sinhás pretas - revista de história

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Sinhás pretas Testamentos e inventários de escravas alforriadas revelam talento para os negócios com base nos ensinamentos que trouxeram da terra natal 7/3/2012 Imagem: Fundação Biblioteca Nacional Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, confira abaixo um artigo da edição deste mês da Revista de História da Biblioteca Nacional sobre as “Sinhás pretas”, no qual a historiadora Sheila de Castro Faria conta como as escravas alforriadas usavam ensinamentos de sua terra natal para encarar o mercado de trabalho. Este é apenas um dos artigos do Dossiê África, que conta ainda, por exemplo, com Alberto da Costa e Silva narrando a história dos escravos brasileiros que eram obrigados a deixar para trás suas origens e tradições; uma entrevista exclusiva com Paul Lovejoy, referência certa nas pesquisas sobre a escravidão no próprio continente africano; João José Reis e o caso da Revolta dos Malês, em Salvador, que contou com cerca de 600 combatentes africanos de origem muçulmana; além de vários outros artigos, do dossiê e muito mais, que você encontra somente nas bancas. Aproveite também e visite outras edições da RHBN que contam, por exemplo, como a solteirice feminina foi opção de vida condenada e estereotipada durante séculos, no artigo “ Ficando para titia”, da historiadora Cláudia de Jesus Maia. Destacamos também “ As sementes do feminismo no Brasil”, onde Constância Lima Duarte fala de Nísia Floresta, uma das primeiras mulheres a publicar na grande imprensa brasileira, e como ela abalou as estruturas da sociedade patriarcal brasileira do século XIX ao defender a valorização da mulher. Sinhás pretas Por Sheila de Castro Faria Ana foi escrava de outra mulher, preta forra, ambas da Costa da Mina. Talvez como sua ex-senhora, talvez ensinada por ela, conseguiu se alforriar pagando pela liberdade com recursos de sua “própria indústria e trabalho”, conforme declarou em seu testamento, de 1798. Chamava-se Ana Teixeira Guimarães e tinha mais de 60 anos quando morreu, em Mariana, Minas Gerais. A documentação relativa ao período escravista do Brasil permite pouca observação sobre a vida material e as escolhas dos escravos em seu cotidiano. Uma das formas de se vislumbrar alguns aspectos é por meio de inventáriose testamentos. Geralmente feitos por pessoas com recursos, os documentos eram ditados pelos doentes desenganados. Poucos meses depois do falecimento, realizavam-se os inventários, quase uma fotografia dos bens materiais dos proprietários no momento da morte. Tudo era descrito, até mesmo objetos sem valor. Ads by PlusHD.1 Ad Options Sinhás pretas - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/sinhas-pretas-1 1 de 4 19/01/2014 09:43

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Sinhás pretas

Testamentos e inventários de escravas alforriadas revelam talento para os negócios

com base nos ensinamentos que trouxeram da terra natal

7/3/2012

Imagem: Fundação Biblioteca Nacional

Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, confira abaixo um artigo da edição deste mês daRevista de História da Biblioteca Nacional sobre as “Sinhás pretas”, no qual a historiadora Sheila deCastro Faria conta como as escravas alforriadas usavam ensinamentos de sua terra natal para encarar omercado de trabalho. Este é apenas um dos artigos do Dossiê África, que conta ainda, por exemplo, comAlberto da Costa e Silva narrando a história dos escravos brasileiros que eram obrigados a deixar paratrás suas origens e tradições; uma entrevista exclusiva com Paul Lovejoy, referência certa nas pesquisassobre a escravidão no próprio continente africano; João José Reis e o caso da Revolta dos Malês, emSalvador, que contou com cerca de 600 combatentes africanos de origem muçulmana; além de váriosoutros artigos, do dossiê e muito mais, que você encontra somente nas bancas.

Aproveite também e visite outras edições da RHBN que contam, por exemplo, como a solteiricefeminina foi opção de vida condenada e estereotipada durante séculos, no artigo “Ficando para titia”,da historiadora Cláudia de Jesus Maia. Destacamos também “As sementes do feminismo no Brasil”, ondeConstância Lima Duarte fala de Nísia Floresta, uma das primeiras mulheres a publicar na grandeimprensa brasileira, e como ela abalou as estruturas da sociedade patriarcal brasileira do século XIX aodefender a valorização da mulher.

Sinhás pretas

Por Sheila de Castro Faria

Ana foi escrava de outra mulher, preta forra,ambas da Costa da Mina. Talvez como suaex-senhora, talvez ensinada por ela, conseguiuse alforriar pagando pela liberdade comrecursos de sua “própria indústria e trabalho”,conforme declarou em seu testamento, de1798. Chamava-se Ana Teixeira Guimarães etinha mais de 60 anos quando morreu, emMariana, Minas Gerais.

A documentação relativa ao período escravistado Brasil permite pouca observação sobre avida material e as escolhas dos escravos emseu cotidiano. Uma das formas de sevislumbrar alguns aspectos é por meio deinventáriose testamentos. Geralmente feitospor pessoas com recursos, os documentos eramditados pelos doentes desenganados. Poucosmeses depois do falecimento, realizavam-se os

inventários, quase uma fotografia dos bens materiais dos proprietários no momento da morte. Tudo eradescrito, até mesmo objetos sem valor.

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quatro mulheres e um homem da nação Angola. Uma delas era Juliana, da Costa da Mina como ela, paraquem deixou, divididos em quatro partes, 76.800 réis pelo tempo de seis anos a contar do dia de seufalecimento. Em seis anos, vivendo de seu próprio trabalho, Juliana tinha de completar o valorestipulado.

Ana deixou como herdeira de seus bens a “cria” de sua escrava Juliana, sua afilhada Francisca, de doisanos, liberta no batismo. Deixou de “esmola” a Juliana uma morada de casas cobertas de telhas.

Ser proprietária de casas e escravos era uma situação já bastante confortável para essas mulheres. MasAna possuía outros bens: braceletes, brincos, anéis, laços e botões de ouro adornados com pedraspreciosas, como diamantes e topázios, e colheres e garfos de prata, num valor suficiente para a comprade dois escravos jovens: 197.200 réis.

Ser proprietária de casas e escravos erabastante confortável, mas Ana possuía tambémbraceletes e botões de ouro adornados comdiamantes e topázios

Também era dona de outros bens requintadose restritos a poucos afortunados, demercadorias importadas, provavelmentedestinadas ao comércio, não sendonecessariamente para seu próprio uso. Umadelas era uma imagem em marfim de SantaRita, objeto raro até mesmo entre os maisricos da região. De seu inventário constamainda fronhas e lençóis de linho, colchas etoalhas de algodão, saias de veludo carmesime preto e de seda branca, muitas camisas delinho e de algodão, vestimentas de cambraia,de lemiste (tecido fino de lã inglês), chapéuselegantes, uma variedade incrível de lençosde diversos tecidos, pintados com flores ouaves na Ásia ou na Europa. Saias de veludocarmesim e preto não eram pouca coisa: ovalor das duas saias somava 30 mil réis, umterço do preço de um escravo jovem.

Até os objetos feitos com materiais do Brasil eram dos melhores: sete catres – um tipo simples de cama–, dois espelhos, mesas grandes e pequenas de jacarandá, muitas com pés torneados, gavetas efechaduras.

Mesmo sabendo que certas palavras da época não tinham o mesmo significado de hoje, algumas eram dedifícil entendimento. Ana tinha três “pratos de pó de pedra”. Segundo Luís Frederico Antunes, a louçaeuropeia imitando padrões decorativos orientais era denominada de “louça de pó de pedra”. Maisinteressante ainda era “prato de guardanapo da Índia”. Ana tinha oito deles. Esses pratos constam devários inventários de mulheres forras de Mariana e figuram nas cargas de naus da Carreira da Índia. Eram pratos finos, talvez de porcelana, usados nas refeições. Por serem trazidos em navios da Carreiradas Índias, eram considerados como da Índia, embora feitos na China.

Mercadorias importadas da Ásia ou da Europa eram bens consumidos pelas elites. Mas, em meio a estegrupo social, devem ser considerados outros estratos da população, como o formado por essas pretasforras, nascidas na África e transferidas para o Brasil em idade suficiente para terem adquirido acultura de seus povos de origem. Podiam não ter prestígio social na sociedade escravista, mas tinhamriqueza . Também compunham uma elite.

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que dinamizaram a economia de regiões daÁfrica, e continuaram a fazer o mesmo nasAméricas

Essas escolhas eram delas ou imposições da sociedade? Não tinham filhos porque foi impossível ouporque não quiseram? Eram proprietárias de mulheres em vez de homens porque eram mais baratas? Porque investiam seus recursos em joias, roupas caras e louças importadas? Cada vez tenho mais certeza deque eram escolhas próprias e pautadas por suas culturas de origem.

Em várias formações africanas havia uma rígida divisão sexual do trabalho. As mulheres eramresponsáveis pelo preparo das comidas e pelo comércio de produtos agrícolas, de alimentos e das maisvariadas mercadorias. Mulheres comerciantes predominavam nos mercados e feiras das aldeias e cidadesem muitas regiões que tiveram contato com os europeus. A pimenta era um dos produtos maisprocurados por eles na costa da África desde os primeiros tempos da expansão marítima, e eram asmulheres que monopolizavam seu comércio. Conclusão: ficaram ricas. Com o tempo, incorporaram novosprodutos, provenientes de outras praças mercantis.

Interceptavam comerciantes, a fim de comprar barato e revender com lucro suas mercadorias;participavam do comércio de longa distância, inclusive por meio de procuradores, e intermediavam osprodutos do tráfico de escravos português, como a cachaça, o tabaco e os panos das Índias. Um exemplofoi Madame Tinubu, que atuou em Badagry e Lagos, no golfo de Benim, na segunda metade do séculoXIX, onde negociava sal e tabaco, e era intermediária dos comerciantes de escravos do Brasil. Juntougrande fortuna, era dona de muitos escravos e ficou conhecida por seus opositores como “o terror deLagos”.

Nem sempre tão poderosas como Tinubu, mas com redes comerciais importantes, foram as mulheres quedinamizaram a economia de muitas regiões da África e continuaram a fazer a mesma coisa nasAméricas.

Explica-se a escolha de escravas, e não de escravos, por parte das pretas forras no Brasil: as cativasatuariam no comércio ao lado ou a mando delas. Não tinham filhos porque não queriam procriar nadiáspora. Ana, como muitas outras, deixou herança para uma afilhada, Francisca, e uma casa para amãe da menina, certamente para que cuidasse dela e lhe transmitisse ensinamentos. Julianaprovavelmente se transformaria em uma nova Ana ao usufruir os recursos. Ana tinha entre seus benstrempes e fogareiros, tachos e apetrechos de cozinha, utilizados na preparação e na venda dealimentos. A quantidade de catres sugere que sua casa pode ter sido uma hospedaria, incluindo ofornecimento de comida.

A entrada de novas mercadorias nesse comércio não assustava as comerciantes: incorporavam asnovidades às suas transações. Os objetos nos quais decidiram investir seus recursos eram luxuosos noBrasil: joias, tecidos e louças importados do Oriente. Eram parte de um comércio de longuíssimadistância. Uma delas entregou tecidos a um comerciante para que lhe trouxesse uma escrava da África.

São impressionantes a capacidade de adaptação e o desempenho de mulheres como Ana Teixeira deGuimarães. Chegaram ao Brasil à força, nas condições mais adversas e no pior lugar social possível. Essas“Anas” conseguiram resultados que fariam inveja à maioria dos homens que nunca foram escravos, quese mudaram para a América por iniciativa própria, em busca de enriquecimento, e tiveram asexpectativas frustradas.

Sheila de Castro Faria é professora da Universidade Federal Fluminense e autora do artigo “FranciscaMaria Teresa e as Sinhás Pretas no Brasil colonial”. In VAINFAS, Ronaldo; SANTOS, Georgina Silva dos;

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Saiba mais:

FURTADO, Junia (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história doImpério Ultramarino Português. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

PANTOJA, Selma (org.). Entre Áfricas e Brasil. São Paulo: Marco Zero, 2001.

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