sobre a misericórdia ou o homem rico e a pedra preciosa tradução
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Sobre a misericrdia ou O homem rico e a pedra preciosa: traduo e breve comentrio
Cesar Motta Rios
Apresento a seguir uma traduo prpria de um texto no mnimo curioso. O
primeiro motivo que me moveu a traduzi-lo foi o fato de no encontrar nenhuma traduo
para ele em portugus (porm confesso que no procurei muito). Alm disso, apesar de
curto e desacompanhado de qualquer informao sobre sua origem que possibilitasse uma
abordagem mais contextualizada, a narrativa por si s j suficientemente instigante e
pode proporcionar reflexes enriquecedoras.
A histria est ambientada em um contexto estritamente judaico, em um perodo
no qual o Templo ainda est em pleno funcionamento. No obstante, esse pequeno conto
s aparece registrado em colees de crnicas transmitidas por autores cristos
relativamente tardios. H, inclusive, verses diferentes em outros idiomas (cf. ADLER,
2013, p. 362-363). De minha parte, encontrei-o na edio das crnicas de certo George
do sculo X d.C., auto-apelidado Hamartolos (PG, volume 110, p. 268). O problema
que o tal Hamartolos cometeu a hamarta (em grego, pecado ou erro) de conservar o
texto sem ajuntar nenhuma informao sobre sua origem. Claro, provvel que a culpa
no seja dele, que ele tambm no tivesse muito a agregar nesse sentido. Em situao
semelhante, deixo abaixo o texto em grego, apenas acrescentando em seguida minha
traduo, uns poucos comentrios pontuais, e uma considerao ao final.
Texto grego e traduo
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Sobre a misericrdia
1. E havia um homem rico e sem misericrdia em Israel, o qual, tendo ido ter com um
dos mestres e tendo desenrolado a Sabedoria de Salomo, encontrou imediatamente isto:
O que age com misericrdia para com o pobre empresta a Deus.
2. Ele caiu em si e ficou aturdido. Depois de sair dali, vendeu tudo e distribuiu entre os
pobres, sem conservar para si mesmo nada alm de duas moedas.
3. Tendo ficado muito pobre e no sendo tratado com misericrdia por ningum - isso por
um teste divino -, por fim, disse a si mesmo com pequeneza de alma: Partirei para
Jerusalm e entrarei em litgio com meu Deus, porque me enganou para espalhar minhas
posses.
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4. Quando estava a caminho, viu dois homens lutando um contra o outro aps terem
encontrado uma pedra preciosa. Ele lhes diz: Irmos, para que brigais? Dai-me a pedra
e tomai duas moedas.
5. Depois que eles entregaram-na com alegria, pois no sabiam do extremo valor da pedra,
ele saiu para Jerusalm levando a pedra.
6. E ao mostr-la a um ourives, assim que esse viu a pedra, levantando-se adorou e,
maravilhado, perguntava: Onde encontraste essa pedra divina e extremamente valorosa?
Pois eis que, hoje, j faz trs anos que Jerusalm se agita e est instvel por essa famosa
pedra! Saindo daqui, entrega-a ao sumo-sacerdote e sers muito rico!
7. Enquanto ele partia dali, um anjo do Senhor disse ao sumo-sacerdote: Agora, vir a ti
um homem portando a muito falada pedra perdida da veste do sumo-sacerdote Aro.
8. Depois de tom-la, d quele que a traz muito ouro e prata, e, ao mesmo tempo, depois
de golpe-lo moderadamente, diz: No duvides em teu corao nem deixe de confiar no
Deus que diz pelas Escrituras: Aquele que age com misericrdia para com o pobre
empresta a Deus.
9. Pois eis que, no presente sculo, eu fartei muitas vezes mais do que emprestaste a mim.
E, se crs, recebers ainda no sculo vindouro uma riqueza insupervel.
10. Ento, o sumo-sacerdote fez e falou ao homem tudo que havia sido ordenado. Aquele
que o ouviu, por sua vez, estupefato, tendo deixado tudo no templo, saiu dando graas e
crendo no Senhor e em todas as declaraes contidas na Escritura divina.
Comentrios pontuais sobre alguns trechos
Ttulo: Traduzo o ttulo conforme se encontra na obra de George Hamartolos. O texto
circula tambm como O homem rico e a pedra preciosa.
1: O texto citado parte de Provrbios 19:17. interessante notar que o autor se refere
ao livro de Provrbios como Sabedoria de Salomo, e no como , ttulo utilizado
frequentemente em grego. Pode tratar-se de uma confuso com o ttulo do livro que hoje
chamamos de Sabedoria de Salomo e que, de fato, circulava com tal ttulo ao menos
desde os primeiros sculos d.C., conforme atesta o Codex Sinaiticus.
2: A motivao da atitude do homem fica um tanto indefinida, mas parece que ele fica
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aturdido pela oportunidade de investimento que vinha desconsiderando. Ele quer o lucro
prometido. Considere-se a continuao do versculo que ele l.
3: O termo que traduzo por com pequeneza de alma pouco comum. ,
particpio aoristo de , comporta as razes de , pequeno, e ,
alma ou vida. O sentido dicionarizado (no L&S) desmaiar ou algo prximo. De
certa forma, essa imagem concordaria com a pobreza do personagem. Contudo, o
prosseguimento da narrativa inclui uma viagem (de durao indefinida) rumo a Jerusalm,
o que no condiz com a situao de algum que j quase desfalece de fome. Prefiro, pois,
utilizar o sentido que me proporcionado pelo substantivo correlato ,
comparativamente muito utilizado.
6: O homem se levanta e adora, ou se prostra. O verbo indica primeiramente
o gesto corporal, mas passa a ter um sentido mais amplo. O autor pode se referir a palavras
proferidas pelo homem. A pedra j no somente valorosa. O ourives revela que
divina. Isso no indica a divindade da pedra em si, mas sua relao prxima com o
divino. No pargrafo seguinte descobrimos tal relao.
8: Parece-me que o golpe que o anjo ordena que o sacerdote d , em princpio,
literalmente um golpe fsico.
9: Deus revela sua Providncia invisvel e despercebida pelo homem rico, que no
atribua a Ele sua prosperidade. A promessa de bnos no ps-morte acrescida
revelao da bno j concedida.
10: H outra possvel traduo para esse final. de certa forma possvel entender o
particpio com o sentido de consentir, aceitar, e no com o sentido de deixar.
Nesse caso, o homem no teria abandonado o prmio, mas sim aceitado tudo [o que
acontecera] no Templo. Essa leitura retiraria a fora da leitura que propus, e que me
parece plausvel, e possibilitaria uma leitura mais imediata e rasa, que, paradoxalmente,
confirmaria a expectativa meio ignorante do personagem: quem d ao pobre recebe em
seguida, em espcie, nesta vida, mais ainda de Deus. No obstante, embora possvel, a
construo gramatical me soa estranha se for esse o sentido pretendido. Quanto ao uso do
verbo no sentido que proponho, de deixar permanecer, respaldado por ocorrncias em
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estruturas praticamente idnticas: cf. Daniel 4:23 na traduo de Teodsio. Fao constar
que a opo pelo particpio relictis na traduo ao latim que acompanha o texto grego
em PG 110 demonstra concordncia com minha deciso.
Consideraes gerais
O texto convida percepo da prosperidade terrena como bno de Deus,
mesmo quando a ao divina no claramente percebida, e, ao mesmo tempo, aponta
para a retribuio na era vindoura. Essa a lio aprendida pelo homem que duvidou do
que estava escrito. A narrativa apresenta o que seria uma leitura apropriada do provrbio.
O leitor no deve duvidar nem mesmo se as evidncias externas no confirmam a
afirmao da Bblia, mas tratar de perceber como ela realmente se cumpre e se cumprir.
O fato de o homem deixar no Templo o tesouro que lhe oferecido em retribuio
assegura que o aprendizado foi efetivo.
A interpretao do provrbio proposta pelo responsvel por esse pequeno conto
ser a mais apropriada? Cabe aos exegetas responder. Eu me detenho aqui, apenas
transcrevendo o provrbio inteiro:
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Referncias
ADLER, William. The Heartless Rich Man and the Precious Stone: A new translation and
introduction. In: BAUCKHAM, R., DAVILA, J. and PANAYOTOV, A. Old Testament
pseudepigrapha: more noncanonical scriptures. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans
Publishing Co., 2013. p. 360-366.
PATROLOGIAE GRAECAE, TOMUS CX.