silas de paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com silas josé de paula feita...

20
Silas de Paula Fotógrafo e Professor

Upload: hatuong

Post on 23-Mar-2019

228 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

Silas de PaulaFotógrafo e Professor

Page 2: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo
Page 3: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo
Page 4: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

evistce:ntrevista

trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010

Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo - com forte influênciaa imigração italiana. Você disse que eraadição toda família ter um padre. O que

ez um menino de doze anos se candidatara esse posto?

Silas - Primeira coisa: fugir de casa. Comdoze anos e uma família de sete filhos com

ais uma sobrinha, um sobrinho, uma casaenorme onde tinha de dividir tudo, nada me-lhor do que fugir de casa. E a melhor forma,a única que tinha, era ser padre. Mas eu nãoqueria ser padre, queria sair de casa. Alémda fascinação de sair de um local como Cas-elo e ir pra Ribeirão Preto, em São Paulo,

que era a mesma coisa que sair daqui pralua. Um menino de doze anos que não tinharodado mais que cem, cento e poucos qui-lômetros. Era uma fascinação muito grande.

Yuri - E a que você atribui esse desejotão - na minha opinião - precoce, de querersair?

Silas - Olha, eu, na realidade, desde pe-queno achava que nunca ia parar em lugarnenhum, que ia viajar a vida inteira. Achoque viajar é uma das melhores coisas domundo, uma das melhores experiênciasque a gente tem. E uma dessas coisas era irpro seminário (de Ordem Agostiniana, ins-pirada em Santo Agostinho - argelino quefoi padre, bispo, teólogo, filósofo e doutri-nador da Igreja Católica e viveu entre 354 e430. A Ordem foi fundada em 1244, na Itá-lia, e chegou ao Brasil pela primeira vez em1693, estabelecendo-se definitivamente em1899). A outra era ir trabalhar com os índios,que na época que eu era menino tinha essahistória dos padres que iam pro Amazonas,iam pra África. Então, eu não estava muitopreocupado com Deus ou qualquer coisanesse sentido, não. Era muito mais uma ex-periência sair de Castelo, uma cidade quena época dava um tédio horroroso.

Maíra - Na sua época de seminário, vo-cês não tinham nenhum tipo de lazer. O la-zer acabava sendo a traquinagem, fazer ooroibido e sempre ser punido. Como foi ser

a criança e ser privado de lazer, que é~""a coisa inerente às crianças? Como é que

ês lidavam com isso?Silas - Olha, na realidade, nunca me fez

: ão acredito que eu-tenha ficado trau--- zado com isso, não. Nós inventávamos

o nosso lazer. Porque essa relação de auto-ridade com os padres ... Era uma disciplinatremendamente rígida, mas a gente apron-tava. Aprontava, ficava de castigo, às vezesapanhava fisicamente, inclusive. Mas erauma diversão enorme. Acordar de noite efazer padre sair correndo lá do quarto prasaber o que estava acontecendo! A gentese divertia muito, se vingava, não tinha mui-to uma história de guardar um rancor. Querdizer, hoje, lembrando disso, ficava muitochato, porque a gente rezava muito, estuda-va muito e brincava pouco. Alguém que temdoze, treze anos, passar o dia rezando ... ouvai pro céu ou vai pro inferno, minha mãeque dizia isso. Porque quem vai pra seminá-rio ou dá pra padre ou dá pra sem vergonha.Eu fiquei no meio.

Fernanda - Na pré-entrevista, você dis-se que era muito religioso. Posteriormente,você rompeu com a Igreja Católica. A expe-riência no seminário teve alguma coisa a vercom isso?

Silas - Não, acho que não. Eu acho queé muito mais a minha vida. Eu deixar de serreligioso aconteceu bem depois de eu dei-xar o seminário. Na realidade, quando dei-xei o Seminário ainda era bastante religioso.Nunca fui religioso fanático, sabe. Eu rezava,acreditava em Deus e fazia promessa, essascoisas todas normais de um católico prati-cante, filho de uma família italiana, católi-ca. Mas nunca ... Eu acho que eu fui come-çar a perder essa relação com uns dezoito,dezenove anos, vinte anos. Com a própriavida, né? Comecei a perceber determinadasquestões, principalmente com a Igreja Ca-tólica, que me afastaram profundamente dequalquer tipo de religião. Passei a ter muitaraiva de padre, de freira, de qualquer coisadesse tipo. É lógico que dentro do próprioSeminário aconteceram algumas coisas queinfluenciaram bastante, né? A postura de al-guns padres ...

lana - Tipo o quê?Silas - Os padres, com raríssimas

exceções, eram muito filhos da puta, masmuito, muito mesmo. Era uma relação deautoridade muito forte, de um moralismoterrível. Fui expulso do altar uma vezporque esqueci - era em latim - a respostaque tinha que dar pro padre, um italianoque tinha fugido da Guerra Civil Espanhola

SILAS DE PAULA 27

Silas nasceu dia 15de dezembro de 1950,à 1h30 da madrugada,pelas mãos de umaparteira. É sagitariano comascendente em libra.

Filho de Ecir Silas dePaula e Etelvina Tassis dePaula, Silas é o terceirode sete fili1OS, um deles"de criação". São quatrohomens e três mulheres."Uma metade branca, ou-tra morena".

Page 5: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

Também teve uma "Dln-da", uma mãe de criação,Maria Ana Zambon. Atéhoje, quando visita Caste-lo, ela prepara a comidadele e esconde um peda-ço maior de carne debaixodo arroz. Para ela, Silas éo "Pirila",

Quando foi convidadopara ser entrevistado, deucomo resposta um "não"bem redondo. No minutoseguinte, quando lanafalou que era uma pena eteríamos de convidar outrapessoa, aceitou. "Masvocê pode pensar e medar a resposta depois". "Eujá não disse que aceito"

(Conflito bélico na Espanha que durou dejulho de 1936 a abril de 1939). Então vocêpodia imaginar: o cara era um desastre totale absoluto, de um autoritarismo horroroso.E ele se virou - eu estava ajoelhado naigreja cheia de fiéis, acho que era umadas primeiras missas da manhã, estavasempre lotado - e me expulsou na frentede todo mundo. Fiquei tremendamenteenvergonhado, você imagina ser expulsodo altar. Além de envergonhado, acheique ia pro inferno, né. Porque não era sóa relação com as pessoas que estavamali fora, mas você vai expulso de um altardivino, de alguma coisa desse tipo. Além deenvergonhado, fiquei um pouco assustado.

Roger - Por que tanto castigo assim? Eranormal?

Silas - Não, porque a gente aprontava.Você tinha uma educação muito rígida. Porexemplo, a gente entrava no prédio da es-cola - o seminário só tinha prédio - e nãopodia mais falar, todo mundo tinha de ficarem silêncio. Durante a semana praticamen-te ninguém podia falar na hora do almoço,a não ser quando o padre soltava uma se-nha e a gente falava "deo gracias" (Graças aDeus, em Latim), e podia falar. Se não, tinhade almoçar em silêncio e não conversáva-mos com ninguém do lado. A manhã intei-ra era tendo aula e rezando ou estudando,com um aluno sentado na cadeira lá da fren-te, marcando quem não estudava.

Roger - Por que o senhor aguentou tantocastigo assim?

Silas - Veja bem o que eu estou lhe di-zendo. Não era tão traumático, entendeu?Eu não sei ... A gente sabia que ia ser cas-tigado, estava esperando e o padre botavatodo mundo lá embaixo ou em pé ou todomundo ajoelhado com os braços em cruz(abre os braços). A gente se divertia. Erauma coisa meio maluca. Talvez por não ter

lias padres, com, . -ranssimas exceçoes,

eram muito filhosda puta, mas muito,

muito mesmo. Arelação era uma re-lação de autoridademuito forte, de ummoralismo terrível."

tanto ... Era uma forma de rebeldia. Mas aí noúltimo (ano) eu saí, já estava de saco cheio.Não tinha coragem de pedir para ir embora,porque ia ser complicado pra minhafamília,então eu passei a aprontar muito mais.

Evelyn - Na pré-entrevista, você disseque não acreditava em Deus, mas queriaacreditar porque achava que sua hora, ahora da sua morte, estava chegando. Porque você gostaria de acreditar? Você tem al-gum arrependimento? Alguma coisa sobreo que você pediria perdão?

Silas - Ah, não, não. É que eu queria fi-car pra semente. Esse negócio de morrer. ..Não gosto dessa parte não. E, na realidade,estou muito mais próximo de morrer do quevocês. Pelo menos como ordem natural dascoisas, eu vou morrer primeiro. E a sensa-ção de que tudo se acaba - ou não é nemse acabar, de qualquer jeito acredito emtransformações. Eu acho que nada se per-de, tudo se transforma - a ciência funciona'desse jeito -, mas o meu medo ou qualquercoisa em relação à morte é a perda da me-mória. A memória é muito importante. Lem-brar das coisas, das pessoas. Essa questãoé fundamental pra mim, mas é só isso. E élógico que tenho medo da morte e, se euacreditasse em Deus ou em uma outra vida,tudo ficaria mais fácil, pelo menos acredi-taria que essas questões iriam permanecer,mas não acredito, não. Já tentei e pra mimas coisas realmente se acabam e você viraparte de uma transformação maior desseuniverso, qualquer coisa desse tipo. Masnão da forma como ela é pregada: a gentevai pro céu, ou vira anjo ou vira santo. Qual-quer coisa nesse sentido, não acredito mui-to não. Apesar de morrer de medo de alma,isso é outra questão, não tem nada a ver.

Iana - Na entrevista que fizemos com oZiraldo (primeiro entrevistado desta edição),ele disse que escrever era uma maneira queinventou de driblar a morte. Qual foi a formaque você inventou de driblar a morte?

Silas - Ser professor universitário. Nãoé só ser professor universitário, é construiralguma coisa. De alguma maneira nós esta-mos aqui - e talvez isso seja algo meio reli-gioso, que eu digo que não sou - por algu-ma razão e pra fazer alguma coisa. Pro bemou pro mal. .. E acho que o único meio quevocê tem de driblar é construir alguma coi-sa. Eu acho que tem um fundo de verdade:escrever um livro, ter um filho, plantar umaárvore. Tem alguma coisa que todo mundojá falou de uma outra maneira. Não dá pravocê passar impunemente por essa vida.

Ingrid - SiIas, você falou que perdeuessa parte da religião católica perto dos vin-te anos e você percorreu o mundo. Em ne-

REVISTA ENTREVISTA I 28

Page 6: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

nhum momento você se apegou a outra féou precisou de algum ser superior?

Silas - Olha, se você não tem algum tipode meta ou de perspectiva de vida ou umacrença, qualquer que seja ela, a vida ficamuito difícil. Eu tenho algumas crenças. Amaior crença é no ser humano e isso mefaz trabalhar nessa perspectiva. É um tipode crença como qualquer outra. Acho quequem não tem crença nenhuma tem algumadificuldade de sobreviver, né? Que perspec-tiva que tem na vida? O que você ta procu-rando? O que quer fazer? Nada? "Não sintonada, não penso nada". Acho muito difícilviver desse jeito.

Maíra - Você falou que desde peque-no sabia que queria viajar muito, que nãoqueria parar em nenhum lugar. Você achaque isso foi desenvolvido ou agravado pelaquestão de passar dois anos e meio em umaclausura, durante a época do seminário?

Si Ias - Não, acho que não. Eu não sei,mas acho que todo mundo gosta de viajar.É uma coisa que já vem dentro da gente,como uma curiosidade nata por coisas quevocê não conhece, por coisas que mudemalguma coisa. E eu acho que a viagem lhedá muito isso, lhe dá conhecimento, umasérie de perguntas que você tem. Você ima-gina viver em uma época que não tinha in-ternet ... Se você quisesse ver alguma coisa,tinha de ir lá. Não dava pra olhar aqui, abrire ver o que está acontecendo. Fui conhecertelevisão com quinze anos de idade, gen-te. Não sou tão velho. Já tinha televisão,mas em Castelo não tinha. Acho que essanecessidade de ver coisas vem com todomundo. Por que Marco Polo (Mercador eexplorador italiano, nascido no século XII/,que ficou conhecido por viajar pelo mundoe relatar suas aventuras, reunidas em várioslivros que povoaram o imaginário ocidental)contou tantas histórias? Por que tanta gentegostava de ouvir as histórias dele? Por queele viajou pelo mundo inteiro? Essa coisa émuito natural do ser humano, não acho queo Seminário tenha tido alguma interferêncianesse processo, não. Acho que isso, no Se-minário, já era o início de algo que eu estavaquerendo e não ficar também. Chega umahora no Seminário que você pira, né?

lana - E aí você quis sair do seminário.Silas - É, passei o último ano no

seminário e acho que, se eu saí seis diasde recreio, foi muito. O resto eu estava decastigo. Todos os dias de castigo. Todos osdias, sem exceção, ou era rezando ou era ...(de castigo).

lana - Naquela época, você voltou praCastelo e depois foi pra Niterói, porquesua irmã (Lizete de Paula, a irmã mais

velha) teve vontade de fazer Arquitetura e afamília toda se mudou (menos o pai, Ecir dePaula, que continuou em Castelo). Em umaconversa, você disse que teve um filme,naquele período (Silas tinha 16anos), que temarcou, A Mulher das Dunas (filme dirigidopelo japonês Hiroshi Teshigara, de 1964. Foiindicado ao Oscar nas categorias "melhordiretor" e "filme estrangeiro" e ganhou oPrêmio Especial do Júri, em Cannes). Euqueria que você falasse da sensação ao vero filme e da vontade de fazer cinema depoisque viu.

Silas - É, eu tenho uma irmã (Lizete) queé mais ou menos a minha guru em uma sé-rie de questões. Tem uma placa no colégio,na minha cidade, com o nome dela comosendo uma das melhores alunas que passa-ram pela escola. Era uma coisa meio com-plicada, porque eu odiava estudar. E quan-do ela tirava noventa e cinco, chegava emcasa chorando. Quando eu tirava setenta,eu chegava dando salto mortal de felicida-de, porque normalmente ficava reprovado.Na realidade, sempre foi uma figura meioimportante, como irmã mais velha, na vidade todo mundo. E, no Espírito Santo, nãotinha escola de Arquitetura. Ela convenceumeus pais a fazer vestibular no Rio (de Ja-neiro) e passou. Meu pai ficou meio assimcom a menininha de dezoito anos morar so-zinha no Rio... E mudou a família inteira porcausa dela. Nós fomos morar em Niterói.

E a Lizete na arquitetura, com uma sériede artistas, foi começando no movimentopolítico. Ela começou a faculdade exata-mente em 64. Deixou de ser uma filha deMaria, uma pessoa tremendamente cató-lica, e se engajou numa militância políticamuito grande - essa mudança de uma garo-ta do interior pra capital exatamente depoisdo Golpe de 64. E eu andava muito com ela.Nunca tinha visto um cinema de arte. Cas-telo tinha um cinema (risos) de matinê, finalde semana e aqueles filmes bem bestas - eeu gosto até hoje, mas eles são meio bes-tas. Nada de um filme mais ou menos sé-rio. E ela me levou uma vez pra assistir umfilme no Museu da Imagem e do Som. Um

SILAS DE PAULA I 29

Quando foi para os Es-tados Unidos, Silas aban-donou o "Terceiro Científi-co", correspondente, hoje,ao terceiro ano do EnsinoMédio. Mesmo contraria-do, o pai lhe deu a eman-cipação, necessária paraum jovem de 21 anos sairdo país.

Para cursar Comunica-ção Social na UFC, apro-veitou-se do "Artigo 99",uma espécie de Supletivo,através do qual a pessoaconclui a formação escolarem menos tempo.

Page 7: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

Foi incentivado a fazerVestibular pelo amigo Ho-rácio Frota, que ingressouna Universidade naquelemesmo ano e hoje é so-ciólogo e professor daUniversidade Estadual doCeará.

Lizete de Paula, a irmãmais velha, abandonou aArquitetura e hoje é "bru-xa", como define Silas.Especializou-se nas tera-pias com Florais de Bache também se arrisca comoastróloga.

filme japonês, tipo cinema de arte, aquelefilme bem chato. Demora pra cacete. Era AMulher das Dunas e fiquei fascinado coma fotografia de cinema. Um filme em pre-to e branco, de um cara que caça insetos,vai preso numa comunidade - você podecolocar essa comunidade dentro do Ceará,porque é um local de dunas, de areia - e éjogado dentro de um buraco nas dunas pratirar areia pra essa comunidade. E colocamuma mulher junto com ele. Essa é a histó-ria. Não lembro muito do roteiro, da históriado filme. Lembro da fotografia, de detalhes,da câmera passando pelos corpos, da luz -uma luz meio dura. Fiquei fascinado e faleiassim: "vou ser fotógrafo de cinema". Na-quela hora eu resolvi que ia ser fotógrafode cinema. Não fotógrafo normal, eu queriafazer fotografia de cinema. E durante muitotempo eu tentei. Todo mundo sempre quisser diretor, ator, não sei o quê. Eu queria serfotógrafo. De cinema. Por isso que virei "fo-tógrafo-fotógrafo" (enfatiza). Que a minhaidéia era fazer fotografia pra fazer cinema.

Anamélia - E decidir ir para os EstadosUnidos foi movido pela vontade de fazercinema?

Silas - É uma coisa mais doida, vejabem. Nós éramos quatro amigos (Henrique,Sebastião e Itamar Tassis, o Tatai - ele nãolembra os sobrenomes de todos), quería-mos fazer cinema e sair do Brasil era fun-damental porque a gente estava no meiode uma ditadura. A idéia era fazer cinema,inclusive, pra lutar contra a ditadura. E aíum foi pro Chile (Tiêo), o outro (Henrique)foi pra Suécia, o Tatai foi pra Londres e eufui pros Estados Unidos. E nós fizemos umpacto de nos encontrar em Paris um ano de-pois e estudar cinema na França. E depoisvoltar pro Brasil. Com vinte anos você acre-dita, você acha que dá certo (risos). Mas senão tem dinheiro, igual à gente, não tem amenor possibilidade. E aí foi essa história,fui para os Estados Unidos e deu um desen-contro total e absoluto. Como a maior partedos brasileiros que ficam lá ilegais, fui de-portado. O Henrique foi deportado da Sué-cia, o Tatai foi preso na Inglaterra, por venda

de droga e dinheiro falso, e o Tião foi presono Chile. Foi um desastre total e absoluto.

Fernanda - E por que você escolheu osEstados Unidos?

Silas - Era o local mais fácil. Quem já ou-viu falar em imigração nos Estados Unidos,já deve ter escutado falar em GovernadorValadares (Município de Minas Gerais), ocentro mundial da exportação de gente paraos Estados Unidos. Todo mundo de lá já foi.Pode ser analfabeto, gente que trabalha emroça, ladrão, tudo. E essa história começoucom meu primo, Wanyl Colodetti, em 1960 eum pouquinho. Ele fez parte de um grupo depracinhas (soldados do Exército Brasileiro)que o Brasil mandou para integrar um corpoda ONU (Organização das Nações Unidas)no Canal de Suez (Canal que liga Porto Said,um porto Egípcio no Mar Mediterrâneo, aSuez, no Mar Vermelho), naquele litígio quesempre teve entre Egito, Palestina, Israel (oBrasil integrava a Força de Emergência dasNações Unidas e testemunhou a "Guerrados Seis Dias': conflito entre israelenses eárabes, em junho de 1967). Quando chegoulá, descobriu que os Estados Unidos esta-vam aceitando imigração. E ele não estavaestudando, era do interior, pô .. "- Opa, éuma boa dica". Então ele foi para os EstadosUnidos. Você trabalhar lá como garçom, naconstrução, qualquer desses empregos ousubempregos que tinha aqui no Brasil, eramaravilhoso, porque mandava dinheiro prafamília. Todo ano ele vinha pro Brasil, com-prava um carro velho, passava o carnaval,gastava uma grana preta! Arranjava dez milnamoradas e essa coisa foi, de alguma ma-neira, influenciando os amigos. Em uma ci-dade no interior, sem perspectiva nenhuma,quem não é filho de rico tem uma possibili-dade e as pessoas começaram a ir pros Es-tados Unidos. E boa parte da minha famíliaestava lá. Eu estava sem grana, né? "Pelomenos eu dou uma ligada pro meu primo enão vou morrer de fome". Os jovens fazemloucura, mas eles têm um pezinho atrás.Eles podem ser loucos, mas não são burros.A loucura é boa. A burrice ... só algumas.

Tales - Você disse que tinha esse propó-sito de fazer filmes pra lutar contra a dita-dura. Você teve algum envolvimento maiorcom esses movimentos contra a ditadura?

Silas - Não. Quer dizer, tive aqui depoisde bastante tempo no Ceará, quando fuidiretor do jornal O Mutirão (Jornal daimprensa alternativa cearense, fundado emsetembro de 1977. Existiu durante cincoanos, em plena ditadura militar), que eraum jornal alternativo e tal, mas nunca militeipoliticamente como, por exemplo, minhairmã (Lízete) que era do PCdoB (Partido

REVISTA ENTREVISTA I 30

Page 8: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

Comunista do Brasil), do grupo do Araguaia,que ia pra guerrilha (A Guerrilha do Araguaia- localizada às merqens do rio homônimo,na região norte - foi um movimento de lutaarmada organizado pelo Partido Comunistado Brasil, entre 1967 e 1974, que acreditavaem uma Revolução Socialista iniciada nocampo, depois da derrubada do regimemilitar). Eu era bem mais cagão. Acho queainda sou.

Maíra - Você dizia que hippie (termousado para definir parte do movimento decontracultura da década de 1960) era coisade americano e se autodescrevia como ma-luco. Esse seu estilo de vida se assemelhavamuito com o estilo dos hippies? Foi dos Es-tados Unidos que você trouxe isso?

Silas - Foi. Já tinha um pouco antes, né.Esse movimento hippie de alguma maneira,aqui no Brasil, já tinha bem antes de euir pros Estados Unidos. Pessoas já eramcabeludas, já tinha esse movimento depaz e amor, aquelas coisas todas. Até esse"faça amor, não faça guerra", da Guerrado Vietnã (Conflito armado no SudesteAsiático que durou entre 1959 e 1975,dentro do contexto da Guerra Fria) veiodo Brasil de alguma maneira. Mas a gentetinha um embate muito forte no Brasil queera a relação com o movimento político-militante contra a ditadura militar e essarelação de uma juventude que ao mesmotempo tinha uma rejeição à Ditadura, mastambém via com uma certa desconfiançatodo o autoritarismo da esquerda. Esseembate foi muito forte. Por mais quetivesse a rejeição à ditadura, a relaçãocom a esquerda era muito complicadaporque exigia posturas que, hoje, aindaacho tremendamente conservadoras. Poressas razões e talvez também por cagaço- porque nas esquerdas você tinha delutar e ser preso (risos). Apesar de que,no outro lado (dos que preferiram resistircomo malucos), nós também fomos presos,apanhamos - não tanto quanto o pessoalde esquerda -, mas era um movimentode uma juventude que era contra o statusestabelecido de alguma maneira. Fomosprocurando uma certa relação tambémcom a mesma liberdade que o pessoal deesquerda procurava, acho que só de umaoutra maneira. Acho muito difícil colocarem questão pessoas que deram a vida pordeterminadas idéias - eu não faço issode jeito nenhum - que são fundamentais,como liberdade. Mas continuo, até hoje,achando que a esquerda sempre foi, e é,tremendamente autoritária, conservadora.E esse outro lado (dos malucos), não. Comoa gente tinha um problema com os Estados

"Eu passava o diainteiro assim: aper-tando cu de galinha.Quando terminava

estava todo cagado ~Um cheiro de merdade qalinhal Era umacoisa terrível. Mas

adorava porque eraum trabalho mole

pra cacete."Unidos imperialista, nós preferíamos noschamar de malucos e sexo, drogas e rockn' roll era mais interessante do que pegarem armas (risos). Na realidade havia ummovimento interessante que era a nãoviolência ativa, mas a não-violência nãoimplicava em omissão, era uma formabem indiana do processo ... Eu acho quesão movimentos políticos e essa questãoperpassa meu processo. Primeiro que eutenho umas irmãs que eram militantes. Asmulheres eram militantes políticas e osmachos malucos.

Iana - Em relação às drogas, essa tuaexperiência com um "universo colorido" co-meçou em Nova lorque?

Silas - Ah não, começa no Brasil. A mi-nha geração experimentou muito, em todosos níveis e sentidos. E droga era uma delas(experimentações). É tanto que o receio, omedo, de drogas que tenho hoje, qualquerque seja ela - menos o cigarro que eu fumo,acho que ele vai me matar também, mas vaidemorar mais - é porque nós éramos qua-tro (Henrique, Tatai, Tião e ele), hoje só euestou vivo, todos morreram com as drogas.Então isso é algo que me assusta até hoje.

SILAS DE PAULA I 31

Fumante ha anos, aposquase duas horas sem ne-nhum cigarro, a primeirafrase de Silas após a en-trevista foi "E agora eu voufumar!".

o cheiro de cigarro noEstúdio de Fotografia daUFC surpreende os desa-visados. O odor está im-pregnado no local, masdepois de alguns minutoso nariz se acostuma.

Page 9: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

Silas tem três filhos: Lia,Tiago e Cilene. Lia é frutodo seu relacionamentocom a jornalista Ligia Gi-rão e Tiago do atual, comNívea. Os dois tambémadotaram Cilene.

Logo após o nascimen-to de Lia, Silas separou-sede Lígia e foi "pai solteiro",enquanto a mãe estavatrabalhando em Londres.As pessoas tinham medoque não cuidasse direitodela, mas muitas amigas oajudavam.

JJMeu terapeutaficava

impressionadocomo eu tinha

sobrevivido nessasloucuras todas. Umadelas foi nunca serlouco o suficiente

pra morrer".

nos. Então dá pra imaginar que, com uma pádeste tamanho (abre os braços), eu morria,né? A chefe foi com a minha cara - ou achouque eu ia morrer com a pá - e me colocou,mais uns três ou quatro, pra apertar cu degalinha. Saía uma merdinha pra limpar. Eupassava o dia inteiro assim: apertando cude galinha. Quando terminava eu estavatodo cagado! (risos) Um cheiro - imaginem- de merda de galinha! Era uma coisa terrí-vel. Mas eu adorava apertar cu de galinhaporque era um trabalho mole pra cacete. (ri-sos) Não tinha a mesma coisa dos outrosque tinha de puxar caixas cheias de peru ede galinha. E eles pagavam bem.

Vuri - Você falou sobre quão interessan-te era estar nos Estados Unidos e da impor-tância em viajar para agregar conhecimento.O que você tirou desse período que passoulá? O que mais marcou?

Silas - De alguma maneira, a gente sem-pre faz parte da história. Por exemplo, eu fuimorar perto de Woodstock (Festival de mú-sica que aconteceu em agosto de 1969, emBethel, no estado de Nova lorque, e reuniuaproximadamente meio milhão de pessoas.Símbolo do movimento hippie, o Festivalteve apresentações de diversos artistas, en-tre eles Janis Joplin, Joan Baez, Jimi Hen-drix e o grupo The Who). Não assisti ao fes-tival, mas fui morar bem perto em funçãoda música, do tempo, do movimento hippie,essa coisa todinha que aconteceu naquelaépoca.Viver nos Estados Unidos pra mimfoi muito interessante, não só por isso, mastambém pela tecnologia muito mais avan-çada. Você imagina isso em 1970 - hoje émuito maior -, era uma doidera, tinha coisasque ... Até as lanchonetes me deixavam fas-cinado, eu achava o maior barato ... Coisascoloridas ... Conhecer as pessoas e a possi-bilidade de chegar perto de uma universida-de que eu gostaria de entrar ... Eu acho quea própria vida.

Iana - Como foi a tua deportação?Silas - Saí de Nova lorque, do matadou-

ro de galinhas, porque lá não estava dan-do porra nenhuma. Eu estava trabalhando(muito) e não podia estudar. Meu sonho defazer cinema iria por água abaixo e eu ficarialá matando galinha e peru por uns dez anos,não ia sair disso. Resolvi ir pra Boston por-que era uma cidade com uma universidadee lá poderia alcançar alguma coisa. Eu erameio irresponsável e cheguei em Bostonsem dinheiro. Não consegui emprego e es-tava desesperado, na rua. Um dia eu estavaandando numa praça em Boston, meio de-sesperado, e passei por um cara - um típi-co americano: com o cabelo lá em baixo, ablusa tipo John Lennon, aquelas franjas de

Foi uma geração que entrou de cabeça.Everton - Você falou que foi para os Es-

tados Unidos somente para fazer um cursode Inglês em Miami, mas acabou permane-cendo por mais dois anos naquele país (de1971 a 1973). Como você se sustentou du-rante esse tempo?

Si Ias - A gente é louco, mas não é bur-ro. Eu sabia que não iria conseguir ficar emMiami porque não tinha dinheiro. Comprei apassagem à prestação: Rio - Miami - Novalorque. Nova lorque era onde estava meuprimo (Wanyl Colodetti). E ele me botounum ônibus pra o interior de Nova lorquepra trabalhar num matadouro de galinha,beneficiamento de galinha, essas coisas.Mas eu sabia que isso iria acontecer. Entãoeu fui preparado e consegui convencer ocurso de Inglês - acabei fazendo só a meta-de - para que me devolvessem a metade dagrana. Chorei, fiz um teatro enorme.

Roger - E o sonho de fazer cinema per-sistia paralelamente?

Silas - Lógico! Essas coisas acontecemno devido tempo. Eu não era muito ansio-so com essa história. Queria fazer, mas eutinha vinte anos, então, com toda ansieda-de, estar nos Estados Unidos pra mim já erauma coisa maravilhosa. As pessoas falavame eu não entendia nada, não sabia falar in-glês. Era uma vida bem interessante, apesarde trabalhar igual a um doido. Porque lá nobeneficiamento só tinha imigrante ilegal en-tão os caras botavam pra lascar em cima dagente ...

lana O que você fazia lá nobeneficiamento?

Silas - Tinha uma (tunçõo) que era aper-tar cu de galinha. (risos) Era uma situaçãobem interessante, mas era mais tranqüila,porque uma delas era ficar com uma pá,quase oito horas por dia, levantando gelo.Imaginem que eu tinha quinze quilos a me-

REVISTA ENTREVISTA I 32

Page 10: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

couro, o casaco bem anos sessenta - quequando olhei achei estranho. Olhei pra elee ele olhou pra mim. Era o ex-namorado deuma irmã (não era a mais velha). Ele era mi-neiro de Governador Valadares. Ele disse:"Silas, tu tá morando aonde?". "Porra eu tôfudido, sem casa, sem emprego". "Entãovamo lá pra minha casa".

Só que a casa dele só tinha doido, erauma coisa fora do comum. Todo mundodoido, todo mundo drogado, ninguém faziaporra nenhuma. Orgia e droga o dia inteiro.Aí eu conheci um cara que chamavam deGeneral. O cara era uma figura! Tinha umacara meio de Jesus Cristo, magro, alto, an-dava sempre com um casacão preto enor-me ou então azul. Ele tinha vindo de Novalorque, era um junkie (drogado), tomava he-roína e estava fudido, tinha levado umas fa-cadas em Nova lorque. Ele foi hospitalizado,quase morto, e, quando melhorou um pou-quinho, fugiu pra não ser deportado. Fiqueiamigo dele. Nesse meio tempo arranjei em-prego de bassboy (assistente de garçom).Ganhava um salário "x" mais dez por centoda gorjeta. Com esse dinheiro, saí daquelacasa maluca e aluguei um apartamentozi-nho pra eu morar. O General me procurouporque estava mal. Arranjei um empregopra ele na cozinha de uma lanchonete queficava aberta até três ou quatro horas damanhã. Ele foi trabalhar na cozinha e o donodo restaurante adorava o cara. Ele (o Gene-ral) tomava anfetamina e ficava a mil porhora: arrumava e lavava a cozinha dez vezespor dia - cozinha ficava brilhando porqueele não conseguia parar. Eu tinha feito umacordo com ele que ele iria morar comigo,mas aí eu disse pra ele o seguinte: "Tá le-gal, mas você vai ter que parar com heroínaou qualquer droga pesada, porque se nãovai dar merda. Heroína chama polícia braba.Então se você for morar comigo vai ter queme fazer uma promessa: nada de-heroína"."Não, não, eu tô afim de parar". Mas um diaele chegou pra mim e disse: "Olha, SiIas, dámais não. Eu vou comprar heroína". Eu fa-lei: "Tudo bem, mas então, por favor, saia láde casa, vá morar em outro canto". E ele foiembora. Nessa noite, eu fui preso. A políciabateu lá em casa de madrugada. Quando euouvi assim: "imigration" (imitando a voz eo sotaque do policial, risos). Eu falei: "fu-deu!". Não dava pra fugir. Abri a porta e oscaras me pegaram e me levaram preso. Agente sempre achou que ele fez um acordocom a imigração e entregou uma porção debrasileiros.

Por outro lado, tem outra história e atéhoje não sei qual é a que tem fundamento.Eu tinha dois amigos americanos completa-

mente malucos que tinham vindo da guerrado Vietnã. Um dia me falaram que ia ter umapalestra, na Universidade de Harvard (Insti-tuição de ensino superior mais antiga dosEstados Unidos, fundada em 1636, em Cam-bridge, Massachusetts), sobre o Brasil como Márcia Moreira Alves (jornalista e deputa-do federal que, em setembro de 1968, pro-feriu um discurso no Congresso Nacional,convocando um boicote às paradas milita-res em celebração ao dia da pátria. Faleceuem 2009), o cara que foi o gatilho do AI-5em 1968 (Ato Institucional N° 5, decretadodurante o governo de Artur da Costa e Silva,que dava ao presidente poderes para fecharo Congresso Nacional, caçar mandatos deparlamentares, suspender por dez anos osdireitos políticos de qualquer pessoa, sus-pender garantias do Poder Judiciário, entreoutros), o embrutecimento total da ditadurano Brasil. Ele era deputado, foi cassado efugiu do Brasil. Era uma palestra, eu lembroaté hoje, "Brasil, não é tempo de lágrimas",onde mostrava toda a tortura que era feitaem presos políticos. Quando cheguei lá,encontrei uma porção de brasileiros, umaporrada de estudantes - estudantes mesmoporque a gente era "fuleragem", tudo po-breza, era ilegal. Mas eles foram simpáticose deixaram eu ficar. A gente conversou e euassisti à palestra toda. Até hoje não sei atéque ponto esse contato, também por estarilegal no país ... Se foi o General ou se foi poreu ter ido ver a palestra do cara que a políciaacabou indo atrás de mim. Fui deportado eperdi meu tempo nos Estados Unidos. Foiuma coisa interessante quando eles me de-portaram. Fui a julgamento e pra uma pri-são, em Boston. Quase me cago de medo

"Estar na estradaera bom, estar

longe dos pais erabom. Tinha umadesculpa de que

tinha uma meta. Eramais uma desculpapara não fazer porranenhuma. Era bomdemais, era uma

vida ótima."

SILAS DE PAULA I 33

Hoje é casado com Ní-vea Lopes, veterinária eespecialista em controlede qualidade. Semprecontribui com o trabalhode Silas, como, por exem-plo, na escolha das fotosque entraram no ensaio doMercado São Sebastião.

Silas ficou tão envolvidodurante as duas horas deentrevista que não bebeuum gole sequer da águaque a equipe de produçãoreservou para ele. Só aofinal de tudo percebeu apresença da água e bebeu.

Page 11: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

Logo no começo daentrevista o celular deletocou. Meio sem jeito,pediu desculpas e disse:"Isso sempre acontece, jádesliguei o celular em umaentrevista ao vivo na tele-visão!".

Paisagem da Janela,música citada por lanadurante a entrevista, éinterpretada por MiltonNascimento. A cançãomarcou bastante ajuventude de Silas.Quando a escutou em umamesa de bar, emocionou-se, rememorando opassado.

quando entrei lá dentro. Era uma pnsaoenorme e só tinha preto, uns bichão destetamanho (faz gesto com as mãos para mos-trar o tamanho dos presos). Mas não tivenenhum problema a não ser com um porto--riquenho da minha cela que me acusou deter roubado o relógio dele e a gente acabousaindo na porrada.

Anamélia - Você falou que foi deportadoe nessa volta para o Brasil o sonho de fazercinema persistiu. Você decidiu ir para Ma-naus em busca de trabalhar e comprar umacâmera. Como foi essa trajetória?

Silas - Naquela época, esse período deestrada era uma coisa fabulosa. Primeiroque maluco era tudo filho de classe média,não era coisa de pobre. No meu tempo eratudo de classe média. A elite sabe cuidardos próprios filhos e dos filhos dos outros,ela não gosta é de gente pobre. A genteera bem aceito nas cidades, embora a gen-te fosse preso. A polícia nunca gostou demaluco. Todo canto onde a gente chegavaera preso. Mas aqui em Fortaleza, quandoeu vinha para a Beira-mar (em 1973, Silasmorou três meses no bairro Castelo En-cantado, quando estava indo para Manaus.Para arranjar dinheiro, vendia o artesanatoque produzia: brincos, colares, pulseiras ebolsas de couro), as mães vinham com asfilhas para conversar com a gente. Ficáva-mos doidos para namorar as meninas e nãotinha o menor problema. Não éramos vistoscomo marginais. Se não fosse a polícia, avida seria maravilhosa. Nesse processo, oque atrapalhou a viagem foi ser preso váriasvezes.

Anamélia - E o que tanto vocês busca-vam, era só a vontade de fazer cinema ou ti-nha alguma outra coisa que movia o grupo?

Silas - Olha, com vinte anos não dápara ter certeza de nada. Estar na estradaera bom, estar longe dos pais era bom.Tinha uma desculpa de que tinha umameta. Era mais uma desculpa para nãofazer porra nenhuma. Era bom demais,era uma vida ótima. A gente vivia na praiafazendo pulseirinha, olhando pras meninas,passeando, fumando maconha. Não

precisava de dinheiro.Anamélia - Você sente falta dessa época

de maluco?Si Ias - Não! (risos)Anamélia - O que sobrou desse maluco

viajante?Silas - Muito aprendizado e ser menino

pro resto da vida. Eu dei carona uma vezpra um cara, indo pra Recife. Ele olhou pramim e disse: "Silas, você se aburguesou!"(risos), porque eu estava de carro e o caraestava na estrada há uns dez ou quinze anossem parar. Estava na estrada, sem dente,todo fudido.

Evelyn - E o que te fez largar essa vidade carona (de viagens)?

Si Ias - Uma namorada (Socorro Salda-nha, psicóloga) aqui no Ceará. Me apaixoneie fui morar com ela. E lógico que as mu-lheres não querem esse negócio de malucofedorento sem tomar banho, querem coisamais interessante e ela me colocou nos ei-xos. Por causa de uma namorada. Só isso!

Everton - Na pré-entrevista você falouque o primeiro contato com a fotografia foiuma câmera Yashica (marca japonesa fun-dada em 1949) de sua irmã mais velha, jun-to de um livro (Ulntrodução à AntropologiaVisual': de Vatimo Canevacci) de Antropo-logia Visual com a frase: "Esta é a tua arma.Saiba usá-Ia". Em que você mirava?

Silas - Eu briguei com minha irmã, dissea ela que atrapalhou minha fotografia porvinte anos, por causa dessa frase horrorosa.Mas ela tinha uma idéia fundamental: tra-balhar com a fotografia como instrumentopolítico, de rupturas, de mudanças ... Achoque a fotografia não é isso, nem consegue,nem deve conseguir. Eu fazia uma fotogra-fia muito dolorida, de muita dor, de muitadenúncia e acho que isso atrapalhou meuolho durante um tempo enorme. Porque euolhava pra dor, olhava pra miséria, muitoem cima da frase da minha irmã - pelo res-peito que tinha a ela e ainda tenho até hoje.

Everton - E esse seu olhar mudou? Hojeo que você procura ver?

Silas - Não que eu tenha deixado de vera dor ou a dureza das coisas, mas a minhafotografia não é mais uma fotografia quepretende mudar o mundo ou denunciar asmazelas do mundo, declarar guerra aos po-derosos. Não é mais isso. É muito mais umarelação de uma poética, de uma política queeu tenho com o meu cotidiano e procuro ex-pressar de alguma maneira. Só isso.

Iana - Como foi o salto de fotógrafo ama-dor para fotógrafo profissional?

Silas - O bom de ser fotógrafo é que vocêpode ir direto e falar assim: "eu sou fotógra-fo". Todo mundo acredita. O fotógrafo pode

REVISTA ENTREVISTA I 34

Page 12: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

a ale r porra nenhuma, mas se falar "euotógrafo" todo mundo acredita. Agora

e a "eu sou advogado, eu sou médico", éa história. Agora fotógrafo todo mundo

de ser. E isso facilita a vida de algumaaneira, principalmente em uma época eme eu não tinha universidade. Tinha uma

amorada que era psicóloga e fiquei meio ...omem tem essas besteiras, não pode ficar

por baixo. Então ser meio artista, meio fo-ógrafo me dava um certo status de não serão vagabundo, deixar de ser maluco para

ser um profissional. A fotografia me possi-bilitou trabalhar direto sem precisar fazeraculdade, sem precisar ter diploma.

Yuri - Como que se deu esse aprendiza-do? Quem foram seus professores de Foto-grafia?

Silas - Meu pai fazia fotografia desde queeu me entendo por gente. Mas eu nunca en-trei num laboratório de fotografia com meupai. Na época não tinha câmera automática,então tinha que medir a distância e muitasoutras questões. Mas, na realidade, quandoeu fui para os Estados Unidos já comecei acomprar livros de fotografia. Mas, aqui noCeará, duas figuras foram fundamentais naminha vida: uma delas foi o José Albano(Além de fotógrafo, é ambientalista e co-nhecido pelo modo de vida alternativo. Viveem Sabiaguaba, bairro do litoral fortalezen-se, em uma casa de taipa, sem muros, onderealiza uma reunião aberta em noite de luacheia) e a outra foi o Chico Albuquerque(Viveu entre 1917 e 2000 e é um dos maisrenomados fotógrafos cearenses. Fotogra-fou os bastidores de "It's ali true", de OrsonWelles, em 1942. Fez a primeira fotografiapublicitária brasileira, em 7948), além detodos os amigos com os quais eu convivina minha juventude de fotógrafo: o Gentil(Gentil Barreira. Autodidata desde os 12anos, abandonou os cursos de Arquitetura eComunicação Social, e tornou- se fotógrafoprofissional. É precursor da fotografia publi-citária digital no Ceará), Maurício (Albano, ir-mão do José Albano. Entre outros, publicou"Visões': trabalho que dialoga com a obrade RacheI de Oueiroz, escritora cearense),o Nelson Bezerra. São pessoas que conhecina minha juventude. Mas o Zé (Albano) foiuma grande figura porque tinha vindo dosEstados Unidos, com mestrado em fotogra-fia numa época que não tinha nem cursinhode ... Sei lá! Já tinha a Casa Amarela (Projetode extensão da Universidade Federal do Ce-ará, voltado para a formação audiovisual) ,que foi um grande espaço na minha vida,com relação ao cinema e à fotografia. Tan-to que o curso de fotografia eu fiz na CasaAmarela com o José Albano.

Talles - E como era o cenário da fotogra-fia, nessa época, no Ceará?

Silas - O Ceará é um berço de grandesfotógrafos. Na época, os grandes fotógrafoseram o Maurício Albano, o Nelson Bezerrae o Capibaribe (Capibaribe Neto, queatualmente é diretor industrial do Diáriodo Nordeste). Eram fotógrafos maisconhecidos pelo mercado. Faziam pôsteres,faziam publicidade. Eram fotógrafos commais status de fotógrafo. O Zé Albano cheganesse mercado vindo dos Estados Unidoscom um mestrado, com uma consistênciaacadêmica maior e uma técnica maisapurada, e vai trabalhar com publicidade,ensinando a gente como usar uma luzmais adequada, por exemplo. Nisso o Zéfoi fundamental na minha vida. E o Chico(Albuquerque) vem anos depois com umatécnica apuradíssima em publicidade efotografia e passa pra gente também todoo conhecimento que ele tinha. Ele era umafigura maravilhosa, de um conhecimentoenorme, tremendamente aberto. Queajudou muito a fotografia no Ceará. Essasduas pessoas foram fundamentais pra mim:o Zé Albano e o Chico Albuquerque.

lana - Você ganhou alguns prêmios emsua carreira. Os mais significativos foramda Nikon (Nikon International Photocon-text, em 1984. A foto ganhadora retratavaum fotógrafo de lambe-lambe, em Alagoas)e da Leica (Concurso Cultural FotográficoLeica-Fotografe, promovido pela revista Fo-tografe Melhor e representantes da marcaalemã de equipamentos fotográficos, Leica,no Brasil). Mas logo depois de uma expo-sição em São Paulo, Paisagens do Sertão,você rompe com a fotografia documental epassa alguns anos sem fotografar, como foiesse período?

Silas - É uma coisa doida porque foi noperíodo que comecei a dar aula de fotogra-fia que parei de produzir imagem. Uma con-tradição enorme. Eu saio da agência, entrona Universidade, paro de fotografar, faço aexposição em São Paulo e ganho prêmio.Tudo no mesmo ano, em 1984. E resolvoque não vou mais fotografar "porque não

SILAS DE PAULA I 35

A parte que Iana queriater cantado era uma estro-fe que diz "Cavaleiro mar-ginal banhado em ribeirão/Cavaleiro negro que viveumistérios/ Cavaleiro e Se-nhor de Casa e Árvores/Sem querer descanso nemdominical".

Além de deportado dosEstados Unidos, SiIas foipreso três vezes, por "va_diagem", nas viagens pe-las estradas do Brasil. Apior prisão foi em Belémdo Pará.

Page 13: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

Um fato curioso e con-trastante é que o pai, EcirSilas de Paula, era delega-do de polícia na cidade deCastelo, no Espírito Santo.Nunca pediu que o livrassede nenhuma prisão.

Jogar Playstation, Ni-tendo Wi e outros jogoseletrônicos é uma das ati-vidades de lazer de Silas.O filho Tiago, estudante deMecatrônica, é o principalparceiro e adversário.

gosto da minha fotografia, não gosto dedocumental ... Aquele documental não temnada a haver com a fotografia que gostariade fazer". Abandonei a fotografia para voltara fazer um trabalho mais consistente com osmeus alunos, quando ganhei o prêmio Lei-ca, e isso tem dois anos.

Anamélia - Sobre o prêmio Leica (em2008, Silas conquistou o prêmio na catego-ria Ensaio Fotográfico, com o ensaio intitu-lado "Porque hoje é sábado no Mercado':composto por 1Ofotos, e mais uma mençãohonrosa na categoria Preto e Branco) ... Porque fotografar o Mercado São Sebastião? Oque foi que você viu que os outros (fotógra-fos) não tinham visto antes?

Silas - Na realidade, (fotografar) o Mer-cado São Sebastião (mercado tradicionallocalizado no Centro de Fortaleza onde fun-ciona a venda diária de diversos produtos,principalmente alimentícios) foi um exercí-cio que eu fazia com os alunos, no final desemana. Começamos a discutir que tinha defazer um ensaio e ninguém fazia do jeito queeu gostava, e alguém falou pra mim: "Entãofaz pra gente ver!". Eu tive dificuldade de fa-zer o ensaio - dá um trabalho danado! Nãoé fácil fazer essa roteirização, entendeu? Narealidade, você sempre faz buscando algo.Quando olhei, eu vi a foto. Tem essa histó-ria que bate, às vezes. Quando você olha efala: "Tá ali a minha foto! PÔ! Tá ali a mi-nha foto!". Foi a partir dela que fiz todas asoutras. Foi uma foto de cima, com a mes-ma lente, com a mesma distância. Mas en-tra uma coisa que bateu pra mim de pegaruma luz meio renascentista com um ângulodo Rodchenko (Alexander Rodchenko é umdos máximos expoentes da fotografia devanguarda soviética dos anos 1930. Nasceuem São Petersburgo, em 1891). Com umcorte de um não sei o quê. Todas as cores,de alguma maneira, passam pela tua cabe-

IJEuSOU muito vis-ceral com as coisasque eu faço. Eu nãoconsigo ser muitoeducado, eu não

consigo ser muitogentil, eu não.consigo ser

muito zangado."

ça quando você olha. E eu faço muito pou-co cor. Não sou bom de cor. Prefiro pretoe branco. E fiz um trabalho todo colorido.Quando terminou, achei que tinha ficadolegal. Tinha anos, muitos anos, que eu nãofazia um trabalho que achasse que tivessealguma consistência. E mandei pro (concur-so) Leica, achando que tinha uma consistên-cia e fiquei mais maravilhado ainda ... E ele(o ensaio) tira o único prêmio até hoje ... Co-meçou dando uma Leica (Câmera fotográ-fica digital M8 com uma lente Leica 50mmSummarit f/2.5), que era uma Leica (enfati-ze}, né? Que é uma maravilha! Uma câmeraRolls Royce (referência à empresa inglesade automóveis, fundada em 1906, conheci-da pela fabricação de carros luxuosos) e eraa primeira vez que eles davam uma Leicae eu ganhei. Ficou todo mundo morrendode inveja. Até os fotógrafos que estavam lá(risos). Eu morri de rir, porque é cheio defotógrafo danado. A Leica é um símbolo dafotografia mundial. Todo fotógrafo é doidopra ter uma Leica, nem que seja pra carre-gar aqui do lado.

Anamélia - Mas, no período em que dei-xou de fotografar, o que foi que te fez acharque a tua fotografia não estava boa?

Silas - Os fotógrafos normalmente sãomuito conservadores com a imagem. Quemfaz os fotógrafos avançarem, hoje acreditonisso, são os artistas. Quem fez a fotogra-fia avançar não foram os fotógrafos. Foramos artistas. Eles alfinetaram os fotógrafos,de tal maneira, que essa fotografia acabouavançando. Por mais que eu admire os gran-des mestres do documental (preocupadosem retratar a "realidade" fidedignamentee documentar momentos históricos. HenriCartier-Bresson, Robert Capa e Robert Dois-neau são alguns fotógrafos clássicos, entreoutros. No Brasil, Sebastião Salgado con-sagrou-se nesse gênero), o documental da-quele tipo, na realidade, pertence a um tipode olhar moderno. A um tipo de olhar quenão se encaixa muito nas questões contem-porâneas. É lógico que hoje eu posso fazeresse discurso, né? Em função de algo quepassou. Mas, naquele momento, me angus-tiava muito esse documental que ... Pra mim,tinha sempre um olhar do passado. Ele medava uma sensação de déjà vu (expressãofrancesa que quer dizer "lá visto': usadapara definir a sensação de já ter presencia-do ou visto aquela mesma situação antesdo presente momento). O diálogo já tinhasido feito várias vezes e aquilo me angus-tiava muito. Eu não gostava dessas fotos.Apesar de hoje eu gostar delas.

Anamélia - O que te fez voltar?Si Ias - Não que eu queira (re) fazer essas

REVISTA ENTREVISTA I 36

Page 14: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

s que tinha feito. Gosto delas como fo-ão todas, mas tem uma série de fotos

e eu, na época, teria jogado fora e hoje_ s o como sendo daquela época. O do-

mental pra mim hoje é um outro tipo des: o. Não é... O documental mais clássico,

essa foto isolada. Do que alguns autoresamam de foto-ação (Fotografia em que

o "momento decisivo': expressão popula-rizada a partir de Henri Cartier-Bresson, édos principais aspectos de uma imagem. Omérito do fetógrafo consistia em capturaro instante, o movimento exato). Foto quetem algo ligado a esse olhar moderno dascoisas acontecendo. O documental pra mimhoje - é uma coisa que eu estou discutin-do, inclusive, (com) o meu grupo, com osalunos - é muito mais ligado ao tipo de do-cumental imaginário (documental baseadona visão e interpretação do fotógrafo sobreo que ele retrata). Uma fotografia que ex-pressa a tua visão sobre o mundo. Que vocêroteiriza esse processo, você intervém dealguma maneira nesse discurso. Não procu-rando a verdade absoluta ou algo que estáali, que você retira do mundo, mas é umaconstrução que você faz em cima do mundoque você vive, desse cotidiano. Que é com-pletamente diferente! É um outro tipo defoto ... Que é um documental! Eu me recon-cilio com o documental, mas não volto aodocumental tradicional de forma nenhuma.O que eu procuro hoje é um documentalbem mais contemporâneo. Um documentalcomo expressão. Como um olhar de cadaum sobre a vida, sobre o cotidiano.

Maíra - Você ligaria essa frustração queteve com a fotografia, na época do docu-mental, com uma busca frustrada por umaoriginalidade, por uma mudança?

Si Ias - Total! A singularidade, a origina-lidade, naquela época, era algo que eu sóconseguia ver em alguns fotógrafos. Pramim, na época, tinha o Cássio Vasconcellos(fotógrafo paulistano nascido em 1965. Ini-ciou sua trajetória na fotografia em 1981, na

escola Imagem-Ação. Durante sua carreira,o trabalho pessoal, sempre voltado a pro-jetos artísticos, percorreu muitas galerias emuseus, no Brasil e no mundo), que é bomfotógrafo até hoje. Um menino de 19 anos.Quando eu vi as fotos dele ... Eu falei: "Por-ra! Não vou fotografar mais não! Um mo-leque desses fazer umas fotos dessas. Oque é que eu tô fazendo com a câmera?".Tem essas figuras que são danadas, que játrazem essa força muito grande. Então essahistória também de eu olhar as minhas fo-tos, comparar com outras fotos, e eu meachar fraco, me fez ... Parar de fotografar.

Anamélia - SiIas, você tem uma filhafotógrafa, a Lia (Lia de Paula, nascida em1979, fruto do relacionamento com a jorna-lista Lígia Girão, na época sua colega de fa-culdade). Você disse, na pré-entrevista, quetinha começado a conversar com ela sobrefotografia há pouquíssimo tempo. Seriaesse medo também de suas fotos parece-rem não tão boas quanto as dela, ou seria ...

Silas - Não! Isso é coisa de pai. Eu dissepra ela que em vez de Fotografia ela deviafazer Engenharia, Medicina, qualquer coisa.Não. É uma coisa que meus pais diziam:"Mais um pobre na família é de lascar! Vaifazer alguma coisa que te dê um tantinho dedinheiro, porra!" Meio de sacanagem, mas,você fica meio preocupado com ... Pega aífilho de sociólogo que vai ser sociólogo, ospais ficam preocupados, sabe? Filho de mé-dico que o filho vai ser médico, os pais nãoficam preocupados.

Iana - Eles ficam orgulhosos.Silas - Eles ficam orgulhosos. Apesar

de que eu tenho o maior orgulho da minhafilha. Não é essa a questão. Mas, você jápré-visualiza alguma dificuldade na vida,né? É lógico que eu fico preocupado com osmeus filhos, eu quero que eles ganhem umdinheirinho. Esse negócio de ser pobre éuma rnerdal Ter um emprego mais normal,mais consistente, sabe? Fala: "- Porra! Jáque ele vai ser jornalista, fotógrafo, cineasta,

SILAS DE PAULA I 37

Um fato bastantepolêmico marcou a vidade Silas como professor.Em 2005, deu um "coto COR

para um aluno do DiretórioAcadêmico em umadiscussão na faculdade.Até hoje é lembrado, noscorredores do Curso, porisso.

Henri Cartier-Bresson,fotógrafo francês que jávirou clássico, fotografa-va com uma Leica e umalente 50mm fixa, equipa-mento semelhante ao queSilas ganhou no ConcursoLeica-Fotografe Melhor.

Page 15: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

As principais peças dovestuário de Silas sãocamisas de manga com-prida, dobradas na alturados cotovelos. Não usa ca-misa de botão de mangascurtas, apenas camisetas,quando sai para fotografar.

No dia da entrevista,Silas usava uma camisa li-lás, devidamente dobradacomo manda seu figurino.Vaidoso, cortou o cabelo efez a barba na véspera.

sociólogo. Não tem outra coisa pra fazer navida não? Vai fazer ... Sei lá! Robótica".

lana - E você tem uma sensação de déjàvu quando olha pra ela?

Si Ias - Tenho! Acho que ela está fazen-do uma porção de besteira que eu fiz. Mas .Eu não posso fazer nada. Poderia ser mais .Não dá pra interferir nessa história ... É umaprendizado! Quer dizer. .. Eu tenho a sensa-ção de que ela tá fazendo as mesmas caga-das que eu fiz, puta que pariu! Parece queeu estou ficando velho e careta, né? Porque,se alguém me dissesse isso quando eu ti-nha vinte anos, eu ia ficar puto ... Mas elaestá muito bem. Eu adoro fotógrafo!

Roger - Eu queria saber onde é que ficao sonho de cinema. Teve alguma oportuni-dade de trabalhar como diretor de fotografiadepois desse tempo todo?

Silas - Eu trabalhei com o Rosemberg(Rosemberg Cariry , poeta e cineastacearense nascido em Farias Brito, 1956).Eu fiz Caldeirão ("O Caldeirão da SantaCruz do Deserto': documentário de longa-metragem, de 1986, que marca a estréiade Rosember Cariry no cinema cearense eretrata um dos movimentos messiânicosque surgiu no Crato, Ceará), como assistentede câmera do Ronaldo (Ronaldo Nunes,cineasta e diretor da Casa de Cinema.Carioca que há mais de 45 anos trabalha naárea de audiovisual, participando da equipetécnica de 48 longas-metragens). Mas eramuito difícil. A gente trabalhava com umacâmera 16 milímetros, película - a bichaera pesada pra diabo =, faltava grana. Querdizer, isso na década de 1970, no Ceará,fazer cinema era complicado pra diabo! Ealgumas pessoas persistiram, né? Você vêaí. Você tem grandes filmes no Ceará. Hojea juventude que faz cinema é muito legal.Mas eu entrei pra Publicidade e acabeime afastando totalmente do cinema. Vireifotógrafo. Hoje eu sou fotógrafo. O cinemapra mim ... Eu nem faço mais pesquisa sobrecinema, que é uma coisa que eu gosto

"Eu não vou ficardesesperado.

Porque o que queroé uma rota, então,não tem chegada.Um processo. Nãovou chegar nunca."

muito. A minha pesquisa hoje é só sobrefotografia. Imagem e fotografia. Me afasteido cinema.

Roger- Onde é que entra o interesse pelaUniversidade, pelo curso de Jornalismo?

Silas - Nunca tive a menor vontade deser professor. Nunca entrou na minha ca-beça essa história. Eu queria ser fotógra-fo, queria fazer cinema e, na realidade, foiaquele desespero que você tem na vida devez em quando ... Eu tinha uma produtora, aEntrelinhas Produções Gráficas, toda mon-tada e estava bem, trabalhando legal: faziapublicidade, vídeo, fotografia, fazia umasérie de coisas. Éramos eu e o Chico Gual-bernei (Publicitário, empresário e presiden-te da Associação Brasileira das Agênciasde Publicidade), que hoje é sócio da Verve(Agência de Comunicação que dirige juntocom o publicitário Fernando Costa), umasdas grandes agências do Ceará. Eu fiqueidesesperado, estava de saco cheio de pu-blicidade, não aguentava mais aquele traba-lho. Apareceu o concurso pra ser professorda UFC (Universidade Federal do Ceará), doCurso de Jornalismo, pra auxiliar de ensino.Não precisava de mestra do nem de douto-rado, não precisava ter nada.

Iana - Quando o maluco vira professor?Silas - Eu dei uma guinada burguesa,

como diz um amigo. Foi essa relação coma publicidade que encheu o saco. Porquepublicidade ou você gosta muito ou vocêpira. É um trabalho que te exige muito e éloucura, eu não aguentei. Depois de muitosanos trabalhando em publicidade, que erauma coisa que eu gostava, perdi o ritmo enão queria passar mais nem perto de umaagência e surgiu o concurso pra professor.Por sorte eu era o único candidato, porque,em Fortaleza, não tinha fotógrafo com cursosuperior. Tinha fotógrafo melhor do que euaqui em Fortaleza, mas não tinha diploma.Quando eu entrei, resolvi que tinha de serdoutor. Eu sou meio perfeccionista comalgumas coisas. Não interessa o que vocêfaça: tem de correr atrás. "Pra ser professor,eu tenho que ter doutorado" (Concluiu odoutorado em 1995, na Universidade deLoughbourough, Inglaterra. Estudou aprodução audiovisual dos índios Ticuna,etnia que vive no Amazonas, ao longo doRio Solimões).

Anamélia - Por que você disse ter se rea-lizado mais como professor (Em 1985, Silasse torna professor efetivo do curso de Co-municação Social da UFC, cargo que ocupaaté hoje) do que como fotógrafo?

Si Ias - Uma das coisas que você tem nauniversidade é essa convivência diária. Essaloucura que é a universidade, por exemplo,

REVISTA ENTREVISTA I 38

Page 16: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

e alguém com 60 anos conviver diariamen-e com pessoas de 20. Isso só acontece na

universidade. Em nenhum outro lugar domundo vocês estariam conversando comi-go, nem numa mesa de bar - quer dizer,os meus alunos conversam comigo numamesa de bar, porque a gente está semprejunto e, se eles não conversarem comigo,reprovo todo mundo (risos). Mas não é nor-mal, vamos dizer assim, um grupo de pes-soas com 60 anos convivendo com pessoasde 20. Porque são gerações muito, muitodíspares, não é? Essa possibilidade de con-viver com esse tipo de gente que me obrigaa pensar ... Dar aula te exige estudar bastan-te, aprofundar as questões. A relação do co-nhecimento com a pesquisa é muito interes-sante ... É uma vida muito boa, gente. Nóssomos pagos pra estudar, pensar, produzir.Muito melhor do que fazer publicidade oufazer texto pra jornal, ou fazer um filme. Pormais sérias que sejam essas questões. Serprofessor pra mim, hoje, é a melhor profis-são do mundo! Nada se compara com serprofessor.

Evelyn - Nos depoimentos que a equi-pe de produção coletou, seus alunos sem-pre falavam de uma relação como se fossede pai e filho. Eu queria que você falasse oque representam os seus alunos na sua vidapessoal e profissional.

Silas - Eu sou muito visceral com as coi-sas que faço. Não consigo ser muito educa-do, não consigo ser muito gentil, não consi-go ser muito zangado, não consigo fazer ascoisas de uma forma ... Na realidade, alguémjá me disse que eu não tinha postura aca-dêmica nenhuma, que eu deveria ter maispostura acadêmica ... Não sei direito o que épostura acadêmica, não. Eu acho que tenho.Essa convivência com os alunos e os pro-fessores, faz com que a gente tente ser umapessoa um pouco melhor ... Aquela coisa dacrença. Vamos dizer que tenho uma cren-ça hoje que é ser professor universitário - eessa coisa me dá uma perspectiva. É lógicoque essa minha relação com os meus alu-nos, que são muito jovens, fica uma relaçãomeio de pai e filho. Têm momentos que aspessoas (os alunos) vêm conversar comigoe estão mal, não estão legal. Ou eu vou con-versar com elas, às vezes, e estou mal. Etemum momento em que estou muito zangado,que brigo, que eu... Sei lá! "Porra!", Xingo!As coisas saem. Dou cotoco (referência aoepisódio em que ele "mostrou o dedo': umgesto "obsceno': a um aluno do DiretórioAcadêmico durante uma discussão) (Risos).Chegou a esse ponto! Mas sou muito vis-ceral com essas coisas. Porque como eupreparo aula - e eu preparo aula - procuro

preparar com consistência. Todo semestreaprofundo mais as questões. E quando che-go na sala de aula - seja no mestrado ouna graduação - que ninguém fez porra ne-nhuma, fico puto da vida. Não estou ali praensinar, entendeu?

Essa é a grande questão. Esse com par-tilhamento, esse processo de embate entreprofessor e aluno é fundamental. O alunoficar lá esperando pra eu passar a minhagrande sapiência pra ele? Um dos dois édébil mental. Não dá pra ter essa relaçãode que um é sábio e o outro é uma esponjaque vai recolher todas essas questões. Euacho que o processo é outro. É lógico quetenho mais experiência profissional. Pro-vavelmente já vi mais que vocês, mas issonão me leva, necessariamente, a indicar oscaminhos. A indicar o caminho certo. Mas,possíveis caminhos. A discussão que a gen-te possa ter e procurar caminhos e apren-der junto, de alguma maneira. É muito maisum compartilhamento de processos do queuma relação em si de aprendizado. Achoisso muito antigo. Sou meio ligado a essaminha última paixão, que é o Hanciere (Je-cques Renciére, filósofo francês e professoremérito da Universidade de Paris), que sechama de Mestre Ignorante (no livro homô-nimo, Renciêre narra a aventura intelectualvivida por Joseph Jacotot, um pensador ati-vo na época da Revolução Francesa. Exila-do nos Países Baixos, ele se aventura comoprofessor, acreditando na capacidade deauxílio no desenvolvimento de uma novaordem social por parte da instituição peda-gógica). O Mestre Ignorante ensina, apontacaminhos e cobra caminhos pra ver se... Euaprendo com os alunos!

lana - Conversando com o Victor (VictorFurtado, estudante da Escola de Audiovi-sual da Vila das Artes, amigo e namoradode Lia de Paula), ele disse que "o Silas se-duz homens, mulheres, velhinhos e crianci-nhas". O ser professor está, também, dentrode um jogo de vaidade?

Si Ias - Lógico que está! Lógico que está!Eu adoro palco. Sala de aula pra mim é umpalco. E tenho que ter cuidado com isso

SILAS DE PAULA I 39

Depo s da ore-evista, Silas decid u passaa "A Mulher das Dunas"para seus alunos. A últimavez que assistiu ao filmefoi quando tinha dezesseisanos, no Museu da Ima-gem e do Som.

Silas tem duas páginasna Web onde é possível verseu trabalho: www.flickr.com/silasdepaula e www.fi ickr. com/36216616@N05. Também integra re-des sociais como o Face-book e o Twitter, que man-tém atualizados.

Page 17: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

Ainda tem planos de viajar;mas não com fins acadêmi-coso Acha que essa é a caisboa de ser fotógrafo, de seprofessor: "Você não fica velho nunca".

Enquanto a equipe de pro-dução finalizava a edição daentrevista, na cantina do Cen-tro de Humanidades da UFCSilas tomava um café. Esta-vam, literalmente, escrevendopelas costas do entrevistado.

pra não virar ator principal. Porque tenhotendência em virar ator principal. E gos-to. Como fazer isso com essa relação como palco? Acho que ser professor é isso. Étambém seduzir. Essa relação humana queé a sedução. Que é maravilhosa! Nesse sen-tido, é fundamental. Seja com homem, commulher, com criança.

Anamélia - Silas, pra você, ser professoré um talento, uma paixão ou uma vantagem,por ter essa troca? De você poder aprender,tirar proveito ...

Silas - ...Olha, quando entrei aqui pradar aula, encostava a bunda na mesa, fu-mava - naquela época podia fumar em salade aula - um cigarro atrás do outro. Minhaspernas ficavam tremendo porque eu nãosabia como dar aula (a primeira disciplinaministrada por Si/as foi "Estética e Comuni-cação de Massa"). Não sei se é questão detalento, não. Não acredito nessa coisa divi-na, não. Você tem de aprender a trabalhare melhorar. A paixão é fundamental ... Maspaixão é por qualquer coisa que você faz. Eeu acho que os professores que estão meiocansados de dar aula, de pesquisa r ou defazer qualquer coisa, deviam se aposentarou fazer outra coisa na vida. É lógico quetem momentos que eu estou de saco cheiode todo mundo, sabe? Não quero ver aluno.Você tem isso com várias coisas na vida,mas ... Paixão é fundamental!

Anamélia - Você tira alguma vantagemde ser professor?

Si Ias - A melhor coisa que eu ouvi hojefoi que... Estava entrando no elevador,entrou uma senhora - com característicasde ser uma empregada doméstica, algumacoisa desse tipo. Com "cara de pobre" -olhou pra mim e falou assim: "O senhor éprofessor, não é?" Eu falei: "Sou. Como éque você sabe?". "0 senhor tem cara deprofessor. Quem já foi aluna sabe disso,viu?". Achei essa coisa ótima, porque eu

"Aqora eu juro quequeria ser fotógrafo,

que eu nunca fui.(...) A fotografia, pra

mim, hoje, não é só oproduto, mas toda a

discussão, todaa reflexão"

disse "Ih, será que eu consegui?" (Risos).Até o biotipo (aparência,), a cara! Ficarcom cara de professor. Eu achei ótima essahistória. "0 senhor tem cara de professor".E ela nunca me viu.

Anamélia - O que você acha de terpassado de um biotipo de "maluco" pra terhoje cara de professor?

Silas - É uma mudança muito grande,não é? É. Sei não (risos). É. Juro que nãosei ... Porque é uma mudança muito grande,não é? De doido pra ter cara de professor ...Olha, sinceramente, eu acho que o que mu-dou foi a idade e os cabelos. (Risos.) Porqueos cabelos caem, não tem jeito.

Roger - Si Ias, você se considerou um"maluco" e falou de muitos personagensque passaram ao seu redor. Mas o seu nívelde "maluquice", onde é que você acha que ...

Silas - Ah, não! Eu fiz terapia - quem tem60 anos já fez uma porção de coisa na vida,inclusive terapia - e uma das coisas que omeu terapeuta me dizia era que ele ficavaimpressionado como eu tinha sobrevivido aessas loucuras todas. Uma delas foi nuncaser louco o suficiente pra morrer. Eu tinhamedo de algumas coisas. Nunca tomeidroga muito pesada. Nunca me "piquei"(usar drogas injetáveis), que era uma coisamais ou menos comum... Quer dizer, écomum até hoje. Nunca fiz isso, nunca tivecoragem. Talvez por isso tenha escapadode uma overdose ou ... Os meus amigosmorreram, né? (Refere-se aos três amigosque queriam fazer cinema: Tatai, Henriquee Tião) E isso ... Eu tenho muito medo!Droga é uma coisa que me assusta muitohoje. Talvez eu tenha ficado muito caretaem função dessa história.

lana - Mas você levou um susto comaquele problema renal (Em 2009, Si/as foiinternado duas vezes, com o diagnóstico decálculos renais). Mudou alguma coisa?

Silas - Ah, Não! Não. Não foi droga. Querdizer, cigarro é uma droga, mas ...

lana - ...Não. Eu não estou falando dedroga, droga, mas de uma vida, digamos,de abusos.

Si Ias - Ah ... Não dá. Eu continuo toman-do minha cachaça, fumando meu cigarroe... Tirei as pedras dos rins e estou novo denovo. (risos) Porque, na realidade, imaginoo seguinte: eu era menino e trabalhava numescritório com um cara, logo que chegueino Rio (em Niterói). E eu olhava pra ele.O cara devia ter uns 60 anos - eu achavaele velho pra cacete. Hoje vejo que eu erameio exagerado - mas ele tinha cara de 40.Ficava muito impressionado como ele erajovem na aparência. E ele disse que nuncatinha bebido, nunca tinha fumado e eu falei:

REVISTA ENTREVISTA I 40

Page 18: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

"Tu tá doido! Pra não fazer nada você já támorto. Então é melhor morrer antes do queser morto a vida inteira. Já que você não feznada, o que você vai fazer da vida, só prater uma aparência de jovem?". Eu não estoupropondo que as pessoas caiam na orgia ena coisa (drogas) direto não, mas não dá praessa loucura do corpo que se tem hoje: todomundo é vegetariano, todo mundo tem defazer exercício, tem de fazer não sei o quê.Ah, pelo amor de Deus! Eu até faço exercí-cio: comprei um joguinho de computador efaço exercício em casa. É muito melhor quecorrer pelo meio da rua só. Ficar andandosozinho em volta do quarteirão. Quer coisamais idiota do que isso gente? (risos). Vocêficar andando sozinho em volta do quartei-rão? Numa cidade cheia de carro, uma po-luição desgraçada. Se eu morasse no cam-po, olhando pras montanhas, pras árvores,pro céu. "Eu tô ficando doido?" Então, euprefiro ainda ... Minha terapia é uma cachaci-nha num bar e conversar com o povo, falarbesteira.

Maíra - O Silas professor, com cara deprofessor, ainda conserva algumas das pai-xões do SiIas "maluco"? A paixão pela via-gem, essa sensação de liberdade?

Silas - Ah, sim. Bem menos, né? Eu voudizer uma coisa, 60 anos - eu também nãome sinto tão velho assim - é um tempinho.É três vezes a vida de vocês. Dá pra imagi-nar mais ou menos o que é. Eu quero conti-nuar viajando. Viajar é bom demais!

Iana - Você falou que tem três vezes aidade da gente. Como é que você olha praessa juventude?

Silas - Na realidade, a relação que tenhocom vocês (jovens) é uma relação meio es-tranha. Porque sou capaz de brigar ou deadmirar como se não houvesse diferença.Talvez isso seja um pouco de erro comoprofessor. Pelo menos com o grupo (alunosque se tornaram mais próximos depois daconvivência no Grupo de Estudo da ImagemTécnica - GEIT). Com a sala de aula não, por-que a sala de aula você sempre se mantém,de alguma maneira, com uma certa distân-cia. Mas como eu tenho o grupo com o qualeu trabalho ... Me relaciono com ele como seeu tivesse 20 anos ou eles tivessem 60. Por-que ... Vou ficar com raiva, vou ficar puto,vou brigar, falar mal, vou sair por trás, meiofofoquinha. Nesse sentido, não há muita di-ferença de idade. É lógico que sempre semantém (a diferença). Eu sou professor.Sou mais velho. Há uma certa hierarquiaque não desaparece nunca. Mas a gente semistura. Tem umas horas (que há uma) ...Mistura bem grande. Que dá até raiva!

lana - Essa proximidade entre os

seus alunos seria uma interseção entre oprofessor e o fotógrafo?

Silas - Acho que sim. Acho que sim. Por-que, como a gente está discutindo uma re-lação de criação, de processo de trabalho ...Eu não tenho esse processo pronto. Ele temde ser desenvolvido. Tem de ser compar-tilhado. Ele só sai se a gente trabalhar jun-to. Ele é fruto de um projeto coletivo. Tal-vez por isso a gente se aproxime mais doque numa relação entre um professor e umorientador numa dissertação de mestradoou de doutorado, entendeu? Que é legal,você ter seu orientando defendendo umadissertação ou defendendo uma tese a qualvocê ajudou a construir de alguma manei-ra. Mas é algo mais acadêmico. Esse não.É algo mais estranho, mais maluco, mais ...Não tem tanta consistência - e não precisater. Tem momentos que as coisas andam,tem momentos que elas param e não fun-cionam. Começa tudo de novo. A disserta-ção, a tese, a orientação de monografia têmde ter começo, meio e fim. E é o projetoacadêmico. Esse outro grupo não. O que ti-ver é lucro. Talvez seja muito dessa relaçãoentre o professor e o fotógrafo ...

Fernanda - Você falou muito dessa ju-ventude maluca e como você foi até os Es-tados Unidos perseguindo um sonho. Quan-do você olha pros seus alunos, e vendo queseus filhos passaram por uma juventudebem diferente, você acha que eles estãomais cômodos, mais acomodados?

Silas - Não, acho que não. As coisassó são diferentes. Tenho alunos que estãofazendo essa mesma coisa de algumamaneira. Saem daqui e vão pra outro país,outro estado. Uma coisa que eu digo, talvezos pais não gostem, é: «: Você é doido denão ir? Uma possibilidade de ir, por causade uma bosta de um curso desse? Você vaificar aqui e não vai fazer essa viagem com aidade que você tem? Tem de ir. Volte depoise continue". Lógico que se os pais meouvissem falar isso pro aluno eles poderiamme processar. O professor deveria fazercom que eles terminassem o curso, não é?Mas acho que ... Tem uma história que é o

No dia 02 de novem-bro de 2009, viajou parafotografar a Romaria deFinados, em Juazeiro. Jun-to com o fotógrafo TiagoSanta na, planeja organizarum grande livro sobre aregião com imagens de di-versos fotógrafos, e lançá--10 em 2011, quando serácomemorado o centenáriode Padre Cícero.

Outro projeto, já emfase de conclusão, é o lan-çamento de um livro sobreálbum de família, resultadode uma grande pesquisa.

SILAS DE PAULA I 41

Page 19: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

Até o fim da edição daRevista, muita coisa acon-teceu: Silas ganhou oPrêmio Marc Ferrez, con-cedido pela Funarte, e iráfotografar personagens doMaracatu cearense.

Comprou uma Hassel-blad digital, câmera sue-ca de médio formato. Oequipamento é carinhosa-mente comparado a umaFerrari.

seguinte: sempre digo que na juventude- você ou nós todos - achamos que omundo nos deve. Achamos que o fato deter 20 anos e estar no mundo, o mundo nosdeve. E nós não devemos nada ao mundo.A não ser a nossa genial idade, sabedoria ecoragem e qualquer coisa desse tipo. Essaé uma idade ótima. E não mudou. Isso, euacho que em todas as gerações, as pessoassão muito semelhantes nesse sentido.Só foi um processo, pra mim, diferente.A relação com o consumo, a relação como corpo, a relação com a mercadoria ...Algo que a gente tenha perdido com umautopia que existia em outras gerações ...talvez tenha modificado um pouco essahistória. Ou talvez aumentado a depressãona juventude atual. Que pra mim, não tenhonem estatística, a geração de vocês é bemmais deprimida do que a minha. (risos).

Evelyn - Voltando a sua relação com osalunos, você disse que aprende muito comeles. O que você considera como o seumaior aprendizado?

Si Ias - Diminuir a minha vontade de es-ganar todos eles. (Risos) Isso foi uma coisaque eu aprendi. O respeito com os alunosé... Tem momentos que você quer enforcaros bichinhos, igual os teus filhos. Dá von-tade de você jogar pela janela. você apren-de, nesse processo, que ... "Por que é quevocê tem razão?". Não, não acho que soutão bonzinho assim não. (risos) No frigirdos ovos, quase sempre tenho razão (risos).Mas é uma tentativa, né? De aprender a nãoter razão. Isso é uma coisa boa, é um grandeaprendizado. De alguma maneira eu apren-do, porque, dentro de sala de aula, boa par-te dos alunos me respeita. Ou pelos cabelosbrancos ou por eu ser o professor. O meugrupo mais próximo não me respeita muitonão, nesse sentido. Eles discutem, me en-frentam. Tem um embate.

Anamélia - Você gosta de ser enfrentado?Silas - Pra ter qualquer projeto, qualquer

processo, só no conflito. Não no conflitodo desrespeito, de qualquer coisa nessesentido, mas a própria base da universidadeé o conflito. O conflito na relação doembate de idéias. Discordância, de avançodesse processo. Então, se tem alguém queconcorde com tudo que eu digo ... Temalguma coisa errada.

Roger - E a sua experiência comogestor na coordenação do curso (Curso deComunicação Social da UFC), no Dragãodo Mar (Entre 1999 e 2003, Silas foidiretor do extinto Instituto Dragão do Mar,escola profissionalizante voltada para acapacitação técnico-artística no campo daexpressão audiovisual). Também agora no

IFoto (Instituto da Fotografia. Associaçãoque reúne fotógrafos cearenses e organiza odeVERcidade, principal evento da categoriano estado, do qual Silas é curador). Como éque têm sido essas experiências? Você searrependeu?

Silas - Péssimas! Todas! Eu me arrependiprofundamente. Você aprende: "Eu nuncamais quero ter cargo de gestor na minhavida". Você é de uma impotência diante dosprocessos, que você acaba ou estourandocom todo mundo porque você não temcontrole ... A coisa é muito maior do quevocê. Sempre. Ou você se adéqua a todasas questões, ou você pira. É muito difícil.Veja bem, mesmo chefe de departamentoou coordenação (Silas já foi coordenadordo Curso de Comunicação Social, de 1987a 1989, e chefe de departamento em 1998-99 e 2003-05) que, comparado a diretor doInstituto (Dragão do Mar), são coisas menostrabalhosas. Mas ser coordenador temuma série de problemas, porque você nãoconsegue resolver determinados aspectosburocráticos da universidade. Você ficamuito zangado e acaba sobrando pra você.Ser chefe de departamento é a mesma coisa.E ser diretor do Dragão, como eu fui, vocêfica preso a determinados aspectos políticosdo governo. Políticos, eu digo políticospartidários. Uma série de questões quevocê não consegue resolver. Não que nãotenha sido bom para a minha experiência,pra minha vida ... Eu gostei de ser diretortambém. Tem aquela coisa do cargo, nãoé? Mas não quero mais não. Nem cargonenhum. Vou ser o próximo coordenadordo mestrado (em Comunicação, na UFC),mas isso porque a gente tem um acordo deprofessores de fazer rodízio.

Anamélia - Mas você considera que es-sas experiências foram fracassadas?

Si Ias - Em certo sentido sim. Elas medeixaram com um certo amargor em relaçãoa esse projeto, sem essa falta de controle.Como sou muito perfeccionista, por eu sermeio obsessivo com algumas questões ...Você não conseguir resolver determinadosaspectos é algo que me deixa mal. Euacho que é necessário alguém que consiganegociar melhor como gestor. Nessesentido, ele tem de ser um negociador bemmelhor do que eu. Porque eu vou espernear,vou morder, vou arranhar, sabe? Darcotoco, mandar pra puta que pariu. Vocêacaba brigando com todo mundo, né? Vocêtem de negociar, você tem de entender queas coisas funcionam dessa maneira. E que obom é melhor que o ótimo. Não tem essascoisas? E eu desisti disso. Então ... Cargo degestão, nunca mais na minha vida. Eu quero

REVISTA ENTREVISTA I 42

Page 20: Silas de Paula - repositorio.ufc.br · evistce:ntrevista trevista com Silas José de Paula feita dia 27 de abril de 2010 Iana - Você vem de uma cidade - Caste-o, no Espírito Santo

é ser feliz.Iana - Nesta última pergunta, vou dar um

play num gravador. Um dia a gente estavanum bar ouvindo aquela música assim: "Dajanela lateral do quarto de dormir" (cantan-do) (Paisagem da Janela, canção compostapor Lô Borges e Fernando Brant, interpreta-da por Milton Nascimento) e foi engraçadoporque houve momentos que você parava,como se olhasse para trás. No mesmo diavocê disse que era por não querer ser maisnada, que você queria ser uma pessoa me-lhor. Então eu queria perguntar, como quemolha para trás e quem olha pra frente. Qualserá a próxima parada do Silas de Paula?Seria professor, "maluco", fotógrafo?

Silas - Agora eu juro que queria ser fo-tógrafo, que nunca fui. É o que tenho pro-curado. A fotografia, pra mim, hoje, ela é...Não só o produto, mas toda a discussão,toda a reflexão e toda a pesquisa. Ela não éum produto final, mas é tudo o que envolveessa imagem. Eu estou procurando, ago-ra, cada vez mais, ser esse fotógrafo. Queé pesquisador, reflete sobre, que escreve,que faz, experimenta. Que procura algumacoisa nesse sentido. Isso é muito bom quan-do você chega numa certa idade e por maisque você queira aparecer, - que a gentesempre quer e sou meio pavão nessas coi-sas, gosto de aparecer - se não acontecer,não é tão importante ... Eu não vou ficar de-sesperado. Porque o que quero é uma rota,então, não tem chegada. Um processo. Nãovou chegar nunca. E como não vou chegarnunca, não preciso me angustiar em qual onível estou. A não ser que eu esteja nessaprocura. Então, pra mim é suficiente, de al-guma maneira. E ponto final.

SILAS DE PAULA I 43

Como ja pre 'a ocoordenador do estraaoem Comunicação. Paroude fumar porque adquiriualergia à nicotina.

Estes textos curtinhosque você leu até agora sãochamados de Janelas. Narevisão, vimos que aindafaltavam algumas. Depoisde muito suor e esforçomental, descobrimos quehá sempre uma janela nofim do túnel. Ou de umaedição.