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Sexta Turma

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Sexta Turma

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HABEAS CORPUS N. 92.194-CE (2007/0237686-6)

Relatora: Ministra Maria Th ereza de Assis Moura

Impetrante: Paulo Napoleão Gonçalves Quezado e outro

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Ceará

Paciente: Frederico Antônio Araújo Bezerra

EMENTA

Habeas corpus. Penal e Processual Penal. Exploração de prestígio.

1. Atipicidade. Não ocorrência. 2. Competência. Justiça Estadual.

Interesse da União. Inexistência. Ordem denegada.

1. Em se tratando do crime de exploração de prestígio, não é

necessário que o funcionário exista, podendo ser uma fi gura puramente

imaginária.

2. Constatada, no caso, a inexistência do servidor federal que

supostamente seria infl uenciado pelo paciente, a competência é da

Justiça Estadual.

3. Ordem denegada.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A

Turma, por unanimidade, denegou a ordem de habeas corpus, nos termos do voto

da Sra. Ministra Relatora.” Os Srs. Ministros Og Fernandes, Celso Limongi

(Desembargador convocado do TJ-SP) e Haroldo Rodrigues (Desembargador

convocado do TJ-CE) votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Brasília (DF), 18 de agosto de 2010 (data do julgamento).

Ministra Maria Th ereza de Assis Moura, Relatora

DJe 06.09.2010

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

784

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura: Cuida-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de Frederico Antônio Araújo Bezerra, apontando como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (HC n. 2007.0010.4566-9/0)

Consta dos autos que o paciente foi denunciado como incurso no art. 357, parágrafo único, do Código Penal, por supostamente ter exigido de um cliente valores para manipular processo em curso na 11ª Vara da Justiça Federal do Ceará, sob a alegação de que infl uenciaria um servidor na referida unidade judiciária.

O juízo de primeiro grau recebeu a denúncia e determinou a citação do paciente para interrogatório e a quebra de seu sigilo bancário.

A defesa, irresignada, ajuizou prévio writ, perante o Tribunal de origem, mas não obteve êxito. O tribunal a quo, ao denegar a ordem, ementou (fl . 20):

Habeas corpus. Penal e Processo Penal. Crime de exploração de prestígio. Incompetência absoluta da Justiça Estadual para o processo e julgamento da causa penal. Não confi guração. Inaplicabilidade ao caso do artigo 109, IV, da CF/1988. Negativa de autoria. Sede inviável para apreciação desta alegação.

1. Para que se aplique o artigo 109, IV, da CF/1988, estabelecendo-se, por ilação, a competência da Justiça Federal para o processamento de causa penal é necessária a ocorrência de lesão direta e específi ca a bens, serviços ou interesse da União, de suas entidades autárquicas ou de empresa pública, fato que não ocorreu nos presentes autos, tendo havido tão somente para a perpetração do delito menção de falso prestígio junto a servidor público federal que sequer existia.

2. Não se afi gura possível a análise da alegação de negativa de autoria do paciente, uma vez que ensejaria, necessariamente, ampla dilação probatória, o que se afi gura inviável nesta sede.

3. Ordem denegada.

Alegam os impetrantes a ausência de justa causa para a ação penal, tendo em vista a atipicidade da conduta narrada na denúncia, já que o servidor federal a ser infl uenciado sequer existia.

Sustentam que, caso configurada a justa causa, a competência para processar e julgar a citada ação penal é da Justiça Federal.

Pretendem, liminarmente, seja sustado o andamento da Ação Penal n. 2007.0004.4116-1, em curso na 2ª Vara de Crateús-CE, até o julgamento fi nal do presente writ.

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 785

No mérito, requerem o trancamento da ação penal por ausência de justa

causa ou o reconhecimento da incompetência da Justiça Estadual para processar

e julgar a referida ação penal, com a conseqüente anulação de todos os atos

praticados a partir da denúncia.

O pleito liminar foi indeferido às fl s. 66-67.

As informações prestadas pela autoridade apontada como coatora

encontram-se às fl s. 73-88.

O Ministério Público Federal, às fl s. 90-94, manifestou-se pela denegação

da ordem.

Em resposta ao despacho de fl. 96, o Tribunal de origem prestou

informações complementares às fl s. 119-156, destacando-se as seguintes:

a) ainda não foi proferida sentença na ação penal em apreço;

b) o paciente encontra-se em liberdade.

É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura (Relatora): As questões a

serem enfrentadas no presente habeas corpus consistem na atipicidade da conduta

descrita na denúncia e na incompetência da Justiça Estadual para processar e

julgar a ação penal em apreço.

Conforme relatado, o paciente foi denunciado como incurso no art. 357,

parágrafo único, do Código Penal, por supostamente, no exercício da advocacia,

ter exigido de um cliente valores para manipular processo em curso na 11ª Vara

da Justiça Federal do Ceará, sob a alegação de que infl uenciaria um servidor na

referida unidade judiciária.

Segundo a impetração, a atipicidade da conduta residiria na inexistência do

referido servidor federal.

Razão não assiste ao impetrante.

Segundo doutrina de escol, “não se exige que o funcionário seja determinado

nem que seja competente para o ato em que tenha interesse o lesado, podendo

também ser uma fi gura puramente imaginária” (Heleno Cláudio Fragoso. Lições

de Direito Penal, parte especial, vol. II, 6. ed., atualizada por Fernando Fragoso.

Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1988, p. 488).

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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No mesmo sentido, Magalhães Noronha, em Direito Penal, parte especial,

11. ed., Ed. Saraiva, 1979, p. 326, quando afi rma que “não se desnatura o delito

se o funcionário pseudocorrupto não existe ou é imaginário”.

A jurisprudência segue no mesmo trilho:

Penal. Recurso especial. Exploração de prestígio. Confi guração.

1. O crime de exploração de prestígio exige, à sua confi guração, apenas a obtenção de vantagem, ou promessa desta, junto a funcionário público no exercício da função. Dispensável a identifi cação expressa do servidor.

2. Recurso Especial provido. (REsp n. 76.211-PE, DJ de 06.09.1999).

Assim, tem-se que a impetração não prospera em relação à primeira insurgência.

No que se refere à alegada incompetência da Justiça Comum, melhor sorte não assiste aos impetrantes.

Como cediço, a fixação da competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento da ação penal pressupõe a ocorrência de lesão direta e específi ca a bens, serviços ou interesse da União, de suas entidades autárquicas ou de empresa pública.

Nesse sentido, o CC n. 37.073-PR, de minha relatoria, DJ de 26.03.2007, assim sintetizado:

Confl ito negativo de competência. Processual Penal. Estelionato. Prejuízo ao patrimônio alheio. Ausência de detrimento de bens, serviços ou interesses da União e de suas entidades. Competência da Justiça Estadual.

1. Para delinear-se a competência da Justiça Federal o interesse requerido no preceito constitucional, art. 109, IV, tem de ser de tal sorte que resulte em prejuízo potencial à União ou a seus entes, não cabendo a afetação por via intermediária.

2. In casu, inexistindo prejuízo ao patrimônio público, já que os agentes, sem qualquer vinculação com a Administração, buscaram tão-somente conseguir vantagem indevida de particular, não caracteriza hipótese de competência da Justiça Federal, pois incogitável o detrimento de bens, serviços ou interesses da União e de suas entidades.

2. Confl ito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da Comarca de Rio Negro, PR, suscitado.

Repise-se: o funcionário público que supostamente seria infl uenciado

sequer existe. Transcrevo, por oportuno, o seguinte trecho do acórdão

impugnado:

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 787

Segundo a denúncia o suposto delito teria sido praticado em detrimento dos interesses de Francisco das Chagas Nunes, à época cliente do ora paciente.

Na exordial delatória, o Ministério Público Estadual afi rma que o ora paciente ludibriou a vítima, aplicando-lhe um golpe para dela subtrair a quantia de R$ 7.000,00 (sete mil reais), sob a alegação de que conseguiria a revogação de uma prisão preventiva contra si decretada, através de um servidor que seria assessor do Juiz Federal atuante na 11ª Vara Federal do Estado do Ceará.

Segundo o Parquet, restou apurado que referido servidor, o qual supostamente seria corrompido, sequer existe, não havendo nenhum servidor do sexo masculino que seja magistrado titular da 11ª Vara Federal do Estado do Ceará.

Não se vislumbra, portanto, o interesse da União na apuração dos fatos

narrados na inicial.

O comportamento irrogado, penso, não afeta a esfera da União, dada a mis-

en-scène supostamente encetada pelo paciente.

Assinalou o Ministério Público Federal que “o que se protege no delito

mencionado é a dignidade e o prestígio da justiça, que não foram ofendidos,

pois a conduta praticada não foi apta a tanto” (fl s. 91-92).

Assim, percebe-se que as irresignações não se amparam na doutrina e na

jurisprudência desta Corte.

Ante o exposto, denego a ordem.

É como voto.

HABEAS CORPUS N. 96.601-MS (2007/0296925-4)

Relator: Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do

TJ-CE)

Impetrante: Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul

Advogado: Elizabeth Fátima Costa - Defensora Pública

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul

Paciente: Ademir Ciriaco Duarte (preso)

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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EMENTA

Habeas corpus. Violência doméstica. Lesões corporais leves. Lei Maria da Penha. Ação penal pública condicionada. Representação. Prescindibilidade de rigor formal. Audiência prevista no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006. Obrigatoriedade apenas no caso de manifestação de interesse da vítima em se retratar.

1. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp n. 1.097.042-DF, ocorrido em 24 de fevereiro do corrente ano, fi rmou a compreensão de que, para propositura da ação penal pelo Ministério Público, é necessária a representação da vítima de violência doméstica nos casos de lesões corporais leves, pois se cuida de ação penal pública condicionada.

2. A representação não exige qualquer formalidade específi ca, sendo sufi ciente a simples manifestação da vítima de que deseja ver apurado o fato delitivo, ainda que concretizada perante a autoridade policial.

3. A obrigatoriedade da audiência em Juízo, prevista no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006, dá-se tão somente no caso de prévia manifestação expressa ou tácita da ofendida que evidencie a intenção de se retratar antes do recebimento da denúncia.

4. Habeas corpus denegado.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por maioria, denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Vencida a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Os Srs. Ministros Og Fernandes e Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP) votaram com o Sr. Ministro Relator.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Brasília (DF), 16 de setembro de 2010 (data do julgamento).

Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE), Relator

DJe 22.11.2010

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 789

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-

CE): Cuida-se de habeas corpus impetrado em favor de Ademir Ciriaco Duarte,

denunciado pela suposta prática de crime de lesão corporal de natureza leve no

âmbito familiar, previsto no artigo 129, § 9º, do Código Penal, apontada como

autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul.

Busca a impetração o “trancamento da ação penal por falta de condição

de procedibilidade, visto que o crime de lesão corporal leve é de ação pública

condicionada, ou seja, a denúncia só pode ser oferecida e recebida, com a

representação das partes, e em audiência judicial especialmente designada para

esse fi m, à luz da norma consubstanciada no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006”

(fl . 05).

A liminar foi indeferida pelo Ministro Arnaldo Esteves Lima, antigo

relator, à fl . 78.

Dispensada as informações, a douta Subprocuradoria-Geral da República,

ao manifestar-se (fl s. 81-84), opinou pela denegação da ordem.

Posteriormente, os autos foram atribuídos à minha Relatoria (fl . 102).

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-

CE) (Relator): Inicialmente, cabe registrar que a Terceira Seção do Superior

Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 1.097.042-DF,

ocorrido em 24 de fevereiro do corrente ano, fi rmou a compreensão de que, para

propositura da ação penal pelo Ministério Público, é necessária a representação

da vítima de violência doméstica nos casos de lesões corporais leves, pois se

cuida de ação pública condicionada. O julgado restou assim ementado:

Recurso especial repetitivo representativo da controvérsia. Processo Penal. Lei Maria da Penha. Crime de lesão corporal leve. Ação penal pública condicionada à representação da vítima. Irresignação improvida.

1. A ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública condicionada à representação da vítima.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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2. O disposto no art. 41 da Lei n. 11.340/2006, que veda a aplicação da Lei n. 9.099/1995, restringe-se à exclusão do procedimento sumaríssimo e das medidas despenalizadoras.

3. Nos termos do art. 16 da Lei Maria da Penha, a retratação da ofendida somente poderá ser realizada perante o magistrado, o qual terá condições de aferir a real espontaneidade da manifestação apresentada.

4. Recurso especial improvido.

(REsp n. 1.097.042-DF, Relator para Acórdão o Ministro Jorge Mussi, DJe de 21.05.2010).

Entendo, contudo, que tal representação não depende de qualquer

formalidade específi ca, sendo sufi ciente a simples manifestação da vítima de que

deseja ver apurado o fato delitivo, ainda que concretizada perante a autoridade

policial.

Nesse sentido:

A - Habeas corpus. Lei Maria da Penha. Crime de lesão corporal leve. Alegação de ausência de representação. Tese de falta de condição de procedibilidade. Não ocorrência. Inequívoca manifestação de vontade da vítima. Oferecimento de notitia criminis perante a autoridade policial. Validade como exercício do direito de representação. Inexigibilidade de rigores formais. Precedentes. Pleito de concessão do benefício do sursis processual. Impossibilidade. Não-incidência da Lei n. 9.099/1995.

1. A representação, condição de procedibilidade exigida nos crimes de ação penal pública condicionada, prescinde de rigores formais, bastando a inequívoca manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal no sentido de que se promova a responsabilidade penal do agente, como evidenciado, in casu, com a notitia criminis levada à autoridade policial, materializada no boletim de ocorrência.

2. Por força do disposto no art. 41 da Lei n. 11.340/2006, resta inaplicável, em toda sua extensão, a Lei n. 9.099/1995.

3. Ordem denegada.

(HC n. 130.000-SP, Relatora a Ministra Laurita Vaz, DJe de 08.09.2009)

B - Penal. Processual Penal. Habeas corpus. Art. 214, c.c. 224, alínea a, do Código Penal. Ação penal pública condicionada. Representação. Desnecessidade de rigor formal. Crime hediondo. Progressão de regime. Possibilidade. Inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/1990 declarada pelo STF. Requisitos. Necessidade de apreciação prévia pelo juízo da execução. Agravante da reincidência.

I - Em se tratando de crime de ação penal pública condicionada, não se exige rigor formal na representação do ofendido ou de seu representante legal, bastando a sua

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 791

manifestação de vontade para que se promova a responsabilização do autor do delito.

II - O Pretório Excelso, nos termos da decisão Plenária proferida por ocasião do julgamento do HC n. 82.959-SP, concluiu que o § 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/1990 é inconstitucional.

III - Assim, o condenado por crime hediondo ou a ele equiparado pode obter o direito à progressão de regime prisional, desde que preenchidos os demais requisitos.

IV - Decorridos mais de cinco anos da extinção da pena da condenação anterior e a prática do novo delito, deve ser afastada a agravante da reincidência (art. 64, inciso I, do CP).

Ordem parcialmente concedida.

(HC n. 86.232-SP, Relator o Ministro Felix Fischer, DJU de 05.11.2007)

C - Recurso especial. Lesão corporal. Representação. Registro de ocorrência perante a autoridade policial. Validade. Conhecimento e provimento do apelo.

O Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que o simples registro da ocorrência perante a autoridade policial equivale a representação para fins de instauração da instância penal.

Recurso conhecido e provido.

(REsp n. 541.807-SC, Relator o Ministro José Arnaldo da Fonseca, DJU de 09.12.2003)

No caso, disse o Tribunal de Justiça:

Quanto à tese de ausência de representação, consoante sobressai dos autos, às fl s. 11, 12 e 13, consta, respectivamente, Boletim de Ocorrência, laudo referente às lesões corporais sofridas pela vítima e Termo de Declaração desta, demonstrando, com tal procedimento, a inquestionável vontade de ver seu agressor processado.

A intenção da vítima para que o delito fosse apurado já foi demonstrada, e devem ser consideradas válidas, para tanto, as declarações fi rmadas nesse sentido perante a autoridade policial.

Além disso, é cediço que a representação, como condição de procedibilidade, prescinde de rigor formal, e basta a demonstração inequívoca da vontade do ofendido, de que sejam tomadas providências em relação ao fato e à responsabilização do autor, sendo, portanto, aceitável formulação perante a autoridade policial, ainda que essa se dê em forma de Boletim de Ocorrência e Termo de Declaração.

(...)

Assim, entendo que a vítima, ao procurar a Delegacia de Polícia Civil e registrar Boletim de Ocorrência, prestar Declarações e se submeter a exame de corpo de

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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delito, demonstra de maneira inequívoca a vontade de representar contra seu agressor. (fl s. 72-73)

Assim, conforme visto no acórdão atacado, restou demonstrada a

inequívoca intenção da vítima no sentido de que se promova a responsabilidade

penal do ofensor, notadamente pelo registro do Boletim de Ocorrência na

Delegacia de Polícia, bem como por ter se submetido a exame de corpo de

delito a fi m de comprovar a materialidade do suposto crime, ausente, portanto, o

alegado constrangimento ilegal nesse ponto.

De outro lado, quanto à tese de nulidade do procedimento ante a ausência

de designação da audiência prevista no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006, também

não assiste razão à impetrante.

Veja-se o teor do referido artigo:

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal fi nalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Com efeito, extrai-se desse dispositivo que a obrigatoriedade da audiência

em Juízo se dá tão somente se houver prévia manifestação expressa ou tácita da

vítima que evidencie a intenção de se retratar antes do recebimento da denúncia,

o que não se verifi cou no caso dos autos.

Em outras palavras, não é necessário que o Juiz de primeiro grau designe

audiência antes de receber a denúncia em todos os casos de ação penal pública

condicionada para que a vítima ratifi que ou renuncie à representação.

A razão desta audiência é justamente para que o magistrado possa analisar

acerca da real intenção da vítima em se retratar da representação, ou seja, para

garantir a livre e espontânea manifestação da ofendida.

Ante o exposto, em consonância com o parecer do douto Ministério

Público Federal, denego o habeas corpus.

É como voto.

VOTO

O Sr. Ministro Og Fernandes: Sra. Ministra Presidente, a condição para a

realização dessa audiência – pelo que se depreende do art. 16 – é garantir que,

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 793

feita a representação, o arrependimento que se produza em seguida, faça-se de

forma a que o juiz perceba sinceridade e ausência de coação.

Se feita a representação, em nenhum instante houve um gesto de

arrependimento no sentido de movimentar a máquina estatal para processar o

eventual causador da ofensa, essa audiência é despicienda.

De modo que peço vênia a Sra. Ministra Maria Th ereza para acompanhar

o voto do Sr. Ministro Relator, denegando a ordem de habeas corpus.

HABEAS CORPUS N. 101.570-RJ (2008/0050242-7)

Relatora: Ministra Maria Th ereza de Assis Moura

Impetrante: José Carlos Dias e outro

Impetrado: Tribunal Regional Federal da 2ª Região

Paciente: Ricardo Sérgio de Oliveira

EMENTA

Processo Penal. Habeas corpus. Gestão temerária. Falta de justa causa. Atipicidade. (1) Ação penal. Vários investigados. Um deles, o artífi ce do indigitado plano, possuidor de prerrogativa de foro, sobre cuja específi ca conduta houve manifestação do PGR pela atipicidade. Impossibilidade lógica de prosseguimento da ação em relação aos demais. Princípio da indivisibilidade. (2) Crime doloso. Descrição de fato culposo. Atipicidade. (3) Ordem concedida. Outras alegações prejudicadas.

1. A manifestação da Procuradoria Geral da República, destacando a atipicidade da conduta daquele que seria considerado o principal artífi ce da operação fi nanceira em foco, inviabiliza, logicamente, a responsabilização daqueles que seriam apenas partícipes. Quando o Parquet se pronuncia em relação a um, ou alguns dos corréus, destacando a atipicidade do fato, tal manifestação, de caráter objetivo, estende-se aos demais, pelo princípio da indivisibilidade da ação penal.

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2. A denúncia que emprega os termos imprudência e negligência, descrevendo, pois, comportamento culposo, apesar da imputação de crime punível apenas a título de dolo, conduz ao reconhecimento da atipicidade.

3. Concedida a ordem em razão de dada alegação, o exame das demais resta prejudicado.

4. Sendo o motivo da concessão do writ de caráter objetivo - atipicidade do fato - devem seus efeitos ser estendidos aos demais corréus.

5. Ordem concedida para trancar a Ação Penal n. 2002.5101.501869-1, da 3ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, estendido o trancamento, nos moldes do art. 580 do CPP, aos demais corréus.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: “Prosseguindo no julgamento após voto-vista do Sr. Ministro Og Fernandes concedendo a ordem de habeas corpus, com extensão aos corréus, e os votos dos Srs. Ministros Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP) e Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE) no mesmo sentido, a Turma, por unanimidade, concedeu a ordem de habeas corpus, com extensão aos demais corréus, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.” Os Srs. Ministros Og Fernandes, Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP) e Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE) votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Brasília (DF), 21 de setembro de 2010 (data do julgamento).

Ministra Maria Th ereza de Assis Moura, Relatora

DJe 11.10.2010

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura: Trata-se de habeas corpus,

substitutivo de recurso ordinário, impetrado contra acórdão da Primeira Turma

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

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do Tribunal Regional Federal da 2ª Região que, denegando anterior writ em favor de Ricardo Sérgio de Oliveira, manteve o regular processamento da Ação Penal n. 2002.51.01.501869-1, em trâmite perante a 3ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, cuja denúncia o traz como incurso nas sanções do art. 4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492/1986, juntamente com mais onze co-réus.

Aduzem os impetrantes que o paciente foi denunciado pela prática do crime de gestão temerária de instituição fi nanceira, tendo em vista que teve participação, juntamente com os demais co-réus, na qualidade de representantes do Banco do Brasil S.A., na concessão de carta de fi ança no valor de R$ 874.200.000,00 (oitocentos e setenta e quatro milhões e duzentos mil reais) da referida instituição bancária em favor da empresa Solpart Participações S.A., em 28.07.1998, para fi ns de participação no leilão de privatização da estatal Telecomunicações Brasileiras S.A. - Telebrás, ocorrido em 29.07.1998.

Segundo a denúncia, a suposta conduta delituosa atribuída ao paciente residiria na irregular concessão da referida carta de fiança, por falta de observância de critérios fi xados pelo Banco Central do Brasil - Bacen, a qual teria colocado em risco tanto o patrimônio do Banco do Brasil S.A., como o próprio Sistema Financeiro Nacional globalmente, confi gurando gerenciamento temerário da referida instituição, tipifi cado no art. 4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492/1986.

Em apertada síntese, a alegada irregularidade se verifi cou no processo de concessão da carta de fi ança à empresa Solpart Participações S.A., eis que esta apresentava capital social de R$ 1.000,00 (mil reais), considerado incompatível com a soma garantida pelo Banco do Brasil S.A. para sua participação no leilão de privatização da Telebrás. Somado a este fato, a referida empresa apresentou como garantia apenas o aval de outra empresa, denominada Techold Participações

S.A., cujo capital social alcançava o montante de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), igualmente inapto à satisfação do crédito do Banco do Brasil S.A, caso a instituição tivesse que honrar a fi ança prestada.

A denúncia aponta, ainda, displicência por parte dos denunciados no procedimento de concessão da referida carta de fi ança, tendo em vista que todo seu trâmite se deu no prazo de vinte e quatro horas, tempo insufi ciente para a análise das “questões necessárias com o grau de atenção e seriedade devidos.” (fl . 522)

Alegam os impetrantes que não existiu qualquer irregularidade no

procedimento de concessão da carta de fi ança à referida empresa, tendo em vista

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que esta apresentava-se como um consórcio, ou uma Sociedade de Propósito

Específi co, constituída apenas para a participação no leilão de privatização da

Telebrás, da qual faziam parte, dentre outras empresas de grande porte, a Previ

- Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil - e a Sistel, fundo

de pensão dos funcionários do Sistema Telebrás, os quais possuíam expressivo

volume de recursos aplicados no Banco do Brasil S.A.

Sustentam, ainda, que a operação, ao fi nal, mostrou-se exitosa e lucrativa,

tendo em vista que neste curto espaço de tempo o Banco do Brasil S.A. auferiu

lucro de R$ 218.575,80 (duzentos e dezoito mil, quinhentos e setenta e cinco

reais e oitenta centavos), a título de comissão remuneratória previamente

estipulada, circunstância que foi reconhecida pelo Tribunal de Contas da União

ao julgar tal operação, que considerou aceitável o risco assumido pelo Banco do

Brasil S.A, inerente à sua atividade empresarial. E, com base na regularidade

da operação reconhecida pelo Tribunal de Contas da União, que absolveu os

denunciados na via administrativa, alegam que a ação penal acabaria prejudicada,

por falta de justa causa.

Defendem, também, que o fato narrado na denúncia pelo Ministério

Público não constitui crime, o que ensejaria a declaração de inépcia da denúncia,

nos moldes do disposto no art. 43, I, do Código de Processo Penal, tendo

em vista que a carta de fi ança foi concedida à empresa Solpart Participações

S.A. com base na solidez fi nanceira dos fundos de pensão que a integravam,

que asseguravam ao Banco do Brasil S.A. a lisura na atuação do consórcio no

leilão da estatal, os quais, por si sós, tinham capacidade de honrar eventual

compromisso assumido perante a União, caso fossem detentores da melhor

oferta.

Sustentam que a prática de um ato isolado, como foi a operação realizada

para a concessão da carta de fi ança à empresa Solpart Participações S.A., não pode

ser considerado como gestão temerária de instituição fi nanceira, cujo conceito

seria bem mais amplo, vinculado à uma continuidade temporal, argumentando,

ainda, que a referida operação não trouxe qualquer prejuízo ao Banco do Brasil

S.A., tampouco ao Sistema Financeiro Nacional.

O Tribunal de origem, por ocasião do julgamento do prévio writ impetrado

em favor do paciente, assentou:

4. Os impetrantes sustentam a presença de constrangimento ilegal devido ao processo penal instaurado contra o Paciente que, segundo alegam, teria se baseado em denúncia inepta por falta de descrição dos requisitos e elementos

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previstos no art. 41, do Código de Processo Penal, não havendo justa causa para a deflagração e desenvolvimento da ação penal (art. 43, do mesmo diploma processual penal).

5. Assim dispõe o art. 4º, caput, e seu parágrafo único da Lei n. 7.492/1986:

(...)

6. Como se vê, o tipo, ao conceituar a infração, é extremamente amplo e genérico, dando margem a interpretações extremamente subjetivas. Manoel Pedro Pimentel, após tecer ásperas críticas ao dispositivo legal em apreço, traça parâmetros para interpretação do que seja gestão temerária fraudulenta:

(...)

7. Essa é, a meu ver, a única interpretação possível para o artigo, e à luz da qual cabe examinar a conduta do Paciente, que, inclusive, se assemelha àquela atribuída aos Pacientes de que tratava o Habeas Corpus n. 2007.02.01.002320-5 (DJ 19.06.2007 - trânsito em julgado: 1º.08.2007), de minha relatoria, originário da mesma ação penal e impetrado pelo Banco do Brasil em favor de ex-diretores. Esta 1ª Turma, naqueles autos, denegou, à unanimidade, o habeas corpus, cujos fundamentos a seguir transcritos adoto como razões de decidir:

(...)

8. A conclusão que se impõe é que, ao menos em tese, a operação, de cuja aprovação o Paciente participou, foi realizada com assunção de riscos que extrapolam os limites da prudência que se espera do administrador de uma instituição fi nanceira.

9. Não procede a alegação de que, para o fi m de confi guração do crime de gestão temerária, seria necessária a presença de várias operações fi nanceiras, e não apenas uma única concessão de carta-fiança. O crime descrito no art. 4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492/1986, é classificado como crime habitual impróprio, ou acidentalmente habitual, em que apenas uma ação pode ter relevância para a confi guração do tipo penal, ainda que a reiteração da mesma prática não enseje a consideração de que haveria pluralidade de crimes.

10. Apesar de alegar não possuir atribuição estatutária para a gestão das operações ora incriminadas, teve sua ligação com os fatos atestada, pelo fato de ter participado de reunião da diretoria executiva, e votado, na condição de diretor, à concessão de fi ança bancária de alto risco, previsivelmente lesiva aos interesses da instituição fi nanceira.

(...)

13. Há forte indício da materialidade delitiva, bem como de ser seu co-autor o ora Paciente, o quanto basta para a formação do juízo de deliberação, sufi ciente ao recebimento da denúncia, conferindo justa causa para a instauração da ação penal contra o mesmo.

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14. O certo é que o remédio jurídico do habeas corpus - com toda a sua importância - somente pode ser concedido na eventualidade de verifi cação de manifesta ilegalidade ou constrangimento abusivo por parte das autoridades públicas, o que não se verifica no caso em tela. A culpabilidade, ou não, do Paciente, é matéria que depende da produção e cotejo de provas complexas, inclusive periciais, somente cabíveis no curso da ação penal. (fl s. 46-51)

Contrariamente, os impetrantes aduzem que a matéria não demanda

exame de questões de prova, eis que a alegada ausência de justa causa

defl uiria da atipicidade da conduta irrogada, que foi radicalmente afi rmada

em outro procedimento. O Subprocurador-Geral da República Flávio Giron

e o, então, Procurador-Geral da República, Geraldo Brindeiro, analisando

o comportamento de Pedro Pullen Parente, Presidente do Conselho de

Administração, dotado de prerrogativa de foro, determinaram o arquivamento

do feito, em razão da ausência de justa causa. Daí, a irresignação decorrente do

desrespeito ao princípio da indivisibilidade da ação penal. Não seria lógica a

instauração de inquérito policial e de respectiva ação penal quando o Ministério

Público Federal, por seus órgãos de cúpula, reconheceu a atipicidade.

Apontaram que, contestando o discurso do governo Fernando Henrique,

lideranças políticas e sindicais associaram-no a um projeto desnacionalizador

de nossa economia e o repeliram mediante manifestações públicas. Teriam,

então, tais lideranças promovido verdadeiras batalhas judiciais para impedir a

concretização das medidas propostas. Prosseguem, então, destacando que o leilão

da holding Tele Centro Sul, uma das 12 empresas que se encontravam em vias

de privatização, foi intenso e uma guerra judicial foi desencadeada. Concluído

o certame, ainda houve a tentativa de anulá-lo. Não se conseguiu, entretanto, e

a Tele Centro Sul foi comprada pelo Consórcio Solpart Participações S.A. O

quadro político confl itivo gerado por aquelas iniciativas governamentais teria

motivado a defl agração de vários processos administrativos e criminais contra

pessoas identifi cadas com a operacionalização das ações privatizantes - o caso

do paciente, diretor do Banco do Brasil.

Pontuaram que o aresto guerreado passou ao largo de opiniões de experts

do mercado financeiro, que depuseram indicando que outras instituições

fi nanceiras também forneceram cartas de fi ança à Solpart, como o Unibanco, o

Citibank e o BFB.

A pedido dos impetrantes, foi colhido parecer do Professor Modesto

Carvalhosa, no qual foi asseverdado:

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A regulamentação então vigente, como se extrai de seu exame, impunha regras somente em relação à instituição fi nanceira concedente da fi ança, determinando a observância de certos princípios e fi xando um limite percentual de diversifi cação de risco em relação ao seu próprio patrimônio, nada especifi cando quanto à magnitude ou espécie de garantias e nem efetuando exigências dirigidas ao afi ançado.

(...) a concessão de Carta de Fiança pelo Banco do Brasil S/A à Solpart Participações S/A, consideradas a forma e as condições em que foi realizada, não caracteriza nenhuma ilicitude face às normas pertinentes à área de atuação do Banco Central do Brasil vigentes à época, cujas exigências dirigidas ao fi ador (Banco do Brasil) restaram devidamente cumpridas.

Por fi m, salientaram que a conduta dos denunciados não possui o elemento

subjetivo requerido pelo tipo da gestão temerária, que é o dolo direto ou

eventual.

Pretendem, liminarmente, a suspensão do trâmite da Ação Penal n.

2002.51.01.501869-1, até o julgamento do mérito do writ, no qual se requer

o reconhecimento de inépcia da denúncia com o conseqüente trancamento da

ação penal por ausência de justa causa.

Em favor de co-réus do ora paciente foi impetrado prévio writ perante

esta Corte, autuado como HC n. 86.075-RJ, através do qual pretende-se o

trancamento da aludida ação penal, cujo pleito liminar foi indeferido.

A liminar foi indeferida às fl s. 1.364-1.367.

As informações foram prestadas às fl s. 1.376-1.393.

O Ministério Público Federal apresentou parecer, fl s. 1.395-1.402, da lavra

do Subprocurador-Geral da República Francisco Dias Teixeira, opinando pela

denegação da ordem.

Foi requerida a intimação da sessão de julgamento, fl . 1.404, o que foi

deferido à fl . 1.405.

Em consulta telefônica à Vara de origem, obteve-se a informação de

que ainda não se ultimou a instrução. Já o processo administrativo punitivo,

instaurado perante o Banco Central, já teve sua primeira instância concluída,

com a condenação dos administradores do Banco do Brasil à multa de vinte

e cinco mil reais. Irresignados, interpuseram recurso, encontrando-se os autos

conclusos com o relator, Dr. Raul Jorge de Pinho Curro.

É o relatório.

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VOTO

A Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura (Relatora): O objeto da

impetração cinge-se ao trancamento da ação penal, alegando-se a ausência de

justa causa, em razão da atipicidade da conduta.

Eis, no que interessa, o teor da incoativa:

Em 28.07.1998, os denunciados, na condição de funcionários do Banco do Brasil, concederam Carta de Fiança à empresa Solpart Participações S/A, no valor de R$ 874.200.000,00 (oitocentos e setenta e quatro milhões e duzentos mil reais), para que esta participasse do leilão de privatização da estatal Telecomunicações Brasileiras S/A - Telebrás, ocorrido em 29.07.1998.

Ocorre que a concessão da referida garantia foi feita de forma fl agrantemente irregular, porquanto não observou os critérios fi xados pelo Banco Central do Brasil - Bacen, expondo a risco o patrimônio do Banco do Brasil e o Sistema Financeiro Nacional como um todo, através do gerenciamento temerário daquela instituição bancária, como se demonstrará a seguir.

Primeiramente, há que se destacar que, quando da concessão da Carta de Fiança, o capital social da empresa Solpart Participações S/A era de míseros R$ 1.000,00 (mil reais), conforme registro na Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro - Jucerja, o que já denota irregularidade, vez que a garantia concedida era absolutamente incompatível com o porte da empresa afi ançada.

Ademais, a única garantia que a Solpart apresentou foi o aval da empresa Techold Participações S/A cujo capital social era de R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Logo, percebe-se que não havia garantias sufi cientes para assegurar ao Banco do Brasil a satisfação de seu crédito, caso a fi ança tivesse de ser honrada. Ouvidos em sede policial, os ora denunciados argumentaram que foram uníssonos em aprovar a operação, por que constataram a participação de grandes agentes econômicos, tais como o Grupo Opportunity, a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil - Previ e a Fundação Sistel de Seguridade Social; situação que, na ótica dos mesmos, minimizaria os riscos e dava credibilidade à Solpart, recomendando o negócio. Tal argumentação pode ser facilmente refutada, à medida que estes fundos participavam apenas indiretamente do consórcio e, assim sua responsabilidade era limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas, conforme dispõe o art. 1º da Lei n. 6.404/1976. Note-se, ainda, que as assertivas dos ora denunciados no sentido de que se Solpart S/A não honrasse o negócio, os agentes econômicos indiretamente envolvidos teriam suas credibilidades afetadas no mercado financeiro em geral, revela-se mera elucubração, já que suas capacidades econômico-financeiras continuariam integralmente preservadas.

Neste contexto, há de se dar razão às conclusões expressas no parecer do Bacen (fl s. 10-26). Os técnicos do órgão fi scalizador consideraram subjetivos os critérios levados em conta pelos funcionários do Banco do Brasil na concessão

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da Carta de Fiança, porquanto os mesmos se prenderam aos nomes das grandes empresas que fi guravam indiretamente na operação, ao invés de averiguar a existência de capital e patrimônio próprios da Solpart. Como bem disse a analista do Bacen, Ormina de Almeida Ferreira, fl s. 197-190, para o deferimento de um negócio dessa monta, deve ser analisado o comportamento da empresa em uma situação em que esta não conseguisse honrar seus compromissos. E, na hipótese, em caso de difi culdades fi nanceiras da Solpart, o Banco do Brasil não teria meios de resgatar todo o seu investimento, uma vez que as empresas que a integram pagariam apenas no limite de suas participações.

(...)

Por outro lado, entre a elaboração da “Súmula de Estudo de Operações - Prestação de Garantia” - documento resultante da análise do risco da operação, fruto de decisão conjunta do Comitê de Crédito da Superintendência Estadual do Rio de Janeiro, ambas do Banco do Brasil aprovada pela Diretoria do órgão, e a celebração do contrato de fi ança, passaram-se menos de vinte e quatro horas, o que, de antemão, já revela que os responsáveis agiram displicentemente, não analisando todas as questões necessárias com o grau de atenção e seriedade devidos.

Da mesma forma, o ora denunciado Ricardo Sérgio de Oliveira, em depoimento de fl s. 355, afi rmou que muitos riscos e limites não precisavam ser apurados, pois já se encontravam previamente definidos em documentos internos do Banco do Brasil. Algumas empresas poderiam eventualmente nem mesmo estar catalogadas, mas por serem largamente conhecidas no mercado, dispensavam um processo formal e prévio de aprovação de crédito.

Deve-se destacar ainda que, por conta da magnitude do valor envolvido, a competência para a aprovação, em última análise, da garantia era do Conselho de Administração do Banco do Brasil. Sob a justifi cativa da exigüidade temporal, a concessão da garantia foi aprovada ad referendum por Pedro Pullen Parente, na qualidade de Presidente daquele Conselho, tal qual confi rma o depoimento de João Batista de Camargo, às fl s. 196. Note-se que tal aprovação contrariou o procedimento previsto no Estatuto daquela sociedade; qual seja, a convocação de reunião extraordinária para casos urgentes.

Por fi m, cabe ressaltar que o crime de gestão temerária de instituição fi nanceira não exige, para a sua consumação, tenha havido o efetivo prejuízo ao Sistema Financeiro, mas apenas o risco causado à sua higidez e estabilidade, por um atuar imprudente ou negligente. (fl s. 521-523, destaquei).

Motivam a pretensão os seguintes pilares:

1) Violação do princípio da indivisibilidade da ação penal, visto que o autor

da concessão da fi ança, Pedro Pullen Parente, foi eximido de responsabilidade

pela Procuradoria Geral da República, que teve por atípico o fato descrito na

inicial acusatória;

2) Ausência de elemento subjetivo do tipo: dolo direto ou eventual;

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3) A operação fi nanceira foi vantajosa para o Banco do Brasil, que já alcançou signifi cativo lucro a partir de então. Ademais, outras instituições fi nanceiras também concederam cartas de fi ança à Solpart;

4) As normas do Banco Central, vigentes à época, referiam-se ao concedente e, não, à concedida, logo, as particularidades da Solpart - por exemplo, o inexpressivo capital social - não seriam obstáculo para o fechamento do negócio. As sócias da Solpart representariam solidez sufi ciente para embasar o negócio jurídico;

5) Prolação de acórdão do Tribunal de Contas da União, que afastou a ilegalidade da assunção de risco na operação de concessão de carta de fi ança; e,

6) Inexistência de habitualidade na conduta irrogada;

1) MANIFESTAÇÃO DO PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA RECONHECENDO A ATIPICIDADE DO FATO E A INDIVISIBILIDADE DA AÇÃO PENAL

Os fatos estampados na denúncia envolvem condutas dos denunciados e de Pedro Pullen Parente, então Presidente do Conselho de Administração do Banco do Brasil. Todavia, como este último assumira o cargo de Ministro Chefe da Casa Civil, passou, então, a dispor de prerrogativa de foro. Em razão disso, foram encaminhadas cópias do inquérito ao Procurador-Geral da República, que arquivou o protocolado, acolhendo o parecer do Subprocurador-Geral da República Flavio Giron, lançado nos seguintes termos

Trata-se de cópia de procedimento administrativo, posteriormente transformado em inquérito civil público, instaurado no âmbito da Procuradoria da República do Estado do Rio de Janeiro com o escopo de apurar eventual improbidade administrativa por parte dos representados.

Após o ajuizamento da ação de improbidade os membros daquele Parquet Federal remeteram à Procuradoria-Geral da República cópia do mencionado procedimento administrativo onde entenderam, além dos ilícitos civis, poder existir condutas criminosas (tipos penais descritos nos artigos 321, 319 e 335 do Código Penal e artigo 4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492/1986) que, em face das normas constitucionais que concedem foro por prerrogativa de função aos representados [Pedro Pullen Parente (Ministro-Chefe da Casa Civil) e Luiz Carlos Mendonça de Barros (Ministro das Comunicações)], não teriam atribuição para analisá-las, ou mesmo, se for o caso, oferecer denúncia.

(...)

No entanto, após acurada análise dos autos verifi ca-se que não há elementos (documentos, depoimentos prestados pelos depoentes ...) para que se possa

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inferir que o senhor Pedro Pullen Parente cometera os crimes de advocacia administrativa; impedimento, perturbação ou fraude de concorrência e crime contra o sistema fi nanceiro nacional. De fato, consta apenas afi rmação do Ministério Público Federal no Estado do Rio de Janeiro no sentido de que o mesmo, por ocasião do leilão de privatização da empresa Tele Norte Leste Participações Ltda., teria favorecido o consórcio integrado pelo grupo Opportunity mediante a concessão de carta de fi ança à empresa Solpart Participações Ltda. que fazia parte desse grupo, sem as devidas contragarantias.

É certo que essa conduta poderia, em tese, confi gurar ato de improbidade administrativa; todavia, consta que o mesmo já está sendo alvo de ação de improbidade proposta pela Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro, já que, como é cediço, em sede de ação de improbidade administrativa, não existe foro por prerrogativa de função, devendo as causas serem conhecidas e julgadas, em primeiro grau, pelo Juízo Federal de 1ª instância, onde atuam os Procuradores da República.

Especifi camente quanto à notícia do cometimento do crime de prevaricação por parte do atual Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, que teria como Presidente do Conselho de Administração do Banco do Brasil aprovado carta de fi ança em favor da Solpart Participações Ltda., em desconformidade com instruções internas desse Banco e resoluções do Banco Central do Brasil; verifi ca-se que o tipo penal do aludido crime exige o elemento subjetivo do tipo expresso pela especial finalidade de agir (para satisfazer interesse ou sentimento pessoal), o que na doutrina tradicional denomina-se dolo específi co. Não restou confi gurada a presença do elemento tradicional necessário à confi guração do ilícito penal, já que em nenhum momento fi cou caracterizado que esse ato foi realizado para a satisfação de interesse ou sentimento pessoal.

Também é atípica a conduta porquanto o tipo penal exige que a conduta seja realizada contra disposição expressa de lei (elemento objetivo do tipo); o que não é o caso já que o ato, no máximo, pode ter infringido normas internas do Banco do Brasil e do Banco Central.

Desta forma, a autorização da aludida carta de fi ança, mesmo que entendendo-se realizada em desacordo com normas internas do Banco do Brasil e do Banco Central, não configura o crime de prevaricação, o que, todavia, não afasta a hipótese de confi gurar ato de improbidade administrativa movida pelo Parquet Federal no Estado do Rio de Janeiro.

Nessa esteira de pensamento, a instauração de inquérito policial para apuração de fato penalmente atípico confi gurar-se-ia em constrangimento ilegal, que o Parquet repele e certamente não há de patrocinar.

(...)

Isto posto, opina o Ministério Público Federal, por seu órgão, pelo arquivamento do presente procedimento administrativo no tocante ao Ministro Pedro Pullen Parente, contudo, no que se refere ao cometimento, em tese, dos crimes de advocacia administrativa, prevaricação, impedimento, perturbação ou fraude

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concorrência e crime contra o sistema nacional, que teriam sido praticados pelo ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, opina no sentido de que volvam-se os presentes autos à Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro para que tome as medidas que entender cabíveis, já que o mesmo não goza de foro privilegiado. (fl s. 245-246 e 248-249).

Seguiu-se, então, o despacho do Procurador-Geral da República:

Nos termos da manifestação do eminente Subprocurador-Geral da República Flávio Giron, (fls. 236 a 240), que adoto como razão de decidir, Determino o arquivamento do presente feito no tocante às acusações contra o Ministro Pedro Pullen Parente. (fl . 251).

Não ignoro a existência de precedentes desta Corte, afastando a incidência

do princípio da indivisibilidade em relação à ação penal de iniciativa pública:

Habeas corpus. Processual Penal. Crime de tortura. Pedido de trancamento. Alegação de arquivamento implícito. Paciente não denunciado na primeira exordial acusatória oferecida pelo Parquet Estadual. Não ocorrência de constrangimento ilegal quanto a este tocante. Ausência de intimação do advogado para a audiência de oitiva de testemunhas no juízo deprecado, a despeito de despacho judicial que determinou a realização de tal diligência. Cerceamento de defesa confi gurado. Ordem concedida.

1. O não oferecimento imediato da denúncia com relação ao Paciente não implica na renúncia tácita ao jus puniendi estatal, pois o princípio da indivisibilidade não é aplicável à ação penal pública incondicionada, diferentemente da ação penal privada. Segundo o ordenamento jurídico pátrio, o arquivamento da ação penal pública depende de pedido expresso do Ministério Público, e somente pode ser determinado pelo Juiz.

2. O Juízo deprecado proferiu despacho determinando a intimação do Advogado da nova data de realização da audiência de oitiva de testemunhas, que não se realizou na primeira oportunidade.

Entretanto, a audiência foi realizada posteriormente, sem a intimação do Causídico. Evidente o prejuízo para a Defesa no caso, que foi desonerada da incumbência de acompanhar a tramitação da carta precatória perante o Juízo deprecado.

3. Ordem concedida, tão-somente para anular o processo-crime desde a audiência de oitiva de testemunhas no Juízo deprecado, garantindo-se a intimação do Advogado de defesa da realização do ato.

(HC n. 95.344-RJ, Rel. Ministro Jorge Mussi, Rel. p/ Acórdão Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 15.10.2009, DJe 15.12.2009, destaquei).

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Penal. Processual Penal. Habeas corpus. Falsidade ideológica. Peculato. Lavagem de dinheiro. Quebra do sigilo fiscal. Falta de prévia decisão judicial. Matéria não examinada pela Corte de origem. Supressão de instância. Investigações preliminares realizadas pelo Parquet Estadual. Possibilidade. Denúncia, ademais, baseada em inquérito policial. Ausência de nulidade. Ofensa ao princípio da indivisibilidade da ação penal. Falta de comprovação. Observância necessária apenas na ação penal privada. Trancamento da ação penal. Ex-governador do Estado do Rio Grande do Norte. Desvio de verbas públicas (representação de gabinete) em proveito próprio e de terceiros. Anterior posse do quantum. Termo que deve ser interpretado em sentido amplo, abrangendo a disponibilidade jurídica da res. Falta de provas quanto à falsidade ideológica. Estreita via do writ. Necessidade de revolvimento do conjunto fático-probatório. Ordem denegada.

1. Inviável o exame originário por este Superior Tribunal de Justiça de tese não debatida perante o Tribunal de origem (quebra do sigilo fi scal de terceiros sem prévia decisão judicial), sob pena de inequívoca e indevida supressão de instância, vedada pelo ordenamento jurídico pátrio. Precedentes.

2. Em que pese o entendimento pessoal desta Relatora em sentido contrário, os precedentes desta Corte são uníssonos em admitir a legitimidade das investigações preliminares por parte do Ministério Público, como titular da ação penal pública.

3. Ademais, a denúncia, in casu, encontra-se escorada por inquérito policial.

4. O princípio da indivisibilidade da ação penal aplica-se apenas à ação penal privada, mas não à pública. Precedentes.

5. O termo “posse” contido no tipo penal descrito no caput do artigo 312 do Código de Processo Penal deve ser interpretado de maneira ampla, abarcando, assim, qualquer tipo de disponibilidade jurídica da res apropriada/desviada. Precedente.

6. Evidenciando-se que o agente teria a anterior disponibilidade jurídica do quantum em tese desviado em proveito próprio e de terceiros, mostra-se viável a acusação pelo delito de peculato.

7. A estreita via do habeas corpus, carente de dilação probatória, não comporta o exame de questões que demandem o profundo revolvimento do conjunto fático-probatório colhido nos autos do inquérito policial instaurado contra o paciente, bem como da ação penal que o seguiu. Precedentes.

8. Evidenciando-se que a tese de falta de justa causa para sua persecução penal em juízo quanto ao crime de falsidade ideológica por falta de provas demanda o aprofundado exame dos elementos de convicção até então colhidos, porquanto não demonstrada cabal e inequivocamente por aqueles colacionados aos autos, mostra-se inviável seu acolhimento por meio da via eleita.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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9. Ordem denegada, ressalvando-se posicionamento contrário da Relatora quanto à ilegitimidade do poder investigatório do Parquet.

(HC n. 92.952-RN, Rel. Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), Sexta Turma, julgado em 19.08.2008, DJe 08.09.2008, destaquei).

De fato, trata-se de cânone normalmente invocado para o fi m de evidenciar

a extinção da punibilidade decorrente do perdão do ofendido. Ou seja, o perdão

da vítima conferido a um dos ofensores, aos demais aproveita.

Contudo, em hipóteses como a presente, na qual o Parquet se pronunciou de

forma objetiva acerca do fato, apontando, de maneira objetiva, a sua atipicidade,

tem-se, também, a meu sentir, a incidência do princípio da indivisibilidade

em relação à ação penal de iniciativa pública, já que não é dado ao Ministério

Público escolher, dentre os supostos autores de ilícitos penais, apenas alguns

para responderem criminalmente, sob pena de se infringir o princípio da

obrigatoriedade da ação penal.

Lembre-se, a propósito, a seguinte lição de EMIR DUCLERC:

O princípio da indisponibilidade, consagrado no art. 42 do CPP, é um desdobramento da obrigatoriedade. O Ministério Público não pode dispor da ação penal, desistindo, transigindo ou acordando, porque ela é obrigatória.

O princípio da indivisibilidade reza que a ação penal deve ser exercida em face de todos os autores e partícipes do fato criminoso. Veja-se, ademais, que mesmo a ação penal privada está sujeita ao princípio da indivisibilidade, nos exatos termos do art. 48 do CPP (...).

Em relação à ação penal pública, todavia, seria totalmente desnecessária a existência de um dispositivo legal com semelhante teor, porque também ele, na ação penal pública, é consequência do princípio da obrigatoriedade. Em suma: a ação penal privada é indivisível por força de um artigo de lei; a ação penal pública é indivisível porque é obrigatória contra todos. (Direito processual penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2006, v. I, p. 199-200).

Lembre-se, ademais, o caráter uno do Ministério Público. Tendo

havido a manifestação do chefe da instituição, reconhecendo a atipicidade

do comportamento de quem seria o principal artífi ce do evento articulado na

inicial, torna-se inviável prosperar a ação penal apenas em relação aos partícipes

do mesmo fato.

Não bastasse tal argumento, a atipicidade se mostra, ainda, por meio da

narrativa constante da inicial acusatória, que não descreve comportamento

doloso.

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 807

2) AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO DOLO

Tal irresignação foi assim enfrentada pela Corte de origem:

(...) Não merece, outrossim, acolhimento a alegação de que, a despeito do tipo penal do art. 4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492/1986, conter o dolo como elemento subjetivo, a narração feita na denúncia teria imputado a modalidade culposa, o que não existe em relação a tal crime. Como foi bem explicitado pelo MPF no seu parecer, as expressões empregadas na denúncia, do tipo “atuação imprudente ou negligente”, não foram utilizadas de modo a indicar a imputação de conduta culposa dos pacientes, e sim de apontar “a atuação leviana, impetuosa e ilícita dos mesmos que tinham por dever observar os fatos e as normas existentes para a concessão da fi ança em questão, o que não afasta a consciência e vontade de realização do tipo penal do artigo 4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492/1986” (fl . 1.234). Ademais, as circunstâncias em que ocorreram as operações podem ser consideradas indicativas da descrição contida na denúncia a respeito da presença do dolo devido à anormalidade da operação conscientemente realizada pelos pacientes. (fl s. 1.387-1.388).

Houve, na doutrina, quem chegasse até a apontar a previsão de modalidade culposo no seio do parágrafo único do art. 4º da Lei n. 7.492/1986 (COSTA JR. Paulo José da, et al. Crimes de colarinho branco. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 78). Contudo, não passou de entendimento isolado diante dos signifi cativos avanços democráticos alcançados pela Reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984. Neste cenário, somente é possível a responsabilização a título de culpa quando tal circunstância for expressamente prevista, sob pena de se instalar tremenda insegurança - cf. art. 18, parágrafo único, do Codex.

A impetração, a fi m de afastar a tipicidade, baseia-se no emprego, pelo Parquet, de expressões que denotariam a existência de crime culposo.

De fato, a denúncia enuncia um comportamento negligente, açodado, o que se torna patente com a expressa referência a termos próprios da violação do cuidado objetivo necessário nas circunstâncias.

Em casos como o presente, esta Corte tem determinado o trancamento da ação penal:

Habeas corpus. Processual Penal. Crime de desobediência. Pedido de trancamento da ação penal. Denúncia. Atipicidade manifesta. Descrição de crime culposo. Ausência de imputação a título de dolo. Inépcia. Precedente do STJ.

1. O trancamento da ação penal por ausência de justa causa é uma medida excepcional, somente cabível em situações, nas quais, de plano, seja perceptível o constrangimento ilegal.

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2. Reputa-se inepta a denúncia que não trata do elemento volitivo necessário à configuração do delito de desobediência, qual seja, o dolo, limitando-se à narrativa de uma conduta eminente culposa, decorrente de obstáculos burocráticos, e da negligência de funcionários subordinados.

3. Ordem concedida.

(HC n. 82.589-MS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 09.10.2007, DJ 19.11.2007, p. 257).

Note-se que a denúncia emprega os seguintes termos: “agiram

displicentemente” e que o comportamento dos corréus seria desprovido de

“atenção e seriedade devidos”. Tem-se, portanto, terreno fértil para verifi car que

a denúncia malogrou em termos de estabelecimento do aspecto subjetivo da

imputação.

A denúncia como lançada gera perplexidade, porquanto irroga acusação

de delito doloso, contudo, alinha elementos constitutivos de crime culposo,

revelando, desta forma, patente carência de justa causa.

Havendo, portanto, lastro para ser trancada ação penal em razão da

atipicidade, resta prejudicado o exame das demais questões agitadas na presente

impetração.

Por se encontrarem os corréus em situação análoga, por força do art. 580

do Código de Processo Penal, é de se lhes estender a concessão.

Ante o exposto, concedo a ordem para trancar a Ação Penal n.

2002.5101.501869-1, da 3ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio

de Janeiro, estendendo-se os efeitos aos demais corréus.

É como voto.

VOTO-VISTA

O Sr. Ministro Og Fernandes: Em sessão de 18 de março do corrente ano,

a Eminente Ministra Maria Th ereza, relatora do presente habeas corpus, concluiu

pela concessão da ordem, salientando serem atípicas as condutas atribuídas ao ora

paciente. Trilhou, ainda, pelo deferimento da extensão dos efeitos aos corréus,

por vislumbrar a incidência do disposto no art. 580 do Código de Processo

Penal.

Segundo a peça acusatória, teria sido concedida, por representantes do

Banco do Brasil, carta de fi ança no valor de R$ 784.000.000,00 (setecentos e

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 809

oitenta e quatro) milhões de reais a uma empresa cujo capital social seria de

apenas R$ 1.000,00 (mil reais).

Pedi vista dos autos por conta dos valores superlativos envolvidos na ação

penal de que aqui se cuida.

Não é de hoje que o crime previsto no art. 4º da Lei dos Crimes contra o

Sistema Financeiro Nacional é alvo de severas críticas doutrinárias.

Aponta-se violação ao princípio da taxatividade (ou reserva legal, ou

legalidade), em razão de o tipo ser por demais aberto, não havendo a indicação,

“no texto normativo, [de] quais os comportamentos humanos que caracterizam

a gestão temerária” (Costa Jr., Paulo José da. Crimes do Colarinho Branco. 2ª

edição. Saraiva: São Paulo. 2002, p. 80).

Feito esse delineamento, passo à análise da questão, cingindo-me à

apreciação da suposta ausência de indicação do dolo na conduta do ora paciente.

Penso não ser necessário, nesse momento, avançarmos na tese por meio da

qual é defendida a aplicação do princípio da indivisibilidade em se tratando de

ação penal pública.

Ressalto, ademais, que a alegação de que a conduta supostamente praticada

teria trazido lucro à instituição fi nanceira (Banco do Brasil) em nada interfere

na apreciação do caso.

Com efeito, fi lio-me à corrente doutrinária segundo a qual “mesmo que as

condutas temerárias do gestor de instituição fi nanceira, por sorte, dêem lucro, o

crime restará confi gurado desde que tenha havido comprovado risco de causar

dano relevante à instituição fi nanceira e, correlatamente, ao sistema fi nanceiro

nacional” (DELMANTO, Roberto. Leis Penais Especiais Comentadas.

Renovar: Recife, 2006, p. 143).

É fato que, na dicção majoritária, o preceito vazado no art. 4º da Lei n.

7.492/1986 exige a comprovação de dolo para sua caracterização, não havendo a

punição da gestão temerária na forma culposa. A esse respeito, lembro a lição de

Áureo Natal de Paula:

Não é possível a forma culposa, pois não foi prevista legalmente.

Além disso, o projeto da lei em comento continha previsão no art. 24 de que todos os crimes nela previstos que fossem praticados culposamente teriam a pena reduzida de um terço. Porém, o referido artigo foi completamente vetado e nas razões do veto se justifi cou que “impossível é conceber a forma culposa na maioria das condutas sancionadas penalmente”, e também se afi rmou que havia confl ito

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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com o princípio consagrado no parágrafo único, do art. 18, do Código Penal, que prevê a excepcionalidade do crime culposo. (PAULA, Áureo Natal de. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e o Mercado de Capitais. 3ª edição. Juruá: Paraná. 2008, p. 113).

Trago, também, o que escreveu José Carlos Tórtima em sua obra Crimes

contra o Sistema Financeiro Nacional (Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2000, p.

58-59), quando invocou a doutrina e também precedentes desta Corte:

Tipo subjetivo:

Quanto à gestão temerária, cuida-se (...) do dolo eventual, consistente em assumir o agente o risco do resultado danoso ou perigoso. Ao contrário do que pode sugerir a expressão temerária, a mera imprudência do agente não chega a confi gurar o ilícito penal em tela, por ser inadmissível a punição penal de conduta apenas culposa, salvo quando a lei expressamente o permite (art. 18, parágrafo único, do Código Penal). Tem sido esta, aliás, a orientação da melhor doutrina, como se pode recolher do precioso ensinamento de Miguel Reale Júnior:

De relevar, também, que a conduta deve ser informada pela intencionalidade manifesta do agente de colocar a integridade econômica-fi nanceira da instituição sob grave e iminente risco (...) O sujeito do delito, assim, deve agir com dolo, antecipando mentalmente e querendo a situação de alto risco, extraordinário risco para a saúde da instituição e do sistema fi nanceiro.

Este, aliás, o entendimento dominante na jurisprudência, tendo afi rmado a 6ª Turma do STJ, relator o eminente Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro: A gestão temerária (crime contra o Sistema Financeiro Nacional) pressupõe dolo eventual. O agente tem previsão do resultado, todavia, sem o desejar, a ele é indiferente, arrostando sem a cautela devida, a ocorrência do evento (RHC n. 6.368-SP, DJU 22.09.1997, in Alfredo de Oliveira Garcindo Filho, Jurisprudência Criminal do STF e do STJ, 1998, Edição do Autor, p. 130).

De forma não menos incisiva decidiu a Colenda 5ª Turma, em acórdão da lavra do Ministro Felix Fischer:

I. Se os fatos narrados na denúncia descrevem negligência, imprudência e imperícia, e o tipo penal da gestão temerária refere-se a crime comissivo doloso, não prevendo a forma culposa, inexiste crime a priori, sendo inepta a exordial acusatória.

II. A expressão temerária signifi ca que a gestão criminalmente relevante deve implicar necessariamente num liame subjetivo entre a conduta do paciente e o resultado danoso - o que não restou demonstrado in casu.

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

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III. Recurso provido para determinar-se o trancamento da ação penal, por inépcia da denúncia.

(STJ, RHC n. 7.982-RJ, DJ 29.11.1999, p. 176).

De fato, tratando-se de tipo punido somente na modalidade dolosa, não se

revela viável o prosseguimento da persecução penal quando, tal qual ocorreu na

hipótese presente, a peça acusatória narra condutas culposas.

A fi m de espancar eventuais dúvidas, relembro o que consta na denúncia

(fl s. 521-523):

Em 28.07.1998, os denunciados, na condição de funcionários do Banco do Brasil, concederam Carta de Fiança à empresa Solpart Participações S/A, no valor de R$ 874.200.000,00 (oitocentos e setenta e quatro milhões e duzentos mil reais), para que esta participasse do leilão de privatização da estatal Telecomunicações Brasileiras S/A – Telebrás, ocorrido em 29.07.1998.

Ocorre que a concessão da referida garantia foi feita de forma fl agrantemente irregular, porquanto não observou os critérios fi xados pelo Banco Central do Brasil - Bacen, expondo a risco o patrimônio do Banco do Brasil e o Sistema Financeiro Nacional como um todo, através do gerenciamento temerário daquela instituição bancária, como se demonstrará a seguir.

Primeiramente, há que se destacar que, quando da concessão da Carta de Fiança, o capital social da empresa Solpart Participações S/A era de míseros R$ 1.000,00 (mil reais), conforme registro na Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro - Jucerja, o que já denota irregularidade, vez que a garantia concedida era absolutamente incompatível com o porte da empresa afi ançada.

Ademais, a única garantia que a Solpart apresentou foi o aval da empresa Techold Participações S/A cujo capital social era de R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Logo, percebe-se que não havia garantias sufi cientes para assegurar ao Banco do Brasil a satisfação de seu crédito, caso a fi ança tivesse de ser honrada. Ouvidos em sede policial, os ora denunciados argumentaram que foram uníssonos em aprovar a operação, por que constataram a participação de grandes agentes econômicos, tais como o Grupo Opportunity, a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil - Previ e a Fundação Sistel de Seguridade Social; situação que, na ótica dos mesmos, minimizaria os riscos e dava credibilidade à Solpart, recomendando o negócio. Tal argumentação pode ser facilmente refutada, à medida que estes fundos participavam apenas indiretamente do consórcio e, assim sua responsabilidade era limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas, conforme dispõe o art. 1º da Lei n. 6.404/1976. Note-se, ainda, que as assertivas dos ora denunciados no sentido de que se Solpart S/A não honrasse o negócio, os agentes econômicos indiretamente envolvidos teriam suas credibilidades afetadas no mercado financeiro em geral, revela-se mera

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elucubração, já que suas capacidades econômico-financeiras continuariam integralmente preservadas.

Neste contexto, há de se dar razão às conclusões expressas no parecer do Bacen (fl s. 10-26). Os técnicos do órgão fi scalizador consideraram subjetivos os critérios levados em conta pelos funcionários do Banco do Brasil na concessão da Carta de Fiança, porquanto os mesmos se prenderam aos nomes das grandes empresas que fi guravam indiretamente na operação, ao invés de averiguar a existência de capital e patrimônio próprios da Solpart. Como bem disse a analista do Bacen, Ormina de Almeida Ferreira, fl s. 197-190, para o deferimento de um negócio dessa monta, deve ser analisado o comportamento da empresa em uma situação em que esta não conseguisse honrar seus compromissos. E, na hipótese, em caso de difi culdades fi nanceiras da Solpart, o Banco do Brasil não teria meios de resgatar todo o seu investimento, uma vez que as empresas que a integram pagariam apenas no limite de suas participações.

(...)

Por outro lado, entre a elaboração da “Súmula de Estudo de Operações - Prestação de Garantia” - documento resultante da análise do risco da operação, fruto de decisão conjunta do Comitê de Crédito da Superintendência Estadual do Rio de Janeiro, ambas do Banco do Brasil aprovada pela Diretoria do órgão, e a celebração do contrato de fi ança, passaram-se menos de vinte e quatro horas, o que, de antemão, já revela que os responsáveis agiram displicentemente, não analisando todas as questões necessárias com o grau de atenção e seriedade devidos.

Da mesma forma, o ora denunciado Ricardo Sérgio de Oliveira, em depoimento de fl s. 355, afi rmou que muitos riscos e limites não precisavam ser apurados, pois já se encontravam previamente defi nidos em documentos internos do Banco do Brasil. Algumas empresas poderiam eventualmente nem mesmo estar catalogadas, mas por serem largamente conhecidas no mercado, dispensavam um processo formal e prévio de aprovação de crédito.

Deve-se destacar ainda que, por conta da magnitude do valor envolvido, a competência para a aprovação, em última análise, da garantia era do Conselho de Administração do Banco do Brasil. Sob a justifi cativa da exigüidade temporal, a concessão da garantia foi aprovada ad referendum por Pedro Pullen Parente, na qualidade de Presidente daquele Conselho, tal qual confi rma o depoimento de João Batista de Camargo, às fl s. 196. Note-se que tal aprovação contrariou o procedimento previsto no Estatuto daquela sociedade; qual seja, a convocação de reunião extraordinária para casos urgentes.

Por fi m, cabe ressaltar que o crime de gestão temerária de instituição fi nanceira não exige, para a sua consumação, tenha havido o efetivo prejuízo ao Sistema Financeiro, mas apenas o risco causado à sua higidez e estabilidade, por um atuar imprudente ou negligente. (sem destaques no original).

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 813

Como visto, há referências a uma atuação displicente, à imprudência, à

negligência, vetores ligados à ideia da culpa, o que macula a incoativa.

Por tais circunstâncias, voto também eu pela concessão da ordem, para

trancar a ação penal, dada a inépcia da denúncia. Havendo similitude de

situações, estendo os efeitos desta decisão aos corréus.

HABEAS CORPUS N. 109.447-RJ (2008/0137650-0)

Relator: Ministro Og Fernandes

Impetrante: Marcos AS Aragão

Impetrado: Tribunal Regional Federal da 2ª Região

Paciente: Guido Crocchi

EMENTA

Habeas corpus. Crime contra o Sistema Financeiro e apropriação

indébita. Justa causa. Ocorrência. Aplicação diversa da contratualmente

prevista de recursos obtidos mediante financiamento público.

Desvio de fi nalidade. Crime comum. Trancamento da ação penal.

Impossibilidade.

1. O trancamento da ação penal, consoante reiterada

jurisprudência desta Corte, é medida de índole excepcional, cabível

apenas nas hipóteses em que desponte, de plano, a atipicidade da

conduta, a inexistência de qualquer elemento indiciário demonstrativo

de autoria ou da materialidade do delito ou, ainda, causa excludente

de punibilidade.

2. O tipo penal descrito no art. 20 da Lei n. 7.492/1986

tem, como objetivo principal, evitar que os recursos provenientes

de financiamento concedido por instituição financeira oficial ou

credenciada para repassá-los sejam destinados a fi nalidade diversa

daquela que serviu de fundamento – em lei ou contrato – para a

liberação do numerário.

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3. Não há, em relação a tal crime, especificidade quanto a

qualidade do sujeito ativo – que pode ser o tomador ou qualquer

outra pessoa a quem seja disponibilizada a verba – bastando, para sua

confi guração, que seja aplicado, com desvio de fi nalidade, o numerário

obtido mediante fi nanciamento público. Trata-se, portanto, de crime

comum.

4. Assim, conquanto o paciente não tenha contraído diretamente

o fi nanciamento público, o fato é que a denúncia revela que sua

utilização se deu com destino diverso daquele contratualmente

pactuado.

5. Ordem denegada.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento, após voto-vista do Sr. Ministro Celso Limongi denegando a ordem, e os votos dos Srs. Ministros Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE) e Maria Th ereza de Assis Moura no mesmo sentido, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE) e Maria Th ereza de Assis Moura votaram com o Sr. Ministro Relator.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Brasília (DF), 09 de novembro de 2010 (data do julgamento).

Ministro Og Fernandes, Relator

DJe 06.12.2010

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Og Fernandes: Trata-se de habeas corpus impetrado em

benefício de Guido Crocchi – denunciado como incurso no art. 20 da Lei n.

7.492/1986 e art. 168, caput, do Código Penal – contra o v. acórdão proferido

pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região que denegou a ordem lá impetrada

nos termos desta ementa (fl s. 52-53):

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RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 815

Direito Penal. Habeas corpus. Art. 20 da Lei n. 7.492/1986. Crime comum. Elemento subjetivo do tipo. Sujeito ativo. Dolo. Exame de provas. Impossibilidade em sede de habeas corpus. Justa causa para a ação penal.

1. Trata-se de habeas corpus objetivando seja o Paciente excluído da Ação Penal tombada sob o n. 97.0060903-0 no Juízo da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, na qual foi denunciado pela prática do crime previsto no artigo 20 da Lei n. 7.492/1986. Alega que o delito objeto da denúncia é crime próprio do tomador de recursos e que o Paciente é Diretor-Presidente da empresa com a qual a empresa tomadora de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - Navegação Mansur -, fi rmou contrato para construção de determinada embarcação com recursos tomados; sendo os dirigentes desta, portanto, os supostos sujeitos ativos do delito. Conclui que, a ausência de circunstância elementar integrante do tipo a ensejar comunicação entre sujeito ativo do crime próprio e o Paciente, confi gura falta de justa causa para a ação penal a que o paciente responde.

2. O impetrante sustenta a ausência de justa causa para a ação penal instaurada contra o paciente, porquanto baseada em denúncia por suposto cometimento de crime próprio - art. 20 da Lei n. 7.492/1986; sendo que o paciente não integrava a empresa tomadora dos recursos para construção da embarcação.

3. Primeiramente, é posição desta Corte que o trancamento da ação penal, normalmente, é inviável em sede de writ, pois depende do exame da matéria fática e probatória. A alegação de ausência de justa causa para o prosseguimento do feito deve ser reconhecida quando, sem a necessidade de exame aprofundado e valorativo dos fatos, indícios e provas, restar inequivocamente demonstrada, pela impetração, a atipicidade fl agrante do fato.

4. Ao contrário do alegado, o delito tipifi cado no artigo 20 da Lei n. 7.492/1986 não cuida de crime próprio, mas descreve conduta típica que pode ser cometida por qualquer pessoa, tratando-se, pois de crime comum.

5. Não é correto afirmar que somente o tomador dos recursos junto à instituição fi nanceira ofi cial pode ser sujeito ativo do crime previsto no art. 20 da Lei n. 7.492/1986, conforme alegado pelo Impetrante. Os administradores de pessoa jurídica benefi ciária do fi nanciamento, ainda que diversa da tomadora dos recursos, poderão incorrer nas penas cominadas no referido artigo, caso apliquem a verba em fi nalidade diversa da prevista no contrato.

6. O valor concedido pela instituição financeira oficial foi aplicado em atividade diversa daquela estabelecida no contrato. Nada impede que responda, como partícipe, o Diretor Industrial do Estaleiro Caneco - ora paciente, quando, ciente da destinação ilícita dos componentes da embarcação (dolo) ou ainda, quando não observados os cuidados necessários à destinação dos mesmos, com a ciência de que, em conseqüência desta inobservância, os mesmos poderiam ser desviados (dolo eventual).

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7. Por não constatar, no caso concreto, ausência de justa causa por manifesta atipicidade da conduta e diante da necessidade de discussões acerca da existência do dolo, matéria que demanda dilação probatória, inadequada em sede de habeas corpus, não se justifi ca a concessão da ordem vindicada.

Habeas corpus denegado.

Alega o impetrante, em síntese, ausência de justa causa para a ação penal

na medida em que “o delito previsto no artigo 20 da Lei n. 7.492/1986 é

próprio, cujo sujeito ativo só pode ser o tomador dos recursos” ou seja, “aquele

que fi rmou contrato com a instituição fi nanceira” (fl . 23). Requer, diante disso, o

trancamento da ação penal.

Dispensadas as informações, foram os autos ao Ministério Público Federal

que, em parecer da lavra da Procuradora Regional da República Solange Mendes

de Souza, no exercício do cargo de Subprocuradora-Geral da República,

manifestou-se pela denegação da ordem.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Og Fernandes (Relator): Depreende-se dos autos que a

empresa (um estaleiro) na qual o paciente fi gura como Diretor-Presidente foi

contratada por outra empresa – Navegação Mansur S/A – para construção de

um navio de casco identifi cado pelo número EC-337, cujo aporte fi nanceiro

foi obtido por meio de repasse efetivado pelo BNDES - Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social.

Entretanto, conforme se vê na peça inaugural, após receber os recursos

destinados para essa fi nalidade, utilizou-os na montagem de outro navio, de

casco número EC-338, de propriedade de outra empresa. Nesse particular, para

melhor compreensão do caso, convém que se transcreva os seguintes trechos da

denúncia (fl s. 55-65):

Consta dos autos do IPL em epígrafe que, no ano de 1995, entre os meses de maio e julho, os denunciados, o primeiro na qualidade de Diretor-Presidente, o segundo na condição de Diretor-Técnico e o terceiro na condição de Diretor industrial da empresa Indústrias Reunidas Caneco S/A (Estaleiro Caneco), determinaram que esse estaleiro, por eles dirigido, e contratado pela Empresa de Navegação Mansur S/A para construir o navio de casco identifi cado pelo número EC-337, com recursos repassados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 817

Econômico e Social - BNDES, empresa pública federal atuando na qualidade de agente fi nanceiro do Fundo de Marinha Mercante - FMM, após receber os recursos destinados para essa fi nalidade, utilizasse, como de fato utilizou, a maior parte dos blocos de aço do casco EC-337 e comprados com os referidos recursos, na montagem de outro navio, de casco número EC-338, de propriedade de outra empresa (Cia. de Navegação Norsul S/A), caracterizando, assim, a aplicação, em finalidade diversa do contrato, dos recursos repassados pela instituição fi nanceira ofi cial BNDES, bem como a apropriação indébita dos blocos de casco pertencentes à Empresa de Navegação Mansur S/A.

(...)

Assim agindo, ao praticarem, voluntariamente, as condutas anteriormente descritas, caracterizadas como aplicação, em fi nalidade diversa do contrato, dos recursos repassados pela instituição fi nanceira ofi cial BNDES, provenientes do FMM, incorreram nas penas cominadas ao artigo 20, da Lei n. 7.492/1986, além de se apropriarem indevidamente dos blocos de casco pertencentes à empresa Mansur, desviando-os em proveito da empresa Norsul, incorrendo, por sua vez, nas panas cominadas ao artigo 168, caput, do CPB.

O quadro fático, portanto, é o seguinte: a empresa de navegação Mansur

S/A tomou empréstimo junto ao BNDES e o repassou à empresa do paciente.

Esta, por sua vez, aplicou-o em destinação diversa da prevista no contrato, daí a

sua incursão no art. 20 da Lei n. 7.492/1986 que diz o seguinte:

Art. 20. Aplicar, em fi nalidade diversa da prevista em lei ou contrato, recursos provenientes de fi nanciamento concedido por instituição fi nanceira ofi cial ou por instituição credenciada para repassá-lo:

Pena - reclusão, de 02 (dois) a 06 (seis) anos, e multa.

Cinge-se a impetração, portanto, na alegação de que o referido artigo

contém crime próprio, vale dizer, exige, para sua confi guração, determinada

qualidade pessoal do agente, como ocorre, por exemplo, no peculato ou

prevaricação.

Assim, segundo a impetração, somente o tomador do financiamento

perante o BNDES – Empresa de Navegação Mansur S/A – pode ser sujeito

ativo do crime e não o paciente que fi gura como representante de outra empresa

que apenas recebeu o repasse do importe fi nanceiro. Daí o pleito de trancamento

da ação penal.

Tenho comigo que o pedido improcede.

O trancamento da ação penal, consoante reiterada jurisprudência desta

Corte, é medida de índole excepcional, cabível apenas nas hipóteses em que

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

818

desponte, de plano, a atipicidade da conduta, a inexistência de qualquer elemento

indiciário demonstrativo de autoria ou da materialidade do delito ou, ainda,

causa excludente de punibilidade.

No caso, a denúncia descreve, com clareza, que a Empresa de Navegação

Mansur S/A, após contrair fi nanciamento de fundo federal gerenciado pelo

BNDES, contratou as Indústrias Reunidas Caneco S/A, da qual o paciente

é o Diretor-Presidente, para construir um navio do tipo graneleiro, tudo

devidamente especificado em contrato firmado por ambas as empresas.

Diversamente do pactuado, a empresa do paciente destinou tais verbas para

outra fi nalidade.

O tipo penal descrito no art. 20 da Lei n. 7.492/1986 tem, como objetivo

principal, evitar que os recursos provenientes de fi nanciamento concedido por

instituição fi nanceira ofi cial ou credenciada para repassá-los sejam destinados a

fi nalidade diversa daquela que serviu de fundamento – em lei ou contrato – para

a liberação do numerário. Como salienta GUILHERME NUCCI:

O objeto da conduta é o recurso (numerário) originário de fi nanciamento (importância destinada a custear a despesa de algo, antecipando-se quantia, a ser paga posteriormente) concedido por instituição fi nanceira ofi cial (estatal) ou outra, devidamente credenciada pelo Estado para repassá-lo. Busca-se proteger o recurso levantado em órgão ofi cial - ou controlado pelo Estado - do emprego em fi nalidade diversa para a qual foi liberado. Com isso, mantém-se a credibilidade no mercado fi nanceiro, com instituições fortalecidas e investidores protegidos. Se os recursos provenientes de fi nanciamento forem desviados, não há política estatal de controle de gastos e emprego racional de verbas que se sustente.

(c.f. in Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 1.111).

Não há, em relação a tal crime, especifi cidade quanto a qualidade do

sujeito ativo – que pode ser o tomador ou qualquer outra pessoa a quem seja

disponibilizada a verba – bastando, para sua confi guração, que seja aplicado, com

desvio de fi nalidade, o numerário obtido mediante fi nanciamento público.

Trata-se, portanto, de crime comum e, nesse sentido, encontra-se a doutrina

abalizada, como por exemplo, de LUIZ REGIS PRADO, quando afi rma:

2. Bem jurídico e sujeitos do delito

Tutelam-se a execução da política de crédito do estado, bem como o patrimônio da instituição e dos investidores (delito pluriofensivo).

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 819

Sujeito ativo do delito é qualquer pessoa que, tendo obtido o financiamento, desvia-o de sua fi nalidade (delito comum).

Sujeitos passivos são o Estado e a própria instituição fi nanceira.

(in Direito Penal Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 320).

Nesse diapasão, ainda, PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR (in “Crimes

do Colarinho Branco”. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 131), GUILHERME

DE SOUZA NUCCI (in Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 4ª

ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 1.111) e JOSÉ

CARLOS TÓRTIMA (in Crimes Contra o Sistema Financeiro. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 137).

Assim, conquanto o paciente não tenha contraído diretamente o

fi nanciamento público, o fato é que a denúncia revela que a sua utilização se deu

com destino diverso daquele contratualmente pactuado.

A propósito, convém destacar o seguinte aresto desta Corte:

Penal. Processual. Crime contra o Sistema Financeiro Nacional. Capitulação. Habeas corpus.

1. Comete o crime previsto na Lei n. 7.492/1986, art. 20, o agente que autoriza a aplicação, em finalidade diversa daquela prevista em Lei ou contrato, recursos provenientes de fi nanciamento concedido por instituição fi nanceira.

2. Habeas corpus conhecido; pedido indeferido.

(HC n. 11.394-MS, Rel. Ministro Edson Vidigal, DJ de 08.03.2000).

Estou, portanto, de acordo com o que disse o Relator na origem, nestas

passagens (fl s. 46-47):

Não é correto afi rmar que somente o tomador dos recursos junto à instituição fi nanceira ofi cial pode ser sujeito ativo do crime previsto no art. 20 da Lei n. 7.492/1986, conforme alegado pelo impetrante. Os administradores de pessoa jurídica beneficiária do financiamento, ainda que diversa da tomadora dos recursos, poderão incorrer nas penas cominadas no referido artigo, caso apliquem a verba em fi nalidade diversa da prevista no contrato.

(...)

O valor concedido pela instituição ofi cial foi aplicado em atividade diversa daquela estabelecida no contrato. Nada impede que responda, como partícipe, o Diretor Industrial do Estaleiro Caneco - ora paciente, quando ciente da destinação ilícita dos componentes da embarcação (dolo) ou ainda, quando não observados os cuidados necessários à destinação dos mesmos, com a ciência de que, em

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conseqüência desta inobservância, os mesmos poderiam ser desviados (dolo eventual).

Tais as considerações, denego a ordem.

VOTO-VISTA

O Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP): A

discussão se circunvolve a saber se o sujeito ativo na prática do delito descrito

no art. 20 da Lei n. 7.492/1986 pode ser qualquer pessoa ou somente o tomador

de recursos, isto é, se se trata de crime próprio ou crime comum. E tudo, porque

a tomadora de recursos, a Navegação Mansur SA., se comprometera a fabricar

um modelo de navio, tipo graneleiro, identifi cado pelo código EC-337, mas

construiu navio com o casco EC-338, encomendado às Indústrias Reunidas

Caneco SA., do que resultou denúncia do paciente, Diretor industrial do

Estaleiro Caneco. Os recursos fi nanceiros foram obtidos junto ao Banco de

Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, daí a proibição de utilizá-

los com outra fi nalidade, a caracterizar o delito descrito no art. 20 da lei acima

referida.

O ilustre impetrante postula, pois, o reconhecimento da inépcia da

denúncia, porquanto o paciente, na condição de Diretor do Estaleiro, não

poderia praticar esse crime, porque não integrava a diretoria da Navegação

Mansur SA. Crime próprio, cabe o trancamento da ação penal, por falta de justa

causa.

Formulado o pedido perante o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, foi

denegado, razão pela qual agora formula o mesmo pedido perante esta Corte

Superior.

O Ministro Og Fernandes, na condição de relator, denegou a ordem.

Pedi vista, para apreciar, em especial, a alegação de que se tratava de crime

próprio.

No entanto, não é o que a jurisprudência e a doutrina têm entendido, como,

aliás, bem o demonstrou o culto Relator. Há convergência de entendimento,

segundo os precedentes trazidos e conforme a doutrina, em especial, Guilherme

Nucci.

Conforme comentários de Cezar Roberto Bittencourt sobre o art. 20

da Lei n. 7.492/1986: “Sujeito ativo do crime de desvio de fi nanciamento

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 821

para finalidade diversa da prevista pode ser qualquer pessoa que obtenha

fi nanciamento nessas condições, sem a exigência de qualquer qualidade ou

condição especial (crime comum)”. (Crimes contra o sistema financeiros

nacional & contra o mercado de capitais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010).

De acordo com ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci: “São

considerados comuns os delitos que podem ser cometidos por qualquer pessoa;

são próprios os crimes que exigem sujeito ativo especial e qualifi cado, isto é,

somente podem ser praticados por determinadas pessoas.” (Manual de Direito

Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006).

Não vejo, de tal arte, como considerar a inépcia da denúncia: o delito

imputado ao paciente não é crime próprio, de modo que, podendo ser praticado

por qualquer pessoa, não fi ca excluído o paciente.

A questão, em meu sentir, resolve-se pela prova a ser produzida em juízo:

se o paciente participou conscientemente da fraude, sabedor de que utilizava

recursos fi nanceiros para destinação distinta daquela proposta ao BNDES.

Meu voto, assim, acompanho o do eminente Relator.

HABEAS CORPUS N. 137.628-RJ (2009/0103503-9)

Relator: Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do

TJ-CE)

Impetrante: Fernando Augusto Fernandes e outros

Impetrado: Tribunal Regional Federal da 2ª Região

Paciente: Rebeca Daylac

EMENTA

Penal. Habeas corpus. Descaminho. Formação de quadrilha.

Lavagem de dinheiro. Inexistência de processo administrativo fi scal

encerrado em relação ao descaminho. Mesmo tratamento conferido

aos crimes contra ordem tributária. Trancamento da ação penal relativa

ao descaminho com extensão dos efeitos da decisão aos corréus.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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Lavagem de dinheiro. Autonomia em relação ao crime antecedente.

Origem dos valores ilícitos. Exame aprofundado do conjunto fático-

probatório. Existência de crimes praticados em organização criminosa.

Fundamento sufi ciente à manutenção do curso da ação penal sobre

lavagem de dinheiro. Trancamento em sede de habeas corpus. Medida

excepcional. Ordem concedida em parte.

1 - A Sexta Turma desta Corte firmou o entendimento de

que o tratamento conferido aos delitos previstos no art. 1º da Lei n.

8.137/1990 deve também ser aplicado ao descaminho, por se tratarem

todos, em última análise, de crimes contra a ordem tributária.

2 - Se na data do oferecimento da denúncia não havia se

encerrado o processo administrativo fi scal falta condição objetiva

de punibilidade exigida pelo tipo penal, devendo ser trancada a ação

penal que apura o descaminho, sem prejuízo de que nova denúncia

seja oferecida após o trânsito em julgado na esfera administrativa e a

respectiva constituição defi nitiva do crédito tributário.

3 - Inexistindo distinção entre a situação fático-processual

da paciente e dos demais acusados, no tocante ao descaminho, e

sendo aplicável a eles os mesmos fundamentos adotados em relação

à acusada, deve ser estendido a eles os efeitos da concessão da ordem,

nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal.

4 - A majoritária jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

é no sentido de que a apuração do crime de lavagem de dinheiro é

autônoma e independe do processamento e da condenação em crime

antecedente, sendo necessário apenas sejam apontados os indícios

sufi cientes da prática do delito anterior.

5 - Impossibilidade de trancamento do crime de lavagem de

dinheiro, pois não há como se afi rmar sem um exame aprofundado

do conjunto fático-probatório que os valores de origem ilícita são

oriundos única e exclusiva no descaminho imputado na denúncia.

6 - Somente pelo exame detalhado das provas, procedimento

próprio da instrução criminal, é que se esclarecerá se houve a

participação da paciente nos delitos imputados pelo parquet, sendo

certo que a denúncia fez menção expressa sobre a existência, em

tese, de locações simuladas nas 90 lojas do grupo, de sonegações

fi scais milionárias e “blindagem patrimonial” visando à ocultação de

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RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 823

patrimônio dos envolvidos. Devem os fatos apontados e as provas

constantes dos autos ser melhor analisados no bojo da respectiva

ação penal, onde a paciente poderá exercer amplamente seu direito

de defesa requerendo, inclusive, a realização de diligências e perícias,

procedimentos que sabidamente são incompatíveis com a estreita via

do mandamus.

8 - Por outro ponto, também mostra-se inviável o trancamento

da ação penal em relação ao crime de lavagem de capitais se a denúncia

imputa à paciente a prática de crimes de lavagem de dinheiro, formação

de quadrilha e descaminho, todos praticados dentro de estruturada

organização criminosa, adequando-se as condutas na previsão do

inciso VII do art. 1º da Lei n. 9.613/1998.

9 - O trancamento da ação em sede de habeas corpus é medida

excepcional que somente pode ser deferida quando se mostrar

evidente a atipicidade do fato, se verifi que a absoluta falta de indícios

de materialidade e de autoria do delito ou que esteja presente uma

causa extintiva da punibilidade, hipóteses não encontradas no presente

caso, pois são apresentados na denúncia fatos que, em tese, podem

caracterizar a participação da paciente na prática de crimes em

organização criminosa e contra a administração pública, inviabilizado,

portanto, o encerramento prematuro do processo criminal em relação

ao crime previsto no art. 1º da Lei n. 9.613/1998.

10 - Habeas corpus concedido em parte para trancar a ação penal

que apura o crime de descaminho na Ação Penal n. 2006.51.01.523722-

9, da 2ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro,

sem prejuízo de que nova denúncia seja oferecida após o encerramento

do processo administrativo fi scal, estendo, de ofício, os efeitos desta

decisão aos corréus, nos termos do art. 580 do Código de Processo

Penal, mantido o curso da referida ação penal em relação aos demais

delitos.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Sexta

Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas

taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, conceder em parte ordem de habeas

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corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator, com extensão aos corréus

Attílio Milone, Luigi Fernando Milone, Marcio Caio Roberto Buchsman,

Paulo Eduardo Laurenz Buschbaum, Josemar Luiz Torres da Silva, Samuel

Gorberg, Armando Antonio Pires Ferreira, Délio Valderato Júnior, Mariza

Gorberg, Vanuza Jardim Miranda e Maria Fernanda Moura, nos termos do voto

do Sr. Ministro Relator.

A Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura e os Srs. Ministros, Og

Fernandes e Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP) votaram

com o Sr. Ministro Relator.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Brasília (DF), 26 de outubro de 2010 (data do julgamento).

Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE),

Relator

DJe 17.12.2010

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE): Trata-se de habeas corpus, impetrado em favor de Rebeca Daylac, apontando como autoridade coatora o Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

Colhe-se dos autos que a paciente foi denunciada como incursa nos arts. 288 e 334 do Código Penal e art. 1º, incisos V e VII, da Lei n. 9.613/1998, em continuidade delitiva.

Alegam os impetrantes que falta condição objetiva de punibilidade para os crimes de descaminho e de lavagem de dinheiro, provenientes dos supostos descaminhos, tendo em vista que inexistia, ao tempo do oferecimento da denúncia, procedimento administrativo fi scal encerrado.

Aduzem que a Sexta Turma firmou entendimento dispensando igual tratamento aos crimes de contrabando e descaminho, por se tratarem, em última análise, de crimes de natureza tributária, embora não alcançados pela Lei n. 8.137/1990.

Afi rmam que a “chamada autonomia processual e de punibilidade do crime de lavagem em relação ao crime antecedente (art. 2º, II, e art. 2º, § 1º, da Lei n. 9.613/1998) não afasta, por óbvio, a exigência, absolutamente essencial à

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RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 825

formação do tipo, de que exista, ao menos em tese, o crime antecedente” e que “acolhida a tese de inexistência desta condição para o crime de descaminho, no caso em tela, inevitável é o reconhecimento da atipicidade do dito crime antecedente” (fl . 32).

Pretendem nesse habeas corpus, exclusivamente, o trancamento da ação penal em relação aos crimes de descaminho e de lavagem de dinheiro e a anulação de todas as medidas cautelares decretadas com fundamento na suposta prática dos delitos acima mencionados.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE) (Relator): Tenho que a ordem deve ser parcialmente concedida, pois esta Turma entende que o mesmo tratamento conferido aos delitos previstos no art. 1º da Lei n. 8.137/1990 deve ser aplicado ao descaminho, por se tratarem todos, em última análise, de crimes contra a ordem tributária.

Na conclusão da representação da Polícia Federal pela expedição de mandados de busca e apreensão, sequestro de bens e decretação das prisões preventivas e provisórias, pode extrair-se que inexistia procedimento administrativo fi scal instaurado sobre o crime de descaminho apontado na presente denúncia, verbis:

Como medida cautelar, e visando evitar futuros questionamentos de ordem processual, solicito a Vossa Excelência que seja expressamente autorizado o acesso aos bancos de dados dos HD’s (memória dos computadores), mídias avulsas e celulares que venham a ser apreendidos, para que todo material possa ser analisado pela perícia técnica, integrando o conjunto probatório.

Também represento, com lastro no art. 1º, V e VII e art. 4º, da Lei n. 9.613/1998, pelo sequestro dos bens e valores pertencentes aos investigados, em especial os veículos, valores em espécie acima de R$ 10 mil, e ainda dos bens imóveis, declarando, na decisão, nulo de pleno direito qualquer ato posterior de disposição dos referidos bens, ofi ciando-se na sequência aos órgãos de registro respectivos.

Sob o mesmo fundamento, represento ainda pelo bloqueio, através do sistema disponibilizado pelo Banco Central do Brasil, das contas bancárias tituladas pelos investigados pessoas físicas e pessoas jurídicas nas instituições que fazem parte do Sistema Financeiro Nacional. Devendo, ainda, ser informado pelas instituições fi nanceiras acerca de existências de cofres mantidos pelos representados e o conteúdo dos mesmos.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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No que tange aos produtos comercializados nas lojas Casa & Vídeo que sejam fruto do crime de descaminho, reiteradamente praticado pela empresa importadora Asian Center, solicito autorização para que Auditores da Receita Federal acompanhem as diligências e se encarreguem da apreensão das mercadorias.

Outrossim, represento que, simultaneamente a esta operação policial, seja determinado à Receita Federal que instaure uma ação fiscal, uma vez que as mercadorias correm risco de serem comercializadas ou mesmo desaparecer das lojas e depósitos.

Considerando o grande número de lojas do grupo Casa & Vídeo, represento pela expedição de ordem judicial determinando aos diretores da Casa & Vídeo que entreguem todas as mercadorias importadas pela empresa Asian Center, existentes nos estoques das lojas ou em depósitos, e, ainda, informação contendo todo o estoque real dos produtos comercializados, especifi cando os produtos, preços de aquisição, fornecedores e quantidade, em formato digital, à Receita Federal.

Por fim, solicito que a Receita Federal seja autorizada a utilizar todo material produzido nessa investigação nos procedimentos administrativos e fi scais que forem instaurados para apurar os crimes de descaminho, sonegação fi scal, entre outros, vinculados às empresas mencionadas acima. (fl s. 423) - g.n.

Como visto, em 10 de novembro de 2008, data da representação do setor

de inteligência da Polícia Federal, é que foi requerido o início dos procedimentos

administrativos e fi scais relativos à verifi cação do crime de descaminho. A

denúncia oferecida é de 03 de dezembro de 2008, sendo certo que naquela data

não havia se encerrado o processo administrativo com a respectiva constituição

defi nitiva do crédito tributário, inexistindo, portanto, a condição objetiva de

punibilidade exigida pelo tipo penal.

Dessa forma, deve ser trancada a ação penal que apura o descaminho,

sem prejuízo de que nova denúncia seja oferecida após o trânsito em julgado

na esfera administrativa com a respectiva constituição defi nitiva do crédito

tributário.

Nesse sentido é a nossa jurisprudência:

A - Descaminho (caso). Habeas corpus (cabimento). Matéria de prova (distinção). Esfera administrativa (Lei n. 9.430/1996). Processo administrativo-fi scal (pendência). Ação penal (extinção).

1. Determina a norma (constitucional e infraconstitucional) que se conceda habeas corpus sempre que alguém esteja sofrendo ou se ache ameaçado de sofrer violência ou coação; trata-se de dar proteção à liberdade de ir, fi car e vir, liberdade

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 827

induvidosamente possível em todo o seu alcance. Assim, não procedem censuras a que nele se faça exame de provas. Precedentes do STJ.

2. A propósito da natureza e do conteúdo da norma inscrita no art. 83 da Lei n. 9.430/1996, há de se entender que a condição ali existente é condição objetiva de punibilidade, e tal entendimento também se aplica ao crime de descaminho (Cód. Penal, art. 334).

3. Em hipótese que tal, o descaminho se identifi ca com o crime contra a ordem tributária. Precedentes do STJ: HCs n. 48.805, de 2007, e n. 109.205, de 2008.

4. Na pendência de processo administrativo no qual se discute a exigibilidade do débito fi scal, não há falar em procedimento penal.

5. Recurso ordinário provido para se extinguir, relativamente ao crime de descaminho, a ação penal.

(RHC n. 25.228-RS, Relator o Ministro Nilson Naves, DJe de 08.02.2010).

B - Processo Penal. Habeas corpus. Crimes de falso, descaminho e quadrilha. 1. Inépcia formal. Falta de individualização das condutas. Constrangimento ilegal. Ocorrência. Extensão aos corréus. 2. Descaminho. Pendência de recurso administrativo. Ubi eadem ratio, ubi idem ius. Trancamento. Necessidade.

1. Cumpre ao acusador individualizar o comportamento típico, sob pena de enveredar pelos sombrios caminhos da responsabilidade penal objetiva, fazendo-se tábula rasa da garantia constitucional da ampla defesa.

2. Não há razão lógica para se tratar o crime de descaminho de maneira distinta daquela dispensada aos crimes tributários em geral. Com a anulação do processo penal ab initio, verifica-se, desta forma, que o pagamento do tributo se insere anteriormente ao recebimento de eventual nova incoativa. Assim, é de se determinar o trancamento da ação penal no tocante ao descaminho.

3. Ordem concedida em parte, acolhido o parecer do Ministério Público Federal, para, apenas no tocante ao Processo n. 2006.50.01.007773-8: a) anular o processo, dada a inépcia formal de denúncia; estendendo-se os efeitos aos demais corréus, nos moldes do art. 580 do Código de Processo Penal, e, b) em relação ao crime de descaminho, trancar a ação penal, em razão da falta de justa causa - pagamento do tributo antes do recebimento de eventual nova denúncia.

(HC n. 67.415-ES, Relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 28.09.2009).

C - Penal. Habeas corpus. Descaminho. Trancamento da ação penal. Ausência de prévia constituição do crédito tributário na esfera administrativa. Natureza tributária do delito. Ordem concedida.

1. Consoante recente orientação jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal Federal, seguida por esta Corte, eventual crime contra a ordem tributária depende,

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

828

para sua caracterização, do lançamento defi nitivo do tributo devido pela autoridade administrativa.

2. O crime de descaminho, por também possuir natureza tributária, eis que tutela, dentre outros bens jurídicos, o erário público, deve seguir a mesma orientação, já que pressupõe a existência de um tributo que o agente logrou êxito em reduzir ou suprimir (iludir). Precedente.

3. Ordem concedida para trancar a ação penal ajuizada contra os pacientes no que tange ao delito de descaminho, suspendendo-se, também, o curso do prazo prescricional.

(HC n. 109.205-PR, Relatora a Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJMG), DJe de 09.12.2008).

Presentes os requisitos do art. 580 do Código de Processo Penal, pois

inexiste distinção na situação fático-processual dos demais acusados, em relação

ao crime de descaminho, bem como por ser aplicável a todos os fundamentos

ora expostos, estendo aos corréus os efeitos da presente decisão para trancar o

curso da presente ação penal que apura o crime do art. 334 do Código Penal,

sem prejuízo que nova denúncia seja oferecida após o encerramento do processo

administrativo fi scal.

De outro lado, não merece prosperar o pedido de trancamento do crime

previsto no art. 1º, incisos V e VII, da Lei n. 9.613/1998.

Alegam os impetrantes que, sendo trancada a ação penal em relação

ao crime de descaminho, deixa de existir o pressuposto necessário ao

reconhecimento do crime de lavagem de dinheiro, qual seja, o crime antecedente

previsto no rol taxativo do art. 1º da referida lei.

Por primeiro, a majoritária jurisprudência desta Corte é no sentido de

que a apuração do crime de lavagem de dinheiro é autônoma e independe do

processamento e da condenação no crime antecedente, sendo necessário apenas

sejam apontados os indícios sufi cientes da prática do crime antecedentes.

Vejam-se:

A - Habeas corpus impetrado visando ao trancamento da ação penal em relação aos delitos de “lavagem” de dinheiro e evasão de divisas, sob o fundamento de que o delito tributário, seu antecedente lógico, tivera trancada a ação penal respectiva, por falta de condição de punibilidade.

Autonomia concreta entre os três delitos.

Descabe o trancamento da ação penal que tem por objeto os delitos de evasão de divisas, lavagem de dinheiro.

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 829

Ordem denegada.

(HC n. 133.274-RJ, Relator o Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJSP), DJe de 31.05.2010).

B - Penal e Processual Penal. Recurso especial. Lavagem de dinheiro. Alegação de inocorrência de continuidade delitiva e habitualidade criminosa. Ausência de comprovação do crime antecedente. Inocorrência. Impossibilidade de apreciação de matérias não debatidas pela Corte a quo. Falta de prequestionamento. Não demonstração de como se deu a violação alegada ao art. 157 do CPP (antiga redação). Súmula n. 284-STF. Detração penal. Matéria de competência do juízo de execução penal. Violação ao princípio do ne reformatio in pejus. Regime prisional fechado.

(...)

IV - Para a confi guração do crime de lavagem de dinheiro, não é necessária a prova cabal do crime antecedente, mas a demonstração de “indícios suficientes da existência do crime antecedente”, conforme o teor do § 1º do art. 2º da Lei n. 9.613/1998. (Precedentes do STF e desta Corte)

V - O recurso excepcional, quanto ao permissivo da alínea a, deve apresentar a indicação do texto infra-constitucional violado e a demonstração do alegado error, sob pena de esbarrar no óbice do Verbete insculpido na Súmula n. 284-STF (Precedentes).

(...)

Não conhecidos os recursos do MPF e de CAP. Conhecido parcialmente e parcialmente provido o recurso de LRB.

(REsp n. 1.133.944-PR, Relator o Ministro Felix Fischer, DJe de 17.05.2010)

C - Habeas corpus. Lavagem de dinheiro. Supressão de instância. Inocorrência. Mandamus conhecido. Crimes antecedentes. Indícios sufi cientes. Pressupostos da lei especial atendidos. Alegação de ilicitude de provas. Necessidade de dilação probatória. Inadequação da via eleita. Trancamento da ação penal incabível. Ordem denegada.

1. Não há de se falar em supressão de instância, porquanto todas as questões tratadas no mandamus também foram submetidas ao juízo a quo em defesa prévia e apreciadas pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, por ocasião do recebimento da denúncia ofertada contra o Prefeito, ora paciente.

2. Pela simples leitura da exordial verifi ca-se que o órgão acusador cumpriu a disposição processual especial do artigo 2º, § 1º, da Lei n. 9.613/1998. Ressalte-se, ainda, que a teor do que dispõe o inciso II do mesmo dispositivo legal, a denúncia pelo crime de lavagem de dinheiro independe do processamento do acusado pelas infrações que a antecedem.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

830

(...)

4. Ordem conhecida e denegada.

(HC n. 103.097-SP, Relatora a Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJMG), DJe de 24.11.2008)

Em segundo e não menos importante ponto, constata-se a impossibilidade

de trancamento do crime de lavagem de dinheiro, pois não há como se afi rmar

sem um exame aprofundado do conjunto fático-probatório que os valores

de origem ilícita são oriundos única e exclusiva do descaminho imputado na

denúncia.

Com efeito, pode perfeitamente o capital ilícito ser oriundo de outros

crimes e somente pelo detalhamento das provas próprio da instrução criminal

que se esclarecerá se houve a participação da paciente nos delitos imputados

pelo parquet, sendo certo que a denúncia faz menção expressa sobre a existência,

em tese, de locações simuladas nas 90 lojas do grupo, de sonegações fi scais

milionárias e “blindagem patrimonial” visando à ocultação de patrimônio dos

envolvidos.

Devem os fatos apontados e as provas constantes dos autos ser melhor

analisados no bojo da respectiva ação penal, onde a acusada poderá exercer

amplamente o seu direito de defesa requerendo, inclusive, a realização de

diligências e perícias, procedimentos que sabidamente são incompatíveis com a

estreita via do mandamus.

Por outro lado e reforçando a inviabilidade de trancamento da ação penal

em relação ao crime de lavagem de capitais, constata-se pela simples leitura

da denúncia que são imputados à paciente a prática de crimes de lavagem de

dinheiro, formação de quadrilha e descaminho, todos praticados dentro de

estruturada organização criminosa.

Nesse ponto, temos a adequação das condutas na hipótese do inciso VII

da referida lei, circunstância que, por si só, já autoriza a manutenção da referida

ação penal, inexistindo, nesse ponto, qualquer constrangimento a ser sanado.

Por fim, o trancamento da ação em sede de habeas corpus é medida

excepcional que somente pode ser deferida quando se mostrar evidente a

atipicidade do fato, se verifi que a absoluta falta de indícios de materialidade e

de autoria do delito ou que esteja presente uma causa extintiva da punibilidade,

hipóteses não encontradas no presente caso, pois são apresentados na denúncia

fatos que, em tese, podem caracterizar a participação da paciente na prática de

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 831

crimes em organização criminosa e contra a administração pública, conforme

já explicitado, inviabilizado, portanto, o encerramento prematuro do processo

criminal em relação ao crime previsto no art. 1º da Lei n. 9.613/1998.

Nesse sentido:

A - Habeas corpus. Formação de quadrilha e concussão. Incompetência. Questão não analisada pelo Tribunal Estadual. Supressão de instância. Trancamento da ação penal. Inépcia da denúncia. Inocorrência. Falta de justa causa. Hipótese não demonstrada. Exame aprofundado das provas.

(...)

4. A teor da jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, o trancamento da ação penal em sede de habeas corpus é medida excepcional, somente se justifi cando se demonstrada, inequivocamente, a absoluta falta de provas, a atipicidade da conduta ou a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, inocorrente na espécie.

5. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa extensão, denegado.

(HC n. 89.696-SP, Relatora a Minitra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 23.08.2010).

B - Penal e Processual Penal. Habeas corpus. Crime de receptação dolosa. Alegado cerceamento de defesa. Supressão de instância. Não conhecimento. Trancamento da ação penal. Alegação de ausência de justa causa. Atipicidade da conduta não demonstrada de plano. Nulidade. Inobservância de rito. Inocorrência. Imputação de crimes conexos. Rito determinado pela infração mais grave.

(...)

III - O trancamento da ação penal por meio do habeas corpus se situa no campo da excepcionalidade (HC n. 901.320-MG, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 25.05.2007), sendo medida que somente deve ser adotada quando houver comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito (HC n. 87.324-SP, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, DJU de 18.05.2007).

(...)

Habeas corpus parcialmente conhecido e, nesta parte, denegado.

(HC n. 89.472-PR, Relator o Ministro Felix Fischer, DJe de 03.08.2009).

B - Penal. Processo Penal. Prescrição em perspectiva ou antecipada. Extinção da punibilidade. Descabimento. Falta de previsão legal. Trancamento da ação penal. Negativa de autoria e atipicidade. Ausência de justa causa não-evidenciada de plano.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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1. A jurisprudência desta Corte já se fi rmou no sentido de não reconhecer prescrição antecipada ou em perspectiva, em face da suposta condenação.

2. De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, “o trancamento da ação penal pela via de habeas corpus é medida de exceção, que só é admissível quando emerge dos autos, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático ou probatório, a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a acusação ou, ainda, a incidência de causa extintiva da punibilidade.” (HC n. 82.515-SC, Relatora a Ministra Laurita Vaz, DJU 16.06.2008)

(...)

6. Habeas corpus denegado.

(HC n. 102.292-SP, Relator o Ministro Og Fernandes, DJe de 22.09.2008).

No mesmo sentido entende o Supremo Tribunal Federal:

A - Habeas corpus. Direito Penal e Processual Penal. Inexistência de fato típico. Exame aprofundado de prova. Impossibilidade na via eleita. Trancamento da ação penal. Excepcionalidade. Denúncia. Cumprimento ao art. 41 do CPP. Prescrição antecipada. Inadmissibilidade. Writ parcialmente conhecido e denegado.

1. Esta Corte possui orientação pacífica no sentido da incompatibilidade do habeas corpus quando houver necessidade de apurado reexame de fatos e provas, não podendo o remédio constitucional servir como espécie de recurso que devolva completamente toda a matéria decidida pelas instâncias ordinárias ao Supremo Tribunal Federal. Precedentes.

2. A questão da inexistência de fato típico merece análise mais detida na oportunidade do julgamento do processo, com amparo nas provas produzidas durante a instrução processual, sob o crivo do contraditório, o que impede o conhecimento do presente writ quanto a esse ponto.

3. O trancamento da ação penal, em habeas corpus, constitui medida excepcional que só deve ser aplicada quando indiscutível a ausência de justa causa ou quando há fl agrante ilegalidade demonstrada em inequívoca prova pré-constituída. Precedentes.

4. As condutas dos pacientes foram suficientemente individualizadas, ao menos para o fim de se concluir pelo juízo positivo de admissibilidade da imputação feita na denúncia.

5. É inadmissível a extinção da punibilidade em virtude de prescrição da pretensão punitiva com base em previsão da pena que hipoteticamente seria aplicada, independentemente da existência ou sorte do processo criminal. Precedentes.

6. Habeas corpus parcialmente conhecido e denegado.

(HC n. 100.637, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJe de 24.06.2010).

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 833

Ação penal. Trancamento. Inadmissibilidade. Atipicidade não aparente. Conduta atribuída que corresponde ao delito previsto no art. 333 do Código Penal. Indícios de materialidade e autoria de eventual delito. Impossibilidade de cognição profunda da prova no âmbito de habeas corpus. Justa causa reconhecida. HC denegado. Precedentes.

O reconhecimento de justa causa, para trancamento de ação penal por atipicidade do fato imputado, é inviável em sede de habeas corpus, quando dependa de cognição profunda das provas.

(HC n. 91.516, Relator o Ministro Cezar Peluso, Dje de 04.12.2008).

Diante do exposto, concedo em parte o habeas corpus apenas para trancar a ação penal que apura o crime de descaminho na Ação Penal n. 2006.51.01.523722-9, da 2ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, sem prejuízo de que nova denúncia seja oferecida após o encerramento do processo administrativo fi scal, estendendo, de ofício, os efeitos desta decisão aos corréus Attílio Milone, Luigi Fernando Milone, Marcio Caio Roberto Buschbaum, Paulo Eduardo Laurenz Buchsbaum, Josemar Luiz Torres da Silva, Samuel Gorberg, Armando Antonio Pires Ferreira, Délio Valderato Júnior, Marisa Gorberg, Vanuza Miranda e Maria Fernanda Moura, nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal, mantido o curso da referida ação penal em relação aos demais crimes.

É como voto.

HABEAS CORPUS N. 156.668-RJ (2009/0241766-2)

Relator: Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP)

Impetrante: Marcelo Bustamante - Defensor Público

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

Paciente: Billie Lowe

EMENTA

Habeas corpus. Tráfico de entorpecentes. Execução penal.

Estrangeiro com decreto de expulsão do país. Livramento condicional.

Impossibilidade. Ordem denegada.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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1. Um dos requisitos para obtenção do livramento condicional,

previsto no artigo 83, inciso III, do Código Penal, é a aptidão do preso

de manter a própria subsistência, mediante trabalho honesto.

2. No caso em exame, o decreto de expulsão será cumprido após

o término da prisão, de sorte que não terá o paciente oportunidade de

exercer nenhuma atividade em solo brasileiro.

3. A negativa do benefício não implica descumprimento da

Constituição Federal, que não faz distinção entre presos brasileiros e

estrangeiros. A questão é que o paciente não preenche os requisitos

para o atendimento de sua pretensão.

4. Coação ilegal não caracterizada.

5. Ordem denegada.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por

unanimidade, denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Sr.

Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-

CE) e Og Fernandes votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausente, justifi cadamente, a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Og Fernandes.

Brasília (DF), 02 de dezembro de 2010 (data do julgamento).

Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), Relator

DJe 17.12.2010

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP):

Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de Billie Lowe, sob alegação

de coação ilegal por parte do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Consta dos autos que o paciente, de nacionalidade norte-americana, fora

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 835

condenado a cinco anos, sete meses e quinze dias de reclusão, pela prática do

delito previsto no artigo 12; combinado com o artigo 18, inciso I, ambos da

Lei n. 6.368/1976, tendo em trâmite na Vara das Execuções Penais uma carta

de execução de sentença expedida pela Sétima Vara Federal Criminal. A defesa

pleiteou, perante o juízo da execução, o benefício do livramento condicional, o

qual foi indeferido. Impetrado habeas corpus perante o Tribunal a quo, a ordem

foi denegada. Aduz o impetrante que o paciente está sofrendo coação ilegal,

porquanto o fundamento do indeferimento do pedido foi a existência de decreto

de expulsão em seu desfavor. Pleiteia o deferimento de medida liminar, para

que seja afastado o óbice e determinado ao juízo da execução a reapreciação do

pedido; e a concessão da ordem, ao fi nal, para tornar defi nitiva tal medida (fl s.

02 a 09).

A liminar foi indeferida a fl s. 18-19.

O Tribunal apontado como autoridade coatora prestou as informações de

fl s. 26-28.

O Ministério Público Federal opinou pela denegação da ordem (fl s. 39-

42). O parecer portou a seguinte ementa

Habeas corpus. Execução penal. Tráfi co ilícito de drogas. Paciente estrangeiro. Existência de decreto de expulsão. Pedido de livramento condicional. Improcedência. Requisito objetivo-temporal de 2/3 da pena não satisfeito (CP, art. 83, V). Divergência jurisprudencial existente entre a Quinta e a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça quanto à questão consistente em defi nir se a existência de decreto de expulsão contra condenado obsta ou não o cumprimento de requisito subjetivo para a concessão de livramento condicional. Parecer no sentido da denegação da ordem, e, evidenciado o dissídio jurisprudencial, no sentido de que o debate acerca da controvérsia jurídica apontada seja afetado à Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP)

(Relator): O v. acórdão hostilizado foi assim ementado

Habeas corpus. Livramento condicional. Paciente condenado por infração ao art. 12 c.c. art. 18, I, da Lei n. 6.368/1976, alegando constrangimento perpetrado pelo Juiz de Direito da Vara das Execuções Penais, que indeferiu o pleito de livramento

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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condicional, ante o decreto de expulsão em desfavor do paciente. Agiu com acerto o D. Juiz, eis que inviável a concessão do livramento condicional, uma vez que em sendo o ora paciente estrangeiro e não possuindo nenhum vínculo com o país, poderia frustrar a aplicação da lei penal. Ademais, já exise decreto de expulsão do país (fl s. 27), cuja efetivação condiciona o integral cumprimento da pena, como bem asseverou ao L. Procuradoria de Justiça: “Consta que o apenado foi expulso do país - fls. 27, o que inviabiliza a obtenção do benefício, que exige dentre outros requisitos, ocupação lícita - art. 312, § 1º, a, LEP”. Inexistência de constrangimento ilegal. Ordem denegada.

Anoto, em primeiro lugar, que o requisito objetivo - cumprimento de dois

terços da pena - foi preenchido em 27 de maio de 2010. Cf. fl s. 26 e o parecer do

Ministério Público Federal.

Há precedente desta e. Sexta Turma, do qual foi relator o eminente Ministro

Haroldo Rodrigues, no qual foi reconhecida a possibilidade de concessão do

livramento condicional ao preso estrangeiro, com decreto de expulsão.

Confi ra-se:

Agravo regimental. Habeas corpus. Execução penal. Estrangeiro. Livramento condicional. Posssibilidade.

1. A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão no sentido de ser cabível a concessão do livramento condicional ao estrangeiro preso e condenado no Brasil, a despeito de haver decreto de expulsão, sob pena de violação do princípio constitucional da individualização da pena.

2. Agravo regimental desprovido.

(AgRg no HC n. 113.080-RJ, relator Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE) (8.195), DJe 31.08.2009).

A matéria não é pacífi ca, porém.

Consultar a turma, no sentido de se afetar a matéria, para que seja discutida

na terceira sessão).

Com efeito, dispõe o artigo 83 do Código Penal

Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 02 (dois) anos, desde que: (Alterado pela L-007.209-1984)

I - cumprida mais de um terço da pena se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes;

II - cumprida mais da metade se o condenado for reincidente em crime doloso;

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 837

obs.dji.grau.4: Reincidência

III - comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto;

IV - tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo, o dano causado pela infração;

V - cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfi co ilícito de entorpecentes e drogas afi ns, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específi co em crimes dessa natureza. (Acrescentado pela L-008.072-1990).

Da leitura dos requisitos acima verifi ca-se que, no tocante ao inciso III,

é impossível ao paciente preenchê-lo. E isto, porque, se possui ele decreto de

expulsão, não poderá exercer nenhuma atividade em solo brasileiro, porquanto

após a cumprimento da pena, será ele efetivamente expulso do país.

Anoto que a negativa do benefício do livramento condicional não implica,

no caso em exame, descumprimento da Constituição Federal, a qual não faz

diferença entre presos brasileiros e estrangeiros. A situação do preso estrangeiro

com decreto de expulsão é diversa em relação ao estrangeiro irregular. A situação

irregular não impede a concessão do livramento condicional, porquanto poderá

o agente regularizar sua situação. E isto não ocorre com o preso com decreto de

expulsão, pois ele não poderá permanecer no país.

Confi ram-se, a propósito, os seguintes precedentes

Execução penal. Habeas corpus. Estrangeiro. Inquérito para fi ns de expulsão instaurado. Livramento condicional. Impossibilidade de preenchimento de requisito subjetivo. Ordem denegada.

1. O art. 83, inciso III, do Código Penal exige, como requisito para a obtenção do livramento condicional, a “aptidão para prover à própria subsistência, mediante trabalho honesto”.

2. O estrangeiro com decreto de expulsão formalizado não supre o requisito subjetivo, dada a impossibilidade do exercício profi ssional. Precedentes do STJ.

3. A permanência do estrangeiro no meio livre constitui afronta ao próprio interesse do Estado, já que a sua presença foi declarada como indesejada.

4. Ordem denegada.

(HC n. 134.997-RJ, relator Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe 14.12.2009).

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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Habeas corpus. Paciente estrangeiro, com decreto de expulsão expedido contra si. Livramento condicional. Ausência dos requisitos autorizadores da medida. Inadmissibilidade da concessão do benefício. Precedentes desta Corte Superior. Parecer do MPF pela denegação da ordem. Ordem denegada.

1. Conforme orientação há muito sedimentada nesta Corte Superior, se o estrangeiro já tem contra si um decreto de expulsão, falta-lhe um dos requisitos para o livramento condicional, pois a permanência irregular no mercado de trabalho é contrariar o interesse do próprio Estado que a determinou. Precedentes deste STJ.

2. O benefício pleiteado pelo paciente lhe foi negado em função da impossibilidade de se sujeitar o cumprimento das condições próprias ao exercício do livramento condicional, uma vez que pesa sobre si decreto de expulsão, condicionado ao cumprimento da pena.

3. Parecer do MPF pela denegação da ordem.

4. Ordem denegada.

(HC n. 114.497-RJ, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 18.05.2009).

Execução penal. Habeas corpus. Livramento condicional. Estrangeiro com decreto de expulsão. Impossibilidade do exercício de profi ssão honesta no meio livre. Ausência de requisito legal para o benefício. Pedido não conhecido.

1 - Inexiste óbice ao estrangeiro para obtenção do livramento condicional, desde que reúna os requisitos objetivos e subjetivos para sua obtenção.

2 - O estrangeiro que já teve determinada a sua expulsão, mas cumpre pena, está apenas a aguardar esse cumprimento para sair do país, posto que não é possível executar sua sentença condenatória noutro Estado.

3 - Se o estrangeiro já tem contra si um decreto de expulsão, falta-lhe a aptidão de exercer no meio livre um trabalho honesto, necessário ao seu sustento, um dos requisitos para o livramento condicional.

4 - Permitir que o estrangeiro, cuja presença foi considerada indesejável, ante um decreto de expulsão, permaneça irregularmente no meio livre é contrariar o interesse do próprio Estado que a determinou.

5 - Pedido não conhecido.

(HC n. 99.530-SP, relatora Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), DJe 06.10.2008).

O Supremo Tribunal Federal já decidiu

Habeas corpus. Execução penal. Decreto de expulsão de estrangeiro. Pedido de livramento condicional. Inadmissibilidade. Ordem denegada.

1. É fi rme a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que o decreto de expulsão, de cumprimento subordinado à prévia execução da pena imposta no País, constitui empecilho ao livramento condicional do estrangeiro condenado.

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 839

2. A análise dos requisitos para concessão do benefício de livramento condicional ultrapassa os limites estreitos do procedimento sumário e documental do habeas corpus.

3. Ordem denegada.

(HC n. 99.400, relatora Ministra Carmen Lúcia, DJe. 28.05.2010).

Execução penal. Livramento condicional: inadmissibilidade.

O decreto de expulsão, de cumprimento subordinado à prévia execução da pena imposta no País, constitui empecilho ao livramento condicional de estrangeiro condenado.

(HC n. 83.723, relator Ministro Sepúlveda Pertence, J. 09.03.2004).

Não está, pois, caracterizada na espécie a coação ilegal descrita na inicial,

pois as instâncias inferiores indeferiram o pedido de livramento condicional,

porque o paciente, com decreto de expulsão do país, não preenche os requisitos

para o atendimento de sua pretensão.

Em face do exposto, denego a ordem.

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 14.874-MS (2002/0058367-2)

Relator: Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP)

Recorrente: Munir Yusef Jabbar

Advogado: André Luiz Borges Netto

Tribunal de Origem: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do

Sul

Impetrado: Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado

de Mato Grosso do Sul

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul

Recorrido: Estado de Mato Grosso do Sul

Procurador: Wilson Vieira Loubet e outro(s)

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EMENTA

Recurso ordinário em mandado de segurança. Juiz de direito

substituto. Inaptidão para o vitaliciamento observada durante

o procedimento administrativo. Inexistência de ilegalidade a ser

reparada. Recurso ordinário a que se nega provimento.

1. O não vitaliciamento de juiz de direito substituto, em razão

de omissão de informação quanto a práticas de crimes, não se mostra

dezarrazoado nem desproporcional, mas sim, condizente com a busca

da ética na magistratura.

2. Recurso ordinário em mandado de segurança a que se nega

provimento.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por

unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro

Relator.

Os Srs. Ministros Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do

TJ-CE), Maria Th ereza de Assis Moura e Og Fernandes votaram com o Sr.

Ministro Relator.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Brasília (DF), 07 de dezembro de 2010 (data do julgamento).

Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), Relator

DJe 17.12.2010

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP):

Trata-se de recurso ordinário em mandado de segurança interposto por Munir

Yusef Jabbar contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do

Mato Grosso do Sul, assim ementado (fl s. 1.264):

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Mandado de segurança. Autoridade coatora. Pessoa jurídica de direito público. Ilegitimidade passiva. Atuação funcional e defesa de suas atribuições. Preliminar rejeitada.

Aquele que age com dominação, mesmo que seja órgão público despersonalizado, mas com prerrogativas próprias de autoridade, é parte legítima passiva para o mandado de segurança.

Mandado de segurança. Processo administrativo disciplinar. Magistrado. Estágio probatório. Análise da idoneidade moral, aptidão, disciplina, efi ciência e outros atributos profi ssional e pessoal. Conhecimento de fatos que denotam conduta incompatível com a dignidade, com a honra e com o decoro da função judicante. Omitidos na fase concursal e após nomeação. Mérito do ato administrativo. Conveniência e oportunidade. Apenado com demissão. Ilegalidade e direito líquido e certo inexistentes. Obediência ao princípio da razoabilidade e ao da proporcionalidade. Inc. II do art. 299 do Código de Organização e Divisão Judiciária e inc. II do art. 47 da Lei Complementar n. 35/1979 (Loman). Segurança denegada.

O estágio probatório, a que é submetido o servidor público, tem por escopo a avaliação e a análise, pela administração pública, não só do desempenho profi ssional do analisando, mas, também, as características e atributos pessoais que possam infl uenciar na carreira judicante.

A omissão a fatos e procedimentos na atuação profissional e pessoal do candidato, na fase de concurso e mesmo após a nomeação para o cargo de juiz, que tenham o condão de repercutir, negativamente, na dignidade, honra e decoro do servidor e para a administração pública, por serem incompatíveis com o exercício judicante, é questão de mérito do ato administrativo, signifi cando oportunidade e conveniência dele.

A aplicação da pena de acordo com a norma vigente e com a gravidade dos fatos, não ofende os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

Em suas razões de recurso ordinário (fls. 1.267-1.295), sustenta o

recorrente:

1) a decisão pelo seu não vitaliciamento como Magistrado não se mostra

razoável, muito menos proporcional, podendo às condutas praticadas ser

aplicada sanção menos gravosa como advertência ou censura, previstas no art.

293 da Lei Estadual n. 1.511/1994 e art. 42 da Loman, como ocorreu no caso

do RMS n. 4.012-MG, da Sexta Turma, Relator o Ministro Adhemar Maciel;

2) as hipóteses elencadas pela Lei Estadual n. 1.511/1994, art. 299,

destinam-se a regular condutas praticadas no exercício da Magistratura, mas

na espécie se está diante de fatos supostamente praticados antes do exercício da

judicatura;

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3) no tocante à prática do crime de peculato, quando exerceu o cargo de procurador do município de São Pedro do Sul-RS, ajuizou revisão criminal, a qual foi provida, decretando-se a nulidade do processo penal a partir da sentença condenatória, estando tramitando, no presente momento, novo processo penal, para apuração dos mesmos fatos;

4) já quanto ao outro processo penal, cuja tramitação se deu na comarca de Chapecó-SC, os fatos apurados como apropriação indébita, praticados quando foi advogado da Sadia, não poderiam ter sido tipifi cados como crime, pois se teriam dado em razão da desorganização da tesouraria da empresa Sadia;

5) após a investidura no cargo de juiz substituto sempre teve boa conduta e atuação profi ssional ilibada;

6) em procedimentos administrativos disciplinares instaurados para apurar condutas cuja pena era a de demissão, outros servidores do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul obtiveram penas menos gravosas;

7) não existia à época do concurso para juiz, cláusula do edital do certame que exigisse do candidato apresentação de declaração de que o candidato não está respondendo a inquérito policial e que não tem contra si ação penal por crime de qualquer natureza.

O prazo para apresentação das contrarrazões ao recurso ordinário em mandado de segurança decorreu in albis, conforme certifi cado a fl s. 1.303.

Noticiam os autos que o recorrente, após aprovação em concurso público, foi nomeado para o cargo de Juiz de Direito substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, tendo exercido suas funções nas comarcas de Coxim, Chapadão do Sul e Amabaí.

Após o Corregedor Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul tomar conhecimento (fl s. 32-37) de documentos que atestavam a existência de dois fatos: prática de crime capitulado no art. 312 do CP e do crime capitulado no art. 171, caput, do CP, por trinta vezes, na forma continuada, em concurso material com o art. 168, § 1º, III, do CP, por duas vezes, também na forma continuada, práticas essas que comprometiam o vitaliciamento do Juiz, ora recorrente, foi oferecida ao Presidente do TJ-MS representação pela Corregedoria Geral de Justiça, para instauração de procedimento administrativo destinado ao não vitaliciamento do recorrente no cargo de Juiz de Direito.

Instaurado o procedimento administrativo (fl s. 492), concluiu-se pelo não

vitaliciamento e consequente exoneração do recorrente (fl s. 842).

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 843

Contra o resultado final do procedimento administrativo de não

vitaliciamento do recorrente, que levou à sua exoneração do cargo de Juiz de

Direito Estadual, se impetrou mandado de segurança.

As informações prestadas pela autoridade tida coatora (fl s. 1.163-1.223),

concluiram não se afi gurar possível constranger o Poder Judiciário do Estado de

Mato Grosso do Sul a manter em seus quadros quem ali ingressou por omissão

dolosa acerca de fatos relevantes que impediriam seu acesso à magistratura do

Estado.

Ao julgar o mandamus, o Tribunal a quo denegou a segurança, nos termos

da ementa supra transcrita.

Interposto o recurso ordinário em mandado de segurança, os autos

ascenderam ao STJ.

O Ministério Público Federal, em seu parecer constante a fl s. 1.313-1.322,

opina pelo não provimento do recurso ordinário.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP)

(Relator): O presente recurso ordinário em mandado de segurança ataca acórdão

proferido pelo Tribunal Pleno do TJ-MS, o qual manteve decisão administrativa

de não vitaliciamento no cargo de Juiz de Direito do Estado do Mato Grosso

do Sul.

As razões de recorrer se pautam, em síntese, nos seguintes argumentos:

a) os fatos motivadores do não vitaliciamento e da demissão foram anteriores

ao exercício da judicatura; b) inexistência de sentença penal condenatória

transitada em julgado, por força de decisão judicial, em tema de revisão criminal,

que reconheceu nulidade no processo penal pelo crime de peculato; c) a pena de

demissão é violadora dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

A argumentação do recorrente para embasar a alegação de ilegalidade do

ato administrativo de seu não vitaliciamento recai sobre o tempo em que as

condutas ilícitas foram cometidas, isto é, antes de sua investidura no cargo de

Juiz de Direito substituto.

Neste ponto, cumpre registrar que a existência de condenação penal pela

prática de crime de peculato, art. 312 do CP, com sentença transitada em

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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julgado, é fato incontroverso, como também o é a ação penal, ainda, em trâmite

na Justiça Estadual de Santa Catarina, na qual se apura a prática de crime de

estelionato, art. 171 do CP, por trinta vezes, na forma continuada e em concurso

material com o crime tipifi cado no art. 168, § 1º, III, do CP, apropriação

indébita.

No meu modo de sentir o fundamento apontado compromete indelevel

e inexoravelmente, conforme afi rmado pelo Ministério Público Federal em

seu parecer, o exercício da função judicante. É por si só, sufi cientemente forte

para que o Tribunal de Justiça, ao avaliar a conveniência do vitaliciamento do

Magistrado, decida por negá-lo ao recorrente.

A despeito da procedência da revisão criminal para desconstituir sentença

penal condenatória do crime de peculato, entendo que mesmo desconstituído o

título por nulidade de forma, a prática do fato não fi ca afastada.

Acrescente-se que o processo penal para apuração da prática de peculato

está em curso na Quarta Câmara do TJ-RS, em tema de apelação, tendo

sido impetrado habeas corpus no STJ, para reclamar contra o cálculo da pena,

distribuído a minha Relatoria, cuja ordem fora denegada nos autos HC n.

173.060-RS, autos já arquivados.

De igual modo, a omissão acerca da prática das condutas tipificadas

como estelionato e apropriação indébita, ainda apuradas em processo penal

em tramitação na comarca de Chapecó-SC, revela-se reprovável e contrária à

conduta de um Magistrado.

A Constituição Federal, em seu art. 95, I, prevê que a garantia de

vitaliciedade dos Magistrados, no primeiro grau de jurisdição, “só será adquirida

após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de

deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado.

Não há na Constituição Federal e nem na Lei Orgânica da Magistratura

Nacional diretrizes ou princípios norteadores específi cos ao período de estágio

probatório dos juízes.

Inexiste no Brasil a formação institucionalizada de magistrados, o que

ocorre em Portugal, na França e na Espanha. O acompanhamento do novo juiz

deve ser aprimorado e efetivado por cada Tribunal. É aos Estados-membros que

compete a organização de suas Justiças.

Feitas essas digressões, cumpre observar que no Estado do Mato Grosso

do Sul, o procedimento de vitaliciamento do juiz substituto é estabelecido pelo

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 845

art. 191 e seguintes do Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado

do Mato Grosso do Sul.

De feito, o Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado do

Mato Grosso do Sul, Lei Estadual n. 1.511/1994 reza em seus arts. 191 e 197

in verbis:

Art. 191. A vitaliciedade será adquirida pelo magistrado mediante aprovação em estágio probatório de dois anos de efetivo exercício do cargo, a ser cumprido de conformidade com o exposto neste capítulo.

Parágrafo único. Além do desempenho funcional, será considerada a conduta pessoal e pública do estagiário, na medida em que comprometa a dignidade da instituição, ao critério do Tribunal Pleno.

Art. 197. Constatada, a qualquer tempo, a ocorrência de fato que desde logo comprometa a aprovação do estagiário, devidamente comprovado através de sindicância promovida pela Corregedoria-Geral de Justiça, o Presidente do Conselho Superior da Magistratura deverá solicitar ao Tribunal Pleno, fundamentadamente, a exoneração do magistrado estagiário.

Frise-se, ainda, que consta do edital do certame, art. 15, item destinado aos

requisitos para inscrição defi nitiva, dos quais se destacam: a alínea c que exige a

apresentação de certidão do órgão disciplinar a que estiver sujeito o requerente,

comprovando não estar sendo processado, nem ter sido punido por faltas no

exercício da profi ssão, cargo ou função; alínea d que exige a apresentação de

certidão dos distribuidores criminais das Justiças Federal, Estadual, Eleitoral,

Militar Estadual e Federal, dos lugares em que haja residido nos últimos dez

anos (fls. 38; 577-578); alínea g que exigiu do candidato apresentação de

curriculum vitae detalhado e rigorosamente cronológico, com indicação dos

lugares em que teve residência nos últimos dez anos, com exata indicação dos

períodos e locais de atuação como advogado, magistrado, membro do Ministério

Público ou da Defensoria Pública, bem como empregos particulares e outras

funções públicas exercidas, nomeando as principais autoridades com as quais

serviu ou atuou.

Na espécie, o recorrente era Juiz de Direito em estágio probatório. Omitiu,

quando da inscrição no concurso público, que estava sendo processado pelos

crimes de peculato (fl s. 503), estelionato e apropriação indébita.

Ainda, há registro nos autos (fl s. 503) de que o recorrente não indicou

nenhuma autoridade judicial que tivesse em exercício, quando de sua atuação

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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como advogado da Sadia, e como procurador do município de São Pedro do

Sul-SC, difi cultando as atividades de investigação da Corregedoria Geral de

Justiça, quando da avaliação de investigação de sua vida profi ssional.

É de ver que, além de ter omitido tais fatos tanto da banca examinadora

do concurso a que se submeteu o recorrente, quanto do Tribunal, os processos

a que respondeu e responde, em ambos já condenado, comprometem,

irremediavelmente, a função judicante.

Os fatos tidos delituosos, existentes já ao tempo em que ocorreu a inscrição

do candidato, comprometem, deveras, o vitaliciamento do Juiz.

Colhe-se do depoimento do recorrente (fls. 706) que o interrogado

reconheceu:

1) que, ao tempo da inscrição para o concurso de Juiz de Direito substituto

do Estado do Mato Grosso do Sul, tinha conhecimento da existência da ação

penal que resultou em sua condenação;

2) que, ao tempo da entrevista, após as provas escritas, tinha conhecimento

da ação penal, para apuração do crime de peculato, embora ainda não existisse a

sentença;

3) que não mencionou esses fatos à banca examinadora porque o edital

exigia apenas a entrega de certidões negativas criminais e, no Rio Grande do

Sul as certidões criminais negativas são expedidas ainda que em curso processo

crime, sem condenação com trânsito em julgado;

4) que não mencionou à banca examinadora os fatos relacionados ao

crime de estelionato, praticado em Chapecó-SC, porque à época da inscrição

defi nitiva, tramitava, apenas, o inquérito policial.

Outrossim, conforme anotado na conclusão do procedimento

administrativo de não vitaliciamento que o fato de que o recorrente sempre se

portou como Magistrado cumpridor de suas funções; que jamais teve sanção

disciplinar, ou alguma anotação em sua fi cha funcional, e que sempre teve boa

conduta e atuação profi ssional o que nem de longe o benefi cia. Isto, porque tais

registros não passam de dever inerente ao exercício da função da magistratura.

Ninguém pode ser beneficiado pela própria torpeza, de sorte que a

omissão dos fatos delituosos e a existência de procedimento e processo penal

prejudicaram, totalmente, o vitaliciamento do recorrente como Juiz de Direito e

legitimou o consequente ato de demissão.

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RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 847

O tema ultrapassa o ordenamento jurídico e alcança a ética e a moral da

fi gura do Magistrado.

Nos dizeres do doutor pela Universidade de São Paulo José Raimundo

Gomes da Cruz, “o necessário prestígio das funções do magistrado não só exige

que ele tenha conduta funcional incensurável, como sua conduta particular

deverá ser exemplar”. ( José Raimundo Gomes da Cruz, in Lei Orgânica da

Magistratura Nacional Interpretada, Editora Oliveira Mendes, 1998, p. 47).

Colhe-se do professor de fi losofi a do Direito na Universidade Pompeu

Fabre, de Barcelona, Espanha, Jorge F. Malem Seña, a lição de que “o juiz deve

ser mais sábio que engenhoso, mais respeitável que simpático e popular, e mais

circunspecto que presunçoso. Mas antes de tudo deve ser íntegro, sendo esta

para ele uma virtude principal, e a qualidade própria do seu ofício”. ( Jorge F.

Malem Seña, Revista de Direito Mercantil, volume 108, Editora Malheiros, p.

158).

Indaga José Eduardo Faria, no tocante à formação de magistrados no

Brasil, se basta para a magistratura uma formação profi ssional, simplesmente,

normativista, apta a valorizar basicamente os lógico-formais do direito positivo.

( José Eduardo Faria, citado por Vicente de Paula Ataide Junior, in O Novo Juiz

e a Administração da Justiça. Repensando a Seleção, a Formação e a Avaliação

dos Magistrados no Brasil, Editora Juruá, 2006, p. 69)

José Renato Nalini, um dos maiores conhecedores do tema relativo à

formação de magistrados no Brasil, estimula o pensar quanto à postura mental

do magistrado. Entende o jurista que a verdadeira e única reforma possível

do Judiciário brasileiro é a remodelação da consciência do juiz. Construção

individual, lenta e contínua. Derivada de um compromisso assumido pelo juiz

inicialmente para consigo mesmo. Para só então exteriorizar-se nas dimensões

de seu relacionamento com o próximo, com a comunidade, com o ambiente e

com a Providência. ( José Renato Nalini é citado por Vítor Barboza Lenza, in

Magistratura Ativa, Editora AB, 2000, p. 107).

Merece destaque o desabafo do jurista José Renato Nalini in verbis:

A ética está em todos os discursos. A propósito de qualquer acontecimento, levantam-se as vozes dos moralistas a invocar a necessidade de reforço ético. Ética, infelizmente, é moeda em curso até para os que não costumam se portar eticamente. Por isso, compreensível que muitos já não acreditem no termo ética. Trivializou-se o chamado à ética, para servir a qualquer objetivo. Além disso, a utilização excessiva de certas expressões compromete o seu sentido, como se o

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emprego freqüente implicasse em debilidade semântica. Isso parece ocorrer com os vocábulos justiça, liberdade, igualdade, solidariedade, direitos humanos e também com o termo ética.

A invocação exagerada a tais palavras, em contextos os mais diversos, conseguiu banalizar seu conteúdo. Situam-se em todos os discursos, ensaios e manifestações. Não há mais fronteiras ideológicas entre elas: todos se valem do prestígio de seu conteúdo. Ante seu pronunciamento, os ouvidos se amparam em certa insensibilidade, pois acredita-se não mais haver necessidade dessa reiteração.

(...)

Entretanto, nunca foi tão urgente, como hoje se evidencia, reabilitar a ética. A crise da Humanidade é uma crise de ordem moral.

(...)

Ética é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. (...) O objeto da Ética é a moral. (...)

Todas as profi ssões reclamam proceder ético. (...)

Na atividade profissional jurídica, porém, essa importância avulta. Pois o homem das leis “examina o torto e o direito do cidadão no mundo social em que opera; é, a um tempo, homem de estudo e homem público, persuasivo e psicólogo, orador e escritor. A sua ação defensiva e a sua conduta incidem profundamente sobre o contexto social em que atua. Mercê da intensa intimidade entre ética e direito, não é fácil delimitar a fronteira entre o moral e o jurídico. É nas ciências jurídicas que as normas dos deveres morais se põem com toda a nitidez. (...)

Numa época de moral em frangalhos, tantos maus exemplos em todas as esferas de atuação pública, o Brasil precisa de juízes essencialmente éticos, irrepreensivelmente éticos, não de juízes que apenas dominam a técnica. (...)

Por último, a virtude como dever legal. A lei exige que o juiz brasileiro mantenha conduta irrepreensível na vida pública e particular. Conduta irrepreensível é conceito que não se encontra na doutrina. Seria a conduta insuscetível de repreensão, aqui entendida como admoestação, repúdio, reprovação ou censura de parte da comunidade. O legislador retomou, para o Judiciário no Brasil, a noção desprestigiada de virtude, como qualidade que deveria alcançá-lo a uma condição de melhor julgar os seus semelhantes. Espera-se daquele que julga, se acautele para não dar maus exemplos. Quem faz incidir sobre os outros a rigidez da lei, deveria situar-se num patamar condigno, senão incólume, ao menos aparentemente blindado por seus atributos de pessoa de bem. A qualidade da justiça está indissoluvelmente vinculada à qualidade dos que receberam a atribuição legal de concretizá-la. (José Renato Nalini, in Ética Geral e Profi ssional, Editora Revista dos Tribunais, 5ª edição, 2006, páginas 23; 24; 25; 297; 411 e 412).

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Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 781-849, janeiro/março 2011 849

As práticas delituosas foram omitidas da banca examinadora do concurso

pelo recorrente, as quais somente foram descobertas pela Corregedoria por

provocação de terceiros, que fi zeram chegar ao Tribunal de Justiça os registros

de prática delitiva por parte do recorrente.

Há, portanto, perfeita equivalência entre a demissão do recorrente e a

conduta por ele realizada, conforme apurado no processo de avaliação de seu

estágio probatório. Ademais, o ato de não vitaliciamento tem por consequência

lógica a demissão.

Não se verifi ca ter havido afronta aos princípios da razoabilidade e da

proporcionalidade em razão da demissão. Neste ponto, cumpre salientar que os

fatos apurados no procedimento administrativo de não vitaliciamento são de

extrema gravidade, fatos esses devidamente apurados, os quais demonstram a

inadequação funcional do recorrente para permanecer na magistratura.

Acreditar no ser humano, antes de analisar a necessidade de sancioná-lo, é

tarefa que se impõe. E, o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul

acreditou no candidato recorrente. Todavia, a conduta deste em omitir a prática

de crimes é, deveras, repreensível ao juiz em estágio probatório que pretende seu

vitaliciamento.

O juiz há de ser visceralmente ético e vocacionado.

Ante o exposto, nego provimento ao recurso ordinário em mandado de

segurança.

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