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SIMPÓSIO 5 - Letras - linguagens, comunicação e educação A construção de personagens na narrativa jornalística: uma análise do livro “Abusado”, de Caco Barcellos - André Cioli Taborda Santoro (UPM) RESUMO: Desenvolvemos, neste trabalho, uma reflexão sobre a utilização e o desenvolvimento de personagens na narrativa jornalística. O objetivo principal é apresentar essa estratégia como um dos pontos de contato entre o texto literário e o texto jornalístico. Com esse intuito, nos valemos de teorias jornalísticas relativas à construção da reportagem e de teorias literárias sobre personagens e sobre o desenvolvimento do ponto de vista em textos ficcionais. O objeto de análise é o livro “Abusado”, do jornalista Caco Barcellos. Palavras-chave: jornalismo literário; livro-reportagem; personagens; ponto de vista 1. Introdução A objetividade é o principal conceito relacionado à consolidação do jornalismo enquanto campo autônomo de produção de conhecimento (AMARAL, 1996). Foi graças a esse paradigma que, nos últimos dois séculos, os veículos jornalísticos se profissionalizaram e conquistaram espaço relevante na sociedade. Nas últimas décadas, no entanto, alguns movimentos específicos, como o “novo jornalismo”, evidenciaram a precariedade de modelos discursivos que repelem a subjetividade como estratégia de construção das narrativas (WOLFE, 1973). A partir de propostas que têm como ponto fundamental a (re)aproximação entre o jornalismo e a literatura, vários jornalistas se lançaram em empreitadas que resultaram na publicação de obras com alto teor de hibridismo entre os dois campos discursivos. Tais obras já foram devidamente enquadradas, por vários pesquisadores, em categorias como a do romance-reportagem, que mescla os elementos informativos do texto jornalístico com a força poética da literatura (COSSON, 2001), e do jornalismo literário, definido a partir do aproveitamento de recursos de textos ficcionais em narrativas jornalísticas (PENA, 2006). Ainda há, no entanto, uma relativa carência de estudos sobre as ferramentas discursivas que aproximam o texto factual das obras literárias. O objetivo central deste artigo é apresentar uma estratégia bastante comum na elaboração de reportagens jornalístico-literárias, com destaque para aquelas publicadas em forma de livro: a construção de personagens. Com o intuito de revelar os processos subjetivos que engendram esse tipo de narrativa, recorremos a teorias do campo da literatura, com destaque para autores que já desenvolveram investigações sobre as características e as funções dos personagens nas obras literárias, como Antonio Candido (1970) e Beth Brait (2006). De forma complementar, utilizamos autores que desenvolveram reflexões sobre a questão dos pontos de vista na narrativa, como Friedman (1967) e Leite (1997). O objeto de análise é o livro “Abusado”, de Caco Barcellos (2003), obra bastante conhecida no meio jornalístico – não apenas devido à celebridade do autor, jornalista consagrado na TV brasileira, mas também pelo fato de ter conquistado o prêmio Jabuti de reportagem em 2004.

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SIMPÓSIO 5 - Letras - linguagens, comunicação e educação

A construção de personagens na narrativa jornalística: uma análise do livro “Abusado”, de Caco Barcellos - André Cioli Taborda Santoro (UPM)

RESUMO: Desenvolvemos, neste trabalho, uma reflexão sobre a utilização e o desenvolvimento de personagens na narrativa jornalística. O objetivo principal é apresentar essa estratégia como um dos pontos de contato entre o texto literário e o texto jornalístico. Com esse intuito, nos valemos de teorias jornalísticas relativas à construção da reportagem e de teorias literárias sobre personagens e sobre o desenvolvimento do ponto de vista em textos ficcionais. O objeto de análise é o livro “Abusado”, do jornalista Caco Barcellos. Palavras-chave: jornalismo literário; livro-reportagem; personagens; ponto de vista

1. Introdução

A objetividade é o principal conceito relacionado à consolidação do jornalismo enquanto campo autônomo de produção de conhecimento (AMARAL, 1996). Foi graças a esse paradigma que, nos últimos dois séculos, os veículos jornalísticos se profissionalizaram e conquistaram espaço relevante na sociedade.

Nas últimas décadas, no entanto, alguns movimentos específicos, como o “novo jornalismo”, evidenciaram a precariedade de modelos discursivos que repelem a subjetividade como estratégia de construção das narrativas (WOLFE, 1973). A partir de propostas que têm como ponto fundamental a (re)aproximação entre o jornalismo e a literatura, vários jornalistas se lançaram em empreitadas que resultaram na publicação de obras com alto teor de hibridismo entre os dois campos discursivos. Tais obras já foram devidamente enquadradas, por vários pesquisadores, em categorias como a do romance-reportagem, que mescla os elementos informativos do texto jornalístico com a força poética da literatura (COSSON, 2001), e do jornalismo literário, definido a partir do aproveitamento de recursos de textos ficcionais em narrativas jornalísticas (PENA, 2006).

Ainda há, no entanto, uma relativa carência de estudos sobre as ferramentas discursivas que aproximam o texto factual das obras literárias. O objetivo central deste artigo é apresentar uma estratégia bastante comum na elaboração de reportagens jornalístico-literárias, com destaque para aquelas publicadas em forma de livro: a construção de personagens.

Com o intuito de revelar os processos subjetivos que engendram esse tipo de narrativa, recorremos a teorias do campo da literatura, com destaque para autores que já desenvolveram investigações sobre as características e as funções dos personagens nas obras literárias, como Antonio Candido (1970) e Beth Brait (2006). De forma complementar, utilizamos autores que desenvolveram reflexões sobre a questão dos pontos de vista na narrativa, como Friedman (1967) e Leite (1997).

O objeto de análise é o livro “Abusado”, de Caco Barcellos (2003), obra bastante conhecida no meio jornalístico – não apenas devido à celebridade do autor, jornalista consagrado na TV brasileira, mas também pelo fato de ter conquistado o prêmio Jabuti de reportagem em 2004.

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2. Personagens em narrativas de não-ficção As estratégias de construção da objetividade são marcas distintivas do discurso

jornalístico convencional. Exemplo claro desse processo é o “lead”, com suas seis perguntas/respostas básicas sobre o fato noticiado (“o quê?”, “quem?”, “quando?”, “onde?”, “como?” e “por quê?”). Ao mesmo tempo, essas estratégias constituem um dos principais paradigmas rompidos por autores e movimentos – como o “Novo Jornalismo”, de Tom Wolfe – que buscam questionar a produção noticiosa.

Na literatura, por sua vez, a construção da objetividade inexiste como diretriz discursiva. E é justamente o recurso oposto – a construção da subjetividade – que se apresenta como estratégia principal de construção do discurso literário, especialmente em suas formas narrativas mais tradicionais, como o romance.

Mikhail Bakhtin traz uma reflexão a esse respeito quando aponta para a importância da construção do personagem como pólo de subjetividade ou de negação da objetividade. Em seu ensaio crítico sobre a obra de Fiódor Dostoiévski, o teórico desvela os mecanismos que culminaram na desconstrução da objetividade nos textos do escritor russo: “Em Dostoievski não se pode encontrar a chamada descrição objetiva do mundo exterior; em termos rigorosos, no romance dostoievskiano não há modo de vida, não há vida urbana ou rural nem natureza, mas há ora o meio, ora o solo, ora a terra, dependendo do plano em que tudo é contemplado pelas personagens” (BAKHTIN, 2010, p. 25).

A aventura intelectual de Bakhtin é uma dentre numerosas obras que se dedicam a destrinchar o papel da personagem na obra literária. Em “A personagem de ficção”, por exemplo, Antonio Candido traz alguns apontamentos essenciais para a compreensão da dinâmica dos sujeitos (ou “seres”, nas palavras do autor) na obra de ficção:

Uma das diferenças entre o texto ficcional e outros textos reside no fato de, no primeiro, as orações projetarem contextos objectuais e, através destes, seres e mundos puramente intencionais, que não se referem, a não ser de modo indireto, a seres também intencionais (onticamente autônomos), ou seja, a objetos determinados que independem do texto. Na obra de ficção, o raio da intenção detém-se neste seres puramente intencionais, somente se referindo de um modo indireto – e isso nem em todos os casos – a qualquer tipo de realidade extraliterária. Já nas orações de outros escritos, por exemplo, de um historiador, químico, repórter etc., as objectualidades puramente intencionais não costumam ter por si só nenhum (ou pouco) “peso” ou “densidade”. (CANDIDO, 1970, p. 17)

Sem vínculo necessário com qualquer realidade fora da literatura e, por

extensão, da ficção, os personagens de um romance são moldados de acordo com as intenções de quem escreve a obra. Em um desdobramento de seu raciocínio, o pesquisador indica que é precisamente a partir das personagens que o caráter ficcional da literatura se apresenta de forma direta:

Como indicadora mais manifesta da ficção é por isso bem mais marcante a função da personagem na literatura narrativa. Há numerosos romances que se iniciam com a descrição de um ambiente ou paisagem. Como tal poderiam possivelmente constar de uma carta, um diário, uma obra histórica. É geralmente como o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou não fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária. (CANDIDO, 1970, p. 23).

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Sem a elaboração dos personagens, portanto, o caráter literário de um texto não se desvela de forma completa, pois é graças à existência de seres povoando a narrativa que esta se apresenta como fictícia (ou não). No texto jornalístico, pode-se afirmar que a entrada em cena dos personagens indica ao leitor, de forma quase inequívoca, o caráter factual do texto, pois são reais os sujeitos que agem, falam, se posicionam diante de determinadas situações e interagem com os demais, mesmo que as suas ações, falas, posições e interações sejam inventadas ou reelaboradas de acordo com o imaginário do autor.

De acordo com Beth Brait em “A personagem”, os sujeitos que atuam diretamente na narrativa podem ser classificados em seis categorias possíveis:

Condutor da ação: personagem que dá o primeiro impulso à ação; é o que representa a força temática: pode nascer de um desejo, de uma necessidade ou de uma carência. Oponente: personagem que possibilita a existência do conflito; força antagonista que tenta impedir a força temática de se deslocar; Objeto desejado: força de atração, fim visado, objeto de carência; elemento que representa o valor a ser atingido; Destinatário: personagem beneficiário da ação; aquele que obtém o objeto desejado e que não é necessariamente o condutor da ação; Adjuvante: personagem auxiliar; ajuda ou impulsiona uma das outras forças; Árbitro, juiz: personagem que intervém em uma ação conflitual a fim de resolvê-la. (BRAIT, 2006, p. 51)

Desnecessário enfatizar que as categorias apresentadas têm relação direta com

as obras de ficção, especialmente com a produção literária. Em nosso estudo, porém, optamos por uma apropriação desse campo conceitual para viabilizar a compreensão do uso e desenvolvimento de personagens no jornalismo, mais especificamente no livro-reportagem.

3. Análise O livro a ser analisado é “Abusado: O Dono do Morro Dona Marta”, do

jornalista Caco Barcellos. A obra foi publicado inicialmente em 2003 (analisamos a 16ª edição, de 2006) pela editora Record. A edição em análise tem 559 páginas e é dividida em três blocos principais: “Parte I | Tempo de viver” (capítulos 1 a 20), “Parte II | Tempo de morrer” (capítulos 21 a 30) e “Parte III | Adeus às armas” (capítulos 31 a 38). Há ainda os elementos pré e pós-textuais: “Agradecimentos”, “Nota do Autor”, “Posfácio” e “Referências Bibliográficas e créditos”.

O livro tem como personagem central o traficante Márcio Amaro de Oliveira (1970 – 2003), de codinomes Marcinho VP e Juliano VP (a segunda é a alcunha utilizada no livro e à qual faremos referência direta a partir deste ponto). Juliano foi um dos líderes da facção criminosa Comando Vermelho e chefiou o tráfico no morro Dona Marta, na zona sul carioca, durante parte da década de 1990. Além de oferecer uma visão ampla sobre o personagem central, com informações sobre vários momentos de sua vida (pode-se dizer que o texto é, em grande medida, biográfico), Barcellos retrata o cotidiano de outros traficantes e personagens diretamente relacionados à trama.

Na “Nota do Autor”, Caco Barcellos faz uma observação relevante sobre as personagens, que reproduzimos na íntegra:

Em nenhum momento da investigação deste livro sofri alguma pressão da quadrilha ou de outros personagens. Omiti alguns nomes para evitar intriga, perseguição ou

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punições judiciárias aos que me confiaram seus segredos. Usei o mesmo critério para quem vivia fora do morro, criminosos ou trabalhadores, gente honesta ou não. Optei por usar os codinomes ou apelidos conhecidos dos mais íntimos como forma de contar as histórias de crimes sem precisar mutilar a verdade. Durante os quatro anos de produção do livro, muitos deles foram presos, torturados, mortos sempre de forma brutal. A experiência reforçou meu repúdio à cultura da punição perversa, contra quem já nasceu condenado a todas as formas de injustiça. (BARCELLOS, 2006, p. 11)

Antes de analisar a nota, vale ressaltar o fato de que o autor é um jornalista

consagrado na TV e na mídia impressa, e que essa identidade profissional provoca de antemão um efeito de leitura particular: Caco Barcellos não escreve o livro como ficcionista, mas como repórter. Por esse motivo, todas as suas afirmações são apresentadas como o resultado de um trabalho jornalístico de investigação. Impossível averiguar com cada um dos leitores se o efeito de verdade produzido por esse caráter jornalístico se consolida à medida que as páginas são viradas, mas o caráter factual é sem dúvida acentuado pela identidade do autor.

A omissão de alguns nomes e a opção do autor por grafar codinomes ou apelidos no lugar dos nomes reais e completos é um dado importante a ser levado em conta, especialmente considerando o caráter factual da narrativa. Tal recurso, conquanto não invalide as informações presentes no livro, gera questionamentos relativos à veracidade de alguns depoimentos. Afinal, se os sujeitos não são identificados ou têm sua identidade oculta pelo autor, a possibilidade de verificação das falas se restringe ao processo de entrevista. A discussão dos aspectos éticos envolvidos na produção de um livro-reportagem não faz parte dos objetivos centrais desta pesquisa, mas não pode ser ignorada quando da análise de uma obra com ocultação ou identificação precária de personagens. Feita a ressalva, partimos à análise propriamente dita.

Dada a limitação de espaço deste artigo, optamos por analisar o trecho que, em nossa interpretação, é o mais rico do ponto de vista da organização de personagens. Trata-se da terceira e última parte do livro, onde se dá a inserção do autor na narrativa.

3.1. Parte III: “Adeus às armas” A terceira parte do livro leva o mesmo nome do capítulo que encerra a parte

anterior (cap. 30 – parte II). O elemento de transição do capítulo 30 da parte II para o capítulo 31 da parte III (“Foragido”) é o episódio da traição que ocorre no morro após a fuga de Juliano para o exterior. Durante o périplo do traficante por alguns países da América Latina, a troca de comando provisória no morro Santa Marta, arquitetada pelo antigo chefe, sofre um revés quando o líder Paulo Roberto resolve assumir definitivamente o controle do local, contra a determinação do líder Juliano.

Nessa terceira e última parte, nota-se alteração radical no ponto de vista a partir do qual a história é narrada. Até então desenvolvida em terceira pessoa, abre-se nesta última parte do livro espaço para uma primeira pessoa. É esta ruptura com o modelo de uma história que parece contar-se a si mesma que traz nova personagem para a história que o leitor lê em “Abusado”: um autor-narrador-personagem passa a dividir quase todas as cenas com o protagonista.

Os efeitos de sentido deste procedimento podem ser melhor discutidos se recorrermos à tipologia proposta por Friedman (1967) e reorganizada por Leite (2007). Nas duas primeiras partes do livro, o leitor está em presença de um narrador

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onisciente neutro. Onisciente porque tudo ou quase tudo sabe sobre os personagens de sua narração. E neutro porque se mantém fiel à terceira pessoa, evitando se manifestar em primeira pessoa.

Bastante frequente na organização dos textos jornalísticos, esse narrador onisciente neutro é um dos recursos que costumam marcar a credibilidade dos discursos que pretendem a factualidade como efeito de sentido. Para Amaral (1996), é exatamente o posicionamento do autor-narrador – isto é, a opção pela primeira ou pela terceira pessoa – que sinaliza adesão aos diferentes modelos discursivos da linguagem jornalística: o jornalismo noticioso, mais voltado à reelaboração dos acontecimentos e muito relacionado aos paradigmas da objetividade, factualidade, neutralidade e imparcialidade se vale com mais frequência do narrador onisciente neutro sugerido pelo uso da terceira pessoa.

Ligia Chiappini Moraes Leite traz considerações relevantes a respeito de outro tipo de narrador, o onisciente intruso:

Muito comum no século XVIII e no começo do século XIX, o narrador onisciente intruso saiu de moda a partir da metade desse século, com o predomínio da “neutralidade” naturalista ou com a invenção do indireto livre por Flaubert, que preferia narrar como se não houvesse um narrador conduzindo as ações e as personagens, como se a história se narrasse a si mesma. Mas Machado, antecipando vertentes ultramodernas, utiliza esse narrador intruso como ruptura da verossimilhança. Seu leitor não se esquece de que está diante de uma ficção, de uma análise, da interpretação ficcional da realidade, um mero ponto de vista sobre pessoas, acontecimentos, sociedade, lugar e tempo (LEITE, 1997, p. 29).

Ao mencionar a “ruptura da verossimilhança” como resultado da utilização do

narrador onisciente intruso, a autora retoma a ideia de que a presença do narrador como personagem que toma parte no enredo desencadeia uma ruptura no texto. Pode-se afirmar que “Abusado” passa por um fenômeno oposto ao descrito por Leite. No livro de Barcellos, a inserção do autor no texto reforça a verossimilhança ao trazer à tona uma série de reflexões sobre o fazer jornalístico e sobre toda a empreitada do autor para conseguir levar a cabo o seu projeto.

Torna-se por isso interessante acompanhar a trajetória do narrador ao longo desta obra de Caco Barcellos. De onisciente neutro em praticamente dois terços do livro, o narrador passa a onisciente intruso na última parte, a partir da adoção do discurso em primeira pessoa.

Qual seria a razão dessa alteração? Que efeitos de sentido ela provoca? Pode-se trabalhar com a hipótese de que a verossimilhança, nesse livro-reportagem específico, está atrelada ao mergulho do autor no enredo, à transfiguração de um autor-narrador distante, embora onisciente, em um personagem decisivo para o desfecho da trama?

A discussão aqui proposta repousa na distinção entre “verossimilhança” e “veracidade” – ou “factualidade”, para usar um vocábulo mais próximo do universo jornalístico – e retoma alguns aspectos da teoria do romance-reportagem (COSSON, 2001), gênero que traz em seu cerne várias marcas que o aproximam da narrativa literária, das quais a utilização de personagens é uma das mais perceptíveis.

Nesse processo de hibridismo, alguns paradigmas do jornalismo acabam por esgarçar-se. A afirmação da verdade dos fatos, tão comum nos textos noticiosos (e tão mencionada nos manuais de redação que dão suporte à produção de notícias nos grandes jornais), dá lugar, no romance-reportagem, a estruturas que priorizam não mais o acontecimento em si – que, mesmo na narrativa noticiosa mais tradicional,

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como já discutido anteriormente, já é impregnado de subjetividades –, mas também a construção do relato (ou da aceitação do relato) no imaginário do leitor.

No plano da cronologia do enredo, a materialização de uma primeira pessoa no texto se dá “meses depois da história da traição no morro” (p. 451), durante um jantar a que estão presentes o próprio Barcellos e o missionário Kevin, braço direito de Juliano e personagem com presença expressiva em quase todos os capítulos do livro. Antes que ambos comecem a comer, o telefone de Kevin toca. É Juliano, que pede para falar com o autor e explica que precisa marcar um encontro com urgência para tratar de um assunto grave:

– Alô, irmão? Ele veio sim... Já estamos aqui. Em seguida o missionário me passou o telefone, dizendo que era o Juliano e ele queria falar comigo. – Alô! Desculpi interrompê o jantar!1 – Tudo bem, o prato ainda não foi servido. – Que a paz do Divino proteja a sua pessoa. Precisava conversá com urgência. É assunto sério, muito sério. Eu já o conhecia das cadeias do Rio. Nossa primeira conversa tinha sido, em 1996, na cela que dividia com o “dono” da favela do Jacarezinho, Lambari, na carceragem da Polinter. Conversamos outras vezes depois da fuga, em 1997, 1998 e 1999, período das grandes caçadas contra ele. Na época eu apresentava um programa na Globo News sobre iniciativas edificantes, de pessoas anônimas, nas áreas de pobreza do país. Para gravar nos morros e favelas, muitas vezes precisei de uma conversa prévia com os chefes das bocas de pó, como Juliano. Mas dessa vez o interesse era dele. (p. 451)

A pauta definitiva sobre o traficante, como o autor salienta nas páginas

seguintes, ainda não era um projeto definido àquela altura, fato que pode ser verificado com a conversa que acontece na mesma noite do jantar com Kevin. Na ocasião, Juliano tenta convencer o jornalista a fazer “uma reportagem sobre a violência dos últimos meses na favela, patrocinada por seu inimigo Carlos da Praça” (p. 456). A ideia original de ambos, portanto, não era uma cobertura jornalística a ser publicada ou veiculada em forma de perfil ou biografia, como viria a ocorrer.

Barcellos se propõe a investigar a história sugerida por Juliano, mas, meses depois, não descobre se acusação de Juliano era real ou não. Mesmo assim, o traficante procura o autor novamente, desta vez com uma proposta diferente: ele queria encomendar um livro sobre a própria vida.

É a partir do ingresso de uma primeira pessoa na narração que o livro, através dela, tematiza questões que talvez recubram aspectos fundamentais do gênero do romance-reportagem. Trata-se de questionamentos éticos, como o autor salienta:

O missionário Kevin e outras pessoas já haviam me falado desse projeto de Juliano. Já refletira um pouco sobre a idéia e resolvi recusá-la por princípios. Interpretei que o desejo dele era de um livro que fizesse a sua defesa pessoal ou algo que legitimasse a sua trajetória no crime, como se fosse derivada apenas do processo de exclusão social que sofrera. O outro motivo para recusar a proposta era mais sério, e de imediato falei para Juliano: – O problema de um livro desse é a consequência da notoriedade. – Não entendi.

                                                                                                                         1 É de Barcellos a opção de transcrever as falas de alguns personagens, especialmente do protagonista, com alguns erros de dicção.

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– Como você prefere ser chamado? De traficante, de criminoso... – Bandido. Bandido! – Lembra do Lúcio Flávio, do Meio-Quilo, do Bolado, do Brasileirinho? – Lembro. Lembro. – E o que acontece com os bandidos no Brasil quando ficam mais conhecidos? Alguns são presos e tudo bem. Mas muitos são mortos. Não quero ser instrumento da morte de ninguém. (p. 459-460)

No decorrer do texto, cada vez mais a voz em primeira pessoa se identifica como uma voz autoral. No desfecho da conversa, Barcellos oferece ao traficante uma alternativa; ele faria um livro sobre toda a quadrilha, e não apenas sobre Juliano. E depois da conversa abre um parágrafo com novas reflexões sobre o próprio trabalho:

Imaginei que ele não tivesse muita noção da complexidade de um trabalho de apuração jornalística com personagens fora-da-lei, condenados e foragidos da justiça. Era sem dúvida um desafio, cheio de implicações éticas, morais, legais. Antes mesmo de assumir, comigo mesmo, o compromisso de enfrentá-lo, eu já deduzira que seria a reportagem mais difícil de meus 25 anos de profissão. Mas quando voltei ao esconderijo pela terceira vez eu já estava decidido a conhecer de perto as histórias dos homens do CV da Santa Marta. Deixei cartas na chefia da redação do meu trabalho na TV, explicando a natureza da reportagem que faria. Era a maneira de fazer um esclarecimento prévio aos meus colegas para a eventualidade de ser preso na companhia de traficantes foragidos. (p. 460-461)

A inserção do autor como personagem da narrativa, através da constante

metalinguagem, com falas em primeira pessoa, interações diretas com as demais personagens do livro e reflexões sobre o processo de elaboração da obra parece tornar-se mais densa e frequente a partir da notoriedade que Juliano conquistou em seus últimos anos de vida, notoriedade da qual “Abusado” também se ocupa.

Por um lado, Barcellos optou por uma estratégia de autoproteção de sua imagem – da qual o episódio da carta deixada aos chefes é apenas um exemplo – e de sua própria segurança. Em vários momentos o autor mostra seus receios de fazer contato com os criminosos, por exemplo. Por outro lado, ele impõe à narrativa, em vários momentos, um discurso que enaltece a proteção às personagens, como se estas, durante a exposição de suas histórias, se fragilizassem com os próprios depoimentos, como já apontamos anteriormente.

Um dos exemplos mais claros da situação de desconforto com o contato com os criminosos é a afirmação, repetida em vários trechos do livro, de que os personagens só deveriam se pronunciar a respeito de histórias restritas ao passado, sob o risco de transformarem o jornalista em cúmplice de suas ações futuras. Na última parte do livro, alguns diálogos, como a conversa com o traficante Paranóia, revelam essa regra imposta pelo próprio autor:

– Que papo é esse de levantá o meu passado, aí? – perguntou-me Paranóia depois de ouvir as explicações sobre o meu plano de pesquisa. Insisti com meus argumentos. – Digamos que vocês resolvam executar alguém amanhã, ou agora, aqui, na minha frente. Sou radicalmente contra, vou fazer tudo para evitar a morte. – Mas se o cara é um cobra-cega, X-9 safado, tu qué o quê? Pneu nele, aí! – Seja quem for. Não quero ver, não me mostrem nada. Quero ouvir histórias do passado, combinado? – Tão não vô falá nada. Meu passado é uma bosta, aí! (p. 464 – 465)

No trecho transcrito, o autor prossegue no relato sobre a construção do livro,

numa espécie de metatexto. É na construção deste metatexto – isto é, na explicitação

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de alguns pressupostos da escrita de seu livro – que a primeira pessoa se fortalece. Desta forma, Barcellos informa o leitor sobre sua conduta jornalística, especialmente quando suas atividades profissionais o levam para a vizinhança de criminosos.

Ao relatar o fracasso na tentativa de entrevistar Paranóia sobre o seu passado, Barcellos narra também a dificuldade que ele encontrou para localizar documentos que pudessem servir de matéria-prima para a elaboração do livro: “Fracassaram também minhas primeiras buscas por diários, cartas da infância e da adolescência, álbuns de fotografias, boletins escolares, registros dos empregos e nas carteiras profissionais” (p. 465). E prossegue com a argumentação a respeito da apuração preliminar do livro, ao mencionar, por exemplo, a estratégia que utilizou para estabelecer a cronologia de alguns fatos marcantes na história do morro, como as guerras entre as facções rivais.

Pode-se ver, pelas considerações acima, como a inserção do autor-narrador como personagem também foi um artifício útil para esclarecer ao leitor quais foram os limites impostos por Barcellos à sua conduta jornalística. Um trecho da página 466 traz um dado importante acerca do processo de construção da narrativa: “Histórias como a do helicóptero, que reproduzirei mais à frente, me apontaram o caminho da estrutura de romance para o livro, o que me pareceu a melhor maneira de aproveitar o volume impressionante de diálogos presentes nos depoimentos.” (p. 466).

Vale a pena, neste ponto, discutir possíveis significados para o que Barcellos chama de “estrutura do romance”. Numa primeira hipótese, a expressão pode ter relação direta com o conceito de romance-reportagem de Rildo Cosson, mas também é possível que o autor a tenha usado apenas para indicar que a sua narrativa foge de alguns padrões do jornalismo convencional, principalmente no que diz respeito ao tratamento dispensado às personagens e às falas.

No gênero romance-reportagem (e “Abusado” não foge à regra), as falas não restringem os sujeitos aos quais elas são atribuídas à condição de “fontes”, como se usa dizer no jargão jornalístico. Em vez de meros fornecedores de informações relevantes, as falas das personagens oferecem visões mais amplas sobre os assuntos abordados, muitas vezes abrindo caminhos alternativos para as histórias narradas.

Uma terceira possível explicação para a aproximação do livro daquilo que o autor denomina de “estrutura de um romance” é a dificuldade encontrada por Barcellos para verificar algumas informações oferecidas pelas personagens. A impossibilidade de aferir a verdade dos fatos (ainda que se trate de uma verdade fugidia e impregnada de subjetividade) talvez incomode o narrador, levado a infringir esse princípio de verificação, que constitui um paradigma do jornalismo.

Em seu livro, no entanto, o autor nem sempre consegue se referir aos fatos de forma absolutamente precisa, sem se deixar contaminar por elementos da imaginação das personagens – e, muitas vezes, da sua própria. Essa situação é apresentada de forma direta quando Barcellos cita diálogos travados com o traficante Tênis:

É possível que Tênis e outros parceiros dele tenham contado histórias exageradas ou mentirosas. Procurei checá-las cruzando depoimentos e com a consulta das fontes formais – arquivos de jornais e de TV, inquéritos policiais, processos na justiça, cartórios de registros civis. (p. 466-467).

Outro procedimento pelo qual “Abusado” também se afasta de padrões

jornalísticos mais estritos é o recurso apresentado já na abertura do livro: a omissão dos nomes dos personagens. Inicialmente apontada como estratégia de proteção das pessoas que deram seus depoimentos ao jornalista, na última parte da obra o uso de pseudônimos é atribuído também a uma tentativa de minimizar o efeito da opção do

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autor pela verossimilhança no lugar da precisão dos fatos, quando esta se mostrou inacessível, como fica claro neste trecho:

Para não mutilar os fatos, optei pela exposição dos nomes de guerra, ou codinomes de alguns. O mesmo critério usei para os policiais honestos e desonestos, e para os trabalhadores eventualmente envolvidos com o tráfico, contra ou a favor dele. (p. 467)

Com um tratamento diferenciado de personagens centrais do livro (traficantes,

policiais e trabalhadores ligados ao tráfico), Barcellos de certa forma se exime da responsabilidade de narrar situações que, muitas vezes, como apontou o próprio autor, resultaram apenas de depoimentos dos personagens, que nem sempre podem ser verificados de modo a garantir sua veracidade.

Os trechos finais do livro, antes do posfácio que apresenta e contextualiza a morte de Juliano – trecho ausente da primeira edição do livro –, trazem elementos que reaproximam a narrativa do padrão de factualidade característico do jornalismo. As cartas enviadas por Juliano aos líderes do Comando Vermelho que se encontravam presos – material transcrito no livro – são um exemplo preciso desse retorno à factualidade.

Mas as cartas são apenas a faceta mais visível desse processo de retorno a um procedimento narrativo mais distanciado e impessoal, marcado pelo afastamento do autor em relação ao que narra. Pode-se, assim, estabelecer o trajeto percorrido pelo foco narrativo, de onisciente e neutro nas duas primeiras partes, para onisciente intruso na terceira e última. Nesta migração, o recurso da narração em primeira pessoa apresenta o narrador como personagem. Mas o ponto de vista volta a alterar-se mais adiante.

A partir da p. 541, no entanto, a história desenrola-se a partir de trechos mais fragmentados sobre o destino de várias personagens centrais e secundárias. Ao longo destas passagens, o autor gradualmente se distancia do texto, retomando como padrão da voz narrativa (com algumas exceções) o narrador onisciente e neutro, quase sem o uso da primeira pessoa.

Nesse processo, pode-se dizer que a estrutura romanceada continua presente, com todas as suas marcas de personagens e verossimilhança. Ao mesmo tempo, no entanto, os paradigmas do jornalismo se reafirmam, como se o autor retornasse ao patamar inicial de distanciamento. Jornalismo ou literatura? O leitor talvez não saiba distinguir, justamente por conta do hibridismo da obra.

Referências AMARAL, L. A objetividade jornalística. São Paulo: Sagra-Luzzatto, 1996. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. São Paulo: Forense Universitária, 2010. BARCELLOS, Caco. Abusado. Rio de Janeiro: Record, 2006. BRAIT, B. A personagem. São Paulo: Ática, 2006. CANDIDO, A. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007. COSSON, R. Romance-reportagem: o gênero. Brasília; UNB, 2001. FRIEDMAN. N. “Point of view in fiction: the development of a critical concept”. In: STEVIC, PH., The theory of the novel. New York: The Free Press, 1967. LEITE, L. C. M. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 2007. PENA, F. Jornalismo Literário. São Paulo: Contexto, 2006. WOLFE, T. New journalism. Nova York: Addison Wesley, 1973.

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Wine list: a redenção do texto na propaganda impressa - Celso Figueiredo Neto (UPM)

Resumo: O presente trabalho visa analisar o caso do anúncio denominado “wine list” agraciado o leão de prata em Cannes 2012 por melhor texto de anúncio impresso. A peça publicitária, um alltype, anúncio composto inteiramente de texto, reproduz o pensamento do sujeito constrangido ao receber uma carta de vinhos em um restaurante sem entender da matéria. O diálogo que se estabelece em sua mente, e o processo de emulação, que ocorre com o consumidor que, ao ler o anúncio passa a identificar-se com o leitor imaginário da carta de vinhos. O anúncio constrói também uma inteligente estratégia retórica de adesão ao propor, a partir do constrangimento do sujeito, a simpatia, pathé do leitor e persuade, por via transversal o leitor positivamente em relação ao produto anunciado sem o desgaste natural do ostentoso texto epidítico de que a publicidade tradicionalmente se serve. Em outra dimensão analítica o anúncio “Wine List” parece consolidar uma tendência que vimos observando desde algum tempo que augura o retorno de texto à publicidade impressa. Por anos a economia e a política do less is more adicionada de ideia de internacionalizar campanhas publicitárias empurrou a criação para o uso intensivo de metáforas visuais, cada vez menos dependentes de apoio textual, de modo que as peças pudessem ser facilmente internacionalizáveis. O anúncio, objeto da presente análise, demonstra haver um caminho distinto, no qual a persuasão volta a assentar-se no poder da palavra, no que poderia ser a redenção do texto escrito no primordialmente visual universo publicitário. Palavras chave: publicidade, texto, comunicação, retórica, all type INTRODUÇÃO

A publicidade é uma atividade naturalmente dinâmica. A necessidade constante de inovação exige que a criação publicitária mantenha-se em constante esforço para sair do comum, fugir à obviedade, surpreender o consumidor. Assim como a moda tendências, ondas e parâmetros estéticos se sucedem na busca contínua desse adjetivo mágico, o “novo”.

A fluidez intrínseca à atividade exige das agências que experimentem novos modos apresentar produtos e serviços aos consumidores de maneira que esses se tornem diferentes dos concorrentes, ganhem personalidade própria e expressem um discurso de marca que as valorize aos olhos do público no intuito de construir o que o universo do marketing chama de “valor agregado”. A construção de valor agregado – que permitirá, inclusive, que se cobre mais pelo produto – é o desafio mais instigante da criação publicitária: a partir de peças de comunicação e ações de marketing fazer crer ao consumidor que determinado produto é melhor, mais sofisticado, mais eficaz que os similares disponíveis no mercado. Esse esforço de diferenciação é patente nas peças publicitárias e sua análise faz emergirem os conceitos definidos pelo marketing das empresas para diferenciar as marcas e deixa ver as técnicas retóricas utilizadas pelas agências de propaganda no processo criativo de sua comunicação.

Um dos mercados mais competitivos é o das cervejas. Diversas marcas de produtos similares embatem-se cotidianamente pela preferência dos consumidores. Sabe-se que a cerveja é um produto alcoólico, altamente calórico, que pouco tem a oferecer em termos de nutrição. A publicidade de cerveja, por sua vez, costuma produzir peças criativamente exuberantes, até porque, se pouco há de positivo a ser dito sobre o produto, a estratégia retórica de dirigir o discurso para temas fora do

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âmago da questão passa a ser a linha de ação a ser adotada. Foco na emoção ou na construção do ethos das marcas distrai o consumidor das características físicas do produto.

É frequente o apelo ao sexo e à sensualidade na publicidade dessa categoria, pois, como o produto é prioritariamente destinado a jovens, o apelo aos hormônios costuma surtir efeitos superlativos. Contudo, dado o fato de que muitas marcas de cerveja já se utilizam desse recurso retórico para capturar a atenção do público, outras marcas passam, então, a empreender a busca por uma plataforma de comunicação diferenciada.

Nesse processo enquadra-se a marca de cerveja que ora captura nossa atenção. Trata-se de uma marca australiana DB Export Dry. O discurso publicitário definido pela agência Colenso BBDO de Auckland, Nova Zelândia, foge ao lugar comum pela estratégia criativa adotada. Mais que isso, aposta em um anúncio all type2 para expressar a mensagem. Tanto a escolha criativa, quanto a estética empreendem um interessante caminho pois, para chegar a mensagem final, de oferta do produto, constroem, antes, uma situação de divertido constrangimento dos homens desafiados pela carta de vinhos. DUPLO DIÁLOGO

Uma das técnicas mais celebradas em publicidade é a chamada emulação (FIGUEIREDO 2005), em que a peça publicitária reproduz uma cena do cotidiano do consumidor. Porém, na publicidade, tudo acontece de modo ideal, com pessoas lindas e felizes, cenários elegantes e finais felizes. O consumidor como protagonista da situação e o produto como passaporte para aquela cena ideal. Na técnica de emulação, o consumidor tende a se enxergar naquela cena uma vez que se reconhece em situações similares e deseja a evolução da situação real para a ideal demonstrada na peça publicitária. O produto então será o “passaporte” para a situação desejada. Exemplos típicos desse sistema persuasivo são os clássicos comerciais de margarina, a “família Doriana” que inspira mães há décadas a comprarem gordura vegetal hidrogenada embalada pelo sonho da família feliz.

Nem sempre, porém, o sistema de emulação é utilizado projetando situações desejáveis. Publicidade de seguros, apenas para citar um exemplo, é pródiga em demonstrar situações desagradáveis a serem evitadas com a compra dos serviços oferecidos. O mesmo processo, de emulação negativa – porém com o uso do humor – é utilizado no anúncio da cerveja DB Export. Nele emula-se a situação em que o rapaz que não conhece nem gosta de vinhos recebe do garçom a carta de bebidas em um restaurante. A peça criativa explora as dúvidas e constrangimentos do inexperiente comensal.

                                                                                                                         2 All type é o termo que designa anúncios que prescindem de imagens. Um anúncio all type é composto apenas por texto e elementos gráficos que compõem a peça publicitária. Ilustrações e fotografias não fazem parte do modelo all type. De uso cada vez mais raro, os anúncios all type competem pela atenção do consumidor sem fazer uso de imagens que são, em geral, mecanismos de captação da atenção dos leitores.

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Anúncio DB Export – Wine List - ColensoBBDO

Mais do que a emulação da situação da escolha de vinho no restaurante, a peça

publicitária ora analisada, propõe duplo dialogo mostrado (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU 1994, p. 162). Uma primeira dimensão de interlocução é explorada com recursos de humor e ironia ao longo do texto, o diálogo interno de um personagem fictício manifestado pela relação da carta de vinhos com o leitor, no caso, o personagem que a recebe em um restaurante. Um segundo nível de diálogo, se dá na interlocução presente entre a marca de cerveja, por meio de sua agência de publicidade e dos veículos de comunicação até que esta chegue às mãos do consumidor final que lê o anúncio em uma revista e poderá se projetar na situação do rapaz que recebe a carta de vinhos no restaurante. Temos então, nesse caso a emulação do consumidor na posição do personagem criado para a cena, o comensal que não entende de vinhos e é colocado pelo garçon, possivelmente em uma situação de negócios, na constrangedora posição de escolher o vinho para a refeição. Em um nível a cena que acontece na narrativa ficcional, cujos personagens efetivos são o homem e a carta de vinhos com que ele se relaciona. Em outro nível, o real, tem-se o leitor que lê o anúncio e se projeta na situação vivida pelo personagem.

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A divertida “conversa3” da carta de vinhos com o comensal visa buscar a adesão do leitor à situação indesejável de ter que escolher um vinho quando no fundo o que se quer beber é cerveja. Esse diálogo da carta com o comensal pode reproduzir um diálogo interno, que ocorreria dentro da mente do consumidor ou de um amigo íntimo desse indivíduo. Essa proximidade com que a marca passa a dialogar com seu público alvo difere sobremaneira do modelo clássico de propaganda de varejo, o chamado hard sell. Nele a postura invasiva, imperativa, urgente predomina. Quanto mais incômoda mais eficaz (ROMAN, 2011). Na comunicação soft sell, em oposição, o processo de comunicação se dá de modo mais delicado, é baseado na adesão e o consumidor é tratado como um “amigo”, próximo da marca (FIGUEIREDO 2005: 79) (SAMPAIO 1995: 371).

A peça Wine List é um primor de soft sell, uma vez que o diálogo estabelecido é tão íntimo que ficamos a questionar a existência de uma segunda pessoa que dialoga com o leitor da carta de vinhos até o momento em que entra efetivamente a mensagem comercial “That´s why Morton Couts...”, ou seja, no penúltimo bloco de texto do anúncio. A construção dialógica é tão bem feita que até aquele momento permanece a dúvida se quem “fala” no cardápio não seria o alter ego do próprio leitor.

A guisa de desmontagem do constructo retórico demonstraremos a seguir, separadamente, os elementos que estabelecem a verossimilhança responsável pela surpresa que o anúncio oferece. ELEMENTOS DA PERSUASÃO NA NARRATIVA

O conceito de persuasão, como se sabe, difere da ideia de convencimento em diversos pontos. Enquanto o convencimento se apoia na razão a persuasão assenta-se na emoção; o convencimento funciona por pressão, por imposição ou por negociação, ou seja, ele depende um vínculo grande entre os interlocutores para que seja efetivo, já a persuasão se dá de maneira mais sutil, e esta relacionada com a concordância. Pascal (in VANOYE 2003: 147) explicita:

Qualquer que seja o objeto de persuasão, é mister ter em conta a pessoa a quem se quer persuadir; é preciso conhecer seu espírito e seu coração, que princípios ela abraça, que coisas ela ama; e em seguida assinalar na coisa de que se trata, que relações ela tem com os princípios reconhecidos, ou com os objetos deliciosos pelos encantos que se lhe atribuem. De sorte que a arte de persuadir consiste antes em concordar do que em convencer, assim como os homens se governam mais por capricho que por razão. (PASCAL A Arte de Persuadir)

                                                                                                                         3 Reproduziremos a seguir o texto da carta de vinhos em tradução livre: carta de vinhos. Acaba de ser entregue para você. Oh Deus! O que fazer agora? Apenas fique olhando para a página. Será que eles conseguem  perceber  que seus olhos não estão se movendo? Talvez. Tente ler algumas linhas. Será cedo para levantar a cabeça? Provavelmente. Toque seu queixo um pouquinho. Ok, é suficiente. Já é tempo de escolher um vinho. Veja se você conhece algum nome. Não, não, não, não, não, não. Ok, isso não está funcionando. Veja se você consegue achar alguma palavra em inglês. Nada. Hora de pegar o segundo mais barato. Talvez apenas apontar. Daí é só girar no copo, cheirar, experimentar e dizer “Mmmm, muito bom, pode servir” quem sabe dessa vez arriscar um “mmm tem gosto bom e antigo”. É, isso vai funcionar. Como é chegou-se a esse ponto? Vinho não é a sua cara. Cerveja é a sua cara. É por isso que a Morton Couts, cervejaria proprietária da DB cervejaria criou a Export Dry. Em um minuto você irá encher o peito, devolver a carta de vinhos e dizer com orgulho “eu vou querer uma Export Dry”. Ok, você já pode levantar a cabeça.  

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Em Perelman encontramos uma interessante distinção proposta: “Para quem se preocupa com o resultado, persuadir é mais do que convencer, pois a convicção não passa da primeira fase que leva à ação. Para Rousseau, de nada adianta convencer uma criança “se não se sabe persuadi-la”. (PERELMAN e TYTECA 2002: 30)

Esse renomado pensador também examina a distinção kantiana, que entende ambas, convicção e persuasão, como crenças sendo o que difere uma da outra é a questão da audiência. No caso da persuasão o auditório seria individual, na convicção a validade da ideia seria universal (PERELAMAN e TYTECA 2002: 31-33). A visão kantiana, então, considera a convicção mais “verdadeira” por que serve “para todos” enquanto a persuasão é menos válida pois só serve para um. Essa, porém, é a visão filosófica, dos que buscam a verdade, o que difere do olhar retórico, que se satisfaz com a verossimilhança.

Tendo-se em mente que a publicidade assenta-se na retórica, ou seja, mais na verossimilhança que verdade, conceito monolítico que vigorou até o século XIX, e que seu objetivo é a conquista da concordância de determinado público alvo, ou auditório, a conclusão oferecida por Perelman (2002: 33) nos parece definitiva: “É, portanto, a natureza do auditório ao qual alguns argumentos podem ser submetidos com sucesso que determina em ampla medida tanto o aspecto que assumirão as argumentações quanto o caráter, o alcance que lhes serão atribuídos.”

Assim entendido, o processo persuasivo se inicia no conhecimento profundo do público com quem se deseja comunicar. A partir daí constrói-se a teia de argumentos para apoiar a mensagem da marca. No caso do anúncio ora analisado o diálogo da carta de vinhos com o sujeito apoia-se e alguns elementos de grande importância para o sucesso comunicativo da peça.

A quebra de expectativa que ocorre a partir da primeira linha de texto. Ao vermos o título Wine List, com a diagramação apresentada, naturalmente tendemos a esperar que as linhas subsequentes tragam nomes, safras, preços, talvez descrições aromáticas e gustativas dos vinhos ofertados. Entretanto, já na primeira linha, “It´s Just been handed to you”, em tipo fantasia quebra expectativa provoca a curiosidade e leva o leitor a questionar do que se trata.

A linha que se segue, em tipo bastão exalando uma confissão, um pensamento, “Dear god what do I do now?”, lança o leitor na dúvida, quem será o alocutário dessa sentença? A linha que se segue aumenta a confusão, pois devolve a alocução para o primeiro interlocutor, porém mantém a tipografia do segundo, “Just stare at the page” esse jogo de tipografia/alocutário prossegue por todo o texto, confundindo e provocando o leitor com o objetivo de mantê-lo preso, atento até a linha final em que o produto é apresentado como solução para a tensão criada. Temos, portanto, um duplo engajamento, o texto inesperado presente na carta de vinhos e nesse texto com tipografia variante frases que ora são confessionais, ora são sugestões, indicações, indiciando ser um interlocutor e não o próprio personagem quem pensa aquele texto.

Também pelo viés narrativo pode-se observar a criação de uma curva de tensão claramente marcada, com o personagem – que é projeção do próprio leitor – cada vez mais tenso, por não conhecer vinhos e não saber que vinho escolher ou como se portar, até que, a marca anunciante de cerveja surja como redentora, oferecendo a saída honrosa para a situação: uma cerveja de alta qualidade, a qual ele poderá pedir sem vergonha e assim livrar-se do incômodo do ritual e dos maneirismos do vinho.

Os pontos de tensão são marcados fisicamente na separação entre os parágrafos e a cada grupo de sentenças percebe-se o aumento do desconforto do sujeito. No primeiro momento ele apenas ganha tempo fingindo que lê a carta, em seguida tenta reconhecer algum nome, depois alguma palavra em inglês, daí, diante da

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crescente noção de seu desconhecimento decide escolher pelo preço. Segue-se a expectativa pelo ritual da prova que pode desmascará-lo. É nesse clímax que a mensagem comercial entra para relaxar a tensão.

É sábio apresentar o produto no auge da tensão, como solucionador do problema, pois de outra forma correria o risco de “lembrar a piada e esquecer o anunciante” problema clássico dos comerciais narrativos. Como nesse caso o produto entra no clímax da narrativa e soluciona a questão, a chance de lembrança da marca aumenta sobremaneira.

O anúncio é finalizado com a frase “Ok, you can look up now” usando o recurso da circularidade, ou seja, retoma o início do texto tornando-o circular e ainda cria efeito de gag, uma sutil piada ao final para fechar o texto em “alto astral”. A VOLTA DO TEXTO PUBLICITÁRIO

Em 2002 realizamos um estudo chamado A Palavra Evanescente que analisou todos os anúncios premiados pelo Clube de Criação de São Paulo entre 1975 e 2001. Nele concluímos que devido aos processos de globalização e internacionalização das campanhas; padronização das marcas e simplificação das adaptações para as línguas locais, anunciantes multinacionais davam preferência para anúncios com cada vez menos texto. Assim as agências que atendiam a essas marcas globais passaram a se concentrar em criação baseada em metáforas visuais, trabalhos gráficos e fotográficos sofisticados; títulos e assinaturas sintéticos com o objetivo de produzir propaganda com alto impacto, fácil compreensão e tradução.

Passados dez anos, o que se verifica é que muitas marcas parecem ter sentido que esse caminho criativo começa a se esgotar, procurando outras maneiras de cativar seus clientes. Uma nova pesquisa está em andamento pelos membros do grupo de pesquisa Pario4 para tentar descobrir se, de fato o texto publicitário voltou à “moda”. Mas a percepção das tendências, independente das estatísticas, exaradas pelas campanhas criadas pelas agências líderes em criatividade, as mais ousadas do planeta, vencedoras dos principais prêmios publicitários, parece apontar para a volta do texto ao papel de protagonista da comunicação publicitária.

São vários os fatores que ensejam essa volta, dentre eles, o fato de que um texto fará com que o leitor fique mais tempo em contato com a marca, pois o tempo dedicado à leitura será maior que o tempo necessário para a observação da imagem. Porém, esse não é o fator mais importante. Considerando-se que atualmente poucas diferenças existem entre os produtos, é necessário criar diferenciais subjetivos entre as marcas. A subjetividade, para que seja consistente precisa ser ancorada em construção textual, pois desse modo o criativo poderá circular, envolver o tema, tocar o consumidor por diferentes vieses, apoiar o ponto de vista da marca de modo consistente por meio da construção de contextos e personagens como o anúncio ora analisado demonstra. Jamais uma imagem poderia dizer tanto sobre o constrangimento do momento da escolha do vinho para alguém que aprecia cerveja como esse texto que reproduz um diálogo íntimo da marca com o consumidor. E a marca se coloca como amiga, próxima, que divide segredos, agruras e inseguranças com o protagonista. Nessa situação privilegiada ela pode associar-se a ele como que dizendo “somos nós contra eles, os inimigos, que querem nos impingir um

                                                                                                                         4 O Grupo de Pesquisa Pario, liderado pelo autor do presente trabalho, visa identificar as estratégias persuasivas da criação publicitária e compreender suas imbricações sociais. http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0514609GPX6IRZ

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comportamento que não queremos”. Nesse caso a tendência à filiação, pertencimento e mesmo lealdade à marca aumenta substancialmente.

Estratégias de comunicação, baseadas em texto, que cativam, entretém o leitor e apresentam o produto de uma maneira única e especial. Essa é a grande vantagem da publicidade primordialmente textual sobre a visual. Há uma irmandade, uma fidelidade entre aqueles que param seus afazeres para relacionarem-se com um anúncio, um texto bem escrito. Quando conseguem projetar-se nele, então, a mágica acontece. O processo de comunicação publicitária se dá em seu nível retórico persuasivo. A próxima vez que o garçom oferecer a carta de vinhos, bem, acho que vou pedir uma cerveja. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. 1ª Ed. Contexto, São Paulo 1994. FIGUEIREDO, Celso. Redação Publicitária: Sedução pela Palavra.1ª ed. Thomson, São Paulo, 2005 PERELMANN, Chaïn e TYTECA, Lucie Olbrecht. Tratado da Argumentação – A nova retórica. 1ª ed, 5ª tiragem, Martins Fontes, São Paulo, 2002 ROMAN, Kenneth. O Rei da Madison Avenue. Cultrix. São Paulo, 2011 SAMPAIO, Rafael. Propaganda de A a Z. Rio de Janeiro, Campus, 1995. VANOYE, Francis. Usos da Linguagem. Problemas e Técnicas na Produção Oral e Escrita. 12ª ed. Martins Fontes, São Paulo, 2003.

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Interpretação da linguagem imagética e educação: Análises de anúncios publicitários na sala de aula - Clarice Lage Gualberto (UFMG)

RESUMO: Esta pesquisa tem como objetivo discutir o trabalho com textos não verbais no ensino fundamental e apresentar a Gramática do Design Visual (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006) – GDV – como uma teoria que pode contribuir para o processo de ensino e aprendizagem da linguagem imagética. Para tanto, apresenta-se um estudo de caso feito com as turmas do oitavo ano de uma escola particular em Belo Horizonte, a partir da análise das atividades do livro didático adotado e das elaboradas pelos docentes. Palavras-chave: Imagens; Educação; GDV. 1 Introdução

Este artigo visa a uma discussão do trabalho com textos não verbais no ensino fundamental, apresentando como a Gramática do Design Visual (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006) – GDV –pode contribuir para o processo de ensino e aprendizagem da linguagem imagética, neste caso, com anúncios publicitários. Para tanto, apresenta-se um estudo de caso feito com as turmas do oitavo ano de uma escola particular em Belo Horizonte. Sabendo-se que a maioria desses estudantes têm treze anos de idade, é inegável o fato de que nasceram numa era amplamente influenciada pelos dispositivos eletrônicos. Dessa forma, conclui-se que as imagens estão bastante presentes no cotidiano desses estudantes. Contudo, segundo Bonamino, Coscarelli e Franco (2002), o ensino linguístico nas escolas parece estar muito focado no texto verbal.

A justificativa desse trabalho se revela justamente nesta constatação, a qual implica um problema grave, uma vez que se torna claro o descompasso entre a influência exercida pelas imagens e a pouca relevância que possuem no ensino. O gênero “anúncio publicitário” foi escolhido para ser tratado aqui, pelo fato de ser um dos conteúdos previstos para o oitavo ano e por ter grande pertinência no contexto dos adolescentes, já que constituem o público – alvo de muitas campanhas publicitárias. Assim, foram levantados alguns questionamentos: de que forma é trabalhada a interpretação de imagens na sala de aula? Como o “gênero anúncio publicitário” é estudado? De que maneira ele é sistematizado para os alunos? A metodologia de estudo desse gênero estimula a reflexão e o pensamento crítico dos educandos?

Dessa forma, o presente artigo se divide em três partes: Linguagem imagética: teorias de análise, Linguagem imagética: as práticas em sala de aula e Linguagem imagética: conclusões e perspectivas. Na primeira, são mostradas algumas reflexões sobre o ensino e aprendizagem da linguagem não verbal e uma síntese da GDV, a fim de apresentá-la como mais um recurso no exercício docente com a análise de imagens. A segunda parte analisa o trecho que aborda o gênero publicitário, do Livro Didático (LD) adotado pela instituição, uma atividade elaborada por um dos docentes da escola e uma sequência didática com foco na GDV aplicada para os alunos. Por fim, a última parte apresenta algumas conclusões acerca do trabalho realizado, a partir dos resultados obtidos.

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2 Linguagem imagética: teorias de análise

Apesar da certeza de que as imagens estão muito presentes no cotidiano da geração atual e de que elas exercem forte influência sobre esses estudantes, o relatório sobre exames do Saeb5 e do Pisa6 mostra que

[...] as dificuldades dos estudantes brasileiros com tarefas de níveis de proficiência mais abrangentes envolvem limitações em lidar com a diversidade textual [...]. Essa constatação do Pisa não é um caso isolado e se mostra consistente com os resultados verificados no Saeb. Ela revela a dificuldade dos alunos em interpretar elementos não verbais e de integrar informações do texto e do material gráfico. Indica também que essas habilidades não estão sendo suficientemente trabalhadas nas escolas brasileiras. (BONAMINO; COSCARELLI; FRANCO, 2002, p. 108).

Conclui-se, portanto, que, mesmo sendo necessário um trabalho consistente e sistemático com a interpretação de imagens, o ensino regular, de forma geral, ainda não acompanha essa demanda. Outra constatação importante se relaciona ao foco que o texto verbal possui em detrimento do não verbal. A noção de que imagens e outros elementos gráficos são textos (ou fazem parte deles) ainda pode causar estranhamento a grande parte da comunidade escolar, contribuindo para o ensino que prioriza o código escrito. Sobre esta informação, vale citar Rojo (2009), a qual afirma que: “[...] a escola – tanto pública quanto privada – parece estar ensinando mais regras, normas e obediência a padrões linguísticos [...]” (p.33). Desse breve panorama do ensino básico no Brasil, parte-se para a teoria da Gramática do Design Visual, que traz algumas alternativas interessantes para o trabalho com imagens em sala de aula. O objetivo da proposta de sistematização desse conteúdo com os alunos é contribuir para a formação de um sujeito crítico, que, de fato, leia, interprete os diversos códigos visuais utilizados para persuadir, fomentar desejos, criar hábitos, entre outros aspectos. Os autores Kress e van Leeuwen (2006) da GDV, a declaram como uma expansão da Gramática Sistêmico-Funcional de Halliday. Expansão porque diversos autores ligados à Semiótica Social – como Hodge, Kress, van Leeuven e Machin – e à Multimodalidade – Kress e van Leeuwen – mostram que as funções propostas por Halliday podem ser usadas como categorias gerais e abstratas, aplicáveis não somente à linguagem verbal, mas também a todos os tipos de semiose humana (BRITO; PIMENTA, 2009, p. 1). Segue, então, um breve resumo das categorias utilizadas pelos autores para a análise de imagens. Foi utilizada como referência a tradução dessa teoria, feita pelas autoras Brito e Pimenta (2009). Ao considerar a oração como uma representação,

                                                                                                                         5 Sistema de Avaliação do Ensino Básico.

6 Programa Internacional de Avaliação de Alunos.  

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Kress e van Leeuwen (2006) aplicam a metafunção ideacional de Halliday (2004), dividindo-a em duas categorias: as representações conceituais e as narrativas. No primeiro tipo, “temos uma imagem não com uma narrativa, mas sim uma relação de taxonomia entre seus participantes. [...] Nas representações narrativas, os participantes são colocados estando sempre envolvidos em eventos e ações.” (BRITO; PIMENTA, 2009, p. 3 e 8). A função interpessoal trata o significado como uma troca. “A oração é simultaneamente organizada como mensagem e como um evento interativo, envolvendo o falante (produtor da mensagem) e o ouvinte (HALLIDAY, 2004).” (BRITO; PIMENTA, 2009, p. 9). Os autores apresentam três dimensões interativas das imagens: o olhar (de demanda7 e de oferta), o enquadramento (distanciamento dos participantes da imagem em relação ao leitor) e a perspectiva (ângulo horizontal e vertical, por exemplo). Em relação à modalidade, pode-se dizer que, “na Semiótica Social, corresponde ao que se chama de “Plano da Semiose”, que exerce a função de uma categoria de comportamento (HODGE; KRESS, 1988, p.124) e que será expressa através de Marcadores de Modalidade.” (BRITO; PIMENTA, 2009, p.18). Assim como nos textos verbais, a modalidade se manifesta nos recursos que o autor tem para expressar sua opinião, como por exemplo, o uso de adjetivos, a linguagem não verbal também apresenta modalidade. Esses marcadores revelam muitas vezes a opinião de quem produziu a imagem. Segundo Brito e Pimenta (2009), são eles:

a) Representação (detalhamento). b) Contextualização: presença ou não de fundo (background). c) Saturação de cor. d) Modulação de cores. e) Diferenciação de cores. f) Profundidade. g) Iluminação. h) Brilho.

Os autores classificam a modalidade em quatro contextos fundamentais: a modalidade naturalística, a qual aproxima o real daquilo que estamos vendo na imagem, a abstrata, que “traz em si apenas o que seja essencial para a representação de uma imagem.” (BRITO; PIMENTA, 2009, p. 20); a tecnológica, a qual tem como essência o seu uso explicativo e prático (como plantas de construções). Por fim, temos a sensorial, em que “a realidade visual está baseada no efeito de prazer ou desprazer que a imagem causa no leitor”8. A função textual “se traduz através de arranjos composicionais que permitem a concretização de diferentes significados textuais”9. Tal composição apresenta três sistemas: o valor da informação, a saliência e moldura. O primeiro se refere à importância de cada elemento da imagem de acordo com a posição que ocupa em relação aos outros. O segundo item se refere ao destaque que um dos elementos da

                                                                                                                         7 O participante olha diretamente para o leitor, criando uma relação de afinidade, de sedução ou mesmo de dominação. (BRITO; PIMENTA, 2009)

8 Ibidem, p.22.

9 Ibidem, p.23.

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imagem pode receber, por meio de cores, bordas, sombreamento, entre outros efeitos, que poderão contribuir para que determinada parte da imagem “salte” aos olhos do leitor, independente da posição que ocupe dentro dela. Por fim, “a moldura desconecta os elementos de uma imagem, indicando se eles pertencem ou não a um núcleo informativo [...]”.10 Como já foi citado aqui, há também a questão da tipografia. Os textos podem apresentar diversos de tipos de letra, que produzem efeitos de sentido variados. Van Leeuwen (2006) apresenta diversos aspectos que também agregam sentido ao texto: “informações como a espessura (em negrito ou mais afilada), expansão (se condensada ou não), formato (cursiva, tipográfica), curvatura, conectividade (sem uso de separação por espaços), orientação (letras mais altas ou mais baixas), regularidade (de formato irregular), desenho próprio (exclusivo de uma determinada fonte) e alinhamento (centralizado, à esquerda, à direita ou justificado).” (BRITO; PIMENTA, 2009, p. 31) Com todas essas informações, o docente terá mais uma alternativa com a qual poderá contar no seu trabalho com análise de imagens, buscando seus prováveis impactos e sentidos produzidos. Essas reflexões irão possibilitar discussões que tratam dos levantamentos de ideologias e de mensagens que sugerem, o que será tratado no item a seguir. 3 Linguagem imagética: as práticas em sala de aula

São analisadas nesta seção: as partes do LD adotado pela instituição que tratam do gênero abordado e uma atividade elaborada pelo professor. Por fim, será apresentada uma sequência didática sobre algumas imagens de anúncios publicitários da grife Converse All Star®. As figuras a seguir constituem as páginas do LD que se propõem a abordar o gênero anúncio publicitário.

Figura 1 – Páginas 184 e 185

                                                                                                                         10 Ibidem, p.28.  

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Figura 2 – Páginas 186 e 187

Figura 3 – Página 188 e início da p. 189

Como foi possível perceber nas Figuras 1, 2 e 3, a parte do livro que tem como objetivo abordar o assunto “anúncio publicitário” parece propor uma análise de textos que falam sobre este gênero, e não do gênero em si. Não há propostas de interpretação de anúncios publicitários, mas sim de textos que explicam sobre tal gênero. Por este exemplar ser o livro do professor, foi possível ter acesso aos objetivos da unidade, em

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que constavam, entre outros: “Desenvolver habilidades de leitura de textos não verbais [...] conhecer o anúncio publicitário.” (CEREJA; MAGALHÃES, 2010, p.25).

O primeiro texto verbal que compõe o capítulo, intitulado “Linguagem publicitária”, é um trecho de um livro11 que explica e discute conceitos relacionados à publicidade. Já o segundo texto, “Tiro pela culatra” 12 , parece ser um artigo relacionado ao mesmo tema. As questões que os sucedem contribuem para que os alunos reflitam sobre publicidade, mas baseado no que os textos anteriores disseram, e não a partir de análises que os próprios estudantes podem fazer.

Conclui-se, portanto, que apesar de os textos selecionados pelos autores serem de ótima qualidade, trazendo informações muito relevantes, o LD apresenta esta lacuna, ou seja, o pouco estímulo para que os alunos utilizem tais (e outras) informações para análises do gênero. Posteriormente, na Figura 4, há uma atividade que propõe o estudo de anúncios. Mas, de qualquer forma, a parte de análise de imagens pode ser considerada superficial. Vale salientar que este exercício está no fim da unidade, na seção “Projeto”, em que se sugere uma atividade extra a ser realizada pela turma, que nem sempre é adotada pelos professores.

Figura 4 – Página 203

A seguir, uma questão13 elaborada por um professor da mesma instituição que adota o LD anteriormente mencionado.

                                                                                                                         11 CARVALHO, Nelly de. Publicidade – A linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 1996.

12 SANTAELLA, Lucia. Tiro pela culatra. Folha de S. Paulo. Caderno Mais, São Paulo, 7 mar. 2010.  

13 Segundo o autor da questão, as imagens utilizadas foram retiradas do site http//:www.converseallstar.com.br – Acessado em: julho de 2010.

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A partir da interpretação das figuras 5 e 6, responda: a) O que o autor quis dizer com “Use a alma do lado de fora?” (figura 5). b) Qual é a relação desse slogan com o produto anunciado? c) Quais são as características do público-alvo pressupostas pelos autores dos anúncios? d) Como você chegou à conclusão do item c? e) A partir do 2º anúncio, qual relação podemos fazer entre o estilo e o produto anunciado? f) Quais são os valores e as propostas de comportamento transmitidos pelos anúncios?

Antes de fazer qualquer consideração sobre a atividade, é importante lembrar que este é apenas um dos cinquenta exercícios considerados para esta pesquisa, e que, por uma questão de espaço, não puderam ser expostos aqui.

É possível perceber a clara intenção do professor em contribuir para um processo reflexivo e de pensamento crítico por parte do aluno (principalmente nos itens d, e e f). A escolha dos anúncios é outro ponto positivo desta questão, já que as imagens que os compõem atraem a atenção do estudante, além disso, o produto anunciado faz parte do cotidiano dos alunos.

Porém, apesar de haver o estímulo à inferência a partir desses textos, não há um estudo sistemático da parte gráfica, que poderia ampliar os recursos que os alunos teriam para analisar de maneira mais complexa a ampla possibilidade de sentidos e ideias contidos nos textos. A GDV traz justamente isso, ou seja, um conjunto de ferramentas que podem servir como alternativa para o estudo de imagens.

Utilizando as mesmas figuras, foram propostas outras questões que ainda serão descritas. Antes disso, consta uma breve análise desses anúncios a partir da GDV. No processo narrativo,

Figura  5  –  1º  Anúncio     Figura  6  –  2º  Anúncio    

tímido?

deixe seu estilo

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[...] os participantes são colocados estando sempre envolvidos em eventos e ações. Os vetores, assim como os verbos de ação na linguagem verbal, indicam a ação contida nos fatos apresentados em uma representação imagética, podendo ser representados através de setas ou até mesmo pelo posicionamento dos participantes representados ou objetos colocados na imagem, e que levam o olhar do leitor para determinado ponto da imagem. O participante representado (PR) pode ser o ator, de onde surge o vetor, ou a meta, que é para onde o vetor indica. (BRITO; PIMENTA, 2009, p.3)

Dessa forma, em relação à figura 5, pode-se afirmar que nela há a representação narrativa, com o processo de ação transacional como sendo o predominante. Tal conclusão pode ser feita, tendo em vista o ator, tênis, e as várias metas a que ele conduz (guitarra, computador, máquina fotográfica, etc.) por meio de vetores (linhas) que saem dele. É possível concluir a ideia de que o calçado dessa marca pode levar seu consumidor a conseguir todos os objetos (metas) representados na imagem.

Na figura 6, tem-se o exemplo da predominância da metafunção interpessoal; aquela em que há uma proposta clara de interação entre o produtor da mensagem e do ouvinte/ leitor. Considerando o olhar – primeira dimensão interativa da função interpessoal – percebe-se o olhar de demanda, ato de fala em que o participante representado olha diretamente para o leitor.

Nesse caso, um dos sentidos produzidos seria a identificação do observador com a imagem. Sabe-se que a fase da adolescência é um período em que o jovem busca identificação e se importa bastante com a opinião dos outros, por isso a timidez (característica levantada no texto verbal da imagem) é algo que pode ser considerado comum na fase em que o público alvo do anúncio se encontra. Tem-se a ideia de que o ALL STAR é uma espécie de solução para os tímidos, pois eles não irão precisar falar mais. O modo com que se vestem já irá transmitir a mensagem. Além disso, a relação produtor / ouvinte, fica bastante íntima com esse tipo de olhar, pois é bastante convidativo; e alguém tímido tem a tendência de olhar nos olhos de alguém com que tenha intimidade.

A partir dessas figuras, foram propostas as seguintes questões: a) Analisando as cores dos elementos verbais e não verbais da figura 5, qual correspondência pode ser feita entre o produto e o slogan? b) Observe os cadarços do tênis na figura 5 e cite uma possibilidade de função deles neste anúncio. c) Por que você acha que a disposição dos elementos na parte superior da figura 5 é circular? d) Por que esses elementos foram escolhidos para compor o anúncio? e) Reflita: uma pessoa tímida tem facilidade de olhar nos olhos como o modelo da figura 6? Explique a relação entre o slogan da figura 6, o produto anunciado e as características do público-alvo do anúncio.

De forma alguma, as questões elaboradas pelo professor precisam ser descartadas. A proposta acima apenas sugere outras possibilidades de exploração deste conteúdo. 4 Linguagem imagética: conclusões e perspectivas

Os resultados deste estudo mostraram que, embora a instituição abordada aqui tenha alto investimento em aparelhos eletrônicos, facilitando a exibição de imagens, os professores envolvidos ainda trabalham com os anúncios publicitários, enfatizando

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o texto verbal (principalmente, ambiguidades, metáforas e ironia) ou, em poucas situações, associam a parte verbal à não verbal presente no anúncio. Embora tenha sido possível mostrar apenas um exercício dos 50 analisados, essa constatação levou em conta o resultado geral das análises.

De forma semelhante, o livro didático adotado pela instituição não propõe o estudo do anúncio publicitário que dê a mesma importância para outras questões, como por exemplo, relacionadas à composição (cores, posição dos elementos, perspectiva, entre outros aspectos), propondo um trabalho sistemático com análise de imagens.

Quanto à receptividade dos alunos à sequência didática proposta, foi observado um resultado extremamente positivo, apresentando-se como uma das diversas possibilidades de abordagem desse gênero na escola, transcendendo o estudo da linguagem verbal que pode estar presente no anúncio. A GDV mostra-se, dessa forma, como mais uma teoria em que o professor pode se fundamentar para trabalhar este gênero com os estudantes. Apesar de a GDV ser complexa e extensa, o que foi apresentado aqui é apenas um recorte para exemplificar a sua aplicação na prática em sala de aula.

Em relação às perguntas feitas na introdução deste trabalho, o estudo de caso relatado aqui mostrou que, no contexto apresentado, a interpretação de imagens ainda tem pouco espaço nas aulas de Língua Portuguesa. E, quando há alguma atividade sobre o tema, não parece existir uma sistematização clara, com categorias bem definidas para tal análise. Quanto ao estudo do gênero anúncio publicitário, percebe-se que a linguagem verbal é mais enfatizada. Ainda que se almeje o estímulo ao pensamento crítico dos educandos, é necessário que eles também aprendam a “ler imagens”, (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006). A partir do exercício desta habilidade, o estudante terá a possibilidade de interpretar, realizar inferências e fazer associações, a fim de refletir sobre os diversos textos que o rodeiam.

As perspectivas para o ensino de Língua Portuguesa, especificamente relacionado à interpretação de imagens, são muito animadoras, já que diversas teorias sobre este tema vêm ganhando bastante espaço e credibilidade no meio acadêmico que não está ligado diretamente às artes visuais. Assim, um dos diversos desafios que se coloca, principalmente, para os educadores os quais ainda estão na academia é contribuir para a difusão dessas pesquisas científicas no âmbito escolar. Referências BONAMINO, Alicia; Carla COSCARELLI; Creso FRANCO. “Avaliação e letramento: concepções de aluno letrado subjacentes ao SAEB e ao PISA.” Dossiê: Letramento. Educação & Sociedade. Revista da Ciência da Educação. v. 23, nº 81. São Paulo: Cortez; Unicamp; Cedes. Dez, 2002. p. 91-113. http://www.cedes.unicamp.br/revista.html BRASIL; MEC. “Parâmetros Curriculares Nacionais.” 1998. Portal MEC. 20 de junho de 2011 <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/portugues.pdf>. BRITO, Regina Célia Lopes; PIMENTA, Sônia Maria de Oliveira. “A gramática do design visual.” In: PIMENTA, Sônia; AZEVEDO, Adriana; LIMA , Cassia. (Org.). Incursões semióticas:teoria e prática de GSF, multimodalidade, semiótica social e ACD. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2009. CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T.C. Português: linguagens, 8º ano. São Paulo: Atual, 2010.

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GRIBL, Heitor. Atividades de leitura de textos em gêneros multi- e intersemióticos em livros didáticos de Língua Portuguesa. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2009. HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, Christian M.I.M. An introduction to Functional Grammar. London : Hodder Education, 2004. HODGE, R.; KRESS G. R. Social Semiotics. Cambridge: Polity Press, 1988. JEWITT, C.; KRESS G.R. Multimodal Literacie. New York: Peter Lang, 2003. KRESS, G. R. Literacy in the new media age. London and New York: Routledge, 2003. KRESS, G. R.; VAN LEEUWEN T. Reading images: The grammar of visual design. London: Routledge, 2006. KRESS, G. R.; VAN LEEUWEN, T. Multimodal Discourse: The modes and media of contemporary communication. London: Oxford University Press, 2001. KRESS, G. R., LEITE-GARCIA, R., VAN LEEUWEN, T. “Semiótica Discursiva.” In: Van DIJK, T. A. El discurso como estructura y proceso. Barcelona: Gedisa Editorial, 2000. LEMKE, J. L. “Towards Critical Multimedia Literacy: Technology, Research, and Politics.” 2005. Handbook of Literacy & Technology. junho de 2011 <http://www-personal.umich.edu/~jaylemke/papers/reinking2.htm>. PETERMANN, Juliana. “Textos Publicitários Multimodais: Revisando a gramática do design visual1.” 9 de setembro de 2005. Anais - XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Acessado em: 20 de julho de 2011. <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R0413-1.pdf>. ROJO, R. H. R. “Coletâneas de textos nos livros didáticos de Língua Portuguesa: Letramentos possíveis.” In: COSTA VAL, M. G.; ROJO, R. H. R. (orgs.). Alfabetização e letramento: o que ensinam os livros didáticos?. Belo Horizonte: Autêntica/CEALE, 2007. ______. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. VAN LEEUWEN, T. “Towards a semiotics of typography”. Information Design Journal.14:2, 2006.

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O conflito ideológico de grupos sociais e a multimodalidade na construção de notícias - Deborah Gomes de Paula (PUC/SP - UNIP)

RESUMO: Esta comunicação situa-se na Análise Crítica do Discurso com vertente sócio-cognitiva e tem por tema a diversidade de estratégias utilizadas para a construção de notícias de um mesmo evento ocorrido no mundo. Tem-se por objetivo examinar a divergência ideológica entre jornais-empresa paulistanos, na construção da notícia e analisar as estratégias retóricas e suas relações com as sócio-interacionais na enunciação da notícia. O material foi coletado em jornais paulistanos, focalizando notícias relativas ao inusitado da atualidade. Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso; Discurso jornalístico; Multimodalidade; Ideologia e Cultura. Apresentação

Essa comunicação está situada na área da Análise Crítica do Discurso (ACD) vertente sociocognitiva e a Semiótica Social, e tem por tema as estratégias utilizadas pelo jornal-empresa, na construção do texto, privilegiando as expressões linguísticas e textos multimodais que ativam por meio das escolhas lexicais e imagéticas, emoções pelo ethos na interação comunicativa nos textos multimodais. Tem-se por objetivo examinar o léxico enunciado no texto, com enfoque cultural, buscando a partir dos marcos de cognição sociais a modificação do discurso, por meio de valores culturais e ideológicos.

Segundo Silveira (2000) a manifestação da representação em língua ocorre na inter-relação entre o texto-processo e o texto-produto, sendo o processo de natureza mental e o produto, a materialidade dessas formas de conhecimento.

De acordo com Guimarães (1999), as duas categorias semânticas que fabricam as notícias são Atualidade e Inusitado. A seleção dessas categorias é argumentativa, na medida em que o que Atualidade agrupa as informações do que está acontecendo no mundo e que não podem ser conhecidas/observadas pelos leitores e o Inusitado que decorre de uma ruptura com o marco das cognições sociais, de forma a criar uma quebra de expectativa para os leitores.

O material utilizado, neste trabalho, para análise está delimitado às manchetes dos jornais paulistanos: Folha de S.Paulo (FSP) e O Estado de São Paulo (OESP). O método adotado para a análise dos textos jornalísticos é o teórico-analítico, e tem por base Desse modo tem-se por base teórica a Análise Crítica do Discurso na inter-relação das categorias analíticas Discurso, Cognição e Sociedade propostas por Van Dijk (1997, 2012); e as categorias “dado” e “novo” propostas por Kress e van Leeuwen (2000).

Essa pesquisa se justifica, pois, a interioridade da formação discursiva jornalística, incorpora a criatividade lexical para atrair o público leitor. Os textos multimodais trazem novas perspectivas de análise, ao tratar das categorias de análise da Semiótica Social: “dado” e “novo” construídas com base nas cognições sociais do(s) grupo(s), selecionado(s) como auditório, pelo enunciador.

O texto jornalístico, a partir da intenção argumentativa, tem por objetivo conduzir a leitura do público-leitor, fazendo com que ele se identifique com o ponto de vista do enunciador. Durante o processamento da informação recebida no uso

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efetivo da língua, dependendo da focalização do fato no mundo, ocorre apagamento do processo histórico (discurso modificado). Dessa forma, a representação do fato traz características sociais e ideológicas que influenciam a formação da opinião. Nesse sentido, segundo Van Dijk (1997), o discurso jornalístico objetiva a construção da opinião, segundo a ideologia do poder, a empresa-jornal, para o seu público-leitor. Para o autor o discurso da notícia é institucionalizado e relativo à ideologia da empresa-jornal que tem por objetivo construir a opinião para seus leitores, de forma a dominar as suas mentes. Para Thompson (2002), construir a notícia como escândalo é frequente nos jornais pesquisados, principalmente as notícias relativas ao domínio político.

Para tanto, o discurso jornalístico estabelece a adesão com o publico leitor por meio das estratégias de sedução. Seduzir um público-leitor exige informações minuciosas e requer uma estratégia de retomada de suas cognições sociais, seguida de uma estratégia de transgressão. A transgressão de conhecimentos sociais é um procedimento cultural do brasileiro em seu cotidiano. Essa transgressão caracteriza culturalmente o brasileiro pela irreverência, seduzindo-o para viver um momento lúdico, descontraído. Segundo Thompson (2002) as estratégias propostas para apuração do escândalo são: estratégia de transformar o privado em público; estratégia de transgredir ou contradizer valores, normas ou códigos morais. Ambas as estratégias são utilizadas na construção do escândalo, de forma recursiva e não ordenada.

Contextos de linguagens

A interação entre jornal-empresa e público implica a noção de contexto (Van

Dijk, 2000) para se entender as notícias como discurso, ou seja, a prática discursiva sócio-interacional que constrói as notícias, para serem publicadas no veículo jornal. Entende-se que o contexto, também é hierárquico e que se esquematiza de forma global e local por um conjunto de participantes que se definem por suas ações e funções.

Tem-se por pressuposto de que há uma interação entre o individual e o social, pois, este, guia o individual, mas o individual modifica o social. Tal pressuposto é base da Análise Crítica do Discurso, em quaisquer de suas vertentes. Sendo assim, entende-se que há uma inter-relação entre as categorias analíticas Sociedade, Cognição e Discurso, pois cada uma dessas categorias se define pelas demais.

A Sociedade é vista como um conjunto de grupos sociais, sendo que, cada qual é um agrupamento de pessoas que têm os mesmos objetivos, interesses e propósitos e, por essa razão, focalizam o que acontece no mundo, a partir do mesmo ponto de vista; isso resulta em uma forma de avaliação (positiva/negativa) contida na representação mental como forma de conhecimento, que é construída socialmente.

A Cognição refere-se às representações mentais-tipos e gêneros de discurso que atuam na interação do individual (evento discursivo particular) e o social (cognições sociais intra, inter e extragrupo social). Todas as formas de conhecimento seja individual ou grupal são expressas em textos, no e pelo Discurso. Assim, os conhecimentos sociais são modificados embora contenham raízes históricas, de forma que o velho (já sabido) guia a construção do novo (informação nova) e este modifica o velho.

Para Van Dijk (2000) a interação entre jornal-empresa e público-leitor implica a noção de contexto (global e local), para se entender as notícias como discurso, ou seja, o discurso da notícia é uma prática discursiva sócio-interacional que constrói as notícias, para serem publicadas no veículo jornal.

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Para o autor (1997) o discurso da notícia é institucionalizado e relativo à ideologia da empresa-jornal como todo discurso institucionalizado, o discurso da notícia compreende a relação das categorias discursivas: Poder, Controle e Acesso.

Esta comunicação está delimitada às categorias Controle (redação final) e Acesso (veículo jornal) e trata das estratégias utilizadas pela redação do jornal, embora se saiba que a ideologia do Poder, que é o jornal-empresa, atua sobre o Controle da redação para que o texto enunciado tenha Acesso ao público.

As categorias Poder, Controle e Acesso objetivam construir as opiniões dos leitores. Uma opinião é uma forma de conhecimento avaliativa, que não pode ser tratada como verdade, na medida em que não pode ser conferida no mundo. Logo, o leitor que não é expectador do evento noticioso torna-se obrigado a aceitar a notícia que dá Acesso a ele.

A notícia como discurso jornalístico participa como um dos discursos da mídia. Segundo Van Dijk (1980), a fabricação da notícia ocorre em várias etapas. Compreendo um contexto local e um global. O contexto global é definido por seus participantes que são agrupados pelas categorias Poder, Controle e Acesso.

O contexto local é definido por atores, pessoas, que são responsáveis pela fabricação da notícia, as quais são guiadas por uma determinada escala de valores ideológicos do Poder.

Por meio de textos jornalísticos extraídos dos jornais paulistanos Folha de S. Paulo (FSP) e O Estado de São Paulo (OESP) apresentam-se exemplos de que a linguagem das negociações entre redator/leitor é realizada a partir de uma interação que busca construir um acordo de forma a recorrer aos conhecimentos sociais comuns entre eles. As análises realizadas seguiram um procedimento teórico-analítico e estão delimitadas às estratégias utilizadas pela redação dos jornais selecionados. O método adotado para a análise dos textos teve como ponto de partida a seleção lexical utilizada nas manchetes e para os segmentos selecionados e inter-relacionados.

A seleção lexical é um recurso de grande importância, pois, é através dela que se estabelecem as oposições, os jogos de palavras, as metáforas, o paralelismo rítmico, etc. Existem palavras que, colocadas estrategicamente no texto, trazem consigo uma carga poderosa de implícitos.

As análises apresentadas têm como principal pressuposto o marco das cognições sociais. Segundo Silveira (2000), o marco das cognições sociais é um conjunto de conhecimentos que estabelecem parâmetros avaliativos para os seres e suas ações no mundo, a partir do que é contemporaneamente vivenciado modificando a experiência do já vivido anteriormente.

Durante a interação comunicativa, considerar-se a orientação argumentativa para reformulação do marco de cognição social, sendo assim, a refutação é uma estratégia importante, pois, na mudança de orientação argumentativa estabelece meios de inclusão de argumentos por meio da aceitabilidade ou rejeição.

De acordo com as teorias dos contextos proposta por Van Dijk (2012) um contexto de linguagem que decorre do uso efetivo da variedade e variação da língua, por exemplo, cada um tem um contexto de linguagem. As instâncias contextuais são:

O contexto cognitivo em que as formas de conhecimento são ativadas no momento da interação – o que a pessoa faz como inferência e processa para memória de trabalho é informação, ou seja, pela relevância, ativa as inferências e constrói o contexto. O contexto discursivo decorre da situação de comunicação (eu x tu no aqui e agora) projeta-se o contexto global. No contexto social durante o processamento da informação, as pessoas entendem de modos diferentes, porque baseiam-se em experiências pessoais, assim as pessoas produzem sentidos diferentes para o mesmo

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texto. Desse modo, o contexto passa a ser modelo (estruturas mentais individuais) diferente de esquemas que são estruturas sociais.

Entre os modelos individuais e esquemas sociais, os indivíduos em sociedade nas interações comunicativas escolhem papéis sociais, assim, os papéis sociais adotados buscam a preservação da face. Os papéis são unidades psicossociais que constroem uma estrutura para a sociedade. (Moscovisci, 2010)

Na perspectiva do Interacionismo simbólico cada um escolhe um papel e um conjunto de papéis para se inter-relacionar; por exemplo, a expectativa em relação ao papel do político (cada sociedade representa de uma maneira), dependendo das ações e do grupo social os papeis tem caracterizações diferentes e estabelecem relações sociais diferentes. A teoria dos papéis pressupõe que ao ler os textos situados nos discursos, é possível verificar quais papéis sociais aquele discurso considera para construir a referenciação no texto. No discurso jornalístico especificamente, o que é notícia e como estabelece similitude com o cotidiano quais são esses papéis. Na atual contemporaneidade, as imagens, sons e desenhos cumprem um papel importante na composição dos sentidos da produção textual de modo geral, assim para análise dos modos de representação das relações e interações sociais é preciso explicitar os implícitos, assim, entre as categorias propostas por Kress e Van Leewen (2000) para a análise da imagem, delimitou-se à noção de “dado” e “novo”, sendo, informações verbais e não verbais localizadas à esquerda na construção imagética consideradas informações conhecidas (dado) e à direita, informações novas (novo) ou que o enunciador tem interesse em veicular como mais relevantes. Discussão e Resultados Obtidos

Os resultados indicam que os conhecimentos avaliativos são formados na

inter-relação entre o individual e o social, reproduzida no e pelo discurso, e pela cognição social, guiado pela cultura do grupo social no qual está inserido, apesar da diversidade e variabilidade dos valores e normas que regem a conduta dos indivíduos em contextos específicos. Os resultados obtidos indicam que: 1. como a notícia é organizada no eixo do tempo por uma cronologia, as estratégias utilizadas diferenciam-se por construir a narrativa: 1.1 pelo suspense, de forma a recorrer às modalidades do <<ser + parecer>>, para após fazer a revelação;

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Texto I

No texto I temos no texto expandido da notícia: Diante do silêncio do contraventor, alvo central da comissão, parlamentares podem avançar na quebra do sigilo nacional da empreiteira. O contraventor Carlinhos Cachoeira negou-se ontem a responder às perguntas elaboradas pela CPI que se dedica a investigar o escândalo do qual é pivô. O impasse gerado por sua falta de colaboração teve um efeito colateral indesejado pela base aliada: colocou a Delta no alvo da CPI, que deve avançar na quebra de sigilo nacional da empreiteira. Com ar irônico, que beirou o deboche, Cachoeira repetiu que só vai falar após sua audiência judicial, marcada para 31 de maio e 1º de junho. Quarenta perguntas depois, a CPI acatou a sugestão da senadora Kátia Abreu (PSD-TO) para encerrar a sessão. “Estamos aqui perguntando a uma múmia. Não vou ficar dando ouro para bandido”, disse. Ainda assim, houve embate entre governo e oposição: de um lado, os aliados do Planalto e o PT, que tentaram envolver o governador de Goiás, o tucano Marconi Perillo, no esquema de Cachoeira; de outro, os tucanos, que fizeram perguntas que citavam o governador do Distrito Federal, o - petista Agnelo Queiroz, que teve assessores flagrados em negociações com Cachoeira. (Págs. 1 e Nacional A4, A6 e A7)

No texto I veiculado pelo jornal O Estado de São Paulo está focalizado a negação do ato de falar, ou seja, na construção da notícia a partir da manchete temos o verbo “calar” que significa segundo a expansão da notícia no lide a ideia de “não falar” retomada pela escolha lexical: silêncio, negou-se a responder, falta de colaboração progredindo para as avaliações: ironia, deboche, múmia e bandido. Sendo que, todas essas informações estão encapsuladas na foto utilizada na Primeira Página, uma vez que Carlinhos Cachoeira representado aqui como contraventor, está com uma mão em frente à boca e com um olhar “sarcástico”.

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Texto II

No texto II temos no texto expandido da notícia: O bicheiro Carlinhos Cachoeira irritou a CPI que o investiga ao se negar a responder 30 das 60 perguntas feitas por parlamentares durante duas horas e meia de depoimento, alegando que falará antes à Justiça. Disse, porém que se for convocado, terá “muito a dizer”. Integrantes da CPI o chamaram de “marginal” e “arrogante“. ‘Não’ por 2 horas e meia “Eu não falarei nada aqui, Carlinhos Cachoeira contraventor “Estamos perguntando para uma múmia, Kátia Abreu (PSD-TO) senadora “Foi um espetáculo grotesco de um marginal, Álvaro senador

No texto II, veiculado pelo jornal Folha de S.Paulo a negação indica justamente o contrário, ou seja, que Carlinhos Cachoeira, representado aqui como bicheiro, tem muito a falar, segundo uma narrativa visual. De acordo com seleção lexical temos na progressão do texto a ressemantização das representações tanto de Carlinhos Cachoeira quanto de suas “pretensas” ações: - negar a responder 30 do total de 60 – obtiveram algumas respostas; - durante duas de depoimento – estabelecendo uma cronologia temporal; - falará antes à Justiça; terá muito a dizer – falará com algumas condições e se for convocado pela Justiça ( entende-se que a noção de justiça está hierarquicamente superior à instância da CPI e de seus participantes); Eu não falarei nada aqui (nessa instância e condições) - representado por marginal, arrogante, contraventor, múmia encapsulado por: espetáculo grotesco de um marginal.

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De acordo com Thompson (2002), as normas que regem transações financeiras são também propensas ao escândalo, especialmente quando as transgressões envolvem séria desonestidade e corrupção, por exemplo, no caso da CPI para apurar as ações de Carlinhos Cachoeira.

Para Thompson, existem escândalos que são transgressões de segunda ordem, onde o foco inicial da atenção se desdobra desviando o foco para outro lugar, ou seja, a postura de indignação dos participantes da CPI. 1.2 pelo escândalo de forma a se referir a ações ou acontecimentos que implicam certos tipos de transgressões que se tornam conhecidos de outros e são suficientemente sérios para provocar uma resposta pública (cf. Thompson, 2002);

'Ele pode não falar nunca', afirma advogado de Cachoeira

Cachoeira fica calado em CPI

Por Cartunista Alpino | Blog do Alpino – qua, 23 de mai de 2012

Texto III Os gestos adquirem função de interjeição, informação de base cultural, um uso

do brasileiro para estabelecer sentido, é uma maneira de estabelecer diálogo quando o interlocutor apresenta uma discordância com o locutor. Desse modo, se considerarmos o gesto como traço de similitude com o cotidiano das pessoas. O enunciador ao construir a opinião elaborou seu texto a partir do contexto zero – descontextualizando do marco de cognição inicial, para que no uso efetivo adquirisse função de interjeição, pois adquire outra função, nesse caso de criar a indignação frente a um fato político, reformulando o marco de cognições. 2. a estratégia retórica prioritária é a construção de um acordo com os leitores, de forma a recorrer a seus marcos de cognição social e, assim, seduzi-los a ler as notícias do jornal.

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Texto IV

O texto IV apresenta o enfoque da notícia a partir dos marcos de cognição

sociais que referem-se à família, lar, inocência, lealdade, pois a pessoa representada é a esposa de Carlinhos Cachoeira que no jornal declara: “O Carlinhos que eu conheço faz caridade”. De acordo com a multimodalidade a foto está centralizada mas, em relação à notícia logo à direita temos o seguinte título: “Cachoeira deu R$ 100 mil a assessor de senador, diz PF”.

Desse modo, temos o verbo fazer como auxiliar para transformar o substantivo caridade em verbo, assim passa a funcionar como fazer caridade é igual a doar. A análise das categorias “dado” e “novo”, contribui muito, pois a função sistêmica projetada no uso efetivo da língua estabelece uma outra função, podendo a partir da frequência de uso, transformar-se em enunciados clichês. Por meio dos processos de gramaticalização, as funções projetadas no uso efetivo da língua, apresentam organização semântica e linguística de modo a atender propósitos comunicativos, assim temos, de modo recursivo, atribuição de sentidos que ao incorporar as funções pragmáticas (individuais e sociais) transformam as funções sistêmicas.

Em síntese, constata-se que os jornais selecionados têm como estratégia

jornalística caracterizar alguns movimentos sociais por uma designação mais hierarquizada, uma vez que o público-leitor, no centro dos conflitos sociais, precisa de uma ordem no caos dos acontecimentos e o jornal presta esse serviço. Como os jornais estão em constante interação, é possível constatar uma interpenetração na representação do fato noticioso e de como é tratado em cada jornal. Conclui-se que os jornais direcionados a grupos sociais mais populares constroem suas notícias dando preferência ao inusitado e ao escândalo. Os jornais direcionados a grupos sociais mais elitistas constroem suas notícias dando preferência à atualidade e ao suspense.

Referências Bibliográficas DIAS, A. R. O discurso da violência: as marcas da oralidade no jornalismo popular. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

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DIJK, Teun A. Van. Discurso e Contexto. São Paulo: Editora Contexto, 2012. El discurso como interaccion social – estudos del discurso: introducción multidisciplinaria. Volumen 2. Gedisa Editorial, 2000. Racism y análisis crítico de los medios. Paidós Comunicación: Barcelona, Espanha, 1997. KRESS, G. y T. v. LEEUWEN (1990) Reading Images. Geelong. Vic.: Deakin University Press., 2000. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 2º edição. Trad. Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2002. MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. São Paulo: Vozes Editora, 2010. SILVEIRA, Regina Célia Pagliuchi. “Opinião, marco de cognições sociais e a identidade cultural do brasileiro: as crônicas nacionais”. In: Português língua estrangeira: leitura, produção e avaliação de textos. (org.) Norimar Júdice. Niterói: Intertexto, 2000. THOMPSON, J. O escândalo político: Poder e Visibilidade na Era da mídia. São Paulo: Vozes Editora, 2002.

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A internet e os riscos da língua na sociedade contemporânea - Eliane Aparecida Goulart Mendes

RESUMO: A revolução digital afetou substancialmente a comunicação escrita dos adolescentes. Nesse sentido, pode-se inferir que, os novos modos de comunicação os quais surgiram com a evolução tecnológica têm influenciado, sem dúvida, a escrita dos adolescentes, como também têm acompanhado a vida adulta, influenciando, assim, a vida profissional e acadêmica.

PALAVRAS CHAVE:Internet;linguagem e escritura formal

Com o advento de novos recursos e ferramentas comunicacionais, o internetês, nome dado à grafia abreviada utilizada na Internet, acabou se desenvolvendo e cristalizando-se à medida que a rede mundial de computadores evoluiu. Muitos indivíduos veem no internetês, uma espécie de "língua" oficial dos jovens conectados, um mal iminente, à espreita de corromper a forma padrão do idioma e de tornar o patrimônio da língua uma grande sala de bate-papo, repleta de flw ["falou"], blz ["beleza"], fds [“fim de semana”] e demais abreviações informais que, em geral, os adolescentes usam para se comunicar.Convém ressaltar que esses indivíduos não têm refletido no uso da língua,como também não estabelecem o discernimento entre locutor e interlocutor, não fazendo, assim, em muitas situações,uma escolha linguística adequada ao contexto discursivo,já que sempre houve uma linguagem para cada tipo de contexto. A partir da análise de documentos escritos na Internet por alunos do ensino básico, de entrevistas realizadas com profissionais desses dois níveis e com pais de adolescentes, bem como através de depoimentos de usuários da língua, constatou-se que é relevante realizar esta pesquisa.

Nesse sentido, acredita-se que uma comunicação desavisada no ensino básico afeta substancialmente a vida acadêmica do indivíduo e, consequentemente, o ambiente de trabalho. Desenvolver uma pesquisa contemplando a língua portuguesa empregada na rede contribui indubitavelmente para que os indivíduos se conscientizem de que a escritura formal não pode ser considerada supérflua, como também essa preocupação levará os adolescentes a refletirem sobre essa problemática, a fim de que, no futuro, possamos diminuir o número de analfabetos funcionais que vem crescendo na graduação e no mercado de trabalho. Assim, tal pesquisa poderá transformar essa realidade caótica em que se encontra o emprego da língua portuguesa pelos adolescentes, em especial, do Ensino Médio do Colégio Santa Rita –Fasar. Dentro dessa perspectiva,tem-se como objetivos apontar os riscos da língua na Internet, propondo, assim, uma reflexão acerca dessa temática; conscientizar os internautas da necessidade de discernimento entre linguagem virtual e linguagem formal;mostrar a importância de se aprender a norma culta da língua, uma vez que esta não pode ser considerada supérflua na vida moderna;destacar que desde o surgimento da Internet, em meados dos anos 90, houve muita mudança nos hábitos de escrita e comunicação no mundo todo.

Sabe-se que primeiro surgiu o e-mail, depois vieram as salas de bate-papo e os comunicadores instantâneos (como ICQ e MSN) e, finalmente, os blogs e as redes sociais (Orkut, Facebook, Twitter etc.), hoje tão populares entre os adolescentes

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quanto diários e papéis de carta um dia já foram. Dentro dessa concepção, pode-se considerar que a invasão da linguagem digital na linguagem escrita tem sido algo frequente na vida dos adolescentes. Sendo assim, decidiu-se adotar como metodologia a realização de uma análise de documentos escritos na Internet por alunos do ensino básico, de redações e trabalhos realizados em salas de aula, depoimentos de usuários da língua e também a realização de entrevistas com profissionais da área de Letras e de Pedagogia, com alguns adolescentes e seus pais. Para ampliar a pesquisa, foi solicitado aos alunos a construção de um glossário empregado por eles no contexto virtual. Para nortear a discussão teórica deste trabalho foram lidos os seguintes autores: Blikstein, Saut, Fasciani, Paulo Freire, Costa, Levy, Tiba, Koch, Orlandi.

Diante da disputa acirrada no mundo do trabalho, a comunicação é considerada de vital importância na formação educacional dos indivíduos por representar uma relação de poder, o que tem garantido êxito aos profissionais nos concursos, entrevistas ou em quaisquer outros desafios que tenham de suplantar na vida moderna. Em conformidade com SAUTCHUK(2011) em seu livro Perca o medo de escrever:” O ser humano é por natureza e por definição científica um ser gregário e um ser que não pode viver sem se comunicar.”Para BLIKSTEIN em sua obra Técnicas de comunicação escrita: “Comunicar-se bem ou escrever bem não é luxo, nem exibicionismo, é uma questão de sobrevivência”(2006;p.19).

No entanto, muitos adolescentes e jovens não têm tido consciência de que escrever bem é indispensável ao ser humano e que isso deve ser priorizado desde cedo. Dentro desse contexto, pretende-se por meio deste projeto destacar a influência da escritura virtual na linguagem dos adolescentes no mundo contemporâneo, buscando identificar as causas, como também propor uma reflexão acerca dos riscos da língua na Internet e suas relações na sociedade contemporânea. Tendo em vista que, desde o surgimento da Internet, a linguagem passou por várias mudanças nos hábitos de escrita e comunicação no mundo todo,o que torna relevante realizar um estudo aprofundado sobre suas influências no processo de comunicação escrita atual dos adolescentes.

A partir da evolução tecnológica, percebeu-se o surgimento de novos gêneros textuais, novas formas de interação, novos métodos de aprendizagem, bem como propiciou novas formas de ensinar e de aprender. Esse novo mundo construído a partir das relações via Internet e das novas práticas sociais da linguagem tem por finalidade a promoção do conhecimento com a utilização de novas tecnologias.Nesse sentido,propõe-se,aqui,uma reflexão acerca da linguagem e o papel dos usuários da Internet na aquisição do conhecimento.

Na sociedade contemporânea, é visível que os indivíduos se encontram rodeados por novas tecnologias,um bombardeio e rapidez de informações, tornando o indivíduo cada vez mais fascinado por essas tecnologias.Todo esse aparato tecnológico tem invadido nossas vidas, proporcionando novas formas de comunicação. Observa-se que os internautas almejam uma comunicação cada vez mais acelerada, o que tem resultado na transgressão das regras gramaticais básicas, problemas ortográficos, empobrecimento do vocabulário e abreviações não oficializadas, afetando, assim, significativamente, a escrita.

Dessa forma, constata-se o aparecimento do internetês, o que dificulta a vida daqueles que não sabem discernir a linguagem coloquial da formal, isto é, fazer as escolhas linguísticas para cada contexto. Ao buscar uma forma mais ágil para se comunicarem, acabam cometendo transgressões das regras gramaticais básicas, empobrecimento do vocabulário ou abreviação de forma incorreta, além de, em alguns momentos, fragmentarem o conhecimento e não interpretarem da maneira

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correta. Esses comportamentos podem contribuir para o crescimento do número de analfabetos no país, o que tem preocupado profissionais da educação, tendo em vista que tais dificuldades precisam ser sanadas no ensino básico.

Diante dessa realidade, é necessário atentar-se não só para os recursos tecnológicos que surgem a cada instante, mas também para as influências que as mesmas têm apresentado com seu surgimento, especialmente em um país como o Brasil. Em consonância com o jornal Correio do povo, (Set 2005),

75% da população brasileira na faixa etária dos 15 aos 64 anos não sabe ler e escrever plenamente, ou seja, identifica letras e palavras, mas não consegue usar a leitura no seu cotidiano. São os chamados analfabetos funcionais, a maioria da população do país. Na outra ponta, apenas 25% da população nessa mesma faixa etária é alfabetizada, tem domínio pleno da leitura.

A sociedade contemporânea está cercada dos mais diferentes recursos

tecnológicos, tais como: aparelho celular, caixas eletrônicos nos bancos, Internet, Smartfone,Tablets, entre outros. Os avanços surgem com uma velocidade nunca vista em outros tempos, tem-se acesso a inúmeras informações e das mais diversas fontes que, por fim, levam o indivíduo a se sentir desinformado, uma vez que muitas vezes não há como acompanhar esse ritmo acelerado. Dentro dessa perspectiva, nota-se visivelmente que os adolescentes têm acesso fácil às informações, entretanto não conseguem transformá-las em formação, gerando, desse modo, fragmentação do conhecimento.

Uma das preocupações principais é quando todas essas tecnologias passam a influenciar algumas das atitudes dos adolescentes, já que, segundo Fasciani (1998, p. 119), “Nenhum instrumento ou tecnologia inventada pelo homem pode ser intrinsecamente positivo ou negativo, certo ou errado, útil ou perigoso. É só a utilização que disso se faz que pode ser julgada com regras éticas.”

Percebe-se que o público jovem, ao utilizar com frequência a Internet para se comunicar principalmente nos “chats”, aos poucos tornam seu raciocínio limitado, já que o discurso empregado nas salas de bate-papo caracteriza-se pelo uso de linguagem reduzida,onomatopeias,gírias,”emoctions”,”caracteretas” e abreviações, sendo que, a utilização frequente dessa linguagem pode interferir nas produções textuais e trabalhos realizados pelos adolescentes na sala de aula e, consequentemente, no futuro,invadir o ambiente de trabalho.Dentro desse contexto, torna-se importante refletir se essas influências são salutares ou se estão gerando obstáculos no processo de leitura e escrita, como, por exemplo, dificuldades para separar a norma culta da coloquial e para a interpretação de textos. Vale salientar que a maioria das características do pensamento e da expressão fundadas na linguagem oral está relacionada com a interiorização do som. As palavras pronunciadas são ouvidas e internalizadas. Com a escrita, precisa-se de outro sentido: a visão. As palavras não são mais ouvidas, mas vistas; todavia, o que se vê não são as palavras reais, mas símbolos codificados, que evocam na consciência do leitor palavras reais; o som se reduz ao registro escrito. Daí se considerar os riscos da língua na Internet.

A escrita está presente no cotidiano, seja em uma missiva, em uma notícia lida em revista ou jornal, no bilhete ou, então, nos correios eletrônicos. Nesse sentido, pode-se afirmar que ela vem sendo considerada cada vez mais importante e prioritária na vida de todos. No mundo contemporâneo comunica-se através da escrita, ainda que

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de forma diferente daquela feita por meio das cartas, é algo que faz parte da vida dos adolescentes, influenciando-os de forma positiva ou não.

Segundo Paulo Freire (2003, p. 22), “Sim, pela primeira vez nossa humanidade já tão velhinha, as pessoas estão se conhecendo primeiramente pela palavra escrita. E lida, é claro. [...] Jamais, em tempo algum, o brasileiro escreveu tanto. E se comunicou tanto. E leu tanto. E amou tanto”.

A proliferação da Internet no mundo tem modificado os costumes da população, inclusive as formas e recursos utilizados para a realização da comunicação. Hoje, as formas de ler e escrever já não são mais as mesmas. Na concepção de Costa (2005, p.24),

Quanto ao processo interativo de produção discursiva na conversação face a face e nas salas de bate-papo (chats) na Internet, com implicações no uso do código escrito e nas escolhas linguísticas mais próprias da linguagem espontânea e informal oral cotidiana, há algumas semelhanças entre ambas as conversações: tempo real, correção on-line, comunicação síncrona, linguagem truncada e reduzida etc. Mas há também algumas diferenças que, contudo, confirmam o processo simultâneo de construção da linguagem e do discurso.

A revolução na escrita é muito marcante no contexto atual, uma vez que é

veloz, acontece de forma instantânea e surpreende os que a idolatram. Em relação àqueles que a rejeitam, consideram esta escrita prejudicial aos alunos desde a fase de alfabetização, bem como na fase da adolescência. Na verdade, mesmo que essa forma de escrita traga influências negativas para o processo comunicacional, é possível depreender dela alguns aspectos relevantes,tais como:independente da linguagem empregada na escrita, os internautas se fazem entender,estimula os retraídos ,promove a interação social etc.Dentro dessa ótica,não se trata de julgar,ou considerar apenas os desvios em relação à norma culta,mas é mais sério do que isso,é considerar o processo de comunicação com todas essas alterações,e,sobretudo, a conscientização da escolha linguística para cada contexto.

Vale acrescentar que tal linguagem influencia na escrita desses adolescentes quando se tornam adultos,conforme se corroborou em algumas entrevistas realizadas com pais de adolescentes e com profissionais de Letras e de Pedagogia. Portanto, a Internet está transformando os hábitos de escrita da população mundial. Assim ocorre igualmente com nossas formas de comunicação, que agora passam a ser também virtuais. Lévy (1996, p.15) destaca que, “A palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado por sua vez de virtus, força, potência. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência e não em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado, no entanto, à concretização efetiva ou formal. A árvore está virtualmente presente na semente.”

Pode-se inferir que essa força existente na virtualidade está presente no cotidiano, pois há comunicações com caixas eletrônicos de bancos, trocam-se correspondências através do correio eletrônico, leem-se textos na tela do computador e, com isso, a escrita também está passando por uma metamorfose, já que se tem agora o computador como ferramenta para novos modos de comunicação e mediação do processo de ensino-aprendizagem. É importante destacar que, no diálogo virtual, o uso da linguagem abreviada, dos “emoticons”, das “caracteretas” é frequente, já que não existe a expressão facial. Pode-se diferenciá-la da conversa telefônica, que também é à distância. Porém, na comunicação virtual não é possível sentir a

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entonação da fala, nesse caso, de quem escreve. Então, para evitar as incompreensões, os internautas utilizam os mais diversos recursos.

Diferente dos adolescentes de gerações passadas, os de hoje contam com o computador, surgindo como uma espécie de fuga aparentemente menos perigosa. Os pais acreditam que seus filhos estão seguros, por passarem várias horas em frente à máquina, desfrutando de jogos ou navegando na Internet. No entanto, os adultos desconhecem, muitas vezes, os perigos que a virtualidade pode proporcionar no desenvolvimento do indivíduo, ainda que este não seja o foco principal deste artigo, pode-se salientar que, na geração passada, fechar-se no quarto era um castigo dos mais comuns que os pais aplicavam quando seus filhos faziam o que não deviam.

De acordo com Tiba (2005, p. 84) ,

Fechar-se no quarto hoje é estar longe da família, mas conectado ao mundo via Internet, telefone, televisão...assim, há muitos jovens que não precisam sair de casa para ir para as esquinas e padarias, pois do quarto entram nas esquinas e padarias virtuais. Nestas, assim como nas presenciais, existem boas e más companhias e bons e maus artigos a serem comprados. Existe a segurança física de estar dentro do quarto em casa, mas a insegurança virtual ronda a sua vida.

Sendo assim, é necessário que a família participe dessa “realidade virtual”,

procurando saber quais os “sites” preferidos pelos filhos e, caso os assuntos não sejam saudáveis, é importante o diálogo entre os pais e os filhos, para que eles compreendam que assim como nas ruas, a Internet oferece diversos perigos aparentemente inofensivos.

Para Lévy (1996), um texto digitalizado permite novos tipos de leitura: uns textos se conectam a outros por meio de ligações hipertextuais, possibilitando o exame rápido de conteúdo, acesso não linear e seletivo do texto, segmentação do saber em módulos, conexões múltiplas, processo bem diferente da leitura em papel impresso. O autor chama este processo de continuum variado, que se desenrola entre a leitura individual de um determinado texto e a navegação em vastas redes digitais, que pode ser realizada por um grande número de pessoas. Grande parte dos avanços tecnológicos está no processo evolutivo da comunicação, conduzindo-se para uma maior democratização do saber e da informação.A comunicação virtual introduz um conceito de descentralização da informação e do poder de comunicar. Todo computador, conectado à Internet, possui a capacidade de transmitir palavras, imagens e sons. Não se limita apenas aos donos de jornais e emissoras; qualquer pessoa pode construir um site na Internet, sobre qualquer assunto e propagá-lo de maneira simples.

O espaço cibernético tem se tornando um lugar essencial, um futuro próximo de comunicação e de pensamento humano. Esse espaço abre possibilidades de comunicação completamente distinta da mídia clássica, pois como afirma Lévy (2000.p.13), “[...] todas as mensagens se tornam interativas, ganham uma plasticidade e têm uma possibilidade de metamorfose imediata”.

É aqui que se instalam as diferenças entre a interface da escrita (papel) e a interface virtual.Segundo Koch (2002), “todo texto é um hipertexto, partindo do ponto de vista da recepção. Sob sua ótica, tratando-se da relação do hipertexto eletrônico, a diferença incide somente no suporte e na forma e rapidez do acessamento.”Ao relacionar com a assertiva de Koch,vale destacar que essa agilidade leva os adolescentes a criarem e recriarem a linguagem no processo de construção do

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discurso,uma vez que ,para manterem a comunicação, utilizam-se de múltiplos recursos linguísticos.Ao mesmo tempo que veem no hipertexto uma avalanche de possibilidades para estabelecerem a comunicação ,acabam fragmentando o conhecimento. Nessa perspectiva, surge o papel dos profissionais da educação que devem orientar os educandos para capacitá-los no uso dom hipertexto e no discernimento do emprego da linguagem.

Uma das marcas da globalização é a velocidade com que evolui a tecnologia. Desde o seu advento, hoje, ainda com mais intensidade, a informática, responsável pelo avanço da tecnologia, tem contribuído para a melhoria da qualidade dos serviços, em todas as áreas de conhecimento, além da rapidez e precisão de dados com que tais serviços são executados. A rede mundial de computadores, plugados mundialmente, permite ao usuário o acesso a informações do mundo todo. Desse modo, ele troca, armazena e obtém informações globalizadas. Neste sentido, o desenvolvimento e a utilização da Internet acabaram produzindo, entre seus usuários, uma linguagem própria, repleta de termos típicos, ou seja, todo usuário, de uma maneira ou de outra, acaba compreendendo o conjunto da rede e os termos que determinam seu conteúdo e funcionamento. As expressões, no campo da lexicologia e da terminologia, ultrapassam o contexto cibernético e representam um fator concreto da globalização.

Assim sendo, as mensagens veiculadas nos sites são destinadas a todo tipo de público. No entanto, o locutor precisa estar sempre atento ao emprego de uma linguagem adequada, uma vez que, “Não é só quem escreve que significa; quem lê também produz sentidos”, afirma Orlandi (2000, p. 101).

Toda essa revolução digital afetou substancialmente a comunicação escrita dos adolescentes. Sendo assim, até a presente pesquisa, pode-se inferir, parcialmente, a partir da análise dos glossários apresentados pelos alunos do ensino básico do Colégio “Santa Rita”-FaSaR, da impressão dos documentos dos internautas desse nível de escolaridade e dos relatórios das entrevistas realizadas, que os novos modos de comunicação os quais surgiram com a evolução tecnológica têm influenciado,sem dúvida, a escrita desses adolescentes,como também têm acompanhado a vida adulta ,influenciando,assim,a vida profissional e acadêmica.Para tanto,é de suma importância que os profissionais da educação estejam atentos à responsabilidade de apontar os riscos da linguagem virtual na sociedade contemporânea,bem como de orientá-los na resolução de tais problemas,uma vez que a valorização da norma culta da língua não pode ser considerada supérflua pelos adolescentes,já que necessitarão dela no futuro. Referências Bibliográficas BLIKSTEIN, Izidoro. Técnicas de comunicação escrita. 21ed. São Paulo: Ática, 2005. BRITTO, Luiz Percival Leme. A Sombra do Caos: ensino de língua x gramática tradicional. Campinas, S. P.: Mercado de Letras, 1997. BRUYNE, P.; JACQUES, H.; DE SCHOUTHEETE, M. Dinâmica da pesquisa em ciências sociais: os pólos da prática metodológica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. B2B MAGAZINE. Disponível em: <http://www.oficinadanet.com.br/noticias_web/3070/perigo_nas_redes_sociais. Acesso em 01/09/2011. CORREIO DO POVO ON-LINE. Porto Alegre: Correio do Povo On-line. Disponível em: <http://www.correiodopovo.com.br>. Acesso em: 16 Set 2005.

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COSTA, Sérgio Roberto. Oralidade, escrita e novos gêneros (hiper) textuais na Internet. In: FREITAS, Maria Teresa de Assunção. COSTA, Sérgio Roberto. Leitura e escrita de adolescentes na internet e na escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. FASCIANI, Roberto. Novas tecnologias informáticas, nas media e relações afetivas. In: FREIRE, Fernanda M. P. A palavra (re) escrita e (re) lida via Internet. In: SILVA, Ezequiel Theodoro (Coord). A Leitura nos Oceanos da Internet. São Paulo: Cortez, 2003. KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. LÉVY, P. O que é o virtual?. Trad. Paulo Neves. 3ª ed. São Paulo: Ed. 34, 1996. ______, P. As tecnologias da inteligência – O futuro do pensamento na era da informática. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. PELLANDA, N. M. C., PELLANDA, E. C. (Orgs.). Ciberespaço: um hipertexto com Pierre Lévy. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000. SAUTCHUK, Inez.Perca o medo de escrever.São Paulo:Saraiva,2011. TIBA, Içami. Adolescentes: quem ama, educa! São Paulo: Integrare, 2005.

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Letras e Edição: do texto oral ao texto digital - Fred Izumi Utsunomiya (UPM) RESUMO: As áreas de Letras e de Edição apresentam uma trajetória histórica confluente. A partir da obra “A galáxia Gutenberg e o homem tipográfico” de Marshal McLuhan, de 1962, depreende-se que as grandes transformações sociais, culturais e econômicas que aconteceram ao longo da história da humanidade estiveram diretamente relacionadas à disseminação de textos – novas ideias e conhecimentos – veiculadas pelos novos meios de comunicação emergentes na época. A era da Internet traz um grande desafio à área de Letras no campo da Edição. Palavras-chave: Letras; Edição; Comunicação; Texto; Digital

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus,

e o Verbo era Deus. Evangelho de São João verso 1, capítulo 1

1. O texto e as revoluções

As áreas de Letras e de Edição (de livros) têm como objeto de estudo, o texto. No caso da Edição, o suporte do texto – o livro – desde a sua concepção, passando por sua produção até a sua distribuição. Os cursos de Letras tradicionais quando analisam o livro, fazem-no enquanto produção espiritual: seu texto, seu discurso e o seu contexto. Os aspectos cultural, material e sociológico ficam em segundo plano. O livro impresso, no entanto, possui essa tridimensionalidade intrínseca (material, cultural e espiritual), aspectos com os quais um editor de livros frequentemente precisa trabalhar. Os cursos de Edição ou Editoração no Brasil estão alocados em sua grande maioria em faculdades e centros de comunicação, evidenciando um grande consenso em torno da ideia de que a edição de livros é um campo essencialmente ligada à área de Comunicação. No entanto, essa percepção é relativamente recente. O livro tem sua origem e sua trajetória histórica mais intimamente ligada à área de Humanidades e, mais especificamente, de Letras, hipótese que testamos a seguir.

Texto é uma sequência verbal (palavras), oral ou escrita, que forma um todo que tem sentido para um determinado grupo de pessoas em uma determinada situação. O texto pode ter uma extensão variável e neste trabalho consideramos um livro como “texto”. E o que é um livro – obra intelectual, não o suporte – senão um amontoado de palavras – que constituem os textos – que transmitem um sentido, servem como veículos de ideias, disseminando informações e conhecimento? O livro é uma “ampliação” do texto “falado” e uma socialização em outro nível de um determinado conhecimento. A gênese do conhecimento, o logos, é a palavra – que também é definida como logos. A comunicação verbal possibilitou a comunicabilidade e o desenvolvimento do ser humano como um ser social. A comunicação verbal escrita – tipificada pelos livros impressos – multiplicou as possibilidades de sociabilidade, de realizações e transformações sociais, econômicas, políticas e históricas. A comunicação digital na era da Internet – que envolve além do texto “escrito”, o “falado”, as linguagens sonora, visual e cinematográfica, potencializou essas realizações. No entanto, a cada “revolução” histórica, sua base continua sempre a

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mesma: a potencialidade de comunicação de um texto. Nessa trajetória, a área de Letras providencia o conteúdo lógico inteligível num código verbal (o que) e a área de Edição corresponde à seleção e tratamento daquilo que vai ser comunicado (como). 2. Marshal Mcluhan e as três galáxias

Marshall McLuhan (1911-1980) foi um teórico e crítico dos meios de comunicação de massa, e é considerado o pai da epistemologia da comunicação, apesar de sua formação ter se dado no campo das Letras. Foi professor de Literatura e Cultura Inglesa e Americana, nas universidades de Wisconsin (EUA) e de Toronto, no Canadá. É de sua autoria a célebre frase “o meio é a mensagem” e também o conceito de “aldeia global”, que antecipa a noção de conexão mundial através dos meios de comunicação. Para ele, os suportes da comunicação e as tecnologias são determinantes, pois os conteúdos das mensagens são modificados em função dos meios que os veiculam. Em sua obra “A galáxia Gutenberg e o homem tipográfico”, publicada em 1962, McLuhan identifica três grandes períodos culturais da humanidade: o da cultura oral – quando o conhecimento se faz a partir somente da fala, sem a escrita –, o da cultura tipográfica, iniciada com a publicação em massa de livros, e o da cultura eletrônica (radiofônica e televisiva). Segundo ele, em cada um desses períodos – quando uma dessas culturas foi hegemônica – houve uma forma de se compreender o mundo e de se relacionar com ele, possibilitando uma grande transformação da civilização em comparação ao período anterior. Na era de transição da cultura oral para a cultura tipográfica, o advento e popularização do livro impresso – com sua acessibilidade e portabilidade –contribuiu decisivamente para a disseminação de uma cultura do individualismo e de questionamento, as bases constitutivas do ethos das sociedades modernas. De fato, a “galáxia de Gutenberg” e a “era tipográfica” foram fundamentadas pelos ideários que circularam por meio da literatura impressa. O suporte comunicacional do livro enquanto texto – o volume impresso – foi fundamental não somente para a velocidade de sua propagação, mas também para a formação do caráter pessoal e individualista que moldaram o homem moderno, sujeito das transformações sociais que já estavam em curso. 3. A Cultura Oral ou Acústica

Uma das características da era moderna é a radicalização na especialização dos saberes – sobretudo no início da Revolução Industrial (fins do século XVIII e início do século XIX) – estimulando a forma de se produzir conhecimento de modo fragmentado, consolidando na sociedade assim, a divisão do trabalho e a formação de classes sociais. Esse caráter fragmentador, no entanto, é um movimento contrário à vocação inicial dos antigos estudiosos – os sábios – que estabeleceram os fundamentos basilares que deram origem aos atuais cursos de Letras, quando filosofavam e interligavam diversas áreas do saber em seus discursos. Os sábios ocidentais gregos – desde Sócrates e Aristóteles – desenvolviam suas ideias filosóficas e científicas a partir de diálogos, utilizando-se de recursos da oratória e da retórica. Esse conhecimento era produzido num contexto essencialmente oral. No entanto, muitos desses discursos foram transformados em textos – livros – por seus discípulos. O conhecimento oral vertido para a forma escrita exigia que esses escreventes fossem versados em “letras”, tivessem a capacidade de ler e escrever. O sábio tinha suas ideias transcritas para os rolos ou pergaminhos – os livros da época – assim como as poesias, os mitos fundadores civilizatórios e épicos históricos (e mais tarde as peças de teatro e textos literários) eram registrados, transcritos e lidos pelos que tinham a habilidade de “decifrar as letras”. Na história ocidental, até o início da

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Idade Média, o caráter material do livro – incluindo os aspectos visuais como e o tamanho e tipo de letras – não possuía grande importância na constituição daquilo que já recebia o nome de “livro” (biblos, em grego e libri, em latim, sempre remetendo à ideia do papiro como suporte material do conteúdo escrito), pois sua apresentação se dava na forma de rolos rústicos de papiro ou de pergaminhos, e posteriormente, na forma do códice (pergaminhos costurados em forma de cadernos). Apesar do filósofo ateniense Sócrates considerar os livros em sua época como mero auxiliadores à memória e ao conhecimento dos sábios (e – segundo seu pensamento – os verdadeiros sábios deveriam prescindir deles), a maioria dos filósofos gregos tinham uma consideração maior pelos livros, como Aristóteles, que possuía uma coleção importante de manuscritos para uso próprio (cf. MANGUEL, 1997, p.78). Quando um discurso ou ensino oral era transformado em texto, a manutenção de sua integridade era assegurada e ampliava-se a possibilidade de sua disseminação através de outras regiões, épocas e povos. Dominar a linguagem escrita possibilitava a pessoa que tivesse acesso ao conhecimento escrito atravessar as barreiras espaço-temporais e “dialogar” com interlocutores de outros lugares, culturas e mesmo eras passadas. Como escreveu o teólogo espanhol Isidoro de Sevilha em sua obra Etimologias, na metade do século VII: “As letras têm o poder de nos transmitir silenciosamente os ditos daqueles que estão ausentes” (ISIDORO apud MANGUEL, 1997, p.66). No entanto, apesar da escrita e dos livros serem uma realidade até a “revolução de Gutenberg” demarcada por McLuhan, a tradição oral e sonora foi a grande modeladora da sociedade até então. Os livros serviam para registro, mas a disseminação de ideias se dava no plano da oralidade e do discurso verbal falado. O conhecimento era baseado na palavra ouvida. A retenção da informação e conhecimento era baseada quase que exclusivamente na memória. A mensagem era captada e decodificada em torno do signo sonoro da palavra, o que influenciava o modo de se compreender o mundo e de se relacionar com ele. O modelo de comunicação pode ser esquematizado conforme a figura 1:

Figura 1: esquema de comunicação e transmissão de conhecimento na Cultura Oral

De acordo com esse modelo, pode-se depreender que a memória é essencialmente auditiva: aprender é ouvir. A memória é o único acesso à informação. A recepção das informações se dá em forma sequencial e momentânea e o processamento de ideias é linear e sequencial. Pode haver comunicação de duas mãos se houver possibilidade de diálogo, mas há limitação ao acesso à informação, dependendo-se do discurso de alguém, e aos limites de tempo, espaço e disponibilidade. Apesar de já haver a escrita, os livros eram manuscritos e a circulação, restrita. Apesar da existência da escrita e mesmo dos livros, a cultura ocidental predominante até então foi denominada por McLuhan de Cultura Oral.

 Emisso

Palavr

Recept

   

Meio:  ar

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4. A Cultura Tipográfica ou Visual A Cultura Oral foi tão forte que por muito tempo, “ler” era pronunciar o texto

em voz alta, para que a mensagem chegasse à mente do leitor pelos ouvidos. O evento que marcou a início da Cultura Tipográfica foi a popularização dos livros com o surgimento da imprensa com tipos móveis. Nessa modalidade, o conhecimento, na forma de texto escrito, é captado pela imagem formada em torno do signo visual da palavra. A “revolução de Gutenberg” trouxe a possibilidade de acesso rápido e simples às fontes de conhecimento que eram restritas a locais e suporte com aceso limitado. A velocidade e profundidade de contato com o conhecimento através de textos por parte de um maior número de pessoas, juntamente com o contexto histórico, social e tecnológico da época, possibilitou revoluções em várias áreas do conhecimento humano, as quais facilitaram e impulsionaram transformações sociais como o Iluminismo, a Reforma Protestante, a abolição da escravidão e a Revolução Francesa. Mudanças nos hábitos culturais e sociais das pessoas, possibilitados pelo acesso a livros e jornais colaboraram para moldar uma sociedade mais interessada às novidades científicas, costumes culturais diversos de outros povos e consumo de literatura em nível mais massificado. O aspecto econômico e a consequente “portabilidade” do livro (os sucessores de Gutenberg começaram a produzir volumes que cabiam no bolso) foram elementos que possibilitaram que viessem à tona uma série de transformações sociais. Os livros tornaram-se “a voz” de inúmeros sábios que se espalhavam pelo continente europeu, os quais tinham uma circulação muito restrita de suas ideias. Com a imprensa, esses sábios, filósofos, teólogos e cientistas tornaram-se tanto “autores de livros” como “escritores”, conforme distingue o historiador francês Roger Chartier:

Eles são “escritores” no sentido que a palavra vai tomar em francês, no correr dos últimos séculos da Idade Média: eles compõem uma obra, e as imagens os representam, de modo um pouco ingênuo, no ato de escrever a obra que o leitor tem nas mãos. [...] O que significava romper com uma tradição segundo a qual o livro manuscrito é uma junção, uma mistura de textos de origem, natureza e datas diferentes, e onde, de forma alguma, os textos incluídos são identificados pelo nome próprio de seu autor. Para que exista autor são necessários critérios, noções, conceitos particulares. O inglês evidencia bem esta noção e distingue o writer, aquele que escreveu alguma coisa, e o author, aquele cujo nome próprio dá identidade e autoridade do texto. (CHARTIER, 2009, pp.31-32).

Na Cultura Tipográfica, ler é aprender. Os livros são “memórias externas”

para o acesso à informação. Eles podem se utilizar de duas linguagens: a verbal com textos e a imagética, com ilustrações, reforçando o todo de um discurso, enriquecendo-o ou modificando-o. O processo de decodificação de um livro se torna mais extenso e complexo. O processamentos sequencial de ideias (diversos livros – textos verbais escritos) possibilita o retrocesso, o avanço, a pausa e “processamento em paralelo” (leitura simultâneas). A comunicação é em mão única, se for exclusivamente escrita. Há uma ampliação de possibilidades de informação e o acesso além do tempo e do espaço à informação. Os livros são estabelecidos como divulgadores do conhecimento, como uma “cápsula” de conteúdo. O virtual (“não presencial”) começa a ser disseminado de modo mais massivo. A sociedade da cultura tipográfica começa a vivenciar uma realidade de excesso de informação. Há textos em excesso e não há possibilidade de acessá-los todos (figura 2).

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Figura 2: esquema de comunicação e transmissão de conhecimento na Cultura Tipográfica 5. A Cultura Eletrônica/Digital

Na Cultura Eletrônica/Digital – imaginada a por McLuhan a partir do fenômeno radiofônico e televisivo e ampliada com o advento e consolidação da Internet – “ler” um texto midiático no ciberespaço pode ser uma experiência multisensorial. Há uma somatória das formas anteriores de disseminação do texto. As possibilidades informacionais são maiores que a capacidade pessoal de processá-las. O texto multimidiático, com o acesso a som (música, sons e palavras), enriquece e amplia os sentidos e significados de um texto (um filme, por exemplo). A comunicação pode ser de mão-única ou então dialógica e o processamento de ideias pode ser sequencial, mas a linguagem de hipertexto e o processamento “paralelo” produz uma forma de acesso à informação diferenciada. A internet torna-se o novo canal privilegiado de acesso à informação e ao conhecimento e ao entretenimento. Dá-se início a uma massificação de relacionamentos “virtuais” através de uma comunicação efetiva de duas vias mídia social (figura 3).

Figura 3: esquema de comunicação e transmissão de conhecimento na Cultura Digital

Novamente, a possibilidade de acesso e excesso de informação possibilita o surgimento de um fenômeno de “entropia” comunicacional: a comunicação demais comunica de menos – a “comunicação confusional”, ou “tautismo” – tautologia com autismo, como define o teórico de comunicação Lucien Sfez (SFEZ, 2007, p109). A rede internacional de computadores torna-se um grande mercado de conteúdos. A possibilidade de qualquer um produzir um conteúdo – texto – e disponibilizá-lo na Internet e o ilimitado acesso à informação, trazem uma contradição: sofre-se com um excesso de conteúdos de qualidade duvidosa, estabelecendo-se um ponto crucial hoje: a necessidade de administração do acesso ilimitado à informação x acesso a conteúdo relevante. É preciso de selecionar com critério, talvez reescrever – editar – o conteúdo

 Emisso

Palavr

Recept

   

Meio:  livros

 Emissor

Palavra  escri

Recepto

   

Meio:  

   

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disponível na Internet. A informação relevante se mistura à espetacularização do privado, à exposição exibicionista e à banalização do conhecimento. O desafio da cultura eletrônica é voltar à edição de conteúdo: seleção e adaptação de textos para públicos específicos. No caos da internet, os textos potenciais – atuais e futuros – para uma necessária e desejável mudança de direção da civilização planetária – que encontra-se aparentemente num beco sem saída devido à opção por um desenvolvimento econômico capitalista predatório e insustentável e uma superpopulação inédita e sem precedentes na História – estão perdidos. Há necessidade de uma verdadeira revolução ocasionada por textos que moldem uma nova mentalidade e perspectiva para todos os seres humanos. 6. Letras e Edição

O processo de produção de livros pouco mudou desde a época de Gutenberg até hoje. Novas tecnologias foram sendo introduzidas na atividade de edição de livros, como a linotipia, a fotocomposição, a impressão offset, a quadricromia e a editoração eletrônica, entre outros, mas o princípio em si da técnica e mesmo do processo de seleção e escolha de textos para serem publicados permanecem basicamente os mesmos. Nos dias atuais há cursos preparatórios para formação de profissionais em todas as etapas da cadeia produtiva do livro, voltados sobretudo, para a formação técnico-industrial do profissional de impressão gráfica, que hoje lida com equipamentos eletrônicos e digitais de alta precisão e tecnologia, como para desenvolvimento e aprimoramento dos designers que preparam o aspecto visual e material do livro. Cursos para preparar profissionais que assumirão a função de revisores e de editores também são oferecidos em diversos níveis (técnico, bacharelado e pós-graduação). O curso de Bacharelado em Edição da Universidade Presbiteriana Mackenzie é oferecido como opção para o estudante de Letras Português/Inglês que se formou em licenciatura. O discente de Letras tem uma proximidade diferenciada para com o livro, pois estuda o seu espírito: a linguagem, os autores, os contextos e os significados que são depreendidos dos volumes impressos. Esse domínio de percepção do livro como produção cultural e material é aprimorada no aluno, desenvolvida em dois semestres, com disciplinas como Produção Editorial Gráfica, Design Editorial, História do livro e da Leitura, Edição de textos, Marketing e Assessoria Editorial, entre outras. A inédita e comprovada pertinência da relação do aluno de Letras para com a atividade de Edição é explorada, com ambições elevadas de se estimular a formação de um novo “sábio” de Letras – o editor contemporâneo –, aquele que sabe fazer uma “leitura” e interpretação do mundo em transformação e que se cerca de profissionais capacitados para atingir objetivos visionários e empreendedores – atuando de modo diferenciado no mercado editorial que enfrenta uma nova mudança paradigmática.

O livro, portanto, seja ele manuscrito, impresso ou digital, sempre esteve à serviço da veiculação de textos – ideias – que, disseminadas em amplitudes e profundidades cada vez maiores, foram instrumentos de apoio a mudanças estruturais da sociedade. A forma de se obter esse conhecimento – leitura – variou a cada era textual (oral, tipográfica, digital), de acordo com a percepção que cada mídia permitia na decodificação da mensagem do texto.

Nesta fase atual de modalidade textual (digital), a figura do editor de livros é ressaltada. Contudo, o aparente paradoxo do caráter econômico (manutenção do status quo) x libertador (transformação das estruturas sociais) da atividade de edição de livros, a necessidade de um preparo humanístico do editor continua fundamental nessa era de cultura digital da Internet, quando uma avalanche de conteúdos duvidosos precisa ser “editada”, com critérios e percepções precisas e sofisticadas. O berço das

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Letras, ao lado de um conhecimento com uma cosmovisão mais holística, torna-se um desejável porto seguro às tormentas informacionais que estão à solta neste mar de Cultura Digital. Referências Bibliográficas CHARTIER, Roger. A aventura do livro. Do leitor ao navegador. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Editora UNESP, 1998. SFEZ, Lucien. A comunicação. São Paulo: Martins Fontes, 2007. MCLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. 2ª Ed. São Paulo: Editora Nacional, 1977 MANGUEL, Alberto. Uma história da Leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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Senso comum e a produção escrita de textos opinativos - Inês Teixeira (PUC-SP)

RESUMO: Esta pesquisa parte de textos opinativos produzidos por alunos de ensino médio e tem como objetivo analisar as ocorrências indicadoras de fraca abordagem do tema, como generalizações, tangenciações e indícios de falta de autoria. Chamamos aqui de senso comum as ocorrências dessas situações nos textos produzidos em situação escolar. Os resultados permitem sistematizar as ocorrências de senso comum, por meio da análise da microestrutura. Palavras-chave Texto opinativo; Senso comum; Conhecimento linguístico; Concepção de realidade.

O que motivou esta pesquisa foram as diversas ocorrências na produção do texto opinativo que indicavam uma fraca abordagem do tema, como generalizações, tangenciações e indícios de falta de autoria. São textos que, na avaliação, recebem nota baixa para o desenvolvimento tema e para o atendimento da proposta solicitada. Mesmo que alguns pontos defasados da competência escritora possam ser pedagogicamente tratados, é difícil pontuar a qualidade temática no plano linguístico e, assim, indicar objetivamente ao aluno um caminho para melhorar a abordagem temática de sua produção.

Outro ponto é a constatação de que, nas produções de textos usadas para retirar o corpus dessa pesquisa, 69% das redações dos textos escritos por alunos do Ensino Médio apresentaram fraca profundidade do tema. Além do que, a experiência de muito professores e corretores de redação faz saber o quanto esse problema é comum nos textos produzidos em situação escolar.

Pécora (2011), em um corpus de aproximadamente 1.500 redações de uma pesquisa realizada pela Fundação Carlos Chagas, verificou que os problemas que apareciam no interior da oração eram em grande número de coesão textual e de unidade semântica. Entre eles, o autor destaca a incompletude associativa, mau emprego de anafóricos, redundância, noções confusas e lugar-comum. Suas pesquisas levaram a ver que a ausência de especificidade semântica compromete o êxito argumentativo. Em outras palavras, se o aluno não tem o que dizer, dificilmente produzirá um texto satisfatório em termos de linguagem e expressão escrita.

Neste artigo, chamaremos de senso comum o conjunto desses problemas (daqui para frente SC). A fundamentação será o conceito de SC postulado pela filosofia, cuja definição estará correlacionada às ocorrências de problemas desse tipo em textos opinativos. Para isso, visitaremos as definições de SC dadas pela filosofia em duas fontes bibliográficas: o dicionário de filosofia de Abbagnano (2007) e Chauí (2000).

O conceito de senso comum dado na filosofia Abbagnano (2007), no dicionário de filosofia, designa “senso” como a

capacidade de julgar em geral. O termo “senso comum” foi definido desde Aristóteles que indica essa expressão como a capacidade geral de sentir. Atribui ao SC duas funções: a primeira é capacidade de “sentir o sentir” a consciência da

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sensação; a segunda é perceber as determinações sensíveis comuns a vários sentidos (o movimento, o repouso, o aspecto, o tamanho, o número, a unidade). Essa noção foi retomada e aceita mais adiante pelos estóicos, por Avicena; depois passou para a escolástica medieval com Tomás de Aquino e, mais tarde, foi aceita por todos os aristotélicos. Para os escritores clássicos latinos, essa expressão passou a ter o significado de costume, gosto, modo comum de viver e de falar. Cícero chegou a afirmar que era falta grave para um orador abominar o costume do senso comum.

Mais tarde, Vico, lapidando esse conceito nascido do pensamento tradicional latino, afirmava que o senso comum é um juízo sem reflexão, comumente sentido por toda uma ordem, todo um povo, toda uma nação, ou por todo um gênero humano. Em 1764, T.Reid usa essa expressão para designar as crenças tradicionais do gênero humano, aquilo em que todos os homens acreditam ou devem acreditar.

Hoje, com um significado análogo, Dewey, ressaltando o caráter prático, afirma que os problemas e as indagações do SC dizem respeito às interações entre seres vivos e o ambiente, com o fim de realizar objetos de uso e de fruição; os símbolos empregados são determinados pela cultura corrente de um grupo social. Trata-se, portanto, de um sistema mais prático que intelectual. As significações são efeito da linguagem cotidiana comum, com o qual os membros do grupo se intercomunicam.

Na doutrina de Kant, o SC é o princípio do gosto, da faculdade de formar juízos sobre os objetos do sentimento geral. “Tal princípio só poderia ser considerado senso comum, que é essencialmente diferente da inteligência comum que, às vezes, também é chamada de senso comum, pois não julga conforme o sentimento, mas conforme os conceitos, embora se trate em geral de conceitos obscuramente representados” (crítica do juízo §20).

Chauí (2000) relaciona as características próprias do SC de forma mais didática. São subjetivos, exprimem sentimentos e opiniões individuais de grupos, dependem de condições. Ex.: Se for hindu, uma vaca será sagrada; já um açougueiro só está interessado na qualidade da carne. São qualitativos, heterogêneos e polarizadores: ou é doce ou azedo, ou bom ou é ruim, úteis e inúteis etc. Distinguem pelo ponto de vista, pelo que parece, e não pela essência. São individualizadores; cada fato aparece ser autônomo e final: a pedra é dura, o mel é doce, o fogo é quente. Também, como generalizadores, reúnem avaliações semelhantes para categorias diferentes. Por causa da generalização, estabelecem relações de causa e efeito, crendices e dito populares, como, por exemplo: “onde há fumaça, há fogo”.

Portanto, Chauí (2000) explica o SC como uma abordagem não científica, uma vez que, para o SC, a ciência se iguala à magia, por isso o SC relaciona-se a fatos, a sentimentos, a percepções da alma. Tornam as ideias subjetivas e generalizadoras, cristalizando preconceitos a partir dos quais a realidade é interpretada.

Com essas definições propostas pela autora, passaremos a identificar as características do senso comum nas produções escritas de textos opinativos, feitas por alunos de Ensino Médio.

Conceituação de senso comum em textos opinativos Para estabelecer uma linha de abordagem favorável ao que se pretende mostrar

neste trabalho, as características similares estão reunidas em dois grupos. No primeiro serão abordadas as ocorrências de SC relacionadas ao conhecimento linguístico, isto é, encontradas no trato gramatical e na seleção lexical. No segundo grupo, as ocorrências relacionadas à concepção da realidade.

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No primeiro grupo, relacionadas ao conhecimento linguístico, estão às características do SC na linguagem e no léxico. Denotaremos SC a) as ocorrências de palavras sem conteúdo específico, como algo, coisa, bom, ruim, palavra sem especificidade, expressão vaga, termo amplamente genérico ou com vazio semântico, apontando para uma percepção imediata; b) as relações impróprias entre palavras e expressões, por ignorar o contexto a que o assunto se refere; d) as repetições da palavra-tema sem progressão temática e e) as expressões de lugar-comum, clichês, frases feitas.

No segundo grupo, apontamos problemas de SC relacionados à concepção de realidade. São ocorrências que indicam problemas de noção da realidade, como fuga, subjetividade, emotividade, visão do mundo precária e distorcida, efêmera e pessoal do mundo, observação o mundo a partir de dados sensíveis. (mundo sensível). São afirmações que demonstram dependência de juízos pessoais envolvendo julgamentos a partir de valores emocionais ou aparentes, em oposição à racionalidade exigida pela argumentação em um texto opinativo que busca impessoalidade, a fim de dar dimensões universalizadas a uma afirmação.

As abordagens do SC não fazem relações nem conexões com outras circunstâncias. A discussão da realidade se dá a partir de pré-noções, pré-juízos e preconceitos, refletindo um conhecimento espontâneo. É um saber contido no grupo social, com crenças estabelecidas pela sociedade e fixadas no inconsciente.

Percebe-se também, com isso, a avaliação imediatista feita a partir de valores particulares, emocionais e aparentes. Ou, ainda, a ausência de relações, a acomodação mental de fazê-las, leva ao conhecimento subjetivo, resultante de juízos que envolvem emoções e valores pessoais. Com isso, as opiniões fecham-se circularmente em verdades evidentes, assistemáticas. Os dados observados não são selecionados de forma rigorosa (rigor científico) e ficam restritos a uma pequena amostra da realidade, desencadeando superficialidades e fragmentações: o que se observa para um, observa-se para todos, daí nascem as generalizações.

As conclusões incoerentes denunciam um saber voltado para a consecução de objetivos que buscam benefícios imediatos. Um ponto denunciador dessas condições é a má compreensão da interlocução e dos limites coerentes do diálogo do texto opinativo, entre o emissor e receptor. É comum emergirem nesses textos o EU que acha e o VOCÊ que deve agir de determinada forma diante do exposto.

E, finalmente, para perceber qual realidade está sendo registrada no texto, há os problemas de argumentação decorrentes do SC. Por ser um juízo sem reflexão, as afirmações são tomadas de ideias preestabelecidas; os argumentos são confusos e vagos, ocorrendo generalizações apressadas e imprecisas. A visão da realidade fragmentada produz ausência ou problemas de sequenciação na articulação das ideias, além de conexões incoerentes e ilógicas, como contradições, circularidade, quebra da progressão argumentativa. Os argumentos, sem criticalidade, criam uma “pseudo-crítica” quando se dá a reprodução do conhecimento comum sem base argumentativa, sem relações lógicas de causa e consequência, sem dados consistentes e críveis, instaurando-se, assim, paralogismos.

Exemplos de Senso Comum A fim de deixar claro o conceito de SC exposto até aqui, usaremos trechos

selecionados do corpus de textos opinativos produzidos para este estudo, em que foi solicitado aos alunos que opinassem sobre o tema “O Brasil precisa ser habitado por cidadãos”.

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Os excertos abaixo são alguns trechos problemáticos extraídos pelo professor para serem refeitos com objetivo de vencer as ocorrências de senso comum.

Convém antes observar que, infelizmente, muitos destes trechos que serão apresentados poderiam ser incluídos nas pérolas que geralmente servem de piada. Muito além do riso, são pontos denunciadores da baixa condição de expressão escrita e, por isso, merecem ser tratados com mais seriedade. Por questões práticas e avaliativas, as ocorrências do corpus estão transcritas ipsis litteris e organizadas conforme os grupos identificadores do SC descritos acima.

O senso comum refletido na linguagem

1. As pessoas deveriam ter mais consciência e lembrar que o Brasil é de todos, e

que a gente tem direito de viver nele da melhor maneira possível... 2. Sabemos que o Brasil é um país que necessita de nós, seres humanos, para

habitá-lo. 3. ... Enfim, o Brasil precisa ser habitado para não deixar ao escasso esse país

maravilhoso que ele é e as coisas e lugares especiais que ele pode oferecer. 4. O cidadão no Brasil precisa de emprego e também várias coisas. O Brasil

também precisa de cidadão para conseguir dinheiro e comprar coisas para o Brasil...Um bom país só tem que parar com isso, briga, morte, discriminação, etc.

5. Nós, brasileiros, temos que ser cidadão para o nosso país ir pra frente, nós temos que fazer uso do nosso direito de cidadão.

6. Bom, a necessidade é sem cidadão o Brasil não existiria, não seria um país...o Brasil é um lugar bom pra se viver, sem cidadão não existiria o Brasil.

7. O Brasil hoje em dia parece ser habitado por um bando de pessoas irresponsáveis que não têm amor à pátria pois destroem patrimônios públicos que ao invés disso deveriam zelar pelo que é de todos...

Nos excertos acima, vemos a recorrência de trechos com clichês, lugar comum

e frases feitas, como: “o Brasil é de todos”, “esse país maravilhoso”, “para nosso país ir para frente”, “o Brasil é um lugar bom de se viver” e “não têm amor à pátria”. São todas frases consagradas pelo uso comum, usadas para socorrer a ausência de vocabulário e para suprir a deficiência de expressividade linguística. “O lugar-comum é, na verdade, um lugar de ninguém, uma cidade fantasma” (PÉCORA, 2011, p.96).

Outro ponto que denuncia o SC na linguagem é o uso de expressões vagas, imprecisas, generalizantes e superficiais como “coisas e lugares especiais que ele pode oferecer”, “um bom país”, “ser pessoas melhores ”, “um lugar bom”, “o cidadão precisa de emprego e de várias coisas”, “conseguir dinheiro e comprar coisas” e “pensar antes de fazer estas coisas”. São recursos usados também para suprir a ausência de conhecimento, de informação aprofundada sobre o tema. Superficiais e vagos, parecem dar conta do dizer, e fazem assim do dizer, um não-dizer, um engodo linguístico, um vácuo semântico.

8. Portanto nós temos que nos conscientizar e ser pessoas melhores para que o

Brasil cresça.

Um destaque aqui para a palavra da família consciência. A escolha dela leva a uma ideia comumente disseminada pelo SC de que a conscientização é a resposta para todos os males da humanidade. Pécora (2011, p.89), no seu trabalho, explica que a

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utilização da palavra consciência “representa sempre um valor consagrado, um discurso da luz, uma espécie de positivo absoluto. O mesmo acontece com as noções de liberdade, justiça, democracia...” São expressões que diluem os valores, tonando-os genéricos.

O senso comum na concepção de realidade

Desses excertos abaixo, destacamos pontos que indicam uma deficiência em relacionar a realidade com a opinião solicitada pelo tema. As afirmações indicam falácias, enganos e concepções até mesmo absurdas para um competente observador do cotidiano.

9. Eu ainda acredito num país melhor e com justiça e não pessoas ruins e sim

pessoas de bom-carater. 10. Ao assistirmos noticiário não vemos coisas agradáveis mas sim tragédias,

violências, negligência em geral que acaba atingindo a população como um todo, mas isso acontece na nossa frente e acabamos vivenciando coisas desagradáveis, como por exemplo nos hospitais, muitas vezes caímos em mãos despreparadas, que não estão capacitadas para um certo atendimento.

Outra situação comum às situações a que estamos chamando de SC é a

tendência polarizadora das ideias. O bom e o ruim estão sempre pareados, assim como expressões similares como na ocorrência acima: “coisas agradáveis” e “coisas desagradáveis”. Além da expressão vaga da palavra “coisa” há a oposição pobre das ideias, típicas do SC.

A noção do dever e do valor consagrado permeia o SC. Seja como for, deve-se denunciar o mal, o ruim a fim de que o bem vença. Daí a ênfase em “pessoas de bom caráter”. Pécora (2011), em sua pesquisa, constatou que essa noção do dever equivale a cerca de 50% das redações analisadas por ele. Esse posicionamento apela para um padrão moral específico e dispensa o escritor de elaborar provas específicas. Os valores consagrados também suspendem a criação de argumentos por usar segmentos congelados da linguagem.

11. É uma das coisas que as pessoas entendem que o Brasil é um país muito bem

habitado por seres humanos que ajudam nas necessidades do nosso país. 12. Então vamos colaborar com o nosso povo assim nós podemos ficar todo

mundo feliz.

Essa realidade distorcida faz com que se crie um mundo idealizado que venha suprir as carências emocionais do “povo” que elege o SC como visão de mundo. Não importam as mazelas humanas, se no dito comum o bem sempre será maior. Há sempre no desejo popular a expectativa do “final feliz”.

13. Sem nós o Brasil não iria nem existir, foi nós que descobrimos o Brasil,

graças a Pedro Álvares Cabral foi o homem que descobriu o Brasil e os índios.

14. O Brasil tem necessidade de o povo brasileiro porque sem os brasileiros o mundo não teria por exemplo a copa do mundo, não teria medalhas de ouro para cidadania brasileira etc..

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A realidade do SC compreende a história de uma forma distorcida, acredita

que o Brasil é mérito de Álvares Cabral que, heroicizado, recebe as honras de toda uma nação. É um conhecimento subjetivo, cheio de abordagens idealizadas e ufanistas do Brasil.

15. O Brasil, como qualquer outro país, necessita de cidadãos porque se não

houvesse cidadãos, não teria lojas, escola, casas, prefeito, governador etc.. 16. A necessidade do Brasil ser habitado por cidadãos é muito simples, se não

houvesse cidadãos o país is ser uma bagunça total. 17. A importância é que o Brasil tem muito comércio hoje e aí se não houvesse

pessoas, não teria quem comprasse. 18. Para que o Brasil se torne um país desenvolvido é preciso que ele seja

povoado pós nós e por outros povos.

Essas quatro ocorrências acima demonstram total alienação do que significa ser cidadão. Confundem a acepção de cidadão com a definição de seres humanos e pessoas, além de a fala estar totalmente desconexa da realidade e do contexto sugerido pelo tema. São problemas de baixa informatividade que desencadeiam o SC, generalizando acepções particulares ou as simplificando, como se o autor quisesse encerrar logo a escrita de sua opinião.

19. Então eu acho que as pessoas deveriam pensar antes de fazer essas coisas

porque quem sai perdendo são eles mesmos, e sem contar que fica horrível. 20. Para você ser um cidadão é só você ajudar as pessoas que precisam, não

jogar lixo nas ruas, se preocupar com o país em que você vive, e acima de tudo ter respeito com o seu próximo, com todos ao seu redor.

A questão da interlocução expondo o EU e o VOCÊ mostra a deficiência de

posicionamento do interlocutor na opinião. O argumento fica em segundo plano e é colocado em destaque o EU que “acha” e o VOCÊ que “deve agir” a partir do “achismo” do EU. Como há fraca exposição dos fatos da realidade, sobra o peso da opinião no diálogo EU/VOCÊ. A imagem do interlocutor aponta a dificuldade de distinguir limites para as diferenças entre produção e recepção, uma vez que o escritor não trata o texto no nível referencial de linguagem. Entende, assim, a expressão da opinião como uma conversa hipotética.

Realidade, argumentação e senso comum

Focaremos nas ocorrências a seguir uma série de problemas oriundos da argumentação usada para expor uma opinião. O SC se justifica nestes trechos pelo uso de ideias generalizadoras, problemas de sequência lógica e articulação de ideias e, o mais comum de todos, as relações ilógicas de causa e consequência.

21. O Brasil é um país igual aos outros, tem seus habitantes, suas culturas, suas

religiões e etc. a maioria dos cidadãos do Brasil são muito supersticiosos, pelo fato em que cada um tem sua crença religiosa.

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22. Não só o Brasil mas como todos os outros países devem ser habitados por cidadãos, porque sem as pessoas um país como o Brasil, porque sem os cidadãos não tem como escolher um presidente para o país...

23. Graças aos nossos antepassados nós fomos criados, nós nascemos. Se não fossem eles nós nem iríamos existir.

Nessas ocorrências, o SC se revela uma verdade evidente na afirmação

superficial e sem reflexão nos trechos em que diz que “o Brasil tem habitante como outros países” ou que “nós nascemos graças aos antepassados”. Também, no trecho 23, a verdade evidente serve de condição para nossa existência, numa relação totalmente desnecessária: “só existimos por causa dos nossos antepassados”.

Nas relações de causa e consequência, na ocorrência 22, a razão para a superstição do brasileiro é a crença religiosa. Isso demonstra pouca ou nenhuma reflexão nos fatos, somente a repetição do que é popularmente conhecido: brasileiro é religioso e é supersticioso. Todas essas situações remetem a uma situação de SC, pois são frutos de generalização apressada, imprecisa e com juízo sem reflexão.

24. Eu penso que o Brasil tem necessidade de ser habitado pelo ser humano e

pelo cidadão porque se não houvesse cidadão não haveria leis e se não houvesse leis haveria crimes o tempo todo assassinatos a todo momento então a humanidade iria se corroendo em sangue e então teríamos um ser humano matando outro e então em alguns anos a humanidade se acabaria e então a terra ficaria como os outros planetas do nosso sistema solar desertos só com animais se eles sobrevivessem a crueldade do homem sem leis e sem escrúpulos e finalizando não teríamos humanidade.

No trecho não há encadeamento nem progressão argumentativa, os dados

(não consistentes nem críveis) desembocam numa conclusão ilógica. Os argumentos refletem os fantasmas do SC: a violência e a extinção da humanidade.

25. O Brasil tem necessidade de ser habitado por cidadãos porque são os

cidadãos que fazem o Brasil, sem as pessoas não seria nem um país. Hoje o Brasil é o país do futebol, tem uma boa economia por isso o Brasil é como os outros países, mas como qualquer outro país tem suas vantagens e desvantagens as pessoas que são brasileiras são muito inteligentes não que nos outros países não sejam, mas não só o Brasil, mas também os outros países se não fossem habitados por seres humanos não teriam a mesma evolução que hoje temos...

26. Hoje o Brasil está bem evoluído se tem o presidente, governador, vereador e muitos outros cidadãos são elegidos pelo povo para cuidar do país. É assim que eu vejo a necessidade de o Brasil ser habitado por cidadãos.

A conclusão das afirmações apresentadas é um juízo sem reflexão. O modo

como o autor vê a cidadania está na eleição, isso porque o SC apela para a esperança de as eleições serem a resposta para todas as situações.

27. Os cidadãos que habitam o Brasil trazem mais problemas do que benefícios já

que eles só pensam em como fazer as coisas sem sair do sofá.

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O excerto traz uma conclusão incoerente, circunscrita a uma pequena amostra da realidade. Primeiro trabalha com extremismos: problemas versus benefícios. Depois generaliza a atuação dos cidadãos brasileiros e constitui como causa o fato de não quererem “sair do sofá”.

Senso comum na produção de textos opinativos – conceito

Portanto, o SC, definido pela filosofia como capacidade geral de sentir, caracteriza neste trabalho as ocorrências comuns nos textos opinativos produzidos em situação escolar. Organizado aqui em dois pontos, o SC, na produção escrita, indica a) na linguagem, a generalização e o uso de palavras sem conteúdo específico, assim como a pobreza da escolha lexical; b) na concepção de realidade, o SC é representado pela subjetividade, pelos juízos pessoais de valores aparentes, pelo problema de verdade evidente e pelas relações de causa e consequência do percurso argumentativo.

É importante destacar que os pontos mostrados AQUI, por questões de adequação, visaram a determinados aspectos. A divisão aqui tem só a intenção de demonstrar o que estamos chamando de SC nos textos opinativos.

Outra observação é que as diferentes ocorrências de SC podem ser encontradas simultaneamente, de forma prismática. Em uma mesma ocorrência pode haver problemas de linguagem e de noção de realidade. Aliás, se há dificuldades em perceber a realidade, essa deficiência refletirá na linguagem e na seleção lexical. Isso significa que um ponto pode ser olhado somente pela noção de realidade, ou pelos aspectos de linguagem, ou ainda, simultaneamente, em ambas as vertentes. Portanto, este artigo não tem a pretensão de esgotar nem de aprofundar as classificações de SC na escrita de textos opinativos e sim, provocar um olhar mais apurado nessa situação tão recorrente.

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Sinergia da análise do discurso com a linguagem textual e gráfica jornalística - José Alves Trigo (UPM)

RESUMO: O artigo mostra a sinergia possível, e recomendada, entre a linguagem textual e gráfica dos jornais e a análise do discurso. O objetivo é mostrar o uso da linguística, com sua natureza multidisciplinar, e agregar uma nova forma de análise ao discurso gráfico e textual dos jornais impressos. Mostra o percurso narrativo desenvolvido pelo enunciador na página impressa e suas percepções pelo enunciatário. PALAVRAS-CHAVE: Discurso, jornais, teorias da comunicação 1. Introdução

Este artigo faz uma explanação inicial sobre as tradicionais teorias que tratam da linguagem jornalística e em seguida relacionará às teorias da enunciação de base linguística e do comportamento dos dêiticos que constituem o discurso jornalístico . Toma como base as teorias da enunciação e os estudos de Fiorin (1996) sobre a aplicação das noções de sujeito, tempo e pessoa nos textos.

As teorias que tratam as mediações entre o enunciador, produtos do discurso jornalístico e seus leitores, enunciatários, partem, em sua maioria, de uma premissa de que os meios de comunicação de massa possuem uma grande capacidade de dominação. Os estudos conduzidos pela Escola de Frankfurt reforçam esse ponto de vista, corroborando uma visão de que os meios não são mediadores, como sugere a terminologia, mas um elemento condutor, determinante para a percepção ideológica do enunciatário. Nessa perspectiva o enunciatário assume uma condição passiva, não participando na elaboração do discurso, mas submetendo-se a este.

Há estudos que se contrapõe a esta visão e que mostram que o enunciatário, ou receptor, é elemento partícipe na enunciação. Thompson defende que o leitor é construtor do seu discurso com a junção dos elementos simbólicos que os meios de massa difundem ao que ele denomina como seu “self”, a personalidade construída conforme suas competências sócio-culturais e históricas. Agregam-se a isto as mediações face a face, próprias das relações cotidianas, nas quais há a possibilidade da troca das experiências para construção do repertório pessoal. Thompson, na sua taxonomia das percepções acrescenta o que ele denomina como interação mediada, que são as formas de transmissão da informação com a utilização de elementos mediadores como a carta, o telefone e ao qual podemos acrescentar tecnologias mais contemporâneas como o e-mail e as mensagens via celular. São formas nas quais os elementos simbólicos próprios do dialogismo são enfraquecidos, mas que ainda são mais intensos do que aqueles provocados pela mídia de massa, nas quais há um predomínio de um discurso em muitas ocasiões hegemônico e mais próximo de uma monologia. Os estudos de Thompson representam um avanço nas considerações sobre as relações entre os meios de produção de sentido e mostram outra angulação nessa visão que até então tinha um predomínio da visão dicotômica entre a Escola de Frankfurt e as teorias centradas na recepção, como as de Thompson.

A interdiscursividade entre a análise do discurso, na semiótica, e as teorias do jornalismo (e as da comunicação) são complementares para um melhor entendimento das relações que permeiam o que Bakhtin nomeia como enunciação.

“Em muitos casos, o enunciado é tido como o produto de um processo, isto é, a enunciação é o processo que produz e nele deixa marcas da subjetividade, da

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intersubjetividade, da alteridade que caracterizam a linguagem em uso, o que diferencia de enunciado para ser entendido como discurso” (BRAIT, 2010. P, 65).

O enunciado, resultante do processo de criação pelo enunciatário é derivado de uma série de processos que no jornalismo são estudados de uma forma mais profunda pelo Newsmaking, a teoria que trata do fazer jornalístico e aos valores-notícia, condições essenciais para que um fato se torne notícia, assim como às rotinas de produção da informação nos meios de comunicação de massa. Procura mostrar quais são os elementos considerados, na rotina de produção, como adequados para que uma informação seja transformada em notícia.

Teorias como o newsmaking são fundamentais para uma percepção do processo produtivo da informação. Porém, podem ser complementadas com outros recursos sinérgicos como a análise do discurso, da semiótica e que busca evidências no processo enunciativo.

As tradicionais teorias que abordam o jornalismo geralmente têm um foco no processo produtivo e uma visão que mostra os meios de comunicação de massa como capazes de desenvolver uma dominação hegemônica sobre o receptor. Em muitos casos possuem uma conotação ideológica.

O discurso gráfico, analisado neste artigo, é composto pelo discurso jornalístico mais os elementos complementares (fotos, cores, tipografia, espaço em branco e gráficos) constituem um espaço de convencimento.

“O discurso gráfico transmite a informação semântica através de seus signos compreensíveis, mas, ao mesmo tempo, produz uma informação visual de reforço estético através de símbolos gráficos que atuam na sensibilidade do receptor” (SILVA, 1985).

Porém, na concepção dialógica de Bakhtin (1996) “o sentido do texto e a

significação das palavras depende da relação entre sujeitos, ou seja, constroem-se na produção e na interpretação de textos”. Não se trata de uma relação isolada, do emissor atuando sobre o receptor como se este não tivesse participação na enunciação. Para Bakhtin, este receptor, denominado enunciatário, é co-enunciador na construção do sentido.

Este artigo analisa o discurso das capas do Jornal Super Notícia partindo de uma perspectiva da semiótica discursiva francesa e do princípio de que esta comunicação entre o enunciador e o enunciatário é dialogal.

2. Ascensão dos jornais populares no Brasil

Os jornais impressos tiveram sua época considerada "de ouro" entre os anos

1900 e 1960 (Marcondes Filho, 2002), quando passaram a sentir os primeiros efeitos dos seus concorrentes eletrônicos como o rádio e a televisão. A partir dos anos 1990 a internet também passa a concorrer com os jornais impressos. Para enfrentar essa concorrência, os veículos desenvolveram diversas estratégias, entre elas a de aprimorar seus recursos gráficos-visuais, especialmente no aspecto do uso de cores, o que os tornou, em muitos casos, visualmente mais parecidos com a revistas e os sites de internet.

A concorrência com os meios eletrônicos fez com que os jornais impressos perdessem leitores nos países mais desenvolvidos, como mostram os dados da ANJ (Associação Nacional dos Jornais) em um levantamento sobre a evolução do número de leitores em todo o mundo. Porém, nos países emergentes, entre eles o Brasil, ocorre um fenômeno diferente, pois, a classe emergente, com menor poder aquisitivo e pouco acesso a bens culturais, passa a buscar mais informação. Dessa forma, os

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países emergentes apresentam um crescimento no número de leitores de jornais. Porém, se trata de um novo tipo de leitor, pouco acostumado a reportagens mais densas. Para atender a este novo público, proliferam os jornais populares. São jornais com tamanhos menores (tablóide), com informaçōes condensadas e com destaque para um uso mais intenso de fotos e cores.

Este fenômeno editorial se consolida, no Brasil, em 2010 quando o jornal Super Notícia, de Belo Horizonte, supera o número de exemplares produzidos por jornais tradicionais como a Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo e O Globo. Segundo dados da ANJ, o Jornal Super Notícia atingiu uma marca de 295.701 exemplares diários contra 294.498 exemplares diários editados pelo jornal Folha de S. Paulo, o segundo no ranking. Deve-se destacar que se trata de um jornal com circulação paga, embora seu preço de capa tenha valores acessíveis para as classes com menor poder aquisitivo. Enquanto a edição do jornal Folha de S. Paulo custa R$ 2,50 por edição, o da Super Notícia custa R$ 0,25. 3. O ato da enunciação nas capas

Na visão bakhtiniana do discurso há um processo interno de produção de

sentido e o mundo exterior. É a sociedade, o mundo exterior, quem produz os elementos que vão influenciar o comportamento individual, do enunciatário e, consequentemente, sua forma de expressão.

A análise do discurso permite a observação de algumas estratégias discursivas que as teorias da comunicação e do jornalismo não consideravam, pois estas apresentavam um foco voltado principalmente para o papel do enunciatário, tratando-o como elemento principal, fundamental na elaboração do discurso jornalístico.

No discurso gráfico apresentado nas primeiras páginas dos jornais há os elementos simbólicos que são indicadores dos efeitos do discurso como o de “verdade”. A análise dos elementos é capaz de indicar um entendimento ideológico presentes no discurso gráfico. A ideologia neste conceito não se limita aos aspectos político que são próprios das teorias das comunicações e do jornalismo, mas em uma visão mais ampla, incluindo as linguagens estereotipadas e os arquétipos.

“A primeira ingenuidade que a análise dos noticiários elimina é de que a ideologia se encontra apenas na parte dos editoriais. A segunda é a possibilidade de um jornalismo “isento”. Um analista deve se interessar pela seguinte questão: como se produz esse efeito de objetividade? (HERNANDES, 2006. p. 30)

As capas analisadas são um recorte do discurso jornalístico. A esmerada programação visual, aliada ao discurso linguístico, resulta em uma fórmula singular de síntese das informações internas da edição do periódico. Na primeira página se concentram os recursos gráficos e textuais de maior apelo ao enunciatário, como as informações mais relevantes do período da edição, as fotos mais representativas e os aspectos visuais mais competentes para provocar o interesse no leitor-enunciatário.

O discurso gráfico, composto pelo discurso jornalístico mais os elementos complementares (fotos, cores, tipografia, espaço em branco e gráficos) constitui um espaço de convencimento.

“O discurso gráfico transmite a informação semântica através de seus signos compreensíveis, mas, ao mesmo tempo, produz uma informação visual de reforço estético através de símbolos gráficos que atuam na sensibilidade do receptor” (Silva, 1985).

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Porém, na concepção dialógica de Bakhtin (1996) “o sentido do texto e a significação da palavras depende da relação entre sujeitos, ou seja, constroem-se na produção e na interpretação de textos”. Não se trata de uma relação isolada, do emissor atuando sobre o receptor como se este não tivesse participação na enunciação. Para Bakhtin, este receptor, denominado enunciatário, é co-enunciador na construção do sentido.

Para Bakhtin (apud Barros, 2002 p. 17), não se trata de uma comunicação unilateral, na qual o enunciatário (leitor) assume uma condição passiva.

O design gráfico cria uma produção simbólica pela construção do sentido. Ele difere do discurso verbal por operar basicamente com o nível visual dos diversos elementos na página impressa. Como discurso, ele possui a qualidade de significação. O discurso gráfico difere do discurso verbal por operar basicamente com o nível visual dos elementos na página impressa.

As capas de jornais são compostas por elementos textuais denominados manchetes, que são os títulos mais importantes e as chamadas (manchetes com informações de menor relevância jornalística). As manchetes e chamadas aplicadas na página são enuncivos porque seus enunciados possuem elementos que remetem à instância da enunciação. Esses elementos são marcados principalmente pela seleção temática, que indicam no enunciado os actantes da enunciação (ele, no lugar do eu), o espaço do enunciado (o que sempre é definido) e o tempo do enunciado (agora).

Naquilo que Greimas denomina como convenção fiduciária entre enunciador e enunciatário para a determinação do estado veridictório do texto, vários pontos lexicais devem ser analisados.

“O acordo fiduciário apresenta dois aspectos: a) como o texto deve ser considerado do ponto de vista de verdade e da realidade; b) Como devem ser entendidos os enunciados: da maneira como foram dito ou ao contrário. (FIORIN, 1996. p.35)

Na narrativa jornalística a verossimilhança é uma condição básica. O texto deve ser e parecer ser verdade. Em tese ele busca uma objetividade que é a transposição para o discurso das informações usando o léxico. O texto deve ser considerado como ponto de vista de verdade. Diferentemente dos textos literários, este texto deve procurar eliminar as marcas da subjetividade, da ambiguidade. O dito é para ser entendido como foi dito. A polissemia, multiplicidade de sentidos, é desaconselhada.

O jornal Super Notícia, assim como a maioria dos jornais, adota uma estratégia do discurso do enunciado enunciado, produzindo um efeito de objetividade. Neste caso, a interação entre o enunciador e o enunciatário se dá por uma interação com efeito de objetividade.

Ao usar a manchete "Mulher Deprimida afoga a filha na banheira"' o enunciador busca produzir um efeito de sentido de instantaneidade, pois a manchete se apresenta no presente do indicativo, diferentemente das notícias, internas da publicação e que complementam os títulos, apresentadas no pretérito. Procura-se neste discurso enfatizar uma imagem de seriedade, de objetividade, como se fosse uma verdade. A escolha do verbo "afoga" em detrimento do condicional "teria afogado" ou "é acusada de afogar" estabelece uma relação de verdade, com o enunciador assumindo o discurso de sua fonte jornalística, nestes casos geralmente constituída pelas autoridades policiais.

O ato da narração é sempre posterior à história contada (Fiorin, 1996. p 63). Desta forma, o uso do verbo no presente busca dar uma imagem de instantaneidade e

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proximidade, como se o enunciador estivesse próximo enunciatário. Esta relação se reforça com a ausência da designação do espaço.

O próprio título da publicação “Super Notícia” é o primeiro indicativo dessa proposição de verdade absoluta. O advérbio “super” exprime a ideia de superioridade, que combinada com a palavra “notícia” potencializa a expressão procurando persuadir o enunciatário de que ele está tendo acesso a uma informação em uma instância maior. A expressão “Super” geralmente é reservada para fenômenos míticos, como “Super Homem. É o grande que se opõe ao pequeno.

Para aquilo que Kerbrat-Orecchioni (1980 p.21-4) chama de leis discursivas, há duas que são as mais evidentes. A primeira delas é a informatividade, que é papel de o discurso não apenas manter a conversação, mas enunciar informações que o enunciatário desconheça. Os jornais comumente usam de artifícios léxicos que ressaltam essa informatividade. Na capa em questão há marcas como “ganha ânimo novo” ou “prometem parar hoje” que traduzem um aspecto de instantaneidade, novidade. A legenda apresentada sobre a foto do carro anuncia que “A Justiça deu prazo de 24 horas” para que a empresa responsável pela obra inicie a recuperação do prédio. Não há nestes casos uma repetição do discurso. A novidade, que é uma característica da noticiabilidade, tem suas marcas nestas expressões. Os anúncios de rodapé reforçam esta proposta discursiva ao afirmar que a promoção é para “esta semana” ou ainda “Garanta já”. Embora não seja objeto deste estudo, pode-se destacar que os anúncios publicitários normalmente trabalham com dados atemporais, não tendo uma relação direta com os tempos da enunciação. Porém, as publicidades de varejo, como os anúncios destacados na página do Super Notícia, por usarem bastante o recurso da promoção, têm um caráter efêmero.

Outra lei da discursividade é a potencialidade da informação. Ou seja, a máxima da quantidade de Grice (apud Fiorin, 2008. p.34). Diz respeito não à existência ou não da informação, mas “à taxa de informação que se deve apresentar numa troca verbal”. O jornal não diz em sua manchete que “Mulher mata a filha”, pois esta informação tem traços de generalidade. Ressalta que a mulher “deprimida”, “afoga” a filha “na banheira”. Três informações complementares fortalecem o enunciado. O adjetivo “deprimida” sugere um estado psicológico anormal da acusada. O uso do verbo “afogar” demonstra que há um procedimento incomum mesmo nos casos de violência e o fato de ser “na banheira” completa o cenário, tentando facilitar a interpretação. Os demais títulos da capa seguem a mesma estratégia. O que poderia ser noticiado como “Homem é morto em banco” é expresso como “Futuro pastor é morto por ladrões na porta de banco”. O uso da expressão “futuro pastor” indica que se trata de uma pessoa preocupada com questões espirituais mas que foi vítima de “ladrões” na “porta de um banco”, local que deveria ser protegido. A terceira manchete da página “Médicos do SUS prometem parar hoje em todo o país” também carrega marcas de potencialização ao usar as expressões “já”, que é agora para o enunciatário, seguido do “em todo o país”, ampliando o espaço de abrangência da informação. O uso do verbo promete resguarda a publicação de uma eventual não confirmação do fato, que na enunciação sugere um ato para “aqui e agora”. Mas que pode não ocorrer.

Destaca-se nesta análise a questão do que Greimas considera como sendo as competências discursivas que são exigidas tanto do enunciador quanto do enunciatário. Há o que se pode chamar de ajustamento das competências para que a sintonia seja perfeitamente sincronizada. O jornal, como enunciador, ajusta a sua competência linguística ao enunciatário para que este consiga assimilar seu enunciado. Algumas expressões usadas nas chamadas de primeira página são próprias

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de uma adequação léxica do enunciador ao léxico do enunciatário. O uso da expressão “Reta Final do Brasileirão” é um chavão usado com freqüência nas coberturas esportivas e corresponde a “Jogos finais do Campeonato Brasileiro”. Porém, essa expressão é mais próxima do léxico predominante coloquial do leitor típico dos jornais populares. Outro enunciado, ainda na mesma página afirma que “Galo terá seqüência indigesta nos últimos sete jogos”. Uma expressão regional e outra figurativa marcam este enunciado. O uso da expressão “Galo” refere-se ao time de futebol chamado Atlético Mineiro e “indigesta” às dificuldades que o time poderá encontrar em seus próximos jogos.

Com as marcas da enunciação presente nas chamadas e manchetes do jornal pretende-se reconstituir o ato enunciativo baseando-se em seus pressupostos.

A debreagem enunciva, aplicada nos textos jornalísticos, cria efeitos de objetividade. Nas manchetes há geralmente uma embreagem com o propósito de neutralizar o tempo da enunciação, substituindo um período que pode ser bem anterior à enunciação, como há vários dias, por um tempo com valor de outro. O fato acontecido, que poderia ser relatado como "Mulher deprimida matou na terça...” é publicada sem o verbo no pretérito e indicação de data, sugerindo que o fato ocorreu em um período temporal mais próximo.

A primeira página do jornal Super Notícia, ao exibir a manchete “Mulher Deprimida Afoga a filha na Banheira” faz uma contraposição entre morte x vida. O sujeito da manchete, informação destacada na página, se apresenta em uma narrativa privilegiada, que tem como sequência uma estratégia de gradação de intensidade. A indicação de que ela “afoga” estabelece uma relação de temporariedade indicando para o presente, o que é uma característica das manchetes de jornais. Embora o fato tenha ocorrido em data anterior, a sensação de realidade se a estabelece pelo verbo no presente do indicativo.

É pressuposta a atitude do enunciador, mas parece legítimo supor que o jornal desenvolve seu discurso, tanto gráfico quanto de conteúdo em função da receptividade do leitor, das suas convicçōes e peculiariedades sociais, econômicas e culturais. Há uma relação dialógica que permeia a construção do sentido. O significado da capa do jornal, neste caso em análise, é o significado resultante das interações baseadas no processo de persuasão e de interpretação. O fazer persuasivo da edição tem suas estratégias que buscam conquistar o destinatário, que, por sua vez, tem uma estratégia de interpretação

Se não houvesse essa relação dialogal, a ressonância estabelecida no enunciatário seria nula e este abandonaria o seu interesse pela publicação. Se, a amplitude de uma ressonância positiva permite a ampliação do seu universo de enunciatários (leitores) como foi destacada na introdução deste artigo, a ausência da ressonância significaria o fim da publicação, como é natural.

A enunciação é sempre um ato focado no eu, aqui, agora, que compõe as categorias da enunciação. O eu, o tu ou ele, são pronomes que indicam a pessoa do enunciado. Para Benveniste, há como pessoa o eu/tu e o ele, que é a não-pessoa. No texto da manchete, a "mulher" (ela) é a não-pessoa, aquela que está no enunciado, mas distante.

Para Fiorin:

“Este (o enunciado) comporta frequentemente elementos que remetem à instância de enunciação: pronomes pessoais, demonstrativos, possessivos, adjetivos e advérbios apreciativos, advérbios espaciais e temporais etc. Esse conjunto de marcas enunciativas colocado no interior do enunciado não é a enunciação propriamente

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dita, cujo modo de existência é ser o pressuposto lógico do enunciado, mas é a enunciação enunciada” (FIORIN 1996, p. 162, grifo do autor).

A ausência dos dêiticos na manchete principal “Mulher deprimida afoga a

filha na banheira” mostra uma atemporalidade e impessoalidade (distância do sujeito) que mostra uma assepsia na informação, um distanciamento do enunciatário. O enunciador se esconde no enunciado. Na manchete o afoga do enunciado está na forma presente do indicativo do verbo. Cria-se uma sensação de que o fato está ocorrendo no presente.

Como destaca Benveniste, o agora do processo enunciativo: “constitui um eixo que ordena a categoria da concomitância vs não concomitância. (anterioridade vs posterioridade), criam-se três momentos de referência: um presente, um passado e um futuro. O momento de referência presente é um agora, pois ele coincide com o momento da enunciação. O momento de referência passado indica uma anterioridade ao momento da enunciação; o futuro, uma posterioridade a esse momento” (FIORIN, 1996, p. 166)

A manchete do jornal, assim como suas chamadas, é publicada no passado cronológico nem tão remoto (as notícias comumente são do dia anterior ou de datas anteriores próximas). Porém, o tempo do discurso é o momento da enunciação. O momento de referência é também o agora, no presente. O momento do acontecimento é posterior à enunciação. Não há uma coincidência entre o momento do acontecimento e o momento de referência, embora o uso do verbo com a flexão “afoga”, sugira essa concomitância. É da práxis jornalística que o título das reportagens seja escrito no presente do indicativo e o restante (o corpo do texto) no pretérito perfeito. Trata-se de um presente durativo, pois o momento de referência é mais longo do que o momento da enunciação. O “afoga” não é o presente do momento, mas uma forma linguística que sugere o prolongamento da ação, como se esta não tivesse sido concluída.

Nos demais títulos da capa o mesmo recurso se repete, como em “Seleção de handebol massacra a Argentina e fica no topo do pódio”. O enunciado sugere uma ação concomitante nos dois verbos usados na chamada.

Quanto ao espaço, o uso da expressão “Mulher deprimida mata” remete a um espaço da enunciação que é distante do enunciatário pois (a mulher) é aquela que responde pelo ato. Como a enunciação é um processo presumido, é lícito supor que o fato não ocorreu “aqui e agora”, tendo em vista que não há marcas na enunciação que levem a essa presunção. Pelo contrário. A ausência de pronomes sugere um distanciamento. O texto que complementa a manchete indica a localização mais exata, “no Sul de Minas”. Neste caso, estabelece-se o “lá”, que é um espaço enuncivo, em oposição ao enunciativo “aqui”.

“Os mecanismos de instauração de pessoas, espaços e tempos no enunciado são dois: a debreagem e a embreagem. Debreagem é a operação em que se projetam no enunciado a pessoa, o espaço e o tempo” (GREIMAS E COURTÉS APUD FIORIN, 1996, p. 178).

A capa da revista trabalha com espaços que não se organizam em relação ao

espaço da enunciação, configurando uma debreagem enunciva. A manchete começa com uma debreagem actancial enunciva, pois nela se estabelece a participante do enunciado, no caso “A mulher”. O verbo afoga, no presente do indicativo presume uma ação concomitante, mas não é real, pois trata-se um recurso que sugere

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concomitância ao marco temporal cronológico, mas que não acontece. A ausência das marcas da enunciação, utilizadas para criar o efeito de objetividade não identificam o espaço da enunciação. O na banheira é o lá. A debreagem enunciva fica evidenciada pelo lá em oposição ao aqui. O espaço da enunciação não é o mesmo do enunciado.

O espaço lingüístico é do eu, mas, quando falo, meu interlocutor aceita como seu. Quando ele se transforma em enunciador, sua espacialidade converte-se na minha. Isso é a condição de integibilidade da linguagem (Benveniste apud Fiorin, 2008. p. 263).

Nos discursos jornalísticos o enunciador em primeira pessoa (eu) é pouco usado. Reserva-se aos artigos, colunas e eventualmente a algumas reportagens nas quais o jornalista busca uma maior intimidade com o enunciatário, mostrando como se fosse um diálogo pessoal, no qual se destacam as impressões individuais.

Embora o discurso jornalístico priorize o discurso reportado, com o uso de um verbo introdutor, comumente representado por um verbo dicendi, nas manchetes e chamadas de capa dos jornais, frequentemente esse recurso não é usado.

O tempo é subvertido na manchete e nas capas do jornal. Verbos como “afoga”, “ganha” e “massacra” indicam posterioridade em relação ao marco temporal pretérito naquele momento. Isto cria uma sensação de real, embora seja hipotética, criando um simulacro do real, usando a estratégia que Fiorin considera como sendo de substituição da anterioridade pela concomitância.

Embora no discurso gráfico jornalístico existam diferentes vozes, o ethos sugere que seja monofônico. Há uma preocupação, geralmente ordenada por manuais de redação para que a linguagem verbal e gráfica seja padronizada. Nos textos internos a polifonia é marcada pelos artigos, crônicas, charges e colunas, que têm seus autores identificados. Esta polifonia busca transmitir uma imagem de pluralidade, de diversidade. Nas capas das publicações esse efeito é minimizado ou quase eliminado. A capa é uma expressão destacada do ethos da publicação e, por esse motivo, comumente busca ter um caráter monofônico.

É polifônico o texto “em que se deixam entrever muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos, que escondem os diálogos que os constituem” (Barros, 1994. p.5). Polifonia e monofonia são diferentes efeitos de sentido que podem ser analisados no discurso. No discurso jornalístico busca-se uma monofonia do discurso procurando-se dar uma só voz, que reforça o ethos.

Os discursos autoritários são monofônicos porque não permitem o contraditório, as ambiguidades, criando uma ilusão de verdade. Outros discursos, como o poético, por exemplo, são polifônicos, pois permite a fluição de várias vozes, expondo seus conflitos e contradições. 4. Considerações finais.

O ethos do enunciador de quem compõe o jornal Super Notícia, não identificado explicitamente, é definido a partir de suas escolhas para a construção do discurso em análise, no caso a capa do jornal. Há uma predominância de um discurso no qual são definidas as temáticas. Também é preciso destacar-se que esta tem sido a tendência no jornal desde que surgiu, há dez anos, pois como bem define Bakhtin, "a concepção de enunciado/enunciação não se encontra pronta e acabada numa determinada obra, num determinado texto: o sentido e as particularidades vão sendo construídos ao longo do conjunto das obras" (Brait, 2010. p 65)

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Beth Brait defende ainda que, embora possa parecer um contra-senso falar sobre estilo e Bakthin, já que suas obras estão focadas no confronto entre as diferentes vozes que se colocam no discurso, e não em uma relação de submissão e consumo inconsciente, como se aborda no início deste artigo, é possível definir um estilo das obras.

"Bastaria acompanhar as primeiras páginas de alguns jornais diários, ou capas de algumas revistas semanais, para aí encontrar o "estilo" do jornal, o "estilo" da revista, sempre estabelecido a partir não apenas dos assuntos em pauta no dia, mas das escolhas verbo-visuais que são feitas para expor esses tópicos, e, também da relação que o jornal mantém, ou pretende manter, com seus leitores" (BRAIT, 2010, p. 84)

Considerando as premissas das teorias que envolvem a enunciação, é provável

que alguns destes aspectos destacados nesta análise não são resultado de uma estratégia editorial elaborada e implementada pelo veículo de comunicação. Muitas delas talvez sejam decorrentes da práxis jornalística combinadas com um projeto editorial, mas seus efeitos demonstram uma astúcia da enunciação (parafraseando Fiorin) que levou o jornal Super Notícia a se destacar entre os periódicos nacionais.

Os elementos simbólicos presentes no discurso da capa e analisados sob as leis da semiótica complementam as tradicionais teorias da comunicação. São duas visões distintas, não exclusivas e sim sinérgicas. Referências Bibliográficas LIVROS BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia e intertextualidade. São Paulo : EDUSP, 1994. BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral. São Paulo : EDUSP, 1976. BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo : Contexto, 2010. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo : Ática, 2008. _____ , José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo : Ática, 1996. HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques : o que o jornal, revista, TV, rádio e internet fazem para captar e manter a atenção do público. São Paulo : Contexto, 2006. KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. L´enonciation. De La subkectivité dans La langage. 5 ed.. Paris : Armand Colin, 1995. MARCONDES FILHO, Ciro. In: Comunicação & Jornalismo: a saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker, 2002. SILVA, Rafael Souza. Diagramação - O Planejamento Visual Gráfico na Comunicação Impressa. São Paulo: Summus, 1985. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995.

INTERNET ANJ. Leitura de Jornais no mundo. Disponível em: http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/leitura-de-jornais-no-mundo. Acesso em: 03 de novembro de 2011.

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Anexo (capa do Jornal Super Notícia)

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Música de Intervenção Cabo-Verdiana - Ludmila Jones Arruda (UPM)

RESUMO: Inserido nos estudos de Lusofonia, o presente trabalho pretende analisar alguns aspectos presentes na música de intervenção de Cabo Verde compostas entre 1935-1975, período em que compreende o Estado Novo em Portugal. Com o intento de reafirmar a sua identidade, Cabo Verde, espaço escolhido para o presente estudo, revela em suas produções culturais e literárias valores que mais o caracterizam, elevando o que é africano e o que de fato faz parte da vida do cabo-verdiano. Palavras-chave: Diáspora; Cabo Verde; Música de intervenção; Identidade.

“A cultura constitui um dos vectores principais, se não o principal, para a

afirmação de Cabo Verde no mundo”. A afirmação de Manuel Veiga (VEIGA, 2005, p. 22), Ministro da Cultura de Cabo Verde, publicada em um livro de comemoração dos 25 anos da independência de Cabo Verde, exalta a riqueza da cultura cabo-verdiana, característica que pôde ser reafirmada, principalmente, por ocasião da independência ocorrida em 1975.

Antes de alcançar a independência, porém, não só os cabo-verdianos, mas também angolanos, moçambicanos, são tomenses, guineenses e timorenses foram obrigados a se submeter às normas impostas pelo colonizador. Foi a partir de 1932, com o começo do Estado Novo em Portugal, no governo salazarista, que a imposição de algumas medidas e a maneira como os países colonizados eram tratados, que as revoltas dos povos colonizados ficaram mais evidentes. Eles se mostraram insatisfeitos com o resultado e com o quadro encontrado nas províncias ultramarinas nesse período. As más condições de vida permaneciam; não havia trabalho suficiente para os africanos; não havia educação para as crianças do local e a pobreza nos países crescia.

A situação apresentada por Salazar, porém, contrariava ao que de fato acontecia. O seu governo mostrava os benefícios que as colônias estariam adquirindo, e engrandecia o império português, ao mostrar as ações que o governo ultramarino exercia e a população portuguesa que vivia nessas “nações portuguesas” espalhadas pelo mundo. Afirmava, ainda, que a cultura portuguesa estaria sendo expandida pelas colônias. A imposição de uma cultura europeia, para o colonizado, era uma forma de repreensão e advertência à cultura dos países africanos. Com seus valores culturais sufocados, devido à rigorosa censura imposta pelo governo, e a situação desfavorável, restava-lhes lutar para conseguirem a independência. Outra grande consequência desse governo e das más condições de vida, Cabo Verde enfrentou a evasão de milhares de cabo-verdianos durante esse período, e ainda, a morte de muitas pessoas devido à fome e à seca que até hoje assolam o país. A queda da ditadura em Portugal, em 1974, foi decisiva para que os territórios ultramarinos conseguissem a sonhada liberdade.

Ainda que a imposição portuguesa nas colônias apagasse a cultura, a língua e os costumes africanos, na tentativa de moldar a população à identidade europeia, é perceptível a determinação dos africanos de constituírem a sua própria cultura, os seus valores e reafirmarem a sua identidade.

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É com essa intenção que Cabo Verde recria o seu próprio padrão, reafirma a língua crioula, enaltece a sua cultura e reúne, assim, esforços para lutar contra o estigma do colonizador. Foi aproximadamente nessa época, durante o período Salazarista, que surgiu em Cabo Verde um gênero de canção conhecido como “músicas de protesto” (ou intervenção) – ou seja, composições que tinham o intuito de criticar o governo, despertando a população para questões de ordem política e social – focalizando temas relacionados à dinâmica do governo português e às condições de vida nas colônias ultramarinas. No bojo dessa intenção, revela-se fortemente, também, a cultura cabo-verdiana e as peculiaridades dos ilhéus. Com a censura, porém, muitas das músicas que criticavam o governo português, falavam das guerras que devastaram o mundo, ou tratavam das particularidades do país, só se tornaram conhecidas após 1975.

Em 1999, Alberto Rui Machado14 reuniu, dividindo em cinco coletâneas de CDs com diferentes temas, as músicas da época que tratavam desses assuntos proibidos, a fim de difundir a música cabo-verdiana pelo mundo. Para o presente artigo, foram selecionadas duas canções que fazem parte do primeiro CD, que contém músicas de protesto surgidas no período colonial e no pós-independente. Sabendo que a letra da música revela características de um determinado povo, é possível por meio dela compreender certos aspectos que inquietavam a vida do cabo-verdiano. As duas canções são “Nhô Keitóne” e “Cêu di S. Tomé”. Para que seja possível a compreensão das músicas citadas, faz-se necessário uma abordagem, ainda que sucinta, sobre alguns aspectos da história de Cabo Verde. Vale salientar que no presente trabalho não serão abordados os sons, o ritmo e o estilo de música, pois exigiriam outras considerações e ensejariam outra pesquisa; e o foco, neste trabalho, reside apenas na análise da letra e o que dela se pode depreender quanto à expressão e o contexto histórico vivido pelo cabo-verdiano na época.

Aspectos Gerais de Cabo Verde

O arquipélago de Cabo Verde está situado na costa ocidental da África, possui

dez ilhas – sendo uma delas inabitada – com uma população de aproximadamente 400 mil habitantes de acordo com o último censo, realizado em 2010.

O país foi ocupado pelos portugueses em 1492 e servia como local de estratégia para a ocupação de escravos que saíam de outros lugares da África para se estabelecerem no Brasil. A dominação portuguesa no país se estendeu até 1975, um ano após a Revolução dos Cravos, ocorrida em Portugal. Antes dessa revolução, Portugal atravessou um período longo e intenso de ditadura, que foi crucial para que os países dominados pelos portugueses lutassem pela sua libertação e contra o governo português. O período da Ditadura Salazarista foi marcado, também, pela rigorosa censura imposta pelo governo, e com isso os povos não tinham voz e nem direito de opinar ou argumentar sobre a situação que eles viviam.

Em Cabo Verde, o quadro era caótico: o clima árido do país, prejudicava uma das principais atividades que serviam como grande fonte de renda do país, a agricultura. Dessa forma, muitos cabo-verdianos, sem uma vida que pudesse lhes trazer conforto ou estabilidade, sentiam a necessidade de sair de seu país em busca de melhores condições de vida. O período de chuva, em Cabo Verde, começa apenas em                                                                                                                          14 Engenheiro de formação, foi ativista político cabo-verdiano, e apoiou o Estado Novo, porém, ficou desiludido com a manipulação dos resultados eleitorais em 1958. Atualmente mora em Portugal e é presidente da “Associação Caboverdeana”[sic].

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julho e termina em outubro, e não é constante; nos outros meses, de novembro a junho, o período é de seca, como pontua Andrade (1998): “Distinguem-se duas estações durante o ano: o ‘tempo das brisas’ ou estação seca de Dezembro a Junho, e o ‘tempo das águas’, ou estação das chuvas, de Agosto a Outubro, muito irregular, pois é frequente a escassez ou falta de chuvas [...]” (ANDRADE, 1998, p. 22). Além da falta de chuvas, Cabo Verde está numa região muito propensa a lestadas (também conhecido como harmatão) vindas do deserto de Saara, que colabora para o clima seco da região. Esses ventos provenientes do Leste são secos e quentes que correm numa direção do leste a oeste (do Saara até a parte oeste da África). Esse clima seco traz problemas para a agricultura e a plantação, que é a principal mão-de-obra do país. Somando-se esses fatores à falta de alimentação suficiente, o quadro do país na época colonial era de fato caótico. Cabo Verde sofreu bastante com a fome, que dizimou milhares de cabo-verdianos em algumas épocas do século XX: em 1940 cerca de 30 mil cabo-verdianos morreram devido, principalmente, à falta de chuva e de comida. Esse problema em relação ao clima, ao trabalho e, consequentemente, à alimentação pressionou a emigração dos cabo-verdianos na busca de trabalho para que pudessem sobreviver e ajudar os familiares. Para que possamos ter noção da quantidade de cabo-verdianos que viviam em Cabo Verde no início do século, segue a tabela organizada com base nos dados encontrados em Carreira (1984, p. 15):

Quadro 1 – Dados dos censos realizados em Cabo Verde

A explicação para a queda do número de habitantes entre 1900 – 1905, 1919 –

1929 e, ainda, entre 1939 – 1949, pode ser explicada, principalmente, pelo alto número de mortes devido à fome que matou muitos habitantes do local nesses períodos. Segundo Carreira (1984), houve 14.480 mortes pela fome entre 1903 e 1904; 5.192 em 1919 e 1920; 17.575 em 1921; 24.463 entre 1941 e 1943 e 20.813 em 1947 e 1948. Com essa quantidade, pode-se estimar que morreram ao longo desses anos, aproximadamente, 82.523 cabo-verdianos por conta da fome – o que, considerando-se o número de habitantes, é um número expressivo (p.16). Sabe-se que o problema da fome enfrentado pela população cabo-verdiana não era uma questão desconhecida pelo governo português. Henrique Galvão, Inspetor da Administração Colonial nomeado por Salazar para registrar os acontecimentos nas colônias ultramarinas, anotou em uma de suas viagens às colônias os problemas enfrentados pela população nessas regiões. Contudo, Salazar não estava interessado em fazer tais mudanças e sua intenção era apenas exaltar as coisas boas e ricas

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existentes nesses espaços para mostrar que o governo português era o responsável por tais mudanças. Alguns relatórios de Henrique Galvão foram confiscados pela censura do governo português por apresentarem detalhes que poderiam contradizer os discursos de Salazar. Como podemos ver, em uma passagem escrita por Henrique Galvão, o seu discurso contra o governo salazarista:

Em Cabo Verde agoniza uma população inteira e mantém-se um regime de terras medievais. Será preciso recordar-te que me enviaste especialmente a Cabo Verde para acudir uma crise de fome que já havia ceifado um quinto da população e para estudar o conjunto de medidas tendentes a evitar crises futuras? Que estudei, que informei, que propus – e que meus relatórios e instâncias foram sepultados com todas as honras nos arquivos confidenciais do ministério? (GALVÃO, 2010, p. 82)

Sem medidas que pudesse trazer melhoras para a população, o povo sente-se

obrigado a sair de lá: “Fatores naturais (pobreza do meio, ciclos de seca), factos induzidos do exterior (pestes e ataques devastadores de corsários) e um elevado índice de natalidade serão as principais causas desta realidade que ele reparte pelos itens centrifugadores “emigração espontânea”, “emigração forçada”, “emigração clandestina” e centrípeto “emigração (e retornos)”. (CARVALHO, 2006, p. 19-20). A emigração era a única chance de trazer ao cabo-verdiano uma vida que pudesse trazer algum conforto ou possibilidade de mudança para o cabo-verdiano e a família. A diáspora é um fator que ocorre principalmente a partir do século XX no país. “O que se busca, tanto nos deslocamentos interilhas como para outros continentes, é a possibilidade de alterar uma situação que se mostra permanente e inviável” (HERNANDEZ, 2002, p. 104). Há, na história cabo-verdiana, alguns períodos em que a emigração foi mais intensa: A primeira, entre 1900-1920, foi a fase que muitos cabo-verdianos viajaram para os Estados Unidos; a segunda, entre 1927- 1945 – houve a alternância entre alguns países da África (Angola, Senegal) e da América Latina (Brasil, Argentina e Uruguai); a terceira e última etapa ocorreu 1946-1973, e foi a mais intensa por ter maior evasão devido ao término da segunda guerra mundial e à fome e à seca que levaram milhares de cabo-verdianos à morte. Nessa última fase, os destinos procurados foram, justamente, a Europa. Vejamos, mais detalhadamente, o quadro abaixo, elaborado com base em Carreira (1984), sobre a quantidade de cabo-verdianos em cada lugar:

DIÁSPORA CABO-VERDIANA

1900 – 1920 1927 - 1945 1946 - 1952

Estados Unidos 18.629 1.408 538

Brasil, Uruguai, Chile e Argentina

1.968 1.203 86

Guiné 2.247 1.197 901

São Tomé e Príncipe 1.532 133 2

Angola e Moçambique

366 352 6

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Lisboa 1.232 3.336 3.933

Quadro 2 – Diáspora cabo-verdiana O total de emigrantes nessas épocas, de uma maneira geral, além dos lugares

listados, são: entre 1900-1920 são 18.629 que saíram de Cabo Verde; entre 1927-1945, 10.120; entre 1946-1952, 6.804; e na última fase, entre 1953-1973, dois anos antes de independência foram 135.289 cabo-verdianos, a maior evasão do século.

Vale lembrar que Carreira (1984) mostra dois diferentes conceitos de “emigração”, a “emigração espontânea” e a “emigração forçada”. Entende-se por ‘espontânea “toda a corrente emigratória livre de quaisquer alienações, ‘peias ou incidentes deixados à exclusiva iniciativa particular’” (p. 160), e por ‘forçada’

toda a que se processa em consequência da ruptura do equilíbrio produção/população, ruptura essa provocada por secas, fomes, mortandades ou pressão demográfica e de que os governos se aproveitaram para incentivar e encaminhar, por meio de medidas legislativas ou processos administrativos, a saída da população com o objectivo deliberado de proporcionar mão-de-obra abundante e a baixo salário às organizações agrícolas e industriais do tipo capitalista da região tropical ou equatorial (p. 161)

Ressalta-se que, a quantidade de cabo-verdianos que vive no arquipélago é menor do que a quantidade que está fora de seu país: estima-se que haja, pelo menos, o dobro de cabo-verdianos fora de Cabo Verde (especialmente nos Estados Unidos). O censo de 1980 confirmou que cerca de 700 mil cabo-verdianos viviam no exterior e a metade vivia no arquipélago (HERNANDEZ, 2002, p. 106). Atualmente, com base no recenseamento realizado no país em 2010, há cerca de 461.683 habitantes nas ilhas.

Localização, fome, seca e diáspora são aspectos que fazem parte da história do povo cabo-verdiano. Nas produções literárias de Cabo Verde é marcante a preocupação com esses aspectos citados acima, como a alimentação, a diáspora, e a seca no país.

Música Cabo-Verdiana

As duas músicas escolhidas para serem analisadas no presente trabalho foram

criadas durante o período ditatorial português, porém só divulgadas após a independência por serem censuradas pelo governo.

A primeira delas, “Nhô Keitóne”, diz respeito à substituição de Salazar por Marcelo Caetano, 1968, por motivo de saúde. Caetano, após assumir o governo, visitou as colônias ultrmarianas sem que os povos soubessem, assim como está na letra a seguir:

O Sr. Caetano

Apareceu caminhando Com os dentes à mostra

A acenar-nos Ele quer (vir) convencer o povo

Que a fome desta vez vai acabar [1]

Desde o tempo da miséria Estamos fartos das suas cantigas [2]

Muita gente já morreu

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Outros saíram, foram pra S. Tomé, [3] E os que cá ficaram

Estão a morrer em pé. Como dizia o Sr. Djunga

Para uma mão de milho há cem perús [4] Sr. Caetano

Vá-se embora daqui [5] E leve-os a todos

Porque aqueles que ficarem Vamos enviá-los para o cemitério.

Interessante verificar como o autor do CD colocou no encarte, ao falar dessa

canção: “Marcelo Caetano tentou usar o seu charme para conquistar os povos das colónias. Talvez para mostrar que era diferente de Salazar, o qual vivera encerrado em seu gabinete, fez uma viagem relâmpago a Cabo Verde.” Vale ressaltar que Salazar nunca visitou uma colônia ultramarina, vivia “encerrado no seu gabinete”. Caetano, como é mencionado na canção, comportou-se de maneira diferente de Salazar, passando uma impressão de que estaria mais preocupado com a situação das colônias ultramarinas e, talvez, interessado em fazer algo para mudar a situação do povo. Os cabo-verdianos não sabiam da visita de Marcelo Caetano, pois “foi rodeada de tantos secretismos que só se teve conhecimento dela, quando Marcelo Caetano já se encontrava na Ilha do Sal”. A canção mostra a insatisfação do povo ao ver que essas visitas não provocam mudanças nos resultados e eles já estavam exaustos de tantas promessas não cumpridas e da situação que o país se encontrava. A fome parecia não ter solução, e é justamente essa questão que a música traz, e ainda menciona o fato da diáspora devido à impossibilidade de viver nessas condições.

Esta é, talvez, a canção de maior impacto deste disco. Com uma letra enfática e intensa, interpretada por Nhô Balta, não deixa dúvidas quanto à gravidade da situação vivida pelo cabo-verdiano na época de 1970. A nação, que já tinha vivido décadas em situação de miséria, sendo, muitas vezes, forçada a deixar o país, estava farta de viver sem mudanças. O intérprete dessa canção, Nhô Balta, é um dos cabo-verdianos diasporizados, morando atualmente nos Estados Unidos.

São essas especificidades de Cabo Verde que, sempre presentes na música, vão transformando a identidade nacional. O povo lutava contra a presença de Caetano [5], a quem via como uma figura com o poder de fazer a fome acabar [1] e [4]. Via-o na posição de colonizador, “superior” ao colonizado. O cabo-verdiano sentia o descaso e a hipocrisia do colonizador ao querer mostrar que a situação do país mudaria [2].

O fato de a canção mostrar bem esse desprezo observado pelo cabo-verdiano, apresenta a intenção do povo de mostrar a sua voz, e a de não aceitar passivamente as condições impostas pelo colonizador. A canção aponta também a decisão do povo de emigrar (ou, obrigação, já que poderia ser considerada uma emigração forçada) e construir a sua vida em outro lugar, como por exemplo, São Tomé, relatado na canção. E o fato de uma pessoa sair de um país devido às condições adversas do local, expõe que esteja indo contra a sua vontade, o chamado “querer-ficar-e-ter-de-partir” [3], expressão recorrente em textos literários cabo-verdianos. Como discorrido no capítulo dois, sobre o número expressivo de cabo-verdianos que emigraram, vemos como a diáspora faz parte da história do país e está presente também nas manifestações artísticas.

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A segunda canção é ‘Céu Di S. Tomé’, uma música que mostra a realidade da “emigração forçada”. São Tomé era o destino bastante procurado pelos cabo-verdianos, e eles buscavam, nessas saídas, melhores condições de vida, e muitas vezes, deixavam o restante da família em Cabo Verde, com a esperança de que voltariam para buscá-los ou talvez, mais tarde, o país pudesse melhorar para que eles conseguissem viver dias melhores.

Oh mar, Oh mar, Oh, mar

Leva os meus filhos de mansinho [1] Oh Céu de S. Tomé

Cobre-os com todo carinho

Hoje a nossa terra não tem nada [2] Mas amanhã ela terá [3]

Oh, Céu de S. Tomé

Cobre-os com todo carinho Oh mar, oh mar

Trá-los outra vez de mansinho Essa saudade, essa lágrima

Que eles levam na barriga inchada Deus limpá-la-á um dia

Que é para todos nós sorrirmos [4]

Mesmo com a situação sempre desfavorável para o país, como se vê na composição anterior, em outras, o povo expunha esperança, embora carregada de tristeza devido à fome, à falta de emprego e à falta de uma vida estável que pudesse trazer conforto aos cidadãos que viviam no país.

Vale destacar que a indignação dos cabo-verdianos não é para com o povo português, como enfatiza o autor do encarte; eles lutam contra um regime colonial, e não contra um povo. Os cabo-verdianos ansiavam por uma mudança radical, que lhes trouxesse uma vida digna, sem miséria, pobreza ou falta de trabalho. Com a colonização, eles imaginavam que os portugueses eram os únicos que poderiam ajudá-los a construir uma vida melhor, porém, como a história revela, o Salazarismo tinha outras pretensões, outros objetivos.

A canção destaca a diáspora e a tristeza das famílias que nada podiam fazer diante da situação apresentada [1] e [2]; revela, também, a tristeza pela saída dos familiares com destino a São Tomé. A canção mostra certa esperança de uma vida melhor, com algum conforto e estabilidade, sem a necessidade da emigração [3]. Vemos na canção a esperança de que um dia, os emigrantes pudessem voltar e viver dignamente em seu próprio país [4]. Essa reiteração de que uma vida melhor estaria por vir, se faz presente recorrentemente nas composições cabo-verdianas, acreditando que a independência da nação proporcionaria dias melhores.

Das dezesseis músicas existentes no CD, quatro delas falam diretamente sobre a condição de vida dos ilhéus, como podemos ressaltar, a fome, a seca, a miséria e a falta de trabalho. Outras músicas criticam duramente o governo português e contam, por meio da música, os fatos políticos ocorridos durante a ditadura. Vale lembrar também, que dentre todas as músicas, a língua local de Cabo Verde, o crioulo cabo-verdiano (mistura da língua portuguesa com línguas africanas locais) foi a língua utilizada como língua oficial da canção. Apenas em uma delas a canção foi

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originalmente escrita em português. No encarte utilizado para a análise, todas as letras estão com a respectiva tradução em português, feita pelo subscritor do disco, Alberto Rui Machado.

Nesta pesquisa, verificou-se a importância que o cabo-verdiano atribuiu à música, especialmente a morna, gênero musical considerado típico e simbólico no contexto da música cabo-verdiana e o mais frequente na antologia musical escolhida para análise. Considera-se portanto, a morna, como um traço importante na construção identitária deste país, uma vez que por meio dela são reveladas as emoções, os sentimentos e a indignação de um povo sofrido diante de diversos entraves advindos do processo colonizatório. Foi a música cabo-verdiana um dos meios que possibilitou que o mundo efetivamente conhecesse algumas especificidades marcantes do cabo-verdiano, como a saudade e a esperança – constantemente refletidas nas composições e nas melodias predominantemente “lentas” e melancólicas da morna.

Verificou-se, ainda, que a expressão musical auxiliou no processo de emancipação cabo-verdiana e alimentou a liberdade de expressão dos seus ideais, como assinala o escritor cabo-verdiano Ovídio Martins: “Os nossos violões sonham. O que dizem, leva-o o vento. E o vento ninguém pode parar. [...] E o povo chora, o violão sonha e o tocador toca. E choro e sonho e música é canto. E canto, na hora própria é grito. E grito é libertação.” (MARTINS, 1983, p. 8-9).

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A prática discursiva publicitária e a produção de significados em textos multimodais - Maria do Carmo Meirelles Reis Branco Ribeiro (PUC – SP)

RESUMO: Os anúncios publicitários apresentam uma organização argumentativa com a finalidade de convencer ou persuadir seus leitores a adquirir o produto anunciado e, assim, transformam-nos em consumidores.Neste sentido, considerando-se as categorias analíticas propostas por Van Dijk (2007) - sociedade, cognição e discurso – pode-se dizer que o discurso publicitário articula as cognições sociais, formas de representação socialmente motivadas, de modo a desempenharem tais funções. Os resultados obtidos indicam que: 1. A organização dos textos analisados apresenta uma regularidade na qual pode-se afirmar que se obedece a um modelo típico, com motivações pragmáticas; 2. Os anúncios analisados buscam, por meio da articulação de argumentos socialmente relevantes, provocar convencimento ou persuasão em seu auditório; 3. O material analisado apresenta valores culturais e ideológicos implícitos.

Palavras-chave: discurso publicitário, argumentos, representações sociais.

Esta comunicação está situada na área da Análise Crítica do Discurso com as vertentes sócio-cognitiva e semiótica social e na Linguística de Texto, e tem como tema a produção de significados em anúncios publicitários, publicados em revistas brasileiras de grande circulação. Tem-se como hipótese que os anúncios publicitários são construídos a partir de uma superestrutura argumentativa, com a finalidade de convencer ou persuadir seus leitores a adquirir o produto anunciado e, desta forma, transformam-nos em consumidores. Apresentam, portanto, dimensão discursiva e textual, na medida em que os textos são produzidos no e pelo discurso.

A dimensão discursiva define-se por seus participantes, suas funções e ações. Na categoria dos participantes, encontram-se anunciantes e público, cujas funções consistem na divulgação do produto, no caso dos primeiros e no orientação que será dada à produção material, provocada pelo segundo. As ações se referem à própria materialização do texto publicitário, modalizado pelas funções de cada um.

A dimensão textual considera o texto multimodal, composto por imagem e enunciado verbal. O anúncio, materialização do discurso, tem por finalidade promover a divulgação e a venda de um produto e, para tanto, busca argumentativamente, construir um texto com a intenção de persuadir o leitor a comprá-lo. Para tanto o anunciante vale-se de estratégias e procedimentos que levam em consideração valores socialmente compartilhados. O problema a ser pesquisado consiste na identificação das estratégias argumentativas utilizadas neste processo, como estas articulam os valores implícitos nos anúncios analisados, relativos ao papel que a mulher desempenha como mãe, e que são responsáveis pela produção de significados. É objetivo geral deste trabalho contribuir com os estudos relacionados com o discurso publicitário. São objetivos específicos: 1. levantar a organização multimodal dos anúncios - a relação entre enunciado verbal e representação imagética; 2. Analisar a superestrutura argumentativa que subjaz aos anúncios; 3. identificar valores implícitos, culturais e ideológicos, responsáveis pela geração de significados. Justifica-se esta pesquisa na medida em que os anúncios publicitários são a materialização de uma prática discursiva que articula valores implícitos, culturais e ideológicos, subjacentes a aspectos identitários de vários grupos sociais, possibilitando a detecção de muitos deles, mesmo quando implícitos. De acordo com

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Sant’Anna (2000), “a publicidade busca identificar desejos latentes na sociedade e promete satisfazê-las plenamente, com o mais baixo esforço e ao menor custo financeiro possível”. Assim, a prática discursiva publicitária, por meio de pesquisas de marketing, investiga as tendências, necessidades e preferências dos diversos segmentos do mercado, considerando a opinião de seu público,e materializa no anúncio os resultados deste trabalho. Neste sentido, o texto interaciona com o leitor, refletindo seus valores.

Fundamentação teórica

1. A Análise Crítica do Discurso com vertente sócio-cognitiva. Segundo a ACD com vertente sócio-cognitiva, os discursos são analisados a

partir de contribuições multi e transdisciplinares. Dessa forma, a teoria lingüística interrelaciona-se com outras disciplinas, como a sociologia, etnologia e principalmente as ciências da cognição. Neste sentido, postula-se que o texto é fruto de uma prática discursiva, na qual, de forma bastante complexa, os fatores sociais interagem com os individuais para a sua produção. Por fatores sociais, entenda-se, além de outros, as representações mentais, formas de conhecimento que se constroem a respeito do universo referencial. Por fatores individuais, considerem-se as experiências de vida. Note-se que as representações mentais têm um caráter social, na medida em que são construídas no e pelo social, através do discurso. Tais representações têm natureza memorial e seu conjunto constitui o marco da cognição social de um determinado grupo. Ou seja, o social orienta o discurso, enquanto que este, por sua vez, constitui o social. É o discurso que instaura as situações de conhecimento, a identidade social das pessoas e as relações que estas estabelecem entre si.

A Análise do Discurso com vertente sócio-cognitiva considera três categorias analíticas: sociedade, discurso e cognição, interrelacionadas, que se definem uma pela outra. Entende-se sociedade como uma estrutura formada por grupos de indivíduos, reunidos por terem os mesmos objetivos, interesses e propósitos, de modo a focalizarem a realidade a partir de um ponto de vista comum. Discurso é o conjunto de regras que determinam quais ações os membros de um grupo podem desempenhar. Para Silveira (2006, p. 208), o discurso é visto como modelo mental e define-se como “uma interação social, decorrente de uma prática sócio-cognitiva e ligada a convenções sociais”, enquanto que o texto é a materialização dessa prática sob a forma verbal. Cognição é definida como a forma segundo a qual os indivíduos elaboram representações do mundo em suas mentes. Partindo-se do pressuposto de que o indivíduo não pode representar o que vê na sua totalidade, mas sim por meio de um processo de análise e síntese da realidade, a partir de um determinado ponto de vista, presume-se que esta representação ocorre de acordo com a posição que ele ocupa dentro da sociedade.

As representações sociais têm raízes em valores culturais ou ideológicos. Cultura e ideologia diferenciam-se na medida em que aquela diz respeito às representações simbólicas passadas de geração a geração, adaptando-se às novas circunstâncias que se lhes apresentam. Ideologia, por sua vez, refere-se aos valores impostos a um grupo social por uma classe dominante e, por essa razão, é discriminatória. As representações constituem um tipo de realidade (Moscovici: 2003, 36), entidades com leis próprias, com vidas próprias, que se comunicam entre si.

2. A Análise Crítica do Discurso com vertente Semiótica Social

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A Semiótica Social é uma vertente da Análise Crítica do Discurso que se ocupa dos textos multimodais, ou seja, daquelas construções que articulam mais de um sistema semiótico na produção significativa, como a combinação do sistema lingüístico com o imagético, o musical etc.

Parte do princípio de que diferentes aspectos da experiência podem ser representados em uma mesma linguagem tendo por base diferentes posições ideológicas. A criação de signos é guiada por pontos de vistas particulares dos indivíduos, têm origem em dados culturais, sociais, psicológicos e pragmáticos dos seus criadores. Assim, um objeto nunca é representado integralmente, mas apenas alguns de seus aspectos. As diferentes linguagens, articuladas em uma única produção textual são passíveis de gerar significados culturalmente orientados.

Outro dado a se considerar é que as construções multimodais obedecem a um conjunto de regras de produção e leitura, válidas nas culturas ocidentais contemporâneas. De acordo com essas regras, não apenas a seleção das imagens é relevante, como sua localização em relação aos demais componentes significativos. Neste sentido, os elementos situados à esquerda da composição constituem as informações compartilhadas entre produtores e receptores das mensagens. Aqueles colocados à direita, configuram a informação nova trazida pelo texto. Ao alto, encontra-se tudo aquilo que é idealizado pelo produtor/receptor e, na parte inferior da composição, a contrapartida do real.

3. A linguística textual. Kintch e van Dijk (1975, 1983) e van Dijk (1978) tratam a formação do texto por estruturas, a saber, macro, micro e superestrutura.Van Dijk refere-se, em suas obras, a diferentes superestruturas. Segundo o autor, uma superestrutura é definida por suas categorias textuais e a ordem fixa dessas categorias. A superestrutura do argumentativo apresenta, para o autor, a seguinte organização:

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Para o autor, a relação premissa-hipótese-conclusão passa pelos Marcos das Cognições Sociais, apoiando-se nas representações sociais armazenadas na memória de longo prazo. O discurso publicitário

A prática publicitária, por meio do anúncio, sua materialização, tem como propósito, desencadear o desejo de compra de um produto. Procura, por meio das pesquisas de marketing, localizar os “gérmens de desejo” (Sant’Anna, 2000), criar necessidades e procurar satisfazê-las com o menor custo e da forma mais eficiente possível.

JUSTIFICATIVA  

Se  Pedro  tirou  4  

 

CONCLUSÃO  

Foi  reprovado  

 

MARCO  

A  relação  nota  insuficiente  e  reprovação  só  ocorre  em  situação  de  exame  final  

 

 

CIRCUNSTÂNCIAS:  

PONTOS  DE  PARTIDA  

 

ARGUMENTOS:  

FATOS  

Pedro  não  estudou.  Sem  estudar  não  se  consegue  nota  

LEGITIMIDADE  

Há  uma  regra:  4  não  é  suficiente  para    passar  

REFORÇO  

Na  escola  de  Pedro,  um  4  não  é  suficiente  para  passar  

Argumentação  

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O anúncio impresso apresenta uma organização típica, composta por: título, desenvolvimento e assinatura. O título compreende a chamada, ou o nome do produto anunciado, geralmente ao alto da composição. De forma generalizada, expande-se, de modo a apresentar as características do produto, por meio de procedimentos descritivos, em enunciados localizados na parte central da composição. Finalmente, na extremidade inferior, à direita, a assinatura do anunciante: o logotipo ou a logomarca do produto anunciado. Deve-se ressaltar que os enunciados linguísticos estão organizados, juntamente com o texto imagético, de acordo com uma estrutura argumentativa que tem por objetivo fazer do leitor um consumidor do produto anunciado. Análise e discussão dos resultados

Este artigo relata análise de um anúncio publicitário publicado em revistas de grande circulação, no qual aparece a figura feminina desempenhando o papel de ‘mãe’. Faz parte de uma pesquisa mais ampla relativa à representação que é dada à mulher pelo discurso publicitário, em diferentes papéis sociais.As categorias que se levou em consideração para a análise que ora se realiza foram: a organização do texto multimodal e a superestrutura argumentativa, com o objetivo de se levantar os valores implícitos.

1. Organização do texto multimodal. a. Anúncio publicado na revista Veja Sp, 25 de maio de 2011, página 45:

Passeio de mãe com filho é tão gostoso que a gente encontrou uma maneira de ir junto. Mucilon Prontinho O único cereal com leite, pronto para beber, específico para crianças a partir do 6º. Mês. Nutrição e cuidado a qualquer hora e lugar. Saiba mais em WWW.comecarsaudavel.com.br Nestlé Começar saudável Para viver saudável.

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Considerando as propostas da semiótica social, o texto multimodal pode ser analisado pela organização das imagens, em conjunto com o enunciado verbal, tal como se segue.

A relação figura- fundo está organizada em três planos: no primeiro, ao centro, a fotografia de uma mulher jovem, sorridente, vestida de azul, com a cabeça ligeiramente inclinada, sorri olhando a menina que está em seu colo. A criança, com aparência saudável, bem vestida, olha obliquamente para a frente, enquanto toma o conteúdo da caixinha que leva nas mãos. No segundo plano, ao fundo, a paisagem: um gramado e algumas árvores, situam a dupla em um parque. Em primeiro plano, à esquerda, várias caixas do produto, com canudos semidobrados, indicando que estão prontos para serem sorvidos, estão colocadas em uma cesta de piquenique e, à direita, um urso segura um cartaz.

Na leitura no sentido vertical, que estabelece a relação entre o ideal e o real, está ressaltado o enunciado ao alto, na categoria ideal:

Passeio de mãe com filho é tão gostoso que a gente encontrou uma maneira de ir junto.

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De acordo com Charaudeau (2007), o texto pode ser classificado como o “resultado de uma intervenção pontual” do narrador, na medida em que há uma avaliação subjetiva positiva do passeio, não apenas qualificado como gostoso, mas de tal forma que o sujeito enunciador deseja acompanhá-las, na figura do alimento, o produto a ser vendido.

Ao se ler no sentido horizontal, observa-se que o enunciado encontra-se posicionado como a informação dada, ou seja, aquilo que já é do consenso do leitor. Ou seja, conforme a ACD, recorre-se ao Marco das Cognições Sociais, à figura da mãe, do valor positivo da relação mãe-filho em nossa sociedade, estabelecendo um eixo de similitude entre o passeio e o alimento, num processo metonímico.

Na parte inferior, à direita, na categoria do ‘real’,a cesta de piquenique traz, também de forma descritiva,à direita, imagens do produto em vários sabores.

À esquerda, também ocupando a categoria do real, a informação nova, em uma sequência descritiva, na qual são ressaltadas as características nutricionais do produto, adequadas para crianças pequenas, em uma embalagem prática.

Observa-se que as sequências descritivas compõem o texto argumentativo, na construção de argumentos de legitimidade, já que faz parte dos valores culturais o hábito de as mães levarem seus filhos pequenos para um passeio matinal, e é das cognições sociais que há dificuldades em levar alimentos para as crianças ao sair de casa. O anúncio apresenta a seguinte superestrutura argumentativa:

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O texto é construído por meio de agenciamentos de argumentos. A partir dos

conhecimentos sociais, de que as crianças precisam de certos alimentos, cria-se uma circunstância, apresentada por um fato: o passeio é ‘gostoso’, comprovado pela fotografia, na qual mãe e filha irradiam felicidade. Este, apoiado por um argumento de legitimidade, ou seja, a necessidade de afeto e alimento que as crianças necessitam, principalmente nos primeiros anos de vida, é reforçado pelo anunciante, ao apresentar o produto que, além de saboroso, é nutritivo e prático, para as mães, deixando o passeio ainda mais gostoso.

JUSTIFICATIVA  

Se  você  fizer  um  passeio  com  seu  filho  

 

CONCLUSÃO  

(então)  

Leve  Mucilon  Prontinho  

MARCO  

Passeios  são  importantes  para  a  saúde  física  e  psíquica  de  crianças  pequenas  

 

 

CIRCUNSTÂNCIAS:  

PONTOS  DE  PARTIDA  

 

ARGUMENTOS:  

FATOS  

Os  passeios  com  as  crianças  pequenas  podem  ser  muito  gostosos  

LEGITIMIDADE  

As  crianças  pequenas  precisam  de  alimentos  e  de  afeto,  regularmente  (também  nos  passeios)  

REFORÇO  

Mucilon  Prontinho  supre  estas  necessidades:  alimenta  e  é  prático  para  as  mães.  

Argumentação  

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Considerações finais Pela análise realizada, pode-se observar que a organização do texto,

compreendendo imagens visuais e enunciados verbais obedeceram a uma seleção que levou em consideração valores socialmente relevantes. Verifica-se que a relação mãe-filha é representada pelos laços de afetividade que geram prazer. O papel materno é reforçado na medida em que à mulher que é mãe é atribuída a função de cuidar dos cuidados com a família, proporcionando-lhe alimentação nutritiva e saborosa. Mas, sobretudo, está evidenciado o aspecto afetivo que desempenha no contexto familiar, garantindo-lhe a estabilidade emocional. O produto anunciado é apresentado como prático, já que não necessita de preparo para ser consumido, elemento positivo em uma sociedade na qual as mulheres não dispõem de tempo para realizar tarefas domesticas.

O discurso publicitário articula estes valores, materializando-os em imagens e enunciados verbais, de modo a produzir significados que irão seduzir seu leitor e, assim, transformá-lo em consumidor. Referências bibliográficas ADAM, J-M. – A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos.São Paulo:Cortez, 2008 CHARAUDEAU, P.: Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008. KRESS, G. & VAN LEEUWEN, T. –Reading Images.London: Routledge, 1996. MOSCOVICI, S. - Representações sociais. Petrópolis: Ed. Vozes. 2003 – 2ª. Edição. SANT’ANNA, Armando. Propaganda – teoria – técnica – prática.8ª. ed. São Paulo: Pioneira, 2000 SILVEIRA, R. C. P. – Aspectos socioculturais implícitos em representações lingüísticas de “novo – velho” e “moderno – antigo”, em anúncios publicitários. Análise do Discurso: objetos literários e midiáticos. SANTOS, João Bosco e FERNANDES, Claudemar A. (org.). São Paulo: Trilhas Urbanas. 2006 VAN DIJK, T. A.- Discurso e Poder. São Paulo:Contexto, 2008. _____________________ – Cognição, discurso e interação. – 6ª. Ed. São Paulo: Contexto, 2004 ________________ (compilador) – El discurso como interacción social . Barcelona, Gedisa, 2000. ______________- La ciência del texto: um enfoque interdisciplinário. Buenos Aires: Paidós, 1978.

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Propaganda de medicamentos no Brasil. Da poesia à redação publicitária –

Paula Renata C. de Jesus (UPM) Resumo: Os medicamentos foram os grandes anunciantes em potencial da história da propaganda brasileira. E foram os poetas, os responsáveis pela poeticidade na redação publicitária. O presente artigo tem como proposta resgatar registros históricos dos textos publicitários de medicamentos elaborados por poetas. A proposta é analisar a presença das marcas textuais da poesia nos anúncios publicitários dos medicamentos Bromil e Biotonico Fontoura, anunciantes antigos no mercado farmacêutico brasileiro que ainda hoje atuam no país. Palavras-chave: Poetas; Redação publicitária; História; Medicamentos.

Em um primeiro momento, anúncios em forma de classificados, de cunho expressivamente comercial, informavam que estava à venda uma morada de casas ou que escravos estavam sendo comercializados: “vende-se uma preta ainda rapariga, de bonita figura, a qual sabe lavar, engomar, coser e cozinhar, na rua do Ouvidor, 35, 1º andar.” (RAMOS; MARCONDES, 1995, p. 16).

Com a chegada da “poesia do comércio”, os anúncios passaram a ocupar espaço em cartazes de bondes, jornais, revistas, enfim, na mídia de massa. E foi por meio da poesia que os jogos de palavras passaram a dar vida persuasiva aos primeiros anúncios da propaganda brasileira, como o de Bastos Tigre “Veja ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. E no entanto acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rhum Creosotado.” (TEMPORÃO, 1986, p. 36).

Os reclames, como eram chamados os anúncios, eram aparentemente ingênuos, pois não havia um especialista para escrever a respeito de medicamentos. Ora os médicos davam seus depoimentos, ora os poetas, literários eram contratados a escrever, enquanto artistas plásticos e pintores ilustravam os anúncios, quase sempre com imagens de sofrimentos, com a promessa de cura pelo medicamento.

“Larga-me, deixa-me gritar!” foi o slogan do Xarope São João, veiculado em 1900 na Revista da Semana, no Rio de Janeiro. Esse xarope utilizava a imagem de um homem, como se estivesse amordaçado, significando a ameaça da tosse, bronquite, rouquidão. O xarope era o grande salvador.

A indústria farmacêutica, considerada a maior investidora em propaganda da época, acumulou muito da prática artesanal e empírica. Inicialmente conhecida como botica (nome dado às farmácias administradas por famílias) a indústria farmacêutica passou os trinta primeiros anos de existência produzindo remédios, por meio de insumos extratos vegetais e produtos de origem animal (TEMPORÃO, 1986, p. 26). Sua evolução, assim como a da propaganda brasileira, aconteceu gradativamente.

O destaque para os anúncios com uma melhor elaboração se deu na chegada das revistas: Revista da Semana, O Malho, Cri-Cri, A Careta, Fon-Fon, a Lua.

A Lua, uma revista de 1910, de São Paulo (TEMPORÃO, 1986, p. 39) teve como anunciante, em quase todas as edições, o Xarope Bromil, famoso pelo slogan: “cura a tosse em 24 horas” e Saúde da Mulher, o famoso preparado também conhecido pelo “infalível nas moléstias das senhoras”.

Nessa época, os anúncios de medicamentos tinham a cabeça e as mãos de Olavo Bilac, Emílio Menezes, Hermes Fontes, Basílio Viana e Bastos Tigre, que ousou parodiar a obra “Os Lusíadas”, de Camões. Um texto trabalhado meticulosamente, pautado na cadência de cada sílaba, um processo criativo genial,

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“Bromilíadas” foi o anúncio de Bromil veiculado entre 1918 e 1920, na revista Dom Quixote. O texto entrou para a história da propaganda brasileira. Consta de 1102 estrofes contendo 8816 versos decassílabos, estrofação sempre na oitava rima, a técnica de Ariosto que Luís de Camões consagrou em “Os Lusíadas” (BUENO, 2008, p. 65).

Figura 1. Anúncio de Bromil (BUENO, 2008, p. 65)

Durante a Primeira Grande Guerra, a linguagem dos anúncios, principalmente

os de medicamentos, parecia nitidamente ligada ao período difícil que o mundo encontrava-se. Santogen “dá auxílio e levanta exaustos os que caem por falta de energia e vitalidade”, Alcatrão-Guyet “a polícia dos pulmões”, Rhodine “em nada se parece com outros comprimidos”, Urudonal “lava o sangue, amacia as artérias e evita a obesidade” e Xarope de Grindélia “pedir e exigir sempre contra tosse” (RAMOS; MARCONDES, 1995, pp 28-29).

“O antes e o depois”, estratégia utilizada até os tempos atuais pela propaganda, fez parte do anúncio do Xarope Peitoral de Alcatrão, estampando duas fotos, com o bom resultado do produto, em 1895: “Eu era assim, cheguei a ficar assim! Sofria horrivelmente dos pulmões, mas graças ao milagroso xarope peitoral de alcatrão e jatahy, consegui ficar curado e bonito” (TEMPORÃO, 1986, p. 42).

O grande anunciante do setor chegou em 1917, a Bayer. Com campanhas regulares, a empresa alemã, investiu alto em publicidade. A Bayer destacava-se pela originalidade dos textos e pela qualidade gráfica dos anúncios. Era característica sua associar seus produtos às palavras como: original, puro, científico para contrapor os produtos nacionais. Eram muitos os produtos da Bayer: Adalina “a fonte da juventude eterna”, Bayaspirina “silêncio”, Instantina “num instante vae-se o mal” e outros medicamentos, sempre utilizando a marca e reforçando-a com um slogan.

“Se é Bayer, é bom”, slogan de Aspirina, elaborado por Bastos Tigre na Semana de Arte Moderna, em 1922, eternizou a marca. Dores em geral,

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principalmente cefaléias, ganharam destaque nos anúncios, como a Cafiaspirina: “Se alguma dor o domina, tome Cafiaspirina”.

Os slogans têm um papel fundamental na divulgação das marcas. Os poetas provavelmente tenham sido os primeiros a perceberem isso.

Segundo Reboul (1975), a origem da palavra slogan é gaélica: sluagh-ghairm, que significava em escocês “grito de guerra de um clã”.

O francês atribuiu ao slogan o mesmo sentido de propaganda, doutrinamento, reclame. O inglês adotou o termo por volta do século XVI, para no século XIX, transformá-lo em divisa de partido e, a seguir, em palavra de ordem eleitoral.

No século XIX, o americano acabou dando um sentido comercial ao slogan. Esse sentido comercial, por assim dizer, passou a ser utilizado, como slogan publicitário.

É importante considerar o slogan publicitário não como uma frase isolada de seu contexto, mas, pelo contrário, sua evolução através dos tempos, sua utilização como um recurso de persuasão empregado na venda de marcas.

O slogan publicitário é, antes de tudo, uma mensagem publicitária. E a mensagem publicitária nasce da união de vários fatores psicosocioeconômicos, de uma sociedade de consumo e acaba sendo conduzida a uma representação da cultura a que pertence. É nesse contexto que certos valores, mitos e ideias são utilizados nesse tipo de mensagem.

A mensagem publicitária faz uso de um conjunto de efeitos retóricos, como: figuras de linguagem e estratégias persuasivas. Essa mensagem também apresenta jogos de palavras, podendo ser os slogans, que incitam o receptor a participar de um universo lúdico. Uma das funções da mensagem publicitária é tentar vender o produto, informando sobre suas características, exaltando suas qualidades através de mecanismos de persuasão e sedução.

Os slogans de medicamentos, assim como os anúncios de medicamentos, podiam ser considerados amadores ou profissionais, ingênuos ou aparentemente ingênuos, o certo é que os anúncios não eram muito diferentes de seus autores. Alguns ganharam dinheiro, outros não. Monteiro Lobato é um exemplo de literário que se tornou autor de anúncios publicitários, transformando o fortificante Biotonico Fontoura em um marco na história da propaganda de medicamentos brasileira.

Verdadeira obra prima da publicidade brasileira, Jeca Tatuzinho foi um personagem inventado por Monteiro Lobato para Biotonico Fontoura. Tatuzinho era um personagem fraco, amarelo, que ao tomar o fortificante ficava saudável. O sucesso foi tão grande, que Lobato passou a divulgar as virtudes da Ankilostomina e do Biotonico Fontoura, o que certa vez impressionou Rui Barbosa, pela simplicidade e popularidade, tanto do personagem, como da maneira que era querido por todos (RAMOS; MARCONDES, 1995, p 35).

Monteiro Lobato chegou a abrir mão dos direitos de Jeca Tatuzinho, para seu amigo Cândido Fontoura, como gratidão pelo fortificante ter feito bem à saúde do escritor.

O personagem ficou famoso e a marca não menos conhecida e consumida durante gerações. O que Monteiro Lobato fez pela propaganda de medicamentos, principalmente para o Laboratório Fontoura, é um verdadeiro patrimônio histórico.

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Figura 2. Revista Jeca Tatuzinho (BUENO, 2008, p. 78)

Segundo Renato Castello Branco (1990, p. 51), Monteiro Lobato “abriu

caminho para que outros escritores com a mesma representatividade nos meios literários viessem para a propaganda, sem medo de ver comprometido seu prestígio como escritores ou poetas”.

Desde os primeiros anúncios, ecoavam-se os pregões e enumeravam-se as ofertas, sempre em feitio de convite, mesmo nos versos de Casemiro de Abreu (descoberto por Raymundo Magalhães Júnior, como o primeiro escritor da propaganda no Brasil) e outros poetas que trabalharam na propaganda: Guimarães Passos, Felipe de Oliveira, Álvaro Moreyra, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, Menotti Del Pichia.

Em 1928, escritor e historiador Orígenes Lessa teve destaque na propaganda, não apenas na de medicamentos. Em seu ensaio “Retrato de uma cidade através de anúncios de jornal, São Paulo de 1868”, declarou verdadeira admiração por escritores anteriores, nomes como Casimiro de Abreu, Olavo Bilac, Guimarães Passos, Hermes Fontes, José Lins do Rego, e outros. Lessa surpreendeu a todos ao declarar que tais escritores já eram redatores de anúncios e que o faziam para pagar suas contas (RAMOS, 1985, p. 84).

Mais do que escritor, Lessa era criativo, o que realmente fazia a diferença na propaganda. Com imaginação fértil e noção de propaganda, Lessa desenvolveu trabalhos para as primeiras agências de publicidade, já como redator, e não como escritor. Conhecido por seu forte temperamento, certa vez foi procurado por um fabricante de sabonetes que queria algo parecido com o anúncio de uma fechadura (La Fonte, “a fechadura que fecha e dura”, slogan criado por Guilherme de Almeida). A insistência do cliente foi tanta, que Lessa imediatamente irritado criou “Sabonete X, o sabonete que sabo e nete.” (RAMOS; MARCONDES, 1995, p. 39).

Ao longo da história da propaganda de medicamentos, textos longos, explicativos, informativos foram aos poucos substituídos por títulos objetivos, textos coesos, logomarcas e slogans publicitários.

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A propaganda de medicamentos, que não vende necessariamente o medicamento, mas o alívio à dor, o que ele pode proporcionar, passou a ser mais racional e menos poética.

Portanto, percebe-se que a história da propaganda brasileira confunde-se, ou melhor, funde-se com a própria história da propaganda de medicamentos no Brasil. Os primeiros anunciantes em potencial foram da indústria farmacêutica.

Se a linguagem verbal utilizada na propaganda teve origem nas poesias, já que os primeiros autores de anúncios publicitários foram os poetas, é importante destacar que os anúncios que tinham imagens, por meio de ilustrações, tinham as mãos e o talento de grandes artistas plásticos: J.Carlos, K. Lixto e Julião Machado são alguns (JESUS, 2008, p. 46).

A trajetória da indústria farmacêutica pouco se modificou. Ainda é um grande anunciante, assim como uma potência mundial. Seu discurso repleto de promessas teve que se adaptar à realidade das regras e regulações éticas.

Nota-se que a publicidade, ainda hoje, transita entre a poesia tradicional, versificada e com rimas e a poesia moderna, em versos livres e brancos. Muitas vezes os publicitários se utilizam do concretismo, fazendo um grande jogo entre palavras e imagens ou apenas do texto em si. É constante o uso de expressões emotivas, conotações, metonímias, rimas, aliterações e metáforas nos textos. Herança ou talvez forte referência.

Em relação à maioria dos anúncios atuais, percebe-se que, seja na linguagem verbal seja na visual, a propaganda de medicamentos não tem mais o charme e a poesia do seu início.

Os laboratórios da indústria farmacêutica contratam grandes agências de publicidade e propaganda para elaborarem campanhas milionárias.

A ANVISA e o CONAR, que regulam a propaganda de medicamentos no Brasil, não permitem o uso de várias palavras, muito menos de promessas, a fim de inibir o incentivo à automedicação.

A Constituição Federal brasileira, apesar de garantir a liberdade de expressão também estabelece limites à propaganda de produtos sujeitos à vigilância sanitária, uma vez que é de comum acordo que esses podem ser nocivos à saúde.

A Lei nº 6.360/76 já tratava da prática da publicidade de medicamentos e estabelecia a previsão de um regulamento especifico para este tema, que surgiu apenas com a publicação da Resolução - RDC nº 102, em 30 de novembro de 2000, que surgiu da necessidade de atualizar e atuar no sentido de aprovar o Regulamento sobre propagandas, mensagens publicitárias e promocionais e outras práticas cujo objeto seja a divulgação, promoção ou comercialização de medicamentos de produção nacional ou importados, quaisquer que sejam as formas e meios de sua veiculação, incluindo as transmitidas no decorrer da programação normal das emissoras de rádio e televisão.

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3. Anúncio veiculado na Revista Caras (2012) A campanha para o medicamento Benegrip, cujo garoto propaganda é o

famoso ex jogador de futebol, Ronaldo Nazário, retrata a realidade na propaganda de medicamentos atual. Em sua maioria utilizando celebridades, contendo slogan e as embalagens em destaque.

Mas sem dúvida, em meio há tantas mudanças, fica a história. Uma história repleta de palavras, imagens, criatividade e ousadia por parte de poetas e artistas plásticos, a serviço da indústria farmacêutica. Um legado de aprendizagem e conhecimento que o tempo não pôde apagar. Referências BUENO, Eduardo. Vendendo Saúde – A história da propaganda de medicamentos no Brasil. Brasília: ANVISA, 2008. CASTELO BRANCO, Renato, MARTENSEN, Rodolfo Lima e REIS, Fernando (coord.) História da Propaganda no Brasil. São Paulo: T.A. Queroz, 1990. CITELLI, Adilson. Linguagem e Persuasão. São Paulo: Ática, 1999. IASBECK, Luiz Carlos Assis. A Arte dos Slogans. São Paulo: Annablume/ Brasília: UPIS, 2002. JESUS, Paula Renata Camargo. Uma história de frases e efeitos – a configuração do slogan publicitário na indústria farmacêutica no Brasil. São Bernardo do Campo: UMESP, 2001 (dissertação de mestrado). ________. Os Slogans na Propaganda de Medicamentos. Um estudo transdisciplinar: Comunicação, Saúde e Semiótica. São Paulo: PUCSP, 2008 (Tese de Doutorado) PEREZ, Clotilde. Signos da Marca – expressividade e sensorialidade. São Paulo: Pioneira Thomson, 2004. PIGNARRE, Philippe. O que é medicamento? – um objeto estranho entre ciência, mercado e sociedade. São Paulo: Ed. 34, 1999. PIGNATARI, Décio. Informação, Linguagem, Comunicação. São Paulo/Cotia: Ateliê Ed., 2002. __________________Semiótica e Literatura. São Paulo: Cultrix, 1987. RAMOS, Ricardo e MARCONDES, Pyr. 200 anos de Propaganda no Brasil. São Paulo: Meio e Mensagem, 1995. RAMOS, Ricardo. Do reclame à comunicação. São Paulo: Atual, 1985. REBOUL, Olivier. O Slogan. São Paulo: Cultrix, 1975. TEMPORÃO, José Gomes. A propaganda de medicamentos e o mito da saúde. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

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A didatização do gênero artigo de opinião em turmas de ensino médio - Paulo da

Silva Lima (UFPA/UPM)

RESUMO: Este artigo aborda sobre a produção de textos na escola, tendo como base metodológica a sequência didática. O objetivo desta pesquisa é demonstrar que, ao trabalhar o texto com um propósito comunicativo, o docente pode proporcionar a seus alunos verdadeiras situações de práticas de linguagem. Alguns resultados demonstraram que o uso da sequência didática possibilitou o trabalho com a reescrita, atividade que contribuiu significativamente para que os alunos produzissem seu o texto de forma mais adequada. Palavras-chave: Didatização; Gêneros textuais; Reescrita. Introdução

O ensino da língua materna tem sido considerado uma tarefa bastante árdua para os professores, principalmente no que diz respeito ao trabalho com a produção textual. Isso acontece, muitas vezes, porque o docente não consegue estabelecer um propósito comunicativo para o gênero com o qual vai trabalhar. Sendo assim, nesta pesquisa fazemos algumas considerações a respeito de um trabalho de formação continuada em que os professores de Língua Portuguesa do Ensino Médio construíram sequências didáticas para a didatização de gêneros da esfera jornalística, entre eles o artigo de opinião.

A pesquisa se justifica devido à grande necessidade que os docentes de escolas públicas do sudeste paraense encontram para construir ferramentas de ensino capazes de levar os alunos a, de fato, produzirem textos para um interlocutor real, efetivando com isso verdadeiras práticas de linguagem. Para isso, realizamos formação continuada com esses professores, abordando a importância se de propor produções textuais de gêneros jornalísticos, já que os mesmos, além de ajudarem os alunos a desenvolver capacidades de linguagem da ordem do argumentar e do expor, também levam esses estudantes a atuarem como cidadãos mais participativos no meio social em que vivem.

Nosso embasamento teórico é pautado em (BAKHTIN, 2010), para quem toda comunicação humana verbal se realiza por meio de gêneros discursivos, ou seja, tipos relativamente estáveis de enunciados. Também seguimos a corrente teórica do Interacionismo sociodiscursivo de (BRONCKART, 2007), concebendo o texto como unidade comunicativa gerada por uma ação de linguagem acumulada historicamente entre os indivíduos.

Alguns resultados mostraram que, com base no que foi discutido na formação continuada, os professores elaboraram sequências didáticas em torno do artigo de opinião objetivando a veiculação desse gênero tanto no espaço escolar, quanto fora dele. Isso permitiu aos estudantes efetivarem suas ações de linguagem, defendendo seu ponto de vista em relação a um tema condizente não só ao universo escolar, mas também à sociedade como um todo. Além disso, tanto os professores como os alunos passaram a ver a reescrita como etapa fundamental no processo de produção textual. 1 Gêneros textuais

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Desde a década de 90, as aulas de língua materna passaram a contar com mais um suporte teórico, cujo objetivo é a ressignificação do trabalho com o texto na escola. Assim, a nomenclatura gêneros textuais aparece como uma “novidade” no ensino da leitura e produção textual.

No entanto, segundo Marcuschi (2008, p. 147), o estudo dos gêneros não é algo novo, pois já na Grécia antiga o termo era estudo por Platão e Aristóteles. A questão é que o gênero textual era utilizado apenas na literatura e na retórica. Então, após os estudos de Bakhtin, principalmente na obra Estética da criação verbal, o assunto começou a abranger todo ato de interação verbal, ou seja, para o autor, toda comunicação humana se efetiva por meio de um gênero textual.

Para Bakhtin (2010, p. 262), os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados presentes em cada esfera social. Por isso, são caracterizados por seu conteúdo temático, seu estilo verbal e por sua construção composicional. O conteúdo temático diz respeito ao tema esperado no tipo de produção (gênero) em destaque. O estilo refere-se à variante linguística utilizada na produção do gênero e está vinculado ao tema e ao conteúdo. No plano composicional, por exemplo, de um cartão-postal, teríamos: destinatário, informação em um canto à parte, saudação inicial, mensagem, saudação final e assinatura.

Sendo assim, os gêneros servem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas diárias. Além disso, podem ser considerados como entidades sócio-discursivas e formas de ação social em todas as situações comunicativas do homem. No entanto, por mais que organizem as ações das pessoas em contextos discursivos, os gêneros não são instrumentos estanques, mas são caracterizados por sua maleabilidade, dinamicidade e plasticidade.

Segundo Marcuschi (2007, p. 23), os gêneros textuais são realizações linguísticas concretas definidas por propriedades sócio-comunicativas e constituem textos empiricamente produzidos cumprindo alguma função numa situação comunicativa. Além disso, a nomeação dos gêneros abrange um conjunto aberto e praticamente ilimitado, pois, a todo momento, por alguma necessidade social, as pessoas acabam criando novos gêneros para se comunicarem.

A comunicação por via digital representa bem essa dinamicidade com que surgem novos gêneros. Isso porque, há algumas décadas, não existia o e-mail ou MSN, mas devido à chamada hera digital, o homem sentiu a necessidade de criar novos instrumentos capazes de levá-lo a interagir verbalmente por meio de uma tela de computador ou um aparelho celular. Por outro lado, outros gêneros vão deixando de ser utilizados e isso ocasiona seu desaparecimento.

Para Dolz & Schnewly (2010, p. 143), o gênero textual

é um instrumento para agir linguisticamente. É um instrumento semiótico, constituído por signos organizados de maneira regular; este instrumento é complexo e compreende diferentes níveis. Eis por que, às vezes, o chamamos de “mega-instrumento”, para dizer que se trata de um conjunto articulado de instrumentos, um pouco como uma fábrica. Mas fundamentalmente se trata de um instrumento que permite realizar uma ação numa situação particular. E aprender a falar é apropriar-se de instrumentos para falar em situações de linguagem diversas, isto é, apropriar-se de gêneros.

Nesse sentido, o gênero funciona como um instrumento e para se tornar mediador, para se tornar transformador da atividade, precisa ser apropriado pelo sujeito; ele não é eficaz senão à medida que se constroem, por parte do sujeito, os

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esquemas de sua utilização. Por isso, a produção de texto é organizada e estruturada por um gênero global que condiciona o tratamento do conteúdo, o tratamento comunicativo e o linguístico. Dessa forma, o gênero passa a ser considerado como “um megainstrumento, como uma configuração estabilizada de vários subsistemas semióticos (sobretudo linguísticos, mas também paralinguísticos), permitindo agir eficazmente numa classe bem definida de situações de comunicação” (SCHNEUWLY, 2010, p.25). É justamente por isso que nos apropriamos dos gêneros, pois, ao nos comunicarmos, os usamos como se eles fossem um instrumento (ou megainstrumentos) que manuseamos e que são fundamentais para produzirmos nossos textos (orais ou escritos), efetuando, de acordo com nossas intenções enunciativas, uma atividade verbal. 2 As sequências didáticas como ferramentas de ensino

O trabalho com os textos em sala de aula deve proporcionar verdadeiras situações de comunicação, por isso é plausível que se busque desenvolver uma atividade a partir de situações claras dentro de um contexto de produção. Por isso, para uma didatização dos gêneros, torna-se necessária a articulação sistemática e uma atividade que possibilite, em sala de aula, uma situação real de interação. Esse tipo de atividade é denominado de sequência didática.

Para Dolz, et al. (2010, p. 82), as sequências didáticas (SD) podem ser definidas como um conjunto de atividades escolares organizadas sistematicamente em torno de um gênero textual oral ou escrito, devendo esse trabalho ser feito sempre proporcionando uma comunicação real entre os interlocutores.

Para a elaboração dessa atividade são necessários alguns procedimentos. Primeiramente tem-se a apresentação da situação e nessa fase o professor deve definir se a modalidade a ser trabalhada será a oral ou a escrita; depois se escolhe o gênero, para quem ele será produzido e como será produzido. Também é importante apresentar os conteúdos que serão desenvolvidos e eles deverão ter ligação com o gênero proposto.

Ainda nesse início é importante que os alunos tenham contato com exemplares do gênero, ouvindo ou lendo-os, para poderem se situar sobre as características e as funções do texto a ser produzido. Além disso, é importante que o professor discuta juntamente com os alunos sobre a organização do gênero escolhido.

Depois disso, temos a primeira produção. Nessa fase a formulação do texto poderá ser feita de forma individual ou coletiva e o professor deve fazer uma avaliação, privilegiando a forma e, conseqüentemente, dando uma nota ou conceito para que os alunos possam, nas outras etapas, fazer uma comparação e observar seu próprio rendimento durante todo o processo.

Na primeira produção, pode-se fazer um esboço geral apenas para treinar a facção do gênero sem especificar sua destinação. Após isso, poderão ser feitos os ajustes necessários até a produção final, quando o aluno terá condições de produzir o texto de acordo com o gênero trabalhado. Essa fase é importante, pois é nela que tanto o professor quanto os alunos têm a possibilidade de fazer uma avaliação do desenvolvimento da atividade.

No trabalho com as sequências didáticas é necessário o seguimento de módulos até a elaboração final do texto. Por isso, é importante que se faça uma atividade pautada nos problemas que apareçam na primeira produção, dando ou mostrando aos alunos os meios necessários para que superem as eventuais

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dificuldades. Por isso, o professor pode comentar com os alunos sobre como foi a representação da interação verbal, fazendo ressalva aos destinatários, objetivos, gênero e modalidade (oral ou escrita).

O professor pode também fazer ponderações a respeito do planejamento do texto, observando se a organização estrutural do gênero produzido é adequada. É interessante também que questões ligadas à seleção lexical, estrutura sintática e outros elementos referentes ao nível semântico da expressão sejam analisados.

Num outro módulo, atividades de observação e análise de textos podem ser feitas com o objetivo de identificar se houve êxito na produção do gênero e se há outras alternativas para isso. Por isso, seria bom que alguns textos fossem comparados para que houvesse uma análise coletiva de problemas específicos ou gerais.

Após os alunos já terem adquirido as informações necessárias sobre o gênero, eles devem adquirir uma linguagem técnica capaz de lhes dar suporte sobre o tema abordado na produção textual. Dessa forma, os estudantes vão se sentir seguros sempre que precisarem falar sobre o assunto. Para isso, o professor pode propor a elaboração de um glossário sobre as atividades desenvolvidas e sobre o gênero.

Na produção final, o aluno porá em prática o que aprendeu durante todos os módulos da atividade de produção textual. Assim, o professor pode realizar uma avaliação somativa, não descartando a formativa, pois, nessa fase, o aluno já será capaz de obter um controle a respeito de sua própria aprendizagem, ou seja, ele saberá o que fez, por que fez e como fez.

Essa proposta de trabalho com as sequências didáticas proporciona ao professor a utilização das duas modalidades (oral e escrita), não privilegiando apenas uma delas. Além disso, esse tipo de atividade abre espaço para que questões ligadas à ortografia e à gramática sejam trabalhadas, possibilitando aos alunos eliminar certos problemas de escrita identificados nas produções textuais.

Portanto, é pertinente afirmar que, igualmente ao que acreditam Dolz et al. (2010), as sequências didáticas sejam um bom caminho para que o professor atinja seus objetivos no ensino de língua materna. 3 A produção do artigo de opinião no contexto escolar

Este artigo é fruto de uma pesquisa qualitativa e empírica com intuito de melhorar a produção textual escrita na escola. Na verdade, trata-se de uma pesquisa-ação15, pois há a participação cooperativa do pesquisador.

Os sujeitos envolvidos neste trabalho são alunos do 3º ano do ensino médio de uma escola da rede pública. Para a realização desta pesquisa foram utilizadas produções escritas do gênero artigo de opinião. A escolha do corpus se deu pelo fato de, no ensino médio, os alunos serem sujeitos a muitas produções de textos de ordem argumentativa e demonstrarem ainda não dominar a escrita do gênero proposto.

A temática utilizada para a produção final dos textos foi a repercussão da morte do terrorista Osama Bin Laden. O objetivo da interação era que os alunos escrevessem um artigo de opinião para ser publicado num jornal da escola ou local. Por isso, a atividade seguiu os seguintes procedimentos:

O desenvolvimento da pesquisa seguiu as orientações de Dolz et al. (2010), em que as SD funcionam como ferramentas para o ensino de gêneros. Na                                                                                                                          15  Segundo Morin (2004), na pesquisa-ação deve haver uma intervenção no campo educativo ou social, de maneira sistemática e, muitas vezes, participativa, podendo comportar métodos de retroação e revisão.  

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apresentação da situação, houve a exposição do gênero artigo de opinião, explicando como ele é desenvolvido, onde é publicado, quem é o emissor e o destinatário. Na sequência, foram distribuídos alguns exemplares de artigos de opinião, com o intuito de proporcionar aos estudantes o primeiro contato com o gênero a ser trabalhado. Nessa atividade foram trabalhadas questões referentes ao conteúdo, à função social do emissor e destinatário e ao local de publicação do texto.

No segundo encontro, objetivando o conhecimento e a discussão de temas para a primeira produção, foram abordados assuntos referentes à enchente em Marabá, política, tsunamis e terremotos no Japão. Para isso, foram distribuídas, para leitura, cópias de textos que versavam sobre esses assuntos. Na sequência, os alunos comentaram sobre a leitura e fizeram perguntas em relação ao texto e ao que caracteriza o gênero.

Ao final dessa aula foi pedido aos alunos que em casa produzissem um artigo de opinião, com base nos conteúdos abordados. Foi repassado aos estudantes que esse texto seria apenas para treinar a facção do gênero, mas que ao final da SD eles iriam produzir um texto para uma possível publicação.

A partir da primeira produção, conforme Dolz et al. (2010), é preciso que o professor mapeie as capacidades de linguagem que os alunos já dominam e, depois, construa uma SD para auxiliá-lo na função de mediador no processo ensino-aprendizagem. Com base nisso, elaboramos um quadro de capacidades presentes e não presentes nos textos produzidos pelos alunos, com o intuito de mostrar aos mesmos em que aspectos eles estavam bem e em quais deveriam melhorar.

Por questões de espaço, selecionamos apenas 2 textos produzidos por um dos alunos envolvidos na pesquisa. Assim, apresentaremos, a seguir, a primeira dessas produções, acompanhada dos devidos comentários da correção.

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Primeira produção Capacidades presentes e não presentes

Contexto de Produção: Seu texto pode ser enviado para destinatários múltiplos, os argumentos apresentados são objetivos, defendendo seu ponto de vista de modo claro, seu texto é um exemplar do gênero. Planificação: Esta adequada, porém você poderia melhorar sua introdução descrevendo melhor o que irá abordar no desenvolvimento do texto, do segundo ao sétimo parágrafo você defende seu ponto de vista por meio de argumentos convincentes e conclusão também pode ser melhora. Textualização: Apesar das ideias se renovarem a cada parágrafo você não uso dos organizadores lógicos para encaixá-los, como por exemplo: e, pois, que, isso; Há vozes sociais no texto; No sétimo parágrafo você usou a primeira pessoa no singular, isso diminui a objetividade de seu texto; No sexto parágrafo você quis dizer 2ª cabeça, mas escreveu 2 cabeça.

Tabela 1: Primeira produção Nessa primeira produção, o aluno ainda não domina plenamnte o artigo de

opinião, o lugar da produção é a sala de aula/casa e os destinatários são o professor e os colegas. O papel social do produtor é o de um aluno que escreve para expressar ideias, defendendo-as por meio de argumentos.

De acordo com Dolz et al. (2010), após a identificação das capacidades presentes e não presentes na primeira produção, o professor deve elaborar os módulos para tentar sanar as dificuldades dos alunos, preparando-os para a produção final. Por isso, ao fazer a correção da primeira produção, devolvemos os textos com a inscrição de bilhetes no verso, indicando as capacidades presentes e não presentes. O objetivo dessas orientações foi mostrar aos alunos, de forma interativa, os aspectos em que eles deveriam melhorar.

Assim, preparamos o primeiro módulo da SD, com o intuito de fazer com que os alunos compreendessem melhor as possibilidades de organizar a estrutura de um artigo de opinião. Para isso, retomamos um dos textos trabalhados na apresentação da situação e fizemos uso de fragmentos do mesmo para exemplificar os mecanismos de organização do gênero. Desse modo, trabalhamos questões referentes à introdução, contextualização, posicionamento assumido pelo autor, modo como se devem utilizar os argumentos e contra-argumentos, questionamentos e conclusão.

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Na atividade desenvolvida no segundo módulo, usamos outro texto para trabalhar os elementos de contextualização que existem no gênero Artigo de Opinião, a função social que o autor desenvolve como o autor do texto e a função social dos interlocutores. Também foram enfatizados elementos do contexto de produção, tais como: o meio de circulação do gênero, o objetivo que ele desenvolve no meio em que está sendo divulgado, o papel que o autor tem nesse meio de divulgação e a importância da argumentação no gênero artigo de opinião.

No terceiro módulo revimos mais características do gênero e, para isso, entregamos um texto à turma e, após a leitura, fizemos perguntas aos estudantes em relação à temática e às características do gênero. Muitas peculiaridades do artigo de opinião foram anotadas no quadro e na sequência os alunos as copiaram em seus cadernos. Ao final desse encontro os alunos receberam a tarefa de escrever um artigo de opinião.

Nesse texto, em relação ao contexto de produção, o autor demonstra que seu artigo de opinião pode ser enviado a destinatários múltiplos, que os argumentos apresentados são objetivos e que seu ponto de vista é defendido de modo claro. Por isso, pode-se afirmar que o texto é um exemplar do gênero trabalhado.

Constatou-se que a planificação está adequada, mas, na introdução, o autor poderia ter descrito com mais objetividade a tese a ser defendida. Na parte do desenvolvimento há a defesa de ponto de vista de forma eficaz, com a presença de argumentos claros e convincentes. Por outro lado, na conclusão, o produtor poderia ter resumido o ponto central de sua tese e expor alguma reflexão sobre o assunto.

O produtor renova seus argumentos em cada parágrafo, mas para isso poderia tê-los encaixados com os organizadores lógicos, como: e, pois, que, isso. Além disso, parece que os problemas referentes à forma de avaliação do produtor, ao uso de modalizações e às questões de escrita, ainda carecem de mais módulos para serem sanados.

Depois da correção, essas produções foram entregues e com elas os bilhetes que orientavam os alunos no sentido de mostrar os aspectos a serem melhorados. Por isso, partimos para a execução de mais módulos capazes de nortear a reescrita dos textos.

Na primeira produção, verificou-se que os alunos tiveram dificuldades para argumentar, por isso propomos uma atividade capaz de fornecer a eles ferramentas necessárias para superar isso, ou seja, que pudessem defender seu ponto de vista por meio de argumentos claros e convincentes.

Outra observação importante em relação ao texto inicial diz respeito à organização de ideias, argumentos e contra argumentos, pois em alguns textos houve problemas de coesão, ocasionando uma não conexão entre os parágrafos. Melhor dizendo, os alunos demonstraram não saber usar os organizadores lógicos na conexão entre os parágrafos.

Por isso, com o intuito orientar os alunos na defesa de uma tese, foi feita uma atividade que orientasse os alunos em relação à construção de argumentos. Assim, usamos novamente o artigo que falava da morte de Bin Laden e enfatizamos o modo como o autor frisa o assunto e usa argumentos para convencer o leitor. Para isso pedimos aos alunos que destacassem no texto os argumentos e os organizadores lógicos usados pelo autor e na sequência produzissem um pequeno texto com base nos argumentos assinalados.

Em outro encontro retomamos o texto que falava sobre a morte de Bin Laden para retratarmos como acontece a conexão entre os parágrafos e para mostrar o papel dos organizadores lógicos em tal atividade. Assim, expusemos que as ideias se

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renovam a cada parágrafo, mas que isso deve acontecer de forma concatenada por meio dos elementos de coesão.

Para ajudá-los a sanar parte de tais dificuldades, trabalhamos a função sintática do pronome relativo por meio de várias frases retiradas da primeira e segunda produção e de atividades do livro didático. Nessa tarefa a turma participou da resolução de exercícios indo à lousa ou expondo suas respostas de forma oral. Depois desse módulo, pedimos aos alunos que reescrevessem a versão final de seu texto para ser publicado.

Texto final Capacidades presentes e não presentes

Contexto de produção: O texto é enviado para destinatários múltiplos. Os argumentos apresentados objetivam convencer o leitor, defendendo seu ponto de vista de modo claro. O texto é um artigo de opinião; Planificação: A planificação aconteceu de modo canônico. No primeiro parágrafo há a introdução, apresentando a tese a ser defendida. Do segundo ao sétimo parágrafo o autor defendeu seu ponto de vista por meio de argumentos convincentes e, no último, faz a conclusão do texto. Textualização: As ideias se renovavam a cada parágrafo e o autor faz uso dos organizadores lógicos, como por exemplo: ( e, que), articulando a coesão do Há vozes sociais no texto, como (Al Qaeda); O autor faz várias interrogações para envolver o leitor e prender sua atenção; Há uso de pronomes anafóricos (ele) com a pretensão de evitar repetições

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de palavras, como acontece no quinto parágrafo (Como ele conseguiu se esconder...);

Tabela 2: Produção final No texto final, conforme assinalado na tabela de capacidades, o aluno

apresentou uma escrita mais proficiente em relação à produção anterior. Por isso, nesse último artigo de opinião, o estudante usou, com mais objetividade, os argumentos e contra-argumentos capazes de defender sua tese. Além disso, as avaliações em 1ª pessoa não apareceram mais e houve o uso de modalizações para fazer os julgamentos e dar seu ponto de vista em relação ao assunto abordado. Percebeu-se também que o estudante ainda tem dificuldade para usar, em determinados momentos, a pontuação e os elementos anafóricos, mas, de forma geral, pelo trabalho de reescrita, esse aluno progrediu e escreveu um texto mais coeso e coerente de acordo o gênero proposto. Considerações finais

Este artigo pretendeu demonstrar que, ao utilizar o conceito de gêneros textuais na sala de aula, o professor tem muito mais possibilidades para realizar um trabalho capaz de levar seus alunos a, de fato, realizarem ações de linguagem.

Por isso, após a elaboração da primeira produção, fizemos a correção dos textos e mapeamos as capacidades de linguagem presentes e não presentes, levando em consideração o contexto de produção, a planificação e a textualização. Em seguida, os textos foram devolvidos aos alunos com as devidas observações em

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forma de bilhetes que davam orientação em relação aos aspectos que deveriam ser melhorados.

A construção dos módulos ajudou os alunos a se apropriarem das características do artigo de opinião, assumindo o papel de um agente-produtor que escreve para um fim específico, em nosso caso, para uma possível publicação num jornal local. A atividade modular também auxiliou o professor na tentativa de sanar os problemas de escrita que foram diagnosticados no quadro das capacidades presentes e não presentes. Por isso, por meio da reescrita, os alunos foram fazendo as devidas modificações em seus textos e, assim, ocasionando uma boa produção final.

Portanto, ao adotar a concepção interacionista de linguagem e levar a teoria dos gêneros textuais para a sala de aula, planejando atividades de escrita com base nas sequências didáticas, o docente pode transformar suas aulas em verdadeiros locais de interação verbal. Pois, conforme visto neste trabalho, a partir do modelo teórico-metodológico utilizado, o gênero produzido funcionou como um verdadeiro instrumento de comunicação para os estudantes.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de M. E. Galvão Gomes. São Paulo: Martins Fontes: 2010. DOLZ, Joaquim. & SCHNEUWLY, Bernard. O oral como texto: como construir um objeto de ensino. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim (org). Gêneros orais e escritos na escola.. Trad. De Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2010. DOLZ, J. et al.. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim (org). Gêneros orais e escritos na escola.. Trad. De Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2010. KOCH, I. G. V. & ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2010. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A. P.; BEZERRA, M. A.; MACHADO, A. R. (org). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. _________. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008. MORIN, E. Pesquisa-ação integral e sistêmica: uma antropedagogia renovada. Trad. de Michel Thiollent. Rio de Janeiro: DP & A, 2004. SCHNEUWLY, Bernard & DOLZ, Joaquim (Orgs). Gêneros orais e escritos na escola.. Trad. De Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

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SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim (org). Gêneros orais e escritos na escola.. Trad. De Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

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Games como fontes históricas do presente: desdobramentos, educacionais, literários e fílmicos - Rosana Schwartz (UPM)

RESUMO: Este artigo problematiza as múltiplas possibilidades de utilização dos games em diversos campos do conhecimento – letras, história, geografia, política, semiótica, artes entre outras – argumenta sobre os desbobramentos dos jogos em livros, fílmes, vídeos e fóruns de discussão em redes sociais e principalmente apresenta e questiona as formas de apredizados que proporciona quando utilizado para a educação. Elegeu-se para exemplificar, os games Assassin's Creed I e II compostos por uma série de jogos eletrônicos criados por Patrice Desilets, ambientalizado inicialmente no ano de 2012, no qual o personagem pricipal, por meio do ato de rememorar a história vivida de seus ancestrais, revive alguns períodos da história, como a Idade Média, em específico na época da Terceira Cruzada na Terra Santa, a Renascença e a Revolução Americana. Não é recente a utilização dos meios de comunicação – fotografias, literatura, revistas, jornais, cinema - como fonte histórica e sua utilização na educação, não obstante, as fontes de entretendimento games, marcadas pelo próprio presente na vida cotidiana de milhares de sujeitos sociais, ainda comporta significativo corolário de interrogações, inquietudes e incertezas por parte dos educadores. Diante disso, este trabalho apresenta aos educadores de múltiplas áreas do conhecimento, alguns resultados da aplicação dessa ferramenta em sala de aula e por meio de entrevistas com jovens e professores as impressões sobre sua eficácia e a utilização conjunta dos seus desdobramentes em romaces e filmes dentro e fora da sala de aula.

Palavras- chave- - Fontes Históricas Games, Educação

Falar das especificidades das fontes históricas do presente como os games,

significa estar aberto não apenas a renovação metodológica no campo do saber histórico como também mergulhar em novos campos de observação, comunicação, sociabilidade e sem dúvidas novas formas de educar.

Não é recente a utilização das fotografias, literatura, revistas, jornais, cinema, videoclips, desenhos animados como fonte histórica e sua utilização na educação, entretanto, falar das fontes de entretendimento games, marcadas pelo avanço tecnológico e pelo próprio presente na vida cotidiana de milhares de sujeitos sociais, como ferramenta para a educação, ainda comporta significativo corolário de interrogações, inquietudes e incertezas por parte de muitos educadores. As tecnologias complexas como computadores, videogames, as mais variadas mídias e o acesso rápido ás informação pelo google, youtube, faceboock, twitter entre outros, estão presentes no dia-a-dia dos jovens da “geração internet”, desde a infância até a universidade. Acostumados a realizar três ou mais atividades ao mesmo tempo e a interagir com várias mídias em conjunto com os mais diversos propósitos, seja para aprender, comunicar ou achar o que fazer ao longo do dia, não mantém por longos períodos em sala de aula, atenção para ouvir explanações de conteúdos transmitidas pelo método tradicional. O fato de terem crescido em ambiente digital trouxe novas formas de “ver”, “encarar” e “aprender” em suas vidas cotidianas. Observações de pesquisadores inquietos com a questão mostram que aprendem e se comunicam de uma maneira diferente das gerações anteriores e que estão remodelando as instituições da vida moderna, desde o local de estudo, métodos de aprendizagem, trabalho e mercado.

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Essas constatações estão provocando questionamentos sobre o modelo pedagógico tradicional de transmissão e a absorção de conteúdos, focado no professor, para um modelo focado no estudante auxiliado pelas ferramentas digitais facilitadoras.

Lèvy (1999), explica em seus estudos, que as ações cotidianas dos sujeitos com as tecnologias digitais, as novas sociabiliadades geradas pela sua interação nas redes de comunicação, vem transformando nas últimas décadas do século XX, as relações dos sujeitos com o conhecer/saber, assim como, criando resistências com relação a alguns conteúdos apresentados e trabalhados de forma tradicional pela educação nas escolas. As crianças e os jovens enxergam a tecnologia como parte do seu ambiente e absorvem e compreendem conteúdos pela via e lógica do seu mundo. Não aceitam simplesmente o que lhes é oferecido sem explicações concretas da aplicabilidade do conteúdo para as suas vidas. Esses sujeitos na contemporaneidade não apenas observam os métodos utilizados na educação como se constituíram em colaboradores, leitores, escritores, organizadores e estrategistas ativos. Nos games fantasiam, investigam e vencem desafios complexos que interferem no seu dia-a-dia, além de se constituírem enquanto verdadeiramente indivíduos mundiais.

Sob vários aspectos as crianças e jovens da chamada “Geração Internet” são a antítese da “Geração TV”, por que não apenas observam e absorvem (como as gerações anteriores), os valores sociais, culturais locais, globais ou hierárquicos dos proprietários dos veículos de comunicação, mas questionam por meio das suas escolhas as informações que desejam apreender. Possuem capaciadade de controle dos elementos que consideram essencial para a sua vida cotidiana nas redes sociais, comunidades, etc. Customizam e personalizam elementos presentes a sua volta. Usam a tecnologia para descartar – deletar o dispensável ou indesejável. Ações que se refletem sobre a tradicional educação que recebem nas escolas.

Essas características contém elementos para reflexões sobre a transformação nas comunicações, educação e história.

Assim, pretende-se neste artigo problematizar a possibilidade da utilização dos games em diversos campos do conhecimento e verificar as vantagens e desvantagens criadas e recriadas pela imersão cognitiva, desenvolvida pelas experiências e prática interativas dos jogos no desenvolvimento dos conteúdos pelos docentes. Vale ressaltar, que os games não se isolam no processo ensino/aprendizagem muitos se desbobram em outras linguagens, como livros, fílmes e vídeos, além dos fóruns de discussão em redes sociais, ampliando as possibilidades de sua utilização pelos discentes e docentes..

Após pesquisas e entrevistas com sete estudantes que utilizam sistematicamente os jogos em suas vidas cotidianas, durante um ano de trabalho, permito-me concluir que os games, por meio dos seus recursos tecnologicos proporcionam comprovadamente a imersão, simulação e interatividade de forma lúdica e que essa ação abre possibilidades de agregar com mais facilidade conteúdos educativos de forma não linear.

A prática exigida nos games para passar de fase ou para continuar e concluir o jogo revelou desenvolvimento de um grau de compreensão e absorção mais eficaz que os empreendidos pelo método tradicional de ensinar. A interatividade e forma lúdica além de possibilitar o aprender por participação/imersão promove “feedbacks” em cada momento da ação/interação.

Partindo dessa observação e da premissa que os games oferecem formas diferenciadas sobre o entender, agir e conhecer, este estudo procurou avançar nas problematizações sobre os games como facilitadores da aprendizagem de assuntos

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complexos da área do conhecimento da história, promotor de habilidades cognitivas, facilitador de resoluções de problemas, percepção ampla do mundo, criatividade e o raciocínio rápido (PRENSKY, 2001; GEE, 2003).

Os jogos não são ferramentas novas para a interação, educação e desenvolvimento de habilidades nos indivíduos na vida cotidiana. Já foram utilizados no ensino/aprendizado sob os mais variados objetivos, desde o início dos tempos até a atualidade. Sua concepção se transforma, como qualquer produção humana, segundo o contexto histórico em que esta inserido. Como documento ou fonte histórica apresenta em sua estrutura as relações políticas, econômicas, sociais e inovações tecnológicas do período em que foi criado ou reelaborado. Desvelam categorias repletas de conteúdos sobre as relações de poder reais, imaginárias, ideológicas e ficcionais de um tempo, do olhar de quem o concebeu, os objetivos explícitos e implícitos para quem se destina. São documentos históricos, educacionais e comunicacionais que testemunham as mudanças na vida cotidiana dos sujeitos em sociedades, processos de escolhas, valores sociais, culturais, simbólicas, desejos, ansiedades, imaginações, criatividades, devaneios e reações íntimas dos indivíduos. Ressignifica pelo ação/bricar o “eu” por meio da experiência intersubjetiva, o que não permiti ser estudado somente pela perspectiva do passar o tempo. (COSTA, 2002).

Os documentos/games auxiliam no processo de compreensão e absorção de conteúdos por que propiciam ao jogador ambiente dinâmico com textos escritos, imagéticos, simbólicos, sonoros, controlados por regras bem definidas de forma sinestésica, ou seja, pela mistura dos sentidos do tato, percepção visual e auditiva, ou seja, a interação proporcionada no ato de jogar entre as linguagens desenvolve experiências imersivas significativas relevantes para o ensino/aprendizado (SANTAELLA, 2004). Carvalho (2006) explica que sua ação/interação não revela contrastes sociais entre os participantes, o que atenua as noções de diferenças de classes, gênero, raça/etnia e que o desejo de viver a imersão propicia ao invés de um observador distanciado do objeto, um sujeito inserido no contexto dos acontecimentos. A presença do sujeito/corpo em ação simbólica no jogo permite a percepção do ficcional, do imaginário e do real, exercício que auxilia o desenvolvimento do raciocínio lógico durante o processo da experiência do jogo. Os games proporcionam exercícios de raciocínio, exigem tomadas de decisão, ações rápidas, olhar estratégico para entender a lógica da narrativa. Esse conjunto de exigências possibilita o aprender a ler, interpretar, solucionar situações postas como desafios, se concentrar e trabalhar com a memória para passar em cada fase ou continuar o jogo. (MOITA, 2007b).

A potencialidade dos games para fins educacionais são inesgotáveis e podem ser comprovadas ao se percorrer pela bibliografia, pesquisa e estudos que sobre jogos educativos da Games-to-Teach da Microsoft em parceria com universidades como Harvard - Education Arcade e Departamento de Estudos de Mídia Comparativa do MIT, (Massachusetts) Institute of Technology. Os games criados versam sobre diversas áreas do conhecimento como genética, higiene bucal, entre outros temas, e foram aplicados e analisados em diversas escolas da Cidade de Boston. (MOITA, 2007b). Projetos semelhantes podem ser apontados, como os elaborados pela Georgia Tech, Universidade de Wisconsin-Madison, Carnegie Mellon, Oxford e Universidade de Copenhagen. (WANG, 2005). Segundo esses estudos, os estudantes com hábito de jogar cotidianamente atingem resultados mais eficazes nos testes matemáticos tradicionais, desenvolvem maiores habilidades de leitura, memorização e pensamento crítico (KROTOSKI, 2005).

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Completando, trabalhos acadêmicos sobre os games Age of Empires, Call of Duty, The Sims e Sonic já comprovaram contribuições relevantes em disciplinas de geografia, história e matemática. No primeiro game, o sujeito/ator objetiva criar uma civilização e fazê-la crescer, por meio da combinação de recursos, tecnológicos e espaciais. Desenvolve habilidades geográficas, espaciais e conhecimento de história. No segundo, o jogador vivencia um soldado em batalhas e guerras desenvolvendo capacidade estratégica, raciocínio rápido e conhecimento histórico. Já The Sims o indivíduo/ jogador necessita mostrar suas habilidades para a vida cotidiana na cidade, mostrar valores de ética e cidadania, assim como, demostrar comportamentos sociais e econômicos. O jogador estuda, trabalha, compra casa, viaja, come, dorme, toma banho, faz amigos, namora casa e tem filhos. Em Sonic, assim como em Donkey Kong, o sujeito deve conquistar um número suficiente de respostas certas para resolver um problema proposto, incentivando a busca da superação dos desafios.

Santaella (2004), destaca que a competitividade do jogo é a mesma existente na sociedade contemporânea e Becker (1994) completa ao afirmar que o educador necessita compreender que a educação por se constituir em um processo de construção de conhecimento em condição de complementaridade entre educadores e educandos, por um lado e pela vida competitiva do mundo atual, por outro lado, o conhecimento construído de forma estática fornecido nas salas de aula, não proporciona aos estudantes e futuros profissionais soluções viáveis para os problemas da vida cotidiana. O sujeito do conhecimento necessita modelar suas ações e realizar operações conceituais com base nas suas experiências para ampliar as possibilidades de integração e sucesso no mundo atual.

A simulação realizada durante os games cria e recria a possibilidade do ator/ jogador atue em diferentes funções sociais, ou seja, pode agir como um soldado, médico, engenheiro, professor, policial ou mesmo um bandido colocando- o no lugar do outro em suas funções sociais, o que de alguma maneira gera sensações e reflexões sobre os diferentes papéis e funções dos indivíduos em sociedade, um exercício de descentralização do “eu” para o “outro”, favorecendo o desenvolvimento da noção de diferença, respeito e valores éticos. Segundo Chauí (2001) a capacidade do exercício da ética pressupõe colocar-se no lugar do diferente, avaliar situações do “eu” e do “outro”, a descentralização do etnocentrismo.

Além desses aspectos, os games de sucesso geram desdobramentos em livros romances ambientalizados no contexto da história e filmes (TAVARES, 2007).

Com o objetivo de discutir game/educação e documento histórico, bem como suprir lacunas existentes em pesquisas anteriores, este estudo privilegiou os games: Assassin's Creed I em especial o Assissin”s Creed II, compostos por uma série de jogos eletrônicos criados por Patrice Desilets.

Nesses games observa-se primeiramente a ambientalização datada em 2012 e os movimentos necessários para o estudo das ciências sociais de idas e vindas no tempo, na históricos. No primeiro jogo, o personagem Desmond Miles, barman descendente de uma linhagem de uma “Ordem” denominada de “Assassinos”, é sequestrado por Cavaleiros Templários da Ordem das Indústrias Abstergo e colocado numa máquina do tempo de nome Animus que possibilita o passeio pelo tempo, pela história. Essa máquina permite voltar no tempo dos seus ancestrais, em um movimento passado/presente relevante para o ensino da história e compreensão das múltiplas temporalidades presentes na vida cotidiana. Desmond, no primeiro game rememora a história vivida de seus ancestrais nos períodos da Idade Média, em específico na época da Terceira Cruzada na Terra Santa, no game II, na Renascença e

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em outubro de 2012, o game III, ambientalizado durante a Revolução Americana de 1776.

O foco desta pesquisa é o segundo jogo, na Renascença, entretanto para melhor compreensão, vale percorrer brevemente pelo no primeiro game, que apresenta o personagem/jogador que vive as memórias de um ancestral de nome Altaïr Ibn-La'Ahad, assassino da época da Terceira Cruzada na Terra Santa. O objetivo é libertar as cidades da influência dos inimigos templários. Sob a perspectiva muçulmana o jogador queima estruturas que representam a dominação dos inimigos templários na região e reconstrói a parte que estava dominada com as características da sua arquitetura. A história das Cruzadas de difícil compreensão para jovens estudantes, devida as características temporais, espaciais e culturais ocidentais e orientais por meio da interação que o jogo proporciona, passa a ser vivenciadas e conhecidas aos olhos do presente. A ambientalização do game apresenta construções de diversos locais das cidades envolvidas no contexto da Cruzada, assim como a reação cristã, na época, diante da conquista da cidade de Jerusalém pelo líder muçulmano Saladino em 1187. Durante a movimentação do jogador/personagem são apresentadas as expedições dos cavaleiros templários e as ações dos condutores, reis da Inglaterra, Ricardo I - Ricardo Coração de Leão, da França, Filipe Augusto e o imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Federico Barba Ruiva - Barbarossa ou Barba-Roxa.

Os fatos vivenciados fictícios, imaginários e reais apresentam a história das Cruzadas e segundo depoimentos de estudantes e professores entrevistados, após a familiarização e vitória das etapas do jogo, a interação proporciona visão local e global do episódio.

Já Assassin's Creed II, foco deste trabalho, na introdução do jogo do tempo presente de 2012 o personagem/jogador se remete á cidade de Florença no ano de 1476. O game consiste em o ator/jogador assumir o papel de um nobre chamado Ezio Auditore que teve seu pai e seus irmãos, acusados de traição na cidade de Florença. Esse motivo levou seus familiares a serem executados em praça pública. Junto com sua mãe e sua irmã se deslocam para a vila dos Auditore, lugar que desvela a identidade dos seus irmãos e seu pai como assassinos. O ator/jogador resolve ajudar seu tio Mario na guerra entre os templários e assassinos, com o objetivo de vingar a morte de seu pai e irmãos. Altair do primeiro jogo e Ezio do segundo são ascendentes de Desmond Miles, o barman dos dias atuais que foi capturado em Abstergo.

A movimentação no espaço geográfico e temporal de jogabilidade é não-linear e o jogador caminha livremente pela cidade, observando e conhecendo a geografia do local, a arquitetura e o cotidiano da época, as roupas, os utensílios e os costumes. O século XV, da Itália, durante a Renascença é apresentado, destacando os aproximadamente trezentos anos de distância do primeiro jogo para o segundo.

Personagens baseados em figuras históricas interagem durante todo o game com o personagem/jogador, como Leonardo da Vinci, Niccolò Machiavelli, Catarina Sforza, Lorenzo de' Medici, Rodrigo Bórgia e Cesar Bórgia.

Leonardo da Vinci aparece com o intuito de ajudar o jogador ensinando aspectos sobre armas disponíveis para combater o inimigo. Ele mostra as suas invenções e ensina o jogador a construí-las. Incentiva o conhecimento sobre as invenções de Leonardo da Vinci, a criatividade, uma vez que propõem alternativas para a defesa do ator/jogador e saberes sobre a produção artística/científica da época. O jogo amplia a percepção do que significou o período da Renascença.

Promove o encontro durante o jogo com a relação passado/presente, documentos históricos que auxiliam no aprimoramento dos equipamentos do próprio

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Leonardo da Vinci, reais ou ficcionais, como a existência de luvas com adagas onde colocam lâminas que inoculam veneno para criar e recriar tensão na trama. O imaginário com o real se articulam criando possibilidades de questionamentos e reflexões sobre o que existia na época, ideologias e poderes.

Informações complementares aparecem em pequenas janelas pop-ups que podem ser acessadas durante o game (quando o jogador passa pelos monumentos ou locais históricos), apresentando aspectos do local, história, técnicas de construção, pinturas, entre outras informações. Muitos versam sobre os personagens históricos que exerceram interferência na cidade de Florença, assim como as localizações, documentos e artes. Esse recurso possibilita ao ator/jogador conhecer cada elemento do contexto da história de Florença, os pontos históricos, características das obras de Arte Renascentista, como tamanho e método de pinturas, estilo dos pintores, principalmente de Leonardo da Vinci. Aprender técnicas utilizadas na arquitetura, pintura e escultura da época conjuntamente com a história do local de forma não-linear e interativa desenvolve habilidades de conhecer e saber.

O enredo desse game, versa sobre história de vida de um personagem, portanto, trabalha a ideia de memória. Em história e na comunicação a memória é fonte fundamental. Apresenta o ato de rememorar privilegiando o que se deseja perenizar ou que marcou consideravelmente a vida do personagem. O que o autor do game selecionou. Nesse movimento compreende-se o olhar, as ideologias, as relações de poder implícitas e explicitas da empresa que financia o game, e dos seus criadores. São desveladas, desenterradas pistas sobre quem realizou, por que realizou, e para quem realizou o documento game.

Os mapas apresentados no início do jogo são compostos por quadrados que por meio das atualizações que acontecem durante o jogo, vão compondo partes da cidade. A cidade vai aparecendo aos poucos para o ator/jogador. A localização da cidade de Florença aparece no mapa da Itália, proporcionando noção geográfica e espacial. Conforme a história vai sendo construída o jogador/ator se desloca para outras cidades, primeiro na região da Toscana e depois para outras. Definindo e caracterizando os reinos e ducados da época. Proporciona noção que a Itália não era unificada nessa época, e que os reinos estavam em guerra. Mostra que em cada lugar há famílias muito poderosas que controlam a região e que algumas famílias mantinham o poder em todas as regiões. Destaca a discussão entre duas famílias poderosas e o perigo eminente de guerras- Medici, Sfozas e Borgias. A história acompanha os Medici e os Borgias.

O ator/jogador no decorrer da trama encontra as paginas codificadas durante o jogo, que possibilitam atualizar suas armas e conseguir pontos de saúde extras. O cenário, as pessoas que compõem a trama, as multidões e os esconderijos, proporcionam tomar ciência sob o olhar do presente do cotidiano da cidade, valores e costumes de época. Aparecem durante o jogo diferentes grupos sociais como, burgueses, artesãos, mercadores, clérigos, nobres, prostitutas, artistas e cientistas.

O modo como o ator/jogador se porta no jogo muda a sua reputação. Por exemplo, se assassinar um inocente sua reputação é estragada. Esse sistema é denominado de notoriedade.

Em Veneza, o ator/jogador por meio da possibilidade de nadar e usar os canais de como pontos de esconderijo ou para atrair o inimigo para a água, apresenta os principais pontos históricos da cidade. Nessa parte o ator/ jogador pode acessar localizações escondidas como cavernas e catacumbas. Explorar essas localizações possibilita recompensas ao jogador, como pegar armaduras, dinheiro e objetos.

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A noção de temporalidade é apresentada pelo sistema de dia e noite dando um senso de passagem de tempo e pela memória passado/presente do personagem..

O jogo apresenta o sistema econômico da época por meio da possibilidade de contratar serviços de personagens não jogáveis. O ator/jogador pode financiar e investir seu dinheiro, aprendendo noções de economia durante o jogo. Abrir lojas, estábulos e ferreiros fechados. O jogador investe nesses locais, fazendo melhorias na cidade e prosperando socialmente.

O ator/jogador conta com armaduras especiais compradas de ferreiros (apenas a armadura de Altair é adquirida de modo diferente). São elas: Leather Armor, Helmschmied Armor, Metal Armor, Missaglias Armor e Armor of Altair.

Os gráficos são em alta resolução possibilitando ao jogador observar detalhes. O jogo é em italiano, pois esta ambientalizado na renascença italiana, mas possui a possibilidade de legendas em outros idiomas. Contribui oferecendo autenticidade ao enredo, de forma subjetiva oferece ao ator/jogador impressão de realidade. O som colabora para a ambientalização, para a trama, dependendo do contexto a trilha sonora principal é atual com músicas do cotidiano do ator/jogador, de ficção científica, mas quando se trata de uma cena que se passa em um festival, por exemplo, a música é de época, demostrando um trabalho de pesquisa denso e sério por parte do autor dos jogos.

As versões literárias dos games, menos divulgadas, seguiram as sequencias: Assassin's Creed II, denominada de Assassin's Creed: Renaissance, escrito por Oliver Bowden e publicado pela Penguin Books - o texto se passa somente no século XV, sem menção aos eventos do presente, como no jogo. Publicada em 2011, pela editora Galera Record no Brasil, sob o nome de Assassin's Creed: Renascença. Assassin's Creed: Graphic Novel – onde são narradas duas histórias sobre Altaïr ibn La-Ahad e Desmond Miles. A Graphic Novel narra a fuga de Desmond da Abstergo, em 2012, e o assassinato realizado por Altaïr em 1191. Escrito por Eric Corbeyran e desenhado por Djilalli Defaux, foi somente lançada na França, Canadá e Itália. A história reconta os eventos finais de Assassin's Creed e o acontecimentos iniciais de Assassin's Creed II, no ponto de vista de Desmond e Assassin's Creed: Brotherhood - Continuação da série escrita por Oliver Bowden e piblicada pela Penguin Books e Assassin's Creed: The Secret Crusade - terceiro livro da série. A história é narrada por Niccolo Polo, pai do explorador Marco Polo. A história é sobre a vida de Altaïr ibn la-Ahad. Foi lançado no dia 20 de junho de 2011, nos EUA.

Já as versões em filmes, são séries de 36 minutos lançado em 3 partes pelo YouTube. Eles promovem o jogo e comentam as versões em livro. São considerados pelos estudiosos de games como a primeira tentativa da Ubisoft de dar seu primeiro passo em direção à indústria cinematográfica - .Assassin's Creed: Ascendance - Ascendance é um curta-metragem de animação feito pela UbiWorkshop e pela Ubisoft Montreal, que narra a subida de Cesare Borgia ao poder. O curta foi lançado em 16 de Novembro de 2010.

O terceiro jogo da série esta ambientalizado nos Estados Unidos, durante a Guerra da Independência. O protagonista, filho de uma índia americana com um britânico, de nome Connor é o novo protagonista, no lugar de Ezio, que foi o protagonista dos três últimos títulos. Ele busca justiça. Já é de conhecimento que o novo jogo desenvolverá habilidades de economia. Assim como nos games protagonizados por Ezio, desta vez Connor o ator/jogador terá que ajudar a economia local a se desenvolver para o jogo ser avançado. Não obstante, enquanto nos jogos anteriores as ações consistiam em comprar lojas, o novo jogo exige uma maior imersão na vida econômica do local. Cada personagem tem nomes de personalidades

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e histórias próprias. Cabe ao ator/jogador interagir para ajudar as pessoas a fazer seus negócios.

Considera-se assim, após acompanhar os atores/jogadores selecionados para esta pesquisa, que os games se constituem enquanto fontes históricas do presente que possibilitam refletir sobre a necessidade de renovação metodológica no campo do saber histórico, comunicação e sem dúvidas novas formas de educar. Referências ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1985. ALBERONI, Francesco. Valores: o bem, o mal, a natureza, a cultura, a vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. ALVES, Lynn. Game over: jogos eletrônicos e violência, no Estado da Bahia. Salvador: PPGE/UFBA, 2004. ARBEX, Marco A. O uso dos Jogos de Empresas em Cursos de Graduação em Administração e seu valor pedagógico: um levantamento no Estado do Paraná. In: Encontro Anual da Associação dos Programas de Pós-graduação em Administração, 30, 2006, Salvador, EPQA2470, CD-ROM. AQUINO, Renata. Jogos de aprendizagem no Brasil. Universia Brasil. Disponível em: http://www.universiabrasil.net/materia/materia.jsp?materia=5950. Acesso em: 01/07/2012. BABIN, Pierre e Kouloumdjian, Marie-France. Os Novos Modos de Compreender - a geração do audiovisual e do computador. Tradução Maria Cecília Oliveira Marques, São Paulo: Paulinas, 1989. BERNARD, Ricardo. Métodos de Jogos de Empresa/Simulação Gerencial. In: MARION, José Carlos; MARION, Arnaldo Luis Costa. Metodologias de Ensino na Área de Negócios, São Paulo: Atlas, 2006. p. 83-114. BETTELHEIM, Bruno. Uma vida para seu filho. São Paulo: Artmed, 1984. BRET, Michel. O tempo reencontrado. In: DOMINGUES, Diana. A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. BROUGÈRE, G. Jogo e educação. Porto Alegre: Artes Médias, 1998. CARNEIRO, M.A.B. O jogo e a aprendizagem. Revista Discorpo. São Paulo, n. 5, set. 1995. CARVALHO, Victa de. Dispositivos em evidência: a imagem como experiência em ambientes imersivos. In: FATORELLI, A.; BRUNO, F. (Org.). Limiares da imagem: tecnologia e estática na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. CLARK, Donald. Games and e-learning. Epic, 2006. Disponível em: http://www.epic.co.uk Acesso em 26 mai. 2012. CLUA, E.W. e BITTENCOURT, J.R. (2004) Uma Nova Concepção para a Criação de Jogos Educativos. Proc. Simpósio Brasileiro de Informática na Educação (SBIE). Manaus-AM: Sociedade Brasileira de Computação, CD-ROM. COSTA, Maria C.C. Ficção, comunicação e mídias. São Paulo: Editora do SENAC São Paulo, 2002. FELDMAN, Ari. Designing Arcade Computer Games , 2000. Disponível em: http://www.gamemaker.n1/feldman. Acesso em: 15 jul. 2012. FISHER, Ernst. A Necessidade da Arte. Tradução Leandro Konder. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

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As helenas presentes na revista Claudia. Reflexões sobre o corpo feminino na literatura e na midia impressa - Selma Felerico (UPM)

Resumo: Este artigo pretende comparar os imaginários femininos presentes na literatura e na mídia impressa em dois momentos da sociedade brasileira: as décadas de 1860, século XIX, e de 2010, século XXI. A obra Helena de Machado de Assis – publicada em 1859 –, e as capas das edições da revista Claudia – primeiro semestre de 2012 – compõem o corpus que será pesquisado. A transformação do imaginário feminino constitui o problema a ser analisado, pois considera-se que a idealização da mulher morena, sensual, objeto do desejo masculino, representada pela personagem Helena em meados do século XIX, desloca-se, na contemporaneidade, para a loira, erótica, dona de seu corpo e de seu desejo. A hipótese central é que há um ideal de beleza predominante no imaginário feminino imposto pela mídia. E de acordo com o padrão elegido pela mulher surgem novos hábitos sociais e práticas de consumo. Palavras chave: corpo feminino, imaginário, mídia impressa, literatura.

INTRODUÇÃO

Este artigo pretende comparar os imaginários femininos presentes na literatura e na mídia impressa em dois momentos da sociedade brasileira: as décadas de 1860, século XIX, e de 2010, século XXI. A obra Helena de Machado de Assis – publicada em 1859 –, e as capas das edições da revista Claudia – primeiro semestre de 2012 – compõem o corpus que será pesquisado. Ele é parte de uma pesquisa em desenvolvimento no âmbito CAEPM /SP – que tem por objetivo geral avaliar a satisfação das mulheres – acima dos 50 anos, das classes sociais A e B – com a sua aparência. Compreender as transformações atuais nas práticas de consumo relacionadas à beleza, ao corpo e categorizar os vários tipos de corpos encontrados que contribuem para a construção de novas identidades femininas, são os objetivos específicos que este trabalho busca contemplar.

Compreender as transformações atuais nas práticas de consumo relacionadas à beleza, ao corpo e categorizar os vários tipos de corpos encontrados que contribuem para a construção de novas identidades femininas, são os objetivos específicos que este trabalho busca contemplar. A hipótese central é que há um ideal de beleza predominante no imaginário feminino imposto pela mídia. E de acordo com o padrão elegido pela mulher surgem novos hábitos sociais e práticas de consumo.

O corpus desse texto pretende comparar os imaginários femininos presentes na literatura e na mídia impressa em dois momentos da sociedade brasileira: as décadas de 1860, século XIX, e de 2010, século XXI. A obra Helena de Machado de Assis – publicada em 1859 –, e as capas das edições da revista Claudia -- primeiro semestre de 2012 – compõem o corpus que será pesquisado. A transformação do imaginário feminino constitui o problema a ser analisado, pois considera-se que a idealização da mulher morena, sensual, objeto do desejo masculino, representada pela personagem Helena em meados do século XIX, desloca-se, na contemporaneidade, para a loira, erótica, dona de seu corpo e de seu desejo.

Quanto ao referencial teórico que fundamenta a pesquisa, destacam-se vários estudiosos dos temas – Corpo, Mulher e Consumo – tais como: Cristopher Lasch com A cultura do narcisismo (1983), que mostra a ansiedade do homem moderno em

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consumir como forma de demonstrar status e/ou poder, é fundamental para entender o aumento de consumo dos corpos esculpidos em academias de ginástica, clínicas estéticas e de cirurgia plástica; David Le Breton por meio do livro Adeus ao Corpo (2003) faz uma análise sobre o discurso científico atual em que o corpo é um simples suporte do indivíduo e revela a intenção da sociedade ocidental de transformá-lo de diversas maneiras – científicas, tecnológicas e estéticas. O autor também trata dos excessos de medicamentos ingeridos pela sociedade contemporânea o que reflete em moderadores de apetite e outras formas de estimular a perda de peso de forma rápida; Letícia Casotti, Maribel Suarez e Roberta Dias Campos – O Tempo da Beleza. Consumo e Comportamento feminino, novos olhares (2008) – apresentam o resultado de uma pesquisa que enfoca a realidade cotidiana de mulheres de classe alta do Rio de Janeiro, mapeando hábitos de consumo de produtos de higiene, cuidado pessoal e beleza em quatro grupos etários; Joana Vilhena Novaes – O intolerável peso da feiura. Sobre as mulheres e seus corpos (2006) – retrata a insatisfação feminina com o corpo, percebida a partir das constantes intervenções cirúrgicas que as mulheres se submetem atendendo à tirania estética midiática e Com que corpo eu vou? Sociabilidade e usos do corpo nas mulheres das camadas altas e populares (2010) – traz um estudo que busca entender e revelar novos contextos para conceitos como gordura, magreza, beleza e feiura, nas classes altas e populares do Rio de Janeiro; Mirian Goldenberg – Nu e vestido. Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca (2004): um estudo antropológico sobre a cultura do corpo na sociedade carioca dos anos 2000; O corpo como capital. Estudos sobre o gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira (2008): um estudo que apresenta o conceito de corpo capital como valor de troca na sociedade atual, motivo de reconhecimento profissional e ascensão social; Coroas. Corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade (2008) e Corpo, envelhecimento e felicidade (2011): resultado de muitos anos de reflexão e de pesquisas sobre os desejos e as preocupações de homens e mulheres das camadas médias urbanas; Naomi Wolf – O mito da beleza. Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres (1992): observa como as imagens de modelos veiculadas nas revistas femininas são usadas contra as próprias mulheres, no período de 1950 a 1990. A autora desenvolve a teoria da eterna busca pela beleza feminina, como uma religião que envolve as mulheres com a intenção de aproximar-se da perfeição divina e tem seus estudos focados em análises de revistas dos Estados Unidos e da Inglaterra.

Stuart Hall em seu livro A Identidade Cultural na Pós-Modernidade (1997) assegura que o indivíduo tem sua identidade abalada diante da complexidade da vida social. Para o autor, as identidades que estabilizaram o mundo social por muito tempo estão em declínio, devido ao impacto pluralizante e polifônico da cultura e da mídia estabelecido pela modernidade. O sujeito assume identidades diversas em diferentes momentos, identidades que não são unificadas em torno de um “eu” coerente. “Dentro dos nós há identidades contraditórias empurrando em diferentes direções.” (HALL, 1997, p.13).

Jean Baudrillard em seu livro A Sociedade do Consumo (2005) afirma que o consumo supõe a manipulação ativa de signos e na sociedade capitalista o signo e a mercadoria teriam se juntado para formar a mercadoria-signo. Preocupado em denunciar o consumo como o elemento central e redutor das sociedades de consumo, o autor considera a beleza corporal um signo com valor de troca.

Ser bela é ser jovem? Consumir para não ser velha? Que marcas e significações corporais no discurso midiático são decodificadas pelas mulheres maduras acima de 50 anos? Quais são as novas práticas de consumo nos saberes e nos

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modos de tratar o corpo feminino na maturidade? Questões como essas envolvem muitos produtos e serviços a serem consumidos, tais como: tinturas para encobrir os cabelos brancos, cremes antirrugas, cosméticos corretivos e tratamentos estéticos, como cirurgias plásticas e outros processos reparadores anti-idade. E é a intenção deste projeto contemplar estes questionamentos. A hipótese central desta pesquisa é que há um ideal de beleza predominante no imaginário feminino imposto pela mídia. E de acordo com o padrão elegido pela mulher surgem novos hábitos sociais e práticas de consumo.

O PERCURSO METODOLÓGICO A metodologia escolhida o seguinte caminho: 1.Revisão bibliográfica com a

intenção de selecionar bases teóricas sobre a questão proposta; 2. Levantamento documental composto por anúncios publicitários, capas, matérias e/ou editorias veiculados em revistas femininas, no período de 2011 e 2012, que tratam do tema: Beleza, Juventude e Corpo, com a intenção de compreender o diálogo entre a mídia e a leitora; 3. Aplicação de uma pesquisa qualitativa – com vinte e cinco mulheres das classes A e B, na faixa etária de 50 a 65 anos, moradoras na cidade de São Paulo – para conhecer o imaginário estético feminino e suas práticas de consumo; 4. A fim de compreender a construção do diálogo midiático e social com a mulher, profissionais das áreas de saúde e de comunicação – como: um cirurgião plástico, uma endocrinologista, uma psicóloga de imagem, uma publicitária e uma editora-chefe de uma revista feminina – também devem ser consultados. 5. Por fim registrar os atuais hábitos de consumo feminino e classificar os vários tipos de corpos encontrados, que legitimam novas identidades e traçam novos costumes na sociedade brasileira do Século XXI.

A classificação das identidades femininas, proposta pela autora resgata os três pilares revisitados na pesquisa, corpo, comunicação e consumo – corpos reeducados: que querem apreender os modos consumir e de tratar o corpo para mantê-lo jovem e belo; os corpos renegados: compostos por mulheres que sentem-se velhas, gordas e feias, à margem da sociedade consumidora; corpos renovados: corpos que foram esculpidos em clínicas de estéticas e intervenções cirúrgicas; corpos revisitados: são mulheres que aprendem a conhecer seu corpo, seus limites e convivem com ele de forma segura.

OS CORPOS HELENICOS E SUAS IDENTIDADES NA REVISTA No século XXI, o culto ao corpo entrou na era da comunicação de massa e

ganhou uma dimensão social inédita. “O tema corpo entrelaça-se ao universo do consumo e dinamiza os interesses do mercado, muito embora a representação do corpo na linguagem deva ser vista/ lida diante da articulação de um objeto simbólico, distanciando-se da leitura cristalizada/ fechada (GARCIA, 2005, p. 18)”. A espetacularização que constitui a mídia contemporânea elimina a distância entre o produto publicitário e o corpo como dispositivo/ suporte de mensagens. Hoje não há mais um corpo natural. Assiste-se a um processo constante de construção de simulacros e de mensagens que fomentam o imaginário da sociedade, frustrando principalmente as mulheres, por não serem tão perfeitas como as modelos apresentadas. Atesta-se que os periódicos femininos são verdadeiras cartilhas com a missão de instruir a mulher sobre temas de seu interesse, isto é, como cuidar da casa,

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da vida amorosa, da carreira profissional e principalmente de sua beleza. Embora existam muitos meios de comunicação tradicional como: a televisão, o cinema, os outdoors, entre outros e os virtuais, como: sites, blogs e mídias sociais, que também têm influência no imaginário feminino e consequentemente nas suas práticas de consumo e nos seus modos de tratar o corpo.

Em outras palavras, deve-se pensar o corpo apresentado na publicidade, além

do discurso mercadológico, além da representação da sociedade. Nos anúncios publicitários comumente uma voz imperativa oferece as leitoras produtos e serviços que controlam seu apetite, retardam seu envelhecimento, reformam seu corpo, entre outros apelos.

A voz da revista proporciona às mulheres uma autoridade invisível a ser admirada e obedecida, paralela à relação de padrinho que muitos homens são incentivados a desenvolver tanto na educação quanto ao emprego, mas que as mulheres raramente encontram em qualquer outro lugar a não ser nas páginas dessas revistas... A voz estimula essa confiança. Ela desenvolveu um tom de aliança para com a leitora, de estar ao seu lado com conhecimento e seus recursos superiores, como um serviço de assistência social gerido por mulheres (WOLF, 1992, p. 97).

Nas revistas femininas o a figura helênica advinda da literatura está presente em artigos e editoriais que traçam a mulher contemporânea registrando os sucessos e as conquistas no seu cotidiano. Com manchetes que relatam este progresso feminino, tais como: Os Segredos da Mulher Possível (CLAUDIA, abril, 2012); Porque essas Mulheres chegaram lá? (CLAUDIA, abril, 2012); Fatima Bernardes. Beleza real e coragem para começar uma nova historia) CLAUDIA, abril, 2012); entre outros títulos e temas que se repetem. Ratificando a personagem Helena, do romance homônimo de Machado de Assis:

Na criação romanesca machadiana estão presentes as mulheres especiais: dissimuladas, ambíguas, sensuais, astuciosas; elas não têm a fragilidade da mulher romântica. Ele via a mulher como um ser dominador.(BISSOLI, 2010)

Segundo Bissoli, as personagens machadianas são profundamente brasileiras,

ele evita falar de tipos indígenas e regionais, ao contrário de José de Alencar, por exemplo, que escreveu Iracema, O guarani. Ainda de acordo com a autora, Machado de Assis recria em seus romances o mundo Brasileiro, a sociedade arcaica cujos hábitos antigos e cerimoniosos e cujas atitudes convencionais dissimulavam na boa educação e nos modos polidos. Preocupações essas constantes nas magazines que se dirigem ao publico feminino: “Como educar seus filhos.” (CLAUDIA, setembro, 1968); “Escolha seu regime” (CLAUDIA, setembro, 1968); “Mente jovem e ágil em qualquer lugar” (CLAUDIA,abril,2012). Constata-se que a idealização da mulher morena, sensual, objeto do desejo masculino, representada pela personagem Helena em meados do século XIX, desloca-se, na contemporaneidade, para a loira, erótica, dona de seu corpo e de seu desejo, presente nas capas das revistas femininas, com seus cabelos esvoaçantes maquiagens em tons vibrantes, acessórios grandes e marcantes, assim como os vestidos decotados com seios e pernas em exibição de destaque. Esta é mulher Helena, que mesmo sendo a dona da casa é convidada a participar ativamente das relações de consumo da atualidade, e que também é lembrada pelas mesmas publicações dos saberes e dos modos de cuidar da família e dos filhos.

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As Helenas presentes na mídia reforçam os pensamentos da psicanalista Joana Vilhena Novaes (2008) que credita ao corpo uma importância maior do que simplesmente um físico a ser construído e assumido pelo indivíduo. “Ao corpo cabe algo muito além de ocupar um espaço no tempo. Cabe a ele uma linguagem que se institui antes daquilo que denominamos “falar”, que exprime, evoca e suscita uma gama de marcas e falas implícitas.” (NOVAES, 2008, p.19). Uma das entrevistadas vai além deste questionamento e se indaga sobre a posse do seu próprio corpo.

Uma vez escutei um médico falar que quando você é solteira, advinda da minha geração, o corpo é dos seus pais, quando você casa o corpo é do seu marido e quando você fica viúva e sozinha você fala: E agora? O corpo é meu, o que eu faço? E até você se reconstruir... Porque é verdade, meu pai não deixava usar minissaia, eu nunca usei biquíni e eu fui magra, fui bonita, fui jovem também, durinha. Ele não deixava. Aí eu casei e o meu corpo foi para o meu marido, tive filhos, fui esposa; então eu fiquei viúva, não tenho pai, não tenho marido e agora? Preciso me reconstruir, aceitar, rever meu corpo, só que às vezes eu começo a pensar nisso e falo: Mas com 52 anos? Deixa para lá. Não! Não vou deixar para lá! Vou cuidar, não vou. E fico naquela de um pé cá e outro lá. (ROSANA, professora de literatura e tradutora, 52 anos).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Dentre as tantas Helenas presentes nas revistas, pode-se constatar na mulher

contemporânea, das classes A e B, um processo de amadurecimento e revisão da sua vida estética corporal. O Romance machadiano está presente em diálogos com as leitoras e reflexões sobre os compromissos assumidos na vida adulta: casamento, filhos, famílias, entre outras questões burguesas.

Na maturidade, de acordo com Novaes (2008, p. 98), a mulher ao transgredir sua função reprodutora – comum a sua espécie –, passa a ter que se incluir em um novo lugar na polis, numa nova posição sedutora e, para tanto, busca realizar um trabalho psíquico e físico que lhe outorgue uma abertura ao jogo objetal. E as entrevistadas nesse projeto ratificaram essa posição:

É um desaforo porque o que conta é a aparência da mulher. Pois se uma celebridade estiver numa sala junto comigo, é lógico que a outra vai ser sempre mais olhada porque é bonita, então eu acho que para os homens de uma forma geral e para a sociedade, a beleza é o que mais importa. (EMMA, designer, 52 anos).

“A projeção da juventude da mulher na materialidade do corpo envelhecido e

a negação da senilidade podem ser aspectos normais do avanço da idade cronológica e impedem a criação social de uma estética da velhice” (DEBERT, 2011, p. 80). E traçam o padrão ideal almejado pelas entrevistadas:

Eu me surpreendi na maturidade, achei que ia aceitar melhor a velhice e a minha aparência. Eu sempre me achei uma pessoa esclarecida o suficiente, realizada em termos profissionais, financeiros, familiares. Eu me olho no espelho e percebo que minha aparência não combina comigo, pois não me sinto velha, pois penso como uma mulher mais nova. (EMMA, designer, 51 anos).

Os saberes femininos na maturidade se renovam. São mais seletivos e os

modos de tratar o corpo e a beleza exigem mais tempo das mulheres contemporâneas. Como a manchete presente na revista Claudia – abril de 2012 –: Ginastica para o cérebro. Mente jovem e ágil, em qualquer idade. Casotti, Suarez e Campos (2008) denominaram esta etapa de Consumo Segmento.

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Em Cada coisa em seu tempo, verifica-se também a especialização no uso e nas funções dos cremes para o rosto. Existe o creme da manhã, com filtro solar (ou creme+filtro), e o da noite, com antirugas, nutritivos ou com ácidos. O creme para os olhos passa a ser usado com frequência, pelo menos uma vez por dia. De maneira complementar, observa-se ainda um cuidado maior com a limpeza do rosto... Por fim a rotina é mais complexa, incluindo a escova no cabelo e uma série de itens da maquiagem (blush, sombra, batom etc.). As consumidoras deste grupo parecem desenvolver uma agilidade que lhes permite navegar com relativa tranquilidade em uma sequência bem mais extensa de atividades. (CASOTTI, SUAREZ E CAMPOS, 2008, p. 102)

As entrevistadas afirmam existir um padrão de beleza social midiático confirmando a hipótese principal sinalizada no início deste texto, em que há um ideal de beleza predominante no imaginário feminino imposto pela mídia.

A sociedade cobra um padrão estético no qual a pessoa tem que ser magra. Isso é uma questão da constituição física de cada um. A sociedade cobra isso. As campanhas registram muito isso. (CASSIA, publicitária, 52 anos).

O padrão de beleza é mutante, e que varia de acordo com a temporada. Há épocas e houve épocas em que a mulher mais cheinha foi o auge, depois a mulher magra. Tem perdurado essa ideia da mulher magra por muito tempo, mas eu acho que não existe um ideal de beleza. (ROSANA, professora de literatura e tradutora, 52 anos).

Afirmam também ter mais convicções nos seus saberes estéticos corporais e o consumo torna-se cada vez mais uma opção pessoal, um momento consciente de prazer e merecimento. “A liberação do corpo é colocada como um mito, supondo-se uma relação na qual, de forma velada, estaria a submissão desse corpo ao poder, que se faz acreditar desejável, quando na verdade é obrigatória” (NOVAES, 2006:48).

Eu continuo com o mesmo comportamento. Eu só me adaptei com a idade. Evidentemente que hoje eu uso cores mais sóbrias, mas isso eu sempre usei. Então assim, não acho que eu mudei muito o perfil do meu consumo. Mudei em termos de medicamentos. Hoje eu tenho que tomar remédio para o colesterol, para a artrose e tenho que tomar vitamina também. (CASSIA, publicitária, 52 anos).

Corpo é tudo. É tudo, sinceramente, eu, por exemplo, eu já me preocupei muito mais com o meu corpo, até que eu fiz a cirurgia e tudo mais, hoje em dia eu me preocupo menos com o meu corpo, mas eu sei que eu sou cobrada pela minha aparência também. (ANGELA, médica, 54 anos).

O tempo cronológico e o cotidiano saudável são fatores essenciais nas práticas de consumo de consumo das mulheres maduras, que legitimam os corpos reeducados e esculpidos, principalmente. De acordo com Casotti, Suarez e Campos (2008) as mulheres se tornam verdadeiras especialistas em cosméticos e cremes corretivos, portanto, mais críticas, mais curiosas e desejam fazer dos seus modos de tratar o corpo um momento de prazer e satisfação pessoal.

Os corpos revisitados – composto por mulheres que aprendem a conhecer seu corpo, seus limites e convivem com ele de forma segura – estão presentes nas

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respostas de mulheres que assumem o físico e, a saúde a preocupação que rege os saberes e os cuidados estéticos corporais.

Acima de tudo é saúde, já não me preocupa tanto a questão estética. Eu sou de uma geração em que havia uma divisão entre intelectualidade e beleza, então o intelectual não tinha que se preocupar com o corpo. E nós, justamente, agora, nós estamos vivendo numa fase em que o corpo é importante, então para quem sempre cuidou do intelectual, a gente acaba deixando o corpo para segundo plano. (ROSANA, professora de literatura e tradutora, 52 anos).

O consumo por meio do corpo é a informação que (re) transforma,

(re)significa e (re)decodifica a mensagem. Registrando as marcas do imaginário da sociedade, busca traçar, ou melhor, “moldar” o processo identitário cultural brasileiro e recontando a história. Enfim, esse texto não se propõe a esgotar o assunto sobre o imaginário feminino e as novas identidades das mulheres com mais de 50 anos, pelo contrário, sua intenção é abrir caminhos para aprofundamento e novas abordagens sobre o tema. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2005. CARADEC, V. Sexagenários e octagenários diante do envelhecimento do corpo. In: CASOTTI, L.; SUAREZ, M.; CAMPOS, R. D. O tempo da Beleza. Consumo e Comportamento feminino. Novos olhares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. DEBERT, G.G. Velhice e tecnologias do rejuvenescimento. IN: GOLDENBERG, Mirian (Org.) Coroas. Corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade. São Paulo: Record, 2008. DOUGLAS, M. e ISHERWOOD, B. O mundo dos bens. Para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. FEATHESTONE, M. Cultura do Consumo e Pós-Modernismo. São Paulo: Nobel, 1995. GARCIA, Wilton. Corpo, mídia e representação. Estudos contemporâneos. São Paulo: Thomson, 2005. GOLDENBERG, M. (Org.) Nu e vestido. Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. São Paulo: Record, 2002. ________. O corpo como capital. Estudos sobre o gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2007. ________. Coroas. Corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade. São Paulo: Record, 2008. ________. Nem toda brasileira é bunda: corpo envelhecimento na cultura contenporânea. In: CASOTTI, L; SUAREZ, M; CAMPOS, R.D. O tempo da Beleza. Consumo e comportamento feminino. Novos Olhares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. ________. Corpos, envelhecimento e felicidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011. HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997. LASCH, C. A cultura do narcisismo – A vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

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LE BRETON, D. Adeus ao corpo. Antropologia e Sociedade. 2ª. edição Campinas/SP: Papirus, 2007. _________. Sociologia do corpo. Petrópolis: Editora Vozes, 2006. MILLER , D. Teoria das Compras. O que orienta as escolhas dos consumidores. São Paulo: Nobel, 2002. NOVAES, J. V. O intolerável peso da feiúra. Sobre as mulheres e seus corpos. Rio de Janeiro: Editora PUC/Rio, 2006. _______. Com que Corpo eu vou? Sociabilidade e usos do corpo nas mulheres das camadas altas e populares. Rio de Janeiro: PUC Rio/ Pallas, 2010. _______. Vale quanto pesa... Sobre mulheres, beleza e feiura In: CASOTTI, L; SUAREZ, M.; CAMPOS, R. D. O tempo da Beleza. Consumo e comportamento feminino. Novos Olhares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. WOLF, N. O mito da beleza. Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

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As versões literária e televisiva de Sherlock Holmes: um diálogo entre Comunicação, Educação e Letras -Valéria Bussola Martins (UPM)

RESUMO: As adaptações da literatura para a televisão ou para o cinema, frequentemente, são alvo de discussões na medida em que muitos se prendem à questão da fidelidade ao texto-fonte. Foi a partir dessas controvérsias que surgiu uma proposta de trabalho entre o livro Um Estudo em Vermelho, de Conan Doyle, e a série televisiva House, de David Shore, no ambiente educacional brasileiro de formação docente, com o objetivo de propor uma alternativa pedagógica que relacionasse essas duas obras de forma mais significativa e pertinente. Palavras-chave: Literatura; Televisão; Cinema; Docente. 1 Introdução

Ao longo dos tempos, a literatura e a televisão tentam estabelecer laços frutíferos, sendo que essas relações estendem-se ora com o propósito de produzir novelas ora com a ideia de criar seriados. Muitas obras literárias de renome, cujos autores viraram cânones, são adaptadas, possibilitando o surgimento de outras produções que, de alguma forma, trazem em si uma estrutura já formada, mas que passam a ser revestida de inúmeros elementos tecnológicos.

No livro Literatura, Cinema e Televisão (2003, p. 09), de Tânia Pellegrini, Camargo afirma que a “literatura é um sistema integrante de um sistema cultural mais amplo, estabelecendo diversas relações com outras artes e mídias”. São essas relações que transformam a literatura em uma das principais fontes de inspiração para as produções televisivas.

A questão é que as adaptações de obras literárias para a televisão sempre são alvo de muitas discussões na medida em que muitos se prendem, por exemplo, à questão da fidelidade ao texto-fonte. São vários os estudiosos que dizem que nas adaptações há perda significativa do conteúdo de uma obra, não sendo possível a transmissão da mesma mensagem por meio de diferentes sistemas de comunicação (JOHNSON, 1982). Também existem aqueles que afirmam que as adaptações para a televisão perdem o valor estético da obra original. Entretanto, há os que afirmam que as mudanças, muitas vezes, representam aspectos criativos dos novos tempos.

Em relação a essas controvérsias, Johnson (1982, p. 07) expõe que “com uma imagem visual, o espectador tem a ilusão de perceber objetos representados como se fossem os objetos mesmos, mas com a linguagem escrita, o leitor pode criar sua própria imagem mental dos acontecimentos narrados”.

Isso não significa que a imagem visual seja melhor do que a linguagem escrita e vice-versa. Na realidade, são apenas formas que se apresentam ao receptor de maneira diferente. De acordo com Araujo (2011, p. 06), “podemos assim dizer que uma das grandes diferenças entre a linguagem visual e a escrita está na forma como elas se apresentam ao receptor. A primeira traz em si uma mensagem objetiva, quase fechada para a participação do telespectador; a segunda está sujeita a participação ativa do leitor, podendo este desempenhar um papel único na construção do sentido da mensagem”.

Tem-se aí, então, uma das grandes valias do processo de adaptação. Nesse contexto, é importante lembrar que o “processo de adaptação, portanto, não se esgota

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na transposição do texto literário para outro veículo. Ele pode gerar uma cadeia quase infinita de referências a outros textos, constituindo um fenômeno cultural que envolve processos dinâmicos de transferência, tradução e interpretação de significados e valores histórico-culturais” (GUIMARÃES, 2003, p. 91).

Embora perdas sejam possíveis em um processo de adaptação, na maior parte das vezes, há ganhos. É isso o que aconteceu com a série televisiva estadunidense House. Desde o seu nascimento, surgiram inúmeras reflexões sobre a possibilidade de seu protagonista, Dr. Gregory House (interpretado por Hugh Laurie), conceituado médico do estado de New Jersey, nos Estados Unidos, ter sido criado a partir da figura de Sherlock Holmes, renomado detetive da literatura britânica de ficção.

Para os leitores das obras do médico e escritor escocês Sir Arthur Conan Doyle e para os telespectadores da produção do diretor David Shore, essa aproximação é mais do que evidente. Além disso, o próprio criador de House já admitiu que seu personagem principal fora inspirado em grande parte por Sherlock Holmes16.

Contudo, muitas pessoas dizem que as obras não se aproximam por Holmes ser um detetive e House ser um médico ou pelas criações estarem muito distantes no tempo. Este é o foco desta pesquisa. No ambiente dos cursos de formação docente, objetiva-se apresentar as conexões entre o detetive e o médico e expor de que forma estas foram feitas para a construção de uma das séries televisivas de maior audiência nas últimas décadas. Ademais, almeja-se demonstrar que esse tipo de trabalho pode ser realizado, sem problema algum, a partir do Ensino Fundamental II, o que provavelmente geraria propostas muito mais proveitosas e atraentes para os educandos da Educação Básica brasileira. 2 De Sherlock Holmes a Gregory House

Primeiramente, seria importante trazer para os futuros professores as definições existentes do termo adaptação. José Luis Sánchez Noriega, no livro De la literatura al cine (2004), classifica as adaptações como ilustração (adaptação literal, fiel ou passiva), transposição (adaptação que busca por meio de recursos especificamente cinematográficos a construção de um autêntico texto que tenta ser fiel em relação ao conteúdo e à forma da obra literária) e interpretação (adaptação que parte de uma releitura da obra de origem). O autor trata, ainda, da adaptação livre (adaptação que tem alto grau de autonomia em relação ao texto-matriz). Pode-se dizer que a série House, foco desta pesquisa, aproxima-se mais da adaptação livre.

Depois, haveria um longo estudo que verificaria como surgiram as duas obras e em que aspectos dos dois protagonistas aproximam-se ou distanciam-se.

De acordo com Conan Doyle, Sherlock Holmes fora, originalmente, baseado em Joseph Bell, um médico, ex-professor de Doyle, conhecido por seu raciocínio dedutivo e sua habilidade com os diagnósticos difíceis, primeiros aspectos que aproximam House de Holmes.

Sherlock Holmes é um investigador do final do século XIX e início do século XX que aparece pela primeira vez no romance Um Estudo em Vermelho17, publicado                                                                                                                          16 É importante ressaltar que David Shore já mencionou em diversas entrevistas que, para a criação dos episódios da série House, também busca inspiração na coluna, publicada no New York Times, de Lisa Sanders, médica especialista em diagnósticos difíceis.

17 A Study in Scarlet, título original.  

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em novembro de 1887, originalmente, na Beeton’s Christmas Annual, revista anual impressa na Inglaterra, de 1860 a 1898.

Na obra, Doyle apresenta o detetive que se tornou um dos mais famosos investigadores da ficção de todos os tempos. O feito foi grande a ponto de ser lido até hoje, e com entusiasmo, pela atual geração de adolescentes que diz não gostar de ler obras do passado. Esse fato, talvez, justifique as numerosas edições posteriores e traduções que vieram depois.

Na obra Um Estudo em Vermelho, narrado em primeira pessoa por John H. Watson, amigo de Holmes, o leitor é convidado a conhecer a vida de Watson, diplomado em Medicina pela Universidade de Londres que teve intensas experiências como cirurgião do exército e que fora obrigado a se aposentar em função de uma lesão no ombro advinda de um tiro que tomara durante a Guerra Afegã (1878-1881).

No primeiro capítulo, Watson, que estava à procura de uma residência, encontra, em um bar, um velho amigo, Stamford, que fora seu assistente e que, coincidentemente, tinha um amigo que trabalhava no laboratório de química de um hospital e que estava procurando alguém para dividir o aluguel de um apartamento no número 221B na Baker Street.

A partir daí, podem ser notados os primeiros elementos que concretizam a intertextualidade entre as obras, considerando-se intertextualidade como “o processo de incorporações de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo” (BARROS; FIORIN, 2003, p. 30).

Inicialmente, observa-se que os nomes dos protagonistas começam com a consoante H (Holmes - que soa como home - e House - palavra semanticamente próxima do termo home), assim como as iniciais dos seus respectivos melhores amigos possuem as letras J e W: Dr. John Watson e Dr. James Wilson. Além disso, Holmes e House só chamam as pessoas próximas pelo sobrenome.

Outra identificação entre Holmes e House passa a existir, no sétimo episódio (“A Caça”) da segunda temporada da série televisiva, quando a câmera mostra a porta da casa de House que também tem o número 221B.

Fig. 1. Cena na qual aparece o número da casa em que moravam House e Wilson.

Já no décimo terceiro episódio da sétima temporada, vê-se, quando a carteira

de motorista do médico é focalizada em primeiro plano, que o nome da rua em que House mora é Baker Street.

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Fig. 2. Carteira de motorista de House que aparece na 7ª. temporada.

Mais um elemento importante a ser analisado é que tanto Holmes quanto

House são personagens conhecidos por seus gênios fortes. Em Um Estudo em Vermelho, ainda ao longo do primeiro diálogo encontrado na obra, Stamford e Watson estabelecem o seguinte diálogo:

- Aleluia! - exclamei. - Se ele quer alguém para dividir o imóvel e as despesas, eu sou a pessoa. Prefiro isso a morar sozinho. Stamford olhou-me de modo estranho. - Você ainda não conhece Sherlock Holmes - disse. - Talvez você não o queira como companhia. - Por quê, o que há de errado com ele? - Ah, não disse que há algo de errado com ele. Só tem umas ideias esquisitas... é um entusiasta de certos ramos da ciência. Mas, pelo que sei, é um sujeito decente (DOYLE, 2008, p. 12).

Assim, nota-se que o leitor fica sabendo das “ideias esquisitas” de Holmes no

início da obra, da mesma forma que na série House, pois no episódio piloto, que foi ao ar, pela primeira vez, no dia 16 de novembro de 2004, o telespectador percebe o jeito irreverente de House primeiro por meio de uma conversa com Wilson sobre o fato do diagnosticador renomado não usar jaleco porque não queria que os outros soubessem que ele era médico e, depois, por causa de uma conversa, cheia de ironias por parte de House, com os três médicos da sua equipe (Foreman, Cameron, Chase) que envolvia o caso da paciente que acabara de chegar ao hospital:

House - É uma lesão. E a parte verde grande no meio da parte azul maior do mapa é uma ilha. Eu esperava alguma coisa mais criativa. Foreman - Não devíamos falar com a paciente antes de passar pelo diagnóstico? House - Ela é médica? Foreman - Não, mas... House - Todo mundo mente. Cameron para Foreman - O Dr. House não gosta de lidar com os pacientes. Foreman - Não é para tratar dos pacientes que nos formamos médicos? House - Não. É para tratar das doenças que nos formamos médicos. Tratar dos doentes é o que deixa muitos médicos infelizes. Foreman - Está tentando eliminar o lado humano da prática da medicina. House - Se não falamos com eles, não podem mentir. E nós também não. O lado humano está superestimado. Não acho que seja tumor.

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Foreman - Primeiro ano de Medicina. Se ouvir um galope é um cavalo e não uma zebra. House - Está no primeiro ano de Medicina? (SHORE, 2005)

É a partir desses diálogos iniciais que muitos telespectadores da série chegam,

inclusive, a julgar que House é um médico frio, rude e hostil, elemento que também aparece na obra de Doyle (2008, p. 14):

- Se não nos dermos bem, podemos ir cada um para um lado - respondi. - Tenho a impressão, Stamford - acrescentei, olhando firme para ele -, de que você tem alguma razão para querer lavar as mãos neste assunto. Esse sujeito tem um gênio terrível, ou o quê? Diga de uma vez! - Não é fácil exprimir o inexprimível - ele falou, rindo. - Holmes é científico demais para o meu gosto. Parece ter o sangue gelado. Não estranharia se ele desse a um amigo uma pitada de um novo veneno, não por maldade; simplesmente para ver qual efeito teria. Mas, para lhe fazer justiça, acho que ele mesmo experimentaria o veneno. Parece ter uma paixão por conhecimentos exatos e precisos.

Em relação às características físicas, David Shore também teve o cuidado de

aproximar Gregory House de Sherlock Holmes. No livro de Doyle, há a seguinte descrição do detetive feita por Watson:

Só a aparência de Sherlock Holmes já seria suficiente para chamar a atenção de qualquer pessoa. Tinha mais de um metro e oitenta de altura e era tão magro que parecia ainda mais alto. Seus olhos eram agudos e penetrantes, a não ser durante aqueles períodos de torpor que mencionei. Seu nariz, fino e parecido com o bico de um falcão, conferia à sua expressão um ar de alerta e decisão. Também seu queixo, proeminente e quadrado, indicava que era um homem determinado (DOYLE, 2008, p. 25).

A única adaptação em relação à parte física refere-se ao fato de House ter um

problema na perna, assim como Watson e não Holmes. Originalmente, fala-se, em Um Estudo em Vermelho, de um ferimento no ombro de Watson e não na perna. Entretanto, em O Signo dos Quatro18 (1890), Watson fala de um ferimento na perna: “Não fiz, todavia, qualquer comentário, e continuei calado na minha cadeira, ocupado em tratar da minha perna ferida. Havia algum tempo que a bala de um mosquete afegão a tinha atravessado de lado a lado, e, embora eu pudesse caminhar, ela me doía bastante sempre que o tempo mudava” (DOYLE, 2006, p. 07).

Outro elemento que aproxima os dois protagonistas é a música. Holmes toca violino e, segundo Watson, “recostado em sua poltrona, à noite, fechava os olhos e arranhava, descuidado, as cordas do violino, que permanecia sobre o joelho. Às vezes, os acordes eram sonoros e melancólicos. Ou, então, fantásticos e alegres. Refletiam, claramente, seu estado de espírito” (DOYLE, 2008, p. 31).

                                                                                                                         18 The Sign of the Four, título original.

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Fig. 3. Ilustração do livro Um Estudo em Vermelho, em que Holmes aparece com seu

violino.

O mesmo acontece com House. A diferença é que o médico toca piano e depois, ao longo das temporadas, passa a aparecer na série tocando guitarra.

Fig. 4. O protagonista da série toca piano.

Fig. 5. House toca guitarra em sua sala no Princeton Teaching Hospital.

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O isolamento social dos protagonistas e dos melhores amigos dos protagonistas também aproxima a obra literária da série televisiva. Tantos os leitores de Conan Doyle quanto os telespectadores da série, não se deparam com amigos na vida dos protagonistas, assim como Watson e Wilson são pessoas com pouquíssimos amigos e que, basicamente, vinculam-se quase que por exclusividade a Holmes e House.

Também é interessante como o detetive e o médico agem no dia a dia dos seus afazeres profissionais. Em um café da manhã entre Watson e Holmes, o investigador explica ao amigo como se dá o seu trabalho:

Sou um detetive consultor, se você entende o que isso significa. Em Londres nós temos muitos detetives de polícia e muitos detetives particulares. Quando esses profissionais ficam desorientados, vêm até mim, e eu os coloco na trilha certa. Eles me apresentam todas as evidências e, normalmente, auxiliado por meus conhecimentos da história do crime, consigo organizá-las. Existe uma forte semelhança entre as diversas “famílias” de delitos. Se você conhecer todos os detalhes de mil crimes, dificilmente não desvendará o milésimo primeiro (DOYLE, 2008, p. 37).

No início de O Signo dos Quatro, Holmes retoma seus métodos:

O único detetive particular consultivo - redarguiu ele. - Sou o mais alto tribunal de apelação em matéria de pesquisa criminal. Quando Gregson, Lestrade, ou Athelney Jones se veem em maus lençóis, como aliás é o seu estado normal, o assunto é apresentado a mim. Examino os dados como um técnico e dou um parecer de especialista. [...] A investigação é, ou devia ser, uma ciência exata e, como tal, tratada de maneira fria e sem a menor emoção (DOYLE, 2006, p. 08).

Tanto Holmes quanto House são especialistas em suas áreas. Como o detetive,

o médico junta peças e soluciona os casos mais difíceis, os casos que ninguém conseguiu resolver, utilizando-se, inclusive, da técnica da dedução, sem falar, também, que ambos não veem necessidade de ver pessoalmente seus objetos de estudo. Watson só vai até a cena do crime ou procura familiares e amigos das vítimas e House só fala com os pacientes se for inevitável, pois, normalmente, solucionam seus casos à distância.

Essa postura faz com que em determinados momentos os protagonistas sejam considerados arrogantes pelas pessoas próximas que convivem com eles. Watson desabafa em um dos capítulos da obra Um Estudo em Vermelho ao tratar das conversas que tinha com o amigo: “esse estilo arrogante de conversa continuava a me aborrecer” (DOYLE, 2008, p. 41).

Já na série televisiva a primeira conversa que o telespectador testemunha entre Lisa Cuddy, diretora do hospital no qual House trabalha, não poderia ser melhor prova da arrogância do conceituado médico:

Cuddy - Devia ter passado em meu escritório há vinte minutos? House - É mesmo. Estranho porque não tinha a intenção de passar lá há 20 minutos. Cuddy - Acha que não temos o que discutir? House - Não sei o que poderia me interessar. Cuddy - Assino seus contracheques.

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House - Estou ocupado. Vai agarrar minha bengala e me impedir de ir? Cuddy - Isso seria infantil. Posso te demitir se não fizer o seu trabalho. House - Estou aqui das 9h às 5h. Cuddy - Você praticamente não traz renda. House - Ano difícil. Cuddy - Você ignora pedidos de consultas. House - Eu ligo, às vezes erro o número. Cuddy - Está atrasado em seis anos com suas obrigações para a clínica. House - Eu estava certo. Isso não me interessa. Cuddy - Seis anos vezes três semanas. Me deve mais que quatro meses. House - São cinco horas. Vou para casa. Cuddy - Fazer o quê? House - Legal. Cuddy - Sabe, Dr. House, o único motivo para não ter te despedido é que sua reputação ainda vale alguma coisa para este hospital. House - Excelente. Concordamos em alguma coisa. Você não vai me despedir. Cuddy - Mas sua reputação não durará se não fizer o seu trabalho. A clínica faz parte do seu trabalho. Quero que cumpra sua parte! House - Mas como o filósofo Jagger disse “Nem sempre podemos ter o que queremos” (SHORE, 2005).

O mais curioso é que é este mesmo gênio arrogante de Holmes e House que,

muitas vezes, causa repulsa, cativa os apaixonados por eles com a justificativa de que, na verdade, eles são verdadeiros, diretos e objetivos. Eles não mentem.

Junto ao gênio forte dos protagonistas, eles, também, têm vícios. Na obra Um Estudo em Vermelho, antes de fechar o acordo para a divisão do aluguel, Holmes diz que espera que “o cheiro de fumo forte” (DOYLE, 2008, p. 20) não incomode Watson e, em O Signo dos Quatro, o detetive usa cocaína para escapar do tédio. Já House ingere altas toses de Vicodin que, segundo ele, são para diminuir as dores que sente em função do infarto que teve na perna direita. Os comprimidos de Vicodin, com frequência, são colocados em primeiro plano nas cenas, diversas vezes ao longo das temporadas. Ou aparecem vários comprimidos na mão de House ou o foco volta-se para o frasco inteiro de comprimidos.

Além disso, Holmes usou drogas, ao longo de suas pesquisas, devido a alguns trabalhos experimentais, assim como House que chega a usar, no décimo segundo episódio da segunda temporada, LSD para entender a enxaqueca de um paciente vítima de queimaduras.

Fig. 6. Câmera focaliza a mão de House cheia de Vicodin.

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Ademais, é interessante perceber que Holmes e House voltam-se mais às drogas quando não têm casos interessantes para solucionar.

Por fim, faz-se necessário destacar que ao longo das temporadas elementos que remetem ao autor Conan Doyle e nomes de personagens que se referem às obras que tem Sherlock Holmes como protagonista também surgem na série House. O nome Irene Adler, antagonista que aparece no conto “Um Escândalo na Boêmia”, por exemplo, aparece no décimo primeiro episódio da quinta temporada (“Alegria ao Mundo”) em uma conversa entre Wilson e outros dois assistentes de House, Taub e Kutner. Nesse mesmo episódio, House ganha o livro Manual de Operações Cirúrgicas, de Joseph Bell, médico que deu inspiração a Conan Doyle para a criação de Sherlock Homes. Além disso, no episódio de Natal da quarta temporada, House ganha um livro de Conan Doyle. 3 Considerações Finais

Diante de todos os paralelos expostos anteriormente entre Holmes e House, os graduandos do curso de Licenciatura perceberiam que a ligação entre a obra de Conan Doyle e a série de David Shore é intensa e frequente. Negá-la torna-se impossível e o mais interessante nesse diálogo entre criações é perceber que:

[...] Um texto funciona como eco das vozes de seu tempo, da história de um grupo social, de seus valores crenças, preconceitos, medos e esperanças. As relações intertextuais nos evidenciam que um texto literário não se esgota em si mesmo, ou ainda, um texto pluraliza seu espaço nos paratextos, multiplica-se em interfaces, projeta-se em outros textos ou repetem-se em alusões, plágios, paródias e citações (ARAÚJO, 2011, p. 14).

Por meio de reflexões que surgiriam nas aulas, os futuros professores

chegariam à conclusão de que não é adequado um professor da Educação Básica, por exemplo, superestimar a obra que tem Sherlock Holmes como protagonista, subestimando a série televisiva House e vice-versa, pois elas possuem linguagens diferentes, as quais dificilmente permitirão que se construam paralelos exatos. Pode-se aqui, sim, valorizar as duas linguagens, as duas criações. Além disso, se os futuros professores passaram pelas aulas de formação docente trabalhando com essa visão, provavelmente, seus educandos também teriam um visão mais aberta e coerente das adaptações televisivas de obras literárias.

A obra de Doyle, cânone internacional, tem valor inestimável e a produção de Shore só veio a coroar ainda mais as narrativas com o detetive mais conhecido de todos os tempos. “Qualquer texto é novo tecido de citações passadas. Pedaços de código, modelos rítmicos fragmentos de linguagens sociais etc., passam através do texto e são redistribuídos dentro dele, visto que sempre existe linguagem antes e em torno do texto” (BARTHES, 1987, p. 49).

Livro e série, nesse caso, estão distanciados no tempo. Escritor e diretor não têm a mesma sensibilidade e é aí que está a riqueza das recriações. A fidelidade entre as obras é um falso problema: “a insistência na ‘fidelidade’ [...] é um falso problema porque ignora diferenças essenciais entre os dois meios, e porque geralmente ignora a dinâmica dos campos de produção cultural nos quais os dois meios são inseridos” (JOHNSON, 2003, p. 42).

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Novamente, faz-se necessário valorizar e entender a diversidade de linguagens que tem, inclusive, total relação com o tempo em que estão inseridas. Segundo Stam (2003, p. 234), as “adaptações localizam-se, por definição, em meio ao contínuo turbilhão de transformação intertextual, de textos gerando outros textos em um processo infinito de reciclagem, transformação ou transmutação, sem um claro ponto de origem”.

É por isso que o papel dos professores torna-se fundamental quando estes decidem trabalhar, desde os primeiros anos escolares, com obras literárias que foram recriadas para o cinema ou para a televisão. O educador tem de mostrar para o aluno que a recriação não é apenas uma mera imitação ou um simples resumo da obra original. Nas palavras de Derrida (apud RAY, 2001, p. 127), “the film adaptation […] is not simply a faded imitation of a superior, authentic original: it is a ‘citation’ grafted into a new context, and thereby inevitably refunctioned19”.

Torna-se fundamental, assim, propor aos futuros docentes um novo olhar para as adaptações, levando em conta que elas representam “[...] the possibility of disengagement and citational graft which belongs to the structure of every mark, spoken or written ... every sign, linguistic or non-linguistic, spoken or written … in a small or large unit, can be cited, put between quotation marks, and in doing so it can break with every given context, engendering an infinity of new context in a manner which is absolutely illimitable20” (DERRIDA apud RAY, 2001, p. 127).

Ao utilizar Sherlock Holmes e House em sala de aula, o docente consciente de sua prática tem de mostrar aos educandos que ambas as obras são importantes e têm o seu valor, deve explicitar que a linguagem literária não é melhor que a televisiva ou que a cinematográfica. O fundamental é mostrar que elas são apenas diferentes em relação a forma que atingem o receptor. Esse é o papel do verdadeiro educador. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAUJO, Naiara Sales. Cinema e Literatura: adaptação ou hipertextualização? Littera Online, Vol. 2, no. 6, p. 06-23, jan./jul. 2011. Disponível em: ‹http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/littera/article/viewFile/449/272› Acesso em: 22 nov. 2011. BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1987. DOYLE, Sir Arthur Conan Doyle. Um Estudo em Vermelho. São Paulo: Melhoramentos, 2008.

                                                                                                                         19 A adaptação fílmica não é simplesmente uma imitação empobrecida de uma obra original autêntica: é uma ‘citação’ em um novo contexto e por isso, inevitavelmente, refuncionalizada (trecho traduzido pela pesquisadora).

20 [...] a possibilidade de desligamento e adição de citação que pertence a todo tipo de marca, falada ou escrita... todo signo, linguístico ou não linguístico, falado ou escrito, em uma pequena ou grande unidade, que pode ser citado ou posto entre aspas e, dessa forma, romper com todo o contexto dado, gerando uma infinidade de novos contextos de forma absolutamente ilimitada (trecho traduzido pela pesquisadora).

 

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_____________. O Signo dos Quatro. 10. ed. São Paulo: Melhoramentos, 2006. GUIMARÃES, Hélio. O romance do século XIX na televisão: observações sobre a adaptação de Os Maias. In: PELLEGRINI, Tânia [et al]. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Ed. Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003. JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema - Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo, T. A. Queiroz, 1982. NORIEGA, José Luis Sánchez. De la literatura al cine: teoria y análisis de la adaptacIón. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2004. PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, Cinema e Televisão. São Paulo: Editora Senac: Instituto Itari Cultural, 2003. RAY, Robert B. How a film theory got lost and other mysteries in cultural studies. Indiana: Indiana University Press, 2001. SHORE, David. House. Universal Studios (1ª. a 7ª. temporadas - 2005/2011). STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Tradução: Fernando Mascarello. 2. ed. Campinas: Papirus, 2003.