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Os sete pilares da educação José Pacheco Curitiba, dezembro de 2012

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Sete Pilares

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  • Os sete pilares da educao

    Jos Pacheco

    Curitiba, dezembro de 2012

  • Nos palcos onde o drama educativo se desenrola, contracenamos com a herana de seres

    inspirados, que viveram na contra-mo da Histria, aprendendo a surfar o dilvio de

    lixo cultural em que a sociedade se afundou, confirmando a existncia de seres que o

    Brecht diria serem indispensveis. Por que razo os professores das escolas brasileiras

    no estudam devidamente esses autores? Talvez isso os condene a um praticismo

    inconsequente, que adia a reconfigurao das escolas e compromete o futuro do pas.

    Porque o Brasil parece padecer de algo que o Nelson Rodrigues chamou de sndrome do

    vira-lata: admira e imita modas vindas de fora; despreza aquilo que seu.

    Surpreende-me o ostracismo a que alguns pedagogos brasileiros so remetidos. E creio

    que urge redescobrir Ansio Teixeira, que, nos anos 30, defendia a necessidade de

    mudar a escola, para que esta se tornasse um instrumento de mudana social; rever as

    teses de Agostinho da Silva, companheiro de utopias de Darcy Ribeiro; reencontrar

    Lauro Lima, que, na dcada de 1960, fez a reinterpretao brasileira do pensamento de

    Piaget; recuperar contributos de Paulo Freire, que, na sua Pedagogia da Esperana,

    aconselhava os brasileiros a no nortear, mas a suliar a suas reflexes e prticas

    pedaggicas

    Uma nova gerao de educadores emerge, uma ruptura paradigmtica se anuncia, que

    no poder prescindir do patrimnio que os ignorados pedagogos nos legaram. Que se

    estude e aprofunde os seus contributos. Mas no se esquea, porm, que o modo como

    os professores aprendem o mesmo com que ensinam. Este inevitvel isomorfismo da

    formao mostra-se fatal para as aspiraes a novas e melhores prticas escolares. Se os

    professores so formados em mtodos passivos, poder-se- esperar que desenvolvam

    mtodos activos com os seus alunos? Mutatis, mutandis: se foram formatados numa

    intil acumulao cognitiva, iro adoptar o modelo transmissivo, perpetuar um modelo

    epistemolgico falido.

  • Nas minhas deambulaes pelo Brasil das escolas, encontro muitos annimos

    educadores, que no desistem do sonho das suas vidas e tecem uma rede de

    fraternidade, fonte de esperana, num Brasil condenado a acreditar que, pela Educao,

    h-de chegar ao exerccio de uma cidadania plena. Com eles aprendo a amar este pas e

    a respeitar e ajudar os educadores que o refazem. Porm, o desconhecimento do

    patrimnio pedaggico que herdaram instiga-me a penetrar mais fundo em

    contraditrias realidades, observadas por um desarmado olhar europeu

    Poderia citar uma lista interminvel de escolas onde a reelaborao cultural acontece,

    onde as concepes e prticas educacionais, discretamente, evoluem. Porm, em muitos

    outros lugares onde se deveria ensinar e aprender, velhos vcios se perenizam,

    impedindo que os jovens seres sejam mais sbios e mais felizes, condenando muitos

    milhes de brasileiros ao analfabetismo funcional. Por essa razo e sob a forma de

    crnica,, freirianamente optei por denunciar, paraanunciar.

  • Sete pilares

    O que resta para a Escola ensinar? perguntou a minha amiga Ely. E logo me vieram

    mente os quatro pilares do relatrio da UNESCO. Ter a Escola ensinado aquilo que o

    Jacques Dellors, j h muitos anos, recomendava? Os jovens tero aprendido a

    conhecer, a fazer, a ser e a conviver? Vejamos

    Aprender a conhecer algo arredio do universo escolar. Quanto muito, os jovens so

    depositrios de informao jamais transformada em conhecimento, quase-inutilidades,

    que apenas servem para debitar em provas e alcanar um diploma. Talvez seja essa a

    razo por que somente 15% dos titulares de diploma de Direito conseguem aprovao

    no exame da Ordem dos Advogados.

    E estamos conversados quanto ao aprender a fazer, a ser e a conviver. Atentemos na

    manuteno de um ensino livresco, no desprezo pelo desenvolvimento pessoal e social,

    consideremos o buliyng, os assassinatos de professores

    A resposta pergunta da Ely simples: se a famlia no ensina a viver, a comer, a

    consumir, Escola resta ensinar tudo. E nem contedo a escola ensina. Talvez a

    explicao deste fato esteja na auto-crtica da Clarice: Quando penso que eu dava aulas

    de matemtica e portugus a ginasianos, mal acredito. Porque hoje seria incapaz de

    resolver uma raz quadrada. Quanto a portugus, era com o maior tdio que eu dava

    regras de gramtica. Depois, felizmente, vim a esquec-las. preciso antes saber,

    depois esquecer. S ento se comea a respirar livremente.

    No ltimo reduto da transmisso de informao, os professores arriscam-se a ser uma

    espcie em vias de extino. A carreira dos professores conteudistas est por um

    fio A Ely contou-me que professor Google lhe ensina quase tudo. Nos seus 60

    anos, como qualquer professor que se preze, a aposentada Ely continua a aprender.

    Achou um site em ingls com uma animao interativa do efeito do sal nas molculas

    de gua. e pode experienciar como era a reao da gua ao sal nas temperaturas que

    colocava no site. Entendeu uma das complexas propriedades coligativas da qumica. E o

    professor Google traduziu o texto, com perfeio, do ingls para o portugus.

    Bernie Dodge, professor da universidade estadual da Califrnia, criou uma proposta

    metodolgica para usar a internet de maneira investigativa e criativa: a webquest. E eu

    vi na TV um comercial, no qual uma jovem dizia que tinha tudo aquilo que precisava

    para estudar. Em casa. Na internet. Sem precisar cumprir horrio de aula

  • A escola que, infelizmente, ainda temos, no logrou concretizar os quatro pilares da

    UNESCO. E nem supeita de que h mais trs: o aprender a desaprender, o aprender a

    desobedecer e o aprender a desaparecer.

    Aprender a desaprender, porque, como diria o Manoel, aprender desaprender, para

    vencer o que nos encerra e aliena, porque desaprender vinte e quatro horas por dia

    ensina princpios, e porque precisamos emancipar-nos da tralha cognitiva que nos foi

    imposta.

    Aprender a desobedecer, porque a maior parte dos normativos que regem o

    funcionamento das escolas so desvarios tericos. Como diriam os mestres da no-

    violncia, leis injustas no merecem respeito e no devero ser acatadas.

    Os projetos humanos so produtos de coletivos. J l vai o tempo dos seres

    providenciais e insubstituveis. Deveremos evitar gerar dependncia em outrm, para

    que no nos tornemos (supostamente) imprescindveis. preciso aprender a

    desaparecer, a fomentar autonomia no grupos humanos em que participarmos. Uma

    autonomia que no pressupe independncia, mas interdependncia. Como diria um

    amigo: Interdependncia, ou morte!

  • A segunda morte de Ansio

    O primeiro pargrafo do Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova reza assim: Na

    hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importncia e gravidade ao

    da educao. Nem mesmo os de carter econmico lhe podem disputar a primazia nos

    planos de reconstruo nacional. Decorria o ano de 1932. Entre os signatrios do

    Manifesto estava Ansio Teixeira.

    Em 2010, fui ao serto baiano procura do que resta desse insigne brasileiro.

    Acolheram-me na casa que foi sua. Mostraram-me o leito em que dormia, o bero que

    se presume ter sido o seu, livros e objetos vulgares, que foram tocados pelas mos de

    um gnio. sada, detive-me junto a uma das derradeiras fotos de Ansio est na

    melhor companhia a que um educador pode aspirar: crianas.

    Em Caetit, encontrei uma secretaria de educao feita de boa gente e com muita

    vontade de melhorar. Mas no resisti a perguntar: O que h de Ansio nas escolas de

    Caetit? Qual o legado de Ansio, que se faa presente nas prticas escolares?

    Respondeu-me um embaraado silncio.

    Apercebo-me de que os professores brasileiros conhecem Ansio somente de nome.

    Quase nada tero lido do muito que escreveu. Conhecem Freire de meia dzia de

    leituras mal digeridas. Ornamentam projetos de escola com citaes dos mestres, mas

    no os cultivam nas salas de aula. Na formao, adquiriram vagos contributos de

    ilustres pedagogos estrangeiros, mas no conhecem a obra de Eurpedes e nunca

    ouviram falar de Lauro ou de Agostinho.

    Foram muitas as horas de viagem pelas estradas do interior da Bahia, vendo garrafas e

    latas arremessadas por energmenos, que dirigiam automveis, ultrapassando em

    curvas. No rdio do carro, quase tudo era lixo na terra de Caymi, Caetano e Bethnia,

    nem uma s vez escutei as suas vozes. Os anncios mais escutados falavam de

    mensalidades reduzidas na compra de eletrodomsticos e na matrcula em escolas. O

    nome mais escutado na rdio foi o de um deputado coronelismo verso sculo XXI. A

    caminho de Caetit, passei por Brumado. Ali, na margem do So Francisco, o povo

    sofre de... falta de gua. O que ter tudo isto a ver com a Educao e com o Ansio

    Teixeira?...

    Procurei na cidade uma lpide ou um busto que evocasse Ansio. No encontrei. A

    nica esttua de Caetit de algum que ainda est vivo e cujos mritos desconheo.

    http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb07a.htm

  • Mistrio e silncio encobriram as circunstncias da morte de Ansio. Consta que foi

    encontrado em posio fetal, entre as molas do fosso de um elevador, sem vestgios de

    com elas ter colidido, numa presumvel queda... Talvez com marcas de agresso.

    Talvez... Mas estvamos em 1971 e questionar esses tenebrosos tempos ainda tabu.

    Ao que parece, sepultaram-no sem que as concluses de qualquer inqurito fossem

    dadas luz. E a luz que Ansio lanou sobre a Educao do Brasil tambm se extinguiu

    com ele. Ansio morreu duas vezes.

    Cito o mestre: O professor prelecionava, marcava a seguir a lio e tomava-a no dia

    seguinte. Os livros eram feitos adrede, em lies. Os programas determinavam o

    perodo para se vencerem tais e tais lies. Exames que verificavam se os livros

    ficaram aprendidos, condicionavam as promoes (...). Ora essa escola (...)

    inadequada para a situao em que nos achamos. Ansio fazia a crtica da Escola do

    passado, em... 1934.

    O tempo aliou-se incria dos homens para apag-lo da memria dos educadores

    brasileiros. Memria no feita de incuas homenagens, mas no fazer juz sua vida de

    incansvel lutador por uma educao que no aquela que, decorridos quase quarenta

    anos sobre a sua morte, infelizmente, ainda temos.

  • Denunciar e anunciar

    meu privilgio conviver e aprender com tantos e bons educadores brasileiros. Porm,

    o meu encantamento sofre com algumas tristes novas que vo chegando. Ora so

    secretrios de educao nomeados, absolutamente inaptos para o exerccio do cargo; ora

    a sua colonizao por universitrios que exploram a incompetncia alheia para extrair

    benefcios pessoais; ora prefeituras que deixam os alunos sem merenda e desperdiam

    milhares de reais num evento megalmano, sem qualquer utilidade...

    A Zileia trabalhava de sol a sol, para assegurar alimento e educao a seu filho, aluno

    bolsista num colgio classe A. Ontem, a diretora chamou-a, para comunicar a

    reclamao da me de um aluno da mesma turma, que ameaava tirar o filho daquele

    colgio, por no querer o seu filho misturado com um aluno da favela.

    Que posso fazer? Diga-me! apelou a diretora. Ao que a Zileia respondeu: No se

    preocupe. Eu j encontei mais uma senhora que quer que eu trabalhe para ela. Em 12

    horas, eu j consigo ganhar 40 reais por dia! O meu filho no h-de ficar sem escola.

    Eu posso dar um futuro melhor ao meu Uelinton.

    O mestre Bento disse que, enquanto houver guetos de pobres e condomnios de ricos,

    de ter medo. Para evitar o medo omnipresente, preciso reorganizar o espao pblico,

    onde todos se possam encontrar e enriquecer a diversidade cultural. Iremos nesse

    sentido?

    Outro colgio, outra me, outra diretora...

    Resolvi levar a minha filha para outro colgio!

    A diretora quis saber porqu e a me esclareceu: Aqui, ela nunca vai passar no

    vestibular.

    Mas ela uma excelente aluna, das melhores! replicou, suplicante, a diretora.

    Decorrida uma semana, novo encontro....

    Ento?... inquiriu a diretora.

    A minha filha no conseguiu entrar. A directora do colgio disse que ela estava muito

    fraca e que talvez conseguisse entrar dentro de um ms. Vai fazer mais uma prova, mas

    s para os alunos que no conseguiram entrar na primeira. Talvez a minha filha

    consiga...

    E como conseguir? insistiu a diretora.

  • A dona do colgio disse-me que s com aulas de reforo... So aulas dadas em casa de

    uma professora do colgio. Duas horas por dia e cem reais por hora. Tenho a garantia

    de que a professora que vai dar o cursinho minha filha muito competente, porque

    tem muitas alunas... Vou gastar mais de quatro mil reais, mas h-de valer a pena. Esse

    colgio s aceita alunos que no venham a prejudicar a imagem do colgio no

    IBOPE...

    Uma educadora pediu demisso, quando algum lhe sugeriu que criasse situaes que

    levassem a famlia de um aluno com sndrome de Down a transferi-lo para outra escola.

    Se o deficiente no fosse embora, iria para a primeira srie e contribuiria para baixar a

    classificao do colgio...

    a preocupao com os rankings, a lei do mercado, a livre concorrncia (ou

    concorrncia desleal) aplicada educao. a reproduo escolar e social travestida de

    filtros seletivos numa educao ainda deriva. Escuto o denunciar e participo do

    anunciar, lado a lado com aqueles que passam da indignao ao.

  • Tiro ao lvaro

    O lvaro nasceu branco quase preto. Aos sete anos, a piedosa senhora a quem servia

    de criado quis ensinar-lhe o catecismo. Foi assim que o lvaro aprendeu as primeiras

    letras. Mas os seus companheiros de infncia no lograram ir escola. Quis a sorte e a

    herana escravagista que viessem ao mundo pobres e sem condio de estudar.

    O moo era esperto, tinha queda para o estudo e era o orgulho da sinh, que no se

    cansava de mostrar s amigas as notas obtidas pelo lvaro: dez em tudo! Porm, se

    libertara a mente, o corpo no se libertara do restrito territrio, no interior mais interior

    do mundo rural. Aps muitas tentativas de emancipao, foi rotulado de ingrato e

    expulso da fazenda. Errou campos e estradas, serviu a outros senhores Como diria o

    Adoniram, apanhou mais flechada que o mrtir Sebastio...

    Aps alguns anos de via-sacra, amealhou alguns proventos, suficientes para estudar

    noite. Entrou na universidade, j adulto feito. Hoje, professor. Muito tenho aprendido

    com ele! O lvaro um romntico da educao e... um conspirador. No se conforma

    com o estatuto de menoridade profissional imposto aos professores. Diz: A culpa

    nossa. Se nos olham como uns coitados, ns agimos como uns coitados.

    No aspira ao destino dos praticistas, que crem que a pedagogia apenas arte e uma

    questo de jeito. Mas tambm no quer acabar os seus dias anafado e solitrio, fechado

    num gabinete, ao fundo de um corredor de uma universidade, como acontece aos

    tericos que crem ser a pedagogia apenas uma cincia oculta. Muito menos deseja o

    destino daqueles que, teorizando teorias que tericos produziram sobre teorias de outros

    tericos, negam pedagogia o estatuto de cincia.

    O lvaro fica perplexo perante a perplexidade de outros profesores, que, mngua de

    entendimento, o criticam. Confessa ficar magoado com as flechadas que deles recebe.

    Diz estar decepcionado com a sua escola, onde nada se cria e tudo se copia. Mas no

    desiste de criar. E como maravilhoso aquilo que faz com as suas crianas! E como o

    lvaro ignorado! Como muitos outros...

    O Brasil ( semelhana de Portugal) viu surgir e desaparecer excelentes projectos. Os

    protagonistas de que o lvaro descende Eurpedes, Agostinho e tantos outros! se

    foram, sem honra nem glria, que o mesmo dizer sem qualquer proveito para a nao.

    Esses projectos raramente foram avaliados. Se o foram, as concluses dos estudos de

    caso e outros trabalhos acadmicos jazem no fundo de um qualquer arquivo

  • universitrio, sem serventia alguma. Algum proveito tiveram os pesquisadores, mas o

    pas nada lucrou.

    As escolas mantm-se ensimesmadas, rotinadas num modelo jesutico que penetrou bem

    fundo. Os profesores mantm-se dependentes de inteis medidas de poltica educativa,

    ou na iluso da ltima moda pedaggica.

    Escutei este desabafo de uma professora, consumidora compulsiva de compndios de

    auto ajuda pedaggica e frequentadora assdua de congressos: A gente j ps os alunos

    em filas, em crculo, em grupo. Agora, vamos ter de voltar a p-los em filas? Ou eu vou

    vender banana?...

    Pobre profesora! semelhana do lvaro, de tanto levar flechada, no tem mais onde

    furar...

  • Bizantinices

    Diz-nos a OCDE que os professores gastam 13% do tempo lectivo a manter a ordem na

    sala de aula. O estudo da OCDE recomenda s autoridades educativas que abandonem

    as polticas burocrticas. E abandonam?...

    H muitos anos atrs, aquando da dita reforma curricular portuguesa, um dos pontos

    fortes do debate era o tempo de durao de uma aula. E, no decurso de um congresso,

    algum perguntou se eu estava de acordo com a carga horria em vigor. Respondi que

    carga era coisa de jegue, com o devido respeito pelo colega e pelo jegue, mas o colega

    voltou carga. Perguntou-me se aprovava a alterao do tempo de aula de cinquenta

    para noventa minutos. Respondi, perguntando: Cinquenta minutos ou noventa minutos

    para qual aluno?

    Ficou arrumada a questo, ainda que eu acresentasse (e ele j no escutasse) que, h

    cerca de cem anos atrs, alguns pesquisadores chegaram concluso de que o aluno

    mdio teria, em mdia, uma capacidade de ateno seguida de cerca de cinquenta

    minutos. Que no por acaso que as aulas duram, em mdia, esse tempo. Mas que

    pesquisas recentes dizem-nos que as crianas do sculo XXI tm uma capacidade de

    concentrao mdia de cerca de seis minutos. Finalizei, afirmando que a durao da

    aula uma falsa questo. O problema consiste em ainda haver aula, seja de cinquenta,

    seja de noventa minutos. Expliquei que teramos de ultrapassar um discurso semeado de

    abstraes (aluno mdio, carga horria, etc) para falar do jovem e do aluno concreto.

    Mas o debate acabou ali, fez-se silncio, porque aquilo que bvio no carece de

    explicao.

    Portugal e Brasil so pases irmos tambm nos absurdos. Em Portugal, a lei estabelece

    a idade de matrcula; no Brasil estabelece a idade de aprender a ler e a idade de

    corte. Li num jornal: A experincia afirma que o melhor perodo para aprender a ler

    entre os 5 anos e oito meses e os 8 anos. E num outro jornal: O governo federal

    pretende unificar em seis anos a idade em que os estudantes brasileiros comeam a ser

    alfabetizados. A partir de 2010, nenhum aluno poder ser matriculado, se no tiver

    completado seis anos at fevereiro. Se fizer o seu aniversrio, nem que seja um dia aps

    o limite estabelecido, ter de continuar a educao infantil.

    O azar daquele que nasce entre o dia derradeiro e o dia seguinte... Alguns estados

    aceitam matrculas de crianas que perfaam seis anos at 31 de Dezembro. Outros

  • estabeleceram o critrio do sexto aniversrio at 30 de Junho. Disposies legais

    fixaram o limite em 30 de Maro... Algum saber dizer porqu? Nem eu!

    Quanto tempo se perde em questes bizantinas?! J no se cr que seja possvel

    deslindar o sexo dos anjos, mas insiste-se em determinar a idade para aprender a ler

    ou a idade para ingressar no primeiro ano.

    Quando foi matriculado no primeiro ano, o Daniel j sabia ler. Quando o visitei estava a

    fazer a os trabalhos de casa: escrever uma frase sobre a ida ao circo. O Daniel j sabia

    ler, mas estava atrapalhado. Perguntei porqu. Disse: Eu quero escrever que gostei de

    ver os palhaos. Insisti, porque desejava saber a razo pela qual o Daniel no queria

    escrever tal frase. Respondeu: No escrevo palhaos porque a professora ainda no deu

    o lh aos meninos!

    Culpa do Daniel, que aprende mais rapidamente do que o ritmo das aulas da sua

    professora. Culpa do Daniel, porque no cumpre o calendrio estabelecido para

    aprender a ler...

  • A outra (*)

    Naquele tempo, a generosidade de alguns professores multiplicou-se e despontaram

    projectos, ainda que lhes no dessem esse nome.

    Foi ento que passei uma tarde naquela escola. De sala em sala, partilhei o trabalho de

    cada professora, procurei ajudar a transformar desejos em possibilidades, auscultei

    dificuldades.

    primeira ouvi: "Isso de projectos muito bonito, mas... e as outras? Como ?" A

    segunda professora despediu-se de mim com o seguinte recado: "No te iludas, Z! H

    sempre quem no faa, nem deixe os outros fazer." A terceira: "Sabes, Z, por mim, at

    nem h problema. Mas h outras que..." sada da ltima sala, idntico comentrio:

    "Querer, eu at quero! Mas tu percebes, concerteza, que h quem no queira!"

    Esperei pelo fim das aulas. Tinha sido convidado para participar na reunio do conselho

    escolar. Sentei-me com as quatro colegas volta da mesa, na exgua sala dos

    professores. Dado o silncio e a atitude de escuta, supus que aguardavam que eu

    comeasse. E eu comecei: "J estamos todos? So s quatro as professoras na vossa

    escola? No falta mesmo ningum?" Onde est "a outra"?

    Este episdio ajuda a entender a inutilidade de uma formao na qual no embarca um

    quinto passageiro, uma formao de que nada resulta, seno a confirmao de

    esteretipos e o refgio em preconceitos.

    Porm, sempre possvel aprender algo em comunidades de amizade crtica. E, quase

    sempre, nem nos apercebemos disso. Porm, h por a prticas anonimamente

    elaboradas, cujo intercmbio entre escolas urge viabilizar.

    No falemos de "projectos de professor" nos quais o instinto de sobrevivncia

    profissional se alia ao voluntarismo, numa mistura perigosa que engendra projectos

    isolados com professores a reboque de projectos que so de outros e que se extinguem

    quando o acaso, o cansao, ou o sistema de colocaes, desvia o entusiasta acidental

    para outras paragens.

    Talvez o fim deste sculo abra caminho para escolas onde no exista uma nica soluo

    correcta para cada caso, onde a coerncia praxeolgica no seja redutvel aplicao

    linear de teorias, onde os professores no permaneam "orgulhosamente ss", nem seja

    reforado o individualismo que no permite que um "outro" professor participe de um

    mesmo projecto. Essa re-elaborao da nossa cultura profissional atravessar geraes.

  • Inutilidades

    H uma dzia de anos, ao lado de insgnes psiclogos e consagrados pedagogos,

    participei numa mesa de discusso sobre transio entre ciclos e tempos letivos. O

    congresso visava lanar luz sobre a segmentao do sistema (em anos ou ciclos) e a

    durao de cada segmento, bem como abordar a candente questo da transio

    traumtica entre ciclos de ensino (sic).

    Os meus colegas de mesa expuseram as suas ideias, at que chegou a minha vez. Eu

    disse estar deveras preocupado, aps deles ter escutado graves afirmaes. A saber: que

    a transio entre o quarto e o quinto ano pressupunha que o aluno passasse do regime de

    professor nico para outro em que iria conviver com mais de dez docentes, o que,

    frequentemente, provovocava crises, cujos efeitos se mostravam desastrosos. Enfim!...

    No entender dos meus colegas, a tansio entre ciclos era taumtica. No raras vezes,

    os jovens ficavam com marcas indelveis desse trauma: desmotivao, terrores noturnos

    e at incontinncia urinria...

    Fui inquirido. Respondi com perguntas.

    primeira Reconhecemos que a transio entre ciclos traumtica? a resposta foi

    unnime e em coro: Sim!

    segunda pergunta No verdade que s h trauma porque existe essa transio

    entre ciclos? acenaram com a cabea num sim algo desconfiado.

    terceira Ento, poderei concluir o silogismo: se deixar de haver ciclos, deixa de

    haver transio e deixar de haver trauma. No ser assim?

    Gerou-se forte confuso e escutei um brado: Mas o sistema est organizado em ciclos!

    Ento, fiz a pergunta derradeira: E porque razo h ciclos e segmentao em anos ou

    sries?

    Ningum respondeu. Nem com um aceno de cabea!...

    Acresentei: to grande a besteira de haver professor nico no Fundamental como

    haver guetos disciplinares a partir do quinto ano. E pedi, por favor, que no esgrimissem

    com argumentos de senso comum, ou com teorias que j tresandam a mofo! Aquelas

    que vejo reescritas na vigsima quinta verso tm matrizes centenrias. Por exemplo,

    Dewey e Montessori (com todo o respeito que me merece a sua memria e mrito) so

    autores do incio do sculo XX. Nos ltimos cem anos, a produo terica pouco tem

    ultrapassado os limites de incessantes citaes de citaes...

  • verdade! As matrizes tericas esto estabelecidas desde h mais de cem anos.

    Desperdiamos todo o sculo XX em especulaes que no fertilizaram as prticas. A

    construo social chamada Escola mantm-se inalterada desde, pelo menos, h trs

    sculos. Redundncias tericas, modas e livros de auto-ajuda pedaggica nada

    acrescentam. A nomenclatura foi alterada e as teses foram enfeitadas com termos como:

    interdisciplinaridade, multiculturalismo, incluso... Sucederam-se os clubes:

    piagetianos, vigotskianos, baktinianos, steinerianos, montessorianos... Medidas de

    poltica educativa tentaram (em vo!) psicologizar as escolas. Foram inventadas

    medidas de desculpabilizao curricular: classes de acelerao, ateliers de contra-turno,

    etc. O edifcio fsico e legal das escolas mantm-se inalterado. Quem interpela a

    pertinncia de segmentaes?

    Felizmente para o Brasil, h muitos educadores que correm por fora de inteis medidas

    de poltica educativa e dos exerccios de bricolage terica. Constroem, gradual e

    responsavelmente, uma reforma silenciosa, concretizando Piaget, Vigotski, Baktin,

    Steiner, Montessori...

  • Resistncia mudana?

    De todos os lados me chegam notcias de conflitos, como se as escolas fossem um

    grande campo de batalha. Recebo mensagens de desnimo, assinadas por desistentes.

    Porm, outras so de impacincia, assinadas por resilientes:

    Caro Jos, esta necessidade de libertao est na raiz do empenho que emprego por um

    ensino e uma educao que no foram as minhas. Mas isto parece um "surf" em mar

    alto, um vogar de crista em crista, por ondas que j traziam destino. Sou eu que no

    tenho grandes expectativas quanto ao envolvimento dos professores e vejo mais o dedo

    de Deus e feliz coincidncia de rotas, do que uma sria apropriao da pedagogia...

    Continuo a experimentar o "surf" mas agora, em mar de tubares com barbatana

    tona d'gua. E, pela dimenso dos ditos, temo que j nem a prancha se salve. Vejo-me a

    braos com um dono de colgio em que no vejo outro empenho que no seja continuar

    a mandar e obter lucros. E com uma coordenadora que reforou a burocracia e, assim,

    se tornou insubstituvel ao primeiro, um tenebroso e vingativo prcere. Fiquei fora de

    mim, quando ela, ainda sem me conhecer bem, quis que eu alinhasse com ela, numa

    conversa estapafrdia, para queimar umas traidoras que alimentam as vontades dos

    pais... Enfim, o que ela queria era guerra! Queimei ali o empenho do biltre!

    O que ela queria era guerra escreveu o meu indignado amigo. E ser mesmo

    guerra? Eu sou amante da paz, mas devo reconhecer que, desde que existe Escola, existe

    uma desgastante guerra surda entre o velho enquistado e o novo por alguns desejado.

    Tentei aquietar o subscritor da carta, mostrando-lhe que, apesar de serem s duas as

    professoras que querem mudar, elas so a maioria numa escola de cerca de cem

    professores. A crer em Thoreau, qualquer homem mais justo que seus semelhantes j

    constitui uma maioria de um E,como em todos os conflitos, h o lado dos bons e h

    o lado dos maus. evidente que ns estamos sempre do lado dos bons. Resta saber de

    que lado estamos

    O conflito entre prticas conservadoras e novas prticas velho de sculos. Em meados

    do sculo XX, um ilustre professor denunciava prticas que considerava nocivas.

    Insurgia-se contra o comportamento de professores que evitavam os problemas que

    deveriam abordar, mas cujo tratamento imparcial sabiam que poderia suscitar

    desagrado em certos crculos influentes, que mudavam de ideias e convices

    consoante julgassem conveniente, que se opunham permanncia na sua escola, de

  • elementos de incontroversa competncia e dedicao, com receio de confrontos, para a

    tranquilidade do seu ramerro.

    O Heraclito dizia que na mudana que as coisas repousam. Porm, em muitas escolas,

    o conceito de resistncia mudana to caro s cincias da educao confunde-se

    com preguia e contribui para legitimar a mediocridade. Grassa nessas escolas uma

    praga de pedagogos de gabinete, que usam o legalismo no lugar da lei, que nunca leram

    (ou no souberam ler o artigo 23...), ou que reinterpretam a lei de modo obtuso, no

    intuito de que tudo fique igual ao que era antes. E, para que continue a parecer

    necessrio o desempenho do cargo que ocupam, para que paream teis, perseguem e

    caluniam todo e qualquer professor que ouse interpelar o institudo, questionar os

    burocratas, ou pior ainda! manifestar ideias diferentes de quem manda na escola,

    pondo em causa feudos e mandarinatos.

    Ainda haver quem se espante com o lamentvel estado em que o ensino (e o pas) se

    encontra?

  • Ser por acaso que h acasos?

    A possibilidade de ocorrer algo coisa assim de um para um milho. Mas aconteceu. E

    no por acaso que h acasos, como veremos adiante.

    O Paulo era o mais novo dos dois amigos desta histria. Tinha ficado pela quarta classe

    antiga e o seu amigo era professor. O Paulo andava preocupado. Pediu conselho ao

    amigo:

    - "Sinceramente, qual ser a melhor escola para matricular a minha filha na

    "primeira classe"? Faa de conta que a Catarina era sua filha!"

    Lacnica e sinceramente, o seu amigo professor respondeu:

    - "H bons professores em todas as escolas."

    Mas o Paulo no desarmou:

    - "No bem assim. Na minha primeira classe, eu tive dois professores. Um tratou-

    me to bem que eu nunca mais o esqueci. A outra foi uma cabra que me fez odiar

    tanto a escola que eu mal fiz a quarta, raspei-me dali para fora."

    - "Como que foi?" - retorquiu o amigo.

    - "Eu era muito pobre e a professora fazia distino. Ps-me ao fundo da sala e era

    s porrada para mim e para mais trs da minha ilha."

    - "Mas... e o outro professor?" - demandou o amigo.

    - "Esse era muito diferente. Tratava-nos a todos com meiguice e pacincia. Nunca

    nos bateu. E ns at ramos para a mais de trinta! E ramos muito traquinas,

    difceis de aturar. Se eu hoje sou alguma coisa devo-o a ele. Ainda hoje me lembro

    dele quando tenho de decidir da minha vida... naquelas alturas...no ...?"

    O amigo professor interrompeu-o:

    - "Mas o que foi feito desse tal professor?"

    - "A meio da primeira classe, ele chamou-nos, um a um, ainda me estou a lembrar

    quando chegou a minha vez. Abaixou-se, assim, ps-se da minha altura e disse-me:

    Paulinho, eu vou ter de ir embora, tenho de ir para a tropa. Sabes o que ? Eu at

    me deu vontade de chorar, mas disse que sim co'a cabea, que eu at sabia que o

    Eduardo (o "Bife" l da minha ilha) tinha morrido na guerra de Angola. Despediu-

    se de todos, mesmo dos mais pobres como eu."

    - "Em que escola andaste? Em que ano entraste na escola?" - perguntou o amigo.

  • O Paulo respondeu. E era o mesmo ano e a mesma escola onde o seu amigo tinha

    comeado a carreira de professor. Este ainda arriscou esclarecer uma ltima dvida:

    - E s havia uma "primeira classe"?

    O Paulo respondeu negativamente, mas acrescentou:

    - "As outras trs "primeiras" tinham professoras, s a nossa que tinha um

    professor."

    - E como era esse professor? - perguntou-lhe o amigo, j com evidentes sinais de

    inquietao a percorrer-lhe o rosto.

    A descrio feita pelo Paulo ajustou-se perfeitamente pessoa que o seu amigo

    professor tinha sido trinta anos antes.

  • De fsseis e falastres

    A leitura no tudo na vida, ler no suficiente para operar mudanas, mas no pode

    haver mudana nas prticas que possam dispensar a teoria. Por mais livros que se leia,

    nunca sero suficientes na ajuda prestada na resoluo das nossas dificuldades de

    ensinagem. Comprendi isso no contexto de uma prtica que concretizou utopias. E, j

    aposentado, partilho leituras com professores que no desistem de se melhorar. Tenho

    conscincia de que, por mais livros que leia, serei sempre ignorante, dada a imensido

    do conhecimento pedaggico disponvel.

    Por isso me surpreendo quando algum me diz haver professores que no lem. Talvez

    por isso, muitos professores ajam como aprendizes de feiticeiro, no logrando explicar

    por que fazem aquilo que fazem, seja l o que for que faam. No conseguem

    fundamentar as suas prticas com recurso teoria e, porque no se distingue a sua

    opinio da opinio de qualquer leigo em pedagogia, so desvalorizados por uma

    opinio pblica na qual todos se consideram especialistas em Educao, como nos

    dizia a Hanna Arendt.

    Esses docentes so os mais vulnerveis a discursos pretensamente inovadores e a

    argumentaes fsseis. Sei de gente que faz fortuna custa da fragilidade alheia,

    distribuindo receitas de auto-ajuda pedaggica, sedutoras solues, que os prprios

    vendedores no aplicam. Observo falastres afagando o ego dos professores, falando

    somente o agradvel, contornando questes delicadas, recorrendo ao discurso da

    desculpabilizao, tratando os professores quase como mentcaptos. E rio (um riso triste,

    confesso) das intervenes pblicas de adeptos do pensamento nico, que se crem

    sbios. Misturam afirmaes do senso comum com propostas fsseis, propem aquilo

    que sempre se fez. As escolas, que no se do conta da obsolescncia do modelo que

    tais criaturas defendem, sempre tentaram transmitir contedo, sempre valorizaram a

    transmisso de conhecimentos, sempre centraram o ensino nos contedos curriculares e

    numa avaliao feita de inteis provas. As prticas ditas diferentes sempre foram

    excepes regra.

    No domnio da formao dos professores, propem aquilo que tambm j acontece:

    valorizar primeiro as matrias e depois a formao pedaggica. Parecem ignorar que na

    formao inicial que ainda temos, mngua de uma produo terica que fecunde as

    prticas e que por elas seja reelaborada, se altera somente a nomenclatura e ainda se

  • insiste no decorar de teoria fssil de h cem anos atrs. Finalmente, ao preconizar a

    prioridade da formao cientfica em detrimento da pedaggica, contribuem para a

    desqualificao profissional dos professores, porque aquilo que distingue o exerccio da

    profisso dos professores a par de um profundo conhecimento das matrias a leccionar

    o saber pedaggico.

    O Brasil tem os melhores tericos do mundo. Porm, quase no tm espao em

    congressos e na mdia. Nesta, os opinion maker receitam prticas centenrias e

    hegemnicas, cujos trgicos efeitos bem conhecemos. Esses pronunciamentos apelam a

    uma mesmice pedaggica, que condenou sucessivas geraes ao grau zero de literacia e

    ao analfabetismo funcional. O Brasil convive com o drama dos catorze milhes de

    analfabetos funcionai, que a escola da mesmice produziu. E ssobrevive na tragdia da

    reproduo da ignorncia, por obra de fsseis e falastres.

  • Mesmice

    ( memria de Ademar Santos)

    Durante mais de uma hora, ouvi o Perrenoud falar sobre o tema: Os alunos so

    diferentes Porque trat-los como se fossem semelhantes?, perante uma platia atenta.

    E eu evocava congressos e seminrios de h vinte, ou trinta anos atrs, em que eu

    escutava discursos semelhantes dirigidos a platias igualmente atentas...

    Nos livros que leio, nas palestras que escuto, quase consensual a crtica do modelo

    epistemolgico que predomina nas escolas desde h sculos. A crena na transmisso

    linear de saberes sobrevive na agonia do modelo de escola que ainda temos. Se o

    modelo epistemolgico faliu, resta saber por que razo se mantm, ainda que

    moribundo, o modelo organizacional que o suporta. Se h muitos modos de fazer

    escola, quantos j foram experimentados?

    J Bachelard dissera que o acto de conhecer se d contra um conhecimento anterior e

    que impossvel anular, de um s golpe, todos os conhecimentos habituais:

    detectaremos causas da inrcia s quais daremos o nome de obstculos

    epistemolgicos. O discurso continua a contrariar a prtica do discurso para um

    pensamento nico, um modelo nico. A mesmice das teorias da mesma natureza da

    mesmice das prticas. Cultiva-se a mesmice em aulas de saliva e power point. A

    sndrome do pensamento nico no questiona a normose que tende a perenizar rituais

    sem sentido.

    Pois , Bachelard... No Portugal de h trinta anos atrs, foram muitas as teses que

    elegeram por objecto de estudo os obstculos mudana. De ento para c, o que

    mudou? Os doutorados de h trinta anos leccionam como os doutorados de agora.

    Obstculos epistemolgicos impedem-nos de agir em coerncia com as concluses das

    suas teses. Dissertam sobre diversidade perante turmas que supem ser homogneas;

    ensinam mtodos activos a alunos inactivos; crem fazer educao inclusiva, quando

    ensinam a todos como se de um s se tratasse. Quedo-me perplexo face a tericos que

    dissertam sobre mediao sem jamais a praticarem, e fico confuso perante

    construtivistas cujas prticas so a negao do construtivismo. Esses personagens so

    Mister Jekyll na teoria e Mister Hyde nas prticas.

    Creio que comeo a entender o xito comercial dos livros de auto-ajuda pedaggica

    presume-se que possam ajudar professores a melhorar as suas aulas, quando o

  • necessrio seria acabar com elas. Aps alguns anos de experimentalismo reformista e de

    tentativas de psicologizao das escolas, temos nas escolas mais do mesmo. Gilles Ferry

    busca explicar o drama, contextualizando-o no campo da formao de professores:

    Existe uma analogia estrutural entre o vnculo da formao e o vnculo da prtica

    profissional para a qual conduz esta formao, uma isomorfia. Resulta desta isomorfia

    que (qualquer que seja) o modelo pedaggico adoptado pelos formadores tende a

    impor-se como modelo de refernca dos formados. Os efeitos de estruturaao e de

    impregnao produzidos pelo dispositivo de formao correm o risco de serem mais

    fortes do que o discurso sustentado.

    No necessrio inventar novos conceitos, ou rebaptizar conceitos antigos. Basta de

    redundncias tericas e de cursos de transmisso de contedos, que se revelam inteis

    nas prticas necessrio e urgente reinventar as prticas. Pouco antes de falecer, o

    Ademar escreveu no seu blog: Andamos nisto h muitos anos. Enquanto no formos

    capazes de mudar radicalmente de modelo, entreter-nos-emos a tentar remendar os

    buracos. E, enquanto fingimos que sabemos usar a agulha, folgam as costas e ajeita-se

    a retrica para os prximos embates.

  • As castas

    Dizem-me que no devo abordar assuntos-tabu, mas o desassossego derrota a

    prudncia, porque subsistem sutis formas de corporativismo, onde escasseia a

    autonomia das escolas.

    Sabemos que educar pressupe relao, estar com. Porm, subsiste um paradoxo:

    quanto mais longe o educador estiver da relao, da prtica de sala de aula, maior

    salrio aufere e mais elevado estatuto social parece deter. Beneficia de subsdios de

    funo, de abonos, remunerao de cargo superior. Estou crente de que, se cargos

    superiores houvesse, o mais elevado deveria ser o trabalhar com crianas. Porm, no

    sistema implantado, apenas as castas mais puras podem aspirar a aproximar-se dos

    deuses... As deseres para funes ditas superiores so tantas, que parece que os

    melhores professores so aqueles que conseguem libertar-se das agruras da sala de aula.

    O sistema de castas infectou a profisso docente. Na hierarquia instituda, alguns

    trabalhos so to impuros que apenas certas castas podero realiz-los. E a remunerao

    que difere de funo para funo, de docente para docente sintoma da infeco. O

    que justifica, por exemplo, o abismo salarial existente entre professores com diferentes

    tempos de servio? Seguindo a lgica do funcionalismo pblico, quanto mais tempo se

    for fiel ao seu senhor, maior salrio se auferir quanto mais servil, maior a

    recompensa. A lealdade ao Estado recompensada, mesmo que pouco se trabalhe ou

    nada se faa.

    E porque ser que um doutor ou um mestre deve auferir maior salrio que um

    licenciado? Quando eu j era mestre em educao, recebia salrio de bacharel, s por ter

    optado por continuar professor do ensino fundamental. Mas no me queixo...

    Considero injusto que haja salrios diferentes para idnticos horrios de trabalho.

    Considero imorais salrios diferentes para o exerccio da profisso nos mesmos espaos

    e em idnticas condies. Que razes ocultas legitimam que eu (professor aposentado)

    aufira o dobro do salrio do meu filho (professor em incio de carreira)? Porque se

    mantm a antiguidade como critrio de graduao? Que algum me ajude a entender!...

    Os professores inferiores tudo suportaram com infinita pacincia, porque sempre

    estiveram divididos. Ilustrarei com um (triste) exemplo.

    Estalou uma polmica em torno dos critrios utilizados num concurso. Professores

    excludos diziam que outros passaram frente, garantindo que foram colocados colegas

  • com menos anos de experincia. A professora Sofia queixava-se de haver colegas que,

    por no terem sido denunciados, foram colocados e vo ter regalias". O ministrio

    afirmava que no podia fechar os olhos s denncias, mas havia quem manifestasse a

    opinio de que a colega Sofia s pretendia passar frente de tudo e todos e que

    como no h galhos para todos os macacos, comearam os desentendimentos (sic).

    Uma s voz saudvel se ergueu para comentar a polmica: aviltante aferir a falta de

    tica de alguns docentes, que falseiam dados. o triste reflexo da falta de dignidade

    crescente da profisso de professor.

    De que nos queixamos, se alimentamos mentalidades decadentes? De que nos

    queixamos, se no reagimos depreciao das prticas e sobrevalorizao da

    burocracia?

  • Avaliao de desempenho

    Naquele ministerial recanto, havia dezenas de zelosas funcionrias batendo teclas de

    computador, em mesas atafulhadas de relatrios e inutilidades afins. Perguntei a uma

    delas para que serviam tantas resmas de papel, quais os efeitos prticos daquela

    canseira. A funcionria disse-me estar a coligir os dados de um inqurito recebido das

    escolas. Quis saber o que iria mudar para melhor nas escolas, que pudesse ser atribudo

    quela intensa azfama burocrtica. Fitou-me com o sobrolho carregado: Isso eu no

    sei. Limito-me a cumprir ordens. Depois de ser assinado pelos meus superiores, o meu

    relatrio vai para cima...

    Para cima? Para onde? insisti. A funcionria quedou-se, semblante carregado, e

    mais no disse.

    Apercebi-me de que todos aqueles tcnicos eram professores. E eu, que estava crente de

    que trabalho de escritrio coisa de amanuense e que professor aquele que se forma

    para trabalhar com alunos e com alunos trabalha!... Sa da reunio reflectindo: num

    tempo em que tanto se fala de avaliao de desempenho dos professores, que avaliao

    poder ser feita relativamente a professores sem alunos? E veio memria um outro

    episdio.

    Houve um tempo em que a lei previa que, em casos extraordinrios, a avaliao dos

    professores fosse contemplada com uma meno de mrito extraordinrio e,

    consequentemente, os professores fossem recompensados com um reforo de salrio.

    Os professores da Ponte j nesse tempo com o seu projecto reconhecido como de

    elevada qualidade foram convidados a requerer a benesse. Diziam-nos ser um acto de

    justia, o mnimo que poderia ser feito em reconhecimento pelo trabalho realizado pela

    escola. Envimos a candidatura e a resposta chegou peremptria: o reconhecimento

    de mrito s pode ser atribudo a ttulo individual.

    Recusmos a candidatura individual. Ou todos, ou nenhum, porque um projecto de

    escola um acto colectivo. A candidatura foi indeferida. O jri recusou avaliar

    colectivamente os professores da Ponte, mas muitos pedagogos de gabinete foram

    individualmente avaliados, receberam meno de mrito extraordinrio, subiram na

    carreira (docente!), alcanaram escales de salrio superior.

    Recentemente, um ex-ministro da educao (com letra minscula, que mais no merece)

    queixava-se de que os seus directores-gerais no tinham as escolas entre as suas

  • preocupaes e que alguns deles eram de muito inferior qualidade. Mas, j em 1978,

    quando integrei uma equipa de professores a quem competiu apresentar um projecto a

    um alto responsvel de um departamento do Ministrio da Educao, eu fizera idntica

    descoberta. No levmos muito tempo para compreender que o nosso interlocutor nada

    entendia de... educao. Tnhamos perdido tempo numa longa viagem e gasto o nosso

    dinheiro em vo.

    A avaliao de desempenho no deveria comear por cima (pressuposta a hierarquia)?

    Como so avaliados os funcionrios que alimentam a pesada mquina ministerial?

    Como avaliar professores desperdiados em funes administrativas? Que conceito de

    docncia prevalece nos meandros da avaliao de desempenho? Que critrios presidem

    avaliao de quem no age como professor?

    O meu amigo Rui Canrio dizia que aprender a aprender com a experincia s

    possvel a partir da crtica e da ruptura com essa experincia, mas no parece ser essa a

    regra. No aprendemos com a experincia e mantemos prticas absurdas. A arte de

    educar alunos continua a ser desvalorizada relativamente ao exerccio de funes

    burocrticas. Ser director de um arquivo morto, numa qualquer repartio, continua

    sendo pecuniariamente mais compensador do que exercer a profisso de professor,

    numa sala de aula.

  • Regresso ao local do crime

    Para muitos professores a frequncia de aces de formao continua a constituir um

    incmodo ou castigo (e talvez lhes assista alguma razo). Muitas aces de formao so

    repositrias de receitas avulsas debitadas sobre auditrios passivos. Muitos formadores

    seriam incapazes de concretizar as propostas que veiculam, prescrevem mudanas que

    seriam incapazes de operar na sua prtica. Com as honrosas excepes do costume, os

    planos de formao de diferentes centros so quase idnticas coleces de modalidades

    escolarizadas antecedidas de introdues consignadoras das metforas do professor

    "intelectual, reflexivo, etc., etc.".

    A formao um dos pontos crticos do sistema. O subsistema de formao vive

    anestesiado por metforas e por tericos consensos. Um certo sentimento de interdito

    impede que se diga que muitos professores vo s formaes como se vai a um

    supermercado de crditos.

    Que espao resta para a formao? Na poca do triunfo do virtual, a formao

    transforma-se em adorno cientfico. Os estudos que nela incidem nada transformam:

    desligam-se da realidade estudada. Essa realidade mostra-se, por seu turno, autista face s

    concluses dos estudos. Quase tudo quanto tem sido escrito sobre formao tem sido dito

    de fora. Como escrever sobre a morte, como investigar a Lua somente na sua face exposta

    e visvel? Analisa-se o banal e (o que grave) com a chancela da cientificidade.

    O problema no novo. No campo da formao, as iniciativas que antecederam a

    publicao do actual regime jurdico foram marcadas por uma preocupao

    eminentemente tcnica. Regra geral, visavam rituais de actualizao (designados por

    reciclagem), concebidos por organismos centrais ou regionais do Ministrio da Educao,

    com recurso frequente a instituies de formao inicial de professores.

    Estes encontros tiveram uma virtude. Foram oportunidades no desperdiadas por alguns

    professores para interpelar a prpria formao. Alguns segmentos conjunturais foram,

    deste modo, abertura para a concepo e desenvolvimento de projectos locais. E se alguns

    outros projectos foram anulados pela interveno de inspectores ou da hierarquia

    administrativa, outros houve que resistiram eroso do tempo.

    Em 1978, coube a certo professor a coordenao pedaggica concelhia de um programa

    de formao contnua de professores. Tratava-se de um programa ministerial com o

    intuito de "reciclagem" (como ento se designava) com vista introduo dos novos

  • programas para o Ensino Primrio. Mais por intuio que por referncia a um quadro

    terico, o dito professor fez do primeiro momento um encontro de escuta. Fora eleito

    pelos professores do concelho onde trabalhava e era com eles e por eles que qualquer

    projecto poderia ter lugar. Passou a trabalhar (fora do tempo lectivo e sem qualquer

    acrescento de vencimento) com mais cinco professores.

    Nos fins-de-tarde do ms de Outubro, procederam a um levantamento de recursos. Foi

    ento que detectaram a existncia de uma Biblioteca Pedaggica na arrecadao da

    Delegao Escolar. Jamais havia sido utilizada pelos professores.

    Retirado o p, inventariados os livros, estes passaram a circular pelas escolas. O ritmo de

    requisies era intenso. Entretanto, em Novembro do mesmo ano, era publicado o

    primeiro nmero do "Projecto", boletim do recm-criado Centro de Documentao

    Pedaggica. O texto de abertura tinha um ttulo sugestivo: "O que foi e ser a formao

    contnua dos professores".

    Estvamos em 1978. Tudo comeara por ser uma mera inteno ministerial de "reciclar"

    professores. E os boletins seguintes davam notcias de inmeros projectos, encontros,

    exposies, estudos... Inusitadamente, a Biblioteca Pedaggica Concelhia j no

    conseguia satisfazer todos os pedidos de livros que ali chegavam.

    Entretanto, sem um enquadramento jurdico que salvaguardasse as estruturas criadas, sem

    um estatuto definido, os poderes administrativos e inspectivos tudo fizeram para destruir

    algo que pressentiam fugir ao seu controlo. A equipa resistiu at onde pde. Depois,

    pediu a demisso. A Biblioteca foi conferida, fechada, e voltou para a arrecadao de

    onde viera.

    Volvidos oito anos, era criado o "Programa Interministerial de Promoo do Sucesso

    Educativo". A equipa eleita pelos professores em exerccio no concelho voltava a

    integrar alguns dos que, no hiato entre as duas iniciativas do ministrio, haviam

    resistido em grupo degradao pedaggica que acometia muitas escolas. Coube ao

    mesmo professor o papel de coordenar o programa. Foi encontrar a Biblioteca tal qual a

    havia deixado em 1979. Retirado o p, verificou que apenas faltavam os dicionrios. E

    no havia qualquer registo de requisio entre 1979 e 1987.

  • A preocupao com o termmetro

    no far baixar a temperatura...

    Que direi, se o conselho de classe j foi objeto de inmeros artigos, dissertaes e teses?

    O que poderei acrescentar de til, se j nele participei, se j o testamos na Ponte, ao

    longo de mais de duas dcadas, e o dispensamos? Ressalvadas as excees, as reunies

    desse rgo so rituais absurdos, decorrentes de um absurdo maior. No somente o

    conselho de classe que deve ser substitudo por algo que faa sentido. toda a Escola

    que deve interpelar e reelaborar a sua cultura.

    vasto o conjunto das suas atribuies (deliberar sobre objetivos, metodologias, formas

    e critrios de avaliao, a inter-relao com a famlia, adaptaes curriculares para

    alunos com necessidades especiais). Poderia constituir-se num espao de gesto

    democrtica, mas predominam atitudes autoritrias e discriminatrias.

    So ntidas as diferenas entre o esprito dos normativos que regem o funcionamento do

    conselho de classe e a sua prtica. um rgo pesado e burocratizado. Junta professores

    das diversas disciplinas com coordenadores pedaggicos, supervisores, orientadores

    educacionais e at alunos. Ao contrrio do que a lei estabelece, na prtica, a

    preocupao do Conselho no a de dinamizar a gesto pedaggica, mas de classificar

    alunos. E classificar de modo ingnuo e intil. Confunde-se avaliar com aplicar prova;

    confunde-se avaliao com classificao. A organizao interdisciplinar e a centralidade

    da avaliao como foco de trabalho esto ausentes. Prevalece um ritual que se restringe

    ao veredicto de aprovado ou reprovado. O resto o fechar as notas, queixas e

    encaminhamentos para especialistas...

    Cito registros de observao de uma reunio de Conselho de Classe, onde se faz uso e

    abuso de apreciaes subjetivas:

    Ele muito desorganizado, ele muito disperso, no faz nenhuma tarefa.

    No seria um PPDA?

    Ele atirado. O prprio jeito de ele caminhar. Caminha assim, ! Com os ps

    arrastando.

    Ento, a gente pode fazer um PPDA e colocar no PPDA isso.

    Deve ser PSAE...

    Cito um normativo: O conselho de classe reunir-se-, ordinariamente, conforme

    calendrio anual divulgado pelo nvel central da Secretaria Municipal de Educao; o

  • Conselho de Classe Extraordinrio reunir-se- conforme previsto na Deliberao

    E/CME n16/2008, desconsiderando a Resoluo SME mencionada no prembulo da

    referida legislao.

    Cito, por fim, algumas das tarefas impostas a um conselho de classe, no ano letivo de

    2009: ndices de Aprovao (...) dos dois ltimos anos. Os dados devem ser

    apresentados atravs de nmeros e porcentagens. ltima pontuao obtida no IDEB.

    Meta proposta pelo IDEB para 2009 (...).

    Se no fosse grave, seria hilariante. preciso algum que ponha o dedo na ferida,

    para que no se continue a estigmatizar o doente, sem que se faa a etiologia da doena.

    Quando se discute os graus de uma febre mals, parece que ningum entende que no

    a preocupao com o termmetro que far baixar a temperatura...

  • Parece mesmo alegria (*)

    O Nelson chegava pontualmente atrasado escola. Todos os dias o professor se sentia

    tentado e no direito de o interpelar, de lhe perguntar das razes do invarivel atraso. At

    que, no resistindo tentao, mas com muito jeitinho, arriscou a pergunta: "porque

    chegaste s agora?"

    O Nelson explicou e o professor ficou a saber que, na noite da vspera e mais uma vez,

    o pai havia "arreado uma coa na me", que ela at tinha ficado "com pisaduras nas

    pernas e um olho deitado abaixo". No meio da confuso, o Nelson, como o mais velho

    de trs irmos de diferentes pais, fizera uma retirada estratgica, refugiara-se com o

    resto da famlia num anexo-tugrio de zinco e tijolo sem reboco.

    Explicou e o professor ficou a saber como o Nelson conseguiu, j noite adentro e com o

    pai ausente no "caf de senhor Tio", ajudar a me "a ligar a perna e a dar o bibero

    ao Tiaguinho". E concluiu:

    - "Acordei com muito sono, professor, porque a Carlinha (a irm do meio) no me

    deixou dormir. Chorou a noite toda. Os ratos roeram-lhe uma orelhinha."

    O Nelson apercebeu-se de que o professor estava com dificuldades de achar palavras

    para preencher o silncio que ento se fez. E acrescentou:

    "Mas no importa, professor. Quando venha para a escola, sinto c dentro uma coisa...

    Olhe, parece mesmo alegria!"

  • Paleontologia

    Diz a Maria: Os tempos so outros, a idia de que a escola deve ser apenas

    brincadeira j provocou ignorantes a mais. Pois , Maria... Os tempos so outros, mas

    as prticas so as mesmas e de recuados tempos. Eu sei, porque tambm fui professor

    transmissor. Foi isso que me ensinaram desde a carteira da escola primria at

    universidade ( isso que, ainda hoje, se ensina). Durante algum tempo da minha vida de

    professor, dei aula, acreditei (santa ingenuidade!) ser possvel transmitir conhecimentos.

    At que descobri algo que qualquer professor sem sndrome de pensamento nico pode

    descobrir: que h outros modos de ser professor e que o professor no transmite o que

    diz, mas aquilo que .

    O que a maioria dos professores tentou (e tenta) fazer no transmitir conhecimento,

    transmitir mera informao. Mas nem essa consegue transmitir, devido a mltiplos

    rudos que interferem na comunicao (poderei demonstrar a afirmao, se

    necessrio). E essa prtica hegemnica em dois sculos, raras so as excepes da

    transmisso j provocou ignorantes a mais, como bem refere a Maria.

    Eu prefiro um professor tradicional, que tente transmitir conhecimentos, a um

    professor que considere que a escola deve ser apenas brincadeira. Mas ambos esto

    errados. O primeiro, porque insiste num modelo fssil; o segundo porque pratica uma

    pedagogia fssil. Explicarei...

    Muitos daqueles que defendem um ensino transmissivo tambm abominam aquilo

    que designam por novas pedagogias. Presumo que usem tal adjetivo por ignorncia

    da Histria da Educao. As novas pedagogias que eles criticam so velhas. Piaget

    publicou teoria em meados do sculo XX e as matrizes construtivistas foram elaboradas

    h quase um sculo!

    Quem aceitaria ser submetido a uma cirurgia comandada por um mdico que se

    orientasse por cincia produzida h meio sculo? Algum arriscaria confiar o projeto da

    sua casa a um engenheiro que se atualizasse na leitura de livros tcnicos publicados h

    cem anos? Mas quem hesita em entregar os seus filhos ao cuidado de quem ainda nem

    sequer um Piaget, ou um Dewey assimilou, para elaborar teoria pessoal e

    (responsavelmente!) a utilizar nas suas prticas?

    Muitos daqueles que influenciaram sucessivos elencos ministeriais e conduziram a

    poltica educativa ao desastre evocaram as cincias fsseis da educao. Por exemplo,

  • fazendo teorizao de teorias mal digeridas e jamais praticadas, alguns iluminados

    contriburam para lanar um estigma sobre a psicologia da educao, quando, em nome

    dela, apoiaram e legitimaram polticas desastrosas. No exerccio da profisso, eu senti

    os efeitos de reformas assentes em construtivismos mal assimilados...

    Diz a Maria que os tempos so outros. S-lo-o? No consegui disfarar a minha

    perplexidade, quando escutei este dilogo numa sala de professores:

    No me sinto preparada. Tenho medo...

    Medo de qu? S tens que passar o contedo. Vai ver que fcil! s escrever na

    lousa e eles copiam...

    H muitos anos, a Pedagogia foi proscrita, afastada das universidades. Em Portugal, os

    cursos de Pedagogia foram extintos. Pedagogia parece ser uma palavra maldita. O

    resultado est vista: o debate sobre Educao pauprrimo, exps-se ao alvitre de

    qualquer um e opinio de todos, transformou-se numa terra de ningum.

  • Razo tinha o Brecht (*)

    Sem ser missionria tambm no era demissionria. A Tita era professora apenas.

    E, sem querer saber se o ms de Julho era ou no de frias, a Tita levava praia os

    putos que nunca a tinham visto. E a Ftima, companheira certa de muitas colnias,

    escrevia:

    Chegmos praia felizes por sentir a areia nos ps. Bem depressa cada um se comeou

    a despir, indiferentes aos olhares de espanto de gente que nunca tal coisa viu. Os Torres,

    de cabelos rapados onde ainda se notavam sinais das lndeas esmagadas pela tesoura da

    poda, tinham um ar de presidirios famintos da vida e do ar que lhes oferecamos.

    Tambm eles queriam mostrar os seus fatos de banho:

    - , meu Deus! Que vergonha! Aqueles meninos s tm cuecas!

    E, envergonhada, mandou o filho levar-lhes um fato usado. Ficaram felizes os Torres.

    Ei-los a correr alegremente para o mar, dispostos a acabar com a raa das cuecas velhas

    do pai.

    E os Almeidas eram tantos! Nove na mulher e nove na amante. Tinham um distinto ar

    de ciganos matreiros a quem a vida ensinara a vencer.

    Naquele tempo, no era preciso mostrar servio, no havia a preocupao de separar o

    lectivo do no-lectivo nem de fazer contas de merceeiro s trinta e cinco horas

    obrigatrias. Naquele tempo, os currculos no eram avaliados ao quilo. E j sabias,

    amiga Tita, que as escolas s funcionam com projectos plurais. Sabias que at o Gama,

    quando viajou para as ndias, foi acompanhado e levou cozinheiro. Ningum dobra

    sozinho os cabos das tormentas que a vida de uma escola enfrenta.

  • Palestrando

    Perante a consensual descoberta da falncia do modelo epistemolgico baseado na

    pretensa transmisso de saberes, o modelo organizacional que o sustenta mantm-se

    hegemnico e inquestionvel. Talvez essa crena da transferibilidade linear de saberes

    se mantenha porque as instituies de formao de professores tenham esquecido que o

    modo como o professor aprende o modo como o professor ensina. Que um curso ou

    palestra sobre autonomia e participao , quase sempre, a negao do que pretendem

    transmitir, por se basear numa relao vertical geradora de dependncia no objeto-

    ouvinte.

    Se perfilharmos o princpio do isomorfismo, a formao de professores dever adoptar

    processos idnticos aos das prticas que visa suscitar no quotidiano das escolas. Os

    processos de aprendizagem no devero estar centrados no professor nem no aluno, pois

    tudo passa pela relao. Nesse sentido, o educador dever saber gerir a

    imprevisibilidade da relao, por ser impossvel prever a multiplicidade e a variedade de

    situaes com que pode deparar. Reconhecer que, assim como formao no rima com

    solido, autonomia no rima com hierarquia. Que, assim como se aprende a ler, lendo e

    se aprende a fazer, fazendo, tambm nos auto-formamos com os outros. E que a

    autoria que confere dignidade ao acto educativo.

    H mais de trs dcadas, compreendi que no deveria continuar a reproduzir o modo

    como me adestravam em cursos e palestras. O modelo transmissivo de palestra e de

    aula, que ignora a possibilidade de produo de conhecimento a partir da interrogao e

    do dilogo, produz condicionantes scio-culturais, que impedem a plena realizao do

    ser humano. Num tempo em que no havia computadores, assistia projeo de

    transparncias com smulas de teorias e propostas de prticas. Nenhuma delas se

    encaixava no hic et nunc da minha prtica, talvez porque nenhum dos palestrantes

    tivesse posto em prtica as teorias e prticas que recomendavam... E o que diziam

    aquelas sbias criaturas? Nas suas prelees, exortavam ao uso de uma tcnica, ou

    falavam daquilo que tinham lido em livros, que eu poderia ler, sem necessidade de

    perder tempo a ouvi-los.

    Sem pretenso de originalidade, mas por convico, no incio das minhas conversas

    com professores, exponho a lista de livros que publiquei. Perante perguntas cuja

    resposta conste de um desses livros, remeto para a sua leitura. No faz sentido que eu

  • desperdice tempo a papaguear aquilo que escrevi num livro. Se o escrevi, foi para me

    dispensar de repetir respostas, foi para que algum o lesse.

    Ainda hoje vemos formadores e palestrantes estabelecerem a seqncia e o ritmo da

    aula, ou preleo, numa atitude de que no tomam conscincia e cujas conseqncias

    quero crer ignoram totalmente. Recorrem apresentao de slides e vdeos, quando

    poderiam constituir-se em mediadores entre o saber constitudo e o domnio das

    preocupaes daqueles que com eles interagem.

    Recebi convite para realizar uma palestra, acompanhado do pedido do texto da

    comunicao. Respondi que aceitaria o convite, mas que no poderia enviar o texto da

    comunicao. Expliquei que pratico o dilogo entre aprendizes. Que somente aps

    escutar as perguntas eu poderia ensaiar as respostas, que no poderia adivinh-las. A

    resposta voltou definitiva: todos os palestrantes enviaram as comunicaes. Por

    isso.... Compreendi que no poderia constituir exceo e enviei a derradeira

    mensagem: junto envio um texto; se houver algum que o leia, evitarei o desgaste da

    viagem e vs evitareis o gasto.

    No obtive retorno.

  • Suicdios

    Portugal, Maro de 2010: um jovem e um professor suicidaram-se. Estupefatos,

    jornalistas e especialistas interrogam-se sobre as causas dos infaustos acontecimentos.

    Talvez tivessem desistido da vida porque convivncia no rima com ausncia e relao

    no rima com solido. Talvez porque as escolas sejam arquiplagos de solides.

    A modernidade remeteu-nos para uma tica individualista. Carecemos de projectos

    humanos que no se coadunam com prticas escolares que ainda temos, que requerem

    um novo sistema tico, uma matriz axiolgica clara, baseada no saber cuidar e conviver.

    Diz-nos Maturana que a educao acontece na convivncia, de maneira recproca entre

    os que convivem. E Winnicott define o ser humano como pessoa em relao, ser

    singular, que no pode existir sem a presena do outro. O individuo-com-os-outros tem

    conscincia do seu papel numa ordem simblica complexa e concreta, que o protege dos

    efeitos mortais da uniformizao. Se verdade que o conceito de partilha est eivado de

    conotaes moralistas, tambm certo que de partilha que se trata, da manifestao de

    um sentimento de partilha que rejeita atitudes de quem se julgue no direito de dar

    respostas a perguntas que no escutou...

    Contrariando racionalidades mecanicistas, numa relao de escuta, a circulao de

    afetos produz novos modos de estruturao social. No negando o potencial da razo e

    da reflexo, junta-lhe as emoes, os sentimentos, as intuies e as experincias de vida.

    A escuta, para alm do seu significado metodolgico, ter de ser humanamente

    significativa. No contexto escolar, ter de abdicar de atitudes magistrais e paternalistas,

    para que todos aprendam mediados pelo mundo...

    Aos adeptos do pensamento nico (que ainda encontro por a...) direi ser necessrio

    saber fazer silncio escutatrio, fundamento do reconhecimento do outro. Direi que

    precisamos rever a nossa necessidade de desejar o outro conforme nossa imagem,

    respeitando-o numa perspectiva no-narcsica, ou seja, aquela que respeita o outro, o

    no-eu, o diferente de mim, aquele que no quer catequizar ningum, que defende a

    liberdade de idias e crenas, como nos avisaria Freud. Aos cnicos direi que onde

    houver turmas de alunos enfileirados em salas-celas dificilmente encontraremos

    resqucios de convivncia. Que onde houver sries e aulas assentes na crena de ser

    possvel ensinar a todos como se de um s se tratasse, enquanto o professor estiver

    sozinho na sala de aula, ser impossvel pensar em dialogia e convivencialidade.

  • As nossas escolas carecem de espaos de convivncia reflexiva. Precisamos

    compreender que pessoas so aquelas com quem partilhamos os dias, quais so as suas

    necessidades (educativas e outras), cuidar da pessoa do professor, para que se reveja na

    dignidade de pessoa humana e veja os outros como pessoas. Precisamos exercer a

    considerao positiva incondicional de que falava Carl Rogers, de praticar a

    confirmao, no dizer de Martin Buber, ou o amor incondicional postulado pela Alice

    Miller.

    Resta-me acreditar que os educadores podem inspirar-se nesses e em outros autores,

    para reconfigurao das suas prticas, para a passagem de uma profisso solitria para

    uma profisso solidria. Resta-me acreditar que o suicdio no algo inevitvel. Apesar

    de assistir ao drama de muitos professores, que morrem aos vinte e so enterrados aos

    sessenta...

  • O que o amor?

    Eram dois os professores. Um era moo e inexperiente. A outra era mulher na casa dos

    sessenta de idade e levava de vantagem quarenta anos de brilhantes avaliaes de

    desempenho que lhe conferiam fama de boa professora. Fazia alarde da aurola e

    gabava-se de que qualquer aluno que levasse a exame s poderia de l sair aprovado

    com distino. De to rigorosa e cumpridora, tambm seguia risca a percentagem

    estabelecida de reprovaes. Em consonncia com os idelogos do regime h pouco

    deposto, postulava que nem todos podiam dar doutores. E, do alto da experincia,

    dava como exemplo o caso do Toino Bica que, j entrado nos doze, passava as aulas a

    dormitar na fila dos burros.

    Pelo final de Junho, a professora j tinha o exame preparado, mas teve para com o

    colega uma gentileza indita, talvez inspirada pelo clima democrtico em que ainda se

    vivia: O colega no quer acrescentar qualquer coisa prova? O colega quis. O poema

    do Torga que encimava o teste estava semeado de fabulosas imagens e falava de amor e

    a meia dzia de perguntas que viu gravadas no stencil somente visavam respostas

    directas do tipo: Onde estava o x? O que tinha feito o y? Quem tinha visto o z? Para no

    tornar o interrogatrio demasiado longo, apenas lhe acrescentou uma questo.

    Como todas as provas que se prezam, esta comeou pela leitura e interpretao do texto.

    Os alunos enfronharam-se nas ditas. Mas, volvidos alguns minutos, um aps outro,

    todos os alunos da professora cumpridora e experiente suspenderam a escrita. Ora

    coavam a cabea, ora manifestavam outros sinais de impacincia e angstia. O

    professor novo e inexperiente apercebeu-se de que haviam esbarrado na pergunta

    nmero sete. E no ousavam passar-lhe frente, porque a senhora professora era

    exigente e tinha avisado que no poderiam deixar qualquer das perguntas para trs, sem

    resposta. Quase todos os putos do professor moo e inexperiente j estavam quase a

    acabar a redaco de vinte linhas e tpicos obrigatrios, quando algumas lgrimas j

    assomavam nos olhos suplicantes de alguns dos ptimos alunos da velha e experiente

    professora. O professor no se conteve. Foi junto de cada um e sussurrou-lhes uma

    qualquer mensagem ao ouvido, que os deixou aliviados e lhes permitiu desencalhar o

    raciocnio.

    Acrescente-se que a stima das questes era imperativa e rezava assim: Depois de leres

    este bonito poema, diz o que , para ti, o amor.

  • Deformaes

    Em Portugal, aps o incremento da formao, decorrente da institucionalizao de um

    subsistema e do investimento de milhes de euros, os resultados foram decepcionantes.

    Aps vinte anos e milhares de cursos e palestras, pouco ou nada se alterou na atitude

    dos professores, pouco ou nada ter mudado nas suas prticas: o professor vai, fica

    ouvindo e, no fim, no aprende nada que consiga usar.

    H uns vinte anos atrs, fiz uma breve incurso na formao inicial de professores. Ao

    cabo de cinco anos, fui embora. E no desejei voltar. Dessa breve experincia, ficaram

    amigos e recordaes. Ficou a confirmao de que outra formao de professores

    necessria e possvel.

    Recusei trabalhar sozinho e reparti com uma jovem psicloga os tempos de ensinar e

    aprender. Avisaram-me que era norma os alunos assinarem entrada e sada de cada

    aula, mas recusei o uso das listas de presenas, por serem inconciliveis com a

    formao de professores autnomos e responsveis(conforme rezava o projeto da

    instituio de formao). E, tambm, porque eu no dava aula aprendia com os jovens

    alunos que, hoje, so professores diferentes daqueles que uma formao inicial obsoleta

    engendra.

    Atrevo-me a registrar um episdio exemplar. Teve lugar numa faculdade portuguesa,

    onde se fazia formao inicial de professores. Perguntei aos meus alunos o que queriam

    aprender. Responderam que desejavam que eu falasse de Jerome Bruner. Manifestei a

    minha satisfao por irmos abordar o pensamento e a obra de um autor que eu admiro e

    quis saber a razo pela qual haviam escolhido esse autor. Esclareceram-me: na semana

    seguinte, iriam fazer uma prova de psicologia da educao e, entre os possveis

    contedos da prova, estariam os trabalhos de Bruner. Quando eu quis saber o que j

    tinham estudado desse autor, responderam que nada tinham estudado, que bastaria uma

    decoreba feita na vspera da prova e... a minha preleo. Recusei faz-la e mandei-os

    para a biblioteca, para que lessem os livros do Bruner. Se desse estudo resultassem

    dvidas, eles poderiam vir ao meu encontro. Passei todo o dia fiquei na faculdade. No

    final da tarde, dialoguei com um pequeno grupo de alunos, que me trouxeram

    interrogaes decorrentes das leituras que fizeram.

    No incio do ano, combinamos que, entre outros trabalhos, fariam uma pequena

    dissertao sobre tema sua escolha. Desagradvel surpresa: a maior parte dos

  • trabalhos era cpia de trabalhos feitos por alunos... de anos anteriores. Os raros originais

    primavam pela falta de pontuao e de... idias prprias. De fundamentao cientfica,

    nem bom falar a leitura daqueles textos era um autntico suplcio de Tntalo. Os

    alunos amontoavam um chorrilho de lugares-comuns alinhavados com citaes a esmo.

    Quando os interpelava sobre o contedo terico das suas produes, confirmava que

    fazer citaes no sinnimo de ter aprendido alguma coisa. Se retirssemos as

    citaes, nada restaria.

    Essa breve experincia, fez-me recordar as heresias a que tive de recorrer, quando

    percorri a via-sacra da minha passagem pela situao de estudante universitrio. Dotado

    de um mau feitio a toda a prova, perverti regras de um academismo ftil, questionei

    falsas solenidades e o respeitinho institudo. Mas quantos o fazem? Talvez poucos

    ousem faz-lo, porque mais vale um diploma na mo do que dois a voar...

  • S falta fazer

    Nunca ser demais lembrar que, apesar da teoria e contra ela, a realidade nos diz que,

    desde h sculos, tudo est escrito e tudo continua por concretizar.

    Continuamos a negar a diversidade. A crise da escola a dificuldade de lidar com a

    diversidade. Mas acredito ser possvel obter mudanas efetivas no comportamento e na

    cultura humana, questionando a estrutura das formas de educao que praticamos. O

    desenvolvimento de atitudes de respeito, solidariedade e preservao da vida pressupe

    escapar de formataes e superar vises fragmentadas. Pressupe aprender a ver as

    relaes entre as coisas, os impactos coletivos gerados por aes individuais e vice-

    versa, ver os padres de dominao e explorao presentes em nossa cultura. Que esta

    assero esteja presente na elaborao de polticas pblicas e influencie positivamente

    os tecnocratas que controlam o sistema educativo, bem como as instituies de

    formao de professores. Porque a lei vigente cria obstculos relao e ao

    estabelecimento de vnculo, comprometendo a incluso. Um exemplo: se sabido que

    aprendemos com quem sabe algo diferente daquilo que ns sabemos e que pouco (ou

    mesmo nada) se aprende com quem tem a mesma idade, por que razo as sries e as

    turmas so predominantemente constitudas por jovens do mesmo grupo etrio?

    Outro absurdo aquilo que d pelo nome de data de corte, ou idade de corte: diz a

    lei que os guris podero entrar no ofcio de aluno, se completarem seis anos at ao dia

    31 de Maro. Se a mam se esforou, puxou, puxou, bem tentou, mas no conseguiu

    parir o seu filho at meia noite do dia 31 de Maro, a criana dever esperar um ano

    inteiro para ter o seu primeiro dia de escola.

    Os exemplos de absurdos legislativos so inmeros. Por ora, apenas acrescentarei um,

    por estar imtimamente ligado ao anterior. Presume-se, ou as concluses de duvidosos

    estudos determinam, que existe uma idade ideal para aprender a alfabetizao. Nada

    mais falso. Encontrei crianas que desejavam e aprenderam a ler aos quatro anos e

    encontrei jovens com dez anos sem desejo nem condies de ser alfabetizado. Crime

    fazer esperar o primeiro e submeter o segundo humilhao de tentativas de

    alfabetizao precoce e intil numa sala de meninos da mesma idade, sendo ensinados

    do mesmo modo e na indiferena pelo ritmo de cada qual. Talvez este absurdo explique

    a existncia de milhes de analfabetos funcionais, que as estatsticas brasileiros

    vergonhosamente ostentam...

  • Urge interpelar o quadro legal, naquilo que ele tem de ranoso. Urge desburocratizar as

    prticas, num projeto feito num refazer-se contnuo, sempre em fase instituinte, avaliado

    em mltiplas leituras e releituras. Urge reformular terminologias: desenvolver trabalho

    COM e no trabalho PARA; substituir o OU pelo E; trocar o EU pelo NS... Urge

    redefinir o perfil do mediador de aprendizagens, considerar o aluno como participante

    ativo de transformaes sociais, reconfigurar prticas, desguetizar escolas. possvel

    passar do absurdo utopia, identificando causas profundas de fenmenos como a

    excluso escolar e social, que no so inevitveis. Basta que os professores se

    interroguem. dessa capacidade de interpelar as prticas que emergem dispositivos de

    mudana, no apenas nas escolas, mas em todos os espaos sociais onde ocorrem

    aprendizagens.

    H cem anos, Almada dizia que, quando nasceu, todos os tratados que visavam salvar o

    mundo j estavam escritos; s faltava... salvar o mundo. H quarenta anos, quando

    iniciei a minha vida de professor, todos os tratados que visavam salvar a Escola j

    estavam escritos; s faltava salvar a Escola. E, hoje?...

  • Quem manda o sapateiro tocar rabeco?

    No debate sobre educao, creio ser errado dicotomizar posicionamentos em termos de

    esquerda-direita, antigo-moderno, tradio-inovao. Toda a inovao assenta na

    tradio e h contributos da tradio que no devero ser dispensados nos esforos de

    inovao. Porque, antigamente, nem tudo era mau...

    Mas diz-nos Srgio Niza que, se reflectirmos sobre a coerncia isomrfica do modelo

    educativo jesutico, cuja sntese resistiu aos sculos pela repetio sistemtica no

    ensino (magistrocntrico desde a ctedra universitria ao mestre escola das primeiras

    letras), temos razo bastante para admitir que um paradigma de ruptura alternativa e

    consistente ter de desenvolver uma outra sintaxe, tambm isomrfica. Nestes tempos

    de transio paradigmtica, em que as prticas inovadoras escasseiam, a ausncia de

    uma outra sintaxe abre caminho futilidade da crtica to descabida quanto impune.

    Na ausncia de verdadeiros projetos alternativos a uma escola encilosada, na falta de

    uma sintaxe e de um novo lxico, assistimos ao debate rasteiro, que nada acrescenta ou

    esclarece. O equvoco em que incorrem certos crticos consiste em atribuir s novas

    pedagogias e s cincias da educao a responsabilidade pelo caos em que a

    educao est imersa. Talvez no tenham entendido que, nestes desvairados tempos, as

    cincias da educao ainda no lograram influenciar as prticas das escolas. Ou

    confundiro cincias da educao com as habilidades de alguns falastres, que

    colaboram com irresponsveis medidas de poltica educativa de sucessivos elencos

    ministeriais?

    Ser possvel imputar responsabilidade a algo inexistente? A que construtivismos e

    novas pedagogias se referem os crticos? Desde h dois sculos que nada de novo

    existe nas escolas. Nem as propostas que contam mais de meio sculo, de um Piaget ou

    de um Walon! Nem as propostas de h cem anos, de um Dewey (learning by doing), ou

    de um Vigotsky (ZDP)!

    surpreendente (e grave) o modo como a ignorncia de pseudo-especialistas continua a

    contar com a divulgao numa mdia irresponsvel. Impunemente, debitam disparates

    bem acolhidos por professores com frgil formao pedaggica, porque so disparates

    que legitimam as suas prticas. Cansei-me de ver dar guarida verborria dos crticos

    do eduqus. Eu tambm o critico, porque muita da literatura das ditas cincias de

    educao no passa de literatura de cordel tal a distncia entre os devaneios tericos

  • e a realidade das prticas, que certas teses no passam de fico cientfica. Porm,

    aqueles que erigem as novas pedagogias em bode expiatrio de todas as culpas do

    sistema, desviam a discusso do essencial.

    Num canal da TV, uma psicopedagoga foi entrevistada, a propsito de um incidente

    registado numa escola. O entrevistador perguntou: Esta situao consequncia das

    novas pedagogias na escola? A entrevistada no perguntou a que pedagogias o boal

    entrevistador se referia. Optou pela cobardia intectual, talvez para no correr risco de

    ser rotulada de eduquesa.

    Enquanto decorria o debate, foi feita referncia ao Movimento da Escola Moderna. As

    palavras escola e moderna acordaram algum da plateia, que lanou um feroz

    ataque contra... as novas pedagogias. Mais uma vez, o invetivador no disse quais

    eram as novas pedagogias que veementemente criticava, ou quais as escolas em que

    estariam a ser implementadas.

  • De pequenino se torce o destino

    Mais uma boca no mundo, mais um trafica chorando, l vem mais um quase nada, mais

    um para chorar de fome, mais um para levar tiro, mais um bandido no morro, mais um

    perdido na vida... H dias, escutava a cano do Kleber e veio-me memria algum

    que conheo como a mim mesmo.

    Nasceu num cortio, onde havia quatro banheiros sujos e quebrados para partilhar

    com mais uma centena de pobres como ele. Passou a infncia numa oficina de fazer

    vassouras, num bairro onde no entrava ambulncia nem polcia. A sua famlia

    reinventava com dignidade a parca existncia. O pai, que acumulava trs empregos mal

    pagos, foi preso, injustamente acusado de roubar. A famlia empenhou o que restava dos

    poucos haveres, para provar a sua inocncia. A me morreu jovem, do cansao de um

    trabalho insano. Os avs paternos cedo sucumbiram fome e a um surto de tuberculose.

    Os maternos tinham migrado da aldeia rural para a cidade grande, na iluso de uma vida

    melhor. Partiram cedo, minados pelo alcol e por maus-tratos.

    Estava destinado a ser lder de uma gangue do bairro. Era um dos raros que sabia ler,

    era hbil a resolver encrencas e a escrever cartas de amor encomendadas. To sagaz

    quanto franzino, ganhara o respeito de ciganos e marginais, que nele no usavam as

    facas e o defendiam de outras sortes. Com eles aprendeu a gramtica da sobrevivncia:

    agredir os gringos que na rua aparecessem e, s depois de eles sangrarem, perguntar-

    lhes ao que vinham...

    Conviveu com todo o tipo de violncia. Cedo entendeu que fora roubado todos os dias,

    desde o dia em que nascera. Que, enquanto os seus dormiam no cho da rua, outros

    dormiam sonos tranquilos. Foi perdendo amigas para a prostituio e amigos para o

    crcere. A tuberculose, a sfilis, a fome e a bala foram ceifando vidas ao seu redor. O

    seu melhor amigo conheceu uma moa abastada e l se foi, casamento de rico, sonho

    americano de ascenso social, que pouco durou. Sem amigos e sem futuro, pela mo de

    dois providenciais vizinhos, trocou a solido pela evaso. Deles ficou devedor daquilo

    que nunca lhes pode pagar: o resgate de uma vida. Trabalhou para poder estudar e fez

    um curso fez-se professor.

    Ele sabe, melhor do que ningum, que os criminosos no nascem criminosos. Conhece

    os mecanismos sociais que os produzem. Por experincia pessoal, tambm sabe que,

    quando a sociedade e a escola produzem excluso, o jovem no fica solto e busca a

  • incluso em grupos marginais. Sensvel aos dramas vividos pelos seus alunos,

    entristecem-no certas atitudes de professores coniventes com a m qualidade de uma

    escola vocacionada para manter um sistema inquo.

    Talvez porque no conheam a sua histria de vida, os seus colegas de profisso se

    tivessem surpreendido com a sua colrica reao, quando escutou este dilogo na sala

    dos professores:

    A, eu disse-lhe: Quem que tu pensas que s, seu merdinhas? Saio de casa para aturar

    esta bosta! Eu no ganho para isso!

    Fez muito bem, colega! Eles vm de casa desse jeito. J nasceram assim. Esse pestinha

    vai ser o prximo chefe de gangue. Eles no nasceram, eles foram cagados!

    Ser mesmo verdade que quem nasce torto tarde ou nunca se endireita? Aquilo que a

    psicologia chama de profecia auto-realizada agir decisivamente na psique mais

    profunda dos professores? Sabemos que a escola no muda a sociedade, mas que muda

    com a sociedade, por isso, ouso perguntar: A reproduo escolar e social ser um

    inevitvel fatalismo? A escola nada poder fazer para a contrariar? Ou poder fazer a

    sua parte?

  • Como h um ano...

    De passagem por Portugal, confirmei que tudo continua como h um ano atrs. Num

    caf, passei os olhos pelos jornais. A nossa simptica ministra pronuncia-se: Os alunos

    no ganham nada em reprovar, mas sou a favor de manter essa possibilidade porque

    faz parte do sistema. Algum poder explicar senhora o que avaliao contnua,

    formativa, centrada em processos, participada...? Algum questionar a ambgua

    expresso possibilidade e por que razo, que no vislumbro, ela far parte do

    sistema? A entrevistada chama inovao a meros actos administrativos de fechar

    ou abrir escolas. E diz que no h mega-agrupamentos: Chamam-lhes mega, mas

    alguns so pequeninos. O mximo que se atingiu foi trs mil alunos,o que equivale a

    duzentos e muitos profesores. Acreditamos que assim se consegue uma melhor gesto.

    Quem, de entre aqueles que tenham acesso aos gabinetes ministeriais, me far o favor

    de perguntar senhora ministra como, nas condies que refere, se consegue uma

    melhor gesto?

    Durante o almoo, a TV do restaurante imps-se. Impossvel no ver, no a escutar. A

    reportagem, semelhante de um ano atrs, mostrava um Primeiro Ministro a distribuir

    prendinhas a uma fila de alunos. Um Primeiro Ministro sorridente, como h uma ano

    atrs. Ao seu lado, uma ministra tambm sorridente, que fazia recomendaes para

    assegurar a qualidade das escolas. Leu de um papel uns objetivos de Matemtica e disse

    (se bem ouvi) que uma das medidas para garantir qualidade seria fixar objectivos anuais

    para cada ano de escolaridade. Acrescentou que as escolas deveria