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Poesias de Soares de Passos

1858 (1 ed. em 1856)

SOARES DE PASSOS

(ESCORO BIOGRFICO)

POR TEFILO BRAGA

A nova poca literria do Romantismo, iniciada em Portugal por Garrett e Herculano, depois de cooperarem como cidados nas lutas da implantao do regime liberal, ficara bem definida nos seus dois aspectos: o Romantismo liberal, que se inspirava das tradies e do sentimento nacional, e o Romantismo emanulico, em que o esprito religioso, suscitado pelos quadros da vida da Idade Mdia, favorecia, pela emoo potica, a reaco clerical que vinha a revelar-se desde que Chateaubriand publicou o Gnio do Cristianismo. Toda a obra de Garrett, acordando o sentimento da nacionalidade, torna-o um dos grandes corifeus do Romantismo liberal na Europa; Herculano, na Harpa do Crente e na sua predileco pela Messada de Klopstock, um poeta emanulico, que na idade da crtica se torna um polemista teolgico. O Romantismo, esgotado na sua emotividade, recorria aos estmulos da sobre-excitao, aos exageros da frase, aos quadros ttricos, ao pessimismo subjectivo da passividade aptica ou dos mpetos da revolta Por estes extremos denunciou-se uma tal degenerescncia ou Ultra-Romantismo. A Idade Mdia foi ento representada pela sua exterioridade pitoresca, com um guarda-roupa cavalheiresco da extinta sociedade feudal. O romance histrico, da vida dos castelos medievais, dos torneios e das vinganas hereditrias, tem como forma potica correspondente a balada, a xcara, o solau, que se foram apagando na banalidade inexpressiva dos imitadores medocres. A sentimentalidade tornou-se melanclica, dando ao romance uma forma subjectiva, numa gerao de tristes, representada nesses tipos de Ren, Werther, Jacopo Ortiz, Obermann,

Manfredo, Llia; tambm o correspondente lirismo tornou-se a expresso de uma sentimentalidade depressiva, umas vezes convencional como nos Laquistas, outras patolgica, como em Millevoye, ou filosfica como em Novalis. Numa tendncia geral dos espritos, que se compraziam na admirao das falsificaes literrias de Mac Pherson, dando relevo a este sentimentalismo com devaneios em nome de Ossian, um bardo breto do sculo sexto! Soares de Passos tambm traduziu, depois da Marquesa de Alorna, alguns trechos picos do melanclico Ossian. Na transio da poesia romntica cavalheiresca, das xcaras e solaus, lrica na forma, mas na essncia objectiva e descritiva como as baladas do Norte, para a poesia sentimentalista, verdadeiramente pessoal e subjectiva, vendo na natureza uma expresso moral da melancolia fatdica da alma, cabe a Soares de Passos o lugar proeminente como representante desta corrente lrica na literatura portuguesa. Esta corrente esttica, que foi geral na Europa, explicada pelo estado de depresso dos espritos depois dos grandes abalos morais da sociedade moderna, depois da exploso temporal da Revoluo Francesa. Compreende-se isto: passada a catstrofe, vem a emoo como reaco da sensibilidade, chora-se depois do perigo. Pela poca em que nasceu Soares de Passos, e pelas crises tremendas da nao portuguesa em que desabrochou a sua vida, o seu esprito devia naturalmente pender para a reconcentrao subjectiva. Esses acontecimentos influram na sua constituio orgnica; fizeram dele um doente, um dbil, com um retraimento que lhe agravou a sensibilidade com uma tristeza de incompreendido. A poesia apareceu-lhe como um recurso de expresso para esse subjectivismo melanclico, que a fatalidade da doena, que o vitimou no esplendor do seu talento, tornou de uma sempre impressionante verdade. Esse lirismo pessoal de Soares de Passos, aparece isento do artifcio e mesmo da pecha de atrasado ultra-romantismo, conhecendo-se a sua biografia. uma condio imprescindvel para bem avaliar os seus versos. Antnio Augusto Soares de Passos nasceu na cidade do Porto em 27 de Novembro de 1826; foram seus pais Custdio Jos Passos, estabelecido na Praa Nova, n 111 a 113, com um armazm de drogas, em cujo prdio habitou sempre a sua famlia, e D. Ana Margarida do Nascimento Soares de Melo. Deste consrcio nasceu um outro filho, tambm de nome Custdio Jos Passos, que seguiu o comrcio e continuou a casa, e uma menina. Esse ano de 1826 era o incio de uma nova poca de perturbao terrvel: inaugurava-se o regime constitucional parlamentar com a Carta outorgada por D. Pedro IV, mas ia desencadear-se a mais tremenda reaco dos absolutistas apostlicos e realistas, comeando pela regncia prfida da devassa Isabel Maria e pelo governo de D. Miguel, que atraioou a causa constitucional que jurara, proclamando-se rei absoluto, e exercendo a soberania pela violncia canibalesca das forcas, dos confiscos, das perseguies, dos crceres e dos caceteiros assalariados. O Porto foi o ponto escolhido para o absolutismo miguelino se impor pelo terror rubro; a fuga dos chefes da resistncia liberal no Belfast justificava a represso. O honrado negociante Custdio Jos Passas, pelo seu esprito liberal, foi um dos inmeros perseguidos, tendo de fugir, escondendo-se e homiziando-se para no ser preso e sucumbir no crcere. Sob a presso

destes terrores, a me do poeta contraiu os sofrimentos, que nunca mais a abandonaram; e diante da sua casa, na Praa Nova, foram levantadas as duas forcas, em que a Alada miguelina mandou executar os nove liberais, com que entendeu cimentar o prestgio do realismo brigantino. Numa carta de Rodrigues Cordeiro ao jornalista Martins de Carvalho, vem uma nota pessoal deste quadro tremendo, contado por Custdio Passas, irmo do poeta: "O irmo de Soares de Passos disse-me que defronte da janela da casa da sua famlia, na Praa Nova, estiveram levantadas duas forcas durante trs anos; que o irmo se lembrava delas com horror; e que isso influra bastante para o seu espirito liberal. Na poesia - Ao Porto - escreveu ele, referindo-se ao que vira, quando os soldados de D. Pedro chegaram Praa:

Ei-los Praa chegados, E os cadafalsos alados L baqueiam derribados Aos gritos da multido. 1

Na Praa Nova, em 1829, levantaram-se as duas forcas, onde se trucidaram as nobres vtimas de um sentimento liberal burlado pela outorga da Carta de 1826, que o Porto festejara. As cabeas das vtimas furam decepadas a esses nove cidados sem crime, e mandadas colocar em postes nas terras de suas naturalidades, para intimidao e escarmento de quantos se no conformassem com a rara felicidade do absolutismo paternal. Quando na vspera dos enforcamentos, noite, se batiam os postes das forcas, julgaram nas casas vizinhas que esses estalos eram de foguetes, supondo alvorecer do dia seguinte campearam as forcas, e a cidade do Porto apareceu encerrada, como se em cada famlia houvesse luto. A execuo realizou-se com todos os seus horrores, mas o absolutismo ferira-se a si mortalmente. A liando-se por isso a concesso da amnistia. Ao A linguagem dos peridicos mais graves proclamava o rigor, classificando esse inolvidvel acto do canibalismo de 7 de Maio: "A sociedade, o estado, o trono e a espcie humana no podem existir sem que peream os inimigos da espcie humana, do trono, do estado e da sociedade; e eis aqui onde fulgura a justia de Deus e de El-Rei, e ande a natureza no geme!" Parece-nos estar lendo o prembulo de Joo Franco lei de 3l de Janeiro de 1908! O trono e o altar nunca hesitaram diante do sangue. Convulsionado por estes actos bestiais do terror realista, o Porto tornou-se o apoio de toda a resistncia para a reconquista da liberdade; sem muralhas, teve a firmeza de suportar um terrvel cerco, e de triunfar sem recursos, apesar da fome e da peste. E consideram os historigrafos oficiais, que todo este

sacrifcio de um povo, e herosmos incomparveis foram motivados para a restaurao do trono da jovem D. Maria da Glria! dessa rainha D. Maria II, que levada pelo germanismo do seu segundo marido, fazia a Belenzada em 1836, e em 1842 violava a Constituio de 1839, e em 1847 chamava a interveno armada estrangeira, para segurar-se no trono, tendo ainda para isso de submeter-se, depois de nova traio, ao movimento de 1851, chamado da Regenerao! Mas, a que vm estes factos polticos, que tanto convulsionaram a nao portuguesa? Foi atravs destas tremendas crises que Soares de Passos cresceu, estudou e se fez homem, actuando no seu temperamento sombrio, valetudinrio e retrado. No meio destes abalos que perturbaram profundamente a famlia, e das tristezas e misrias domsticas de um cerco desesperado, Soares de Passos, criana e sem perceber os espantosos acontecimentos, vendo lgrimas e mortes em volta de si, sentiu duramente as consequncias sofrendo uma doena prolongada, que o predisps para a tuberculose, que o vitimou aos trinta e quatro anos, quando o seu talento atingiu o mximo esplendor. A primeira educao de Soares de Passos foi-lhe ministrada at aos catorze anos no Colgio do Corpo da Guarda, com destino para a vida comercial, na prpria casa paterna; a adquiriu o conhecimento das lnguas francesa e inglesa. Desde 1840 a 1845 Soares de Passos esteve efectivamente ao balco do armazm de drogas de seu pai e encarregado tambm da escriturao da casa. Neste perodo angustioso em que se lhe acordava no esprito a paixo literria, ele ensinava, nos momentos vagos, a lngua francesa a sua irm, e o ingls a seu irmo Custdio Passos. A leitura das novas obras do romantismo mais lhe desvendava a vocao literria. No Porto frequente esta aliana da prtica do comrcio com o interesse pelas letras, como j o notava o clebre erudito Joo Pedro Ribeiro dando notcia da preciosa livraria de um negociante do sculo XIV. Soares de Passos revelou ao pai a aspirao de seguir os estudas superiores; conseguiu essa aquiescncia em 1845, comeando a frequentar a aula de latim do celebrado professor Jos Rodrigues Passos, e lies de filosofia racional de Antnio Fernandes da Silva Gomes, pai do poeta portuense Henrique Luso da Silva, falecido prematuramente, e Augusto Luso da Silva, ambos ntimas amigos de Soares de Passos e de Custdio Passos, que tambm cultivava com o maior segredo a poesia. Terminados estes preparatrios de latinidade e de filosofia elementar em 1848, e hesitando ainda em seguir o Curso matemtico ou o jurdico, ele partiu para Coimbra, matriculando-se em Outubro de 1849 no primeiro ano da Faculdade de Direito. Circunstncia digna de reparo: neste mesmo curso apareceu matriculado Joo de Deus, o que se revelou como o renovador do Lirismo portugus depois de Garrett. Os dois poetas no se conheceram nesse primeiro ano de Universidade: Joo de Deus era um bomio, vivendo com os estudantes conterrneos seus do Alentejo e Algarve; Soares de Passos, naturalmente reservado, morava na Rua dos Militares, numa casa ou pequena repblica, em que tinha por companheiros outros poetas portuenses, Alexandre Braga, o autor das Vozes da Alma, Silva Ferraz e Aires de Gouveia, planeando com eles o continuarem a tradio acadmica do jornal de versos O Trovador, de 1844, em que brilhavam Joo de Lemos e Couto Monteiro, Antnio Pereira da Cunha, Antnio Xavier Rodrigues Cordeiro, os

dois Serpas (Jos e Antnio), Augusto Lima, Evaristo Basto, Henrique O'Neil, Lus Augusto Palmeirim e Correia Caldeira. Era legtima a empresa de reatar a tradio potica; esse grupo da Rua dos Militares empreendeu em 1851 a publicao do Novo Trovador. Joo de Deus, com a sua tendncia aptica, deixara-se ficar em Messines em 1850, regressando a Coimbra para matricular-se no segundo ano em 1851-1852; esta circunstncia explica como ficou atrs da curso de Soares de Passos, no tendo por isso ensejo para se aproximarem. , certo que esses dois vultos, que a vida de Coimbra ali juntou em 1849, tinham no seu talento os destinos da poesia lrica portuguesa. Era o influxo daquela encantada Coimbra, de que falava Antero de Quental com saudade. Assim como a Provena foi para a Europa do fim da Idade Mdia a capital de onde irradiou a poesia lrica do Amor, que todas as naes imitaram na forma trovaderesca, e que a Itlia transformou na norma definitiva do Lirismo moderno, idealista e humano, tambm Coimbra, desde a Renascena, tornou-se para Portugal o centro fecundo de elaborao potica, e todos os gnios portugueses ali foram receber a sugesto emocional e ali idealizaram, em estrofes imperecveis, as emoes com que ainda nos encantam. A mudana da Universidade para Coimbra em 1537 determinou este concurso permanente da mocidade de todas as provncias de Portugal; pela cultura humanista, e predileco literria, em Coimbra se manifestaram constantemente as vocaes poticas, muitas das quais deixaram um trao luminoso na histria. Em Coimbra inicia S de Miranda a transformao do gosto potico, o dolce stil nuovo que ele soube encontrar atravs dos provenais nos lricos italianos; foi em Coimbra que Lus de Cames e o seu amigo Jorge de Montemor, na livre expanso da mocidade, nas margens do Mondego, acharam os primeiros acentos da harmonia, com que imortalizaram a sua afectividade pessoal. No rudo das Escolas, e no fervor dos estudos de Humanidades e da Jurisprudncia, o Dr. Antnio Ferreira continua o impulso dado por S de Miranda, e compreende o valor artstico da lenda sentida dos amores da D. Ins de Castro, para modelar a primeira tragdia moderna segundo a estrutura da tragdia clssica directamente conhecida na forma grega. Em Coimbra, Vasco Mouzinho de Quevedo e Francisco Rodrigues Lobo continuam a tradio quinhentista, mau grado o Culteranismo, que assoberbou todo o sculo XVII. Enfim, cada escola acha em Coimbra os melhores representantes da emotividade potica, como no sculo XVIII Garo, Dinis, Tolentino e Jos Anastcio da Cunha, rcades e proto-romnticos, e no princpio do sculo XIX os autores das tragdias voltaireanas, que precederam a revoluo liberal, os poetas didcticos como Castilho, os romnticos como Garrett, os ultra-romnticos como Joo de Lemos, os sentimentalistas como Soares de Passos e Joo de Deus, os revolucionrios como Antero de Quental, parnasistas como Gonalves Crespo, simbolistas, decadistas, nefelibatas, de uma exuberante seiva da mocidade. Para Soares de Passos, a poesia foi um refgio, a Turris eburnea em que se confinara. Era nesse meio turbulento da Coimbra das grandes troas, que ele passava absorvido e alheio a toda a expanso da mocidade, mal conhecendo os condiscpulos, resguardandose na intimidade quase exclusiva de Silva Ferraz e de Alexandre Braga. Em Maro de 1852 comeou-se a publicar no Porto um jornal de versos intitulado O Bardo, de que eram fundadores o poeta satrico Faustino Xavier de Novais, e o ncgociante

metrificador Antnio Pinheiro Caldas. Pela sua amizade pessoal obtiveram de Soares de Passos a distino de publicarem poesias suas. A apareceram pela primeira vez a balada do Noivado do Sepulcro, as odes Ptria, Rosa Branca (no lbum da Ex Sr D. J. Maria de Figueiredo), Cano, Desejo, Saudade, com variantes que merecem estudar-se, porque revelam o seu processo artstico. No texto definitivo da mais popular das suas composies, o Noivado do Sepulcro, em geral as modificaes que adoptou na edio de 1854 so inferiores redaco primitiva d'O Bardo (Maro de 1852). Confrontemos esta lio com as variantes ulteriores:

Mulher formosa, que adorei na vida, E que inda adoro neste cho de horror, Porque to cedo foi assim trada Tua promessa de constante amor? 2

Depois que em leito sepulcral repousa Inda h trs dias no vieste aqui... Ai! quo pesada me tem sido a lousa Sobre este peito que bateu por ti. 3

Ca exausto neste abismo fundo Que em tua morte me cavou a dor. 4 Deixei a vida... que importava o mundo, O mundo em trevas sem a luz do amor!

Saudosa ao longe vs no cu a Lua? - Ai, se a vejo? Bem a vejo, sim... Foi luz dela que jurei ser tua, Na vida e morte, com amor sem fim. 5

Em seguida a estas estncias aparece uma estrofe, que o poeta omitiu na edio de 1856; no se compreende porque a desprezou; ei-la:

Se em vida, ai triste, no no quis a sorte, Hoje eis cumpridos os protestos meus; Oh, d-me, d-me que no cho da morte Meus frios ossos eu rena aos teus.

O Noivado do Sepulcro cantado numa melopeia, que o vulgarizou entre o povo, sem ter contudo condies de popularidade; no Porto ouvimo-lo bastantes vezes cantado pelas ruas, em noites de luar, mas deturpadas as palavras cultas pelos mais deplorveis plebesmos. A extrema vulgarizao desta balada chegou a produzir a iluso mental de um poeta provinciano, que protestava t-la escrito e recitado famlia nas frias escolares em 1853, acusando Soares de Passos, depois de morto, como indigno plagirio. Adiante analisaremos este caso psicolgico. Numa outra poesia intitulada A Ptria, inspirada pelo verso de Cames: - Esta a ditosa Ptria minha amada - acham-se no texto d'O Bardo de 1852 estrofes inteiramente diversas da lio do texto definitivo de 1856, e outras omitidas. Confrontemo-las, para a melhor compreenso do processo artstico de Suares de Passos:

Esta a ditosa ptria minha amada, Ditosa noutro tempo, hoje abatida; Foi grande, foi potente... hoje coitada Ao mundo apenas d sinais de vida. 6

Segue-se-lhe esta estrofe desprezada:

Portugal! Oh, perdoa se o meu canto Em lugar de exaltar-te um ai suspira: Sou teu filho... nos olhos geme o pranto

Banhando as cordas trmulas da lira.

Ptria, ptria, que tens que em desalento Vergas a fronte que alterosa ergueste! Porque, s bordas do glido moimento Teus brios e valor adormeceste? 7

Onde est esse gnio de teus filhos, Que outrora avassalando o mar profundo Abria sobre as ondas novos trilhos, Mostrando ao mundo antigo um novo mundo? 8

Que fizeste do imprio desse Oriente Onde raiaram teus formosos dias, Quando sentado em trono refulgente O ceptro a imensos povos estendias. 9

Ento eras tu grande! os reis da terra Vinham deixar-te aos ps ricos tesouros, O mar tinto de sangue em dura guerra Gemia sob o peso dos teus loiros. 10

No apontamos todas as outras variantes; revelam um trabalho intenso de modificao de uma frase sempre enftica, que no era a expresso de um verdadeiro sentimento. Henriques Nogueira, que vira essa misria da interveno armada estrangeira, pedida por D. Maria II em 1847, teve rasgos de suprema eloquncia proclamando a doutrina do Federalismo peninsular; Palmeirim vibrou por um momento, para calar-se depois; Soares de Passos sofria intimamente, mas a retrica era ento uma forma imperiosa. Notaremos apenas esta estncia omitida:

Tudo o mais acabou... cem fortalezas Com sangue de teus filhos cimentadas, Baquearam por terra, ou indefesas Choram de teus heris sobre as ossadas.

O fenmeno da desnacionalizao actuava na depresso tremenda em que se afundou Portugal, por forma que aquele nico esprito que acordava nas almas o sentimento da nacionalidade, Garrett, era torpemente caluniado pelos polticos palacianos, e odiado por D. Maria Libnia (pseudnimo usado por D. Maria II) na sua correspondncia com os espies cabralistas. Numa visita a Coimbra, Antnio Xavier Rodrigues Cordeiro, um dos poetas do Trovador, procurou em 1851 Soares de Passos, movido pelo interesse que lhe suscitara o pensamento do Novo Trovador; morava ele ento na Rua do Corpo de Deus, tendo por companheiros de casa os portuenses Alexandre Braga e Antnio Aires de Gouveia. Deixou-nos em poucas linhas o retrato do poeta: "Era de estatura mediana, franzino, fronte larga, e de olhas rasgados, com cabelo castanho liso e pouco espesso, bigode aloirado; e quanto ao aspecto moral de uma vaga tristeza, pouco comunicativo". 0 engenheiro Eduardo Falco, que igualmente o tratara com intimidade, conversando sobre as modernas doutrinas cientficas, tambm representa Soares de Passos com traos realistas: "Acanhado entre desconhecidos, e modesto diante de amigos, preocupando-se com os problemas do homem e da humanidade. Era aptico, passando quase sempre deitado, no seu quarto, dando apenas um pequeno passeio ao cair da noite". Apontamos estes factos para se reconhecer quanto absurda a afirmativa de que esse tmido se apropriara de certas poesias que algum declarou ter escrito em 1853, quando Soares de Passos as publicara n'O Bardo em Maro de 1852. Tambm tornam inexplicvel a lenda, de que o poeta sofrera em Coimbra uma agresso violenta, s Olarias, por causa de uma aventura amorosa; nega-o terminantemente Aires de Gouveia. certo que nas frias de 1853 ( Junho a Setembro ) Soares de Passos jazeu doente em casa, indo tarde e ainda convalescente matricular-se no quinto ano jurdico. Erguendo-se dessa grave doena, no se lhe proporcionava ensejo para qualquer actividade literria; tal era o seu estado que s pde comear a frequncia s aulas no ms de Novembro. Nesta situao, quebrantado da viagem de estafete, difcil e acidentada para Coimbra, escreveu Soares de Passos a inimitvel elegia Partida, publicada pela primeira vez em 1855 na Grinalda (vol. I, pg. 99), jornal de versos de Nogueira Lima. Os pressentimentos da morte atravessavam-se por meio das recordaes e saudades, prevalecendo sobre todos os outros sentimentos como uma obsesso permanente:

Mas se as flores do campo voltarem Sem que eu volte co'as flores da vida, Chora aquele que em tumba esquecida Dorme ao longe seu longo dormir; E cada ano que o sopro do Outono Desfolhar a verdura do olmeiro, Lembra-te ainda do adeus derradeiro, Deste adeus, que te disse ao partir.

O ano da formatura findava; mas ficava assinalado esse ano de 1854 pelo estrondoso conflito entre os estudantes da Universidade e a populao de Coimbra, que conhecido pelo nome da Tomarada. Os estudantes resolveram abandonar Coimbra, e retiraram-se em tropel para Tomar, onde o governo os sustou sem violncia, mas por acordo, fazendo-os, sob promessa, voltar a Coimbra. Essa energia transformou-se ento num sistema de resistncia organizada na Liga Acadmica, sob a forma de associao secreta. Comeava assim a iniciar-se entre os acadmicos o esprito associativo, criando-se nesse ano de 1854 a Sociedade Civilizadora, de que eram membros os dois companheiros de Soares de Passos, Silva Ferraz e Aires de Gouveia, Ernesto Marecos e Toms Ribeiro, tambm poetas, e outros que lhes sucederam, como Silva Leal, Correia Harcourt, Filipe de Quental e Ernesto do Canto. O poeta deixava Coimbra no perodo mais turbulento da vida acadmica, que retomava todo o seu esprito de revolta medieval. Quem entra em Coimbra, ao ver os estudantes desfilando unidos, em grupos, com as longas capas negras, batina e gorro, cr-se momentaneamente transportado a uma cidade da Idade Mdia, do tempo em que o Poder real protegia com privilgios excepcionais as corporaes escolarescas, e quando o clericus andava sempre em conflito com o laicus, ou o burgus. O que parece uma iluso torna-se uma realidade, porque, medida que se toma conhecimento da organizao ntima da Universidade, transparece ali o esprito medieval em todas as suas feies. A grande corporao escolar, embora hoje submetida ao centralismo administrativo, persiste em ter uma jurisprudncia sua, no reconhece a base moderna do direito constitucional da igualdade perante a lei, fortifica-se num anacrnico ou fantstico foro acadmico, e nas suas deliberaes soberanas manda pr fora de Coimbra, em vinte e quatro horas, o cidado sobre quem, pela disciplina da matrcula, se arroga o poder de exercer uma aco desptica. Pelo seu lado, os estudantes no se mostram mais adiantados; ao envergarem a capa e a batina apossam-se do velho esprito da classe, da poca em que o clericus vivia na bambochata dos Goliardos e da tuna, dos sopistas e martinets, e ei-los durante

os anos da formatura entregues com todo o desplante e audcia da mocidade aos arrudos das antigas Soias e Investidas a que chamam - as troas. Ningum h em Portugal que no conhea as troas de Coimbra: a troa a alma da Universidade, a tradio escolaresca na plena inconscincia; uma orientao secular, com que o corpo catedrtico transige paternalmente, contanto que no roce pela gravidade doutoral. O uso da troa encasou-se to profundamente em Coimbra, que a populao burguesa da cidade fala com o calo da Universidade; tudo o que se diz ou faz sempre em ar de troa, operando-se a transio para a seriedade por um modo brusco e instantneo, como se se puxasse um cordel ou se pusesse uma mscara. O bom dito a piada, que persiste at na linguagem dos conselheiros de Estado, que conservam essa prega de Coimbra. Daqui provm esse fenmeno psicolgico singular do tipo coimbro, mantido desde o que chegou a ministro da Coroa at ao mais annimo barbeiro: apresenta-se com uma gravidade olmpica na linguagem e nas maneiras, e de repente, quando menos se espera, enfia as mais pitorescas piadinhas da gria com uns gestos faiantes, que desconcertam o observador. No existe uma transio natural entre a troa do estudante e a autoridade catedrtica do doutor; de modo que, quando este quer assumir a altura da respeitabilidade do seu grau, s tem o meio violento, a reprovao no fim do ano no acto, ou a resoluo absurda de um conselho de decanos. O lente, que comeou por ser estudante e obedeceu orientao tradicional da troa escolar, sofre desde o dia em que toma capelo uma vesnia de respeitabilidade; adquire na fisionomia um ar meditabundo; emprega no andar o passo cadenciado do squito, na conversa usa o tom dogmtico, enfim todos as caractersticos exteriores de uma seriedade superior a que internamente no corresponde a prpria conscincia. Pe-se imediatamente em antinomia com os estudantes, a quem s fala como seu julgador. Esta moda doutoral conhecida em Coimbra pela frase de gria: - Aquele j botou a albarda aos ombros - com que designam a cerimnia do capelo. Quebra-se toda a relao moral do mestre com o discpulo; aquele julga-se trs vezes mais do que o estudante (magis ter), e este, na sua situao degradada, revoca-se ao passado e fortifica-se com o esprito sarcstico, mofador e irreverente da Idade Mdia, mantendo a independncia intelectual pela troa. Observando estes costumes, pode-se recompor todo o viver ntimo das antigas Universidades da Europa, ainda persistente em Coimbra. Alm do hbito talar do clericus, subsiste ali a antiga hostilidade entre o estudante e o burgus (scandala ac dissentiones), que motivou uma legislao privilegiada; para o estudante, o filhote ou cidado de Coimbra um ente desprezvel, a que d o nome de futrica; e para o burgus o bacharel que se vai deixa uma argola em Coimbra. O conflito da Tomarada de 1854 proveio desta hostilidade imanente. Em geral, a lente que natural de Coimbra ou casado com filha de lente, que o anichou na Universidade, a favor do futrica e contra o estudante.

Muitos dos costumes da vida acadmica de Coimbra, so em tudo semelhantes ao das Universidades francesas do sculo XIV, tais como se propagaram na Alemanha e para a Sucia. ainda hoje os estudantes em Coimbra se dividem em trs classes, correspondentes s designaes medievais: os Recentiores, a que equivalem os Caloiros; os Juniores ou Novatos, e os Seniores ou Veteranos, que compreendiam os terceiranistas ou Ps-de-banco, sendo esse ano denominado a ponte dos asnos, as quartanistas ou Candeeiros e os quintanistas. As relaes destas diferentes classes regulam-se pelos velhos cerimoniais da Idade Mdia, por uma tradio automtica, que nem os prprios doutores saberiam explicar. esse o drama da troa, conhecido nas antigas Universidades dos sculos XV e XVI pelo nome de Depositio, com o Vejamen e a Prise de la pierre. O personagem objectivo da troa escolar o Caloiro, da classe dos Bancorum ou Becjaunes, que vem da casa paterna como o jumentinho ainda coberto de plo. preciso tosqui-lo, cortar-lhe a trunfa, torn-lo gente. s vezes a reaco da vtima produz consequncias mortais. Leva-se depois o Caloiro a uma casa para lhe serem propostas as Captiosae quaestiunculae da Idade Mdia, em que sumulam do modo mais grotesco as cerimnias da defesa de teses e do doutoramento. O encarregado desta troa sempre um secundanista, verdadeiro Depositor, que faz a Vexatio e que d o grau no Cornutus. Nas Universidades espanholas conservou-se o costume dos Vejamens; nas poesias de Soropita vem um Vejamen a um lente zarolho de Coimbra no fim do sculo XVI. As teses so os mais fantsticos Quod libetus. O grau conferido tendo por borla um capacho das pernas, e por vezes um bispote de barro vidrado, conforme as cores simblicas das Faculdades. Os graus degeneraram em violentas brutalidades na Alemanha, no sculo XVI; o Novato que entra na Universidade recebido Porta frrea com pontaps, chamados na gria coimbr canelo, e quando protegido sob a pasta do quintanista apenas permitido desmancharlhe o penteado e atirar-lhe algumas chufas. Em todas as vsperas das frias do Natal, Pscoa, ou do encerramento das aulas, renovam-se as troas, que reflectem dos Novatos sobre os Caloiros. O fim do ano escolar assinala-se com o gudio do toque das latas, espcie de grande Sabath, ao qual concorrem todos com panelas, tachos, chocalhos, bzios, percorrendo at de madrugada as ruas de Coimbra. a libertao do toque da Cabra, espcie de couvre-feu ou sino corrido da gente escolaresca. No meio deste tropel, os estudantes agrupam-se ainda pela antiga forma de Nationes, a que chamam repblicas: associam-se entre si os ilhus, os beires, os minhotos, lisboetas, alentejanos e algarvios; nas suas choldras, h um que faz de bolsa, como nas colegiaturas. Aos estudantes medocres do-lhes o nome de msicos, formando a coelheira; cbulas aos que no abrem livro, e urso ao que alcanou a benevolncia do lente que o faz premiado. Esta notvel persistncia dos costumes escolares de Coimbra ressente-se nos mtodos e no esprito pedaggico da Universidade; ali subsiste o vicio dialctico e da ostentao banal do tempo em que as Universidades eram

exclusivamente teolgicas; ali impera a Sebenta, representante da poca em que no havia livros impressas e se apostilava o que o Lente ditava lendo pelo seu caderno; e se ensebava passando de mo em mo. Quando se uniformizar a Universidade de Coimbra, no plano integral da instruo pblica portuguesa, aberta ao livre magistrio, mundificada dessa crusta medieval da sua organizao interna? Desse agitado ano de 1854 deixou Soares de Passos uma recordao no lbum do seu condiscpulo Gaspar de Queirs Botelho de Almeida e Vasconcelos, um Soneto bocagiano, o nico que escreveu, talvez por no lhe ser simptica esta forma potica. A primeira estrofe merece transcrever-se:

Nossa lidas findaram. Chega o dia De deixar estas margens bonanosas, Onde colhemos as purpreas rosas Da cincia, do amor e da poesia. 11

Antes de atirar-se luta da existncia como bacharel formado, Soares de Passos, ao terminar o acto de formatura, fez uma excurso ao Buaco e ao Mosteiro da Batalha, acompanhado de seu irmo Custdio Jos Passos, de Silva Ferraz e Augusto Luso; as poesias que lhe inspiraram a floresta secular do monumento histrico so frias, enfticas, falhas de pensamento, no estilo caracterstico da pliade de Joo de Lemos. Era preciso que a sua sensibilidade se exacerbasse para tornar a achar a eloquncia do sentimento. 0 regresso ao Porto, onde a vida prtica prepondera em absoluto, forava-o a empenhar-se desde logo no exerccio da sua formatura. Lanou-se aco, inscrevendo-se como advogado na secretaria da Relao do Porto, para contar os dois anos exigidos para despacho na carreira judiciria. Repugnavam-lhe os processos, as tricas forenses; mais facilmente se lhe votou de alma e vida o seu condiscpulo e tambm poeta Alexandre Braga, que deixou nome no foro portugus. Uma ocupao sedentria, que honraria com a sua ndole artstica e tendncia aptica, ter-lhe-ia prolongado a vida. Soares de Passos concorreu vaga de segundo bibliotecrio da Biblioteca Municipal do Porto; como os lugares pblicos servem para pagar os que intrigam nos partidos polticos, o ministro que fez o despacho de um outro candidato, nem suspeitava que feria mortalmente aquela pobre alma na sua ltima aspirao. O poeta caiu na impotncia moral, numa tristeza que o levava a evitar todas as relaes, confinando-se entre alguns poucos amigos, e chegando a permanecer perto de quatro anos fechado no seu quarto. A vida de Coimbra deixa esta prega de atonia moral em muitos bacharis que se anulam no isolamento da provncia. Em casa no era um ocioso; no artigo intitulado Os Dois Irmos, escreveu Augusto Luso: "Antnio Augusto Soares de Passos, formado em Direito na Universidade de Coimbra, e poeta conhecido,

no se recusava a auxiliar seu pai, e seu irmo nos trabalhos comerciais, quando a necessidade o exigia". 12 Em Setembro de 1854, tendo Castilho ido ao Porto, a celebrou um sarau potico; era esse rcade pstumo um exmio recitador, dando um relevo impressionante a todas as composies que exibia. Para esse sarau convidou Castilho a Soares de Passos, j bastante conhecido pelas poesias publicadas n'O Bardo. Passava-se ento no seu esprito uma crise profunda, entrando na sua plena florao ou idealizao potica. Esse estado de alma apresentava-se sob dois aspectos: um elegaco, pessoal, exprimindo na forma a mais dolorosa e bela, o desnimo de quem 5e sente morrer, como no Desalento, Anelos, a Vida e Consolao; o outro era uma tendncia para a Ode filosfica, a alta contemplao que d a viso subjectiva mas cientfica do Universo, como sntese racional, fase que deixou esboada no Firmamento e na Viso do Resgate. Explica-se esta fase de idealizao cientfica por sugesto de conversas do seu ltimo ano de Coimbra. O Firmamento a manifestao de uma nova maneira, em que a inteno filosfica e a forma sinttica do quadro do ao lirismo uma grandeza de ideal, mais verdadeiro e belo do que o tema da imaginao individual. Para esta alterao do processo esttico houve decerto uma forte sugesto exterior. No Almanaque de Lembranas de 1875, contou Rodrigues Cordeiro: "Depois de uma conversa que se travou entre Soares de Passos e o seu amigo o Sr. Eduardo Augusto Falco, que nas suas ambiciosas, por no dizer exageradas teorias, queria a poesia da cincia na arte moderna, e quase que no admitia outra, levou-lhe este um dia o Systme du Monde de Laplace. O poeta leu-o, e da a muito pouco tempo, diz-me o Sr. Falco, apresentou-lhe a ode ao Firmamento, perguntando-lhe se havia ali poesia da cincia". A histria psicolgica de todas as obras belas provoca o mais vivo interesse; e no Firmamento, alm da sua beleza estrutural, h os novos recursos de idealizao do poeta. O Sistema do Mundo uma grandiosa sntese cosmognica, que tem dominado e ainda prevalece na astronomia, e d vontade de convert-la numa Epopeia, num hino. O gnio surpreendente de Edgar Poe converteu essa alta hiptese cosmognica no seu belo quadro fantstico Eureka! Era plausvel que um poeta elaborasse algumas estrofes eloquentes sobre a viso subjectiva da formao e destruio do universo sideral, saindo da grande Nebulose central pela condensao e voltando a ela pelo predomnio das foras repulsivas. Suares de Passos no era repentista; e a leitura rpida do Sistema do Mundo s depois de uma laboriosa assimilao poderia sugerir ao seu desmo uma nova idealizao potica. Pelo menos a obra de Laplace serviu-lhe para sistematizar ideias vagas recebidas nas conversas cientficas de Coimbra, no meado do ano de 1854. O ano de 1856 foi-lhe tormentoso; quatro meses sucessivos velou cabeceira de seu irmo Custdio Passos, durante uma grave doena. Na biografia do Poeta, este irmo deve ocupar o lugar luminoso que lhe compete; conhecemo-lo ainda quando residimos no Porto; mas para o retratar condignamente, a ele, tambm to reservado, transcreveremos alguns traos do estudo Os Dois Irmos, do professor Augusto Luso, que assim o define: "Este era dotado de um esprito claro e pensador; pouca gente o conhecia bem. A sua honradez aparecia em todos os actos da sua vida... Conhecia o

latim, entretendo-se mesmo em ler os clssicos nesta lngua; havia estudado o grego; lia, escrevia e falava o francs, conhecia o ingls, o alemo e o italiano. Tinha estudado os trs primeiros anos de matemtica na Academia desta cidade (Porto), bem como a fsica e a qumica... Os seus conhecimentos em histria, geografia e literatura eram em geral muito vastos, e sobrepujavam aos de seu irmo, apesar de este se tornar mais conhecido. Amava em extremo a Poesia, e tinha um fino tacto e delicado para a critica, que era sempre justa, baseada e segura. Viveu quase sempre desgostoso, vendo desaparecer-lhe, roubada pela morte, toda a sua famlia, com quem vivia e a quem amava extremosamente: sua tia, seu caro irmo, a sua querida irm, sua terna me e seu bondoso pai; mas forte pela resignao, pde sobreviver a tudo, porque nunca desamparou esta virtude. - Custdio Jos Passos, desde que deixou as aulas da Academia, viveu sempre doente, aumentando-se-lhe o sofrimento at sucumbir tambm. - Escreveu alguns versos e algumas tradues, mas nada publicou, porque a muita modstia lho proibiu. 13 E Foi nesta crise da doena de seu irmo que Soares de Passos elaborou as poesias O Mendigo, o Filho Morto, Infncia e Morte, Amor e Eternidade, a Me e a Filha, e Tristeza. Neste mesmo ano colige o seu livro Poesias, publicado pelo tacanho livreiro alfarrabista Cruz Coutinho. O pequeno volume de versos produziu uma grande impresso no pblico, cansado das banalidades de impertinentes versejadores. Em carta de 5 de Agosto de 1856, Alexandre Herculano felicitou Soares de Passos pela sua obra, considerando-o como sucessor de Garrett, dizendo tambm de si: "Fui poeta at aos vinte e cinco anos". 14 Numa carta do grande tribuno Passos Manuel ao pai do poeta, afirmava-lhe com entusiasmo: "O jovem poeta era o primeiro, o maior e mais ilustre dos poetas da nova gerao..." Depois de 1856 parece que nada mais escreveu, alm de uma traduo da Monja de Uhland, e ainda trs verses de Heine, que apareceram em alguns nmeros da Grinalda de Nogueira Lima, incorporadas na stima edio das Poesias de 1890. O entusiasmo provocado pelo livro fez que logo em 1858, o tacanho editor fizesse uma reproduo, retocada e ampliada. A doena de sua me influiu tambm para esta apatia. Fechado quase sempre no seu quarto, junto dele reuniam-se alguns amigos ntimos, entre eles Gomes Coelho (Jlio Dinis), o autor d'As Pupilas do Senhor Reitor e de outros romances no tipo das novelas inglesas. Gomes Coelho fala dessas reunies, "nas sempre lembradas noites em que, entre poucos mas escolhidos amigos, vamos na sua casa correrem as horas como instantes, e passarem as longas noites de Inverno como um sonho". A famlia de Jlio Dinis, tambm se extinguiu completamente vitimada pela tuberculose, sendo o insigne romancista derrubado quando estava no apogeu do talento e da glria. Sob o peso desta fatalidade morreu-lhe seu irmo Jos Joaquim Gomes Coelho; Soares de Passos consagrou-lhe estas duas quadras at hoje ainda no incorporadas nas suas Poesias:

Vinte anos! Ai, bem cedo arrebatado, O guardaste no seio, oh campa fria! Flor passageira, sucumbiste ao fado,

E seus perfumes, exalou num dia.

Quanta iluso desfeita em seu transporte, Sonhou glrias talvez! sonhou amores! Tudo, tudo aqui jaz! Carpi-lhe a sorte; Derramai-lhe na tumba algumas flores. 15

Castilho estava trabalhando na verso parafrstica dos Fastos de Ovdio, e entendeu anotar esse poema com notas ilustrativas por vrios escritores portugueses; escreveu, pediu, e alcanou diversas monografias mais ou menos valiosas com que ampliou em trs os volumes da sua traduo. Tendo conhecido Soares de Passos, na visita ao Porto em 1854, escreveu-lhe pedindo para que lhe redigisse uma memria sobre Tibur; essa nota efectivamente foi escrita pelo poeta, e est publicada no tomo III dos Fastos, pgina 522, devendo ficar tambm ligada sua obra. 16 um exemplar da sua prosa desataviada mas pura. Transcrevemos aqui a carta que em 23 de Dezembro de 1859 escreveu a Castilho, dando conta do desempenho do seu pedido; um documento indito valiosssimo:

Il.mo e Ex.mo Snr.

Estou envergonhadssimo do modo por que me tenho havido para com V. Ex, deixando de cumprir at hoje a promessa que lhe fiz de contribuir com o meu tnue contingente para os comentrios sua traduo dos Fastos de Ovdio; mas eu espero que V. Ex se dignar desculpar-me acreditando que a omisso proveio no de descuido ou desateno para com um objecto que dizia respeito a V. Ex, e em que havia um compromisso da minha parte, mas da falta de sade por um lado, e por outro de ocupaes. que me impediram de ser pontual corno desejava. Bem sei que s mais urgentes ocupaes devia antepor esta por todos os motivos; mas a considerao de que V. Ex ampliava o nmero dos convidados para esta obra (comum - riscada esta palavra) e por isso de que a execuo desta talvez se prolongaria, fez-me cometer o que eu reconheo ter sido um atrevimento. (Finalmente - riscada esta palavra.) Por ltimo menos em razes, do que na bondade de V. Ex que eu ponho a esperana. de obter a remisso desta falta. Permita-me agora V. Ex que lhe pea um grande favor. Depositando em suas mos a nota que V. Ex (riscadas as abreviaturas) me encarregou de redigir, (intercalada a palavra anterior) reconheo quanto est longe de corresponder ao pensamento que V. Ex me indicou. Lembrou-me V. Ex que a escrevesse em verso ou em prosa entremeada

de verso; tentei-o, mas no pude achar meio de realiz-lo de modo que ela fosse poesia e ao mesmo tempo (sem deixar de ser - riscado) esclarecimento do texto, condio que V. Ex decerto me impunha. O que pois consegui escrever foi uma coleco de apontamentos em forma de artigo bem singelo e bem insignificante. Se V. Ex entender que o que fiz uma coisa intil, peo-lhe encarecidamente queira p-la de parle sem contemplao, porque me resultaria eterno remorso de haver lanado este joio no meio dos frutos e das flores do seu precioso livro. Eis o favor que lhe roga quem

De V. Ex O mais ard.te adm.or e respeitoso discpulo

A. A. Soares de Passos. 17

Porto, 23 de Dezembro de 1859.

O estado do poeta, aparentemente satisfatrio, encobria um inesperado desenlace; entrava na crise dos projectos, que irisam a imaginao dos fsicos. Projectava ir passar o Inverno em Lisboa, no Dezembro de 1859. Talvez que Castilho o estimulasse para isso; mas um ataque de hemoptise em 6 de Janeiro de 1860, e repeties sucessivas, anunciaram-lhe um fim breve, falecendo s 8 horas da manh do dia 8 de Fevereiro de 1860. Em carta de seu irmo Custdio Jos Passos a Rodrigues Cordeiro, vem a narrativa do seu falecimento: "Pelas 8 horas da noite do dia 6 de Janeiro ainda ele conversava largamente e bom na aparncia comigo e com o seu amigo Dr. Miguel Teixeira Pinto. Das 10 para as 11 sobreveio-lhe uma hemoptise. A esta sucederam-se outras. Nunca mais pde estar deitado; o seu estado foi piorando dia para dia, at que, conhecendo que o seu fim estava prximo, aceitou a sua morte com a maior resignao e coragem. Pelas 8 horas da manh do dia 8 de Fevereiro expirava Soares de Passos nos braos de sua me e irmos, e no meio da famlia, que tanto o amava. Realizaram se nisto os nossos e os seus desejos." Passos Manuel, o iniciador das maiores fundaes do constitucionalismo, escrevia ento ao pai do Poeta, em carta de 17 de Dezembro de 1860: "Um dos grandes sentimentos

que tenho, o de no ter abraado em vida esse glorioso filho que V. Ex perdeu e com tanta razo pranteia". A morte prematura de Soares de Passos, e a sua organizao dbil para entrar na luta, no o deixaram elevar-se acima das emoes da personalidade; a sua bela organizao artstica, no pde por essa fatalidade orgnica atingir a plenitude criadora e consciente. A obra de arte no pode ser unicamente elaborada pelo poeta com os elementos que constituem a sua subjectividade; h um factor alheio a ele e com quem tem de colaborar a multido, o povo, a sociedade, a colectividade nacional, enfim, que lhe fornecem o elemento morfolgico da tradio, que o artista idealiza, dando-lhe a expresso com que renovada e mais vigorosamente universalizada. Em geral os grandes artistas modernos esquecem-se deste facto natural - a tradio - concentram-se no seu esprito, tiram tudo de si, e assim como os organismos se tornam mais pequenos quando a sua evoluo morfolgica se exerce no sentido interno, tambm os artistas so mais pessoais e mais limitados nos intuitos, exercendo a sua actividade nos detalhes do estilo, da metrificao, da rima, das imagens, nos calculados recursos do efeito. So como as lindas plantas de estufa, alentadas num meio artificial; falta-lhes a grande comunicao do ar livre, o estro vivificante da multido. Os talentos novos deviam procurar o modo de restabelecer esta aliana natural, que em tempos antigos produziu todas as formas esplndidas da Arte grega, e ainda na Idade Mdia provocou um original vigor esttico, que no saiu do seu estado rudimentar em virtude da instabilidade poltica dessa poca fecunda e da posterior direco erudita dos espritos que iniciaram a Renascena pela imitao de obras que correspondiam a um outro estado social. certo que o estado mental moderno produz um novo estado de conscincia humana, e que esta modificao que se revela pelas noes morais, actua sobre os costumes e formas da actividade social. Enquanto se fez a transio, nesse perodo da Revoluo Francesa e nas reaces inconscientes da Santa Aliana, apareceu um esprito superior, Byron, que idealizou os seus cantos dando expresso ao mal-estar moral de uma poca perturbada por foras repressivas, e a sua eloquncia e sublimidade vem-lhe da oportunidade do protesto. Byron, como o notou Comte, admiravelmente (Cours de Phil., IV, 366), foi o gnio que deu uma enrgica expresso de revolta contra este estado de retrogradao transitria, como o grito de uma conscincia atropelada. Essa fase passou; preponderam as foras propulsivas dos dois grandes poderes espiritual e temporal que se afirmam por novas manifestaes, a unificao moral pelo regime da Cincia; e a cooperao social dirigida ao bem-estar de todas pela Indstria. desta fase organicamente construtiva que provm a misso de uma nova Poesia. Porm, como? Pondo a cincia em verso, como considera o boalismo retrico? No. Compreenda-se a orientao social correspondente a estes progressos intelectuais, e formule-se a aspirao a implcita, esboando a futura sntese do estado normal humano. Assim se estabelecer o acordo entre a multido e o artista, e s assim se conceber e realizar a nova poesia, suprema pela sua misso construtiva. A poesia no consiste nos versos bem medidos, mas na verdade do sentimento humano, to complexo nas suas manifestaes individuais e sociais. A falta de conhecimento da realidade das coisas, no deixa o poeta impressionista ver para dentro do mundo moral,

cobrindo esse vcuo com o efeito da frase, com os smiles e comparaes, com rimas imprevistas e pitorescas as desvairadas correntes literrias. A individualidade do poeta tambm uma obra faceada pela aco forte da sua poca. Disse Milton: The life of Poet is a true poem - a vida do poeta um verdadeiro poema. O que quer isto dizer? A vida acidentada, complicada pelo conflito dos interesses e das aspiraes ideais que faz os Poetas, como Dante banido de Florena nas lutas polticas, como Milton envolvido na Revoluo de Inglaterra, como Byron quebrando o convencionalismo ingls de uma aristocracia hipcrita e verberando o retrocesso da Santa Aliana, como Vtor Hugo protestando contra os vinte anos de traio e infmia do segundo Imprio; e se olharmos para a nossa pennsula como Cames desterrado da corte beata de D. Joo III, escrevendo a Epopeia da nao portuguesa nos cruzeiros doentios, nos crceres e misrrimos hospitais, nos naufrgios e perseguies, como Cervantes escondido no convs de uma nau na batalha de Lepanto, e escrevendo o Dom Quixote no crcere de Argamasila, ou ainda Garrett, colaborando na legislao que renovou as instituies portuguesas, e acordando a conscincia da nacionalidade nas lutas do cartismo e do cabralismo. A vida destes poetas na realidade um verdadeiro poema; no viveram em si e para si, e por isso que foram grandes na sua obra.

NOTA BIBLIOGRFICA

Quando a memria de Soares de Passos estava consagrada, reconhecendo-o como um talento primacial, sucedeu um estranho caso: um contemporneo seu dos tempos de Coimbra, veio, anos depois da sua morte, increp-lo de plagirio, reclamando insistentemente na imprensa peridica a paternidade das melhores composies de Soares de Passos. o Dr. Loureno de Almeida e Medeiros, bacharel formado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, proprietrio rural, vivendo h longos anos na sua quinta da Fermel. Em carta que nos escreveu em 4 de Julho de 1886, queixando-senos de que Soares de Passos se apropriara da ode O Firmamento, acrescenta: "E no me roubou s isto; na noite a que me refiro, confiei-lhe todos os assuntos sobre que tencionava exercer-me, dei-lhe indicaes, glosou a parte que lhe expliquei com mais clareza, e assim fez o Anjo da Humanidade, os Anelos, o Desalento; roubou-me ainda mais, at estncias desgarradas de outras poesias que j esboara, como da Noite, do Cames -estragou estes assuntos por no lhe alcanar a ideia principal ou no saber trat-la!" At aqui o tremendo libelo acusatrio; na continuao carta, apelando para o nosso critrio, termina: Fao v. juiz...

Como todas as composies de Soares de Passos lhe eram assim extorquidas, em 1886, pelo Dr. Loureno de Almeida e Medeiros, suspeitei logo de uma vesnia, a que j me tinham aludido, e aceitei o mandato, para que me fornecesse dados positivos da sua afirmao e reivindicao potica. Enviou-nos um artigo que publicara no Distrito de Aveiro em 1886, com a narrativa da palestra literria que tivera com Soares de Passos na Rua dos Militares, em Coimbra, em 1854, nica vez em que se encontraram; desse momento que derivam todos os plagiatos; transcrevemos esse trecho: "Em Coimbra, no ano de 1854, alguns dias antes de se fecharem as aulas, querendo recitar ao meu amigo o Sr. Aires de Gouveia, hoje bispo de Betsaida, O Firmamento e o Noivado do Sepulcro, dirigi-me a sua casa na noite de uma quarta-feira, por ser o dia seguinte feriado para os estudantes de Direito. Morava o Sr. Aires de Gouveia na Rua dos Militares. Encontrei-o na sala de jantar com os seus comensais Soares de Passos, Silva Ferraz e o Sr. Jos Carlos Lopes. Acalorado um pouco, o Sr. Aires de Gouveia disputava com Soares de Passos, e perguntei-lhe eu qual era o assunto discutido; vira-se para mim rapidamente depois de alguns momentos de silncio e disse-me: - As Folhas Cadas, de Garrett. E desta maneira instando-me a expor o meu conceito sobre aquelas prolas da nossa literatura, ainda que no desejasse ser desagradvel a nenhum dos interlocutores, pois era claro que discutiam o mrito dessas poesias, no ocultei que as julgava, como todos as julgam, a par da nossa poca, com a sua ndole e modo de sentir, de uma forma espontnea, mas que muito artstica, nova, admirvel, e alm disso elevada e ao mesmo tempo um mimo, que ningum at hoje excedeu ou igualou. A isto respondeu Soares de Passos: - Pois eu creio que se em vez do nome de Garrett, as firmasse um outro que no fosse conhecido, ningum faria caso delas. Um silncio constrangido sucedeu a esta observao, pela qual ningum esperava. Da a pouco levantou-se o Sr. Aires de Gouveia, e eu com ele fui para o seu quarto, onde no tardou que aparecesse o Sr. Jos Carlos Lopes com uma arte de ingls, lngua que presumo lhe andava ensinando, e ouvi ao Sr. Aires de Gouveia: - Hoje no pode ser; hei-de entregar amanh uma dissertao, e s tenho esta noite para escrev-la. - Tambm eu vinha tirar-lhe o tempo, disse eu; e visto isso, retiro-me. Insistindo em que me demorasse, supondo ser algum escrito, rogava-me que lho desse. - So versos, que trago de memria, mas o assunto precisa de longas explicaes, e hoje no h tempo, nem ocasio para elas; e despedi-me. Ao sair, topo com Soares de Passos e Silva Ferraz defronte do quarto de Miguel Teixeira Pinto, para onde entrmos.

Este quarto era, por sinal, esquinado; eu sentei-me perto da janela, numa das duas cadeiras que tinha, Soares de Passos na outra, Silva Ferraz debruou-se sobre a mesa de estudo, e assim se conservou quase todo o tempo que ali estive com eles.

1 - FIRMAMENTO

Quando em direco minha casa, que era na Rua do Correio, passei na que corre por detrs do Observatrio, de cujo nome me no recordo, soava uma hora na torre da Universidade. No comeo da conversao observei que o estudo das cincias e da filosofia muito devia convir aos poetas. Ento o Sr. Soares de Passos atalhou-me com a seguinte pergunta: - O Sr. Almeida nunca fez versos? A esta pergunta deve Soares de Passos uma parte da sua glria, e eu alguns dissabores de que podia ter-me dispensado; respondi: - Tenho apenas duas poesias em estado de poder recit-las, mas uma delas ainda est incompleta, e a outra desejo corrigi-la em algumas passagens. Esta versa sobre um assunto to original e inesperado, que receio, publicando-a, me chamem louco ou extravagante. Imagine o Sr. Passos, a destruio de todo o universo suposta como provada pela cincia." At aqui a narrativa da palestra da Rua dos Militares antes das frias de 1854, que durou at uma hora da noite. natural que o Sr. Loureno de Almeida, que por esse tempo se graduara na Faculdade de Filosofia, fantasiasse um quadro potico, contrrio s doutrinas de Laplace e de Marcel de Serres, e sugerido pelas novas teorias baseadas no clculo, que demonstrava o encurtamento rbita do cometa de Encke; portanto improcedente o seu argumento: "Que as estncias do Firmamento se baseiam em suspeitas e indues s minhas, mas de um carcter cientfico bastante para se afirmar - que s quem soubesse reflectir sobre certos factos astronmicos e outros geolgicos os podia conceber e depois desenvolver em formas poticas". 18 Versos que trago de memria foi o que declarou a Aires de Gouveia; admitida a hiptese, que recitasse esses versos sobre a destruio de todo o universo, que desejava corrigir em algumas passagens, no aceitvel, que por uma simples audio de uma conversa muito complexa, Soares de Passos retivesse de memria uma Ode constando de dezoito estrofes em oitavas. E demais sabendo-se o estado de doena nesse ano final de formatura. Quando o Dr. Loureno de Almeida quer recorrer prova, cai em contradies que anulam a sua afirmativa; assim na aludi4a carta de 4 de Julho de 1886,

escreve: "Aqui esto minha irm e meu cunhado, que nas frias de 1853 me ouviram na minha casa em Fermel recitar o Firmamento, e as primeiras quadras do Noivado". assombrosa a inconscincia! Em Maro de 1852 publicou Soares de Passos, no nmero 4 d'O Bardo, pg. 50, o Noivado do Sepulcro, de que Loureno se d como autor, compondo em 1853 as primeiras quadras. Num dos seus artigos de Reclamao das Poesias, confessa que s no fim do ano de 1854 achou a verdadeira forma do Firmamento completando a concepo: "Explicarei primeiro a ideia original do Firmamento. Do contraste da natureza, que supomos eterna, imensa, sempre jovem, sempre bela, com o homem, o mais nobre dos seres, mas efmero, que decai e no se remoa, e por fim se extingue, formara-se-me no intimo da alma uma dolorosa impresso, que nunca me largava. Eis a o grmen da poesia. Como se v, estava ela pedindo para o seu comeo um rpido esboo do universo - o sublime espectculo da noite, em que se mostra o espao cheio de sis e de mundos, as suas multides, as suas distncias prodigiosas, e de envolta o mistrio das origens e dos destinos que encerra o insondvel abismo, ofereciam-me o assunto das primeiras estrofes. Estava pois no meu plano fazer sentir a grande mgoa do homem, pela sua breve decadncia em face dos seres que a no conhecem, em face da eterna juventude da natureza. Mas o supor-se um como resumo da imensidade, segundo uma teoria que no consegui tornar acessvel a Soares de Passos, o atingir pela razo o infinito, o sentir a beleza das coisas, o eternizar-se pelas geraes sucessivas, vinham consol-lo e minorar-lhe aquela mgoa. Aqui rematava o Firmamento, na sua primeira concepo. Aproxima-se o fim do 4 ano de Filosofia, que eu ento cursava. Indagando como a Terra se constituiu (sobre o que o ensino e os livros do curso passavam mui de leve), concebi a suspeita de que assim como o nosso globo, no princpio diverso do que hoje , s depois de longas modificaes chegou sua forma e modo de ser actuais, da mesma sorte era provvel que em poca mui distante viesse a decompor-se, alterando pouco a pouco as condies de equilbrio e de harmonia, que naquele tempo da Universidade e ainda muito depois se julgavam perptuas. A Terra ser sempre o que agora? Durar com ela eternamente a humanidade? A estas interrogaes d hoje a cincia uma resposta negativa... Vem da toda a parte do Firmamento, que a esse assunto se refere. E com isto a ideia da poesia se completou". 19 Como que Soares de Passos, no falando j nas estrofes feitas, se apropria da ideia com que o Dr. Loureno de Almeida completava o plano da sua trilogia, a que chegou depois da palestra da Rua dos Militares?

sobre estas bases: assuntos em que tencionava exercer-se, indicaes, que Soares de Passos glosou no pouco que compreendeu, e estncias desgarradas de poesias esboadas, que julga fundamentar os plagiatos. Bases inconsistentes em coisas de Arte, porque na idealizao esttica o poder criador e a obra genial consistem na forma, no dom da expresso em que se universaliza o sentimento. Pode qualquer indivduo ter indicaes, tencionar ou projectar poemas, mas esses temas indeterminados s existem no mundo da Arte e s pertencem quele que soube dar-lhes expresso. Quem negar a originalidade das tragdias de Shakespeare por se encontrarem a maior parte dos seus argumentos nos Novelistas italianos em simples esboos, sem paixes, nem caracteres, nem situaes definidas? Quem negar a La Fontaine a originalidade das suas Fbulas, embora venham os seus temas de Esopo, de Fedro ou dos Fabliaux da Idade Mdia, se a forma incomparvel, pelo cunho de individualidade crtica, pelas aluses ou intenes morais ou histricas da poca de Lus XIV? Quando muito, s podemos conceder qualquer influxo sugestivo de uma exposio cientfica da cosmogonia, ainda assim menos poderosa do que a leitura do Sistema do Mundo, de Laplace, provocada pelo engenheiro Eduardo Falco em 1854. A forma vesnica da Reclamao das Poesias, verifica-se na insistncia continua do Sr. Loureno de Almeida, e na complicao dos plagiatos abrangendo mais cinco das melhores poesias de Soares de Passos. As contradies em que escorrega mostram a inanidade das afirmaes; diz que: "No Porto, em 1858, a primeira vez que soube do embuste de Soares de Passos..." (Carta de 4 de Julho de 1886.) E .antes desse ano, diz do poeta: "Humilhou-se diante de mim, e teve a fortuna de eu no saber do seu indiscreto abuso seno em Outubro de 1860, depois da sua morte". (Carta de 20 de Julho de 1886.) E desde 1854 at ao presente nunca teve ensejo para publicar uma obra potica que pelo menos justificasse a plausibilidade da delirante afirmativa.

2 - O NOIVADO DO SEPULCRO

Quando nas Modernas Ideias na Literatura Portuguesa a individualidade potica de Soares de Passos, lrico obermanista, foi estudada como representante da fase ultraromntica, referimos este caso de um contemporneo da Universidade se atribuir a paternidade das suas principais composies, destacando a balada elegaca O Noivado do Sepulcro, e a grandiosa ode O Firmamento. Estas acusaes de plagirio tantas vezes feitas pelo Dr. Loureno de Almeida e Medeiros, em jornais da provncia, como o Distrito de Aveiro e a Locomotiva, no podiam passar indiferentes para o meu estudo crtico. Tendo falado em 1871 com o Sr. Dr. Loureno de Almeida e Medeiros, formulou-me as suas provas, que se limitaram a afirmaes verbais contra Soares de

Passos, com quem conversara antes das frias de 1854, resultando da o publicar com o seu nome as melhores composies que contm o livro de Poesias de 1856. No meu assombro, o Dr. Loureno de Almeida disse que me fazia juiz sobre estas suas reivindicaes. A apreciao do talento de Soares de Passos obrigava-me a examinar este problema ou caso anedtico; h dados concretos de prioridades que se evidenciam bibliograficamente, h antecedentes artsticos, e mesmo tendncias vesnicas que ajudam soluo. Sobre o Noivado do Sepulcro declarou em jornais o Sr. Loureno de Almeida que o escrevera em Fevereiro de 1853, recitando-o ainda nesse ano famlia e a outras pessoas cujos nomes invoca. Infelizmente para o acusador, esta data categrica patenteou a falsidade da imputao; porque em Junho de 1852, publicou Soares de Passos O Noivado do Sepulcro no n 4 do jornal de poesias O Bardo, pg. 50, do qual eram directores Faustino Xavier de Novais e A. Pinheiro Caldas. Depois de termos expendido esta concluso em 1892 no livro supracitado, escreveu-nos o Sr. Dr. Loureno de Almeida uma carta em 24 de Outubro de 1904, dizendo ter chegado ao seu conhecimento as Modernas Ideias e protestando: "Li a parte que se refere ao Firmamento e Noivado... Diz V. que j estava publicado em 1852, e que por isso d a questo como resolvida a seu respeito. No pode ser, protesto. Soares de Passos no comps em 52 a poesia que eu compus em 53. engano de V., e se no for corto a cabea. Escrevi a Magalhes & Moniz pedindo uma edio d'O Bardo. Na carta em que a peo protesto contra este erro de data que V. me atribui, sem dvida sinceramente, mas que me desacredita. S se houve alguma reproduo d'O Bardo, onde fosse includo o Noivado. Espero ainda que V., reconhecendo o seu engano, o repare em qualquer das suas publicaes, porque assim o exige a minha honra. No sei nunca em que faltei verdade". vista desta intimativa fui outra vez examinar o n 4 d'O Bardo publicado em 1852, e l encontrei a pg. 50 O Noivado do Sepulcro assinado por Soares de Passos, tendo demais a mais a folha impressos na cruzeira o lugar, ano e tipografia. Para mais confirmao fui Biblioteca Nacional examinar os exemplares d'O Bardo e ali chamei a ateno de dois bibligrafos para o seu exame. Em 10 de Novembro de 1904 o ilustre bibliotecrio actual Dr. Xavier da Cunha, conhecido por trabalhos. da especialidade, e o primeiro conservador da mesma biblioteca Alberto Carlos da Silva, diante do exemplar. d'O Bardo reconheceram que no n 4, de 1852, a pg. 50, estava publicado com o nome

de Soares de Passos O Noivado do Sepulcro, tendo essa folha tipogrfica, como todas as outras que constituem o volume, autenticado o local, ano e tipografia, a que so obrigadas as publicaes peridicas. Contra este facto inegvel e que imediatamente se verifica, ope o Sr. Dr. Loureno de Almeida em carta de 28 de Outubro de 1904 variadas hipteses curiosas: "Chegou minha mo O Bardo, isto , uma reproduo das poesias publicadas neste jornal desde 1852 at fim do ano de 1854. Logo vi o engano de V., como lhe afirmei sem ainda ter visto O Bardo para verificar a minha afirmativa. Enganou-se V., com a data das poesias que ali antecedem O Noivado. Repito, O Noivado ningum o encontrar n'O Bardo de 1852, nem de 1853, nem mesmo no de 1854, antes de Fevereiro desse ano. Visto a fama e autoridade do autor das Ideias Modernas, fico desacreditado no conceito de todos que as lerem, pois no tm O Bardo para examinarem e reconhecerem o engano de V. A data de 1852 e o nome da tipografia na reproduo d'O Bardo e na linha vertical a pg. 64 iludiram a V., e talvez no me iludissem se o Sr. Tefilo Braga fosse o autor do Noivado e o reclamasse atestando t-lo composto em Fevereiro de 1853. O Bardo primitivo que o decidir. Na primeira pgina v-se no alto O Bardo; trazia pois o 1 nmero o nome do jornal - e devem t-lo todos os nmeros seguintes se fosse uma coleco de jornais primitivos. E no pode s-lo - porque no podia estar publicado o Noivado no n 4 de 1852. Agora explique V. o facto: Nas frias de 53 recitei Sr. D. Maria do Carmo Sousa Brando o Noivado; eu nunca li O Bardo, no soube da sua existncia seno lendo as Ideias Modernas, como que adivinhei? E se li O Bardo, como adivinhei as alteraes no livro de v6rsos de Passos, publicado em 56? - P. S. - Como se acha o Noivado na reproduo d'O Bardo em 1854, e entre as poesias relativas ao ano de 1852? A vai uma hiptese: Soares de Passos trouxe de Coimbra uma cpia da poesia incompleta em 1854. A reproduo d'O Bardo fez-se nesse ano. Se publicou alguma poesia em 1852, sabendo da reproduo d'O Bardo, quis substitui-la pelo Noivado com uns acrescentos e com umas correces que rejeito.

Resta agora O Bardo primitivo. Algum j se incumbiu de obt-lo. Mas, tendo a data de 52, se tiver o Noivado essa data falsa, no O Bardo de 52. Indague-se bem, e a verdade h-de aparecer. Outros, e principalmente os indiferentes, que nada examinam ou nada sabem do assunto, podem dar razo s Ideias Modernas; mas eu, que sou o verdadeiro autor, vejo quanto V. se engana e como a sua critica prevenida arbitrariamente me nega a elaborao artstica e a atribui a Soares de Passos. - P. S.- Ainda uma vez. Como no uma reproduo, se em 53 compus o Noivado e s em 54 o recitei a Soares de Passos? Como no uma reproduo feita em 54, ao menos do n 4, onde acho o Noivado? Como explica V. isto? E sendo assim, que valor tm os dados bibliogrficos que V. assevera serem rigorosos." Depois destas argumentaes contra o facto positivo e autntico, reproduzidas pelo Sr. Dr. Loureno de Almeida no jornal A Vitalidade, a d conta das pesquisas que mandou fazer no Porto para saber da reproduo do texto d'O Bardo que tem o frontispcio de 1854: - "Que a edio se fez reunindo-se (os Bardos) o que mais se pudesse e imprimindo os que faltavam. (Alfarrabista da Rua Ch.) No preciso eu de mais para saber como o Noivado do Sepulcro feito em 1853, aparece num suposto n 4 d'O Bardo com a data de 1852. Muitas vezes me rio comigo do embuste do Sr. Passos, que enganou uma gerao inteira, e do crtico prevenido a quem incumbia esclarec-la, principalmente depois das minhas declaraes e provas". (Vitalidade, n 502, de 26 de Novembro de 1904.) Muito se engana quem julgar que eu afirmo um facto ou qualquer circunstncia em que possa desmentir-me. Quando no seja pela seriedade de que me prezo, conceda-se que, pelo brio, pelo orgulho, pelo capricho de ningum ter motivo de vexar-me, eu ser capaz de uma impostura. O que diz a meu respeito o Sr. Tefilo Braga nas Ideias Modernas um escarro na sua obra e sobre o meu nome". (Vitalidade, n 503, de 3 de Dezembro de 1904.)

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Por mais voltas que d, o Sr. Dr. Loureno de Almeida no invalida o facto de ter publicado Soares de Passos em Junho de 1852, no n 4 d'O Bardo, o Noivado do Sepulcro, que Sua Ex h muitos anos reclama como tendo-o escrito em Fevereiro de 1853. Todas as suas hipteses se esvaem diante da descrio bibliogrfica dessa coleco de versos: O Bardo - Jornal de Poesias inditas - Publicado desde Maro de 1852 a Maro de 1854. (Emblema - uma Lira.) Porto. Na Tipografia de Sebastio Jos Pereira, Praa de Santa Teresa, n 28, 1854. um volume in-8 grande de 384 pginas, com mais 6 de ndice. Publicava-se mensalmente em nmeros avulsos de 16 pginas, tendo o titulo O Bardo s na primeira folha, e nas folhas restantes ao baixo da pgina a par da indicao do n da folha servindo tambm de numerao da srie. Como publicao peridica, cada folha traz na cruzeira declarado o local, ano e tipografia em que se imprimia O Bardo. Depois de distribudos pelos assinantes, ao fim de 24 nmeros foi distribudo com o ltimo o frontispcio com a data de 1854. O Bardo (sem frontispcio) comeou este 2 volume em Maro de 1854 e interrompeuse em Fevereiro de 1855, na folha 21, pg. 192; tem ainda o mesmo tipo e papel, com as indicaes do ano, local e tipografia. A suspenso d'O Bardo, no terminando a srie dos 24 nmeros, foi devida partida de Faustino Xavier de Novais para o Brasil. Em 1857, o livreiro Francisco Gomes da Fonseca comprou todo o depsito das folhas d'O Bardo, e brochou-as, fazendo frontispcios para os dois volumes:

O Bardo, I Parte. O Bardo, II Parte.

Como lhe faltassem as 12 primeiras folhas do volume de 1852-1854, para salvar algumas coleces reimprimiu em papel azulado, e noutro tipo, as 12 folhas (pg. 1 a 192) e inteirando o volume com as que abundavam; ps-lhe o ttulo: O Bardo. Jornal de Poesias inditas - Redactores A. P. C. - F. X. de Novais. Nova edio (Emblema da Lira) Porto. Editor Francisco Gomes da Fonseca. 1857, 1 volume in-8. I Parte. Nesta reproduo de 1857, vem o Noivado do Sepulcro transcrito do texto de 1852, e isto quando j andava com variantes no livro das Poesias de Soares de Passos de 1856.

O Bardo. Jornal de Poesias inditas - Redactor F. X. de Novais. Porto, Editor Francisco Gomes da Fonseca, 1857. In-8. II Parte. um frontispcio falso posto s 12 folhas incompletas de 1855, impressas na tipografia de A. J. de Freitas e na de Sebastio Jos Pereira. Neste volume vm poesias de Soares de Passos inditas ainda em 1855, mas no o sendo j em 1857, depois do aparecimento do seu livro em 1856. Deste quadro bibliogrfico conclui-se, que o texto tipogrfico de 1852 se reimprimiu em 1857 em diferente papel e tipo, e sem intuito de falsificao, e que o Noivado do Sepulcro autenticamente de Soares de Passos. 20 Como apagar este irrefragvel testemunho? So curiosos os expedientes, que mais agravam a situao em que se colocou o reclamante: "O nmero 4 d'O Bardo foi todo ou parte reimpresso, quando se tratou de reunir em volume em 1854." Quando a entrega do n 24, ndice e Frontispcio, se fez aos assinantes d'O Bardo, j havia dois anos que o n 4, com o Noivado do Sepulcro, lhes estava distribudo e no era possvel reav-lo, destru-lo e substitui-lo por outro texto; e alm disso o ndice geral enviado aos assinantes d'O Bardo, inclui o Noivado do Sepulcro nas pginas do nmero respectivo. Este esforo de imaginao do Sr. Loureno, fazendo que Soares de Passos, que em 1854 cursava o quinto ano jurdico em Coimbra, obrigasse Pinheiro Cuidas e Faustino de Novais a refazerem um nmero atrasado d'O Bardo, para incluir a com antedata de 1852 o Noivado do Sepulcro, que um sujeito que casualmente encontrou lhe comunicara, s isto basta para reconhecer falta de sinceridade na iluso. E nos mesmos voos da imaginao continua o reclamante com singular hermenutica: "Os nmeros de um peridico que nunca saiu do armazm da tipografia que os imprimia, no se pode negar que fossem reimpressos, no se revestem do carcter de autenticidade que o Sr. Tefilo levianamente lhe atribui." O Bardo imprimia-se para ser distribudo mensalmente aos seus assinantes, e pelas coleces particulares e bibliotecas pblicas existem exemplares, e todos eles so uniformes, trazendo o Noivado do Sepulcro com a data de 1852 no registo da folha. Os nmeros que ficaram em depsito ou armazenados foram adquiridos depois de 1855 pelo livreiro Gomes da Fonseca. Depois desta segunda fantasia vem uma exigncia verdadeiramente fenomenal: "Aparea um Bardo de 52, ou mesmo de 53 (eu dou largas ao Sr. Tefilo) ou anterior a 15 de Fevereiro de 1854, e s ento se justificar da insolncia que me dirige. Tem obrigao de apresent-lo. " No se pode saber o que entende S. Ex por um Bardo de 52, ou mesmo de 53, ou anterior a Fevereiro de 54. O nico texto do jornal O Bardo compreende os 24 nmeros desde Maro de 1852 a Maro de 1854, formando um volume completo. neste volume, e no n 4, distribudo em Junho de 1852, que Soares de Passou publicou o seu

Noivado do Sepulcro. Para indicar este facto no nos acusa a conscincia de ter dirigido insolncia a quem s carece de piedade, refugiando-se detrs da ininteligvel exigncia de um Bardo de 52. E acrescenta ainda o reclamante, torvado se no iracundo: "No era bastante ser vilmente espoliado do que pensei e escrevi, mas sofrer agora insultos como este, que sem escrpulo deixou cair da sua pena sobre o meu nome, o caso era para uni srio desagravo, se o riso medianeiro no viesse atenuar a indignao que me causa. (!) Felizmente para mim e infelizmente para o Sr. Tefilo, a falsidade do que me imputa que est provada". (!) Esta clera, estas afirmaes imperativas e explicativas hipteses, encerram o bastante para esclarecer o problema literrio que h quarenta e seis anos o Sr. Dr. Loureno de Almeida, a seu grado, prope e resolve. Mas quem caiu na ingenuidade de acusar Soares de Passos de plagirio, ficou sujeito alada da crtica rigorosa de quantos estudarem a obra potica daquele esprito, e s concluses psicolgicas que deduzirem. 21

POESIAS

A CAMES

Ai do que a sorte assinalou no bero Inspirado cantor, rei da harmonia! Ai do que Deus s geraes envia Dizendo - vai, padece, teu fadrio; Como um astro brilhante o mundo o admira, Mas no v que essa chama abrasadora Que o cerca d'esplendor, tambm devora Seu peito solitrio.

Pairar nos cus em alteroso adejo, Buscando amor, e vida, e luz, e glrias; E ver passar, quais sombras ilusrias, Essas imagens de fulgor divino: Tais s o vossos destinos, poetas, Almas de fogo, que um vil mundo encerra; Tal foi, grande Cames, tal foi na terra Teu msero destino.

A cruz levaste desde o bero campa: Esgotaste a amargura ate s fezes: Parece que a fortuna em seus revezes Te mediu pelo gnio a desventura. Combateste com ela como o cedro Que provoca o rancor da tempestade, Mas cuja inabalvel majestade Lhe resiste segura.

Foste grande na dor como na lira! Quem soube mais sofrer, quem sofreu tanto? Um anjo viste de celeste encanto, E aos ps caste da viso querida... Engano! foi um astro passageiro, Foi uma flor de perfumado alento Que ao longe te sorriu, mas que sedento Jamais colheste em vida.

Sob a couraa que cingiste ao peito Do peito ansioso sufocaste a chama, E foste ao longe procurar a fama, Talvez, quem sabe? procurar a morte. Mas, qual onda que o nufrago arremessa Sobre inspita praia sem guarida, A morte crua te arrojou a vida, E as injrias da sorte.

De praia em praia divagando incerto Tuas desditas ensinaste ao mundo: A terra, os homens, 't o mar profundo Conspirados achavas em teu dano. Ave canora em solido gemendo, Tiveste o gnio por algoz ferino: Teu alento imortal era divino, Perdeste em ser humano:

ndicos vales, solides do Ganges, E tu, gruta de Macau, sombria, Vs lhe ouvistes as queixas, e a harmonia Desses hinos que o tempo no consome. Foi l, nessa rocha solitria, Que o vate desterrado e perseguido, ptria, ingrata, que lhe dera o olvido, Deu eterno renome.

"Cantemos!" disse, e triunfou da sorte. "Cantemos!" disse, e recordando glrias, Sobre o mesmo teatro das vitrias, Bardo guerreiro, levantou seus hinos. Os desastres da ptria, a sua queda, Temendo j no meditar profundo, Quis dar-lhe a voz do cisne moribundo Em seus cantos divinos.

E que sentidos cantos! d'Ins triste Se ouve mais triste o derradeiro alento, Ensinando o que pode o sentimento Quando um seio que amou d'amores canta: No brado herico da guerreira tuba O valor portugus soa tremendo, E o fero Adamastor com gesto horrendo Inda hoje o mundo espanta!

Mas ai! a ptria no lhe ouvia o canto! Da ptria e do cantor findava a sorte: Aos dois juraram perdio e morte, E os dois juntaram na manso funrea... Ingratos! ao que, alando a voz do gnio Alm dos astros nos erguera um slio, Decretaram por louro e capitlio O leito da misria!

Ningum o pranto lhe enxugou piedoso... Valeu-lhe o seu escravo, o seu amigo: "Dai esmola a Cames, dai-lhe um abrigo!" Dizia o triste a mendigar confuso! Homero, Ovdio, Tasso, estranhos cisnes, Vs, que sorvestes do infortnio a taa, Vinde depor as c'roas da desgraa Aos ps do cisne luso!

Mas no tardava o derradeiro instante... O raio ardente, que fulmina a rocha, Tambm a flor que nela desabrocha, Cresta, passando, coas etreas lavas! Que cena! enquanto ao longe a ptria exangue Aos alfanges mouriscos dava o peito, De msero hospital num pobre leito, Cames, tu expiravas!

Oh! quem me dera desse leito beira Sondar teu grande esprito nessa hora, Por saber, quando a mgoa nos devora, Que dor pode conter um peito humano; Palpar teu seio, e nesse estreito espao Sentir a imensidade do tormento, Combatendo-te n'alma, como o vento, Nas ondas do Oceano!

O amor da ptria, a ingratido dos homens, Natrcia, a glria, as iluses passadas, Entre as sombras da morte debuxadas, Em teu plido rosto j pendido; E a ptria, oh! e a ptria que exaltaras Nessas canes d'inspirao profunda, Exalando contigo moribunda Seu ltimo gemido!

Expirou! como o nauta destemido, Vendo a procela que o navio alaga, E ouvindo em roda no bramir da vaga D'horrenda morte o funeral pressgio, Aos entes corre que adorou na vida, Em seguro baixel os pe a nado, E esquecido de si morre abraado Aos restos do naufrgio:

Assim, da ptria que baixava tumba, Em cantos imortais salvando a ptria, E entregando-a dos tempos memria, Como em gigante pedestal segura: "Ptria querida, morreremos juntos!" Murmurou em acento funerrio, E envolvido da ptria no sudrio Baixou sepultura.

Quebrando a lousa do feral jazigo, Portugal ressurgiu, vingando a afronta, E inda hoje ao mundo sua glria aponta Dos cantos de Cames no eterno brado; Mas do vate imortal as frias cinzas Esquecidas deixou na sepultura, E o estrangeiro que passa, em vo procura Seu tmulo ignorado.

Nenhuma pedra ou inscrio ligeira Recorda o gr cantor... porm calemos! Silncio! do imortal no profanemos Com tributos mortais a alta memria. Cames, grande Cames; foste poeta! Eu sei que tua sombra nos perdoa: Que valem mausolus antes a coroa De tua eterna glria?

O OUTONO

Eis j do lvido outono Pesa o manto nas florestas; Cessaram as brandas festas De natureza lou.

Tudo aguarda o frio inverno; J no h cantos suaves Do montanhs e das aves, Saudando a luz da manh.

Tudo triste! os verdes montes Vo perdendo os seus matizes, As veigas e os dons felizes, Tesouro dos seus casais; Dos crestados arvoredos A folha seca e mirrada, Cai ao sopro da rajada, Que anuncia os vendavais.

Tudo triste! e o seio triste Comprime-se a este aspecto; No sei que pesar secreto Nos enluta o corao. que nos lembra o passado Cheio de vio e frescura, E o presente sem verdura Como a folhagem do cho.

Lembra-nos cada esperana Pelo tempo emurchecida, Mil ureos sonhos da vida Desfeitos, murchos tambm;

Lembram-nos crenas fagueiras Da inocncia doutra idade, Mortas luz da verdade, Criadas por nossa me.

Lembram-nos doces tesouros Que tivemos, e no temos; Os amigos que perdemos, A alegria que passou; Lembram-nos dias da infncia, Lembram-nos ternos amores, Lembram-nos todas as flores Que o tempo vida arrancou.

E depois assoma o inverno. Que lembra o gelo da morte, Das amarguras da sorte ltima gota fatal... por isso que estes dias Da natureza cadente, Brilham n'alma tristemente Como um crio funeral.

Mas nimo! aps a quadra De nuvens e de tristeza, Despe o luto a natureza, Revive cheia de luz:

Aps o inverno sombrio Vem a flrea primavera, Que novos encantos gera, Nova alegria produz.

Os arvoredos despidos Se revestem de folhagem; Ao sopro da branda aragem Rebenta no campo a flor: Tudo ao v-la se engrinalda, Tudo se cobre de relva, E as avezinhas na selva Lhe cantam hinos d'amor.

nimo pois! como terra, Tambm nua existncia Vem, aps a decadncia, s vezes tempo feliz; E a vida gelada, estril, Que o sopro da morte abala, Desperta cheia de gala, Cheia de novo matiz.

nimo pois! e se acaso Nosso destino inclemente, Em vez de jardim florente, Nos aponta o mausolu;

Se a primavera do mundo J morreu, j no se alcana, Tenhamos inda esperana Na primavera do Cu!

O NOIVADO DO SEPULCRO

BALADA

Vai alta a lua! na manso da morte J meia-noite com vagar soou; Que paz tranquila; dos vaivns da sorte S tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe Funrea campa com fragor rangeu; Branco fantasma semelhante a um monge, D'entre os sepulcros a cabea ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplido celeste Campeia a lua com sinistra luz; O vento geme no feral cipreste, O mocho pia na marmrea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto

Olhou em roda... no achou ningum... Por entre as campas, arrastando o manto, Com lentos passos caminhou alm.

Chegando perto duma cruz alada, Que entre ciprestes alvejava ao fim, Parou, sentou-se e com a voz magoada Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida, "E que na tumba no cessei d'amar, "Por que atraioas, desleal, mentida, "O amor eterno que te ouvi jurar?

"Amor! engano que na campa finda, "Que a morte despe da iluso falaz: "Quem d'entre os vivos se lembrara ainda "Do pobre morto que na terra jaz?

"Abandonado neste cho repousa "H j trs dias, e no vens aqui... "Ai, quo pesada me tem sido a lousa "Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quo pesada me tem sido!" e em meio, A fronte exausta lhe pendeu na mo, E entre soluos arrancou do seio

Fundo suspiro de cruel paixo.

"Talvez que rindo dos protestos nossos, "Gozes com outro d'infernal prazer; "E o olvido cobrir meus ossos "Na fria terra sem vingana ter!

- "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda Responde um eco suspirando alm... - "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda Formosa virgem que em seus braos tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas, Longas roupagens de nevada cor; Singela c'roa de virgnias rosas Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"No, no perdeste meu amor jurado: "Vs este peito? reina a morte aqui... " j sem foras, ai de mim, gelado, "Mas inda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo "Da sepultura, sucumbindo dor: "Deixei a vida... que importava o mundo, "O mundo em trevas sem a luz do amor?

"Saudosa ao longe vs no cu a lua? - "Oh vejo sim... recordao fatal! - "Foi luz dela que jurei ser tua "Durante a vida, e na manso final.

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito, "Hoje o sepulcro nos rene enfim... "Quero o repouso de teu frio leito, "Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funreo, E luz da lua de sinistro alvor, Junto ao cruzeiro, sepulcral mistrio Foi celebrada, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia, J desse drama nada havia ento, Mais que uma tumba funeral vazia, Quebrada a lousa por ignota mo.

Porm mais tarde, quando foi volvido Das sepulturas o gelado p, Dois esqueletos, um ao outro unido, Foram achados num sepulcro s.

DESEJO

Oh! quem nos teus braos pudera ditoso No mundo viver, Do mundo esquecido no lnguido gozo D'infindo prazer.

Sentir os teus olhos serenos, em calma, Falando d'alm, D'alm! duma vida que sonha minha alma, Que a terra no tem.

Eu dera este mundo, com tudo o que encerra Por tal galardo: Tesouros, e glrias, os tronos da terra, Que valem, que so?

A sede que eu tenho no morre apagada Com tal aridez: Pudesse eu ganh-los, e iria seu nada Depor a teus ps.

E s desejando mais doce vitria, Dizer-te: eis aqui Meu ceptro e cincia, tesouros e glria: Ganhei-os por ti.

A vida, essa mesma daria contente, Sem pena, sem dor, Se um dia embalasses, um dia somente, Meu sonho d'amor.

Isenta do lao que ao mundo nos prende, A vida que vale? A vida s vida se o amor nela acende Seu doce fanal.

Aos mundos que eu sonho pudesse eu contigo, Voando, subir; Depois que importava? depois no jazigo Sorrira ao cair.

BOABDIL

LTIMO REI MOURO DE GRANADA

De Granada nas torres j se ergue O pendo de Castela temido; Boabdil, o rei mouro vencido, Deixa a terra em que h pouco reinou. Do Padul s alturas chegado, Fez parar o seu tmido bando,

E o corcel andaluz volteando Tais adeuses ptria mandou:

"Ai, Granada, l ficas entregue "Para sempre aos guerreiros de Cristo! "Quem teus fados houvera previsto, " sultana de tanto poder? "Acabou-se o domnio dos crentes "Neste solo to belo de Espanha; "No h fora de herica faanha "Que nos possa da runa erguer:

"De Toledo, de Crdova, e Murcia, "De Jan, de Baza, e Sevilha, "Eras tu, gentil maravilha, "Que inda as glrias fazias lembrar. "E perdemos-te, flor do Ocidente. "Do Xenil, princesa formosa! "E curvamos a frente orgulhosa "Ns, os filhos valentes d'Agar!

"Deus o quis! nossa raa punindo "Fez baixar o seu anjo da morte, "E das iras d'Al no transporte "Baqueou nossa altiva nao! "Nossos dios civis nos perderam, "Neste abismo fatal nos lanaram,

"E nem mesmo o valor nos deixaram "De morrermos com nosso pendo.

" guerreiros das eras passadas, "Vencedores da Espanha descrida, "L nesse den feliz da outra vida "Vossas faces cobri de rubor! "Este brao, que ousou vossos louros "Arrastar ante os ps de Fernando, "No ousou neste peito nefando "Embeber um punhal vingador!

"Desonrado, do trono banido, "Que me resta por sorte futura? "Uma vida cobarde e obscura "No pas em que outrora fui rei... "Nunca, nunca! o destino contrrio "Dalm-mar nosso bero me aponta: "L irei resgatar-me da afronta, "L dos bravos a morte haverei.

"Para sempre adeus pois, Granada! "Adeus, muros, e torres vermelhas, "Que brilhais como vivas centelhas "Nas verduras de tanto jardim! "Adeus, paos e fontes d'Alhambra! "Adeus, altas, soberbas mesquitas!

"E vs, tronos das luas proscritas, " Comares, forte Albaicim!

"Para sempre, ai, adeus! t morte "Vivers neste peito, Granada! "Mas debalde, manso adorada, "Que estes olhos jamais te ho-de ver... "Acabou-se o domnio dos crentes "Neste solo to belo de Espanha; "No h fora de herica faanha "Que nos possa das runas erguer."

Disse, e o pranto nas faces corria Do rei mouro, dos seus que restavam. Longe, ao longe as trombetas soavam Em Granada j feita crist: Era o canto d'alegre triunfo Em redor dos pendes de Fernando; Era o grito d'Al desterrando Das Espanhas os crentes do Isl.

CANO

Que noite d'encanto! Que lcido manto!

Que noite! amo tanto! Seu mudo fulgor! Oh! vem, donzela; No temas, bela, Que a noite s vela Quem sonha d'amor.

A luz infinita Dos astros, crepita, Arqueja e palpita, Serena a brilhar: Assim o teu seio, De casto receio, De tmido enleio Costuma pulsar.

A lua, qual chama, Que os seios inflama, Fanal de quem ama, Desponta no cu; E a ntida fronte Retrata na fonte E estende no monte Seu cndido vu.

E a fonte murmura Por entre a verdura,

E ao longe d'altura L desce a gemer: Que sons, que folguedos! Parece aos rochedos Dizer mil segredos D'infindo prazer.

Silncio! o trinado L volta enlevado, Das noites o amado, Da selva o cantor; E o hino que entoa No bosque ressoa E ao longe revoa, Gemendo d'amor.

O facho da lua Coa sombra flutua, Avana e recua No cho do jardim; Nas asas da aragem, Que agita a folhagem, Recende a bafagem Da rosa e jasmim.

Que noite d'encanto! Que lcido manto!

Que noite! amo tanto Seu mudo fulgor! Oh! vem, donzela; No temas, bela, Que noite s vela Quem sonha d'amor.

PTRIA

Ao meu amigo A. C. Lousada

(1852)

Esta a ditosa ptria minha amada.

CAMES - Lusadas.

"Esta a ditosa ptria minha amada!" Este o jardim de matizadas flores, Onde os cus com a terra abenoada Rivalizam nas galas e primores.

Este o pas das tradies brilhantes, Onde cresceu a palma da vitria,

Onde o mar conta s praias sussurrantes Longnquos feitos d'extremada glria.

Esta a nao de laureada frente, Esta a ditosa ptria minha amada! Ditosa e grande quando foi potente, Hoje abatida, sem poder, sem nada.

Ptria minha, que tens, que em desalento Vergas a fronte que alterosa erguias! Porque fitas o glido moimento, Perdida a fora dos antigos dias?

Que fizeste do gnio destemido Com que domavas esse mar profundo, E sorrias das vagas ao rugido, Ignotas praias descobrindo ao mundo?

Onde est esse vasto capitlio De tuas glrias, o soberbo Oriente, L onde erguida em triunfante slio Empunhavas teu ceptro refulgente?

Ento eras tu grande! os reis da terra Derramavam-te aos ps os seus tesouros; O mar, saudando teus pendes de guerra, Gemia ao peso de teus verdes louros.

Ento de lanas e d'heris cercada, Avassalando a ndia e a frica ardente, A cada golpe da valente espada Mais uma palma te adornava a frente.

Ento prostradas mil hostis falanges, Retumbava o fragor de teus combates Desde as praias de Ceuta alm do Ganges Fazendo estremecer o Nilo e Eufrates.

Ento eras tu grande! hoje esquecida, Um eco apenas do teu nome soa; Nos braos da vitria adormecida, Perdeste o ceptro e a majestosa c'roa.

Os fortes pulsos entregaste aos laos Da tirania e rude fanatismo, E descados os potentes braos, Caminhaste sem foras ao abismo.

Um livro apenas te ficou, triste, Por epitfio da passada glria; Tudo o mais acabou, j nada existe De tanto resplendor mais que a memria.

Das quinas os pendes j no revoam,

guias altivas, sujeitando os mares; Teus gritos de vitria, ai! j no soam Na Lbia e nos gangticos palmares.

Naes obscuras, quando o mundo inteiro J tua glria aprendido tinha, Vendo apagado teu ardor guerreiro, Arrancaram teu manto de rainha.

E repartindo entre elas seus pedaos, E soltando depois feroz risada, Disseram ao passar, cruzando os braos: "Oh! como essa nao jaz aviltada!"

E teus heris na tumba inquietos, Vendo insultadas tuas altas glrias, Agitaram seus frios esqueletos, Despedaando as lpides marmreas.

E cada qual das pregas do sudrio, Erguendo a dextra que empunhara a lana, De ps sobre o jazigo funerrio, Com torva indignao bradou: vingana!

Debalde! ao verem sem valor as quinas, Eles murmuram nas geladas campas: Tu, quem sabe? ditosa te imaginas,

E em tua histria mil baldes estampas.

No que dormes do sepulcro borda, Ergue-te, surge como outrora ovante! Teu gnio antigo, teu valor recorda, E aprende nele a caminhar avante!

Se longos anos d'opresso funesta Te pesaram na fronte hoje abatida, No seio de teus filhos inda resta Fogo bastante para dar-te vida.

Longe da senda que gerou teu dano, Desata o voo por espaos novos; E o ardor que te levou alm do oceano, Alm te levar dos outros povos.

Ah! possa, possa ainda a meiga aurora Desse dia feliz brilhar-me pura! Possa esta lira, que teus males chora, Dar-te cantos de alegria e de ventura!

Mas ah! se negra pgina sombria Tens de volver em teus cruis fadrios, Se o arcanjo das runas h-de um dia Pairar sobre os teus restos solitrios:

Terra da minha ptria ouve o meu brado, Se inda da vida me restar alento, Tu que foste meu bero idolatrado, S minha tumba em meu final momento!

ROSA BRANCA

Eu amo a rosa branca das campinas, A branca rosa, que ao soprar do vento Lnguida verga para o cho pendida.

Como a rosa dos vales, pura e bela