silva, josé manuel teixeira da. a reprodução social e cultural na era digital

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  • 7/25/2019 SILVA, Jos Manuel Teixeira da. A reproduo social e cultural na era digital

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    A reproduo social e cultural na era digital

    Jos Manuel Teixeira da Silva

    30 de Abril de 2006

    Contedo

    INTRODUO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1A educao e a sua dimenso social . . . . . . . . . . . . . . . . 3Um mito chamado neutralidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6Modos de reproduzir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8Uniformidade e rotinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11Uma sociedade nascida na rede . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14Por uma identidade outra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22Da crise de legitimidade identidade projecto . . . . . . . . . . . 26Concluso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

    Em matria de cultura, a privao de posse absoluta exclui a cons-cincia da privao da posse.

    Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron

    INTRODUO

    Ser que entrada da era digital, a reproduo social e cultural que o sistemade ensino representou no modelo industrial ainda mantm o seu significado? Asteorias sociais que a analisavam e explicavam caem por terra com a mudanade paradigma? Ou, pelo contrrio, as foras de dominao esto mais actuantesque nunca e, como tal, necessrio tambm uma anlise social mais contumaze resistente face a uma esfera tecno-social onde uma elite que habita o espaoatemporal dos fluxos das redes globais e os seus locais subordinadosdita as suasleis a uma imensa maioria?

    Instituto Politcnico da Guarda, www.ipg.pt

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    Nestas novas condies, as sociedades civis reduzem-se e desarticulam-se por-que deixou de existir uma continuidade entre a lgica de criao do poder na redeglobal e a lgica de associao e representao nas sociedades e culturas espec-ficas. O poder institudo no tem histria, nem to pouco geografia. Da ser todifuso e impenetrvel.

    No decorrer deste pequeno trabalho, procurarei mostrar, mediante a rigorosaanlise sociolgica que est a ser feita nos dias de hoje, que para combater estasnovas formas de dominao, esto a ser criadas bolsas de resistncia que vivemnas franjas deste poder, e que no seu trabalho laborioso de preservar culturas anti-hegemnicas, esto tambm a ultrapassar as linhas defensivas destas e caminharpara as chamadas identidades projecto, muito mais reactivas-ofensivas, e que

    tero uma palavra a dizer na mudana social. propsito deste enunciado mostrar que a Escola, aproveitando os recursos

    das novas tecnologias, pode tornar-se um palco privilegiado para a assuno destasnovas identidades, que foram esquecidas durante demasiado tempo.

    No percurso traado comeamos por uma breve aproximao ao tema, dandoconta, em primeiro lugar, da dimenso social que a educao comporta. O maisinteressante perceber que o sistema educativo de facto um instrumento detrabalho, um artefacto nas mos dos homens. O termo tem de adquirir esta di-menso oficinal, pois s assim o modo como o curriculum, o aparato final detodo o sistema, tem sido tratado nas mais variadas anlises educacionais, pode ser

    combatido.Goodson, o autor que acompanharemos a este propsito, evidencia que a

    forma de tratar o conceito como se fosse um mero dado, radicado numa com-pleta neutralidade, um perfeito absurdo. Como qualquer construo social, ele algo de dinmico, inserido numa teia comunicacional e social contextualizada noambiente poltico e econmico de um dado momento histrico.

    Por isso, o mito da pachorrenta neutralidade vai ser passada em revista nomomento seguinte. Torres Santom desmonta pea por pea a charada montadapor aqueles que invocam a neutralidade do sistema de ensino, tentado fazer-nospartilhar da ideia de inevitabilidade, perenidade e do a-historicismo de tudo

    aquilo que joga a favor das suas necessidades e interesses. H, como veremos,at um certo discurso cientfico que apoia a manuteno desse status quo.

    A problemtica da ordem social e da estratificao social, que esto relacio-nadas com a educao, ocupa a prxima indagao A questo principal sabercomo que a educao escolar sempre representouum processo social pelo qualos sistemas de estratificao e dominao se reproduzem e reforam.

    Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron do o mote a esta averiguao, poistomam como dado adquirido que a sociologia da educao, ao tratar das relaesentre a reproduo cultural e a reproduo social, consegue determinar a con-

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    tribuio dada pelo sistema de ensino para a reproduo das relaes de fora edas relaes simblicas entre as classes.

    Saber como que estas relaes sociais transitam para a era digital a acosubsequente. H um novo domnio totalmente gerado por computador que cai nombito de um espao pblico usado permanentemente, e que at h uma vintenade anos atrs nem sequer existia. A estranheza maior que se trata de um lugarsem fronteiras nem atributos fsicos. Para o homem habituado s slidas coorde-nadas geogrficas de latitude e longitude dos locais, ficar assim de repente sem p,desterritorializado, pode ser uma viso arrepiante. No ciberespao um conceitoainda a entrar no vocabulrio do quotidiano tudo se passa, e todas as actividades

    decorrem, numa matriz preenchida pelas telecomunicaes electrnicas e as redesde computadores: a Internet.

    Hoje somos simultaneamente actores e testemunhas de um novel mundo feitoexclusivamente de mercados, redes, indivduos e organizaes estratgicas apa-rentemente governados pela teoria econmica. Arrasadoras de modelos antigos,novas formas de dominao surgiram, entretanto, e abalaram por completo asfundaes que aliceravam o Estado-nao, e pulverizando as identidades legiti-madoras da sociedade civil da era industrial. Manuel Castells e David Lyon soos autores escolhidos para fazerem a descrio minuciosa destes tempos, que oprimeiro define por a sociedade rede. Tempos conturbados estes, certo, mas

    tambm plenos de oportunidades.

    Esta tambm a altura para que a histria do poder da identidade se faa.Novas identidades esto a ser construdas, neste preciso momento, de maneirasdiversas. O argumento, que perpassa toda a sequncia de eventos a suceder juntoda sociabilidade do ciberespao, sustenta que at estas formas de relacionamentoparecem necessitar de uma noo qualquer de participao entre aqueles que reco-nhecem as identidades uns dos outros. A meta a alcanar que no seio das novasredes electrnicas possam vir a encontrar-se comunidades de sentidos partilha-dos, em vez de comunidades de interesses ou propriedades. Para que tal suceda,

    Castells evocas as identidades de resistncia e de projecto que a era a digital esta ajudar a criar nas margens dos novos poderes.

    O propsito do presente trabalho atestar a possibilidade da escola poder serum desses locais privilegiados, onde as comunidades possam resistir e projectara sua cultura prpria, por sobre a lgica de dominao vigente. Baseando-se nosmateriais culturais de que dispem, estes actores sociais constroem novas iden-tidade, redefinidoras da sua posio na sociedade e, ao faz-lo, buscam a trans-formao de toda a estrutura da sociedade. S assim ser possvel partir os elossinistros da reproduo, s assim os sujeitos tomam posse da sua cultura.

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    A educao e a sua dimenso social

    A dimenso social da educao est bem patente em dois aspectos que sobressaem vista desarmada. Sem necessidade de uma observao muito cuidada, fcilconstatar que qualquer sistema de ensino implica1 a interveno de vrias pessoas,e que os indivduos no escolhem a educao que tm sua disposio e de queesto merc. H assim, desde Durkheim, um consenso em redor da admissode uma pr-definio: a educao organiza-se em cursos, em programas e emsequncias de anos.

    A configurao de tal modelo social passa pelo mencionado processo educa-tivo, no que concerne interaco directa que se efectiva entre educador e edu-

    cando; pelo conjunto de aquisies ao nvel dos conceitos, atitudes e compor-tamentos que ao longo do percurso se vo tomar como seus; e, por ltimo, pelaaco orientada que se perfila em torno das finalidades definidas pela e para a so-ciedade.2 O que no se pode esquecer nunca que o sistema educativo de factoum instrumento de trabalho, um artefacto nas mos dos homens. Acentuar esteaspecto prtico sobremaneira pertinente quando o que se pretende manuse-lo,manipul-lo e mold-lo. O termo tem de atingir esta dimenso oficinal, j que oseu lado racionalizado e intelectualizado est a enred-lo num reino de profundasabstraces de onde difcil libert-lo.

    Para que tal suceda, a educao deve ser entendida como um projecto da aco

    humana que no nem nunca ser um produto acabado. Ela um instrumentocomunicacional, social e histrico, como tal esse instrumento deve estar apto aser constantemente debatido, questionado e aperfeioado, pois foi concebido pararealizar determinados objectivos especficos. Da que diversos autores questionemo modo como o curriculum, o aparato final de todo o sistema, tem sido tratadonas mais variadas anlises educacionais. Goodson, a este propsito, evidencia aforma de tratar o conceito como se fosse um mero dado,3 radicado numa completaneutralidade.

    Tal abordagem, defender, um erro. Como qualquer construo social, ocurriculumest muito longe de ser uma condio de imparcialidade. Trata-se,

    antes de mais, de factor de instabilidade, j que se est na presena de um conceitoescorregadio na medida em que se define e redefine, se negoceia numa srie de

    1. Pires, Eurico Lemos,Fernandes, Sousa A. eFormosinho, Joo,A Construo Social daEducao Escolar,, 1991, Rio Tinto, Edies Asa.

    2. Pires, Eurico Lemos,Fernandes, Sousa A. eFormosinho, Joo,A Construo Social daEducao Escolar, 1991, Rio Tinto, Edies Asa, p.24.

    3. At data, na maior parte das anlises educativas, o currculo escrito manifestaoextrema de construes sociais tem sido tratado como um dado. Mas quando os padres soexplicitados, percebe-se que o currculo escolar est longe de ser uma factor neutro., in Goodson,Ivor F.,A Construo Social do Currculo, 1997, Lisboa, Educa, p.17.

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    nveis e arenas, sendo muito difcil identificar os seus pontos crticos4. Por estarazo, Goodson valoriza o significado simblico e prtico docurriculumno queconcerne, nomeadamente, ao plano de estudos, s orientaes programticas e aosprprios manuais das disciplinas. Simblico, porque estas intenes educativasso, deste modo, publicamente comunicadas e legitimadas. Prtico, porque estasconvenes escritas traduzem-se em distribuio de recursos e em benefcios do

    ponto de vista da carreira.5

    O planeamento e a prossecuo das disciplinas no terreno esto arreigados aesta ordem simblica e prtica dos acontecimentos. As prprias disciplinas devemser examinadas enquanto conjunto de sistemas sociais alicerados em redes decomunicao, recursos materiais e ideolgicos6.O propsito central de Goodsontraduz-se, assim, no esforo de anlise deste conflito curricular, onde se digladiamforas antagnicas: nele podemos distinguir muitos dos conflitos sociais e polti-cos travados em torno da escola. Longe de ser um produto tecnicamente racional,que resume imparcialmente o conhecimento tal como existe num dado momentohistrico, o sistema de ensino pode ser visto como veculo e portador de pri-oridades sociais.7 Deste modo, no sendo um produto neutro e muito menosesttico, ocurriculumpromotor de uma escola massificadora algo de dinmico,inserido numa teia comunicacional e social contextualizada no ambiente polticoe econmico de um dado momento histrico. Estas preocupaes comeam hoje,timidamente, a conhecer a luz do dia. Certos modelos curriculares manifestam

    e imprimem nas suas produes tcnicas e acadmicas alguns destes interesses,baseando-se em situaes e funes sociais8 para efectivar os objectivos educa-tivos. Os prprios factores de enquadramento curricular esto determinados partida, como os espaos de ensino que se estendem escola e comunidade localenvolvente.

    H muito que se extravasou a compartimentao restritiva da sala de aula. Atendncia tambm fazer depender a formao de grupos de ensino das neces-sidades sentidas pelos alunos. Seguindo esta linha de raciocnio, as tarefas ou

    4.Goodson, Ivor F.,A Construo Social do Currculo, 1997, Lisboa, Educa, p. 18.5.Idem, p. 206.Idem,p. 21.7.Idem, p. 79.8. Os proponentes deste modelo essencialmente centrado na sociedade defendem-no como

    forma de atender a prioridades sociais, de garantir conhecimentos e aptides relevantes e de apro-ximar os programas escolares da vida quotidiana, com que os alunos se defrontam ou vm adefrontar. As situaes persistentes da vida social, as funes e actividades sociais maiores, oscontextos e quadros funcionais de vida futura, a participao na comunidade e os problemas so-ciais constituem a fonte donde derivam contedos e experincias curriculares bem como o modode estruturar os planos ou programas de ensino,inRibeiro, Antnio Carrilho,DesenvolvimentoCurricular, 1990, Texto Editora, p.86.

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    objectivos a alcanar tambm sero dimensionadas pelas actividades inseridas nalgica do trabalho de grupo.9

    Mas, como o prprio Ribeiro acaba por reconhecer, este tipo de modelo cur-ricular tem dificuldades em ser implantado. Esta organizao que vive de activi-dades, funes e problemas sociais tem funcionado, em especial, como critrio

    justificativo da seleco de objectivos e contedos curriculares e como centro or-ganizador de ensino em vrias reas e unidades programticas e no tanto comomodelo global, claramente especificado na sua estrutura e desenvolvimento10.

    Um mito chamado neutralidade

    Da a importncia de um estudo como o protagonizado por Santom Torres quevem relanar uma srie de questes que devem ser problematizadas e resolvidas.Exige-se uma investigao etnogrfica e um enquadramento dos quadros tericosmais adequados a essa viso: Os projectos curriculares, os contedos do ensino,os materiais didcticos, os modelos organizacionais das escolas e liceus, as con-dutas dos alunos e do professorado, etc, no so algo que possamos contemplarcomo questes tcnicas e neutrais, margem das ideologias e do que acontece emoutras dimenses da sociedade tais como a econmica, a cultural e a poltica11.

    Como se v, trata-se de uma posio muito prxima de Goodson, pois tam-bm aquele defende que o sistema educativo e, consequentemente, as instituiesescolares so uma construo social e histrica. verdade que um dos maioresmitos do mundo ocidental , sem dvida, o de acreditar piamente que o funciona-mento educativo se baseia nica e exclusivamente na neutralidade e objectividadeda escolarizao. Essa alegoria podia ser desmontada numa anlise depurada comunicao analgica que utilizada para passar essa mensagem de imparciali-dade. Essa mensagem diz mais ou menos isto: Quem trabalhar duramente e forminimamente inteligente ter sucesso garantido.12

    9.Assim, o currculo visar desenvolver a compreenso e responsabilidade do indivduo, aoencontrar-se com situaes quotidianas de vida (famlia, actividades sociais e cvicas, trabalho,tempos livres, vida cultural e espiritual) proporcionando o mximo crescimento de capacidadesindividuais em situaes que lidam com a sade, a formao da inteligncia, as escolhas morais,a apreciao e expresso artsticas bem como o desenvolvimento mximo da participao socialem situaes que impliquem relaes interpessoais, integrao em grupos e relaes entre grupos,ao mesmo tempo que a educao cresce na capacidade de lidar com factores e foras do meioambiente que envolvem fenmenos naturais, recursos tecnolgicos, estruturas e foras econmi-cas, sociais e polticas,inRibeiro, Antnio Carrilho,Desenvolvimento Curricular, 1990, TextoEditora, p.87.

    10.Ibidem.11.Santom Torres, Jurjo,O curriculum oculto, 1995, Porto, Porto Editora, p. 14.12. A mensagem precisa de ser demonstrvel, logo um conjunto de crenas erigido para poder

    aguentar o edifcio: A crena num processo objectivo de avaliao; uma organizao formal de

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    Como bvio quem recolhe frutos deste tipo de folclore so os grupos eideologias que, segundo Torres Santom, tentam fazer-nos partilhar da ideia deinevitabilidade, perenidade e do a-historicismo de tudo aquilo que joga a favordas suas necessidades e interesses13.

    Uma nota a reter que em todas as sociedades, os grupos que detm o poderbuscam a todo o custo a manuteno dostatus quo, isto , procuram denodada-mente impor e legitimar o seu domnio. Para tal precisam e contam com ajudaimprescindvel do Estado. A instituio escolar no pode passar inclume a todoeste zelo de dominao e as prprias prticas e formas no discursivas assumemum papel preponderante na reproduo social14 de uma ideologia.

    Por isso, continua a haver espao para um certo discurso cientfico que vem

    alijar de qualquer responsabilidade as organizaes sociais detentoras do poder emcaso de fracasso do indivduo. Este discurso, assente numa poderosa e inquestio-nvel tecnologia, concentra-se na elaborao e articulao de uma argumentaocapaz de confirmar e convencer a populao das suas possibilidades e limita-es inatas para desempenhar postos de trabalho e funes sociais15.Uma sriede instrumentos vo ser colocados em aco para que haja, em primeiro lugar,uma permanente vigilncia, e, em segundo lugar, para que a demonstrao dessasvirtualidades impostas esteja sempre visvel e actuante. Uma tecnologia sofisti-cada entra ao servio da educao, transformando-se ela prpria numa moda nasprticas educativas do quotidiano da sala de aula.16

    Tudo examinado, sopesado, diagnosticado e estudado ao milmetro. Estaideia de seleco, de permanente exame de que a escola faz ponto de honra, patenteada logo nos primeiros dias de um ano lectivo. Saber aquilo que verdadei-ramente interessa e falta conhecer uma das rotinas daqueles alunos que tm ofirme propsito de sobreviver. O caso dos exames17 ento paradigmtico. Parece

    escolaridade, especialmente da que considerada obrigatria, na qual todos os alunos e alunastm as mesmas exigncias, os mesmos direitos e obrigaes, e onde alm disso, lhes oferecido omesmo,ibidem.

    13.Ibidem.14. A reproduo de uma determinada ideologia predominante ser, assim, fruto, em primeiro

    lugar, da adequada reproduo dessa ideologia mediante discursos textuais e simblicos, prote-gidos, por sua vez, por todo um conjunto organizado de enunciados, proposies, classificaes,regras e mtodos que procuram impedir possveis desvios, e, em segundo lugar, da suas prticas eformas no discursivas coerentes com o conjunto referido, inSantom Torres, Jurjo,O curricu-lum oculto, 1995, Porto, Porto Editora, p. 21.

    15.Idem, p. 35.16. Propaga-se, desta forma, a crena de que o sistema educativo pode converter-se num selec-

    cionador legtimo e eficiente de seres humanos, e consequncia do refinamento psicomtrico dastcnicas de diagnstico e medio das capacidades e rendimentos individuais, o que, por sua vez,produziria avaliaes neutrais e objectivas dessas capacidades e rendimentos pessoais, idem, p.42.

    17. A presena constante deste perigo (os temidos exames) est bem patente quando ouvimos,

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    que todos os esforos do aluno esto voltados para transpor tamanho obstculo. Aconcentrao nesse aspecto especfico de tal ordem que as metas e as propostasde trabalho que os docentes tendem a aplicar so quase sempre relegados paraum secundarssimo plano. O discurso oculto do quotidiano nas salas de aulaatraioa as emritas intenes dos professores. O que conta, mesmo que oculta-mente, o temido e odioso exame, que se transformou na arma magisterial porexcelncia.

    Modos de reproduzir

    A ideia de um espao escolar visto como uma instituio neutra posta ao serviode uma sociedade tambm ela neutra, sem conflitos culturais e ideolgicos rele-vantes, tambm j um pensamento que conheceu melhores dias. Apesar dosrepresentantes e ltimos tericos dos poderes instalados tentarem, na medida dopossvel, obscurecer essa manifesta parcialidade, o que um facto sobejamenteconhecido e tratado que as instituies educativas so padres de relao social

    formalizados como estruturas orgnicas; so criadas e recriadas pelas prticasque as sustentam e so reproduzidas ou transformadas mediante a manutenoou, pelo contrrio, a transformao das prticas que as constituem18. Desteponto de vista, as estruturas so maleveis e a educao pode ser vista tambm elacomo um processo de moldagem.

    Se no ocorre uma reiterada preocupao com os princpios normativos quegovernam a seleco, a organizao e a distribuio dos objectivos e dos con-tedos (teorias, conceitos, factos, princpios, procedimentos, valores, atitudes enormas), nem com os aspectos metodolgicos e as suas dimenses ocultas19,h um interesse ou mesmo uma inteno deliberada. Esta passa inevitavelmentepor negligenciar ou toldar qualquer tipo de relao entre o modo como os ob-jectivos, contedos, a metodologia e a avaliao so apresentados, e a influnciados poderes econmico, poltico e cultural. Para os investigadores, onde SantomTorres se inclui, essa cegueira manifesta perante esta questo crucial faz parte doprprio jogo de reproduo. Tal facto permite e contribui para manter as pri-

    oridades econmicas e polticas de classes e grupos sociais particulares. Um

    muitas vezes, professores e professoras queixarem-se de que os seus estudantes fazem ouvidosde mercador s recomendaes acerca de leituras e actividades importantes que deveriam realizar.(. . . ) nenhum elemento do professorado deveria esquecer, uma vez que tambm j foi estudante,que um dos primeiros trabalhos que ocupam os primeiros dias de um ano lectivo o de procurarinteirar-se com fidelidade, sem ambiguidades, daquilo que verdadeiramente importante e deci-sivo para poder conclui com xito cada disciplina concreta, para poder ser aprovado, idem, p49.

    18.Santom Torres, Jurjo,O curriculum oculto, 1995, Porto, Porto Editora, p. 50.19.Idem, p. 57.

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    dos autores que leva at s ltimas consequncias tal postulado Louis Althus-ser, garantindo que a escola , sem dvida, o aparelho ideolgico do Estado20primacial. Nesta medida, fcil perceber que a escola desempenha uma funoprioritria na manuteno das relaes sociais e econmicas existentes.21 Os re-cursos postos disposio da escola, as rotinas e prticas, a prpria diviso dotrabalho que inmeras vezes incrementada em ambiente de sala de aula, trans-mitem uma pontuao sequencial percepcionada por todos os intervenientes noprocesso de comunicao difundida por essa ideologia dominante.

    certo que a teoria althusseriana acaba por cair num determinismo econ-mico asfixiante de onde no se vislumbra sada. Neste modelo, a escola vistacomo uma caixa negra onde na realidade no se passa nada; tudo segue uma

    linearidade perfeita; no existem verdadeiras possibilidades de analisar e mo-dificar esses objectivos e contedos da modificao.22 Neste caso, professorese estudantes esto submetidos a foras estranhas, das quais no tm possibili-dade de escapar. Alis, todos os elementos so passivos e obedientes, nada passvel de ser questionado, pois a ordem existente no deve ser alterada. Aspessoas movem-se neste tabuleiro como portadores de significados prdefinidos,dominadas por ideologias que actuam de maneira to inconsciente que quaseimpossvel desvend-las e submet-las a uma anlise reflexiva.23

    Um longo movimento percorre autores to dspares e a mesmo tempo to se-melhantes em termos dos temas tratados como Althusser ou Santom. Nada acon-

    tece por acaso e uma arqueologia, ainda que breve, desta tradio, vem aclarar asposies que o presente trabalho tenta inquirir.

    A natureza social da educao caracterizada por Durkheim, nos primrdiosda sociologia moderna, (Sousa Fernandes:1991) pela aco social operada entrea gerao adulta e a gerao jovem; pela aco global, tanto junto do indivduo,como junto da sociedade e, por fim, pela natureza unitria e harmnica que sepretende que a escola seja representante mximo, foi, desde logo, criticada.

    Uma das mais eficazes anlises foi protagonizada pela corrente marxista. Au-tores como j o citado Althusser, Bandelot, Bowles e Gintis so os mais preponde-rantes. Apesar das diferenas de pesquisa entre eles, o tema recorrente foi sempre

    o modo como o sistema educativo reproduzia as relaes sociais de produo ca-pitalista.

    20.Idem, p. 59.21. A instituio educativa , de todos os aparelhos ideolgicos do Estado (religioso, familiar,

    jurdico, poltico, sindical, da informao e cultural), aquele que cumpre a funo dominante nareproduo das relaes de explorao capitalista, j que , alm disso, o que dispe de mais anosde audincia obrigatria e, inclusivamente, gratuita para a totalidade das crianas e jovens dasociedade,inSantom Torres, Jurjo,O curriculum oculto, 1995, Porto, Porto Editora, p. 59.

    22.Idem, p. 61.23.Ibidem.

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    Uma outra corrente crtica, talvez mais rica do que a primeira, perpassa pelonome incontornvel da sociologia que Max Weber. Aquele autor colocou emcausa, logo partida, a existncia de um sistema de valores comuns, ou seja, um

    patrimnio cultural aceite por todos os membros de uma sociedade, como parecepressupor Durkheim.24 Ora, o que se passa verdadeiramente que o patrimniocultural prevalecente e os sistemas de valores que predominam historicamente soos da elite dominante, da pequena minoria que detm o poder. O mesmo sucedeem matria de educao: Em ltima instncia, quer isto significar que o curr-culo, como manifestao da cultura a ser transmitida, controlada, e portantodeterminada no por toda a sociedade, isto , de forma consensual, mas pela

    parte dominante dela, dominao que resulta da competio entre os grupos em

    presena, e de interesses nem sempre convergentes, e por consequncia de na-tureza conflituosa.25 Daqui decorre o papel a desempenhar pela sociologia daeducao.

    No estudo acerca da dimenso social do seu campo de aco (Sousa Fernan-des:1991) dois problemas candentes surgem superfcie: o da ordem social, e oda estratificao social ou das desigualdades sociais. Sobre esta ltima questo,tanto a perspectiva marxista como a weberiana apontam caminhos de pesquisae averiguao. Para a primeira a desigualdade social pode ser entendida a par-tir do conceito de classe. J para Weber, a estratificao social que provoca adesigualdade assenta em trs pilares: Classe, Status e Poder, respectivamente, po-

    der econmico, prestgio social e poder poltico. Estas trs pedras basilares estointer-relacionadas mas no so redutveis entre si, como pretendia Marx, redu-zindo tudo ao aspecto econmico.

    Como bvio a problemtica da ordem social, e da estratificao social, que aacompanha de brao dado, esto relacionadas com a educao. Esta, e em especiala que d pelo nome de educao escolar representa um processo social pelo qualos sistemas de estratificao e dominao se reproduzem e reforam26.

    Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, na sua obra intitulada significativa-mente A Reproduo, do como dado adquirido para a sociologia da educaoum determinado objecto de estudo. J que se trata de uma cincia que trata das

    relaes entre a reproduo cultural e a reproduo social, o seu exame passa pordeterminar a contribuio dada pelo sistema de ensino para a reproduo dasrelaes de fora e das relaes simblicas entre as classes.27 Para Bourdieu e

    24. Pires, Eurico Lemos,Fernandes, Sousa A. eFormosinho, Joo,A Construo Social daEducao Escolar,, 1991, Rio Tinto, Edies Asa, p. 24.

    25.Idem, p.113.26. Pires, Eurico Lemos,Fernandes, Sousa A. eFormosinho, Joo,A Construo Social da

    Educao Escolar,, 1991, Rio Tinto, Edies Asa, p.106.27.Bourdieu, Pierre ePasseron, Jean-Claude,A Reproduo Elementos para uma teoria do

    sistema de ensino, Lisboa, Editorial Veja, p.327.

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    Reproduo social 11

    Passeron este tipo de dominao, de que a escola faz mediao, est intimamenteligado chamada violncia simblica. Violncia que figura por exemplo na au-toridade da linguagem e na prpria aco pedaggica, que no mais que umaaco de imposio de uma cultura que se considera ser legtima.

    O reconhecimento da legitimidade do sistema de ensino, que est inscrito naautoridade dos professores, visto como um servio a que se pretende dar at umcerto ar de independncia em relao a outra foras sociais. Mas o disfarce cailogo a seguir. A autonomia relativa do sistema de ensino mascara o servio queele presta perpetuao das relaes de classe. Essa dissimulao faz parte do

    jogo e convm no ignorar esse esforo.28

    Legitimao e controlo neste permanente jogo de foras estiveram tambm em

    considerao nas investigaes produzidas no outro lado do Atlntico por P. W.Jackson, que utiliza pela primeira vez a noo decurriculumoculto. O conceitoserviu para designar o modo implcito como as escolas levam a cabo o seu papelatravs dessas modalidades organizativas e dos actos rotineiros que imperamnas escolas e nas salas de aula, com o intuito de reproduzir a coeso e a esta-bilidade das relaes sociais de produo e distribuio. Na sua obra de 1968,Avida nas salas de aula, aquele autor norte-americano, citado por Torres Santom,d conta desse aspecto constitutivo na correspondncia que se alicera entre asrelaes sociais de produo ao nvel do sistema econmico, e as relaes sociaisde educao ao nvel do sistema educativo. Facilitar a preparao da entrada dos

    estudantes na cadeia de distribuio e produo parece ser a divisa.29 J que fazparte deste nicho ecolgico escolar, o aluno deve aplicar muito do seu tempo nestaaprendizagem colateral.

    S possvel obter este conhecimento analisando o ambiente onde so pro-duzidos semelhantes contedos e relaes, que esto diga-se inscritos na ma-triz da pragmtica comunicacional. Ao transmitir uma determinada mensagem,a comunicao est tambm a impor um determinado comportamento. Jacksonapercebe-se, mesmo que indirectamente, desse axioma pragmtico, desse aspectorelacional, e alarga o domnio da sua investigao contextualizao dos fenme-nos que ocorrem na sala de aula. Por isso, chega concluso de que as exign-

    cias acadmicas docurriculumexplcito, oficial, esto intimamente ligadas coma vida produtiva adulta atravs do curriculum oculto. As prprias recompen-

    28.Idem,p.265.29. A seguinte citao, a atingir os 40 anos de idade, mantm-se ainda muito actual: Quase to-

    dos os alunos aprendem a concentrar-se numa coisa e a prestar ateno quando assim lho ordenam,a refrear a sua fantasia enquanto decorre a aula. Esta disponibilidade para cumprir os mandadosda autoridade docente , por um lado, duplamente importante, porque o aluno ter que a exercitarem muitos lugares extra-acadmicos. A passagem da sala de aula fbrica ou ao escritrio torna-se fcil para aqueles que desde os seus primeiros anos desenvolveram hbitos de trabalho, inSantom Torres, Jurjo,O curriculum oculto, 1995, Porto, Porto Editora, p. 62.

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    sas e castigos que se sucedem ao longo do percurso da formao escolar, longede terem um cunho altrusta significativo ganham o seu verdadeiro significadoquando procuramos no curriculum oculto. O que se pretende, de uma formasempre sub-reptcia, escondida, construir uma srie de traos de personali-dade apropriados para se poder trabalhar numa sociedade industrializada deeconomia capitalista30.

    Uniformidade e rotinas

    Tudo concorre, assim, para a criao de um ambiente que desemboque nesse de-

    senlace final: a adequao do produtor ao produto, da mercadoria ao mercado aque se destina. A prpria dimenso esttica no descurada: os adereos, a con-figurao dos itinerrios e espaos de recreio, de espera, de permanncia , omobilirio escolhido, a disposio das salas de aula, a decorao prevalecente eos prprios cheiros de um imenso colectivo servem para a constatao evidente deuma escola: uniformidade e semelhana de rotinas.31 H uma certa monotoniaquotidiana que de toda a convenincia preservar. Muito mais importante at queos contedos dos programas, os aspectos de ordem e obedincia continuam a estarna ordem do dia, em especial quando se fala numa escola massificada. Desdeos primeiros dias de institucionalizao das crianas que essas preocupaes dedisciplina tomam a dianteira. Todos os alunos, de uma maneira ou de outra, apren-dem a conviver com este manto que ao mesmo tempo que os protege, tambmtolhe e manieta os seus movimentos. De outra forma, alis, muitos sentir-se-iamdesamparados e perdidos.32

    Uma teoria funcionalista atribuir neste molde escolar uma grande nfase forma como os alunos apreendem e interiorizamos valores, competncias e co-nhecimentos requeridos para perpetuar acrtica e irreflectidamente o actual mo-

    30.Idem, p. 63.31.Para dizer a verdade, pode-se constatar uma uniformidade e similitude nos odores mais

    frequentes em todas as salas de aula (odores derivados do emprego de materiais como o giz,as tintas, as sanduches e, inclusivamente, o suor das crianas. No fundo, pretende-se criar umambiente que torne possvel a vigilncia por parte das autoridades e que permita acostumar osestudantes a conviverem aceitando uma grande proximidade entre si, contribuindo ainda para queesses lugares sejam considerados naturais e familiares, inSantom Torres, Jurjo,O curriculumoculto, 1995, Porto, Porto Editora, p.63.

    32. Desta forma, atravs da monotonia quotidiana, os estudantes aprendem a manter a ordem,a disputar a ateno do professorado ou de qualquer pessoa investida de autoridade, a aceitar assanes contra as armadilhas, a submeter-se programao das actividades de acordo com asexigncias do relgio, a ser constantemente avaliados, a subordinar-se aos que detm o poder, aser pacientes, a tolerar as frustraes, etc. Os alunos e alunas aprendem a canalizar e controlaros seus impulsos de acordo com o que se considera serem padres aceitveis de comportamento,idem,p. 64.

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    delo de sociedade.33 Neste sentido, a socializao que a caracterstica essencialda educao est longe de ser uma simples integrao social, como desejaria queocorresse a teoria funcionalista34.

    Mesmo assim, haver brechas e rupturas que mancham irremediavelmente aimagem, que at se considera benigna, de moldagem dos comportamentos estu-dantis. Afinal, o que se pretendia era passar ao lado da importncia ideolgica epoltica que reveste essa manuteno de uma sociedade classista. Estas lacunassurgem nas margens, na rebelio tambm ela surda mas que se pressente no quo-tidiano da sala de aula. Quer se queira ou no imaginar, o que um facto que amaior parte do tempo do aluno passada a enganar. O jogo da dissimulao fazparte das regras. um dos componentes mais activos da rotina escolar. Dissimu-

    lar o no-cumprimento, o engano e o embuste fazem parte das actividades a quemuitos educandos dedicam at enorme fervor. Os exemplos so mltiplos, masos clebres e bem conhecidos copianos enchem pginas dedicadas ao tema. Nabase desta escalada, em que cada oponente se mune de todas as armas ao seualcance, est o curriculum oculto que o corolrio deste sistema hierrquicoe de controlo que vigora no interior de certas estruturas acadmicas que quaseningum pe em causa.35

    interessante tambm verificar que os estudos que comprovam que as escolasque recebem no seu seio as filhas e filhos dos membros da classe trabalhadorae os grupos tnicos mais desfavorecidos economicamente, exigem um maior re-

    gramento no controle do comportamento e no acatamento das ordens. Afinal asestruturas coercivas de autoridade, e mesmo as expectativas de insucesso escolardo professorado e das prprias famlias, contribuem para preparar esses estu-dantes para postos de trabalho inferiores.

    J o contrrio vai suceder nas escolas que so frequentadas por aqueles queusufruem melhores condies de vida. A superviso menos directa e o compa-nheirismo entre docente e discente a nota dominante. Essa ligao at incen-tivada abertamente, quando, curiosamente, se trata de um sistema de valores que

    pe em destaque a interiorizao dos modos de controlo.36 As teorias da repro-

    33.Idem, p.65.34. Acerca dos socilogos funcionalistas, Bourdieu sustenta que estes ao anunciarem o melhor

    dos mundos possveis, ao cabo de um estudo longitudinal das carreiras escolares e sociais, des-cobriram que, como por efeito de uma harmonia pr-estabelecida, os indivduos no esperavamnada que no viessem a obter e no tinham obtido nada que no tivessem contado obter. A teo-ria funcionalista faz, assim, esquecer que as condies objectivas, neste caso as leis do mercadoescolar, determinam as aspiraes ao determinarem o grau em que elas podem ser satisfeitas,inBourdieu, Pierre, Reproduo Cultural e Reproduo Social, in Grcio, S.,Miranda, S.,Stoer, S., Sociologia da Educao I Funes da Escola e Reproduo Social , 1982, Lisboa,Livros do Horizonte, p.335.

    35.Santom Torres, Jurjo,O curriculum oculto, 1995, Porto, Porto Editora, p.70.36.Idem, p.73.

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    duo afirmam que essa integrao na ordem social baseada numa estratificaosocial. Esta mantida apenas porque existem foras de dominao a cujos inte-resses aquela ordem se subordina.37 No corolrio destas razes infere-se que noso as qualidades tcnicas que so preponderantes na seleco dos candidatos sdiferentes ocupaes, mas sim o nvel e o prestgio dos diplomas que as forasde dominao aprovam como suas, sendo praticamente irrelevante o respectivocontedo curricular38.

    Esta a legitimao e o controle que as teorias de reproduo cultural e socialpem em evidncia quando se trata de uma sociedade que viveu sombra da eraindustrial. Nesta particularidade histrica, social e geogrfica a educao escolarsempre foi considerada como uma via onde a estratificao social se opera dis-

    posta ao seu reforo e reproduo. A escola, neste sentido, tem ocupado um lugarimportante na legitimao e controle desse poder um dos lugares privilegiadosonde a luta por esse controle se desenrola nas sociedades industriais contempo-rneas.39 Mas o mundo que conhecamos at aqui est a mudar. A mudar muitorapidamente. Com o incremento avassalador das novas tecnologias, postas dis-posio dos fluxos informacionais e de poder que se estabelecem por estas novasfronteiras, h um velho mundo que ainda se mantm superfcie e custa decedncia atrs de cedncia justamente perante um outro que j desponta.

    A questo est agora em saber se com esta inevitvel mudana de modelo,as teorias que analisavam e avaliavam a velha sociedade da era industrial caem

    por terra. Trabalhos como os de Bourdieu, Passeron, Torres Santom, e outrosna mesma senda, perderam actualidade, ou pelo contrrio a reproduo social ecultural nada perdeu da sua fora, mantm-se firme e necessita mais que do nuncada crtica que a estuda e tambm aponta caminhos?

    O que asseguramos, desde j, que as foras de dominao e os seus alicercessustentados nos pilares da legitimao e do controle persistem, e possivelmentecom maior poder coercivo ainda. Os donos do poder podem ter mudado de rosto,mas no resto verifica-se a velha histria do humano predador. Onde ele estiverhaver sempre o dominante e o dominado. O que certo que o novo tempo tam-bm proporciona esperanas acrescidas para aqueles que sempre se localizaram

    nas franjas do poder, e que tm agora uma oportunidade soberana para que a suavoz esquecida tenha finalmente uma identidade.Mas examine-se, primeiro, o que mudou to radicalmente na ltima vintena de

    anos e que veio por revolucionar por completo as relaes sociais tal como eramconhecidas at aqui.

    37. Pires, Eurico Lemos,Fernandes, Sousa A. eFormosinho, Joo,A Construo Social daEducao Escolar,, 1991, Rio Tinto, Edies Asa, p.107.

    38. Pires, Eurico Lemos,Fernandes, Sousa A. eFormosinho, Joo,A Construo Social daEducao Escolar,1991, Rio Tinto, Edies Asa, p.120.

    39.Idem, p.123.

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    Uma sociedade nascida na rede

    H um novo domnio totalmente gerado por computador que cai no mbito deum espao pblico usado permanentemente. H uma vintena de anos atrs nadadisto acontecia. A estranheza maior que se trata de um lugar sem fronteiras nematributos fsicos. Para o homem habituado s slidas coordenadas geogrficas delatitude e longitude dos stios, ficar assim de repente sem p,desterritorializado,pode ser uma viso arrepiante. No ciberespao, um conceito ainda a entrar novocabulrio do quotidiano, tudo se passa, e todas as actividades decorrem, numamatriz preenchida pelas telecomunicaes electrnicas e as redes de computado-res a Internet.

    Sucednea daArpanet,40

    a Internet faz a sua entrada na era da digitalizao.Ao longo dos anos 80 do sculo passado, foi ganhando cada vez mais adeptosentre as organizaes de pesquisa e universidades, que comearam a utiliz-lapara trocarem informao e dados. AWorld Wide Web, criada no CERN, que joferecia interface grficos em linguagem html, foi usada como instrumento paratroca e modificao de documentos entre os cientistas e outras organizaes.

    As novas tecnologias do digital so, assim, a infra-estrutura do ciberespao,que se transformou num novo espao de comunicao, sociabilidade, organiza-o, transaco e troca. Encontramo-nos, pois, perante um novo mercado de in-formao e de conhecimento. Esta codificao digital condicionou, por sua vez,o carcter plstico, fludo, calculvel e tratvel em tempo real, hiper-textualmenteinteractivo e virtual da informao. Estas so as caractersticas distintivas quemarcam a unicidade do ciberespao.

    Com o crescimento da Internet, novos conceitos surgiram para enfrentar e no-mear a nova realidade. A par do ciberespao, a que se chamar tambm rede,que designa a infra-estrutura material da comunicao digital e tambm o uni-verso ocenico das informaes que ele alberga, bem como os seres humanos quenele navegam e o alimentam,41 outro termo caro a estes estudos , sem dvida, ode Cibercultura.

    Este servir para determinar o conjunto das tcnicas (materiais e intelectu-ais), as prticas, as atitudes, as maneiras de pensar e os valores que se desen-

    volvem conjuntamente com o crescimento do ciberespao.42 Ao nvel da infra-

    40. Nos 60/70 a Agncia de Projectos de Investigao Avanada do Departamento de Defesados Estados Unidos (ARPA) financia um pequeno grupo de programadores e engenheiros de elec-trnica com o objectivo de reformular todo o processo de operao de computadores. Em plenaGuerra Fria, o intuito principal passava por preservar as comunicaes militares de outras agn-cias governamentais, mesmo em caso de desastres naturais, ataques terroristas, ou de algum quesimplesmente despoletasse a bomba. Por incrvel que hoje parea, foi neste meio belicista que sederam os primeiros passos a caminho da Internet.

    41.Lvy, Pierre, Cibercultura, 1997, Lisboa, Instituto Piaget, p. 17.42.Ibidem.

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    estrutura, a fractura visvel entre as tradicionais e as novas tecnologias da in-formao. A distino ainda mais explcita ao pensarmos que a televiso e ardio trazem notcias em massa de todo o mundo, e as tecnologias sondadoras,como a novssima gerao de telefones e as redes de computadores, permitemir instantaneamente a qualquer ponto e interagir com ele: mesmo que esse lugaresteja j fora da rbita terrestre. Esta qualidade de profundidade permite, assim,a possibilidade de tocar e ter um efeito sobre o objecto atravs das extenseselectrnicas.

    A cibercultura implica, com estas tcnicas de recolha da informao, ver atra-vs da matria, do espao e do tempo. As inovaes em relao s grandes tc-nicas de comunicao precedentes esto tambm elas a tornarem-se corriqueiras.

    Do quotidiano de grande parte do mundo ocidental, pelo menos, fazem parte, porexemplo, o acesso distncia a bases de dados mundiais, as transferncias de fi-cheiros, downlading, o correio e as conferncias electrnicas, o acesso a novosmedia; e toda uma srie de novidades na rea dos servios, como as comprasonline(da pioneiraamazonaos leiles dae-bay), ohomebanking, ou o acesso aservios pblicos, como, no caso portugus, a entrega de declaraes electrnicasnas finanas, ou os concursos de professores do ensino secundrio.

    Tais actividades enchem o dia-a-dia das empresas, instituies governamen-tais, escolares, administrativas, sem esquecer, claro est, o prprio domiclio doindivduoonline. Esta presena ininterrupta (aquilo a que Tom Koch chamou de

    online, all the time, for everyone) possibilitada pela banda larga e, sobretudo, pelastarifas planas, faz as suas primeiras vtimas, pois existem novas formas negativasa despontar conta destas virtualidades. Pierre Lvy assinala algumas delas,43

    destacando, pela sua carga esmagadora, o isolamento e a sobrecarga cognitiva,devido aostressda comunicao e do trabalho em frente do ecr; a dependnciarelativa criao de necessidades viciadoras que passam pela navegao contnuae pelo jogo; a dominao exercida pelas potncias econmicas sobre importantesfunes das redes; de explorao directa ou indirecta quando est em campo otele-trabalho vigiado; ou a descentralizao de actividades para o terceiro mundoa custos residuais; e por fim, a idiotice colectiva que amide acontece devido ao

    surgimento de boatos na rede, ao conformismo das comunidades virtuais e aoempilhamento desastroso de dados vazios de comunicao.Para mais, enquanto os entusiastas da Rede, como Howard Rheingold,44 pre-

    43. VerLvy, Pierre, Cibercultura, 1997, Lisboa, Instituto Piaget.44. Howard Rheingold, considerado o pioneiro dos estudos sobre realidade virtual, o autor da

    obra emblemticaA Comunidade Virtual,de 1993. Nesse livro, o autor regressa aos primrdiosda comunicao mediada por computador, explicando-nos como era o terreno antes de as grandescompanhias terem descoberto as suas potencialidades. Sendo ele prprio um participante activodeste tipo de comunicaes, mostra como , de facto, possvel o estabelecimento de uma interacohumana profunda, mediada pelos computadores.

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    vem um ressurgimento da comunidade, compensando-a at das perdas do pas-sado, h outros autores que manifestam muitas perplexidades. Alguns chegama observar que longe de encorajar a interaco comunicacional no interior dascomunidades as Comunicaes Mediadas por Computador (CMC) parecem con-tribuir para aumentar o distanciamento de contacto e a proliferao das relaesindirectas.45 As CMC transformaram-se num meio socialmente enfraquecido,onde a prpria questo da identidade individual est a tornar-se totalmente mu-tvel e indistinta, no se correlacionando com o Eu moderno que participava nasociedade.

    O que certo que a cibercultura, sendo uma palavra muito nova, trata tam-bm uma realidade diferente, a da mediao electrnica ao nvel das relaes

    sociais e da prpria experincia pessoal. claro que as geraes mais jovens aderiram em massa a esta nova forma

    de comunicar. medida que a tecnologia ciberntica tem vindo a invadir dis-tintos campos da vida pblica e privada, a cultura vista em termos tradicionais,sofreu uma mudana radical. A omnipresena dos computadores influencia todosos campos da comunicao e da representao: desde a concepo do texto, quegraas interactividade j no algo fixo e rgido, mas sim fludo, passando pelasrepresentaes em 3D, at concepo da fotografia, que passou de uma reprodu-o objectiva e instantnea a uma nova imagem, fruto de um trabalho combinat-rio, de recortes e misturas sugestivas. Os nossos sentidos, mais do que enganados,

    so substitudos e absorvidos pelo sistema electrnico. Esta a revoluo digitalque permite a chamada interactividade fluida.Pierre Lvy d conta dessas transformaes que os novos meios informticos

    operam. Pela primeira vez na histria, assiste-se a que a maior parte das compe-tncias adquiridas por uma pessoa no incio do seu percursos profissional seroobsoletas no fim da sua carreira.46 Uma segunda constatao passa pela novanatureza do trabalho, onde a transaco de conhecimentos no cessa de crescer:Trabalhar cada vez mais apreender a transmitir os saberes e a produzir conhe-cimento.47 Por fim, uma ltima nota verificadora do modo como o ciberespaoparece suportar tecnologias que articulam, amplificam, exteriorizam e modificamas funes cognitivas humanas: memria (base de dados, hiper-documentos, fi-cheiros digitais); imaginao e fantasia (simulaes, jogos de entretenimento);percepo (receptores digitais); raciocnios (Inteligncia Artificial, modelizaode fenmenos complexos).

    A partir da constatao destas alteraes, podem-se comear a definir, segundoLvy, os princpios orientadores da cibercultura: a interligao, a criao de co-

    45.Loader, Brian D., et all,A Poltica do Ciberespao Poltica, Tecnologia, e ReestruturaoGlobal,1997, Lisboa, Instituto Piaget, p 42.

    46.Lvy, Pierre, Cibercultura, 1997, Lisboa, Instituto Piaget, p 167.47.Ibidem.

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    munidades virtuais e a inteligncia colectiva. Numa breve resenha, o princpio dainterligao no programa da cibercultura quer dizer que a ligao um bem emsi mesmo. A ligao prefervel ao isolamento, dado que o horizonte tcnico domovimento da cibercultura a comunicao universal. Com o crescimento dascapacidades de transmisso, a tendncia para a interligao provoca uma mutaona fsica da comunicao. Passa-se das noes de canal e rede, para uma sensaode espao abrangente. H pois uma reviravolta topolgica os veculos de in-formao j no estariam no espao, mas todo o espao se transformaria em canalinteractivo.48

    claro que o desenvolvimento das comunidades virtuais, inscrito no programada cibercultura, aporta interligao. Uma comunidade virtual constri-se com

    base em afinidades de interesses e de conhecimentos, na partilha de projectose num processo de cooperao ou de permuta. A comunidade educacional oarqutipo perfeito desta noo quando, para mais, essa formao ocorre indepen-dentemente das proximidades geogrficas e pertenas institucionais. Longe dedesaparecerem os encontros fsicos, a comunicao por redes informticas umcoadjuvante e um complemento daqueles. Uma comunidade virtual no irreal,ilusria, nem imaginria. Trata-se de um colectivo mais ou menos permanenteque se organiza por meio das comunicaes mediadas pelo computador.49 Coma cibercultura exprime-se o desejo de construir um lugar social que no seja ba-seado: nem em posses territoriais; nem em relaes de poder; nem em relaes

    institucionais. O sentido corrente a reunio em torno de interesses comuns napartilha do saber, na aprendizagem cooperativa e em processos de colaborao.H, pois, um ideal de relao humana nas comunidades virtuais inserto na suatransversalidade, liberdade e desterritorialidade. Longe de desaparecer a relaoprofessor/aluno, ela ser mais profcua e abrangente se se levar em linha de contaa actualizao destas novas virtualidades.

    Esse empenho ainda maior para um outro princpio orientador e que d pelonome de inteligncia colectiva. Esta seria a finalidade ltima do programa dacibercultura. Quanto toda a gente estonline, all the time, for everyone, surgecomo que um novo tipo de pessoas e um novo tipo de espao. Este para Lvy

    o espao da inteligncia colectiva vivo, com uma presena vibrante, humana epblica.50

    48. A cibercultura aponta, assim, para uma civilizao de uma telepresena generalizada. Ainterligao constituiria a humanidade num continuum sem fronteiras, mergulhando as pessoase as coisas no mesmo banho de comunicao interactiva, in Lvy, Pierre, Cibercultura, 1997,Lisboa, Instituto Piaget, p 132.

    49. Estas comunidades virtuais cumprem de facto uma verdadeira actualizao (pem em con-tacto efectivo) grupos humanos que o eram somente em potncia antes do advento do ciberespao,idem, p. 133.

    50. Toda a agente ao mesmo tempo juiz e parte integrante da actual condio da mente cuja

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    Neste momento, assiste-se assim a uma nova era onde se d um crescimentoexplosivo de melhores ferramentas direccionadas para vrios pontos de conflun-cia: para a comunicao; para os contornos dos softwares interactivos; para asconexes Internet; e para os mais variados canais multimdia.

    As transformaes cognitivas em curso pressupem mudanas na representa-o do conhecimento muito mais radicais do que se poderia imaginar. Totalmenteinexistentes at h uma gerao atrs, surgem, oriundos do labirinto da Internete da rede informtica, novos modelos de racionalidade que so baseados na inte-raco e na co-produo de identidades culturais. Por causa deles, a comunidadecientfica acelera o passo e tenta reformular os seus paradigmas epistemolgicos.Humaexploso dos sentidos e a mquina e o humano parecem querer fundir-se

    numa nova entidade,51 pronta a completar o idlio ou pesadelo de Hans Moravec.Esta entidade, a figura docyborg, metade carne metade mquina, recorrente

    no esprito humano. A tcnica sempre teve este condo de assaltar a mente como deslumbramento por mundos novos. As novas formas de mediao e reconfi-guraes da experincia vieram, mais uma vez, recolocar o candente problema no

    plateau. Aristteles defendia, na suaPotica, que a arte se movia mais depressaque a teorizao sobre ela. Esse exemplo continua a repetir-se nos nossos dias.Os factos e as aces levam sempre um grande avano sobre as axiomticas queos tentam agrupar em quadros de referncia explicativos. As novas tecnologias,a compreenso das suas implicaes neste contexto, valem, pelo menos, esse es-

    foro. A categoria ciberespao como o espao privilegiado para que o imaterialeclodisse e triunfasse52 tambm lugar da tcnica e da tecnologia.

    Navegao, auto-estradas da informao, rede, o conhecimento como Atlas,so quatro metforas que se j aplicam e integram numa nova economia do sa-ber. A sala de aula, mais tarde ou mais cedo, dependendo muito das alavancaseconmicas e da vontade das instituies que a lideram, ter de incorporar algunsdestes novos dispositivos de aprendizagem e de trabalho.

    Estes no so mais que instrumentos tcnicos que ajudam os indivduos em

    histria contnua e tem vindo a crescer como um organismo h alguns milhares de anos, idem,p. 138

    51. Estamos muito prximos do tempo em que, virtualmente, a nenhuma funo essencial,quer fsica, quer mental, faltar a correspondente artificial. A encarnao desta convergncia dedesenvolvimentos culturais ser o robot inteligente, uma mquina capaz de pensar e agir como umser humano, por muito desumana que seja nos pormenores fsicos ou mentais. Tais mquinas serocapazes de prosseguir a nossa evoluo cultural, incluindo a prpria construo e desenvolvimentocada vez mais rpidos, sem necessidade de ns ou dos genes que nos deram origem. Quando talacontecer, o nosso ADN tornar-se- intil, perder a corrida evolucionria em favor de um novotipo de competioinMoravec, Hans,Homens e Robots O Futuro da Inteligncia Humana e

    Robtica, 1992, Lisboa, Gradiva, p. 11.52.Rosa, Jorge Martins, Revista de Comunicao e Linguagens, no28, Cibercultura em Cons-

    truo, 2001, Relgio dgua.

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    comunicao a partilhar esse espao virtual: novos estilos de escrita e interacoesto a ser inventados para tal. Esta sublinhe-se a essncia da tcnica de quefalava Heidegger, o desvelar caminhos ainda no trilhados e que so mobilizadoresdo mundo.

    Entre estes apetrechos electrnicos, destacam-se as conferncias electrnicasespecficas da Internet, os chamadosnewsgroups, que do visibilidade aos gruposde discusso que se fazem e desfazem em permanncia, no ciberespao. Torna-setambm um meio de contactar pessoas j no em funo do seu nome ou da suasituao geogrfica, mas de acordo com os seus centros de interesse. Os partici-pantes destas conferncias electrnicas adquirem, por assim dizer, um endereoe umnicknameno espao mvel dos temas, debates, e dos objectos de conheci-mento.

    As conferncias electrnicas, por outro lado, funcionam como memrias degrupo. Desta forma, obtm-se bases de dados vivas alimentadas permanente-mente por grupos de pessoas interessadas nos mesmos assuntos e confrontadasumas pelas outras. O hiper-documento digital, outro artefacto da cibercultura,pode ser imobilizado em Cd-Rom, mas desta forma, apesar de manter algumas dascaractersticas interactivas prprias do digital, oferece menos plasticidade, menosdinamismo e menor sensibilidade evoluo do contexto.

    O hiper-documento enriquecido e reestruturado em tempo real, por uma co-

    munidade de autores e leitores em rede, torna-se numa entidade que, em termosbotnicos, apelidaramos de germinante, frondoso, ramificante e rizomtico.Tal como uma sala de aula devia incrementar, este hiper-documento exprime umsaber plural em construo, acolhendo a memria mltipla e interpretada perma-nentemente por um colectivo. E no h melhor exemplo de hiper-documento emconstruo do que os projectoswiki, de edificao de saberesopen source, e deque o mais exemplar e bem sucedido a Wikipedia (www.wikipedia.org), hojerepositrio de valiosssimos conhecimentos, e uma referncia verdadeiramenteincontornvel no mbito dos projectosopen source.

    Outros tipos de dispositivos esto concebidos para a partilha de diversos re-cursos informticos e a utilizao dos meios de comunicao do ciberespao: aAprendizagem Cooperativa Assistida por Computador, a conhecida CSCL Com-

    puter Supported Cooperative Learning, e o Trabalho Cooperativo Assistido porComputador, o CSCW Computer Supported Cooperative Work, que est hojeem franca expanso. O primeiro permite a discusso colectiva, a partilha de co-nhecimentos e a troca de saberes entre indivduos. A sua dinmica permite tam-bm o acesso a tutores em linha para guiar as pessoas nas suas aprendizagens e oingresso em diversos sistemas de bases de dados, hiper-documentos e simulaes.J aqui, a nova sala de aula escapa-se da fronteira fsica de quatro paredes, paraadquirir uma geografia fluida e de contornos indefinidos. As coordenadas espacio-

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    temporais tornaram-se volteis, e a sala de aula pode presentificar-se a qualquerinstante e em qualquer lugar.

    J o CSCW constitui uma nova forma de organizao do trabalho que permiteexplorar, entre outros, os recursos dos hiper-documentos partilhados, as confern-cias electrnicas, o acesso distncia e tambm a transferncia de ficheiros. Seo sistema estiver bem concebido, esta organizao cooperativa de trabalho, atra-vs da rede informtica, rapidamente se transforma tambm num dispositivo deaprendizagem cooperativo.

    Em suma, o ciberespao permite combinar diversos modos de comunicaoem graus de complexidade crescentes: o correio electrnico, a conferncia elec-trnica, o hiper-documento partilhado, os sistemas elaborados de aprendizagem

    ou de trabalho cooperativos, os mundos virtuais multi-participantes. Modos de co-municao que o sistema educativo comea a integrar no seu seio e que, ao mesmotempo, comeam a pulverizar os velhos modelos caducos de ensino-aprendizagem.

    Por outro lado, as realidades virtuais servem cada vez mais frequentemente demediade comunicao. Assim, vrias pessoas geograficamente dispersas podem,ao mesmo tempo, alimentar uma base de dados gigantesca que se modifica a cadainstante. Tal comoO Trabalhadorem Jnger, os participantes nestes novos pro-jectos fazem uso da tcnica que est ao seu dispor para mobilizar o mundo. Umnovo processo ensino-aprendizagem est j em marcha e a sala de aula, a dadaaltura, perde por completo as suas rgidas coordenadas de espao e de tempo.

    Ela presentifica-se no aqui e agora, modelada por uma tcnica que assume a suaverdadeira essncia heiddegeriana: a da revelao. A metfora do mapa serve, mngua de melhor explicao, e ainda que muito toscamente, para dar uma noodo que sero as prximas salas de aula. Num gigantesco Atlas da Rede, aquelasserviro talvez como pontos guias, como luzes da cidade cintilantes, para situare indicar novos rotas aos navegantes: os trabalhadores do futuro.

    Ora, a funo das instituies tradicionais, sustentculo da era industrial, esta esvaziar-se de significado no dealbar desta era informacional e comunicacional.Muita da soberania que o Estado-nao detinha (Casttels:1997) nas suas mosest a ser superada pelas novas redes globais de riqueza, poder e informao.Ao tentar intervir e remediar a situao, o Estado v-se enredado em aces eestratgias cada vez mais confusas e distantes de representar os seus eleitorados,ainda arreigados que esto a um territrio histrico.

    Um longo percurso foi feito at chegar a esta inovao de fundaes. A pri-vatizao dos organismos pblicos, a par do declnio iminente do Well-Fare Statevieram romper com o contrato social celebrado e mantido entre o capital, o tra-balho e o Estado. A somar a estas provaes, o prprio movimento operrio esindical desvanece-se enquanto fonte de coeso social e representao dos traba-lhadores.

    Na conjugao de todos estes factores, as identidades legitimadoras, que se

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    constituram ao longo da era industrial, sofrem e perdem o seu campo de aco.As instituies e organizaes da sociedade civil que se erigiram em volta doEstado democrtico e sombra do contrato social entre o capital e o trabalho tmcada vez mais dificuldade em relacionar-se com as vidas e os valores prevalecentesna maioria das sociedades de hoje.

    essa anlise que seguidamente vai ser feita, tendo como premissa bsica sa-ber como o processo da formao das novas identidades podem influenciar o rumodo mundo actual. Os guias para essa aproximao sero Manuel Castells e Da-vid Lyon, socilogos que no tiveram receio de explorar terrenos to movedios,j que tratam de fenmenos que se esto a suceder a um ritmo vertiginoso hojemesmo.

    Por uma identidade outra

    Num certo sentido, foi a modernidade que tratou do alargamento das relaes so-ciais: escrever, imprimir, e os novos modos de transporte e comunicao. So astecnologias que permitiram o aparecimento da empresa, da burocracia, do Estado-nao, no fundo, do mundo globalizado. A interpretao mais forte feita pela so-ciologia clssica passa, no entanto, pela ideia de que a modernidade exprime umalamentvel perda de comunidade. certo que essa tese tem sido contestada. Umexemplo a questo das relaes directas. Embora estas no sejam predominantes

    nos dias de hoje, no desapareceram como se fez querer, simplesmente tendem aser compartimentadas, e a coexistir com outros modos de relao.

    Como vimos, estamos envolvidos numa esfera tecno-social. O ciberespaoevoca o sentido de serenvolvido nos media(Gibson). Este um atalho til paraevocar as experincias sociais numa era da comunicao electrnica. As CMCparecem em alguns aspectos integrar a mquina e o humano de uma forma maisdirecta. No entanto, existem fenmenos que esto a ocorrer na virtualidade dociberespao que deixam mais apreenso nos espritos do que propriamente espe-rana. o caso da manifesta dificuldade de estabelecer identidades em algunscenrios onde o anonimato ou a falta da autoria singular e clara cada vez mais

    comum.53 O sentido de um eu estvel, construdo como o centro das relaessociais na maior parte da sociologia moderna, posto em causa.

    53.Lyon,David,A Sociabilidade do ciberespao: controvrsias sobre relaes mediadas porcomputador in A Poltica do Ciberespao Poltica, Tecnologia e Reestruturao Global, 1997,Lisboa, Instituto Piaget, p.47. A este respeito, sobre a construo moderna da identidade e doEu,cf. TEIXEIRA DASILVA, Jos Manuel,O Destino do Eu: ascenso e queda do indivduo namodernidade, 2002, Instituto Piaget, Lisboa; j sobre os novos modos de identidade nascidos naera das redes, cf. o excelente estudo deTURKLE, Sherry,A vida no ecr a identidade na erada internet,1997, Relgio Dgua, Lisboa.

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    Para David Lyon falta ainda o enquadramento destas realidades sociais en-tretanto surgidas. Cham-las de comunidades no ser ainda uma tontaria? Aespessura e a densidade destas realidades novas esto ainda por provar. O que um facto indesmentvel que deste cenrio desapareceu a descrio de um in-divduo centrado, racional e autnomo dos tempos modernos. Alis, a prpriasociologia que enunciava esse sujeito, maneira de Marx e de Weber, tambmest a passar mal e no foge ao coro de crticas, j que ps de lado um problemacentral da actualidade e que tem a ver com os aspectos comunicacionais dasrelaes sociais entre os sujeitos.

    Mark Poster, citado por Lyon, argumenta pelo incio de uma segunda idadedos media indiciada pelosmulti-media e hiper-media interactivos e convergen-

    tes do ciberespao. Nestes modelos os sujeitos so constitudos dentro do mododa informao. Por outras palavras, esta cultura electrnica arrasta gneros co-municacionais altamente sofisticados, promovendo, concomitantemente, teoriasque se centram sobretudo no papel da linguagem no processo da constituiodos sujeitos.54 Assim, no lugar da identidade moderna e racional, Poster encontranos dias de hoje um sujeito que multiplicado, disseminado e descentralizado,continuamente interpelado como uma identidade instvel.55

    Existem implicaes sociais e culturais quando a racionalidade e a autoridadeso postas em causa. A comunicao electrnica pode at encorajar a participa-o e a contestao dos excludos que vogam margem da alada do racional.

    As comunidades virtuais esto a surgir exactamente na conjuntura em que ouniversalismo e o essencialismo esto a ser postos em causa e elas encontram ajustificao da sua existncia quando aparece a noo de que os discursos soos nicos fundamentos que permanecem para se compreender as identidades56.Assim, quando as comunidades virtuais so legitimadas em termos plenos de sig-nificado aos participantes das suas comunicaes, elas parecem confirmar cadavez mais as posies j assumidas por discursos locais auto-referenciais de etni-cidade, religio, gnero ou sexualidade.57

    Estes sujeitos emergentes que estiveram excludos, durante demasiado tempo,pelas foras de dominao, viram uma janela de oportunidade nesta era informaci-

    onal. Se o indivduo tecno-social que assoma em algumas descries como sendopersonnadigital,58 ou como uma mera imagem de dados serve para esclareceralgumas das questes pendentes da teoria social, tambm verdade que este ente

    54.Lyon,David,A Sociabilidade do ciberespao: controvrsias sobre relaes mediadas porcomputador in A Poltica do Ciberespao Poltica, Tecnologia e Reestruturao Global, 1997,Lisboa, Instituto Piaget, p.48.

    55.Idem, p.50.56.Idem, p.51.57.Idem,p.54.58. A este propsito, cf. G RADIM, Anabela,Ns Partilhamos um S Corpo: Identidade e Role

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    tambm visto como um projecto a ser construdo. Esta nova identidade est aser construda, neste preciso momento, de maneiras diversas. O argumento, queperpassa toda a sequncia de eventos a suceder junto da sociabilidade do ciberes-pao, sustenta que at estas formas de relacionamento parecem necessitar de umanoo qualquer de participao entre aqueles que reconhecem as identidades unsdos outros. A meta a alcanar que no seio das novas redes electrnicas possamvir a encontrar-se comunidades de sentidos partilhados, em vez de comunidadesde interesses ou propriedades59 .

    A identidade sempre foi um conceito caro sociologia. No que diz respeitoaos actores sociais, aquela (Castells: 1997) o processo de construo de sentido,atendendo a um atributo cultural ou a um conjunto relacionado com esses atribu-tos. Assim, tanto para um indivduo determinado como para um actor colectivopode haver uma pluralidade de identidades. O facto de essa pluralidade ser tam-bm fonte de tenso e contradio, tanto na representao de um sujeito, comona aco social, devido ao que os socilogos tradicionalmente distinguem comoos papis e conjuntos de papis. Ora, estes regiam-se por normas mais ou menosestruturadas pelas instituies e organizaes da sociedade. A funo da escolae do sistema de ensino neste particular diga-se era fundamental. As iden-tidades construdas, segundo este modelo so fonte de sentido para os prpriosactores, por eles prprios edificado mediante um processo de individualizao.D-se conta ento de que as identidades assim formadas so fonte de sentido mais

    forte at que os papis assumidos devido ao processo de auto-definio e indivi-dualizao decorrente: as identidades organizam o sentido, enquanto os papisorganizam as funes. Defino, assim, sentido como a identificao simblica queum actor realiza como objectivo da sua aco60.

    Nasociedade em rede, como amide Castells a designa, a maioria dos acto-res sociais organiza o sentido em torno de uma identidade colectiva primria quese sustenta por si prpria nas coordenadas espcio-temporais. Visto que a cons-truo social da identidade tem lugar num contexto marcado pelas relaes de

    Playing numa comunidade virtual portuguesa, inActas do IV Congresso da Sopcom, edio emCd-Rom, 2005, Aveiro.

    59.Lyon,David,A Sociabilidade do ciberespao: controvrsias sobre relaes mediadas porcomputador in A Poltica do Ciberespao Poltica, Tecnologia e Reestruturao Global, 1997.Lisboa, Instituto Piaget, p.58. Este tambm o aspecto realado por Rheingold na sua definio deComunidade Virtual: agregados sociais surgidos na rede, quando os intervenientes de um debateo levam por diante em nmero e sentimento suficientes para formarem teias de relaes pessoaisno ciberespao, cf. RHEINGOLD, Howard,A Comunidade Virtual, 1993, Gradiva, Lisboa, p.18.

    60.Castells, Manuel,La Era de la Informacin Economa, Sociedad y Cultura (Vol.2 El Poderde la Identidad), 1997, Madrid, Alianza Editorial, p. 29.

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    poder, Castells prope uma distino entre trs formas e origens da construo daidentidade.

    A primeira forma identitria d pelo nome de legitimadorae foi introduzidapelas instituies dominantes da sociedade industrial para estender e racionalizara sua dominao perante os actores sociais.

    A seguinte, aidentidade de resistnciafoi gerada por aqueles actores que seencontram em posies/condies desvalorizadas ou estigmatizadas pela lgicada dominao. Como tal constroem barricadas de resistncia e de sobrevivnciabaseando-se em pressupostos e princpios diferentes e, por vezes, antagnicosqueles protagonizados pela cultura dominante, que impregna todas as instituiesda sociedade. Por fim, a referncia necessria identidade projecto. Esta nova

    forma concebida quando os actores sociais, baseando-se nos materiais culturaisde que dispem, constroem uma nova identidade redefinidora da sua posio nasociedade e, ao faz-lo, buscam a transformao de toda a estrutura da sociedade.

    As duas ltimas identidades vo ser motivo de uma anlise detalhada na escritade Manuel Castells. Assim, a identidade de resistncia vai conduzir formaode comunas ou comunidades. Nos dias de hoje esta a forma mais importante naconstruo da identidade. Os movimentos feminista, ecologista, fundamentalistareligioso, tnico, ou homossexual inserem-se nesta lgica de construir formas dedefesa colectiva contra a opresso. Esta, se no for combatida, torna-se insupor-tvel para a figura identitria definida pela histria, geografia ou at pela biologia.

    No fundo, trata-se daexcluso dos exclusores pelos excludos.61No entanto, a ascenso da sociedade rede promoveu tambm uma srie de

    aces que prosseguem novos processos de construo da identidade. Nessa de-manda incluem-se, em simultneo, novas formas de mudana social. Tal deve-seao facto de esta era das redes digitais e electrnicas se escorarna disjuno sist-mica do local e do global para a maioria dos indivduos e grupos sociais. Destemodo, a chamadaplanificao reflexiva da vidatorna-se letra morta para a mai-oria das populaes que no tm poder de acesso integral s redes destes correntesorganizacionais e de informao.

    Dito de outra forma, essa planificao s possvel a uma elite que habita o

    espao atemporal dos fluxos das redes globais e os seus locais subordinados.

    62Nestas novas condies, as sociedades civis reduzem-se e desarticulam-se porquedeixa de existir uma continuidade entre a lgica de criao do poder na rede globale a lgica de associao e representao nas sociedades e culturas especficas.Neste ponto da explanao, a tese de Castells passa pela constituio de sujeitos, maneira de Alain Torraine, que denominava de sujeito o desejo de ser de um

    61.Castells, Manuel,La Era de la Informacin Economa, Sociedad y Cultura (Vol.2 El Poderde la Identidad), 1997, Madrid, Alianza Editorial, p. 30.

    62.Idem, p.33.

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    indivduo, de criar uma histria pessoal, de outorgar sentido a todo um mbitode experincias da vida individual.63

    nesta constituio de novos sujeitos, que brotam de um ncleo do processode mudana social, que se vai tomar um caminho diferente do prosseguido atagora. Os sujeitos assim originados j no obedecem aos modelos de construoantigos. J no o fazem fundando-se nas sociedades civis, que passam por um pro-cesso de desintegrao completo. As suas razes so bem outras. Estes sujeitos soo prolongamento da resistncia comunitria, que em potncia pode assumir novasformas de embate de ndole mais ofensivo. neste caso que a afirmao das iden-tidades projectose torna uma necessidade imperiosa. Nas sociedades ocidentais e em Portugal, como no conjunto da Europa agrava-se impiedosamente o fosso

    entre ricos e pobres. A lgica do novo capitalismo global s veio intensificar essatendncia, ao invs de lhe pr cobro, e no meio deste complexo quadro escolaque compete garantir a normalizao social e a adaptabilidade/adequabilidade dosindivduos. Quem leuLaranja Mecnica64, ouBrave New World,65 sabe que todaa doutrinao e normalizao tm um limite; e quem viu milhares de carros quei-mados em Frana por adolescentes em fria, recorda as palavras de Marcuse: Ateoria crtica da sociedade no possui conceito algum que possa cobrir a lacunaentre o presente e o futuro; no oferecendo promessa alguma e no ostentandoxito algum, permanece negativa. Assim, ela deseja permanecer leal queles que,sem esperana, deram e do sua vida Grande Recusa. No incio da era fas-

    cista, Walter Benjamin escreveu: Nur um der Hoffnungslosen willen ist uns dieHoffnung gegeben. Somente em nome dos desesperados nos dada esperana.66

    Da crise de legitimidade identidade projecto

    Parece vivermos num tempo em que somos simultaneamente actores e testemu-nhas de um novel mundo feito exclusivamente de mercados, redes, indivduos eorganizaes estratgicas aparentemente governados pela teoria econmica, go-vernados por modelos, isto , por expectativas racionais (da nova e influenteteoria econmica), excepto quando esses indivduos racionais disparam de re-

    pente sobre o seu vizinho, violam uma criana ou envenenam o ar do metro comgs Sarin.67

    63.Ibidem.64. BURGESS, Anthony,A Laranja Mecnica, RBA Editores, col. Narrativa Actual, sd, Lisboa.65. HUXLEY, Aldous, Admirvel Mundo Novo, col. Dois Mundos, Livros do Brasil, 2002,

    Lisboa.66. Marcuse,Herbert,O Homem Unidimensional: a ideologia da sociedade industrial, 1973,

    Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, p. 235.67.Castells, Manuel,La Era de la Informacin Economa, Sociedad y Cultura (Vol.2 El Poder

    de la Identidad), 1997, Madrid, Alianza Editorial, p. 394.

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    Neste mundo recente, novomas cada vez menos admirvel, parece at nohaver lugar para as identidades se afirmarem. Sinal dos tempos, no entanto, tem-se assistido, nos ltimos anos, a uma irrupo de fenmenos que contradizemtal tese. Uma vigorosa pliade de identidades de resistncia vem-se entrincheirarnos parasos comunitrios negando-se a serem varridos pelos fluxos globais e

    pelo individualismo radical.68 certo que estas resistncias tm as mais varia-das provenincias. Desde aqueles que so oriundos dos valores mais tradicionaisapegados a Deus, Ptria e Famlia, at aos movimentos sociais pr-activos comoos movimentos feminista, ecologista e de liberao sexual. Ora, estas identidadessituadas neste registo acabam por ser nos dias de hoje to decisivas na sociedaderede como so os projectos individualistas que resultam da dissoluo das antigas

    identidades legitimadoras que constituram a sociedade civil da era industrial69.Estas entidades colectivas apresentam, no entanto, lacunas e outras omisses

    parcelares. Elas, em primeiro lugar, resistem certo mas no estabelecem pon-tes de dilogo ou outras formas de comunicao com o Estado. Das raras vezesque esses encontros fortuitos acontecem sempre para negociar e lutar em nomedos seus valores e interesses especficos. Devido a esse factor, as identidades deresistncia raramente comunicam entre si pois os seus dspares interesses no ofacultam. Por fim, as identidades desta natureza movem-se entre princpios muitoredutores de dentro/fora, entre ns/outros que colocam mais entraves do que pro-priamente capacidade expanso sua natureza.

    Numa panormica geral, Castells apresenta assim os vrios os gneros de iden-tidades que se movem e povoam os novos tempos da sociedade rede. Por um ladotemos a as elites globais dominantes que habitam e mobilizam esta extenso defluxos que tendem a ser formados por indivduos sem identidade (cidados domundo). Do outro lado da trincheira temos gente que resiste privao dos di-reitos econmicos, culturais e polticos e que se sente atrada pelas identidadescomunitrias: Em torno dos aparatos do Estado, das redes globais e dos indiv-duos centrados em si mesmos, tambm existem comunidades formadas em redorda identidade da resistncia.70 claro que a sua co-existncia est longe de serpacfica. Estes elementos no se articulam em conjunto pois as suas lgicas de

    aco dissemelhantes fazem-nos excluir-se mutuamente.A observao desta sequncia de resultados, ainda que provisrios, nos movi-mentos sociais e dos processos polticos faz fundar a tese de Castells na questochave do surgir dasidentidades projecto. A enunciao refere que elas, em potn-cia, seriam capazes de reconstruir um gnero de sociedade civil e, ulteriormente,um novo Estado.

    68.Castells, Manuel,La Era de la Informacin Economa, Sociedad y Cultura (Vol.2 El Poderde la Identidad), 1997, Madrid, Alianza Editorial, p.394.

    69.Idem,p.395.70.Idem, p.396.

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    At l um longo percurso ainda tem de ser percorrido, no sendo certo nuncaque essa demanda alguma vez se atinja o propsito inicial. O que seguro quese pode desde j apontar a fonte de onde so originadas as identidades projecto.Sabendo que para trs ficaram as antigas identidades da sociedade civil da eraindustrial e dadas as razes tericas e os argumentos empricos, elas surgem entodo desenvolvimento das identidades de resistncia actuais. Tal sequncia nosignifica que uma comunidade que se construa em redor de uma identidade deresistncia, concomitantemente, tenha de evoluir de seguida para a construo deumaidentidade projecto. Ela pode, pura e simplesmente, manter-se apenas comouma comunidade defensiva, ou at, em ltima instncia, converter-se num grupode interesse, unindo-se lgica de negociao generalizada.

    As novas caractersticas da sociedade rede como a globalizao, a inter-conexoorganizativa, a reestruturao capitalista, a cultura da virtualidade do real ondesubjaz a primazia da tecnologia pela tecnologia so originadoras das identi-dades projecto, que aproveitam as fissuras e os rasgos fracturantes que a era dainformao traz estrutura social.

    Se neste cadinho que podemos procurar a gerao das novas identidades, tambm no mesmo lugar que se podem encontrar as fontes da crise do Estado eda sociedade civil tal como estavam representadas na era industrial. Estas tam-bm so as foras emergentes contra as quais se organiza a resistncia comunal,com projectos de identidade que surgem potencialmente nessas zonas de fron-

    teira, conduzidos por aqueles que se sentem excludos do sistema. A resistnciae os projectos contradizem, assim, a lgica dominante da sociedade rede, empre-endendo lutas defensivas e ofensivas que envolvem, segundo Manuel Castells, ostrs mbitos fundacionais desta nova estrutura social: espao, tempo e tecnologia.

    Na dimenso espacial, asociedade redepossui uma lgica sem lugares, o do-mnio social caracterizado por um espao de fluxos que surgem algures, paralogo depois desaparecerem sem deixar vestgios. Para contrariar tal lgica a re-sistncia faz a defesa, por vezes inflamada, do seu espao, dos seus lugares. Emrelao ao aspecto temporal, se a resistncia reclama a sua memria histrica e aconsequente permanncia de valores, asociedade redeest mais interessada empromover a dissoluo da histria num tempo atemporal, celebrando o efmeroque sucede na cultura da virtualidade real.

    Por fim, chegando ao mbito tecnolgico da questo, assiste-se nos dias dehoje a uma idolatria desmesurada pela tcnica e pelo maqunico. Utilizando umatecnologia comunicacional em favor de uma lgica desconstrutora das redes in-

    formticas auto-reguladoras, todos estes interesses so censurados pelasidenti-dades de resistnciaque continuam a utilizar a tecnologia para uma comunicaohorizontal, afastando a nova idolatria que recai sobra a tecnologia, e no esque-cendo ainda os valores transcendentais que fundam muitas das suas pretensesenquanto identidades colectivas.

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    Chegados a este ponto, para Castells conveniente fazer uma referncia questo do poder. A um poder que est a mudar de mos, certo, mas cada vezmais arredio a qualquer inventariao ou fixao. verdade que o poder j nose concentra nas instituies como o Estado, nas organizaes como as empresascapitalistas de outrora, e muito menos nos chamados controladores simblicoscomo as empresas mediticas e as igrejas, aparatos da sociedade civil da era in-dustrial. O que se passa que o poder actualmente se encontra disseminado edifundido nas redes globais de riqueza, informao e imagens que circulam e setransmutam num sistema de geometria varivel e geografia desmaterializada.71

    Facto inquestionvel: o poderno desaparece. Ele segue regendo a sociedade,dando-nos forma e dominando-nos. Com modos mais sofisticados e subtis at.

    Enquanto isso, a forma de poder que o Estado luta desesperadamente paramanter est a desvanecer-se. O seu exerccio cada vez menos efectivo aparaos interesses que pretende servir. Os Estados podem disparar, mas uma vezque o perfil dos seus inimigos e o paradeiro dos seus contendores so cada vezmenos claros, tendem a faz-lo ao acaso, com a probabilidade de disparar sobresi mesmos72.

    A era da informao traz consigo um poder diverso. Este ao mesmo tempoidentificvel e difuso: Sabemos o que , no entanto nada podemos fazer com ele

    por que uma funo de uma batalha interminvel em torno dos cdigos culturaisda sociedade.73 Associado a este motivo que Castells d extrema importncia

    construo das identidades nesta estrutura do poder em constante mudana. atravs das identidades que se formam interesses, valores e projectos em redor daexperincia. Ao negarem-se a dissolver-se, estas comunidades estabelecem umaconexo especfica entre natureza, histria, geografia e cultura.74.

    Sujeitos emergentes da era informacional esto j no terreno de disputa. Sa-bemos que muitos destes movimentos sociais surgem da resistncia comunitria anunciada globalizao, reestruturao capitalista e organizao em rede eao prprio descontrole informacional. Perfilando-se nesta primeira linha de par-tida esto ecologistas, feministas, fundamentalistas religiosos e/ou nacionalistas eaindalocalistas. Estes so os novos sujeitos que a sociedade rede tambm est a

    criar nas suas franjas. Sero os primeiros a serem detectados, mas outros, possi-velmente, estaro j a caminho. A verdade que estas entidades que expressamprojectos de identidade orientados para a mudana dos cdigos culturais devemtambm ser mobilizadoras de smbolos. Manuel Castells d como exemplo des-tes mobilizadores desde o comandante Marcos, do movimento zapatista, at Jordi

    71.Castells, Manuel,La Era de la Informacin Economa, Sociedad y Cultura (Vol.2 El Poderde la Identidad), 1997, Madrid, Alianza Editorial, p.399.

    72.Ibidem.73.Ibidem.74.Ibidem.

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    Pujol, centralizador das vontades autonmicas da Catalunha. Estes so os cha-mados profetas no dealbar de mais um sculo. Para o bem e para o mal, comotristemente sabemos num mundo ps 11 de Setembro.

    Nestes movimentos sociais h uma forma nova de organizao e intervenointer-conectada e descentralizada, que reflecte e ao mesmo tempo contrasta coma lgica dominante da sociedade informacional. As redes criadas no interior des-tas identidades emergentes, muito mais que organizar a actividade e partilhar ainformao so as produtoras e reais distribuidoras dos denominados cdigosculturais: Este o carcter descentralizado e subtil das redes de mudana so-cial o que faz com que seja to difcil perceber e identificar os novos projectosde identidade que esto a caminho. (. . . ) A histria pelo poder da identidade

    continua75.

    Concluso

    Essa urgncia de identificar e construir novos projectos de identidade aindamaior numa altura em que as habilitaes se fragmentam, onde a responsabili-zao do trabalhador cada vez menor, as mquinas, afinal, so cada vez maisamigveis, e a interferncia no processo completo de produo j residual:Ora as contradies deste modelo econmico manifestam-se no modelo educa-tivo e social. Estas contradies irrompem at como se fossem contradies dosistema escolar.

    A escola surge muitas vezes como campo de experincias paliativas e de ate-nuamento destes desajustes sentidos na sociedade. Medidas que esto votadas aofracasso mas que servem, no entanto, os objectivos. que, assim, a sociedadetem sempre sua merc uma instituio que lhe d oportunidade para desviar asatenes das esferas institucionais que tm mais culpas e responsabilidades.76

    Perante um quadro pouco famoso, onde a crua realidade mostra a profunda inope-rncia do sistema educativo para combater as assimetrias sociais, no conseguindomodificar, nem para melhor nem para pio