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A estranha origem e a bizarra história dos insultos portugueses Dicionário de Insultos Sérgio Luís de Carvalho

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A estranha origem e a bizarra história dos insultos portugueses

Dicionário de Insultos

Sérgio Luís de Carvalho

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Gosto dos franceses porque mesmo quando insultam o fazem com elegância…

Josephine Baker

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À laia de introdução

Insultar é uma arte. Ou, por outras palavras, insultar bem é uma arte. Deixem‑me dar três exemplos que o demonstram.

Primeiro exemplo. Depois de escutar uma peça de Berlioz, Rossini terá comentado um dia:

«Esse moço, Berlioz… Ainda bem que não faz música, se não fá‑‑la‑ia da pior qualidade.»

Segundo exemplo. Um dia na década de 60, o deputado brasileiro Carlos Lacerda acabara de discursar no Parlamento. Logo um outro deputado, seu opositor, terá comentado:

«Excelência, todo o seu discurso foi inútil. Entrou‑me por um ouvido e saiu pelo outro.»

Lacerda retorquiu:«Impossível, caro colega. O som não se propaga no vácuo.»Terceiro exemplo. Lady Astor, a primeira inglesa a ser eleita para o

Parlamento, disse um dia a Winston Churchill:«Se você fosse meu marido, dar‑lhe‑ia veneno…»Ao que Churchill respondeu:«Se você fosse minha mulher, bebê‑lo‑ia…»Claro que, a bem dizer, estes ditos não serão propriamente insul‑

tos; são mais pérolas de retórica. Mas que são magníficos, disso nin‑guém duvida; e que achincalham quem os recebeu, também me parece

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evidente. Mas não é essa a função de um insulto? E note‑se que um (bom) insulto nem sequer tem de ser dirigido a alguém em especial (seja Berlioz ou Churchill) para ser um mimo. O mais belo insulto que já ouvi foi dirigido pelo humorista brasileiro Juca Chaves à humani‑dade em geral (ou, pelo menos, a alguns humanos): Se o reino dos céus é dos pobres de espírito, então, meu Deus, estamos no paraíso.

Na verdade este livro não se ocupa deste tipo de insultos frásicos – finos, verrinosos, contundentes, desarmantes e capazes de causar inveja a quem os ouve (que não à vítima, claro). Se iniciámos esta introdu‑ção citando‑os, foi apenas porque quisemos cativar a atenção do lei‑tor desde logo. Este livro limita‑se a descrever a origem e a história de cerca de quinhentos insultos que todos nós conhecemos, melhor ou pior. Alguns, já os proferimos, em voz alta ou à sorrelfa; de outros já fomos alvo. Alguns, de tão elaborados, nem dão jeito proferir. Se o leitor não acredita, experimente chamar iconoclasta ou sevandija a alguém. Pegam mal, não é? Resultam com o Capitão Haddock e só no papel… Outros são comuns, brejeiros, reles mesmo. Perdem em elegância o que ganham em javardice. O facto de resultarem diz bem da decadên‑cia a que chegou a nobre e vetusta arte de achincalhar o próximo. São insultos que estão ao nível daquele provérbio árabe que afirma que até os coelhos são capazes de insultar um leão morto.

E se o leitor quiser ter um relance de como o insulto pode ser uma arte, tomo a liberdade de sugerir que passe os olhos pela longa fala de Cyrano de Bergerac, na cena 5 do primeiro ato da peça homónima. Nessa cena, e após um visconde ter insultado o seu nariz dizendo que ele era demasiado grande, Cyrano lança‑se num longo solilóquio suge‑rindo variadas formas mais imaginativas e requintadas que o fidalgote poderia usar para insultar o apêndice nasal. Um tratado…

Aqui falamos de todos eles. Ou enfim, se não de todos, pelo menos de muitos, dos mais acutilantes aos mais arredondados. E também expli‑camos a origem de algumas expressões que, aplicadas a alguém, são injuriosas; afinal dizer de outrem que anda à gandaia ou que está com a careca à mostra em nada abona a seu favor.

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O que é, enfim, um insulto? O seu próprio étimo responde à ques‑tão. A origem da palavra insulto e da palavra assalto é similar: insultare, em latim, significa literalmente saltar para cima. Daqui vem o assaltar e o insultar. Nas línguas latinas e no inglês, os dois verbos são parecidos (assaltar/insultar, to assault/to insult). É até curioso notar que, no inglês medieval, o termo to insult significava literalmente assaltar, atacar ou assediar militarmente… Assim sendo, podemos dizer que um insulto é um dito ofensivo, indecente ou grosseiro dirigido contra alguém; um insulto é um assalto feito à honra, à fama e à dignidade de alguém.

Já agora é bom que se não confunda insulto com injúria, já que na sua origem eram coisas diferentes. A injúria era, entre os romanos, uma violação do Direito (jus) praticada sobre alguém, isto é, era uma intrín‑seca injustiça. Um injuriado era um injustiçado e não um insultado. Só na Europa a partir do século xii é que o termo injúria se aproxima do insulto, se bem que mesmo hoje não sejam exatamente sinónimos. Já o insulto era, como vimos, um assalto. Que esse assalto seja desferido com luva de pelica ou com luva de boxe é irrelevante; só muda o estilo. Dir‑se‑á, claro, que o estilo muda muita coisa. É verdade. Napoleão dizia que Talleyrand, seu ministro, era uma bosta dentro de uma luva de seda. Aqui temos um insulto que tem estilo e boa forma. Ora como dizia Jean Renoir, cineasta francês de bom‑nome e justa fama: a arte é a forma e nada mais que a forma. Por mim, concordo.

Por essas e por outras é que penso que insultar bem é uma arte. E como agora regresso ao ponto de partida, já o sagaz leitor terá com‑preendido que aqui termino esta introdução e que é chegada a altura de começar a percorrer a longa história dos insultos portugueses.

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aComecemos pela abantesma, ou, como vulgarmente se diz numa daquelas tão comuns corruptelas populares, a aventesma, criatura que com frequência nos rodeia, sobretudo no local de trabalho, e que se caracteriza por não fazer nada mas por atrapalhar muito (definição livre). De acordo com os etimologistas, o termo aventesma/abantesma tem a sua origem no grego phántasma e que significa espectro ou enti-dade imaginária. Claro que, como o leitor já reparou, o étimo grego está também na origem do fantasma. A aventesma de todos os dias é, na sua origem, um ser espectral (mas materialmente chato), e quem os conhece concordará decerto. E os pescadores poveiros decerto concor‑dariam com tal asserção, já que na mitologia dos mareantes da Póvoa de Varzim existia uma figura que é a aventesma (benetesma, no calão local) que consistia num gigantesco fastasma vestido com hábito cleri‑cal, e que se postava no horizonte do mar. E era tão alto que chegava a formar um arco no céu. Ao vê‑lo, os pescadores deviam atirar‑lhe um tamanco; se o tamanco passasse o arco feito pela aventesma, isso seria bom presságio e dever‑se‑ia seguir o caminho.

É curioso notar que muitas vezes, ao longo da História, as pessoas de uma cultura estranha ou de civilização desconhecida, eram apeli‑dadas de fantasmas. Um exemplo é na China do século xvi e xvii, em que todos os estrangeiros sem exceção levavam roda de fantasmas (gui,

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em mandarim). Para os chineses do tempo, os forasteiros quase não tinham entidade física e ainda menos moral. Eram meras abantesmas…

Mais curiosa ainda é a origem do insulto aberrante, qualificativo que designa qualquer pessoa cuja desconformidade à norma é evidente. Na verdade o aberrante era apenas, entre os romanos, aquele que andava sem destino (ao deus‑dará, como nós dizemos). O seu termo latino era aberratio. Só no século xix, segundo parece, é que o aberrante come‑çou a ser visto como ser raro e desagradável. Antes, era apenas um ser estranho.

Passemos ao abjeto. Este é dos fortes. Tem sonoridade fina, mas casca grossa; tem ressonância clássica, mas significado reles. O abjeto é o indivíduo que inspira asco ou nojo, que dá repulsa e que sugere nari‑nas tapadas com dois dedos. O caso não é para menos, já que na sua origem latina abjeto era aquilo que era jogado fora ou atirado para o lixo. Nem mais. Insulto elegante e erudito, mas cortante como faqui‑nha em manteiga estival.

Cuidado, contudo, com a abjeção, que em cada um de nós há um lado negro (Rui Veloso chamou‑lhe o lado lunar). Como escreveu o escritor norte‑americano Joseph Heller: Há um animal abjeto a vicejar algures dentro de mim. Tento mantê-lo oculto, subjugado, enquanto ele se tenta libertar. Não sei o que é nem a quem deseja destruir. Talvez seja a mim mesmo. E pode ser a mim que ele esteja a querer destruir.

A meditar…

Já em relação ao abominável, a nossa mente pensa em homens das neves e sorrimos. Figurinha de filme de série B, é‑nos difícil levá‑lo a sério… Porém, fazemos mal, já que na Antiguidade este insulto era dos piorzitos. O seu étimo radica no latino abominatio, que designava o ato de odiar/detestar ou, mais genericamente, o que causava desgosto. Des‑gosto aqui visto como falta… de gosto, claro. Como aqueles filmes de fraca qualidade que falam de monstros que ninguém jamais viu. Ah,

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convém dizer, ainda assim, que o governo do Nepal declarou, em 1961, que o abominável homem das neves existe mesmo. O turismo local agradece.

O termo aborto só será insulto em algumas condições particulares. Se for atirado ao rosto de alguém, designa afinal uma pessoa feia, bas‑tante feia até, ou, numa asserção mais geral, alguém que viola a natu-reza pela sua desconformidade ou pela sua idiotice.

Curiosamente, o aborto deriva do latim aboriri, isto é, nascer ou erguer-se. Como epíteto insultuoso já era usado na Idade Média ibérica. Nessa época (pelo menos em algumas zonas da Península), o aborto era o feto malformado de alguns quadrúpedes. Daí para a frente é o que se viu… E que pode ser um grosso insulto prova‑o aquela velha piada que dizia que fulano (pensar numa pessoa à escolha do leitor) era con‑tra a proibição do aborto por ter medo de efeitos retroativos.

Já o abúlico é menos ofensivo. Será irritante, desanimador e chato, mas há coisas piores. Isto digo eu, embora reconheça que trabalhar com um pode ser desesperante. Para tão irritante defeito, é interes‑sante saber que o étimo é grego. Provém do prefixo a (sem) e da pala‑vra grega boulé (vontade). E se o abúlico não tem vontade, provoca nos outros, amiúde, vontade de o abanar. No mínimo.

O epíteto abstruso deveria aplicar‑se mais a textos que a pessoas, mas, enfim, por vezes as belas‑letras têm caminhos ínvios. O que sucede é que o abstruso vem do latim abstrusus, ou seja, é aquilo que tem difícil com-preensão ou que é secreto. Aplicado às pessoas, designará alguém que é her-mético, árduo de entender, complicado até se tornar chato e insuportável.

Razão tinha o filósofo inglês David Hume quando garantia em 1758 que a Natureza interdita o pensamento abstruso.

Pode não parecer insulto, é certo, mas de alguém que está muito atra-palhado ou abalado, se pode dizer que está acanaveado. Ora isso não é propriamente um elogio…

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A origem do termo tem muito para contar. No século xvi os por‑tugueses foram os primeiros ocidentais a chegar ao Japão. Entre outras coisas, para lá levaram o cristianismo, religião que teve algum sucesso entre a sociedade nipónica. Porém, no final desse século, as autorida‑des japonesas iniciaram uma feroz campanha de repressão dos con‑vertidos e sobretudo dos conversores, os missionários jesuítas. Muitas vezes eram torturados. O acanaveamento era uma tortura que consis‑tia em introduzir agulhas de cana de aveia entre as unhas dos detidos. O termo vem do latim canna + avena (cana + aveia), material de que eram feitos os aguilhões. Pode não ser um grande insulto, mas outrora foi coisa horrível…

No que toca à maldade, a mente humana é inesgotável.

Já em relação ao acéfalo, podemos dizer que todos conhecemos alguém. Digamos que o acéfalo é a versão light do estúpido. O sentido é o mesmo, a elegância é que é outra… Por muito que um acéfalo o não entenda (porque, por inerência, é idiota) o epíteto vem do grego a + kephalon. Literalmente, o que não tem cabeça. Alegoricamente, muitos não a têm.

Já o acólito, não sendo acéfalo (até porque é calculista), é também, a seu modo, enervante. Enquanto insulto, o acólito é aquele que segue cegamente outrem, que lhe obedece como um vulgar lacaio, que o ido‑latra sem, todavia, abdicar dos seus próprios interesses…

O termo tem remota origem no grego akólouthos (literalmente, aquele que acompanha ou que serve). Mais tarde, do grego passou‑se para o latim acolythus, e daí para as línguas novilatinas. O termo, sendo tam‑bém eclesial (o acólito é o ajudante da missa), alargou‑se naturalmente ao mundo laico.

O agiota não é um acéfalo nem um acólito, pois age e pensa por si e para si. A origem é fácil de discernir. O termo latino aggio designa lucro ou vantagem. Na economia refere‑se à diferença entre o valor nominal

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de uma moeda e o seu valor factual. Deu em português o agiota (no sentido pejorativo de usurário).

O agiota mais célebre da História é aquele que nunca existiu. Fala‑mos de Shylock, o usurário judeu da peça de Shakespeare O Mercador de Veneza, que por despeito exigiu a António uma libra da sua própria carne por este lhe ter falhado o pagamento de um empréstimo. Talvez isto soe um pouco a filme sobre a Cosa Nostra, mas convém que se diga, por ser curioso, que há quem defenda a tese de que o bardo inglês se inspirou num português para compor a personagem de Shylock. Seria o médico pessoal de Isabel I, o cristão‑novo Rodrigo Lopes, nascido no Crato circa 1525 e enforcado em Londres em 1594 sob a acusação (ainda hoje questionável) de traição… A peça O Mercador de Veneza foi escrita dois anos após a morte do doutor Lopes.

Fixe o leitor este Rodrigo Lopes. Voltaremos a ele mais adiante.

Muitos insultos têm origem em preconceitos. É triste, mas é assim. Um desses exemplos é o alarve, designativo de pessoa reles ou boçal. O termo radica no árabe al-garb, que significa o Ocidente. Desta pala‑vra surgirá o nosso Algarve (o al‑garb al-andalus dos árabes, ou seja, o Ocidente do Andaluz). Mas porque os cristãos peninsulares (e não só) tinham uma imagem negativa dos árabes, o termo al-garb, de corrup‑tela em corruptela, acabou em alarve. Para os cristãos, os árabes eram alarves. Um epíteto tanto mais injusto quanto a civilização árabe medie‑val era bem mais desenvolvida e brilhante do que a cristã…

Um dia, algures na Loulé do século xii, o poeta árabe do al-garb al-andalus Abu ibne Isa Cutair escreveu este poema sobre a separação de amigos: Quando me separei deles voou um corvo / e pensei que no seu voo / levava o meu coração. / Mas ele foi o único que passou alegre naquela tarde / pois nem a hipocrisia / o forçou a vestir trajes de luto.

Que alarvidade há nestas linhas?

Afinal, depois disto, podemos dizer que havia um ou outro cristão medieval que era altivo. Parece que sim. Bom, talvez altivo não seja

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um dos piores insultos, mas convenhamos que também não é um elo‑gio. O termo vem do latim altus (que significa, sem surpresa, alto ou elevado). O altivo é o que olha d’alto, com pujança e com cagança.

Para consolar, podemos dizer que quanto mais alto se sobe, mais baixo se desce, o que faz com que os altivos tendam a cair. Ou pelo menos assim deveria ser…

E se todos nós conhecemos alguém altivo, também por certo conhe‑ceremos um amigo da onça. Convenhamos, é o pior tipo de amigo que se pode ter ou, como diz o povo, com amigos destes quem precisa de inimigos? Mas… qual a origem deste insulto? Pois bem, a expressão nasceu da pena do escritor brasileiro Andrade Maranhão (1924‑1961), que na revista Cruzeiro publicou um dia a seguinte história:

Dois amigos andavam pelo mato caçando, quando um deles per-guntou ao outro o que faria se lhe surgisse uma onça:

– Ora, dava-lhe um tiro. – Mas… e se a tua espingarda se encravasse?– Então defender-me-ia com o meu facalhão. – E se não tivesses o teu facalhão? – Bom, aí subiria a uma árvore?– E se não houvesse árvores por perto?– Homem, nesse caso… fugia.– E se o medo te tolhesse os movimentos?– Ó criatura… mas tu és meu amigo ou amigo da onça?

Claro que, como o leitor já percebeu, a onça neste insulto é um bicho e não uma antiga medida de comprimento.

Por falar em amigos da treta… Temos agora o famoso amigo de Peni-che, um amigo infiel que não está lá quando é preciso. Ou seja, um amigo da onça, mas nascido em Portugal. Sendo várias as versões sobre a origem deste insulto, vamos descrever as mais correntes e credíveis.

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A primeira versão remonta a 1589. Portugal estava já sob domínio filipino mas alguns portugueses, agrupados em torno de D. António, prior do Crato, ainda pelejavam pela independência. A 26 de maio D. António desembarcou na vila de Peniche com uma hoste luso‑inglesa e decidiu avançar para Lisboa, onde os antonistas aguardavam em pul‑gas. Mas a hoste foi travada pelas tropas espanholas e nunca chegou à capital. Em vão, muitos esperaram pelos amigos de Peniche.

A segunda versão remete para o terramoto de 1755. Para repor a ordem, o marquês de Pombal mandou vir tropas para Lisboa. Os sol‑dados do quartel de Peniche assentaram arraiais à beirinha da Praça do Príncipe Real. A sua ação repressiva, ainda que necessária, não agradou a alguns moradores, tendo aí nascido o epíteto… A propósito. Se pas‑sarem pelo Príncipe Real, ainda verão, nas ruelas em redor, uma Tra‑vessa do Abarracamento de Peniche, em homenagem a esses alegados (e injustiçados) amigos de Peniche…

Em Peniche costuma dizer‑se que amigos de Peniche há-os em todo o lado, menos em Peniche.

Falemos agora do amorfo, um tipo similar ao já falado abúlico… Na ori‑ gem o amorfo é algo sem forma definida vindo do grego amorphos.

Adaptado à espécie humana, estamos perante alguém sem opinião ou reação, sem personalidade, sem forma enfim. Entre os gregos a asserção era sobretudo estética, assim surgindo em Homero (Odisseia 8, 170‑171) e em Platão (República, 380). É com Aristóteles que o termo perde o sentido estético e ganha um sentido mais científico, referindo‑se a algo de intrinsecamente biológico (amorfos = corpo desconforme à matéria).

Atualmente está na confluência entre a ciência e o insulto.

E agora temos o analfabesta. É um tipo particular de iletrado igno-rante e boçal, mas orgulhoso da sua bruta condição. Tal como o anterior este termo será também de origem recente, surgido da mescla lexical de analfabeto e besta. Há misturas lexicais certeiras, pois este insulto é muito apropriado para aqueles que, sendo rudes e brutos, se ufanam

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de o ser. Cuidado com eles quando estão em cargos de poder. Tem uma variante em analfabruto e pelos mesmos motivos.

Já o anafado pode não ser um insulto. É mais uma constatação. Mas, enfim, encerra em si um certo juízo de valor não muito positivo. O termo é de origem árabe (na-nafala) e designa, na raiz, uma planta (a anafa) usada como forragem para fortalecer e engordar os cavalos. A imaginação do povo é fértil e tem sentido de humor…

Se atrás falámos do analfabesta/analfabruto, devemos agora referir o analfabeto. Não é exatamente um insulto, pois designa o mero ile-trado. Todavia, se aplicado a alguém supostamente alfabetizado, já é outra coisa…

O termo tem origem latina e foi formado pelo prefixo an (que designa negação) e os termos alfa + beta, as primeiras letras do alfabeto grego. Segundo alguns, só em meados do século xvii terá começado a ser empregado com uma conotação pejorativa. Ainda assim, alguns espí‑ritos acharam que o analfabetismo é uma qualidade. Ainda na década de 1930, em plena ditadura, se afirmava no Parlamento nacional que a parte mais sã da população portuguesa era constituída pelos milhões de analfabetos que ao tempo ainda existiam.

Confesso que hesitei em incluir o anão neste rol de insultos. Mas se levarmos em conta que em sentido figurado o termo pode ser insul‑tuoso, lá me decidi. E convém não esquecer que, em alguns países anglo‑‑saxónicos que levam muito a sério a moda do politicamente correto, o termo midget ou dwarf foram substituídos pelo aparentemente mais decente little people. Enfim, como diziam os antigos: modernices…

Bom, a origem deste epíteto (continuo a hesitar em chamar‑lhe insulto) é fácil de discernir. Provém do latim nanus, que por seu turno vem do grego nannos. Em qualquer dos casos o étimo quer dizer, muito pequeno. Daí a nanotecnologia, o nanossegundo e o nanismo. Tudo coisas anãs. Ou como se diria nos EUA para não ofender ninguém little things…