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Resumo:O Brasil atravessa um vigoroso processo de reforma psiquiátrica. Pressionado pelo Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, o Ministério da Saúde adotou como uma de suas diretrizes de ação favorecer a inclusão social dos portadores de transtornos mentais no Brasil. Nos moldes propostos pelos partidários da reforma psiquiátrica, o tratamento da psicose deve enfatizar a negação da lógica manicomial através de uma política compensatória de benefícios e da participação em movimentos sociais. Neste artigo, examinamos alguns aspectos ideológicos dessa proposta e algumas de suas inflexões clínicas. Procuramos mostrar como o efeito de circulação de discursos pode abrir campos de significação onde certos modos de compreensão e socialização são estimulados em detrimento de outros. Argumentamos que a retórica baseada na oposição entre inclusão e exclusão pode ser pensada em sua dupla incidência, clínica e ideológica. Palavras–Chave: Ideologia, psicose, tratamento, reforma psiquiátrica. Abstract: Brazil is going through a vigorous process of psychiatric reform. Pressed by the Movement of Mental Health Workers, the Health Ministry decided as one of its action to favour the social inclusion of mentally disabled people in Brazil.. According to the proposal made by the supporters of the psychiatric reform, the treatment should emphasize the negation of mental hospital logic , through a policy of benefits and the participation in social movements. In this article we examine some of its clinical inflexions. We try to show how the effect of circulation of speeches can open significant areas where some ways of comprehension and socialization are stimulated more than others. We reason that rhetoric, based on the opposition between inclusion and exclusion, can be thought in its double clinic and ideological incidence. Key Words: Ideology , psychosis, treatment, psychiatric reform. Sobre a Retórica da Exclusão: a Incidência do Discurso Ideológico em Serviços Substitutivos de Cuidado a Psicóticos Christian Ingo Lenz Dunker Professor do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos e do Instituto de Psicologia da USP. Fuad Kyrillos Neto Mestre em Psicologia pela Universidade São Marcos, doutorando em Psicologia Social pela PUC-SP, docente do Curso de Psicologia da UNIPAC. Leonardo da Vinci PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2004, 24 (1), 116-125 116 About the rethoric of the exclusion: the incidence of the ideological discourse in support services offered to psychotics Jupiterimages

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Resumo:O Brasil atravessa um vigoroso processo de reforma psiquiátrica. Pressionado pelo Movimentodos Trabalhadores de Saúde Mental, o Ministério da Saúde adotou como uma de suas diretrizes de açãofavorecer a inclusão social dos portadores de transtornos mentais no Brasil. Nos moldes propostos pelospartidários da reforma psiquiátrica, o tratamento da psicose deve enfatizar a negação da lógica manicomialatravés de uma política compensatória de benefícios e da participação em movimentos sociais. Nesteartigo, examinamos alguns aspectos ideológicos dessa proposta e algumas de suas inflexões clínicas.Procuramos mostrar como o efeito de circulação de discursos pode abrir campos de significação ondecertos modos de compreensão e socialização são estimulados em detrimento de outros. Argumentamosque a retórica baseada na oposição entre inclusão e exclusão pode ser pensada em sua dupla incidência,clínica e ideológica.Palavras–Chave: Ideologia, psicose, tratamento, reforma psiquiátrica.

Abstract: Brazil is going through a vigorous process of psychiatric reform. Pressed by the Movement ofMental Health Workers, the Health Ministry decided as one of its action to favour the social inclusion ofmentally disabled people in Brazil.. According to the proposal made by the supporters of the psychiatricreform, the treatment should emphasize the negation of mental hospital logic , through a policy of benefitsand the participation in social movements. In this article we examine some of its clinical inflexions. We tryto show how the effect of circulation of speeches can open significant areas where some ways ofcomprehension and socialization are stimulated more than others. We reason that rhetoric, based on theopposition between inclusion and exclusion, can be thought in its double clinic and ideological incidence.Key Words: Ideology , psychosis, treatment, psychiatric reform.

Sobre a Retórica da Exclusão:a Incidência do Discurso Ideológico em Serviços

Substitutivos de Cuidado a Psicóticos

Christian Ingo LenzDunker

Professor do Programade Pós Graduação em

Psicologia daUniversidade São

Marcos e do Instituto dePsicologia da USP.

Fuad Kyrillos Neto

Mestre em Psicologiapela Universidade São

Marcos, doutorandoem Psicologia Social

pela PUC-SP, docentedo Curso de Psicologia

da UNIPAC.

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PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2004, 24 (1), 116-125

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About the rethoric of the exclusion:the incidence of the ideological discourse in support services offered to psychotics

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No Brasil, uma expressiva reforma psiquiátricatomou vigor a partir da década de noventa pelainiciativa articulada dos três níveis gestores dosistema único de saúde – SUS. Tal processoredundou na modificação de algumas formasjurídicas e da ênfase de políticas públicas sobre aquestão. O projeto de lei 3.657/89, conhecidocomo lei Paulo Delgado, proíbe a construção oucontratação de novos leitos psiquiátricos pelopoder público e prevê o redirecionamento dosrecursos públicos para a criação de “recursos nãomanicomiais”. Tal projeto foi aprovado em marçode 2001 após doze anos de tramitação noCongresso Nacional. Nesse período de tramitaçãoda lei federal, oito leis estaduais entram em vigência.Concomitantemente, podemos assinalar ofechamento de um conjunto significativo dehospitais psiquiátricos que não atendiamminimamente a critérios básicos de assistência.Foram implantados serviços substitutivos aomodelo tradicional, como os leitos psiquiátricosem hospitais gerais e os chamados serviços deatenção diária, de base comunitária, que são cercade 250 em todo o País.

Na publicação oficial do Ministério da Saúde, ficamarcado de forma clara e inequívoca o objetivode:

“...alcançar em um futuro próximo uma atençãoem saúde mental que garanta os direitos e promovaa cidadania dos portadores de transtornos mentaisno Brasil, favorecendo sua inclusão social” (2000,p.5, italico nosso).

A expressão “inclusão social”, presente na formada lei, pode ser considerada como um enunciado,na acepção foucaultiana do termo. Umenunciado, nesse sentido, é unidade elementarde suma formação discursiva que, como tal, sedefine por um domínio específico de objetos, demodalidades enunciativas, de conceitos e deestratégias (Foucault, 1987). A questão que nosinteressa é saber, a partir de uma descrição históricadessa formação discursiva, como a inclusão socialfoi apropriada, no quadro de uma certa estratégiaretórica e política, de forma a se colocar em relaçãode antagonismo com o projeto de uma clínica daescuta dos transtornos mentais, ou seja, trata-se deanalisar uma série de deslocamentos discursivosque constituem, localizam e individualizam aloucura no espaço da exclusão social e, a partirdisso, sustentam um conjunto de práticas que visamà sua reinserção, inclusão ou reentrada no camposocial. Trata-se de um conjunto de práticas quediscursivamente se recusam a inscrever-se na noçãode clínica e muitas vezes colocam-se em oposiçãoa esta.

Nossas considerações apóiam-se no materialdiscursivo produzido no contexto da reforma

Sobre a Retórica da Exclusão:a Incidência do Discurso Ideológico em Serviços Substitutivos de Cuidado a Psicóticos

psiquiátrica brasileira, entre os anos 1980 – 2000,e, mais especificamente, no estudo sagital realizadoem um Núcleo de Atenção Psicossocial (KyrillosNeto, 2001).

Retórica da Exclusão

Retórica, na acepção que empregamos, nãosignifica manipulação de opinião e forçamentodo interlocutor para uma posição na qual este nãoconfluiria pelo uso livre da razão, mas um métodode análise da linguagem em termos simultâneos deprodução de subjetividade e formas de poder.Chamamos, portanto, de retórica da exclusão esseaspecto de formação discursiva que apreende elocaliza os transtornos mentais em uma superfícieformada pela antinomia entre inclusão e exclusão.Como todo aspecto retórico do discurso, talestratégia constitui destinatários e auditóriosespecíficos, bem como formas de legitimação,autoridade e apropriação que se baseiam em umfazer persuasivo (Breton, 1997). Em que pese ofato de essa retórica visar à inclusão, o ponto deonde ela parte e o consenso que ela presume é ode que o sujeito dos transtornos mentais,especialmente aquele que passa pela experiênciada internação, está em condição e em processode exclusão. Observe-se que isso contrapõe,supostamente, uma condição historicamenteconstruída e bem definida (a exclusão) a outracondição ideal e indefinida (a inclusão).

É preciso lembrar que esse enunciado resume esintetiza um ensejo de mudança surgido na metadeda década de 70, no contexto da reformulaçãoinstitucional e política do País. Naquele momento,aparecem críticas renitentes à ineficiência daassistência pública em saúde adotada pelaadministração federal através d o Ministério daSaúde. Também surgem denúncias de fraudes nosistema de financiamento dos serviços e, o que émais significativo para o movimento da reforma,denúncias de abandono e maus tratos a que eramsubmetidos os pacientes internados em diversoshospícios do País.

Nesse contexto, surge o Movimento dosTrabalhadores de Saúde Mental (MTSM) que, em1979, promoveu um evento bastante significativo,no qual estiveram presentes Franco Basaglia eRobert Castel. As denúncias da violência noshospitais, alguns visitados por Basaglia, e odesrespeito aos direitos humanos provocaramgrande impacto. Nesse evento, a reformapsiquiátrica italiana começa a surgir comoparadigma para o movimento antimanicomialbrasileiro. O MTSM, ao adotar um discurso voltadopara a humanização do tratamento e em defesados pacientes internados, alcançou granderepercussão. Isso fez avançar a luta até seu caráter

“...alcançar em umfuturo próximo umaatenção em saúdemental que garantaos direitos e promovaa cidadania dosportadores detranstornos mentaisno Brasil,favorecendo suainclusão social”

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definitivamente antimanicomial. Note-se que arepercussão pública da condição a que estavamsubmetidos os internos, ou seja, os que estãoincluídos em um espaço interior - dentro, portanto,de um dispositivo de tratamento, às vezespermanentemente - pode ser compreendida comouma espécie de metonímia da exclusão praticadapelo próprio sistema que deveria habilitá-los comosujeitos. Metonímia, pois funciona como um casorepresentativo de uma estratégia de opressão maior,operada pelo Estado em relação aos própriossujeitos que nele deveriam se incluir, estratégia quepassa a ser explicitada e questionada,particularmente a partir do final dos anos 70, paraa própria opinião pública, no contexto darevelação das práticas de exclusão, controle etortura realizadas pelo Estado durante o regimemilitar.

O avanço da luta antimanicomial trouxe ganhossignificativos na assistência aos portadores detranstornos mentais. No plano institucional,apontamos como vantagens a desconstrução domodelo manicomial e a criação de uma rede deserviços com dispositivos diferenciados (urgências,leitos de retaguarda, oficinas terapêuticas, visitasdomiciliares etc.) em território definido,proporcionando maior qualidade ao atendimentodo usuário. Aqui assinalamos dois deslocamentossignificantes, o interno passa a ser chamado deusuário, não mais de paciente, e o antigo hospitalpsiquiátrico converte-se em equipamento de saúdemental. Os centros de tratamento tornam-se centrosde atenção. Há, pois, toda uma redescrição dodiscurso asilar no qual o enunciado da inclusãosocial é articulado. O usuário é aquele que se utilizade um serviço; o paciente é aquele que é objetode um tratamento.

Após o reconhecimento da força histórica queimpelia à loucura para a condição de exclusãosocial, política e discursiva, essa redescriçãorealiza-se em torno do que a teoria da retóricachama de antimodelo. A eficácia retórica de umantimodelo define-se pela inversão e negaçãoirrestrita dos atributos que ele leva em conta, ouseja, o antimodelo é tão mais eficaz na medida emque em nenhum ponto do modelo sugeridoencontre paridade com o antimodelo (Perelman,1996). Surge, assim, uma estratégia retórica inversa,baseada na inclusão, na cidadania e no retornoda palavra ao paciente, definida a partir da negaçãode um antimodelo sobre o qual se estabeleceu umconsenso negativo.

Neste contexto, o MTSM introduz um novodestinatário para seu discurso. Não se trata de

enfrentar o discurso tecnocientífico da Psiquiatria,no quadro de seus fundamentos epistemológicosou clínicos, nem apenas o discurso burocráticoestatal, no quadro da transformação normativa.Ambos reproduzem aquilo que o MTSM localizacomo problemático: o fechamento, a clausura e acircularidade que mantêm a rede de autoridadesobre a experiência, sobre as trocas simbólicas esobre os dispositivos técnicos do tratamento. Nessesentido, a retórica antimanicomial inspirada emBasaglia segue uma tática diferente da adotada,por exemplo, pela antipsiquiatria, que questionao tratamento dispensado à loucura no seu própriosolo de constituição histórica e adotando comodestinatário privilegiado o campo da Psiquiatria.Contra essa retórica da exclusão, apresenta-se,portanto, um novo participante produzido ereconhecido por uma nova destinação: a opiniãopública.

A preocupação com a função interpretativa daopinião pública, colocada na posição deobservadora, faz produzir uma enunciaçãobaseada na denúncia e no desmascaramento. Paratanto, a estratégia discursiva ampara-se no usocalculado de uma dupla cena: odesmascaramento da opressão política em paraleloao desocultamento das práticas de submissãoaplicadas ao tratamento dos transtornos mentais.Forma-se, assim, uma equação crítica ondecontrolar e oprimir solidarizam-se,paradoxalmente, com cuidar e amparar. Oantimodelo afirma, na verdade, que em nome docuidado se realiza a opressão, em nome da cura eda saúde verifica-se a produção de posiçõesobjetivantes, silenciosas e dóceis, na qual seidentifica a condição social do doente mental.

Deduz-se, daí, que a transformação desejável noestatuto da doença mental é de natureza política,antes que clínica. Está formada uma cenaenunciativa onde clínica e política tornam-sesignificantes em oposição. Uma cena enunciativaenvolve um contrato ou a assunção de certas regrasdiscursivas entre interlocutores que assumem umdestinatário comum, um mesmo olhar para o quala cena se constitui (Maingueneau, 1997).

Clínica e Política

Landowski (1992) adverte-nos que a opiniãopública é política. Sua vocação consiste em fazer aclasse política agir segundo uma competênciapersuasiva. Dessa forma fica clara sua influênciadecisiva no processo legislativo de implementaçãoda reforma psiquiátrica. O autor explicita ainfluência da opinião na classe política:

Christian Ingo Lenz Dunker & Fuad Kyrillos Neto

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“Desde que ela disponha efetivamente dos meios,mesmo indiretos, de fazer prevalecer na cenapolítica uma linha determinada, ela se transformaentão numa ‘potência’ e, de observadora, é elaque se torna, por sua vez, digna de ser observadaem seus comportamentos, auscultada quanto aseus estados de espírito, sondada enquanto reservade energias canalizáveis. Colocada a princípiocomo sujeito cognitivo, ela se metamorfoseia emobjeto de conhecimento” (1992, p.23).

Considerando adequada a visão da psiquiatriademocrática italiana sobre a loucura, a opiniãopública será convencida da nocividade do hospitalpsiquiátrico, da não periculosidade do louco e daontologia social das patologias psiquiátricas. Assim,a opinião pública e os usuários são submetidos auma pedagogia política: uma tecnopolítica. Essemovimento é coerente com a retórica da exclusão,pois baseia-se na idéia de que a participação daopinião pública implica abertura e ampliação dosagentes que constroem o saber sobre umdeterminado processo. Introduzir a opiniãopública seria, assim, uma forma de alterar aregulação do processo. Ao mesmo tempo, essemovimento força uma transformação discursiva.A opinião pública é necessariamente não-especializada; sua persuasão deve calcular, porexemplo, o uso de termos técnicos ou conceituais,produzindo com isso uma corrosão da basediscursiva hegemônica encarregada daadministração da doença mental no antimodeloasilar.

O principal documento norteador das políticasadotadas nessa área pelo governo brasileiro tem sidoa Declaração de Caracas,aprovada em novembrode 1990. Esse documento estabeleceu a diretriz dereestruturação em saúde mental centrando-a nacomunidade e dentro de sua rede social. Osrecursos, cuidados e tratamentos devemsalvaguardar, invariavelmente, a dignidade pessoale os direitos humanos e civis, propiciando apermanência do doente em seu meio comunitário.Diagnosticava-se como principal efeito nocivo dosistema asilar o isolamento, a desintegração social ea exclusão. Encontramos, aqui, um segundo patamardiscursivo. Não mais a ampla opinião pública,definida como agente de um saber anônimo, masum saber localizado cujo agente é a comunidade ea família. Nesse patamar, o saber público não atuaapenas como uma espécie de juiz ou observador,mas, como mostrou Laclau (1996), de articuladorde demandas. Para esse autor, a formação dedemandas que orientam movimentos sociaisapóiam-se sempre em significantes flutuantes, ouseja, significantes suficientemente ambíguos epolissêmicos capazes de atrair para si umadiversidade de significados, reduzindo a diferençae consolidando a identificação necessária para a

ação. Ora, parece ser exatamente esse o caso naexpressão inclusão social.

Assim, a viabilização dessa diretriz liga-se àorganização dos novos serviços substitutivos, queassumem a tarefa de responder e representar ademanda de pacientes e familiares. Os Núcleos deAtenção Psicossocial – NAPS e Centros de AtençãoPsicossocial – CAPS certamente constituem aresposta mais avançada e criativa para alcançaresses objetivos.

Dessa forma, o sujeito da experiência da loucura,ao ser deslocado para a posição de usuário dosserviços de saúde mental, tem sua demandarevertida de demanda de cura para demanda deinclusão. Sua patologia é definida pela exclusãosocial concreta e não por uma nosologia neutra etranscendente. A localização de sua demanda nãoemerge do sofrimento psíquico individualizado,mas do sofrimento atinente à sua posição de classe.

Como tal, sua demanda se objetiva em posiçõesno universo do consumo e do trabalho, de onde aexpressão usuário afinal deriva.

É no quadro desse deslocamento discursivo quese torna compreensível a oposição entre umaestratégia política e uma retórica clínica. A clínica,psiquiátrica, psicanalítica ou psicológica, torna-se

“Desde que eladisponhaefetivamente dosmeios, mesmoindiretos, de fazerprevalecer na cenapolítica uma linhadeterminada, ela setransforma entãonuma ‘potência’ e,de observadora, éela que se torna, porsua vez, digna de serobservada em seuscomportamentos,auscultada quanto aseus estados deespírito, sondadaenquanto reserva deenergias canalizáveis.Colocada a princípiocomo sujeitocognitivo, ela semetamorfoseia emobjeto deconhecimento”

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identificada a um aspecto do antimodelomanicomial por- que ela supõe, em tese, uma outraforma de articulação da demanda: individual,subjetiva, idiossincrática, articulação que deve serposta em oposição à articulação política, cujosatributos teriam sinais contrários. Nessa operação,a clínica torna-se excluída da política. O saberneutro, tecnocrático, apolítico e científico, peloqual historicamente a ordem médica se apropriouda loucura (Foucault, 1988), é tomado,retoricamente, por seu valor de face, como se defato ele devesse ser tratado pelo modo como serepresenta e não como um projeto de política desubjetivação criticável. Um efeito dessa exclusão,presente na estratégia de constituir um novodiscurso hegemônico em saúde mental, é tambémo de tornar homogêneo e criticável todo projetoque possa ser reconhecido como clínico.

Parker (1999), em um extenso estudo sobre asformas de resistência crítica que se verificam nosdiversos movimentos contemporâneos detransformação da saúde mental, mostrou que arenúncia ao campo de categorias da clínica tem,muitas vezes, contribuído para manter suas práticasmais conservadoras. Por outro lado, estratégias queprocuram desconstruir a formação de identidadespatológicas, mostrando internamente ainconsistência da representação essencialista daloucura e redescrevendo politicamente ascategorias e procedimentos da clínica, temalcançado resultados. Destacam-se, nesse últimocaso, a estratégia adotada por grupos como Lechesis,na Alemanha, e Hearing Voices e Mind na GrãBretanha. Esse estudo ajuda-nos a mostrar que aestratégia de oposição retórica entre clínica epolítica não é uma estratégia necessária no quadrodos movimentos em saúde mental de inspiraçãocrítica.

O imperativo da Inclusão

Nos moldes propostos pela psiquiatria democráticaitaliana, a inclusão social do paciente psiquiátricoseria obtida através da negação da lógicamanicomial (transformação institucional), de umapolítica compensatória de concessão de benefíciose da participação em movimentos sociais. Taispráticas necessariamente ocupam um lugarsuplementar ou substitutivo às antigas práticasclínicas.

Basaglia, mentor da psiquiatria democráticaitaliana, lembra-nos que a violência e a exclusãosocial estão na base de uma sociedade“organizada a partir da divisão radical entre osque têm (os donos no sentido real) e os que nãotêm... “(1985, p.101).

Esse autor propõe como cura para a doença mentala reinserção social do paciente nos meiosprodutivos:

“Não se cura o doente com subjetividade, mas secura na volta ao círculo produtivo, o que colocaem discussão uma ciência, e no caso a Psicanálise,mas também outras ciências” (1979, p.93).

Em suma, o retorno ao social aproxima-sesubstancialmente do reingresso ao universo dotrabalho. Trabalho e subjetividade acabam poropor-se, desdobrando a oposição inicial entreclínica e política. Em que pese o fato de o universodo trabalho representar um sistema simbólicoprimaz em nossa cultura e de que a inclusãoimplicar, em última instância, a possibilidade departicipação e circulação em universos simbólicos,resta ainda a questão da alienação que redundadessa inclusão. O que está em questão, aqui, é oplano da política das identidades. Alienar-se aosignificante trabalhador é politicamente preferívela alienar-se ao significante doente mental, mas aalternativa retórica, assim colocada, mantém-sepela preservação da diferença entre esses doissignificantes identitários.

Laclau (1996) lembra-nos que as identidadesdiferenciais são formas identitárias que se fundampela negação, pela exclusão ou pelo afastamentototal do que está fora delas. O autor destaca que anoção de negatividade, implícita no conceitodialético de contradição, é capaz de levar-nosalém da lógica da pura diferença:

“Um conteúdo negativo que participa nadeterminação de um positivo é parte integrantedeste último” (1996, p.58)

Parece-nos que, ao negar totalmente os saberesacumulados pelo campo da clínica na tentativade marcar uma diferença radical, a propostabasagliana acaba por produzir uma retórica ondea inclusão social acaba por inverter os sinaiscaracterísticos da exclusão, eliminando, assim, acontradição que deveria ultrapassar.

Dessa forma, para a psiquiatria democráticaitaliana, as condutas consideradas “inclusivas”encontrariam legitimidade independentemente dequalquer consideração clínica. Aqui cabeconsiderar outro deslocamento significante. Asantigas categorias profissionais, tais como psiquiatraou psicólogo, são gradualmente substituídas poruma categoria mais vasta e menos estratificada: otrabalhador em saúde mental. No entanto, nemsempre uma substituição significante altera aposição dos agentes na cena enunciativa. Aliás,muitas vezes tal substituição é realizada justamentepara manter as posições de poder em um substratodiscursivo que as torna menos perceptível. Trata-

“... a violência e aexclusão social estão

na base de umasociedade

“organizada a partirda divisão radical

entre os que têm (osdonos no sentido real)

e os que não têm...”

Basaglia

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se, portanto, de verificar qual é a natureza darelação discursiva entre o trabalhador em saúdemental e usuário produzida no contexto da reformapsiquiátrica brasileira.

Em estudo anterior (Kyrillos Neto, 2001),mostramos como a noção de inclusão pode serusada na posição do que Lacan chamou designificante-mestre (Lacan, 1996). O significante-mestre (S1) é o ponto do discurso que sustenta suasignificação, sendo ele mesmo assemântico ou,como observou Zizek (1997), é o ponto onde serealiza o basteamento ideológico de um discurso:a palavra de ordem, o momento de corte históricoe de constituição de uma nova ordenaçãosimbólica do discurso. Quando o significante-mestre ocupa a posição de agente de um discurso,ou seja, quando ele se apresenta como razão eorigem, em nome da qual tudo se justifica, estamosno que Lacan chamou de discurso de mestre(Lacan, 1996).

A questão é saber, então, se há uma transformaçãona estrutura do discurso de mestre, que caracterizaa clássica relação médico-paciente quandopassamos à relação trabalhador em saúde mental-usuário. Ora, pelo estudo antes citado (KyrillosNeto, 2001), pode-se verificar que o responsávelpela definição do que é ou não inclusivo paradeterminado usuário continua a dependersumamente do trabalhador em saúde mental. Alémdisso, a inclusão, em suas mais diversas estratégias,não é considerada como uma possibilidade, nemcomo uma contingência, mas como umanecessidade. Isso se revela, no plano discursivo,pela presença da inclusão como um imperativo.

O imperativo de recusar a exclusão transforma-se,assim, no imperativo da inclusão, mantendo,portanto, sua estrutura em discurso de mestre. Issose verifica, por exemplo, no retorno do discursodas “prescrições médicas”, mas agora na forma de“prescrições sociais”. Em outras palavras, afirma-se na enunciação aquilo que se quer negar noenunciado.

O Impacto Sobre os “Usuários”

O discurso basagliano construiu uma prática quevaloriza a conscientização do paciente acerca desua condição social precária. Propõe,coerentemente, a participação social efetiva eengajada capaz de transformar a realidade na qualo sujeito se aliena. Como libertar o outro,noentanto, se ele é objeto de um discurso deliberdade? Como fazê-lo reconhecer-se em umdiscurso do qual ele não é, em primeira instância,o produtor, mas o reprodutor ?

Nesses termos, a questão ideológica surgeagudamente na relação técnico-usuário. Odiscurso baseado na “interpelação de inclusão”pode traduzir-se em efetiva prescrição de atitudesque procuram deslocar a posição do sujeito quesofre para a posição de um sujeito que traduz seusofrimento em demanda social. Por exemplo: o“usuário” é estimulado a ter uma atividaderemunerada, permanecer junto à família e àcomunidade de maneira a evitar futuras internaçõespsiquiátricas. Paralelamente, é preciso instalar umanarrativa que desloque a subjetivação baseada nodiscurso psicopatológico para uma subjetivaçãobaseada em uma ontologia social responsável pelacondição de exclusão. Qual será, nesse contexto,o impacto desse discurso sobre os usuários, umavez que se trata de usuários psicóticos ?

Diversos autores (Gadet, 1997, Orlandi, 1999,Greimas, 1986) consideram que a interaçãosemiótico-discursiva não implica, necessariamente,congruência entre a mensagem do emissor e ainterpretação do receptor. Parece-nos que a“incongruência” antes apontada entre enunciadoe enunciação, entre forma imperativa e modolibertário, ou ainda, entre inclusão e interpelação,reforça nossa posição de considerar que as falasemitidas por agentes da instituição estão sujeitas ainterpretações não-congruentes dos receptores.Especialmente no caso da psicose, o paradoxopragmático que verificamos nos diferentes níveisacima apontados parece replicar a forma discursivaencontrada em diversas formas de delírio (Freud,1911, Lacan, 1958).

O Discurso do Mestre

Como explicar, no sistema conceitual da psiquiatriademocrática italiana, que um paciente recuse osbenefícios sociais e o acolhimento oferecido peloserviço, preferindo permanecer na loucura e naerrância? Lembramos que tal fato é relativamentecomum nos serviços que freqüentamos.

Alguns pacientes estão empenhados em umaprodução delirante refratária à narrativa dainclusão ou à prática do trabalho. Outros, aocontrário, parecem integrar tal narrativa muitofacilmente, ajustando suas reivindicações aosignificante-mestre proposto.

O produto do discurso do mestre é a constituiçãode um objeto. A segregação ou exclusão social dopaciente psiquiátrico, sua localização como objetode uma consciência crítica, parece ser o exemplomais conspícuo de tal tese, mas, no lugar do outro,o que o discurso de mestre engendra é o que Lacan(1996) chamou de saber. A produção delirantepode ser considerada, nessa medida, a produção

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“Não se cura odoente comsubjetividade, mas secura na volta aocírculo produtivo, oque coloca emdiscussão umaciência, e no caso aPsicanálise, mastambém outrasciências” (1979, p.93).

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de um saber que parece não encontrar ponto deamarração ou detenção, ou seja, saber que não searticula com um significante mestre. A tese de que,na psicose, o laço social, pelo qual se define odiscurso, encontra-se irrealizado (Lacan, 1996), ede que esse laço social tornar-se-ia possível a partirda instalação de uma substituição artificial dessaarticulação entre saber e significante-mestre (ametáfora delirante ou a suplência) ajuda-nos aentender os efeitos de estabilização verificados nospacientes que se engajam na retórica da exclusão,assumindo-a como parte de sua própriasubjetivação.

Curiosamente, no entanto, nesses mesmospacientes, acompanhamos o surgimento de umoutro fenômeno: a adesão a práticasfarmacológicas. Tudo se passa como se, ao aceitara narrativa da inclusão, ao conformar seusparadoxos aos próprios paradoxos da formaçãodelirante, o usuário aceitasse também, e agora maisdocilmente, o consumo de substâncias“antipsicóticas”. Se antes ele resistia a tal prática,agora ele a encara como um direito e umademanda. Seu saber não se articula apenas aosignificante-mestre, oferecido pelo dispositivo desaúde mental e desdobrado no cenário social dacomunidade e da família, mas também aprofunda-se como um saber sobre este objeto: a medicação.

A Formação de Demandas

A intervenção da psiquiatria tecnopolítica estende-se pelo campo social através da oferta de vagas emtrabalhos oferecidos pelo poder público,alimentação gratuita, passagens de ônibus, moradiaetc. Os técnicos do serviço tornam-se confiáveispara os usuários na medida em que cumprem suapalavra, fazendo chegar até estes os benefíciosofertados. Como em qualquer serviço, suaconfiabilidade depende da relação eficaz entreoferta e demanda. Dessa forma, a relaçãointersubjetiva fica marcada pela promessa, que põeem relação os dois sujeitos mediados por umcontrato.

Porém, nem sempre a promessa formuladacorresponde a um pedido prévio do usuário. Porvezes, o técnico “prometente” antecipa o pedidoexplícito e empenha-se em antecipar o supostoprograma de seu parceiro. A oferta gera a demandae cria a necessidade. Nesse processo, já se encontrao princípio discursivo sob o qual se inicia ainclusão, ou seja, na própria operação de criaçãode demandas, a ideologia infiltra-se na forma socialassumida pela troca. Prado define ideologia comoo“Conjunto de efeitos produzidos pela constituiçãoe circulação dos discursos, que abrem campos designificação onde certos modos de compreensãoe socialização são permitidos e incentivados emdetrimento de outros” (2000,p.100).

Por exemplo, nas pré-conferências do DispositivoMunicipal de Saúde Mental, realizadas na cidadede Santos, um dos espaços inclusivos do projeto,os profissionais dos serviços conversamextensamente com os usuários, ressaltando aimportância da participação social. Alguns usuáriosatendem a esse “chamado” com extremaveemência e elaboram diversas propostas decunho assistencial, tais como: colocação de umcarro à disposição das unidades, aumento donúmero de vale-transportes para custear afreqüência ao hospital-dia e as atividades ecompromissos dos usuários, fornecimento decarteiras de ônibus para transporte gratuito dosusuários e criação de uma linha telefônica 0800para atendimento de pacientes dos NAPS. Outraspropostas abordam a melhoria do cardápio e agarantia do uso do telefone da unidade pelosusuários.

As justificativas para tais propostas têm umaacentuada tonalidade político – ideológica: acessouniversal e de qualidade aos serviços vinculadosao SUS, não-discriminação aos portadores desofrimento mental e garantia de liberdade deexpressão.

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No entanto, apesar dessas justificativas, asreivindicações dos “cidadãos – usuários” seconcentram especificamente no campo dosbenefícios. Sua fala concentra-se na produção dedemandas, demandas essas surgidas,compreensivelmente, em relação a uma alteridadeque as incita. Outros tópicos abordados naconferência, tais como prevenção em saúde mentale recursos humanos para a saúde mental,permanecem em segundo plano.

Ora, a formação de demandas é um passo decisivopara a inclusão e também para a articulação domovimento social representado pela lutaantimanicomial. Ao inscrever-se como agente deuma demanda, o sujeito instala-se em umdeterminado laço social, ao mesmo tempo em quereconhece a instância à qual essa demanda sedirige.

Clínica e Inclusão em SistemasSimbólicos

Na estrutura psicótica, com suas peculiaridadesquanto a relação e uso da linguagem, nota-se umefeito secundário do oferecimento e circulaçãodo discurso político – ideológico centrado naformação de demandas. O fechamento discursivoprovocado pela fixação de certos significantes, taiscomo exclusão social, pobreza e cidadania, e pelaelisão de outros, notadamente os que se precipitamdas formações delirantes singulares, leva o sujeitoa uma nova forma de alienação, deslocamentoque não pode ser desprezado, mas que mantém oproblema básico da fixação de identidades. Pradoressalta que a

“Ideologia é esse efeito de ocultamento do trabalhoda linguagem, das contradições que fendem ofalante, que permanece fixado em certossignificantes e em certas imagens produzidas nasformações discursivas’... (2001, p.100, grifo nosso).

Pode-se notar que muitos casos de psicoseencontram alguma estabilidade clínica em umacerta assimilação de sistemas simbólicos, quefuncionam ao modo de universos fechados designificação. Tais universos discursivos podem serde extração religiosa, ética, étnica e até mesmomidiática. Por que não pensar que certas formasde ideologia política poderiam desempenhar omesmo papel? Tais sistemas simbólicos têm porcaracterística anexar todo saber a formas pré-constituídas de discurso. Isso pode ser feito porintermédio de estratégias discursivas que parecempossuir um funcionamento autônomo e anônimo,o que se verifica ser típico da ideologia. O problemaaqui é delimitar, afinal, qual a diferença entre sabere ideologia.

Chauí (2001) considera que a eficácia da ideologiareside no movimento de recusa do não-saber, quehabita necessariamente a experiência. A ideologia,diferentemente do saber, projeta uma posição quepermite neutralizar a História, abolir diferenças,ocultar contradições e desarmar toda tentativa deinterrogação. Em suma, a ideologia é um saberque oculta o trabalho de sua própria constituição.O saber pressupõe um trabalho. Nessa condição,é uma “negação reflexionante” que, por sua forçainterna, transforma algo que lhe é externo, resistentee opaco. O saber é o trabalho para elevar aexperiência à dimensão do conceito. A situaçãode não–saber impulsiona o trabalho dedeciframento, daí a afinidade entre o trabalho dosaber e o processo de subjetivação. Trabalho desubjetivação, e não subjetivação pelo trabalho.Portanto, só há saber quando a reflexão se deparacom a possibilidade de indeterminação, quandoaceita o risco de não contar com garantias préviase exteriores à própria experiência e à própriareflexão que a trabalha. Pode-se, então, distinguiruma inclusão ideológica, que se traduz pelaimersão em um sistema simbólico pré-constituídomarcado pela circulação instrumental dedemandas, e a inclusão pelo saber, que se traduzpela articulação do trabalho do delírio comodeslocamento contínuo de um não-saber.

Partindo dessa distinção, a inserção socialpreconizada pela legislação é uma oportunidadeambígua de produção de instabilização subjetivaatravés do contato com alteridades, mas tambémde ocupação dessa instabilidade por formasideológicas pré-constituídas. Se a interpelaçãoideológica é hegemônica, a produção significantetorna-se comprometida e a subjetivaçãotransforma-se em reificação. A forma ideal e omodelo ideológico discursivo de inserção socialacaba sendo a conversão à prática da militância.Dessa forma, podemos dizer que o discursocompetente e instituído acaba por produzirsistemas simbólicos imunes à reflexão. A linguagemsofre uma restrição, pois não é qualquer um quepode dizer a qualquer outro qualquer coisa e emqualquer circunstância. Esse discurso é idêntico,do ponto de vista formal, à linguageminstitucionalmente autorizada, na qual osinterlocutores já foram previamente reconhecidoscomo tendo o direito de ouvir e falar em lugares ecircunstâncias predeterminadas. Assim, o discursosobre si vem impregnado de militância política.Em alguns casos, notamos esse discurso militantecirculando em associação criativa ao sintoma. Umexemplo auxilia nossa compreensão: algunsusuários associam a participação em assembléiase o poder de envolvimento dos colegas, através douso da fala, à potência sexual. Assim, a conversãode novos adeptos para a narrativa-mestre da

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inclusão torna-se um sucedâneo da sedução,ocupando o novo militante um lugar passivo natransmissão sexual desse saber.

É possível manter um lugar que nos permita guardaruma distância em relação à ideologia,reconhecendo seu potencial de benefíciosclínicos. Porém, esse lugar, no qual é possível captara ideologia como sistema simbólico fechado, nãodeve ser ocupado por nenhuma realidadepositivamente determinada (Zizek, 1999). Caso ocrítico ceda à tentação, o que se produz é umsistema simbólico utilizado de modo francamenteimaginário. Quando o usuário traduz a retórica daexclusão nos termos singulares de sua próprianarrativa, esse é um ato de interessesimultaneamente clínico e político. Como

observou Jameson (1992), o ato que inaugura umanova narrativa possui uma relevânciatransformadora maior do que a própria narrativaque daí se desenvolve. Portanto, não basta aimersão em um sistema simbólico do qual a retóricada exclusão seria uma das estratégias e a oferta designificantes-mestres um efeito, mas é precisoconsiderar ainda o ato contingente de apropriaçãosingular realizado pelo sujeito.

É nessa operação que a escuta clínica parece serinsubstituível. Não consideramos que o lugar doclínico seja uma espécie de mirante onde se temuma ampla, neutra e geral visão do panoramaideológico do social. A clínica é apenas mais umaforma de apontar o antagonismo social e, nomelhor dos casos, de não tamponá-lo.

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