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1 Ficha de Leitura Sempre vivemos no castelo de Shirley Jackson Publicação: 1962 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização: Josefina Melo 13 de maio 2019 SINOPSE Escrito numa altura em que a sua autora sofria de agorafobia, Sempre vivemos no castelo é um romance claustrofóbico narrado por Merricat, um dos três sobreviventes do envenenamento que seis anos antes causou a morte de quase todos os membros da sua família. Merricat, rapariga estranha e demasiado infantil para os seus 18 anos vive com a irmã mais velha Constance por quem tem verdadeira adoração e com o tio Julian doente do corpo e frequentemente da mente por ter comido uma colher de açúcar com arsénico. Os três vivem isolados e suspensos no tempo e na rotina dos dias apenas quebrada com as idas de Merricat à aldeia onde é insultada e perseguida pelos aldeões. (até à chegada inesperada do primo Charles) PALAVRAS-CHAVE LOUCURA, MORTE, AMOR, AGORAFOBIA, ESTIGMATIZAÇÃO,TERROR, FANTASIA TEMPO E ESPAÇO Anos 50 (?), aldeia nos EUA PERSONAGENS MARY KATHERINE BLACKWOOD/MERRICAT

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Ficha de Leitura

Sempre vivemos no castelo

de Shirley Jackson

Publicação: 1962

Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide

Dinamização: Josefina Melo

13 de maio 2019

SINOPSE

Escrito numa altura em que a sua autora sofria de agorafobia, Sempre vivemos no

castelo é um romance claustrofóbico narrado por Merricat, um dos três sobreviventes

do envenenamento que seis anos antes causou a morte de quase todos os membros

da sua família. Merricat, rapariga estranha e demasiado infantil para os seus 18 anos

vive com a irmã mais velha Constance por quem tem verdadeira adoração e com o tio

Julian doente do corpo e frequentemente da mente por ter comido uma colher de

açúcar com arsénico. Os três vivem isolados e suspensos no tempo e na rotina dos dias

apenas quebrada com as idas de Merricat à aldeia onde é insultada e perseguida pelos

aldeões. (até à chegada inesperada do primo Charles)

PALAVRAS-CHAVE

LOUCURA, MORTE, AMOR, AGORAFOBIA, ESTIGMATIZAÇÃO,TERROR, FANTASIA

TEMPO E ESPAÇO

Anos 50 (?), aldeia nos EUA

PERSONAGENS

MARY KATHERINE BLACKWOOD/MERRICAT

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«Chamo-me Mary Katherine Blackwood. Tenho dezoito anos e vivo com a minha irmã

Constance. É frequente pensar que se tivesse tido um pouco de sorte poderia ter

nascido lobisomem, porque o anular e o dedo médio das minhas mãos têm o mesmo

comprimento, mas tive de me contentar com aquilo que tenho. Não gosto de me lavar,

nem de cães ou barulho. Gosto da minha irmã Constance, de Ricardo Coração de Leão

e do Amanita phalloides, o cogumelo da morte. Todas as outras pessoas da minha

família estão mortas.» (p. 9)

As terças e as sextas-feiras eram dias terríveis, porque eu tinha de ir à aldeia. (p. 10)

CONSTANCE

Quando eu era pequena pensava que Constance era uma princesa das fadas. Tentava

desenhá-la, com cabelo longo e dourado e olhos tão azuis quanto o lápis de cera os

conseguia pintar, e um ponto rosado e brilhante em cada uma das faces; os desenhos

surpreendiam-me sempre, porque era mesmo assim que ela se parecia; mesmo nos

piores momentos era rosada e branca e dourada, e nunca houvera nada que parecesse

diminuir-lhe o brilho. Sempre foi a pessoa mais preciosa do meu mundo. (p. 35)

Constance nunca saía do nosso jardim (…) (p. 10)

Constance gostava de livros acerca de comida (…) (p. 11)

JONAS

O gato de Merricat.

– Eu podia treinar Jonas para nos trazer coelhos para um guisado – disse-lhe, e ela riu-

se, e Jonas olhou malicioso para ela.

- Esse gato está tão habituado a viver à base de natas e bolos de rum e ovos com

manteiga que duvido que seja capaz de apanhar um gafanhoto – disse ela. (p. 178)

STELLA

Dona do Stella´s, o café da aldeia.

(..) às vezes pensava que quando desejava que todas as pessoas da aldeia morressem

talvez fosse capaz de poupar Stella, porque ela era o mais amável possível, o mais

amável que qualquer um deles conseguia ser, e a única que mantinha um vestígio de

cor. Era redonda e rosada e quando vestia um vestido com um estampado alegre

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aquele permanecia alegre durante um bocado, antes de se confundir com o cinzento-

escuro do resto. (…) (p. 23)

OS ERBERT

Donos da mercearia.

Não interessava quem estava na mercearia. Eu era sempre atendida de imediato; o Sr.

Elbert ou a sua mulher pálida e gananciosa afastavam-se logo do que quer que

estivessem a fazer na loja para me irem buscar aquilo que eu queria. (p. 17)

JIM DONELL

Chefe dos bombeiros.

Só parava de falar quando estava cansado. Quando Jim Donell pensava numa coisa

para dizer, dizia-a com tanta frequência e de todas as maneiras que lhe era possível,

talvez porque tivesse muito poucas ideias e tivesse de as torcer bem até já não restar

nada. Além disso de cada vez que se repetia achava que estava a ser ainda mais

engraçado; (…)

Também cheirava mal. (…) (p. 27)

OS HARRIS

Quando eu ia a passar, a mãe dos rapazes Harris saiu para o alpendre, talvez para ver

porque é que eles estavam todos a gritar. Ficou ali parada um instante a olhar e a

escutar e eu parei e olhei para ela, olhei para os seus olhos insípidos e apáticos, e sabia

que não devia falar com ela e sabia que o ia fazer.

- Pode fazê-los parar? – perguntei-lhe naquele dia, a pensar se existiria algo naquela

mulher com o qual eu pudesse falar, se ela alguma vez correra alegremente pela relva,

ou vira flores, ou conhecera o encanto ou o amor.

- Pode fazê-los parar?

- Meninos – disse ela sem alterar a voz ou a expressão ou a sua aparência de gozo

indiferente, - não chamem nomes à senhora.

- Sim, mãe – disse um dos rapazes, sobriamente.

- Não se aproximem da vedação. Não chamem nomes à senhora.

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E eu continuei a andar, enquanto eles guinchavam e gritavam e a mulher ficou parada

no alpendre e riu-se. (p. 31)

JULIAN BLACKWOOD

Após ter perdido a herança deixada pelo pai, o tio de Merricat e a mulher foram viver

para a quinta dos Blackwood, onde tentavam ser o mais prestáveis possível para

retribuir o teto e a comida. Doente e numa cadeira de rodas depois de ter comido uma

colher do açúcar com arsénico, anota apontamentos sobre o dia fatídico para o livro

que pretende escrever, ou que alguém escreva por si.

O pobre e velho tio Julian estava a morrer e criei a regra firme de que passaria a ser

mais amável para com ele. Iríamos fazer um piquenique no relvado. Constance levar-

lhe-ia o seu xaile e colocá-lo-ia nos seus ombros, e eu deitar-me-ia na relva. (p. 25)

O tio Julian vivia de modo regular, num padrão perfeitamente planeado, circular e

suave. (p. 45)

- De certo modo – prosseguiu o tio Julian, - para mim foi um momento

extraordinariamente afortunado. Sobrevivi a um dos mais sensacionais casos de

envenenamento do século. Tenho todos os recortes dos jornais. Conhecia intimamente

a vítima e a acusada, como apenas um parente que que vivia na casa as poderia ter

conhecido. Tenho apontamentos exaustivos a respeito do que aconteceu. Nunca mais

fiquei bom desde essa altura. (p. 53)

HELEN CLARKE

Amiga da família que continua a visitar as duas irmãs depois do crime.

- Aquela mulher insuportável – Constance recostou a cabeça no sofá e riu-se. –

Malcriada, arrogante, estúpida. Porque é que ela continua a visitar-nos é algo que

nunca saberei. (p. 61)

JOHN BLACKWOOD

O patriarca da família.

John Blackwood tinha orgulho na sua mesa, na sua família e na sua posição no mundo.

(p. 54)

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THOMAS BLACKWOOD

Irmão mais novo de Merricat.

Tinha dez anos e possuía muitos dos traços mais fortes da personalidade do pai. (p. 54)

LUCY BLACKWOOD

A matriarca da família.

-…a minha cunhada que era, madame, uma mulher delicada. Deve ter reparado no seu

retrato pendurado na sala de estar, e na requintada linha do maxilar sob a pele. Talvez

uma mulher nascida para a tragédia, embora com uma certa tendência para a tolice.

(p. 54)

DOROTHY BLACKWOOD

Mulher de Julian Blackwood.

E a minha mulher, embora eu não a tivesse encorajado a comer muito já que

estávamos a viver com o meu irmão, comeu muitas salsichas. (p. 74)

CHARLES BLACKWOOD

Filho de Arthur Blackwood irmão de John. Visita inesperadamente as duas primas,

após a morte do seu pai que o impedira de o fazer.

-Merricat- disse Constance. Virou-se e olhou para mim, a sorrir. – É o nosso primo,

Charles Blackwood. Conheci-o de imediato, é parecido com o nosso pai.

Bem, Merricat disse – disse ele. Levantou-se. Era mais alto agora que estava dentro de

casa, e aumentava à medida que se aproximava de mim. – Tens um beijo para o teu

primo Charles?

Atrás dele, a porta da cozinha estava escancarada; ele fora o primeiro que alguma vez

entrara e fora Constance que o deixara entrar. (p. 88)

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EXCERTOS

Raramente mudávamos as coisas; os Blackwood nunca foram uma família de grande

impaciência e agitação. Ocupávamo-nos com os pequenos objetos efémeros de

superfície, os livros e flores e colheres, mas sob tudo isso sempre tivemos uma

fundação sólida de posses estáveis. Voltamos sempre a colocar as coisas no seu devido

lugar. Limpávamos o pó e varríamos debaixo das mesas e cadeiras e camas e quadros e

tapetes e candeeiros, mas deixávamo-los onde estavam; o conjunto de toilette de

tartaruga colocado sobre o toucador da minha mãe nunca se moveu do seu lugar mais

do que um centímetro. (p. 9)

Eu gostava da minha casa na lua, e coloquei-lhe uma lareira e um jardim no exterior (o

que é que floresceria, cresceria na lua? Tenho de perguntar a Constance) e ia almoçar

no meu jardim na lua. As coisas na lua eram muito brilhantes, e de cores estranhas; a

minha pequena casa seria azul. Observei os meus pequenos pés castanhos a andar

para a frente e para trás e deixei o saco das compras balouçar um pouco ao meu lado ;

(…) (p. 28)

Encontrei um ninho de crias de cobra perto da enseada e matei-as todas; não gostava

de cobras e Constance nunca me pedira para gostar. (p. 82)

Lentamente comecei a ouvi-los falar.

-…comprar um livro a Mary Katherine. Lucy, Mary Katherine não devia ter um livro

novo?

- Mary Katherine pode ter aquilo que quiser, minha querida. A nossa filha mais amada

tem de ter aquilo de que gostar.

- Constance, a tua irmã não tem manteiga. Passa-lha já, por favor.

- Mary Katherine, nós amamos-te.

- Nunca deves ser castigada. Lucy estás aqui para te certificares de que Mary

Katherine, a nossa filha mais amada, nunca é castigada.

(…)

A nossa amada, a nossa mais querida Mary Katherine deve ser protegida e acarinhada.

Thomas, dá o teu jantar à tua irmã; ela gostaria de comer mais.

- Dorothy, Julian. Levantem-se quando a nossa amada filha se levantar.

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- Baixem todos a cabeça à nossa adorada Mary Katherine. (pp. 138-139)

Com muito cuidado, levantou as mãos e tirou o chapéu que dizia «Chefe» e enquanto

todos o observavam desceu lentamente os degraus e dirigiu-se ao carro de bombeiros e

pousou o chapéu no assento da frente. Depois dobrou-se, a procurar atentamente

qualquer coisa, e por fim, enquanto todos olhavam pegou numa pedra. Num silêncio

absoluto virou-se devagar e depois levantou o braço e atirou a pedra contra uma das

grandes janelas altas da sala de estar da nossa mãe. Um muro de gargalhadas ergueu-

se e aumentou atrás dele e depois, primeiro os rapazes nos degraus e depois os outros

homens e por fim as mulheres e as crianças pequenas, moveram-se como uma vaga em

direção à nossa casa. (p. 151)

NOTA BIBLIOGRÁFICA SOBRE A AUTORA

Shirley Jackson (1916–1965) é considerada uma das mais influentes escritoras norte-

americanas.

Herdeira da grande tradição do gótico americano, iniciada com Edgar Allan Poe, teve

uma vida curta, deixando uma obra pouco extensa, mas que a confirmou de imediato

como uma das grandes personalidades literárias do século XX.

Obteve imediato sucesso e fama com a publicação, em 1948, do seu conto The Lottery

que, na época, dividiu opiniões e suscitou acesas polémicas.

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Ao todo, escreveu 55 contos e, da sua obra, destacam-se ainda as suas crónicas

familiares Life Among the Savages (1953) e Raising Demons (1957), e os seus

romances The Sundial (1958), Sempre Vivemos no Castelo (ed. Cavalo de Ferro, 2018)

e A Maldição de Hill House, obra adaptada para cinema e televisão.

RESENÇÕES

Sempre Vivemos no Castelo: Um Prelúdio Para Um Mito

Autora: Janey Tracey

25.10.218

Publicado em ensaios críticos

De “O Corpo Dela E Outras Partes” de Carmen Maria Machado, a “Circe” de Madeline

Miller, a problemática dos arquétipos feministas em mitos centrados nos homens, tem

sido recentemente remodelada por escritoras proeminentes. Mas onde a maioria das

reformulações complica histórias familiares, “Sempre Vivemos no Castelo”, faz uma

aproximação inversa: o romance começa com personagens com as quais nos

conseguimos identificar e depois segue no rasto da sua transformação no protótipo de

“bruxa da vizinhança”.

“Sempre Vivemos no Castelo” acompanha duas irmãs: Merricat e Constance

Blackwood, que já têm uma leve reputação de bruxas no início do livro; quase toda a

sua família morrera de envenenamento seis anos antes, e as duas mulheres passam a

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maior parte do tempo trancadas na casa com o tio, longe dos aldeões que as

ostracizam e desprezam. Mas as mulheres têm laços ténues com a comunidade:

Merricat aventura-se regularmente pela cidade para comprar comida e livros (embora

passe uma parte considerável desse tempo a desejar a morte de todos os aldeões), e

recebem visitas ocasionalmente.

Numa reformulação tipicamente feminista, a casa seria semelhante a uma prisão, onde

as mulheres estão presas às tarefas domésticas porque não se enquadram nas

expectativas da sociedade. No final do romance, o leitor esperaria ver as mulheres a

“libertarem-se” elas próprias da casa e juntarem-se ao mundo novamente. Mas, em

vez disso, Jackson esforça-se bastante para nos lembrar que a casa é o melhor lugar

para as irmãs. Os aldeões são cruéis para Merricat quando ela vai à cidade, cantando

canções sobre Constance ter assassinado os pais das duas; e Charles, um belo primo e

potencial pretendente a quem Constance vê como possível caminho para uma vida

normal, deixa bastante claro nas suas visitas que está atrás do dinheiro das irmãs.

Por fim, Merricat incendeia a própria casa para expulsar Charles de lá. Seria de pensar

que esta era uma forma de libertar as irmãs da casa, seguindo assim a trajetória das

reformulações feministas clássicas como “Vasto Mar de Sargaços”; mas em vez disso,

Merricat ateia o fogo para recuperar a posse da sua casa e completar a transformação

das irmãs nas “bruxas da vizinhança”. Durante o fogo, Charles está mais preocupado

em salvar a riqueza das irmãs do que em salvar as suas vidas, provando que a casa é o

único lugar seguro para Constance e Merricat e a casa não é destruída como seria se

fosse um símbolo de opressão, mas é em vez disso transformada num castelo: depois

do fogo, a casa torna-se num castelo com torreões e aberto para céu.

No final, Jackson duplica todas as características “de bruxa” das irmãs em vez de as

subverter. Merricat admite a Constance que envenenou de facto os pais delas. Os

laços que restavam entre as duas mulheres e o mundo exterior são cortados: o tio

morre no incêndio e Charles tenta regressar para Constance mas ela não o deixa

entrar. As únicas pessoas que as visitam são os aldeões mas nunca entram na casa,

apenas deixam comida e livros para as irmãs não terem de sair. As irmãs completaram

a sua transformação em protótipo: misteriosas lendas locais que olham para os

aldeões a partir de uma casa queimada.

Traduzido de:

http://blog.pshares.org/index.php/we-have-always-lived-in-the-castle-a-prelude-to-a-

myth/

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“Sempre Vivemos no Castelo” de Shirley Jackson – uma casa de terror comum

Se vos pudesse dar um presente este Natal, seria uma caixa de dólares de prata,

enterrada perto do riacho; ou talvez um livro pregado a uma árvore; ou uma tigela de

açúcar a transbordar de arsénico. Talvez vos desse discretamente um jogo, como vocês

negoceiam o xadrez da grande avenida sob os olhares acusadores das gentes da

cidade.

Ou podia dar-vos todas estas coisas num embrulho bem cuidado, embrulhado em

inquietude e atado com mal-estar. Podia dar-vos o assombroso romance final de

Shirley Jackson, “Sempre Vivemos no Castelo”.

Jackson, que morreu há 50 anos, é talvez mais bem conhecida pela sua pequena

história “A Lotaria” e pelo romance “A Maldição de Hill House”, duas vezes adaptado

ao cinema e considerado como o suprassumo em contos de casas assombradas. Mas

enquanto estas e as restantes obras da autora são de facto sublimes, é sobre “Sempre

Vivemos no Castelo” que eu sou mais entusiasta e que pressiono as pessoas para ler a

cada oportunidade que tenho.

A autora era no final da sua vida uma figura perturbada e “Castelo” publicado em

1961, tem nas suas duas personagens principais femininas o que a biógrafa de Jackson,

Judy Oppenheimer chama de “yin e yang do eu interior de Shirley” – “uma delas uma

exploradora, uma desafiadora; a outra, uma resistente doméstica caseira”. Elas são

Mary Katherine – Merricat – que tem 18 anos, é obstinada e simultaneamente ingénua

e mundana; e a irmã mais velha, Constance, que não se aventura para além do seu

jardim nos terrenos labirínticos e em ruínas da casa de família dos Blackwood,

distantemente empoleirada por cima da pequena cidade.

As raparigas Blackwood são as últimas sobreviventes desta grande família antiga,

juntamente com o tio Julian, enfermo do corpo e frequentemente na mente. A

restante dinastia foi eliminada quando alguém pôs arsénico na tigela do açúcar e a

família, como era costume, polvilhou a sobremesa com ele.

Merricat tinha sido mandada para o quarto antes do jantar, e portanto não comeu

pudim; Constance não pôs açúcar, e o tio Julian pôs só um bocadinho; portanto,

embora tivesse sido envenenado como o resto da família, sobreviveu embora com

uma saúde débil.

Como se podia esperar, há uma mitologia que se desenvolve em redor dos Blackwood,

com a crença geral de que Constance teria cometido os homicídios; afinal ela não tinha

lavado a tigela do açúcar antes de a polícia chegar, sob o pretexto de que estava lá

uma aranha?

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Apenas Merricat se aventura com pouca frequência na cidade para comprar

mercearias e livros da livraria, e quando o faz, é recebida pelas cruéis rimas das

crianças:

Merricat, disse a Connie, queres uma chávena de chá?

Oh não, disse a Merricat, podes envenenar-me.

Merricat, disse a Connie, queres ir dormir?

No cemitério debaixo de sete palmos de terra!

Sem surpresas, Merricat é uma jovem perturbada, marcando os limites das terras dos

Blackwood com amuletos e tótemes feitos de sucata e bijuteria/enfeites, ferozmente

protectora da sua irmã, e cujos dias são marcados por pequenos rituais de TOC

(transtorno obsessivo compulsivo).

E assim está montado o poeirento cenário para o inevitável conflito que Jackson

injecta neste quadro gótico, a introdução de um primo caçador de fortunas de falinhas

mansas que elogia Constance fazendo-a acreditar que ela pode ter uma vida normal, e

o aumento da tensão entre os Blackwood e as pessoas da cidade, que não estão a mais

de um pequeno empurrão de distância da multidão de forquilhas em riste em que

inevitavelmente se tornarão.

“Sempre Vivemos no Castelo” é uma fascinante e inquietante história que se forma

como a pressão que antecipa uma tempestade que se aproxima; Jackson tece palavras

como Merricat faz os talismãs que ela acredita que têm de proteger o que resta da

família do mundo exterior. A tensão avoluma-se e aumenta em direcção a um clímax

que é simultaneamente inevitável e chocante.

Parte de mim não quer partilhar este livro de todo – é uma paixão privada, um feitiço

de magia negra ciosamente guardado; mas eu espero que os seus novos leitores

possam sentir, como eu me senti da primeira vez que o li, um calmo assombro de que

tais livros possam existir e existam e que a escrita possa ser tão imperiosa. Tenho

inveja daqueles que o leem pela primeira vez e começam a descobrir o incrível

repertório que engloba o assustador, o horrível e o simplesmente estranho.

Não há um pingo de sobrenatural no castelo, embora pareça que sim. É talvez uma

história do que eventualmente apaixona Shirley Jackson nas casas assombradas, os

ecos da violência e emoção que estão impressos nos lugares em que vivemos. É

obcecada com a morte mas a transbordar de vida, e essa é talvez a receita perfeita

para a criação dos melhores fantasmas de todos.

Traduzido de:

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https://www.theguardian.com/books/2015/dec/21/we-have-always-lived-in-the-

castle-by-shirley-jackson-a-house-of-ordinary-horror

Li este livro ao longo do fim de semana; com umas meras 140 páginas, é quase um

conto mas a prosa perturbadora e angustiante de Jackson asseguram-nos que este é

um daqueles livros que vai deixar a sua marca. Escrita numa altura em que a própria

autora estava a sucumbir à agorafobia, esta é uma história intensamente

claustrofóbica com uma narradora verdadeiramente atormentadora. Acabei “Sempre

Vivemos no Castelo” com um sentimento de ter de vir à superfície para respirar,

ansiosa por afugentar esta ameaça nauseante da sua angustiante narradora. Merricat

Blackwood tem dezoito anos mas comporta-se mais como a menina de doze anos que

era há seis anos atrás quando quase toda a sua família morreu por causa de um

envenenamento fatal por arsénico, administrado através de uma tigela de açúcar.

Nessa noite, Merricat tinha sido mandada para a cama sem jantar e Constance, a sua

irmã mais velha, nunca se servia de açúcar; o que significa que ambas escaparam

ilesas, ao passo que o Tio Julian também sobreviveu devido ao facto de só ter tirado

uma colher de chá de açúcar, mas tanto o seu corpo como a sua mente ficaram

seriamente enfraquecidos. Depois da morte do resto da família, Constance foi levada a

julgamento pelo homicídio mas foi absolvida por falta de provas. Os três Blackwood

restantes vivem uma vida parada no tempo, permanecendo dentro dos limites da sua

casa idílica mas odiados por todos os que vivem para além dela.

Merricat é uma guia perturbadora ao longo do romance, próxima de Frank Cauldhame

de a “Fábrica de Vespas” de Iain Banks, mas cruzada com “O Que Terá Acontecido a

Baby Jane”. Por um lado é infantil ao enterrar os seus tesouros no jardim e indo

passear com o gato mas à medida que a história dela avança, o que se destaca mais é a

sua brilhante malícia. O que é perturbador acerca de Merricat é o quão aberta ela é

com o leitor – com toda a gente, mas só veremos o seu todo mais à frente. No

primeiro parágrafo ela apresenta-se: «Chamo-me Mary Katherine Blackwood. Tenho

dezoito anos e vivo com a minha irmã Constance. É frequente pensar que se tivesse

tido um pouco de sorte poderia ter nascido lobisomem, porque o anular e o dedo

médio das minhas mãos têm o mesmo comprimento, mas tive de me contentar com

aquilo que tenho. Não gosto de me lavar, nem de cães ou barulho. Gosto da minha

irmã Constance, de Ricardo Coração de Leão e do Amanita phalloides, o cogumelo da

morte. Todas as outras pessoas da minha família estão mortas.» A verdade está logo

ali, por trás de frases simples e afirmações monótonas.

O romance começa com as viagens bissemanais de Merricat à cidade para recolher

provisões. A cidade fervilha de hostilidade, as conversas param quando ela passa e as

crianças gritam uma rima cruel sobre a culpa da sua irmã. Temos pena de Merricat

quando os homens da aldeia a atormentam, vemos apenas a vítima a passar por um

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ostracismo não merecido – de facto, embora “Sempre Vivemos no Castelo” seja uma

história de extremos hiperbólicos, sentimos que Jackson capturou um pouco do

preconceito das pequenas cidades americanas. Mas quando Merricat regressa a casa

para aquele casarão, damo-nos conta de todas as coisas que não lhe são permitidas

fazer: não pode tocar em comida, mexer em facas, ou ir ao quarto do Tio Julian.

Constance é toda ela cabelos louros e boa disposição, nunca dando a sugestão de

alguma coisa ou que a sua irmã Mary Katherine é algo mais do que malévola além da

sua simples expressão “Merricat tonta”.

A chegada do há muito esquecido primo Charles, ameaça a precária estabilidade das

vidas dos Blackwood e rapidamente se torna claro que Merricat não quer mudanças.

Charles está fascinado com a riqueza da família e ansioso para lhe deitar as mãos, mas

apesar da sua ganância e a sua “grande cara branca”, para Merricat há ainda o

aterrorizante indício de que ele se possa revelar uma fuga para Constance. Não mãos

de outro escritor, Constance poderia ser a Rapunzel e Charles o seu príncipe

encantado montado num cavalo branco, mas “Sempre Vivemos no Castelo” inverte o

modelo de história da Cinderela. Merricat não libertará a irmã, elas sentar-se-ão no

meio das ruínas das suas vidas e Merricat irá proclamar que elas são “tão felizes”.

No entanto, o que é mais inteligente na escrita de Jackson é que nós começamos por

estar do lado de Merricat. Tendo conhecido os aldeões, compreendemos o ódio que

Merricat lhes tem e portanto estamos inclinados a simpatizar com o ressentimento

dela para com os visitantes locais. Ela é uma rapariga estranha, talvez demasiado

infantil, mas nós não vemos a sua maldade apesar de estar mesmo à frente dos nossos

olhos. Os “eles” há muito mortos, estão constantemente a ser referidos: a mãe das

meninas, que gostava de manter a sala de desenho tão arrumada; mas quando

finalmente os conhecemos na mente de Merricat, essa criança estranha, inocente e

demasiado crescida, volta o seu olhar para nós e nós percebemos o quanto ela pulsa

com raiva e sede de vingança – uma visão verdadeiramente aterrorizante. A pobre

Constance é demasiado fraca, demasiado gentil – demasiado louca, ela própria? – para

dominar a irmã, e por isso somos deixados com esta história profundamente

perturbadora da irmã má que subjuga a boa, estas duas bruxas na sua casa de

gengibre deixando o leitor a ponderar qual será o seu derradeiro destino. Nada de

bom.

Traduzido de:

https://girlwithherheadinabook.co.uk/2015/11/review-we-have-always-lived-in-the-

castle-shirley-jackson.html

Podia-se argumentar que “Sempre Vivemos no Castelo” é um livro maioritariamente

sobre rotina – rotina essa que é meticulosamente descrita pela sua narradora Mary

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Katherine “Merricat” Blackwood e que é cumprida por ela e pelas pessoas com quem

ela partilha a sua vida: a sua adorada irmã Constance; Julian, o tio doente; e até Jonas,

o gato.

A rotina diária é quase uma coisa mágica para Merricat, fonte de conforto e poder.

Certos dias da semana são para fazer a limpeza da casa e garantir que cada divisão

continua exactamente como foi um dia. Outros dias são os dias em que Merricat se

aventura para fora dos limites da sua casa em busca de comida e livros; esses são os

piores dias: os dias em que ela é insultada pelos aldeões e onde se deixa claro que os

Blackwood são outros e sempre têm sido.

A diferença deles é tanto real como imaginada. Há uma clara distinção de classe social

e os aldeões vêm os Blackwood como altivos e separados; os próprios Blackwood

também sempre acharam o mesmo mas os Blackwood restantes são outros por razões

diferentes. Exactamente o quanto é que a estranheza de Merricat e Constance é

exacerbada por um fator externo é motivo de discussão, mas há claramente algo

quebrado aqui. Quanto mais tempo se passa com os Blackwood, mais claro se torna

que ambas as irmãs revelam facetas de si mesmas que são extremamente

perturbadoras e até mesmo perversas.

O problema é que os aldeões – ao contrário de nós, os leitores – não têm forma de

saber a exacta extensão da estranheza das raparigas. Quando agem sobre a sua

desconfiança, estão a agir de moto próprio, de acordo com os seus próprios

preconceitos e repressão tacanha. Há horror aqui mas é um tipo de horror diferente

daquele que se passa dentro da casa – e segundo o ponto de vista de Merricat.

Esta justaposição do que os aldeões sabem e não sabem é apenas uma das razões que

fazem deste livro um triunfo tão grande. A narrativa (extremamente) duvidosa bem

como a derradeira conceptualização do livro personificam a perfeição na arte de

contar histórias.

“Sempre Vivemos no Castelo” é uma história incrivelmente angustiante por causa do

que se disse anteriormente. Há 6 anos atrás aconteceu uma coisa terrível aos

Blackwood, e algo terrível está prestes a acontecer novamente quando a observação

da sua rotina é abruptamente interrompida por um visitante indesejado. Começa

quando Merricat já não tem autorização para ir à cidade; como acabamos por

perceber, trata-se de uma pessoa que é completamente incapaz de mudar – os

Blackwood vivem suspensos no tempo e a maior indicação disso é o facto de a voz de

Merricat ser a de uma menina muito mais nova do que ela supostamente é. Estas

raparigas não cresceram de todo e as suas vidas cuidadosamente mantidas só são

possíveis por causa disso; os motivos para que isto aconteça são abertos à

interpretação.

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Por último – o enquadramento brilhante do livro – é exemplificado pela narrativa

dentro da narrativa á medida que o Tio Julian tenta organizar e recontar aqueles

eventos que ocorreram seis anos antes. Mas acima de tudo na maneira como a história

progride e eventualmente culmina num conto de fadas perfeitamente moldado: do

tipo que horroriza mas também não apresenta desculpas para o seu horror. Do tipo

que encontra as suas raízes nas histórias contadas oralmente (esta história pode ser

escrita mas Merricat está a contar-nos a sua história de uma maneira muito

tradicional), à medida que cresce e se transforma com o tempo. O final sintetiza isto

perfeitamente.

Eu admito que esta opinião é bastante críptica em termos de o quanto me abstive de

falar de detalhes específicos do enredo, mas acreditem em mim quando digo que é

pelo melhor.

Existem definitivamente temáticas paralelas entre este livro e “A Maldição de Hill

House” bem como o horror psicológico que alimenta a narrativa. Mas é a narrativa nos

dois livros – o quão envolvente e inquietante ela é – que une ambos os livros e que me

faz dizer, sem hesitação, que Shirley Jackson me surpreendeu completamente. Estou

tão feliz por ter finalmente descoberto os livros dela.

Traduzido de:

https://www.thebooksmugglers.com/2012/11/book-review-we-have-always-lived-in-

the-castle-by-shirley-jackson.html