síndrome do dente rachado - revista.aborj.org.br

2
150 Márcia Valéria Boussada Vieira Especialista e mestre em Endodontia Coordenadora do curso de Especialização em Endodontia da faculdade São José-RJ Professora de Endodontia da faculdade São José-RJ Síndrome do dente rachado Rev. bras. odontol., Rio de Janeiro, v. 65, n. 2, p.150-151, jul./dez. 2008 A Síndrome do dente racha- do é uma ocorrência co- mum nos consultórios odontológicos, porém poucas vezes é diagnosticada de imedi- ato, devido à falta de conheci- mento por parte dos cirurgiões- dentistas clínicos, deixando tan- to o paciente quanto o profissi- onal frustrado. Infelizmente, quanto mais re- tardado for o diagnóstico, pior será o prognóstico para um den- te rachado, pois com o tempo, e sem o devido tratamento, esta rachadura se propagará em dire- ção apical e finalmente uma fra- tura radicular vertical irá ocor- rer, impossibilitando qualquer tipo de tratamento restaurador e culminando na exodontia. Deste modo, é responsabili- dade do profissional, tanto o es- pecialista quanto o clínico geral, estar ciente da existência desta patologia, saber reconhecer os sinais e sintomas característicos. A Síndrome do dente racha- do (SDR) ou síndrome de dente gretado, por definição, é carac- terizada por uma fratura incom- pleta de um dente posterior com polpa vital, incluindo dentina e, possivelmente, a polpa, inician- do-se na coroa, mas podendo progredir para a raiz. Corres- ponde a um plano de fratura de profundidade e direção desco- nhecida passando através da es- trutura dental que, caso ainda não esteja envolvida, pode progredir até co- municar com a polpa ou o ligamento periodontal. Numa tentativa de expan- dir o domínio da síndrome, dentes rachados com polpa necrótica e/ou abs- cessos alveolares também podem ser incluídos nesta definição. O termo Síndrome do dente rachado (Cracked Tooth Syndrome) foi ini- cialmente sugerido por Cameron, em 1964. Se a dentina está envolvida, a fratura se estenderá para a câmara pulpar e também pode se estender ao longo de todo o comprimento da raiz. Com o tempo, a polpa se torna infectada com material séptico proveniente do sulco gengival e da saliva. Se medidas adequadas não são tomadas, uma dissolução periodontal retrógrada ocorrerá com formação de bolsas periodontais. Um dente é considerado rachado quando os segmentos da fratura em potencial são mantidos intactos por uma porção do dente, através do qual a fratura ainda não se estendeu, ou seja, por ser incompleta, não ocorre a separação visível dos fragmentos fraturados, sendo esta condição também conhecida como greenstick fracture (fratura em galho verde). “Rachadura” se refere a uma interrupção na continuidade da superfície dentária envol- vendo esmalte e dentina, sem uma separação perceptível. Não é possível cunhar esta linha, separar os fragmentos ou demonstrar a rachadura radio- graficamente, embora ela possa preceder uma fratura verdadeira, que con- seqüentemente irá condenar o dente à exodontia. Fatores morfológicos, físicos e iatrogênicos, tal como sulcos profundos, pronunciada flutuação de temperatura intra-oral, pobre desenho do prepa- ro cavitário e seleção errônea de materiais restauradores podem predispor os dentes posteriores a uma fratura incompleta. Os dados epidemiológicos revelam que as fendas ou fraturas são a terceira causa mais comum de perda dentária nos países industrializados, indicando que a SDR é de alta impor- tância clínica. O número crescente de rachaduras está diretamente relacio- nado a procedimentos operatórios que permitem o paciente manter a den- tição natural, tal como a restauração de dentes que anteriormente eram indicados para exodontia, maior expectativa de vida, além de avanços no campo da Periodontia, Ortodontia e outros. Pacientes que sofrem de bruxismo ou que realizam o cerramento dos den- tes, desempenham um papel importante na indução de rachaduras dentárias. Dentes que sofreram perda da estrutura dentária, por cárie ou pela rea- lização de preparos cavitários extensos, também se tornam mais propensos ao desenvolvimento de fraturas incompletas. Sabe-se que já foi comprovada a diminuição na resistência à fratura dos dentes quando estes são prepara- dos, com diminuição da resistência com o aumento da abertura vestíbulo- lingual, bem como quando são envolvidas uma ou as duas faces proximais. A diminuição da resistência em dentes posteriores com tratamento en- dodôntico é drástica, pois o fundo do preparo cavitário torna-se muito pro- fundo, já que é representado pelo assoalho da câmara pulpar. Nos últimos anos, um novo fator vem sendo relacionado a SDR, a inser- ção de objetos metálicos em locais intra-orais e periorais. Várias complica- ções orais e dentárias associadas ao piercing lingual estão sendo relatadas, dentre elas a presença de dentes rachados. A observação clínica de dentes fraturados mostra que a maioria das fra- turas tende a ocorrer em uma direção quase paralela às forças sobre a incli- nação da cúspide. Portanto, em casos de restaurações maiores, a trinca ten- de a ser mais superficial e pode produzir sintomas menos severos ou pode até não causar sintomas. Isto pode provavelmente ser extrapolado para den- tes com restaurações menores e sugere que trincas irão se propagar numa direção similar. As trincas resultantes serão mais profundas e mais próximas à polpa, podendo produzir sintomas mais severos. Se forças de cunha são

Upload: others

Post on 09-May-2022

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Síndrome do dente rachado - revista.aborj.org.br

150

Márcia Valéria Boussada Vieira

Especialista e mestre em Endodontia

Coordenadora do curso de Especializaçãoem Endodontia da faculdade São José-RJ

Professora de Endodontia da faculdade SãoJosé-RJ

Síndrome do dente rachado

Rev. bras. odontol., Rio de Janeiro, v. 65, n. 2, p.150-151, jul./dez. 2008

ASíndrome do dente racha-do é uma ocorrência co- mum nos consultórios

odontológicos, porém poucasvezes é diagnosticada de imedi-ato, devido à falta de conheci-mento por parte dos cirurgiões-dentistas clínicos, deixando tan-to o paciente quanto o profissi-onal frustrado.

Infelizmente, quanto mais re-tardado for o diagnóstico, piorserá o prognóstico para um den-te rachado, pois com o tempo, esem o devido tratamento, estarachadura se propagará em dire-ção apical e finalmente uma fra-tura radicular vertical irá ocor-rer, impossibilitando qualquertipo de tratamento restaurador eculminando na exodontia.

Deste modo, é responsabili-dade do profissional, tanto o es-pecialista quanto o clínico geral,estar ciente da existência destapatologia, saber reconhecer ossinais e sintomas característicos.

A Síndrome do dente racha-do (SDR) ou síndrome de dentegretado, por definição, é carac-terizada por uma fratura incom-pleta de um dente posterior compolpa vital, incluindo dentina e,possivelmente, a polpa, inician-do-se na coroa, mas podendoprogredir para a raiz. Corres-ponde a um plano de fratura deprofundidade e direção desco-nhecida passando através da es-

trutura dental que, caso ainda não esteja envolvida, pode progredir até co-municar com a polpa ou o ligamento periodontal. Numa tentativa de expan-dir o domínio da síndrome, dentes rachados com polpa necrótica e/ou abs-cessos alveolares também podem ser incluídos nesta definição.

O termo Síndrome do dente rachado (Cracked Tooth Syndrome) foi ini-cialmente sugerido por Cameron, em 1964.

Se a dentina está envolvida, a fratura se estenderá para a câmara pulpare também pode se estender ao longo de todo o comprimento da raiz. Com otempo, a polpa se torna infectada com material séptico proveniente do sulcogengival e da saliva. Se medidas adequadas não são tomadas, uma dissoluçãoperiodontal retrógrada ocorrerá com formação de bolsas periodontais.

Um dente é considerado rachado quando os segmentos da fratura empotencial são mantidos intactos por uma porção do dente, através do qual afratura ainda não se estendeu, ou seja, por ser incompleta, não ocorre aseparação visível dos fragmentos fraturados, sendo esta condição tambémconhecida como greenstick fracture (fratura em galho verde). “Rachadura”se refere a uma interrupção na continuidade da superfície dentária envol-vendo esmalte e dentina, sem uma separação perceptível. Não é possívelcunhar esta linha, separar os fragmentos ou demonstrar a rachadura radio-graficamente, embora ela possa preceder uma fratura verdadeira, que con-seqüentemente irá condenar o dente à exodontia.

Fatores morfológicos, físicos e iatrogênicos, tal como sulcos profundos,pronunciada flutuação de temperatura intra-oral, pobre desenho do prepa-ro cavitário e seleção errônea de materiais restauradores podem predisporos dentes posteriores a uma fratura incompleta. Os dados epidemiológicosrevelam que as fendas ou fraturas são a terceira causa mais comum de perdadentária nos países industrializados, indicando que a SDR é de alta impor-tância clínica. O número crescente de rachaduras está diretamente relacio-nado a procedimentos operatórios que permitem o paciente manter a den-tição natural, tal como a restauração de dentes que anteriormente eramindicados para exodontia, maior expectativa de vida, além de avanços nocampo da Periodontia, Ortodontia e outros.

Pacientes que sofrem de bruxismo ou que realizam o cerramento dos den-tes, desempenham um papel importante na indução de rachaduras dentárias.

Dentes que sofreram perda da estrutura dentária, por cárie ou pela rea-lização de preparos cavitários extensos, também se tornam mais propensosao desenvolvimento de fraturas incompletas. Sabe-se que já foi comprovadaa diminuição na resistência à fratura dos dentes quando estes são prepara-dos, com diminuição da resistência com o aumento da abertura vestíbulo-lingual, bem como quando são envolvidas uma ou as duas faces proximais.

A diminuição da resistência em dentes posteriores com tratamento en-dodôntico é drástica, pois o fundo do preparo cavitário torna-se muito pro-fundo, já que é representado pelo assoalho da câmara pulpar.

Nos últimos anos, um novo fator vem sendo relacionado a SDR, a inser-ção de objetos metálicos em locais intra-orais e periorais. Várias complica-ções orais e dentárias associadas ao piercing lingual estão sendo relatadas,dentre elas a presença de dentes rachados.

A observação clínica de dentes fraturados mostra que a maioria das fra-turas tende a ocorrer em uma direção quase paralela às forças sobre a incli-nação da cúspide. Portanto, em casos de restaurações maiores, a trinca ten-de a ser mais superficial e pode produzir sintomas menos severos ou podeaté não causar sintomas. Isto pode provavelmente ser extrapolado para den-tes com restaurações menores e sugere que trincas irão se propagar numadireção similar. As trincas resultantes serão mais profundas e mais próximasà polpa, podendo produzir sintomas mais severos. Se forças de cunha são

Page 2: Síndrome do dente rachado - revista.aborj.org.br

151Rev. bras. odontol., Rio de Janeiro, v. 65, n. 2, p.150-151, jul./dez. 2008

aplicadas tanto na inclinação dascúspides vestibular e lingual, a trin-ca resultante pode ocorrer na linhamédia do dente e se propagar paraa polpa, especialmente em dentesnão restaurados.

Relações cúspide-fossa profundasdevido a restaurações muito esculpi-das ou restaurações fundidas realiza-das sem a consideração adequadaquanto à proteção de cúspides, tam-bém podem tornar o dente vulnerá-vel. Pressão de condensação excessi-va, expansão de ligas de amálgama debaixa qualidade quando contamina-das por umidade, a colocação de pi-nos retentivos (especialmente os ros-queáveis) e restaurações extensas decompósito sem o cuidado devido àtécnica incremental (resultando emforças de tensão na estrutura dentá-ria devido à contração de polimeri-zação) predispõem à formação defraturas. Outras causas iatrogênicasde SDR incluem pressão hidráulicaexcessiva durante a cimentação decoroas ou retentores de pontes. Pon-tes extensas exercem um torque ex-cessivo nos dentes pilares, podendoocasionar o desenvolvimento de ra-chaduras.

Uma outra causa para as fratu-ras dentárias verticais pode ser ia-trogenicamente desencadeada du-rante a condensação lateral e verti-cal da guta-percha na fase de obtu-ração endodôntica.

Em relação à incidência, os dentesgeralmente mais afetados são os mo-lares inferiores e superiores.

O diagnóstico da SDR é difícil, poisa etiologia é uma fratura incompletaque normalmente está oculta pelapresença de uma restauração ou pelagengiva e porque raramente uma fra-tura coroa-raiz incompleta pode serobservada radiograficamente. A ra-diografia é um excelente recurso au-xiliar, contudo, ela tem limitações,pois se trata da imagem bidimensio-nal de um objeto tridimensional. Nocaso da SDR é imprescindível, alémda obtenção de uma história bem de-talhada do paciente, associar-se a to-mografia computadorizada por meiodo sistema de aquisição Cone Beam,pois ocorre o aumento da qualidadediagnóstica da imagem tridimensio-nal, o que possibilita minimizar a

desvantagem da radiografia.Rachaduras que afetam apenas o esmalte, denominadas de micro-

trincas (craze lines ou infractions), não produzem sintomas. No entanto,rachaduras de esmalte e dentina correspondem a uma porta de entrada paraque as bactérias possam alcançar a polpa, podendo despertar a sensibilidadedentinária. Deste modo, o paciente poderá se queixar de sensibilidade aocalor e ao frio, que é difícil de ser identificada (não há fibras proprioceptivasna câmara pulpar), no lado afetado. Estes episódios de desconforto aumenta-do podem durar por longos períodos ou podem ocorrer apenas durante amastigação. Uma reação ao frio, doce ou calor, ou uma combinação dos três,com a reação ao frio sendo a mais comum, seguida pelo doce, pode ocorrer.

Muitos pacientes que descrevem os sintomas supracitados por perío-dos muito extensos são dispensados por seus dentistas, pois devido aodiagnóstico difícil, o profissional passa a acreditar que o paciente não temmotivos para sentir dor e passa a considerar o paciente “paranóico”. Assim,há um atraso na identificação da rachadura. Com isto, a condição só serádiagnosticada quando os sintomas se assemelham àqueles de um proble-ma endodôntico, ou seja, até que a polpa se torne inflamada e, conseqüen-temente, necrótica, ou quando a rachadura alcança a superfície externa daraiz e se assemelha aos sintomas periodontais caracterizados pelo desen-volvimento de bolsas e/ou abscessos periodontais. Existem casos em queo fragmento afetado finalmente se separa do dente, diminuindo a dor.Levando em conta que outras condições patológicas não estão presentes,outros sintomas subjetivos ou objetivos não devem estar presentes. A sen-sibilidade a variações na temperatura e às forças mastigatórias é notadadurante os estágios iniciais das microfraturas. A combinação de sensibili-dade à pressão e alterações térmicas são praticamente patognomônicasdesta condição.

A dor pode, às vezes, ocorrer depois de determinados tratamentosdentários, tal como a cimentação de uma inlay, podendo ser erroneamen-te diagnosticada como interferências ou “pontos altos” na restauração nova.Dentes muito restaurados também podem ser testados com a utilizaçãode uma sonda afiada nas margens da restauração. Dor provocada destamaneira pode indicar uma trinca sob a restauração, que pode ser reveladaapós a remoção desta.

Testes de vitalidade normalmente dão respostas positivas e o dente nor-malmente não está sensível à percussão vertical. Significativamente, os sinto-mas podem ser obtidos quando uma pressão é aplicada em uma cúspideindividual. Clinicamente, podem-se observar uma musculatura mastigatóriamuito desenvolvida, facetas de desgaste em molares e pré-molares, cúspidesaltas, acompanhadas de sulcos e fossas profundas.

Como já dito anteriormente, o diagnóstico da SDR é difícil e depende emgrande parte dos dados fornecidos pelo paciente, já que a visualização clínicae radiográfica de linhas de fratura na maioria das vezes não é possível.

CASTELLUCCI, A. Endodontics. Itália: Editora Il Tridente, vol. 1, 2004.

DE MOOR, R. J., DE WITTE, A. M., DE BRUYNE, M. A. Tongue piercing and associated oraland dental complications. Endod. Dent. Traumatol., v. 16, n. 5, p. 232-237, Oct., 2000.

GEURTSEN, W., SCHWARZE, T., GÜNAY H. Diagnosis, therapy, and prevention of thecracked tooth syndrome. Quintessence Int., v. 34, n. 6, p. 409-417, Jun., 2003.

HOMEWOOD, C. I. Cracked Tooth Syndrome – Incidence, clinical findings and treatment.Australian Dental Journal, v. 43, n. 4, 1998.

LOGUERCIO, A. D., MACEDO, R. P., SANSEVERINO, M. C. S. et al. Reforço de dentesdespolpados através de restaurações adesivas diretas. Stomatos, n. 4, p. 5-13, 1997.

LYNCH, C. D., McCONNELL, R. J. The Cracked Tooth Syndrome. J. Can. Dent. Assoc.,v. 68, n. 8, p. 470-475, 2002.

TÜRP, J. C., GOBETTI, J. P. Cracked tooth syndrome: a dificult diagnosis. JADA, v. 127, n.10, Oct., 1996.

Referências BibliográficasReferências BibliográficasReferências BibliográficasReferências BibliográficasReferências Bibliográficas