poesias caiçaras

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Música nas alturas Minha rabeca toca benditos, chora saudades, saúda o Divino e cai na folia. É santa e pecadora igual ao dono. Mas no dia em que morrer ela e eu estaremos em perfeita afinação para nossa salvação.

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Seleção de poesias de Domingos Fábio dos Santos sobre o universo dos caiçaras. Caiçara é o morador tradicional do litoral de S. Paulo e R.de Janeiro.

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Page 1: Poesias caiçaras

Música nas alturas Minha rabecatoca benditos,chora saudades,saúda o Divinoe cai na folia.É santa e pecadoraigual ao dono.Mas no dia em que morrerela e eu estaremosem perfeita afinaçãopara nossa salvação.

Page 2: Poesias caiçaras

Vôo de anjo Nestes tempos de violênciaOs anjos do SenhorNão fazem mais vôos rasantesComo faziam antes.Vai que tem uma alma perdida,Vai que tem uma bala perdida...

Page 3: Poesias caiçaras

Artes do Menino Jesus Goiabeiras, laranjeiras,coqueiros, parreiras,foram obras de Deus criador.Já a jabuticabeiracom frutos em toda a extensão,desde os galhos mais altosaté ao caule ao rés do chão,decerto foi arte do menino Jesusna Terra da Santa Cruz.

Page 4: Poesias caiçaras

O caso das bananeiras meio-pé Mané Bentodesistiu de trabalhar na roça,largou mão de capinare resolveu cultivar bananeirasque crescem e matam pragase ainda dão 'muitas fruitas',boas de fazer pirão,saborosas de se fartar,baixinhas de colher com a mão.

Page 5: Poesias caiçaras

O bicho mar Quando eu tomei um caldoe saí da praia zonzosó Tio Chico me consolou:- O mar, menino, é um bicho perigoso!

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Papo do menino Régis

Anjinhos do céu,De Nossa Senhora os queridinhos,quando escutei ruídos de asas lá fora,eram vocês ou os passarinhos? 

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 Taí

Desconfioque essas velhinhas,sem leituras nem estudos,que sabem remédios de ervase com o rosário na mão,curam com auxílio da fé,sabem muito bemonde o rio Estiges dá  pé. 

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Sons de verão No marulho das ondasque consegue furar a distânciae a rede de obstáculos que me separam do mar;nos passos dos pássaros sobre o telhado;no som da vida saltado na cachoeira;na conversa do vento com as folhas das árvores ena pulsação do coração da bananeira. 

Page 9: Poesias caiçaras

Redemoinho  Entre tantas indecisões que ocorrem com o tempo nas mudanças de estações, um pé-de-vento perdeu-se por um momento na curva da estrada e ficou rodopiando no quintal de casa: sujou as roupas do varal com a poeira do terreiro e depois sumiu de cena igual menino arteiro. 

Page 10: Poesias caiçaras

Manoel Félix Tio Manoel virou manecode tanto ver assombrosboitatás, mães do ouro,estrelas cadentes,visões de mouros,pirilampos, peixes pampos,abraços de tamanduás,fila de marandovás,correção de formigas quem-quem,vozes daqui e dalémdas quais ficou só o ecoe Tio Maneco virou Neco. 

Page 11: Poesias caiçaras

Eternidade 

O armazém do Bananinha,a mercearia do Maciel,o bar São Paulo,a pensão do Maestro,a casa Souza,morreram junto com seus donos.Por isso Tio Antoniodesistiu da cidadee enfurnou-se no Sertãoe na perenidadeda mata, do rio, do matacão. 

 

Page 12: Poesias caiçaras

Estrada do tempo 

A estrada do tempocomeça no quintalda casa da gente,atravessa ruas,vozes que seduzem,apelos de aventuras,segredos para desvendar.Quando a gentecomeça a precatar,muda o humor do mar,a ciência da lidacom as coisas da terraacaba sendo esquecida,a estrada vira asfalto,a tranqüilidademuda em sobressaltoe de todas as antigas liçõesfica apenas a certezaque é curta esta vidae a estrada do temposó tem viagem de ida. 

Page 13: Poesias caiçaras

Movimento cíclico 

Tantas voltas a Terra dá,tantos giros de carrossel,tantas revoluções telúricas,tantas translações e rotações,tantos rodeios só pra dizerque quero tanto um beijo seu. 

 

 

Page 14: Poesias caiçaras

Quaresmeiras

De março a abril,por causa da quaresmae acidentes rodoviários,tinticuias e manacásdão flores de lutoao longo da SP-55. 

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Dia dos namorados

Vós de lá e eu de cá,ribeirão passa no meio.Vós de lá dais um suspiro,eu de cá tchabau na água. 

Page 16: Poesias caiçaras

Carrapichos 

Foi morando na restingaque aprendemosa lição dos carrapichos,nos armamos de espinhose ficamos resistentesà força dos elementos:sol, chuva,noites e sentimentos. 

    

 

Page 17: Poesias caiçaras

Fotografia antiga 

Retrato antigode delicadezas passadas:no caminho da escola,irmãos de mãos dadas.  

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Papo de Vovó 

Vovó Martinha disseque nunca teve medo de ladrão,por muita fé em Deuse um cacete atrás da porta. 

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Seu Hilário 

Tinha uma espingardade fazer barulho no mato,de espantar os bichosque corriam assustados,que alertavam a caaporaque berrava urros estranhosde bichos d’antanho,extintos no quaternário:gliptodonte,megatério,mastodonte,Seu Hilário   

Page 20: Poesias caiçaras

  Recordação 

Eu me lembrode uma cozinhacom mesa e bancospra reunir a família,pra contar histórias,pra jogar dominó,pra bebericar um caféfeito no fogão a lenhae as telhas,e os caibros,e as ripas,e as lembranças,cheios de picumã.   

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Ipê-Amarelo 

Todas as horas do dia,todos os dias do ano,o ipê se preparapara,no final do inverno,despir-se das folhas,vestir-se de ouroe nos dias seguintes,derramar todo seu tesouroaos pés dos transeuntes.     

Page 22: Poesias caiçaras

Navio fantasma 

Do rumo de meio-dia,cambando sobre as ondas,o veleiro veiode dentro do século XIXbuscar pimenta-do-reino,café do Vale do Paraíba,farinha da terra,ouro das Minas Gerais.Chegou tarde demais. 

 

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Tarumã 

Neste dia de sol,registro numa folhade meu caderno de bobagens,as ilustres visitasque chegam ao velho tarumã,em frente à minha janela:corruíra,tié,sanhaço,periquito,saíra,rolinha,sabiá,mariquita,bem-te-vi,andorinha que fez desfeita,efetuou um vôo rasante,e foi esbanjar alegria adiante.   

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Elegia ao tamanduá 

Eu vi no meio da estrada,com a bandeira desfraldada,amode que pedindo trégua,um bicho-tamanduá.Quase fui abraçá-lo,por saber que ainda tem tamanduá dando bandeira por aí,na Serra do Mar. 

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Tia Aninha benzedeira

De sua casa pobrezinhaabria as janelasdireto para o céu,dava risos sozinha,igual criancinha,que conversa com os anjos.Fazia orações, benzimentose dizia palavras,aparentemente sem tino:- Menino, não sabeisque sangue de passarinhodeixa nódoas na alma?   

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 Antes do Progresso 

A simplicidadeestava em voga,até as doençaseram simplese as pessoas sofriamde quebranto,defluxo,dor nas cadeiras,espinhela caída,paixão recolhida,e golpe de ventoera cama na certa.   

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Fiapos de memória

Na minha infância de caiçaraa refeição malemá enchiao prato de porcelanacom paisagens de distantes portoscom navios a vapora soltar fiapos de fumospelas chaminés.Enquanto a sopa esfriavaeu, distraído, navegava.      

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Vovó Eugênia

A fumaça do fogão a lenhaDe Vovó Eugêniadefumava peixes, caças,caibros, ripas, telhadose nós cada vez mais curtidos.

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Peixaria dos poetas 

Peixe-lua,peixe-voador,peixe-anjo,peixe-elétrico,peixe-piloto,peixe-rei.Só deixo fora o peixe-espadaque meus versos são de paz.  

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Metamorfose  

O vento agitouos galhos do ipêe uma flor cor de ourofoi carregada pelo vento.Bateu asase diante de minha janelatransformou-seem borboleta amarela. 

 

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Cachoeira do céu Na casa de meu avôquem sempre nos deua água de beberé uma cachoeirinhaque brota de uma grotaentre pedras, raízes e caetês,que alimenta um córregode guarus, cobras d'água e pitus.Uma queda d'água tão bonitinha,com um rumorejar tão baixinho,parecendo que foi feita por Deus,quando ainda era menino.

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Perenidade da lembrança  A roda do mundo girou.Quem era criança, cresceu;quem era solteiro, casou;quem era talvez, aconteceu;a flor cheirosa murchou;uma nova rosa apareceu;a roda do mundo girou,só faltou levar juntoa nostalgia que restou. 

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Historinha  Quando a escolinhaagrupada do primeiro grauda praia da Fortalezaera no sopé do morro,no meio do bananal,uma cobra caninanafoi se enrodilharentre os caibros do telhadopara aprender o beabá.Mas acabou sendo expulsa,tão logo foi notada,porque não estava inscritano livro de chamada.

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Antigamente Eram os Reis Magosque nos traziam presentes:boneco desengoçado,corda de pular,pião carrapeta,balanço na goiabeira,canoa de caixeta,carrinho de madeira.Mas chegou o Papai Noelque expulsou os Reis Magose acabou a brincadeira.

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Vento leste O pescador Rogépelo vento lestado,pela cachaça tocado,pela solteirice condenado,sempre fundeava no portoa sotavento adernado.

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Bendito Bendito sejaquem arranja tempopara cultivar um jardim;quem semeia flores,borboletas e colibris;quem planta pomares,balanços e crianças.Mesmo sendoum jardineiro amador,será chamadoparceiro do criador.

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Os pássaros não morrem  Exceto por bodocadas,gaiolas de alçapão,arapucas e visgo colante,os pássaros não morrem.Pesquisei no mato,espiei sob as fruteiras,questionei o bem-te-vie cheguei à conclusão,após percorrer esse mundéu,que os pássaros não morrem:sobem em corpo e alma ao céu.

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Um cavalo de nome Abstêmio Trotando mais de léguapor trilha estreita e perigosaque leva à praia isoladacom a carga vacilantede seu dono embebedadona carraspana domingueira,contornando obstáculos,equilibrando-se nas pirambeiras,lá vai o cavalo abstêmiouma cavalgadura mais ajuizadado que seu dono boêmio,que lhe deu esse nomepor pura caçoada.

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Ruídos da cosmogonia Que saudades que tenhoda aurora da minha vida,da ausência de automóveis,do silêncio de motores,quando podia se ouvirnas horas da madrugadao ruído de fundoda cosmogonia do espaço sideralou era o escachoar do marna praia de perau?

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Avoengo Bento Benedito Bento enquanto viveudas caças para caçar,das terras para plantar,dos peixes para pescar,continou sempre bento,na terra dos pés descalços,na praia dos cabelos ao vento.

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O meio natural Chapéu de fibra de bananeira,balaio de cipó timbopeva,barquinho de caixeta,covo de taquara,esteira de taboa,corda da entrecasca da embaúba,canoa de timbuíba,casa de pau-a-pique,teto de sapé,fogo de tacuruba,flechas da haste do ubá,ubá de Ubatuba.  

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Tempo de acordar

Aprendiz de vivente,abra os olhos,acorde do pesadelopara apreciar a músicaque vem de fora.É de novo Elias no cavaquinho,Jorginho no violãoe Maneco Almiro na rabeca.Não duvide, aproveite e vá contarnos galhos da árvores fruteirae veja que estão todos lá...os sabiás.

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Cantiga de ninar Dorme menininhoque o soltambém já foi dormire levou consigotodas as cores do mundo.Dorme menininhoque o ventojá estendeu um cobertorde nuvens espessas para aquecerquem não tem onde se abrigar.Dorme menininho,dorme para o sonho acordar.

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Precipitações Coriscos, riscos de luz,chuva de meteoros,anjos caídos,um escarcéu:deve haveralgum furo no céu.

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Poesia de músculos Foi no braço de ferrocontra o vento -uma refrega muito dura -que o pé de goiabadesenvolveu sua musculatura.

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Curtinha Manhã de verão.Galinhas conversam asneirasenquanto ciscam sob as bananeiras.

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Sinal dos tempos É verdade que tem o cupim,a broca e o fungo da podridão,mas as casas antigasmorrem mesmo é de solidão.

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Ora pro nobis Peixes-fradespássaros cardeais,bichinho louva-a-deus,por nós rogais.

Page 49: Poesias caiçaras

Caso de tuim Olha lá o passarinho tuim,não tem patrão,não tem escola,quando tem vontade namora,quando tem fomeserve-se na mesa de Deus.Olha lá o pássaro tuim,parece que tá rindo de mim.

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Serelepe

O bicho caxinguelêpode não saber o beabá,mas decerto sabe contar,porque todo dia faz o inventáriode todos os coquinhosdo coqueiro jerivá.

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Equinócio

Quem sabe o tempo certoda primavera começaré o sabiáque antes da invenção do calendáriojá sabia assobiar.

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Veto Em dia de domingodeveria ser proibidofilmes com finais tristes,principalmente ao fim do dia,quando cessa a chuva,mas as árvores continuam a chorarlágrimas de melancolia.

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Recomendação É preciso investigarquem é o responsávelpelas lições camicasesdadas aos carapirásda Ilha dos Alcatrazes.

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É natural O orvalho desfiaas contas do rosárioem cada teia de aranha,depois vem o sole recolhe cada pérolapara o seu relicário.

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Riquezas no quintal

O jardim de minha avó tinhacananga do Japão,jasmim das Arábias,flamboião da África,hibisco do Havaí,flores do Bornéu,rosas do céu,e mais dama da noite e gardênia.Que navegantes do tempo,que viajantes das distâncias,trouxeram o mundopara o jardim de Vovó Eugênia?

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Versinhos do Céu Lá vem o vento,por ordem de Deus,repintando o firmamentocom mais uma demão de azul,levando a tempestade embora,porque chegou o diada Assunção de Nossa Senhora.

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Ambrosia Vovó fazia um pirão tão bomCom garoupa e coentroCujo cheiro subia pela chaminéE chegava até ao céu,Com tão agradável odorQue, Nosso Senhor,cedo, para lá a levou.

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Amarras Reparem bemnas casas antigas:como são bem construídascom telhados centenários,de madeira bem ajustadaspor grandes travas, pregos,mais as teias das aranhasfeitas com muita paciência,que justamente é o segredode tanta resistência.

Page 59: Poesias caiçaras

Quem dará guarida aos anjos da guarda? No início da tempestade,ao ribombar do trovão,não tranque a porta de casa,não feche seu coração,para que os anjinhos da guardaem espantada revoadatenham onde se abrigarquando o céu desabar.

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O marinheiro Benedito

O barco balança,O horizonte balança,Benedito balança21 dias por mês.E quando, enfim,Encosta ao porto,O marinheiro estranhaA imobilidade de tudo,Fundeia em um bar e bebe,Até o mundo voltar a balançar.

Page 61: Poesias caiçaras

Descrição do céu  Espiando o quintal do céupor uma frestaeu vi muitas criançasjogando bola,cirandandoe empinando pipas,igualzinho nós fazíamosantes de ficarmos adultos,antes de esquecermos o risoe sermos expulsos do paraíso.

Page 62: Poesias caiçaras

Antigas alvoradas Hoje em dia eu não seicomo o sol se levanta,mas quando eu era criançamuitas vezes eu presencieiele sendo içado do fundo marpara iniciar o seu giroao puxarem a rede de arrastode Vovô José Almiro.

Page 63: Poesias caiçaras

Teoria astronômica As imensas galáxiascom turbilhões de estrelasem caprichosos arranjosnão passam de carrosséisgirando desde os primórdiosno jardim da infância dos anjos. 

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Espírito brincalhão Não adianta conversar sériocom Sebastião Almiro,que seu espírito é brincalhão:Perguntado o que ia fazerao embarcar em uma canoacom uma espingarda na mão- que na verdadelevava pra consertar na Vila -respondeu, muito gozador:"vou caçar peixe-voador".

Page 65: Poesias caiçaras

Poema-protesto Que crime praticouo pescador Júlio Barbosada Praia do Félixpara que o doutor juizordenasse a demoliçãode seu rancho de canoa?Um ranchinho de madeirano cantinho da praiaà sombra da amendoeiraque o pescador herdoude seu finado avô,que de toda Ubatubafoi um dos poucos que restou.Foi por causa de sua artede a rede costurar?Foi culpa de sua períciano ofício de pescar?Foi pela cultura caiçaraque teima em praticar?E seu rancho vindo ao chão,onde guardará sua canoa,onde abrigará seu coração?

Page 66: Poesias caiçaras

Viagem no tempo Alguém deixou aberta a portada máquina do tempoe deixou escapar um samba-cançãode enternecer quem se julgava protegidodas delicadezas do coração. 

Page 67: Poesias caiçaras

Oração final Ó, meu Deus, me mantenhaconfiante em vosso filhoque andou sobre as águas,multiplicou o pão e o peixe,curou cegos,transformou a água em vinho,ressuscitou após ter sido crucificadoe, que, mesmo maltratado,não deixou-se levar pela mágoae não reverteu o vinho em água.

Page 68: Poesias caiçaras

Declaração de direitos

Toda criançadevia ter direitoa um rio com cachoeira,a um quintalcom árvore fruteira,a um pedaço de capoeira,a uma ilha ancestral,mesmo que seja a casa do avô,ilhada pelo bananal.

Page 69: Poesias caiçaras

Carta de Santos

A bênção pai, a bênção mãe,espero que esta os encontre com saúde.Depois de carregar cargase mais cargas de caféme tornei taifeiro,auxilio,oriento,receboe despachomercadorias e passageiros.Mas o que gosto mesmoé de ajudar as senhorinhasa descerem dos navios,algumas são tão delicadas,são tão leves ao desembarcar,que ninguém acreditariao quanto pesamnos meus pensamentos:preciso me casar.

Page 70: Poesias caiçaras

Presépio caiçara

O marulho das ondasentra pelas portas abertasda capelinha de São Joãona Praia da Fortalezae embala o menino Jesus,que dorme tranqüiloem uma cesta de timbopeba,dentro de uma casinha de pau-a-pique.Os anjinhos curiosos,com asas de penugem de galinha,vigiam o sono do menino.As ovelhas, a vaquinhae o burrinho pastamem um chão de musgos.Baltazar, Belquior e Gasparandariam mais mil quilômetrospela importância e belezado momento.Nossa Senhora e São Joséapreciam o conjunto,um verdadeiro brinco,e abençoam o mundono natal de 1975.

Page 71: Poesias caiçaras

Lágrimas no paraíso

Praia do Pulso:Piso macio nesta praiapois a areia é sagrada,banho-me com respeito neste marpois é benta a água salgada,com maior teor de salpelas lágrimas derramadasde Nossa Senhora de Ubatubae demais caiçaras despejadosda praia e da vida.

Page 72: Poesias caiçaras

Declaração de amor para Dulcemar Rosa

Catarinense bonitavocê será minha,pra casar comigo e ser feliz,porque sei mergulhar de cabeçapra catar preguarí,sei onde mora o merosó não mato porque não quero,sei costurar uma redee tirar um santo da caixeta.Sei consertar um peixee prear uma caça,tiro música do pinhoaté com o dedo mindinho,sei dançar a congadae só por você, catarinense,posso aprendera tal valsa vienense.

Page 73: Poesias caiçaras

Lista de arrelás

Bafo de onça,alvoroço de tiriba,bote de jararaca,susto de guariba,casa de jataí,sombra de carcará,música de mamangava,dança de tangará,grito de bugio,passo de saracura,pio de inhambu,vôo de tanajura,toca de tatu,canto de sabiá,luzes de vaga-lume,luzernas de boitatá,arrelá!

Page 74: Poesias caiçaras

Presente surpresa

A bananeira é um pacoteque conforme crescevai se desembrulhando,folha por folha,até revelar o segredode um coração em camadasque, por sua vez,também se desembrulhapara ofertar pencas de bananas,o fruto do paraíso,explicação para tantas dádivas,segundo meu juízo.

Page 75: Poesias caiçaras

Das musáceas:

ouro e pratadavam em pencasnas terras de meu avô.

Page 76: Poesias caiçaras

História de Caronte Antigamentehavia só a trilhaque subia e desciaseis morros e seis praias,por sete quilômetrosde canseiras e de belezasaté atingir a Praia da Fortaleza.Cargas grandes só pelo mar,inclusive a última viagemde quem cumpriu seu eito.Por isso, do alto da estrada,Bito Celidônio gritoupara saber quem havia falecidoe o canoeiro respondeuque tinha sidoo Bito Celidônio.

Page 77: Poesias caiçaras

Manoel Félix dos Santos

Tio Manoel virou manecode tanto ver assombros,boitatás, mães do ouro,estrelas cadentes,visões de mouros,pirilampos, peixes pampos,abraços de tamanduás,fila de marandovás,correção de formigas,vozes daqui e dalém,das quais ainda restam o eco,e Tio Maneco virou Neco.

Page 78: Poesias caiçaras

Caso de urutau

É preciso muito sentidopara não ser enganadopelo bicho urutauque em um instante é pássaro,noutro é pedaço de pau.

Page 79: Poesias caiçaras

Cuidados necessários

Não leio Lorde Byron,nunca viajei ao Cairoe bem cedotratei de rasgaro Álvares de Azevedo.Cuido bem de mime não dou ouvidosao passarinho sem-fim

Page 80: Poesias caiçaras

Cruz

Na curva da vingança,no caminho dos tropeiros,a meia altura da Serra do Mar,aconteceu há muito tempoum drama de ódio e morteno lugar assinaladopor uma cruz de ferroque goteja sangue no chão -oxidação.

Page 81: Poesias caiçaras

Crônica esportiva

O melhor jogadordo nosso time de bairrosempre foi o artilheironos jogos do campeonato,exceto quandosua namorada malvada,a moça mais bonita do lugar,com ele se irritavae não ia assistirà peleja que se travavano gramado e no coraçãodo craque que a amava.

Page 82: Poesias caiçaras

Na flauta Que conste na pautaque só quem é músicoé que sabe o quanto é durolevar a vida na flauta.