de duvidar, estou confia confiante

nisso, não há como deixar de acreditar (§ 277; 278). Diante disso, não posso dizer que

tenho boas razões para dizer que gatos não nascem de árvores ou que tive um pai e

uma mãe (§ 282).

(7) Eu sei isto do mesmo modo como sei que meu nome é L. Wittgenstein (§ 328). Com

isso, Wittgenstein busca enfatizar que é insensato alguém não acreditar que a Terra

existiu antes seu de nascimento, que a vida tem decorrido à superfície da Terra ou

próximo, que nunca esteve na Lua, que tem um sistema nervoso e entranhas como

outras pessoas (§ 327). Acreditar nessas coisas é tão óbvio que é como “saber” o

próprio nome. Aqui, o eu sei, para Wittgenstein, exprime a disponibilidade para

alguém “acreditar” em alguma coisa (§ 330).

(8) Eu sei que isto é uma árvore (§ 349). Essa sentença, segundo Wittgenstein, pode

indicar uma série de coisas: eu posso olhar, por exemplo, para um pé de roseira e dizer

que se trata de uma árvore, enquanto outra pessoa diz que se trata de um arbusto, e

posso olhar para um nevoeiro e visualizar a imagem de uma árvore e dizer: “Isto é

uma árvore”, ou ainda visualizar claramente uma árvore a certa distância e dizer: “Eu

sei que aquilo é uma árvore, porque a vejo claramente”. Wittgenstein observa que

essas sentenças mooreanas só fazem sentido, quando proferidas dentro de um contexto

restrito. Contudo, não faria sentido algum, se eu repetisse fora de contexto, olhando

para a árvore e disser “isso é uma árvore”. Não é de perguntar se essas palavras fazem

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sentido? Ela é análoga à pergunta isto é uma ferramenta, quando mostra um martelo.

A resposta é nesse caso, “sim”, é “martelo”. Do mesmo modo, se alguém disser “Sei

que isto é uma árvore”. Então eu respondo, “sim” é uma proposição da língua

portuguesa (§ 351-352). De acordo com Wittgenstein, a minha observação faria

sentido também, caso se nesse mesmo contexto conversacional, eu acrescentasse que

minha vista era deficiente e que talvez aquilo não fosse uma árvore. Nesse sentido, “o

significado da sentença pode ser expresso por seu prolongamento e pode, portanto,

tornar-se parte dela”.

(9) Eu sei que a água na chaleira sobre o fogo não irá congelar, mas ferver (§ 613).

Nessa sentença o “Eu sei” tem justificação suficiente como em qualquer outro caso. E

com mais certeza saberei ainda quando vejo à minha frente o velho amigo André, que

conheço há anos. Diz Wittgenstein, caso a água sobre o fogo congele, ficarei muito

espantado e presumirei, dessa forma, que se trata de um fenômeno que desconheço e

deixarei a questão para ser resolvida pelos físicos. Contudo, duvidar que a pessoa que

vejo à minha frente seja um velho amigo que conheço há anos, “pareceria arrastar tudo

consigo, mergulhando no caos”.

Todas essas sentenças são constituídas de operadores epistêmicos formados pelos

verbos saber, acreditar e duvidar. Elas, à primeira vista, parecem proposições empíricas e que

Moore as empregou com o objetivo de refutar o ceticismo filosófico. Em Da Certeza,

Wittgenstein reconhece que as sentenças mooreanas, por se tratarem de proposições que

desempenham um papel lógico especial em nosso sistema de proposições empíricas, elas

indicam como as verdades sabidas são de fato interessantes, porque não chegamos a nenhuma

delas por meio de investigações científicas. Segundo Wittgenstein, nesse sentido, existem

investigações históricas quanto à forma e idade da Terra, mas não quanto à sua existência

durante os últimos 150 anos. A existência da Terra há mais de 150 anos, portanto, constitui

elemento fundamental dentro de nosso sistema de crenças partilhadas socialmente e

aprendidas pelo processo de instrução.

Essas proposições mooreanas, para Wittgenstein, são interessantes do ponto de vista

filosófico e que Moore fracassou em sua iniciativa de empregá-las com a pretensão de refutar

ceticismo. Para Spaniol (2001, p. 80-82), ao submeter essas proposições aos procedimentos

terapêuticos, Wittgenstein aponta algumas possibilidades de emprego das mesmas: (i) o

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emprego não-filosófico; (ii) o emprego filosófico-metafísico e (iii) o emprego filosófico-

terapêutico:

(i) Emprego não-filosófico: Quando vejo, por exemplo, qualquer coisa num nevoeiro e

digo “Eu sei que isto é uma árvore” (§ 349), para Wittgenstein, isso não se trata de um

conhecimento absolutamente seguro, algo que não pode ser falso (§ 436), mas de uma

pretensão de conhecimento restrito ao contexto de uso (§ 554). Com isso, a sentença

perde qualquer interesse filosófico (§ 622).

(ii) Emprego filosófico-metafísico: Quando uma sentença é proferida em contextos

normais de uso. Como por exemplo, num dado contexto em que dois filósofos que

estão sentados num jardim discutindo sobre questões filosóficas ou metafísicas, e um

deles aponta para uma árvore e diz: “Eu sei que isto é uma árvore” (§ 467), com a

pretensão de afirmar que sabe com certeza e segurança absoluta que se trata de uma

árvore (§ 554). Nesse caso, Wittgenstein considera que Moore parece estar correto

quanto ao emprego de tal sentença, em circunstância normal de uso no âmbito da

discussão filosófica, na medida em que Moore acredita ter encontrado exemplo de

verdades necessárias filosóficas ou metafísicas (§ 482), que serviriam como refutação

do idealismo e do ceticismo filosófico.

(iii) Emprego filosófico-terapêutico: Quando as sentenças mooreanas são empregadas em

contextos normais de uso e que não se trata de expressar uma pretensão de saber

filosófico ou metafísico e sim o uso terapêutico da linguagem contra essa mesma

pretensão. Em outras palavras, quando essas sentenças são proferidas no sentido de

levar o leitor a perceber que o emprego delas no sentido filosófico e metafísico não

possui valor cognitivo algum e não traduz verdades absolutas ou transcendentes.

Sendo assim, Wittgenstein ressalta a tarefa da filosofia é levar o leitor a perceber que o

emprego das sentenças mooreanas em circunstâncias normais visa exprimir regras

semânticas, e que Moore está equivocado em sua iniciativa de empregá-las sem

indicar o contexto ou circunstâncias restritivas das mesmas.

As proposições mooreanas possuem caráter não epistêmico ou epistemicamente

neutro, que está ligado ao caráter não empírico das mesmas. Assim, sentenças do tipo “Eu sou

um ser humano” ou “Eu tenho cérebro” não podem ser negadas, porque faltam motivos para

poder pô-las em dúvidas, tudo está a favor delas (OC § 4). A negação delas resultará em algo

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sem sentido. Além do mais, elas não possuem valor descritivo e informativo sobre o mundo.

Elas funcionam como regras semânticas, valendo-se como normas de descrição (§ 167, 321).

Wittgenstein as denomina proposições lógicas ou gramaticais. Com isso, o grande equívoco

de Moore, segundo o filósofo austríaco, foi não ter percebido que a segurança do emprego

dessas sentenças deriva do caráter normativo ou gramatical das mesmas e que a dúvida com

relação a elas está logicamente excluída.

Diferente das proposições lógicas ou gramaticais de Moore, as sentenças empíricas

possuem ambivalência veritativa. Elas tanto podem ser afirmadas quanto negadas. Por

exemplo, uma proposição empírica como: “Eu sei que a esta distância do sol existe um

planeta”, admite conexão com operadores epistemicamente tanto negativos quanto

afirmativos. Com isso, se alguém negar que “sabe se a esta distância do sol existe um

planeta”, isso não resultará em nenhuma perda de sentido da mesma sentença28.

Para Wittgenstein, as proposições mooreanas pertencem ao nosso quadro de

referências do mundo com base no qual distinguimos entre o verdadeiro do falso. Elas

constituem ainda a nossa “imagem de mundo”; “o substrato de todas as minhas afirmações e

perguntas” (§ 162); são como o “eixo” (§ 152); a “dobradiça” (§ 341-42), o “leito do rio” (§

97), a “estrutura de apoio” (§ 211) e a “base inamovível de nossos jogos de linguagem”.

Fiel ao projeto de terapia da linguagem, o filósofo Wittgenstein se propõe analisar o

uso equivocado dos operadores epistêmicos da parte de Moore. E isso será o nosso objeto de

estudo no próximo capítulo.

28 Essas proposições são também denominada bipolares (MOYAL-SHARROCK, 2004, 35-37).

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IV – PROPOSTAS ANTICÉTICAS DE WITTGENSTEIN EM DA CERTEZA

Embora o alvo direto das críticas de Wittgenstein em Da Certeza seja Moore e os seus

truísmos óbvios do senso comum; os temas fundamentais discutidos pelo filósofo austríaco

nessa referida obra são, a saber: o conhecimento, a certeza e a dúvida cética. E uma das

questões centrais dessa discussão é o ceticismo acerca do mundo exterior, elaborado por

Descartes nas Meditações Metafísicas.

Conforme vimos nos capítulos anteriores, Wittgenstein representa um dos pensadores

do século XX que mais contribuíram para o debate anticético na filosofia contemporânea.

Vimos também que as críticas do pensador vienense ao ceticismo filosófico se fazem

presentes no Tractatus, mais precisamente, no aforismo 6.51, quando o filósofo vienense

busca atacar a postura humeana de Bertrand Russell, que afirma que o ceticismo filosófico é

“irrefutável do ponto de vista lógico e estéril do ponto de vista prático”; e nas Investigações,

quando critica o argumento da linguagem privada, sugerido por Descartes, nas Meditações

Metafísicas. Além disso, nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein busca definir a atividade

filosófica como terapia da linguagem, onde a finalidade da filosofia, nesse caso, consiste em

dissolver os problemas filosóficos, sobretudo, o ceticismo cartesiano, por meio da análise

conceitual do pensamento e da clarificação da linguagem. Dessa forma, sendo o ceticismo

cartesiano um problema de linguagem; ele deve, portanto, ser objeto de análise terapêutica do

uso da linguagem. Na opinião de Sumares:

[...] a análise conceitual a partir da linguagem usada em determinados contextos

representa um constrangimento à tentação de considerar os conceitos como uma

espécie de entidades não-físicas e quase-ontológicas. Assim, o cético, que questiona

a veracidade de uma asserção, vê-se imediatamente confrontado com o ato

linguístico e as regras que governam a sua realização perante um interlocutor ou

ouvinte. Não podemos identificar (e eventualmente por em dúvida) as crenças e os saberes propostos independente do ato de dizer que os apresenta para uma discussão.

Pois não existe a pureza de um imediatamente dado na experiência sensorial ou na

subjetividade, determinando o limite de uma crença, à qual o cético se poderia

agarrar; o conteúdo proposicional de um ato linguístico, que pretende articular o

estado de alguma coisa no mundo realiza-se necessária e espontaneamente em

função de determinadas condições de satisfação, constituídas pela conjunção de

percepções e de práticas regulamentadas e sistematizadas numa cultura (SUMARES,

1994, p. 65).

Em Da Certeza, fiel ao seu projeto filosófico de terapia do uso da linguagem,

Wittgenstein busca situar o problema do ceticismo cartesiano no horizonte linguístico. É nesse

aspecto, portanto, que reside a grande originalidade do filósofo. Compartilhamos com Moreno

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quando afirma que originalidade de Wittgenstein não é de propor novas teses sobre o

conhecimento, mas reside na composição de um conjunto de reflexões epistemológicas que

poderíamos classificar de exclusivamente terapêutica (MORENO, 2010, p. 12-13).

Nessa perspectiva, este capítulo busca responder à problemática central desta

dissertação, a saber: se diante da questão do ceticismo sobre o mundo exterior, elaborado por

Descartes nas Meditações Metafísicas, o pensamento filosófico de Wittgenstein em Da

Certeza, oferece contribuições para o debate anticético na filosofia contemporânea.

Para isso, frente ao desafio proposto pelo ceticismo cartesiano, trataremos de

apresentar duas contribuições anticéticas de Wittgenstein presente no texto Da Certeza: (A) a

primeira trata da análise terapêutica do uso da gramática dos operadores epistêmicos; e (B) a

segunda, ligada à primeira, trata da noção de contexto de Wittgenstein em Da Certeza e,

assim, buscaremos estabelecer uma interface com o contextualismo epistêmico trabalhado por

epistemólogos contextualistas contemporâneos como Stewart Cohen e Keith DeRose29.

Para Wittgenstein, os problemas filosóficos são derivados dos mal-entendidos

gramaticais e, por isso, devemos adotar um procedimento terapêutico em relação aos usos dos

jogos de linguagem. Uma vez que os usos dos operadores epistêmicos ocorrem dentro de

diferentes contextos de uso da linguagem; é dentro de um dado contexto dos jogos

linguísticos, portanto, que o saber ganha sentido. Assim, trataremos de analisar os operadores

epistêmicos em vista de dissolver o problema do ceticismo cartesiano.

A. A gramática dos operadores epistêmicos

Como nas Investigações Filosóficas, a gramática presente no Da Certeza é mais do

que a gramática normativa de uma língua particular; ela representa, acima de tudo, um

conjunto de regras. Essas regras nos dizem o que é lógico, o que tem sentido e o que não tem

sentido, e o que está fora do limite do sentido (CONDÉ, 1998, p. 110). Moreno observa que a

29 Nesse sentido, M. Williams observa que existem duas respostas diagnósticas ao problema do ceticismo

filosófico: a resposta terapêutica e a resposta teórica. A diagnose terapêutica, por um lado, trata o problema do

ceticismo com pseudoproblema gerados pelo mau uso ou má interpretação da linguagem. Aqui podemos citar,

nesse caso, o método terapêutico de Wittgenstein; e a diagnose teórica, por outro, que presume que o cético

como alguém que especula sobre os comprometimentos teóricos que ele não admite ou tenta aceitar como se

fossem trivialidades do senso comum. A simplicidade e a intuitividade aparente dos argumentos céticos, segundo

Williams, são um disfarce para ideias epistemológicas. Nesse caso podemos citar os argumentos extermalistas

mooreanos e as teorias contextualista como exemplos de resposta teórica ao problema do ceticismo

(WILLIAMS, 2008, p. 91).

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forma lógica, nesse caso, tornou-se forma de vida, a lógica tornou-se gramática, e a crítica da

linguagem tornou-se terapia do pensamento (MORENO, 2010, p. 42).

Para Wittgenstein, aprender o significado de uma expressão linguística significa

operar através de regras gramaticais, e a mudança dessas regras implica, portanto, a mudança

de significação e de uso dessas mesmas regras. Melhor dizendo, aprender uma determinada

regra da gramática significa saber aplicá-la corretamente “em circunstâncias normais” de uso

(§ 27), pois “a prática do uso da regra mostra o que é um erro em sua aplicação” (OC § 29).

Nas Investigações Filosóficas, a gramática é mais do que um sistema de regras

sintáticas e semânticas; ela envolve também uma dimensão pragmática. Além de apresentar

um conjunto de práticas linguísticas constituídas pelo uso de palavras, expressões e sentença,

a gramática assume também um caráter de autonomia. Já em Da Certeza, o tratamento

terapêutico que Wittgenstein dá à linguagem, conduz ao aprofundamento da concepção de

autonomia da gramática. Sendo assim, as regras da gramática não mais expressam somente

conhecimento de fatos, mas de atitude frente aos fundamentos do sentido do próprio

conhecimento de fatos (MORENO, 2010, p. 45).

O uso dessas regras, que não são dadas de uma vez por todas, ocorre dentro de

“circunstâncias normais” de uso de operadores epistêmicos. Esses operadores epistêmicos

são constituídos pelos verbos duvidar, saber, acreditar, supor, quando empregados em jogos

de linguagem epistêmicos, isto é, em conexão do tipo S sabe que p; onde, nesse caso, S

representa um sujeito epistêmico qualquer; e p uma sentença ordinária. Segundo Spaniol

(2001, p.76-77), quando são empregados como operadores epistêmicos, esses verbos possuem

certas condições de sentido.

Na opinião de Moreno, saber empregar os operadores epistêmicos na forma de S sabe

que p é dominar uma técnica dentro de nossos jogos de linguagem, e saber agir em

conformidade com as regras desse jogo, é o critério para atribuir valor verdade à afirmação

com valor epistêmico. Para isso, é necessário delimitar o domínio de saber/conhecimento: o

domínio da ação conforme a regra e o domínio da expressão linguística da regra (MORENO,

2011, p. 26). A seguir, trataremos de analisar a gramática dos operadores epistêmicos dos

verbos duvidar e saber.

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a.1. Gramática de duvidar

(1) A dúvida se sustenta sobre razões fundamentadas: De acordo com Wittgenstein, um

professor deve dizer ao seu aluno que se recusa a acreditar que uma determinada

montanha tenha estado num determinado lugar desde tempos memoráveis, de que a

sua suspeita não tem razões fundamentadas (OC § 322), isso porque uma dúvida se

sustenta sobre razões concretas (§ 458). Sendo assim, se alguém, por exemplo,

procura resolver algum cálculo matemático e duvida de seu resultado é porque tem

algum motivo para tanto. O motivo pode, portanto, ser que a pessoa não domine a

prática desse cálculo. Para Wittgenstein, toda dúvida tem que ter alguma razão ou

motivo de ser; do contrário, dificilmente será compreendida. Desse modo, uma dúvida

para ter sentido deve estar inserida dentro de um jogo de linguagem. Se alguém, por

exemplo, solicita a uma pessoa para lhe trazer um livro, a pessoa pode até verificar se

algo que está na estante seja um livro; contudo, ela jamais pode duvidar do fato

empírico em si que, nesse caso, trata-se de um “livro” e, além do mais, ela precisa

conhecer também o sentido do uso palavra “livro”. Melhor dizendo, para que uma

ordem seja bem conduzida é necessário haver algum fato empírico que não seja objeto

de dúvida quanto à sua existência, e a pessoa deve compreender o jogo de linguagem

que está sendo praticado (OC § 518). Sobre a necessidade de criar razões para duvidar,

Kenny (2006, p. 162) observa que nesse sentido mesmo Descartes estaria inteiramente

de acordo com Wittgenstein, é por isso que o filósofo francês inventou a hipótese do

gênio maligno, para fornecer um fundamento para a sua dúvida.

(2) A dúvida deve ter uma importância prática: Para Wittgenstein, a dúvida dever ter uma

importância prática na vida de uma pessoa. Que importância tem, afirma o filósofo, se

alguém duvida que o meu crânio não tenha cérebro? O que fazer diante de tal dúvida?

Não poderíamos deixá-lo duvidar pacificamente, uma vez que sua dúvida faz nenhuma

diferença? (OC § 119-120). Agora, imagine uma pessoa que tenha que ir à estação

ferroviária buscar um amigo que vai chegar de viagem. A pessoa não sabe a hora da

chegada do trem, e vai à estação no momento certo buscar o seu amigo. Ela diz: “Não

acredito que o trem chegue a essa hora, mas vou para estação”. Ela faz o mesmo que

pessoa normal, mas cheio de dúvidas e aborrecimentos (§ 339). Com isso,

Wittgenstein trata de mostrar que a dúvida tem uma importância prática para vida

daquela pessoa, e uma dúvida filosófica, contudo, não muda em nada o curso normal

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da vida. Nesse aspecto, contra aqueles que o acusava de favorecer o ateísmo e a

imoralidade, Descartes deixava claro que a sua dúvida era filosófica, especulativa e

não prática (KENNY, 2006, p. 162).

(3) A dúvida pressupõe um jogo de linguagem: Wittgenstein afirma que uma pessoa que

duvida de tudo, não vai muito longe em sua dúvida, isso porque o próprio jogo de

duvidar pressupõe certeza (§ 115). Assim, quando alguém diz: “Isto aqui são duas

mãos”, precisa saber o significado da palavra “mãos” (§ 306). Se alguém não tiver

certeza quanto ao fato empírico “mãos”, não pode também ter certeza quanto ao

significado de suas palavras (§ 114). Aqui se percebe uma crítica forte ao ceticismo

cartesiano. Se o filósofo Descartes duvida de tudo, então ele duvida das próprias

palavras que usa ao expressar a sua dúvida universal. Para Wittgenstein, uma dúvida

universal não seria somente sem sentido, mas também contraditória (SMITH, 2010, p.

75). Se existe um Gênio maligno que me engana totalmente, então ele me engana

sobre o sentido da palavra “enganar”. Assim, ao colocar em xeque o próprio sentido

do jogo de linguagem de duvidar, a dúvida universal cartesiana, alimentada por um

Gênio maligno, na perspectiva de Wittgenstein, destrói-se a si mesma (KENNY, 2006,

p. 165).

(4) A dúvida não pode estar no início: No aforismo 310, Wittgenstein cita o caso do aluno

que não deixa o seu professor explicar o conteúdo da aula e o interrompe

continuamente com dúvidas acerca da existência de coisas e sobre o sentido das

palavras proferidas em sala de aula. O professor diz para o seu aluno: “Deixa de me

interromper e faz o que te digo. Até agora a tua dúvida não faz sentido nenhum”. Com

esse aforismo, Wittgenstein mostra que a dúvida só tem sentido quando aluno aprende

a fazer perguntas e conhece o jogo de linguagem do adulto. Seria como se alguém

estivesse à procura de um objeto num quarto; a pessoa abre a gaveta e não o vê e

depois a fecha novamente; espera um pouco e abre de novo para ver, se por acaso, não

está lá. Nesse caso, a pessoa não aprendeu a procurar a coisas. Do mesmo modo,

afirma o filósofo austríaco, a criança não aprendeu a fazer perguntas, ou seja, ela não

aprendeu o jogo de linguagem que o professor quer lhe ensinar (§ 315). Para

Wittgenstein, “a criança aprende, acreditando no adulto, a dúvida vem depois da

crença” (§ 160). Para aprender alguma coisa a criança tem que acreditar naquilo que as

pessoas lhe transmitiram de certa maneira, como por exemplo, acreditar em fatos

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geográficos, químicos e históricos. Assim, a criança aprende uma quantidade enorme

de coisas e as aceita com base na autoridade das pessoas. Ela considera, por exemplo,

o que se encontra nos livros didáticos de geografia, de química e de história, porque

ela aprendeu isso. Essas certezas formam a imagem de mundo da criança, e constitui o

substrato de todas as suas perguntas e afirmações (§ 162; 170). Wittgenstein ressalta

ainda que nossa aprendizagem segue um padrão. Uma criança, por exemplo, aprende

em primeiro lugar “Aquilo é uma violeta” ou “Aquilo é uma mesa” e não “Aquilo

talvez seja uma violeta” ou “Aquilo talvez seja uma mesa”. Em outras palavras, a

criança precisa acreditar e aceitar alguma coisa antes para poder expressar dúvidas que

façam algum sentido. Isso porque “uma dúvida que duvida de tudo não seria uma

dúvida” (§ 450).

(5) A dúvida universal é impossível: Os jogos de linguagem pertencem a nossa imagem de

mundo e, uma vez que a dúvida pressupõe um jogo de linguagem, poderíamos até

duvidar de alguns fatos relacionados com determinado jogos linguísticos, mas jamais

duvidar de todos os jogos de linguagem simultaneamente, porque isso destruiria o

próprio jogo e, consequentemente, a própria dúvida. Uma criança aprende primeiro a

acreditar no adulto, a dúvida vem depois da crença (§ 160). Ela, nesse sentido, pode

perguntar para o adulto se a “Terra existiu antes do meu nascimento” e a pessoa lhe

responder que a “Terra existiu muito antes do meu nascimento”. Assim, o adulto

estará a transmitir a essa criança uma imagem de mundo dentro de um horizonte

linguístico (OC § 232; 233). Além disso, eu poderia até mesmo estar enganado a

respeito do nome de alguém, porém, supor que todos poderiam estar enganados não

faz sentido nenhum, isso porque não haveria mais jogo de linguagem dos nomes

próprios e, portanto, não haveria mais a possibilidade de alguém se enganar a respeito

do nome de alguém. Para Wittgenstein, a dúvida deve terminar em algum ponto.

Spaniol (2001, p. 77-78) observa que do ponto de vista lógico formal não haveria

nenhum problema no seguinte raciocínio: “Se x ocorre algumas vezes, seria possível

que x ocorra sempre”. Todavia, se considerarmos as regras da gramática, a falácia se

instala. Individualmente é até possível que um jogador faça algum lance incorreto,

porém, é impossível que todos os jogadores durante todo o tempo realizem apenas

lances incorretos. Desse modo, o mesmo acontece com o ceticismo de Descartes:

“uma dúvida que duvida de tudo não seria uma dúvida” (§ 115). Com isso, para

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Wittgenstein, a dúvida deve chegar a um fim, pois “uma dúvida sem fim nem sequer é

uma dúvida” (§ 625).

(6) A dúvida pressupõe certeza: Wittgenstein afirma que quem duvida de tudo, não pode

ir tão longe como se duvidasse de qualquer coisa. O próprio jogo da dúvida pressupõe

a certeza (§ 115). Desse modo, toda dúvida depende de proposições que são isentas de

dúvidas. Essas referidas proposições são como certezas dobradiças, em torno das quais

giram as nossas dúvidas (§ 341). Para o filósofo, o processo de busca do conhecimento

pressupõe certezas que pertencem à lógica de nossas investigações científicas (§ 342).

Tais certezas possibilitam a verificação ou comprovação (§163; 337), e qualquer tipo

de dúvida que não permite ser verificada e comprovada é sem sentido. Nesse sentido, a

dúvida de Descartes, por ser uma dúvida especulativa e filosófica sobre as coisas do

mundo exterior, se constitui numa dúvida sem fundamento. Em nossa linguagem

cotidiana existem várias proposições que não podemos duvidar. Elas são as nossas

“certezas dobradiças”, o fundamento de nossos jogos de linguagem, e se existir

proposições que não podem ser colocadas em dúvida, então existem proposições sobre

o quais não podemos estar enganados. Smith observa que uma dúvida sobre as “frases

dobradiças”, sobre o “fundamento”, mina a maneira pela qual provamos alguma, nada

mais pode ser estabelecido ou refutado; a ideia mesma de crença parece perder o

sentido (SMITH, 2010, p. 73). Assim, duvidar dessas certezas fundamentos é destruir

o “solo firme” onde estamos pisando.

a.2. Gramática de saber

(1) O saber exige razões fundamentadas: Wittgenstein deixa claro em Da Certeza, que

quando usamos a expressão “Eu sei” significa que temos frequentemente razões

fundamentadas para tal afirmação, ou seja, que temos condições de dar uma resposta à

pergunta “como eu sei” (§ 550). Além disso, tal afirmação pressupõe que o outro

possa conhecer o nosso jogo de linguagem e, assim, admitir que “sabemos”. Dessa

forma, a pessoa que conhece um dado jogo de linguagem que está sendo praticado,

tem a capacidade de imaginar como é que eu sei tal coisa (§ 18). O filósofo afirma que

quando uma pessoa usa a expressão “Eu sei que p” está pronta para indicar razões

soberanas, ou seja, está convencida de que “sabe que p” (§ 243). E tais razões devem

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ser convincentes para as demais pessoas sensatas que partilham a mesma imagem de

mundo (§ 322-325).

(2) O saber pode ser obtido por investigação: Para Wittgenstein, o uso de “Eu sei”

relaciona-se com a possibilidade de demonstrar a verdade de uma afirmação (§ 243).

No aforismo 23 do Da Certeza, o filósofo dá o seguinte exemplo:

Se não sei se alguém tem duas mãos (por exemplo, se elas foram amputadas ou não),

acreditarei na sua declaração de que tem duas mãos, se a pessoa em causa for digna

de confiança. E se ela disser que o sabe, isso apenas significa para mim que pode

assegurar-se e assim que seus braços não estão, por exemplo, ainda cobertos de

pensos e ligaduras, etc. O fato de eu acreditar no homem de confiança resulta que ele

tem a possibilidade de se certificar. Mas alguém que diz que talvez não haja objetos

físicos não admite isso.

Com esse exemplo, Wittgenstein busca mostrar que o conhecimento requer a

possibilidade de certificação de um dado fato empírico. Assim, ao dizer “Eu sei que

p”, uma pessoa deve ser capaz de indicar “por que e como sabe” (§ 550), melhor

dizendo, a pessoa deve ser capaz de indicar uma ou várias maneiras pelas quais pode

saber o que lhe foi perguntada, conforme se observa no aforismo a seguir:

O uso correto da expressão “Eu sei”. Alguém com uma visão ruim me pergunta:

Você acredita que alguma coisa que podemos ver ali seja uma árvore? Eu repondo:

“Posso vê-la claramente e sou familiar a ela”. – A: “N.N está em casa?” – I: “Eu

acredito que ele esteja”. – A: “Ele estava em casa ontem?” – I: “Ontem ele estava;

Eu falei com ele.” – A: “Você sabe ou somente acredita que esta parte da casa foi construída depois que o restante?” – I: “Eu sei que foi”. Eu perguntei isso e aquilo

sobre ela (OC § 483).

Aqui, observamos que Wittgenstein realça a importância da distinção do emprego

correto de “saber” e “acreditar”. No primeiro caso, a pessoa sabia que “algo se tratava

de uma árvore”, porque ele tinha evidências da mesma. No segundo caso, quando era

interrogado se “sabia que N.N estava em casa”, e respondeu que “acreditava que

estava”, porque ontem ele falou com ele. Nesse caso, ele não podia garantir que sabia,

pois não tinha provas para saber. O máximo que ele podia afirmar é que “acreditava

que N.N esteja em casa”. No último caso, porém, quando lhe foi perguntado se “uma

determinada casa foi construída depois que o restante”, ele respondeu que “sabia”,

porque tinha evidências empíricas para comprovar a sua afirmação. No entanto, afirma

Wittgenstein, a nossa investigação sobre as coisas sempre parte de pressupostos que

não são verificados. Nesse caso, afirma o filósofo, pode-se verificar a história de

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Napoleão, mas não se todos os relatos históricos se baseiam em erros de apreciação e

verificação (§ 163). Quando Lavoisier, por exemplo, fez experiências com substâncias

em seu laboratório e concluiu que determinado fenômeno acontece quando há

combustão, tais experimentos científicos, portanto, foram feitos a partir de uma

imagem de mundo, que fora não inventada, mas sim aprendida por ele quando criança

(§ 167).

(3) O saber pode ser confirmado ou refutado: Para Wittgenstein, diante da possibilidade

de erro do uso da expressão “Eu sei”, é necessário, então, que se verifique tal

afirmação para confirmar ou refutar se de fato “Eu sei”. Tal procedimento brota da

experiência (§ 574-575). Em outras palavras, quando alguém usa a expressão “Eu sei

que p”, deve-se verificar a verdade ou falsidade de tal afirmação (§ 580).

(4) Quem sabe algo deve ser capaz de duvidar: No aforismo 480, Wittgenstein afirma que

quando uma pessoa admite que algo que ela conhece seja verdadeiro, isso envolve

dúvida, e “duvidar” significa “pensar”. Assim, o uso da proposição “Eu sei que tenho

um cérebro”, não faz sentido, pois é não é possível pô-la em dúvida, pois tudo

concorre ao seu favor (§ 4). Se por um lado alguém disser: “Eu sei que isto é uma

árvore”, não deve estar excluída a possibilidade de alguém dizer: “Eu duvido que isso

seja uma árvore”, porque a possibilidade de dúvida de uma dada afirmação pressupõe

sentido e compreensibilidade da mesma. Contudo, afirma Wittgenstein, se eu digo: sei

que um homem doente está aqui deitado, sendo que estou sentado ao lado de sua

cama, olhando atentamente para o seu rosto, isso é sem sentido. Essa afirmação,

portanto, não faz mais sentido do que a expressão “Eu estou aqui”, que poderia ser dita

em qualquer ocasião em que se apresentasse uma oportunidade adequada. Por outro

lado, se alguém disser: “Eu sei que um doente está aqui deitado”, numa situação

inadequada, isso não pareceria um disparate, mas antes natural (§ 10).

(5) O saber traz consigo a possibilidade de erro: Para Wittgenstein, o erro desempenha

um papel especial em nossos jogos de linguagem, e o mesmo acontece quando

aceitamos com evidência segura o que é certo e verdadeiro (§ 197-198). Além disso, a

gramática de “saber” difere de “duvidar”. Sendo assim, alguém que diz: “Eu sei que

aqui há uma árvore”, não é o mesmo que dizer: “Eu acredito que aqui há uma árvore”

ou “Eu estou convencido que ali aqui há uma árvore”. Por um lado, é até possível

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alguém dizer: “Eu pensei que sabia que aqui havia uma árvore”; por outro, não é

possível dizer: “Eu acreditava que sabia que aqui havia uma árvore”. Nesse sentido,

Wittgenstein afirma que Moore se equivocou ao tratar “os conceitos de “saber” como

sendo análogo aos conceitos de “crer”, “supor”, “duvidar” e “estar convencido”, pelo

fato da declaração “Eu sei” não ser um erro” (§ 21).

(6) O saber admite a possibilidade da negação: Segundo Wittgenstein, o conhecimento

requer a possibilidade de negação. Nesse sentido, se alguém diz: “Eu sei que p”, faz

sentido dizer também: “Eu não sei que p”. Assim, uma proposição do tipo: “Eu sei que

a esta distância do sol existe um planeta” (§ 52), admite a possibilidade de sua

negação: “Eu não sei se a esta distância do sol existe um planeta”, e isso não resultará

em nenhuma perda de sentido da mesma. É dessa forma, portanto, que o saber para

Wittgenstein possui ambivalência veritativa, ou seja, uma proposição tanto pode ser

afirmada como negada, sem perda de sentido da mesma. Por outro lado, sentenças do

tipo: “Eu sou um ser humano” ou “Eu tenho cérebro”, não podem ser negadas, porque

faltam motivos para poder pô-las em dúvidas, tudo está a favor delas (§ 4). A negação

dessas proposições resultaria em algo supérfluo.

(7) O saber só ganha sentido dentro de um jogo de linguagem: O nosso saber para

Wittgenstein forma um grande sistema. E é no interior deste sistema, portanto, que

nossas afirmações particulares ganham significado (§ 410). E esse referido sistema é o

nosso quadro de referências herdado, a nossa imagem de mundo, onde distinguimos o

verdadeiro do falso (§ 94). Além disso, é no interior desse sistema que ocorrem toda a

verificação, a confirmação e a invalidação de uma hipótese (§ 410). Dessa forma,

pareceria estranho supor que a “Terra existiu há muitos anos”. É no sistema total de

nossos jogos de linguagem, portanto, que esta proposição está situada e pertence à

base de nossa ação e de nosso pensamento (§ 411). É assim que o nosso conceito de

conhecimento está acoplado esse jogo de linguagem (§ 560). E tudo aquilo que contar

como prova adequada de uma afirmação, que é descritivo dentro do jogo de linguagem

pertence ao domínio da lógica (§ 56).

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B. A noção de contexto de Wittgenstein em Da Certeza

O leitor deve estar se perguntando de que forma o texto Da Certeza contribuiu na

elaboração de teorias contextualista contemporâneas. É importante salientar que essa última

obra de Wittgenstein, em continuidade com as Investigações Filosóficas, é rica em aforismos

que buscam relacionar o sentido dos jogos de linguagem dentro dos ‘contextos’ ou

‘circunstâncias normais’ de uso.

Agora, por que ‘noção de contexto’ e não ‘contextualismo’ de Wittgenstein? É preciso

deixar claro que Wittgenstein não elaborou uma teoria contextualista, mas as suas intuições

originais no texto Da Certeza, contribuíram posteriormente para a construção de teorias

contextualista como o contextualimso de Cohen e DeRose. É por isso que evitamos o

emprego do termo contextualismo de Wittgenstein. A respeito dessa diferença de significado

entre essas duas concepções, vale a pena registrar aqui uma observação interessante de

Siqueira:

[...] distinguimos ‘contextualismo’ de ‘contextualização’ contrastando uma noção pretensamente teórica com o nome de uma atividade. Distanciando-nos tanto de um

extremo como do outro, entendemos que os limites do recurso sensato ao contexto

constituem algo que precisa ser filosoficamente investigado, pelo método

comparativo de Wittgenstein, a fim de adquirirmos maior clareza sobre os usos

dessa noção (SIQUEIRA, 2010, p. 105).

Como sugere Siqueira, pretendemos entender melhor o uso dessa noção de contexto

ou contextualização, buscando analisar alguns dos aforismos que consideramos importantes

em Da Certeza, e em seguida trataremos de apresentar o contextualismo epistêmico de Cohen

e DeRose, buscando relacionar a noção de contexto de Wittgenstein nesse referido texto com

essas duas teorias contextualistas.

No aforismo 349, Wittgenstein apresenta a seguinte situação: num contexto onde duas

pessoas estão diante de um nevoeiro e elas não conseguem identificar qualquer coisa por trás

desse nevoeiro, uma delas pensa que vê um homem, a outra pensa que vê uma árvore. A

pessoa que pensa que vê uma árvore expressa com precisão dentro de um contexto pertinente,

a seguinte sentença: “Eu sei que aquela coisa é ali uma árvore, vejo-a claramente”. Essa frase,

nesse sentido, ganha significado dentro de seu contexto normal de uso.

Contudo, imaginemos outro cenário onde a mesma pessoa que está observando uma

árvore, e na presença de outros repete a mesma sentença: “Eu sei que aquela coisa é ali uma

árvore, vejo-a claramente”. Essa frase dita fora de contexto é uma afirmação supérflua.

Assim, com esse exemplo, Wittgenstein enfatiza a importância do contexto quando

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pretendemos expressar alguma proposição com sentido. Isso porque o significado de uma

frase é expresso dentro de seu contexto de uso.

Wittgenstein realça no aforismo 237, a importância de se levar em conta o contexto

habitual em que uma sentença é proferida. Assim, se eu disser que “uma mesa não existia há

uma hora”, quero dizer que ela foi feita mais tarde pelo carpinteiro da minha escola onde

trabalho, por exemplo. Se eu disser que “uma montanha não existia até então”, obviamente, o

que quero dizer é que ela tenha sido feita mais tarde, talvez por um vulcão. Agora se eu disser

que “uma montanha não existia há meia hora”, esta será uma declaração muito estranha. O

que permite que dada uma sentença ganhe inteligibilidade é o contexto habitual em que ela

está inserida.

Nessa mesma perspectiva, no aforismo 348, Wittgenstein diz que o uso da afirmação:

“Eu estou aqui”, só tem sentido em alguns contextos. Assim, podemos citar o seguinte

exemplo: Uma mãe está à procura de sua filha para almoçar. A garota está no quarto

navegando na internet. A mãe chama a filha pelo nome: ‘Juliana!’ A garota responde do

quarto: ‘Eu estou aqui’. Contudo, se eu disser: “Eu estou aqui”, a alguém sentado diante de

mim e vendo-me claramente – essas palavras são supérfluas.

O aforismo 467 explicita melhor a noção de contexto de Wittgenstein em Da Certeza:

Wittgenstein está sentado com um filósofo num jardim discutindo filosofia. O referido

filósofo se coloca diante de uma árvore e diz: “Eu sei que isto é uma árvore”, apontando para

uma árvore. A uma pessoa de fora que chega e ouve a conversa, Wittgenstein trata de

esclarecê-la dizendo: esses dois homens não são loucos, eles estão apenas discutindo filosofia.

Aqui, podemos observar dois contextos distintos: o contexto filosófico estrito e o

contexto ordinário de uso das expressões linguísticas. No contexto de discussão filosófica,

quando se considera a afirmação “Eu sei que isto é uma árvore”; visto que a discussão estava

restrita ao contexto filosófico, então tal afirmação será considerada. Contudo, fora do contexto

filosófico, ou seja, num contexto de conversação normal, um filósofo que afirmar: “Eu sei que

isto é uma árvore”, será considerado insano e sua afirmação sem sentido. Ao buscar esclarecer

à pessoa de fora do cenário filosófico, que eles estão somente filosofando, Wittgenstein queria

preservar o contexto de discussão filosófica, buscando, desse modo, delimitar o campo da

discussão filosófica dentro de seu contexto restrito.

É importante realçar aqui o procedimento terapêutico de Wittgenstein. Nesses

aforismos e em muitos outros em Da Certeza, Wittgenstein está preocupado com o uso

correto e adequado da linguagem. Para ele, existem profundas diferenças entre uso filosófico

e o uso ordinário dos termos linguísticos. No uso da linguagem cotidiana, as expressões

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linguísticas são claras. Todavia, a filosofia ao fazer uso das mesmas expressões da linguagem

cotidiana extrapola os limites dos usos das mesmas, dando origem a mal-entendidos ou

pseudoproblemas. É preciso, portanto, libertar o pensamento humano desses

“enfeitiçamentos” filosóficos e metafísicos por meio de procedimentos terapêuticos. Em

outras palavras, é preciso libertar e curar o entendimento humano das doenças da linguagem

ocasionada pelos problemas filosóficos, a fim de elucidar o uso correto da linguagem e, dessa

forma, esclarecer o nosso pensamento.

Nesse sentido, para Wittgenstein, o significado da expressão: “Eu sei que aquilo é uma

árvore”, por exemplo, deve ser encontrado na linguagem normal em vez de buscá-lo numa

linguagem filosófica, e só assim o significado da sentença torna-se claro e vulgar (§ 347). A

tarefa do filósofo, nesse caso, consiste em esclarecer o mau uso da linguagem. Em outras

palavras, a papel da filosofia é fazer terapia linguística. É nessa perspectiva, portanto, que

devemos entender a noção de contexto em Da Certeza.

b.1. O contextualismo epistêmico

Conforme vimos, não podemos afirmar que o Wittgenstein tenha formulado uma

teoria contextualista. O que podemos dizer, nesse sentido, é que o contextualismo epistêmico

foi sugerido pelo filósofo austríaco. E a contribuição de seu pensamento filosófico para a

construção de teorias contextualistas posteriores em resposta ao problema do ceticismo

filosófico foi de fundamental importância. Para alguns epistemólogos contemporâneos,

portanto, o aforismo 253, do Da Certeza, representa a intuição original de Wittgenstein do

que será a essência do contextualismo epistêmico: “Na raiz de uma convicção bem

fundamentada encontra-se uma convicção não fundamentada” (OC § 253) 30.

O que significa uma convicção não fundamentada? Nesse caso, uma convicção não

fundamentada são as crenças básicas que formam o nosso arcabouço de crenças inabaláveis.

A justificação dessas convicções tem um fim (§ 192). E insistir na busca de fundamentos

dessas crenças, afirma Wittgenstein, é “andar em círculo” (§ 191). Elas são as rochas

inabaláveis de nosso sistema de convicções. Como por exemplo, a prova de Moore de que

“Eu tenho duas mãos é uma crença inabalável” (§ 245). Mediante isso, como podemos

duvidar, em circunstâncias normais, de que temos duas mãos? Não existe nenhum sistema de

crenças que pudesse incluir tal dúvida (§ 247). O fato de ter duas mãos, em circunstâncias

30 Cf. Moser et al., 2009, p. 103-105.

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normais, é tão certo como qualquer coisa que pudesse apresentar a título de prova (§ 250).

Dessa forma, chegaremos aos alicerces da casa, ao fundo de nossas convicções (§ 248),

afirma Wittgenstein.

Embora o aforismo 253, do Da Certeza, represente o que muitos epistemólogos

contextualistas consideram ser a intuição wittgensteiniana para a formulação de uma teoria

contextualista frente ao problema ceticismo filosófico, é importante esclarecer que a noção de

contexto já se faz presente nas Investigações Filosóficas. No parágrafo 149 das Investigações

Filosóficas, o filósofo esclarece que uma palavra só ganha significado no contexto31 de uma

sentença.

Essa passagem das Investigações evidencia a influência que Wittgenstein teve do

princípio do contexto do filósofo matemático alemão Gottlob Frege. De acordo o princípio do

contexto de Frege, a pessoa não deve perguntar pelo significado de uma palavra tomada

isoladamente, pois é somente no contexto de um enunciado que ela ganha significado. Com

essa formulação, Frege sugere que o sentido e a referência não são propriedades absolutas das

expressões linguísticas, mas depende do contexto das proposições (PENCO, 2004, p. 63).

Desse modo, o princípio do contexto de Frege torna-se o núcleo de uma nova noção de

significado. Ele ataca a tese de que o significado da palavra é uma imagem mental subjetiva e

privada, como postulava o internalismo cartesiano, e sugere que o conteúdo objetivo de uma

informação é expresso mediante a linguagem, que é compartilhada por todos os falantes

dentro de uma comunidade linguística.

No atual contexto filosófico, existe uma variedade de abordagens contextualistas como

as abordagens propostas por David Anis, Keith DeRose, Stewart Cohen, David Lewis e Peter

Unger, entre outras. Todas essas posições contextualistas são mais ou menos correlatas. Elas

indicam, grosso modo, que a justificação do conhecimento é relativa ao contexto32.

31 É importante ressaltar que a noção de contexto em Wittgenstein, num primeiro momento, foi influenciada por

G. Frege e pelo Tractatus. Nesse período, a noção de contexto-dependente é bastante limita à dependência de um

tipo de análise formal das proposições. Na fase de transição, correspondente aos anos 1928 a 1936, Wittgenstein

‘desmantela’ os pressupostos do atomismo lógico que marcou a fase do Tractatus. Com isso, a noção de

contexto é ampliada e o sentido de uma proposição passa a depender de um sistema de cálculo no qual é

aplicada. Assim, eu não preciso mais olhar para simples constituintes atômicos que compõe uma proposição,

mas para o um sistema de regras que a determina. Na última fase, correspondente às Investigações Filosóficas e ao Da Certeza, Wittgenstein substitui o paradigma dos sistemas de cálculos (ainda exatos, tendo como modelo

um jogo de xadrez) pela noção mais vaga de jogos de linguagem. Nessa fase, uma proposição só ganha sentido

em um contexto de uso, tendo como pano de fundo as formas de vida (Weltbild). O slogan contextualista do

segundo Wittgenstein é o seguinte: “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem” (IF § 23). Assim,

uma palavra só adquire sentido no contexto de uma proposição; uma proposição só adquire sentido em um

contexto de uso (jogo de linguagem); e um jogo de linguagem só adquire sentido no contexto de uma forma de

vida (SIQUEIRA, 2011, p. 68-70). 32 Smith classifica as teorias contextualistas em dois grupos: (I) aqueles que entendem que há graus no rigor

quando se trata de justificação. Num contexto epistemológico, o rigor seria máximo e somente diríamos que uma

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Em nosso caso, trataremos de discutir a abordagem contextualista de DeRose e Cohen.

Na visão desses epistemólogos contextualistas, contexto significa contexto de justificação do

conhecimento. Escolhemos essas duas abordagens contextualistas por acreditar que elas se

aproximam mais de uma visão wittgensteiniana de contexto. Para o contextualismo, os

valores verdades das proposições podem variar de acordo com propostas, expectativas e

intenções do falante, que proferem sentenças em contextos determinados.

Num dado contexto de discussão cética, por exemplo, S pode “não saber que possui

duas mãos”, dado o elevado padrão de exigência do contexto cético de conversação, ao passo

que num contexto normal, S pode “saber que tem duas mãos”, dados os padrões de exigência

para o conhecimento serem mais baixos.

Os contextualistas concordam que um falante, num contexto de conversação ordinário,

pode dizer verdadeiramente que S sabe que p, devido aos padrões epistêmicos de um contexto

ordinário serem mais baixos, enquanto que no contexto epistemológico, um outro falante pode

verdadeiramente dizer que S não sabe que p, dado os padrões epistêmicos do cenário cético

serem mais elevados. Nesse caso, os dois falantes podem estar dizendo a verdade sobre o

mesmo S e sobre o mesmo p ao mesmo tempo.

Isso significa dizer, portanto, que os padrões epistêmicos de justificação não são

uniformes. Eles variam de acordo com o contexto de atribuição do conhecimento. Sendo

assim, para o contextualista, uma vez que o conhecimento está sujeito à variação contextual,

isso evitaria que esse mesmo conhecimento desemboque numa conclusão cética. E isso faz da

teoria contextualista de atribuição do conhecimento uma abordagem relevante para análise e

refutação do ceticismo filosófico.

b.1.1. O contextualismo de Stewart Cohen

Cohen defende a posição contextualista de que a justificação do conhecimento é

sensível ao contexto de atribuição. Isso significa dizer que os valores verdade das proposições

linguísticas variam conforme as propostas, intenções, expectativas e pressuposições dos

falantes em contextos determinados. De acordo com Cohen, o padrão de justificação de um

crença constitui conhecimento, se a justificação estabelece de maneira absoluta e definitiva a sua verdade; no

contexto da vida cotidiana, o rigor é obviamente menor e diríamos que alguém sabe alguma coisa quando é

capaz de dar uma razão que satisfaz as exigências cotidianas de justificação, ainda que, no contexto

epistemológico, essa justificação possa ser considerada insuficiente. De outro lado, (II) aqueles que entendem

que há diversos contextos e que, em cada contexto, varia o que deve ser justificado, de acordo com as

possibilidades relevantes que apresentam no contexto específico (SMITH, 2006, p. 18).

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cenário cético é muito exigente e elevado e o padrão epistêmico de um cenário contextualista

é mais leve e relaxado.

O exemplo dado pelo próprio Cohen indica o que se entende por variação contextual:

Mary e John estão no aeroporto de L.A. aguardando para tomar um certo voo para

New York. Eles desejam saber se o voo tem escala em Chicago. Mary e John escutam por alto alguém perguntar a um passageiro Smith se ele sabe se o voo para

em Chicago. Smith olha no itinerário de viagem que ele conseguiu com um agente

de viagem e responde, ‘Sim, eu sei – ele para em Chicago’. Acontece que Mary e

John têm um contato de negócios muito importante que eles farão no aeroporto de

Chicago. “Será confiável esse itinerário? Ele poderia conter um erro de impressão.

Eles poderiam ter mudado a rota no último minuto’. Mary e John concordam que

Smith realmente não sabe que o voo irá parar em Chicago. Eles decidem checar com

um agente da linha aérea (COHEN, 1999, p. 58).

Nessa citação de Cohen, nota-se que existem dois contextos com dois padrões de

justificação do conhecimento. O contexto de Smith com um padrão de justificação do

conhecimento mais frouxo e mais relaxado; e o contexto de Mary e John com um padrão de

justificação do conhecimento mais exigente. Qual dos dois padrões é o correto?

Cohen aponta 03 repostas possíveis frente a essa questão: (i) Smith está certo, o

padrão de justificação do conhecimento de Mary e John é muito forte; (ii) Mary e John estão

certos, o padrão justificação de Smith é muito fraco; (iii) Nenhum dos dois padrões é o

correto, ambos são fracos. Qual das 03 respostas é a correta? Para uma posição contextualista

nenhum das 03 respostas parece ser satisfatória. É o contexto que vai determinar qual é o

padrão correto.

Assim, por um lado, quando Smith diz que “sabe” que o voo para em Chicago,

considerando o padrão fraco operado por ele naquele contexto, o que ele diz é verdadeiro. Por

outro, quando Mary e John dizem que “não sabem” que voo faz escala em Chicago, o que eles

afirmam também é verdadeiro, dado o padrão estrito operado naquele contexto. Isso significa

que é o contexto determina o valor verdade de justificação do conhecimento (Idem, ibidem, p.

59).

Na opinião de Cohen, há 03 fatores que influenciam na variação dos padrões de

justificação do conhecimento dentro dos contextos de atribuição: (a) Fatores sociais – Eles é

que tornariam plausível supor que um sujeito pode ter boas razões para acreditar que p; (b)

Indexicalidade – Significa que as condições verdade de conceitos como “alto” e “plano” se

fazem presente no conhecimento, ou seja, significa que a justificação de conhecimento são

indexicais; (c) Circunstâncias do sujeito – Significa que são as condições internas e externas

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do sujeito que determinam o que é relevante em cada contexto (WILLIGES, 2009, p. 112-

117).

Consideremos agora os 03 fatores apontados por Cohen, aplicados aos padrões de

Smith, Mary e John. Pretendo aplicá-los, em primeiro lugar, ao padrão de Smith; em seguida,

ao padrão de Mary e John. Vamos ao caso de Smith: I - Fatores sociais - (o itinerário de

viagem, o agente de viagem, as pessoas que esperavam o avião para Chicago, o agente de

viagem) – essas provas comumente aceitas pelos viajantes foram suficientes para Smith saber

que o avião tinha escala em Chicago; II - Indexicalidade (o próprio itinerário e talvez a

palavra do agente de viagem confirmando que “sim” o avião parava em Chicago); III -

Circunstâncias do sujeito - Estar no aeroporto na presença de pessoas que esperavam o

mesmo voo, o itinerário do avião e o agente de viagem (condições externas) influenciaram na

certeza que Smith tinha de saber o avião tinha escala em Chicago (condições internas).

Vamos agora aos fatores que provavelmente levaram Mary e John a não acreditarem

que o avião parava em Chicago: I - Fatores sociais – (o itinerário de viagem, o aeroporto, as

pessoas que estavam no aeroporto à espera do avião e as palavras de Smith) – essas

evidências comumente aceitas não foram suficientes para Mary e John saberem que o avião

fazia escala em Chicago; – II – Indexicalidade – Mary e John, talvez por prudência, não

confiavam no itinerário e nas palavras de Smith que confirmavam que “sim” o avião fazia

escala em Chicago, e por isso, não estavam seguros o bastante para saberem que avião parava

em Chicago; III – Circunstâncias do sujeito – o contato importante que tinham para fazer em

Chicago (circunstância externa) e a dúvida que os atormentavam, talvez por causa de

experiências passadas de erro de impressão de itinerário de vôo, talvez pelo fato do avião ter

havido mudado de rota algumas vezes no último minuto (circunstância subjetiva).

Percebemos que todas as razões que levaram Mary e John a não acreditarem em Smith

e no itinerário de vôo, bem como as circunstâncias externas objetivas falharam nesse caso.

Assim, as suas razões foram subjetivas. Constatamos, com isso, que Smith representa o

homem comum, cujas circunstâncias externas constituem mecanismo causal de formação de

crença (externalista/contextualista), e Mary e John representam o cético cartesiano, que busca

manter uma postura de “desconfiança” e “suspeita” em relação ao mundo exterior

(internalista/contextualista).

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b.1.2. O contextualismo de Keith DeRose

Assim como Cohen, DeRose defende também a posição contextualista de que a

justificação do conhecimento é sensível ao contexto de atribuição. Para ele, a sua posição

contextualista não é uma teoria sobre a estrutura de justificação do conhecimento que venha

servir como alternativa ao coerentismo ou ao fundacionalismo33. E nesse caso não haveria

nenhum problema para um fundacionalista ou coerentista adotar a sua teoria contextualista e

continuar a defender a sua posição fundacionalista ou coerentista.

Aos adversários34 que atacam a sua posição contextualista, de que sua teoria não faz

parte da epistemologia, mas da filosofia da linguagem; DeRose busca rebatê-los afirmando

que a filosofia da linguagem é de grande importância para a epistemologia. Quando se

discute, pois, sobre o que é “conhecer” alguma coisa implica discernir o que significa dizer

que alguém conhece alguma coisa, e isso envolve, portanto, a linguagem. Quando os teóricos

discutem, por exemplo, a questão do livre arbítrio versus determinismo, eles devem

certamente estar interessados na discussão sobre o significado de uma “ação livre”, pois os

significados mudam de acordo com o contexto e conhecer a mudança do significado de “ação

livre” nos diferentes contextos é de fundamental relevância para o conhecimento. Do

contrário, afirma De Rose, se houver mudança “estaremos fadados a cair em todo tipo de erro

acerca do conhecimento, assim, acerca do “conhecer”, se pensarmos que tais mudanças

ocorrem” (DEROSE, 2008, p. 300-301).

Alguns epistemólogos contemporâneos distinguem “contextualismo do sujeito” de

“contextualismo do atribuidor”. Embora não considere essa distinção uma questão de

relevância para o debate epistemológico, DeRose esclarece que a sua posição se encaixa

naquilo que a tradição chama de “contextualismo do atribuidor”. O que significa

“contextualismo do atribuidor”? Significa que num dado contexto conversacional entre dois

ou mais falantes, busca-se atribuir conhecimento a alguém. O exemplo a seguir ilustra o que

queremos dizer.

33 DeRose esclarece que a sua posição contextualista se diferencia da posição defendida por David Annis na

década de 70. Em seu artigo A contextualist Theory of Epistemologic Justification, Annis apresentou a sua

versão contextualista como alternativa estrutural ao coerentismo e ao fundacionalismo (DEROSE, 2008, p. 303). 34 Na opinião de DeRose, um dos grandes adversários do contextualismo é o invariantismo de Peter Unger. Em

seu artigo Ignorance de 1970, Unger defendeu a seguinte posição: para alguém conhecer algo é preciso estar

numa posição epistemicamente forte, bastando um simples grupo de padrões epistêmicos para regular as

atribuições de conhecimento, não importando em que qual contexto fosse proferido. Essa posição de Unger

levaria um invariantismo cético, porque os padrões de conhecimento são exigentes e inflexíveis, portanto,

difíceis de serem satisfeitos para os mortais, e assim, o cético estará certo ao desafiar as nossas crenças

ordinárias, quando afirma que não sabemos aquilo que pensamos que sabemos. Segundo DeRose, mesmo depois

abraçar a causa contextualista na década de 80, Unger parece não abandonar a sua posição de que o

invariantismo é superior ou pelo menos igual ao contextualismo (Idem, ibidem, p. 309).

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Numa conversa entre amigos, eu e Ronaldo estávamos discutindo o tema das

Alternativas relevantes de Dretske. Esse tema abordado pela epistemologia contemporânea

possui padrões epistêmicos bastante elevados e, por conseguinte, exigia de nossa parte muita

atenção. Gabriel, outro amigo do curso de filosofia, e que conhecia bem o tema discutido,

parecia não se interessar muito em nossa conversa. Ele estava mais interessado na conversa

dos colegas da turma de ciências políticas que discutiam sobre a conjuntura política do Brasil,

após as eleições presidenciais de 2010, com a vitória de Dilma Rousseff; portanto, nesse

contexto conversacional os padrões de justificação do conhecimento eram mais flexíveis e

frouxos. Embora eu estivesse disposto a negar conhecimento a Gabriel; porém, considerando

o contexto conversacional em que Gabriel estava engajado e o seu interesse pelo assunto

discutido, era possível negar conhecimento a Gabriel? Claro que não. O contexto

conversacional em que Gabriel estava engajado exigia padrões mais flexíveis e frouxos de

discussão.

Conforme DeRose, embora os padrões de justificação fossem estabelecidos pelo

atribuidor do conhecimento; nesse caso, no “contextualismo do atribuidor” não existe nada

que desconsidere o fato de que “entre muitos padrões que o contexto de um falante pode ter

estão os padrões relevantes para o contexto do sujeito” (DEROSE, 2008, p. 306).

Assim, os padrões de justificação do conhecimento dependem do que as pessoas

dizem em conformidade com o contexto. Para isso, numa discussão em que o sujeito

epistêmico está engajado deve-se levar em conta 04 fatores: (i) o assunto discutido; (ii) o que

ocorre na conversa em que o sujeito está envolvido; (iii) a comunidade em que o sujeito está

envolvido; (iv) os padrões de exigência de discussão.

Para DeRose, a crença verdadeira de S em p, que é sensível ao contexto de atribuição,

deve combinar com o fato de que p é verdadeiro não só no mundo de S, mas num mundo mais

próximo ao mundo de S. Dessa forma, quanto maior for a quantidade de mundo onde S

acredita que p e p seja verdadeiro, mais forte será a posição epistêmica de S com relação a p.

Diante disso, como é que S sabe que a sua a crença é verdadeira, isto é, que esteja numa

posição epistemicamente forte com relação a p? Para isso, DeRose adota o princípio de

rastreamento trabalhado por Dretske e Nozick35. Segundo o rastreamento, a crença de S

rastreia a verdade de p longe o bastante do mundo atual até os mundos onde não-p é o caso.

Quanto mais distante a crença de S rastrear a verdade de p, mais forte, então, será a posição

35 COHEN, 1999, p. 70.

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epistêmica de S em relação a p e, assim, mais sensível será a crença de S em p. Dessa maneira,

então, a sensibilidade de que p depende de quão distante for o mundo onde não-p.

É possível estabelecer relação entre a noção de contexto de Wittgenstein em Da

Certeza e as teorias contextualistas de Cohen e DeRose. Para isso, buscaremos destacar, em

primeiro lugar, os pontos convergentes entre o contextualismo de Cohen e DeRose e a noção

de contexto de Wittgenstein em Da Certeza; em seguida, destacaremos o ponto divergente

que consideramos fundamental para a nossa análise.

Vamos aos pontos convergentes: (a) Para o contextualismo de Cohen e DeRose e a

noção de contexto de Wittgenstein em Da Certeza, é importante considerar o contexto no

processo de atribuição de conhecimento; (b) Para o contextualismo de Cohen e DeRose e a

noção de contexto de Wittgenstein, o valor verdade de uma sentença é expresso dentro de um

contexto de conversação; e isso envolve considerações semânticas acerca do uso das palavras

como “alto” e “baixo”, “alegre” e “triste”, “feio” e “bonito”, e tais sentenças variam conforme

o contexto de atribuição; (c) Para o contextualismo de Cohen e DeRose e a noção de contexto

de Wittgenstein, a vida social dos falantes é fator importantíssimo quando se busca atribuir

conhecimento a alguém. Para Cohen e DeRose e Wittgenstein, os seres humanos estão

inseridos numa determinada comunidade que, por sua vez, exerce influências na vida dos

falantes. Por isso, é necessário considerar o contexto social em que os indivíduos estão

engajados no processo de atribuição conhecimento.

O ponto fundamental que consideramos divergente entre as teorias contextualistas de

Cohen e DeRose e a noção de contexto de Wittgenstein em Da Certeza é o seguinte:

Wittgenstein, além de diagnosticar o problema do ceticismo filosófico, busca dissolvê-lo ou

neutralizá-lo através de método terapêutico do uso linguístico.

Para Wittgenstein, a dúvida cética representa um problema filosófico que deve ser

tratado e curado. Para isso, é necessário entrar no jogo de linguagem do cético e entender a

sua dúvida universal, pois o jogo que ele pratica não é o nosso (§ 255). A sua pergunta é mais

ou menos assim: “Que direito tenho eu de não duvidar da existência das minhas mãos?”

Wittgenstein afirma que uma pessoa que faz uma pergunta dessa não está levando em conta

que uma dúvida sobre a existência do mundo exterior como essa, só tem cabimento no jogo de

linguagem (§ 24). É preciso mostrar para o cético que a sua dúvida universal é sem

fundamento (§ 322).

Nesse sentido, poderíamos até duvidar de algum fato isoladamente, mas não de todos

(§ 232). Duvidar de todos os fatos significa duvidar de nossa ação prática no mundo. É como,

por exemplo, duvidar da utilidade de uma toalha estendida num banheiro, após um banho.

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Ora, ninguém duvida disso, a pessoa pega a toalha sem dúvida (§ 510). Nesse sentido, uma

dúvida universal inviabilizaria o nosso atuar no mundo. É preciso, pois, reconduzir o filósofo

cético àquilo que as pessoas sensatas acreditam (§ 254). Com isso, Wittgenstein quer mostrar,

por meio de seu procedimento terapêutico, que uma dúvida não é somente sem sentido, mas

também contraditória. Ela destruiria a si mesma. O cético é como alguém que serra o próprio

galho em que está apoiado (SMITH, 2010, p. 75).

Essa não é a preocupação das teorias contextualistas. O objetivo do contextualismo de

Cohen e DeRose, nesse caso, consiste em isolar o conhecimento cotidiano da devastação

cética, e assim, o ceticismo filosófico não será rejeitado, mas contido. Isso acontece quando o

contextualista preserva a dúvida cética dentro do contexto epistemológico do cético, com

padrão epistêmico mais elevado. Uma vez que o contextualista trabalha com a ideia de

variação contextual, assim o que é conhecimento dentro de um contexto ordinário, com

padrão epistêmico mais baixo, não é dentro de um contexto cético, cujo padrão é mais

exigente e elevado. Quem está certo, nesse caso? Ambos estão certos. Os padrões epistêmicos

são sensíveis ao contexto de atribuição do conhecimento.

Diante disso, podemos constatar duas propostas anticéticas: a proposta teórica do

contextualismo de Cohen e DeRose e a proposta terapêutica da noção de contexto de

Wittgenstein em Da Certeza. Sendo que, nesse caso, consideramos que a proposta terapêutica

de Wittgenstein é mais interessante do ponto de vista filosófico, porque ao buscar dissolver o

problema do ceticismo cartesiano no “solo firme” dos jogos de linguagem, Wittgenstein trata

de esclarecer a linguagem e elucidar o pensamento humano.

Conforme vimos, a proposta teórica do contextualismo de Cohen e DeRose não

responde ao desafio do ceticismo cartesiano por meio de procedimentos terapêuticos, como se

propõe Wittgenstein, mas o preserva dentro de seu contexto epistemológico. Contudo, é

importante realçar que a pesar do contextualismo não eliminar o ceticismo, ele admite a

exigência por conclusão sem desembocar numa conclusão cética. Como isso é possível? Isso

é possível quando o contextualista busca sujeitar a conclusividade do conhecimento à

variação contextual.

Além de não eliminar o ceticismo filosófico, há alguma outra objeção ao

contextualismo? Aqui vale a pena registrar a crítica de Ernest Sosa36. Ele acusa o

contextualista de cometer falácia metalinguística, ao alegar que quando fazemos

epistemologia estamos trabalhando com questões sobre as condições e natureza do

36 Cf. COHEN, 1999, p. 79-80.

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conhecimento, e o contextualista, porém, em respostas a essas questões apelam para

afirmações metalinguísticas na forma de S sabe que p, que são verdadeiras em contextos

ordinários.

Para os contextualistas, em sentenças do tipo S sabe que p, empregadas em contextos

ordinários, os padrões de justificação são mais relaxados do que os empregados na mesma

sentença, quando usada em contextos epistemológicos. Com isso, exige-se menos de um

contexto ordinário do que de um contexto onde fazemos epistemologia.

De acordo com Sosa, a falácia metalinguística ocorre quando os contextualistas

afirmam usar corretamente sentenças na forma de S sabe que p em contextos ordinários e,

com isso, dar uma resposta afirmativa de que sabemos muitas coisas, quando tratamos dessa

questão em um contexto epistemológico estrito. Desse modo, quando o contextualista usa a

expressão saber/conhecer os padrões relevantes do contextualista governam os padrões de

atribuição de conhecimento dentro de um contexto epistemológico.

Ora, nem todos os contextos em que fazemos epistemologia são os mesmos. Contextos

onde investigamos a natureza e condições do conhecimento diferem do contexto onde

estamos investigando a extensão do conhecimento. Para Sosa, portanto, uma sentença na

forma de S sabe que p que é verdadeiro em contexto ordinário nem sempre mantém contato

com o que dizemos em contexto filosófico estrito.

Nesse caso, mesmo não sendo um contextualista, Moore se equivocou ao buscar dar

resposta ao desafio cético recorrendo às proposições cotidianas, no sentido de provar que

estamos numa posição favorável para saber muitas coisas à nossa volta. Ora, ele faz isso

dentro de um contexto epistemológico, onde o nível de justificação é elevado. Com isso,

Moore é acusado de manipular os padrões epistêmicos válidos para o contextualista, ao levar

para dentro do contexto epistemológico estrito, o debate sobre a existência do mundo exterior.

Aqui, percebemos que o contextualista é acusado por Sosa de manipular os padrões

epistêmicos em favor de seu contextualismo. Acusação semelhante é também feita pelos

contextualistas contra o cético. Na opinião de DeRose, os contextualistas em geral alegam que

o cético cartesiano manipula os padrões semânticos dos contextos ordinários, ao criar, por

meio de seus argumentos céticos, contextos com padrões epistêmicos de justificação elevados

e, com isso, mostrar que não sabemos nada ou sabemos pouco do pensamos saber (DEROSE,

2008, p. 310-310).

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CONCLUSÃO

Ao longo desse trabalho de investigação, observamos que o ceticismo sobre o mundo

exterior representa um dos problemas filosóficos cruciais para o debate epistemológico da

filosofia contemporânea. E não há, portanto, como deixar de reconhecer a sua importância.

Sendo assim, as críticas que pesam contra esse tipo de ceticismo só ganham significado dentro

de uma discussão filosófica mais ampla.

Em primeiro lugar, é importante deixar claro que o filósofo cético é um ser humano

sensato como qualquer outro, que acredita que as coisas que estão ao seu redor existam,

acredita também que tem um corpo e que sente o calor do fogo quando está se aquecendo

diante de uma lareira, ou ainda, quando está agasalhado numa noite fria de inverno. E ao

tratarmos o cético cartesiano como um louco e o seu ceticismo como exagerado e

extravagante, isso só evidencia a nossa ignorância com relação à sua proposta filosófica, ou

melhor, não entendemos o seu jogo de linguagem (OC §§ 60-65; 255-56).

Por isso, para entrar na discussão filosófica contemporânea a respeito do problema do

ceticismo cartesiano é preciso conhecer o “pano de fundo” desse debate no contexto da

filosofia moderna. O problema do ceticismo acerca do mundo exterior, segundo Porchat

Pereira, reside numa teoria mentalista do conhecimento inaugurada por Descartes com a

filosofia moderna, a saber: a distinção ou oposição entre o mental e o não-mental, sendo que o

mental representa o universo da interioridade humana e o não-mental o mundo exterior.

A mente humana, para Descartes, representa o espaço dado ao ser humano, o lugar

onde as dúvidas e as crenças humanas são formadas. E é nesse espaço privilegiado do ser

humano, portanto, que ocorre a representação do mundo exterior. Dessa forma, o problema do

ceticismo cartesiano implica efetivamente uma distinção radical entre o mental e o corporal,

entre o sujeito de representação e o objeto representado. Ora, sendo a mente, o espaço

privilegiado do ser humano para se ter acesso à realidade ao nosso redor, assim, o mundo

exterior se constitui, na perspectiva de cartesiana, um problema filosófico relevante.

Em síntese, o espaço privilegiado conferido por Descartes à mente humana, bem como

a identificação do eu como espírito, é o pressuposto que engendra o ceticismo sobre o mundo

exterior (PORCHAT PEREIRA, 1994, p. 134-62). Sem entender essa questão de fundo,

torna-se difícil compreender a disputa entre o realismo mooreano e idealismo cartesiano,

assim como a proposta intermediária de Wittgenstein em Da Certeza.

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Frente ao problema do ceticismo cartesiano, que desafia o nosso conhecimento mais

genuíno sobre as coisas do mundo exterior, como resposta a esse problema, na filosofia

contemporânea, apresentamos duas propostas: (a) o realismo do senso comum de Moore,

presente em seus dois ensaios: Uma defesa do senso comum e Prova de um mundo exterior; e

(b) a terapia da gramática dos operadores epistêmicos dos verbos duvidar e saber, de

Wittgenstein no texto Da Certeza, e ligado ao seu procedimento terapêutico, a noção de

contexto nesse referido texto, e que serviu de sugestão para o projeto de teorias contextualistas

na filosofia contemporânea.

Vimos que a proposta realista do senso comum mooreana se coloca como uma

proposta interessante na medida em que substitui a teoria tradicional internalista de

justificação epistêmica, pela descrição de um processo confiável de construção do

conhecimento, cuja fonte é o mundo exterior. Um mundo onde duas ou mais pessoas

interagem entre si. Nessa relação com o mundo natural, uma pessoa pode produzir crenças

confiáveis, desde que ela esteja em condições favoráveis (objeto próximo, luminosidade boa,

ar transparente) e que suas percepções sensoriais funcionem bem (não seja míope nem

daltônica). Sendo necessário, para tanto, que uma ou mais pessoas examinem sua situação

epistêmica para mostrar a confiabilidade desse processo causal de crenças. Dessa forma, para

o externalista, uma vez que o mundo exterior constitui fonte causal de conhecimento, a

pessoa conhece que p e, assim, ela pode nos fornecer uma explicação confiável de como as

suas crenças verdadeiras foram formadas.

Mediante isso, tendo por base um processo confiável de formação de crenças, o

externalista pode provar ao cético cartesiano que a sua dúvida cética universal não tem

fundamento e, dessa forma, o ceticismo filosófico seria refutado. Qual seria então o

procedimento do externalista? Diante de hipóteses céticas, como a hipótese do gênio maligno

e do sonho, tendo por base as suas percepções sensíveis e as condições favoráveis de

percepção das coisas externas à sua volta, o externalista pode provar para o cético cartesiano,

que ele é uma pessoa de carne e osso, que possui mãos e que está acordado e,

consequentemente, que ele não está sonhando ou sendo enganado por um gênio maligno. Mas

será isso suficiente para provar a existência do mundo exterior frente ao ceticismo filosófico?

É claro que não. Com isso, a proposta anticética externalista mooreana como resposta ao

desafio colocado pelo ceticismo filosófico sofreu inúmeras críticas, como as que seguem:

Para muitos epistemólogos contemporâneos, ao buscar provar para o cético idealista

que os objetos físicos existem independentes de uma mente que os percebe, Moore

desembocou num realismo dogmatismo. Isso porque o tipo de argumentação apresentada por

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Moore é a seguinte: diante da manifestação efetiva das coisas exteriores, quando alguém lhe

perguntava se sabia todas essas coisas, ele simplesmente reiterava que sabia. Sem oferecer,

portanto, nenhuma explicação adicional. Com isso, a sua resposta não era mais bem

fundamentada que a do cético idealista, proposta que ele tanto rejeitou em sua defesa do senso

comum.

Nesse caso, os únicos critérios empregados por Moore são os que empregamos em

nossa vida cotidiana, derivados do senso comum. Uma vez que suas evidências empíricas de

que temos corpos são derivadas dos cinco sentidos como: a visão, a audição, o tato, o paladar

e o olfato e que constituem, portanto, evidências adequadas para a formação de um

conhecimento verdadeiro, de que “Tenho um corpo”, de que a “Terra existe antes do meu

nascimento”, o cético cartesiano pode lhe perguntar de que forma o apelo a critérios

cotidianos pode se aplicar às conhecidas questões filosóficas acerca da confiabilidade da

experiência sensorial. Dessa forma, então, as dúvidas céticas levantadas não seriam dirimidas

de modo conclusivo recorrendo às discussões do senso comum.

Para Wittgenstein, o que Moore está tentando estabelecer são teses filosóficas e

metafísicas da realidade e, desse modo, garantir um conhecimento seguro e certo do mundo

exterior frente ao ataque do filósofo cético idealista. E para isso ele recorre a crenças óbvias

do senso comum que são incontestes, inclusive para o próprio cético cartesiano. O que Moore

não percebeu, no entanto, é que a discussão do cético está em outro patamar. O cético exige

um tipo de objetividade diferente daquela que usamos em nossa vida cotidiana. A questão que

o cético coloca é seguinte: Para além da realidade que aparece para mim (no caso “duas

mãos” de Moore), será que existem realmente duas mãos? O filósofo britânico não percebeu

que as crenças ordinárias do senso comum com base nos cinco sentidos, não têm a mesma

pretensão de uma objetividade absoluta, ou seja, não visam à realidade para além do que é

percebida pelos sentidos (SMITH, 2004, p.27-28). Em outros termos, Wittgenstein observa

que a resposta de Moore não pode ser simplesmente “sei que existem”, porque uma dúvida

sobre a existência do mundo exterior só tem cabimento no jogo de linguagem. Em primeiro

lugar, teríamos que perguntar o que seria uma dúvida desta (OC § 24).

Wittgenstein quer dizer com isso que qualquer dúvida tem como pressuposto um jogo

de linguagem, e Moore, porém, ao buscar provar a existência do mundo exterior, não está

considerando que a pergunta colocado pelo cético é natureza filosófica. É preciso, portanto,

entrar no jogo de linguagem do cético para entender a sua dúvida e, assim, dissolvê-la. E

como isso acontece? Mostrando para o cético que a sua dúvida não tem razão de ser, porque

ela carece de fundamentos racionais. É preciso, portanto, reconduzir o cético idealista ao que

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as pessoas sensatas acreditam, e não é sensato duvidar da existência do mundo exterior. Para

isso, o filósofo precisa conhecer o contexto de uso dos jogos de linguagem, ou seja, em que

circunstâncias normais de uso eles estão sendo jogado.

Moore, nesse sentido, usou os jogos de linguagem de forma descabida. Ele confundiu

às vezes o emprego do verbo saber por acreditar fora de seu contexto restrito de uso. O uso

incorreto de “Eu sei” se manifesta, por exemplo, quando Moore buscou provar a uma plateia

que objetos exteriores existem, ao mostrar as suas duas mãos e dizer: Sei que aqui há uma

mão e aqui há outra. Ora, por se tratar de uma sentença óbvia num contexto normal de uso,

não cabe levantar dúvida em relação a essa afirmação. Seria, portanto, uma dúvida sem

sentido. Dessa forma, então, o filósofo britânico empregou o verbo saber de forma indevida,

porque a finalidade do emprego do eu sei em nossos jogos de linguagem é remover dúvidas

ou oferecer segurança a alguém. O texto Da Certeza, como vimos, apontou vários outros

exemplos de emprego indevido por parte de Moore dos operadores epistêmicos como duvidar,

acreditar, saber. Considerando tudo isso, é possível concluir que a proposta externalista de

Moore não respondeu ao desafio colocado pelo cético cartesiano diante de nosso

conhecimento cotidiano a cerca do mundo exterior.

No último capítulo, vimos ainda que Wittgenstein assumiu uma postura intermediária

entre o realismo do senso comum de Moore e o idealismo de Descartes. Moore, ao buscar

provar, com base nas sentenças óbvias do senso comum, que podemos saber com certeza uma

série de coisas acerca do mundo exterior, sem precisar argumentar a favor delas, ele

desembocou numa espécie de realismo dogmático; e Descartes, com as suas hipóteses céticas

hiperbólicas, que desafiam o conhecimento humano mais genuíno acerca das coisas, colocou

em xeque a pretensão humana de saber.

Diante dessa disputa entre o realismo mooreano e o idealismo cartesiano, Wittgenstein

assume um tipo de racionalidade que opera estritamente no âmbito da vida comum sem

nenhuma implicação filosófica metafísica ou dogmática. Um tipo de racionalidade prática

que tem como núcleo a linguagem humana. Os jogos de linguagem que, com suas regras

gramaticais, orientam o agir humano dentro das formas de vida humana. É no interior de um

contexto de formas de vida, portanto, que tem como fundamento lógico os jogos de

linguagem que os problemas filosóficos (dentre os quais se coloca a questão do cético

cartesiano) ganham relevância e são dissolvidos.

No último capítulo, vimos que a proposta de análise terapêutica dos operadores

epistêmicos dos verbos saber e duvidar, ligada a uma noção de contexto representa a

contribuição original de Wittgenstein como resposta ao problema do ceticismo cartesiano.

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Uma vez que a linguagem constitui as normas da ação e do pensamento dos seres humanos no

mundo, ir contra essas normas, portanto, inviabiliza o nosso próprio agir e pensar num mundo

compartilhado por outras mentes. Sendo assim, quando o cético cartesiano, com o seu

argumento radical do sonho desafia a nossa intuição mais genuína de que podemos saber

muitas coisas, Wittgenstein trata logo mostrar que a dúvida tem como pressuposto um jogo de

linguagem que é partilhado por outras pessoas dentro de uma forma de vida. E uma

possibilidade de duvidar, no entanto, não pode eliminar a existência de normas linguísticas

que são compartilhadas por uma comunidade humana, cujos jogos de linguagem constituem o

fundamento lógico da ação e do pensamento humano no mundo.

Quando cético cartesiano, porém, desafia o nosso conhecimento genuíno sobre a

existência do mundo exterior, ele arrasta consigo a própria possibilidade de duvidar. Melhor

dizendo, uma vez que a sua dúvida cética universal do sonho pressupõe jogos de linguagem, e

ao colocar em dúvida o pressuposto fundamental de sua dúvida, o cético cartesiano arrasta

consigo para o “redemoinho” de sua dúvida universal e radical, o próprio sentido de duvidar.

No aforismo 383 do Da Certeza, Wittgenstein faz uma observa muito pertinente a esse

respeito. Para ele, o argumento do sonho é um absurdo, porque qualquer afirmação pressupõe

consciência e discurso com sentido. E Descartes, porém, ao propor o seu argumento do sonho,

a sua observação pode ser também um sonho e suas palavras proferidas com significado são

também um sonho.

Com isso, uma dúvida radical e universal sobre as normas dos jogos de linguagem,

destruiria a nossa própria possibilidade da dúvida. Nesse sentido, em Da Certeza,

Wittgenstein nos esclarece por meio de procedimentos terapêuticos dos usos da linguagem, a

sua posição anticética no aforismo 6.51 do Tractatus, quando diz contra Russell:

O ceticismo não é irrefutável, mas manifestamente um contrassenso, se pretende

duvidar onde não se pode perguntar.

Pois só pode existir dúvida onde existir uma resposta; e esta só onde algo possa ser

dito (6.51).

Sendo, pois, os jogos de linguagem o fundamento lógico que orienta o pensamento e a

ação dos seres humanos no mundo, uma dúvida cética universal sobre os jogos de linguagem

é sem fundamento. Para Wittgenstein, cabe ao filósofo, nesse caso, reconduzir o cético

cartesiano àquilo que as pessoas sensatas acreditam. Dessa forma, Wittgenstein diagnosticou

a doença do ceticismo filosófico no interior da linguagem por meio da análise terapêutica.

Essa foi sem dúvida a grande originalidade do filósofo austríaco frente ao desafio do

ceticismo cartesiano.

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Percebemos que essa diagnose do problema filosófico do ceticismo cartesiano, por sua

vez, está ligada ao contexto de atribuição de conhecimento, ou seja, ao sentido de uso das

expressões linguísticas dentro de um contexto de forma de vida. Reconhecemos, pois, que só

é possível haver conhecimento quando existir compreensão entre os falantes de uma língua,

ou melhor, quando existir sentido. Em Da Certeza, é visível essa preocupação de

Wittgenstein. Para ele, o sentido de uma proposição só ganha significado dentro do um

contexto de uso dos jogos de linguagem, que constitui o fundamento lógico de uma forma de

vida. Em outros termos, qualquer discurso proferido dentro de um contexto de uso dos jogos

de linguagem compartilhado por uma forma de vida, deve ser proferido com sentido.

O ceticismo cartesiano, porém, não deve não preservado, como sugere as teorias

contextualistas de justificação do conhecimento de Cohen e DeRose. Nesse sentido, vimos

que essas abordagens contextualistas oferecem uma resposta teórica ao problema do

ceticismo cartesiano, ao impedir que o conhecimento humano desemboque numa conclusão

cética. Contudo, percebemos que o problema não é dissolvido, mas preservado dentro de seu

contexto epistemológico.

A “noção de contexto” de Wittgenstein em Da Certeza, por outro, oferece como

resposta ao problema do ceticismo cartesiano, a terapia dos operadores epistêmicos de

saber/duvidar. Ao recorrer ao método terapêutico de análise dos jogos de linguagem de

saber/dúvida, dentro do contexto de uso da linguagem, percebemos Wittgenstein dissolve esse

referido problema filosófico, tendo por base de ação dos seres humanos o “solo rochoso” dos

jogos de linguagem, lá onde a pá, escavando, entorta. Com isso, ele mostra ao cético que a sua

dúvida não tem fundamento.

Ao elaborar em Da Certeza, um conjunto de reflexões epistemológicas não somente

de fundo terapêutico, mas fundado na terapia do sentido do uso dos jogos de linguagem

dentro dos contextos de formas de vida, Wittgenstein abre o horizonte de um projeto

epistemológico do uso, ou seja, um projeto de natureza pragmática, tendo a linguagem como

o “solo firme” da ação e do pensamento dos seres humanos no mundo.

Com isso, será que Wittgenstein consegue refutar o ceticismo cartesiano? A sua

resposta terapêutica ao cético cartesiano não consegue refutar esse tipo de ceticismo

filosófico. A grande prova disso é que o problema está aí a nos desafiar há mais de 350 anos.

Contudo, ao mostrar para o cético que a sua dúvida universal é destituída de sentido, porque

ela coloca em xeque o fundamento lógico de nossos jogos de linguagem, acreditamos que

Wittgenstein, pelo menos, consegue silenciá-lo, pois a aceitação de certas crenças básicas que

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aprendemos ainda criança constitui o “pano de fundo” de nossa vida prática, sem as quais é

impossível chegar à certeza do cogito.

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