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1 GRUPO DE LEITORES DA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ALGÉS APRENDER A REZAR NA ERA DA TÉCNICA DE GONÇALO M. TAVARES FICHA DE LEITURA PUBLICAÇÃO: JULHO 2015 EDIÇÃO: EDITORIAL CAMINHO GÉNERO: ROMANCE PORTUGUÊS PALAVRAS CHAVE Gonçalo M. Tavares; Romance; Aprender a rezar na era da técnica; O Mal; Ideologia; Violência de Estado; Biopolítica. SINOPSE Aprender a Rezar na Era da Técnica conta a história de um cirurgião, Lenz Buchmann, que abandona a medicina para se dedicar à política. Tem a ilusão de poder salvar muitas pessoas ao mesmo tempo, em vez de salvar uma pessoa, de cada vez, no seu acto médico. A sua subida impiedosa no Partido do poder só é interrompida por um acontecimento surpreendente e definitivo. A mão forte que segurava no bisturi e nos comandos da cidade começa, afinal, a tremer. https://www.wook.pt/livro/aprender-a-rezar-na-era-da-tecnica-goncalo-m-tavares/16565430 Lenz Buchmann é um homem atroz. Como médico, despreza os doentes. Como político, despreza a sociedade. Como marido..., como irmão... como filho, enaltece irracionalmente o pai porque é assim que se comportam os homens desprezíveis. Depois de Um Homem: Klaus Klump, A Máquina de Joseph Walser e Jerusalém, Aprender a rezar na Era da Técnica mantém o mesmo olhar agreste e tantas vezes sombrio sobre a condição humana: «O que vês quando olhas para onde todos olham?» http://www.caminho.leya.com/pt/literatura/romance/aprender-a-rezar-na-era-da-tecnica/

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1

GRUPO DE LEITORES DA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ALGÉS

APRENDER A REZAR NA ERA DA TÉCNICA DE

GONÇALO M. TAVARES

FICHA DE LEITURA

PUBLICAÇÃO: JULHO 2015

EDIÇÃO: EDITORIAL CAMINHO

GÉNERO: ROMANCE PORTUGUÊS

PALAVRAS CHAVE

Gonçalo M. Tavares; Romance; Aprender a rezar na era da técnica; O Mal; Ideologia; Violência de Estado; Biopolítica.

SINOPSE Aprender a Rezar na Era da Técnica conta a história de um cirurgião, Lenz Buchmann, que abandona a medicina para se dedicar à política. Tem a ilusão de poder salvar muitas pessoas ao mesmo tempo, em vez de salvar uma pessoa, de cada vez, no seu acto médico. A sua subida impiedosa no Partido do poder só é interrompida por um acontecimento surpreendente e definitivo. A mão forte que segurava no bisturi e nos comandos da cidade começa, afinal, a tremer. https://www.wook.pt/livro/aprender-a-rezar-na-era-da-tecnica-goncalo-m-tavares/16565430 Lenz Buchmann é um homem atroz. Como médico, despreza os doentes. Como político, despreza a sociedade. Como marido..., como irmão... como filho, enaltece irracionalmente o pai porque é assim que se comportam os homens desprezíveis. Depois de Um Homem: Klaus Klump, A Máquina de Joseph Walser e Jerusalém, Aprender a rezar na Era da Técnica mantém o mesmo olhar agreste e tantas vezes sombrio sobre a condição humana: «O que vês quando olhas para onde todos olham?» http://www.caminho.leya.com/pt/literatura/romance/aprender-a-rezar-na-era-da-tecnica/

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CONTEXTO, CARACTERIZAÇÃO DOS PERSONAGENS E EXCERTOS

Lenz Buchmann, que nascera já com os genes dominados pela lucidez, aprendera depois, pela medicina, a reservar uma certa distância em relação ao sofrimento do outro, distância essa que poderia, por outras pessoas, ser classificada de incapacidade

de empatia ou mesmo de perversidade; (Pg. 221, L. 1). (…) «uma biblioteca como aquela não se divide»(…) (Pg. 120, L.18). Tratava-se realmente da herança do pai, mas a biblioteca não era uma herança material no seu sentido mais clássico, implicava sim uma posição, uma mora própria (Pg. 120, L. 31). A biblioteca de Frederich Buchmann tinha um carácter total; mais do que isso: constituía no seu conjunto, um dos traços mais significativos do caráter do pai. Tinha sido assim, para Lenz, após a morte do pai, de uma absoluta violência a divisão da biblioteca com o seu irmão. (Pg. 119, L.6).

O Dr. Lenz, cirurgião importante da cidade, homem possuidor absoluto dos seus

prazeres privados, apreciador das pequenas humilhações a prostitutas, e que ganhara

o hábito recente de receber em casa um vagabundo, de lhe oferecer esmolas chorudas,

de lhe dar pão e comida, e acima de tudo, de o humilhar, de atrasar a esmola, a

comida, de saborear o prazer de estar na parte forte e de ter dois olhos sãos e claros

para ver o que a claridade do mundo mostrava: a rudeza desse mesmo mundo, a

violência e a diferença entre quem tem saúde e quem não a tem, quem tem dinheiro e

quem não o tem, quem é velho e quem não o é, quem é feio ou deficiente e quem não o

é, quem tem marcas de acidentes no rosto, queimaduras, cortes que desfiguram a

beleza média e quem, pelo contrário, não tem nada que manche o seu orgulho, o seu

orgulho exterior, físico, a única moeda comum a todos os séculos, a todos os países, a

todas as línguas. ( Pg. 75, L. 3).

Era alguém que nascera e fora educado para matar e por devaneio intelectual decidira

exercer a medicina. (Pg. 104, L. 15).

Este sim é o grande sopro que correu e corre ainda no mundo: defende-te, mata, se

necessário, faz tudo para sobreviveres; (…) todas as ações são possíveis e todas são

boas se atingirem o objetivo (Pg. 213, L. 22).

(…) foi aí, nesse instante, mas num outro lado, no seu mundo interior, que Lenz tomou

a decisão de abandonar por completo a medicina - nada mais havia a conquistar nesse

campo – e de entrar no mundo da política, no “mundo dos grandes acontecimentos e

das grandes doenças”. Estava cansado de tratar com homens individuais e de ele

mesmo ser um homem individual; aquela não era a sua escala; queria operar a doença

de uma cidade inteira e não de um único e insignificante ser vivo. (Pg. 88, L. 29).

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Aquele homem tem o poder de dizer ‘por enquanto não’; era dessa posição que Lenz

Buchmann se queria apoderar (Pg.227, L. 3).

O ADOLESCENTE LENZ

Indiciado a ‘utilizar’ a criadita da casa afim de iniciar o seu ritual de macho na presença

do pai, algo que terá marcado para sempre o seu caráter …

O pai queria ver. – Vais fazê-la à minha frente – repetia. (…) O ato de fornicar a criadita

era reduzido ao mais simples: a um fazer (…) como se a criadita ainda não estivesse

feita (…). (Pg. 11, L. 9)

LENZ

Lenz sente-se como um soldado! Situa-se indubitavelmente entre as forças atacantes, mesmo

que não sejam, no final, as vitoriosas.

No mundo havia, pois, dois sistemas organizados, e não um apenas. Havia o sistema

dos vivos, dominado pelo grande homem das cidades mais evoluídas, e o sistema da

morte, perfeitamente desconhecido, com roldanas de outra natureza, que tinha

objetivos e métodos específicos (Pg. 61, L. 14).

A evidente facilidade com que mandaria matar um pobre pedinte ou aquele bom louco

do Rafa sem que isso, por certo, lhe trouxesse qualquer consequência pessoal –

receberia os mesmos bons-dias dos cidadãos – levava-o a ter um desprezo brutal em

relação à ideia de lei (Pg. 198, L. 30).

A caça permite a Lenz refletir sobre as leis do bosque, toscas, cruas e impiedosas.

Determina então o quanto para ele a delicadeza é sinónimo de fraqueza e a

importância do lugar que ocupamos no panorama geral: A vantagem de estar alguém

à nossa frente, dissera uma vez o pai de Lenz, é estar de costas viradas para nós. Não

importa o lugar onde estamos mas o campo de visão e a posição relativa (Pg.15, L. 9).

Para Lenz havia, indubitavelmente, um fosso entre a ordem da natureza e a da cidade:

Existia uma luz nova nas cidades, a luz da técnica, luz que dava saltos materiais que

antes nenhum animal conseguira dar (Pg. 42, L. 5).

O caráter de Lenz, ou melhor, a falta dele, revelava-se brutalmente na forma como se

comportava perante os que considerava inferiores: O prazer que sentia em humilhar

prostitutas, mulheres fracas ou adolescentes, pedintes que lhe batiam à porta ou a

própria mulher, não podia ser mais antagónico com a aura que alguns familiares de

doentes por si operados e salvos lhe colocavam em volta (Pg. 32, L. 16).

DÊEM-ME UMA RAZÃO PARA NÃO MATAR OS MAIS FRACOS (PG.197, L.1)!

Os fracos, dos quais também Lenz agora fazia parte.

Lenz Buchmann tinha um tumor na cabeça, já muito desenvolvido. (…) A doença já

alastrara; há muito que andava por ali. Haviam feito uma operação, reduzido a área

ocupada pelo inimigo, mas ficara ainda muito por dominar. A «coisa» já avançara para

outros órgãos. Para os médicos que o haviam operado estava claro que agora restava

esperar. A morte estava aí mesmo. (Pg. 260, L. 28).

O lobo estava doente; ninguém o reconhecia enquanto tal (Pg. 305, L.22).

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Já moribundo, Lenz delega em Julia a derradeira tarefa: a de preparar sua morte, pelas

mãos do seu irmão Gustav.

Uma ou outra vez haviam falado disso e, sim, ele queria a presença de muita gente, a

cidade inteira em redor, como se ele fosse de novo aquele que está no centro, aquele

de onde partem as ordens e as grandes decisões. Estava certo – havia-o dito, de forma

explícita, a Julia – de que o facto de morrer com uma bala na cabeça, de forma trágica,

abrupta, não aceitando portanto, de forma progressiva a doença, estava certo de que

esse gosto ‘entusiasmaria as pessoas’ tinha sido esta a expressão utilizada; o suicídio

faria com que o seu funeral fosse participado como nunca (Pg. 359, L.5).

Mas não foi isso que sucedeu…Estava, pois, só: Lenz Buchmann, deixado para trás,

sozinho, com os seus olhos. A luz, essa, não parava de o chamar. Queria sentir ódio,

mas não conseguia. Ela tranquilizava e chamava-o. Depois talvez tenha existido uma

pausa e de novo da televisão veio uma luz forte que o chamou pelo nome. E agora ele

foi; deixou-se ir (Pg. 375, L. 12).

O DOUTOR LENZ, CIRURGIÃO. O MÉDICO NA ERA DA TÉCNICA!

A eficiência e a competência, suportadas pela capacidade e perícia da sua mão direita,

salvaram friamente muitas vidas. Não tratamos aqui de sentimentos, dissera uma vez Lenz,

tratamos de veias e artérias, de vasos que rebentam e que devemos recuperar (Pg. 26, L. 28).

(…) Lenz percebera que na medicina se combatiam as duas mais espantosas capacidades da

técnica: a explosão e a precisão (…) O seu bisturi era, isso estava claro, o mensageiro da

precisão e da retidão (Pg. 29, L. 6). Não o irritava ser considerado competente mas sim que

essa competência fosse confundida com uma certa bondade, sentimento que desprezava em

absoluto (Pg.32, L. 9).

LENZ, O POLÍTICO

O funeral do irmão, demonstrou a Lenz o poder de um cargo político : O que ele vira naqueles

homens sabujos ou apenas medrosos era uma clara satisfação que ia do exterior, do rosto, até

à mais profunda célula daqueles corpos (Pg. 88, L. 3); Lenz não entendeu por inteiro os

contornos daquele fenómeno quase mágico, mas naquele momento tomou uma decisão, já o

espaço em redor da campa de Albert estava vazio : iria entrar para o Partido e lutar por

conquistar um dos seus lugares mais altos. (Pg. 88, L. 14).

A sua entrada para o Partido, levantou várias dúvidas à comunidade: porque razão alguém

com um estatuto de cirurgião tão elevado como o de Lenz, decidira repentinamente iniciar

carreira na política?

Porque o anúncio feito à imprensa foi explícito: «Lenz Buchmann declara abandonar

definitivamente a profissão de médico cirurgião para se dedicar por completo aos problemas

da cidade» (Pg. 99, L. 7).

Perante esta opção, a vida de Lenz mudou radicalmente. Amava o reconhecimento e a

deferência que com ele tinham quando simplesmente circulava na rua…

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A grande vantagem nesta mudança de sistema era sem dúvida o número de pessoas que

conseguia agora influenciar – ou mesmo tocar, no sentido físico, no sentido do bisturi que

interfere no tecido (Pg.103, L.4).

Criador do slogan “É necessário forçar o movimento“, da campanha de Kestner.

Este «movimento forçado» tornara-se rapidamente uma espécie de senha que os

homens transmitiam uns aos outros. (…) (Pg. 210, L. 8).

(…) conseguira lançar a ideia de que o espaço pertence aos cobardes e de que o

movimento, esse sim, era o importante. (Pg.210, L. 14).

Era esse, aliás, o verdadeiro sentido de forçar o movimento das coisas. Este movimento

forçado, movimento provocado pelo medo, era um movimento a mais que

descontrolava por completo o sentido de posicionamento e orientação do corpo e

permitia à voz do comando fazer o que quisesse daquele que fugia. (Pg. 231, L. 22).

Provocador dos que considerava ‘espetadores desviados’, Lenz vê-se enleado na

própria loucura de Rafa, a ponto de o matar.

Toda a cidade foi atravessada por um sobressalto quando a notícia se espalhou. A

forma como tudo foi transmitido foi esta: um louco – Rafa – entrara na casa do

conhecido político Lenz Buchmann com o intuito de roubar e, tendo sido apanhado em

flagrante, pegou na arma de caça do Dr. Buchmann e atirou sobre a Srª Buchmann,

matando-a. Depois de uma luta, o Dr. Buchmann recuperou a arma e conseguiu abatê-

lo, quando este tentava fugir. Eis o relato registado nos ofícios criminais e depois

recuperado pela história. (Pg.242, L. 1). Lenz Buchmann não só não viu atingida a sua

reputação como, pelo contrário, ganhou a dimensão humana «de quem sofreu muito».

(Pg. 249, L. 3).

Ganhas as eleições do Partido, as constantes dores de cabeça que o assolavam

principiaram a alcançar uma desmedida intensidade: (…) depois de resolver em

definitivo as dores de cabeça que o perseguiam, poderia, com mais tranquilidade,

continuar o seu projeto (Pg.253, L. 4)…

A MULHER DE LENZ

A mulher de Lenz era uma criatura passiva e estupidamente submissa às vontades do marido,

sem qualquer vislumbre de vontade própria.

Com o pedinte na assistência Lenz fornica furiosamente a mulher que se deixa ir por completo,

aceita tudo (Pg. 23, L.9).

A sua mulher era uma prostituta Buchmann; que bom, pensava ironicamente. (Pg. 240, L. 4).

A Srª Buchmann tentava defender-se do louco. À força ele obrigava-a a manter-se de costas,

baixando-lhe violentamente a cabeça (…) . (Pg. 241, L.6).

Algo se passou então na cabeça de Lenz Buchmann. «O medo é o segredo que a velocidade

esconde»? Talvez. Como saber? Foi rápido, desviou apenas alguns centímetros o cano da

arma, apontou na direção da cabeça de Srª Buchmann, e disparou. (Pg. 241, L. 10).

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ALBERT BUCHMANN, IRMÃO DE LENZ

Ambos extremamente inteligentes e cultos, Lenz e Albert eram estruturalmente diferentes e

basicamente destituídos de qualquer amor fraternal. Albert pendia para o lado da mãe, Lenz

para o do pai.

Entre os dois irmãos havia um irreversível afastamento. Isto é: toda a aproximação era um

ataque e nunca o início de um vulgar aperto de mãos (Pg. 70, L.19).

Nesse pequeno Estado monárquico que era aquela família, Lenz era de longe o mais talhado

para receber a coroa, no momento da sua transmissão. Aliás, Albert nem sequer a desejava

(Pg. 97, L. 1).

O seu irmão Albert era alguém que a natureza rejeitara – da mesma maneira que um mau

aluno é rejeitado de uma instituição humana: os livros do irmão tinham a mesma marca e o

cheiro da sua doença. Eram volumes civilizados, mas frágeis. Eram uma coisa higiénica, um

quarto de alguém doente. (Pg. 126, L. 29).

O irmão de Lenz, tinha o destino traçado por duas manchas negras no cérebro, que lhe

conferiam não mais que um ano de vida.

E que sentia Lenz em relação a isto? À morte anunciada de Albert Buchmann, seu irmão mais

velho? Nada; absolutamente nada. Olhava para aquela radiografia como para uma paisagem.

Virava-lhe as costas da mesma forma (Pg. 50, L. 18).

O PAI DE LENZ

Glacial e imoral; a sua ausência de caráter revelava-se na educação imposta aos dois filhos, da

qual faziam parte os maus tratos… Posso ouvir qualquer acusação sobre vocês; poderão

cometer a maior das imoralidades, poderão ser procurados pela polícia ou pelo próprio diabo:

defenderei os filhos com as armas que tiver. Só sentirei vergonha se um dia alguém me disser

que vocês tiveram medo. Se isso acontecer, escusam de fugir para aqui: encontrarão a porta

fechada (Pg.92, L. 21).

Cobarde; suicida!

Pensou no suicídio do pai e viu-o agora sob um outro ângulo. Ele matara-se, afinal, a tempo de

evitar cair num ponto de tal modo fraco que não pudesse recusar esse último gesto piedoso de

alguém sobre ele (…). (Pg. 142, L. 5).

JULIA LIEGNITZ

Secretária de Lenz, havia entre eles a realidade da morte do pai de Julia – Gustav Liegnitz, às

mãos do pai de Lenz, quando oficial em combate.

(…) rapariga de trato simples, bonita e eficiente (Pg. 140, L. 19).

(…) proteger aquela mulher e toda a família Liegnitz – em especial o irmão, Gustav Liegnitz –

era interferir, da maneira que só a hierarquia superior pode interferir, na existência daqueles

indivíduos (…) Sentia ter a missão de proteger os filhos do soldado que o seu pai Frederich

matara (…). ( Pg.171, L.8).

Julia tornou-se o braço direito do político Lenz Buchmann:

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Foi pois com um orgulho quase paterno que viu, mais tarde, o sorriso de entendimento que a

menina Liegnitz exprimiu no final do primeiro texto político em que inequivocamente mentia, e

que ela própria redigira. (Pg.173, L.1).

Após a operação cirúrgica de Lenz, foi Julia a tomar o controlo da situação: mudou-se com o

irmão para casa do moribundo e, posteriormente, tornou-se sua herdeira.

Julia com as funções aparentes de secretária mas, a cada semana que passava, cada vez mais

transformada numa enfermeira, em alguém que auxilia não a profissão de um corpo, mas o

corpo propriamente dito. Gustav Liegnitz, por seu turno, ocupava-se gradualmente da gestão

da casa e mais especificamente dos pequenos investimentos da família Buchmann, ou do que

restava dela – Lenz, unicamente (Pg.266, L 3).

GUSTAV LIEGNITZ

O filho do soldado morto pelo pai de Lenz Buchmann.

Quando Lenz Buchmann se levantou para cumprimentar o irmão da sua secretária (…) teve

uma reação de uma indelicadeza extrema que felizmente não terá sido percebida em toda a

sua extensão: espontaneamente Buchmann deu uma gargalhada. Gustav Liegnitz era surdo-

mudo, expelia uns mmms informes (…). (Pg. 186, L. 32).

Lenz recorre aos serviços de Gustav, ao sentir a rápida aproximação do final dos seus dias:

O pedido insólito que Lenz Buchmann, nos seus últimos tempos de vida, fez a Gustav Liegnitz

foi aceite por este como sendo, sem dúvida, uma vontade irracional e totalmente absurda, mas

que por partir de um corpo que se degrada a cada dia, não poderia ser recusada. Lenz pedira a

Gustav que espalhasse pela cidade uma frase (…). (Pg. 295, L.1). «Morte a Lenz Buchmann»,

era a frase escrita, pela mão de Gustav, em numerosos e variados locais da cidade.

HAMM KESTNER

O ‘outro’ homem poderoso da cidade, deputado do Partido (talvez o futuro presidente) alma

gémea pensante de Lenz.

Entre os dois homens havia uma fusão total de ideias. Kestner era de uma rudeza extrema: isto

é, não era ingénuo e não fazia jogos de linguagem para fingir ingenuidade. A Lenz Buchmann

agradava este tipo de homens cada vez mais raro. Além disso, os dois haviam bebido por

completo alguns dos argumentos mais violentos que rondavam naqueles tempos o mundo (Pg.

190, L. 15).

Buchmann e Kestner queriam ganhar as eleições (Pg. 246, L. 1).

Os dois tinham encontrado uma nova direção para a campanha, uma direção secreta, claro:

criar um perigo que eles próprios, depois, vencessem. Sem a sensação de um perigo consistente

não havia heróis, e aqueles dois homens não queriam apenas ganhar a autoridade através do

voto (Pg. 245, L. 9).

Lenz Buchmann despediu-se pois do novo presidente do Partido com um abraço forte e

vivamente saudado pela multidão, mas (…) murmurou para a menina Liegnitz: Não vai ficar

neste cargo muito tempo. Vou matá-lo. (Pg. 254, L. 11).

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RAFA, O LOUCO

Habitual louco da cidade, anterior residente do hospício Rosenberg.

Os seus comportamentos físicos eram expressos numa língua posta em causa pelas suas

palavras, e o oposto também sucedia. Não eram apenas duas línguas que estupidamente se

observam uma à outra sem se compreenderem. Eram duas línguas que se anulavam, que se

combatiam, cada qual com os seus meios. (Pg.149, L.7).

(…) o louco Rafa, dois homens que vivem num só corpo (Pg.151, L. 2).

Convidado especial de Lenz, Rafa é submetido ao mesmo contexto que o vagabundo, mas a

reação e o desfecho foram completamente diferentes…

De repente, soou um estrondo. Lenz disparara certeiramente sobre a cabeça do bom louco

Rafa.(…) (Pg. 241, L. 10).

O PEDINTE

Lenz usa a privação de comida do pedinte que o visita ritualmente, para o submeter aos seus

caprichos a troco de comida, ignorando pomposamente o seu veemente pedido para não ser

humilhado.

Mas cante primeiro o hino (…) a comida está a chegar. (Pg. 18, L. 15). O casal está a três

metros do vagabundo, que mal levanta os olhos para eles, temendo olhar.(…) o vagabundo

tem na sua direção as nádegas nuas e ofegantes de Lenz (Pg. 23, L. 13).

Uma provocação espontânea e a principio quase lúdica fora transformada num hábito ( Pg. 51,

L. 1).

A MORIBUNDA

Doente terminal, confia a Lenz a entrega de uma carta aos filhos, afim de se despedir deles;

carta essa que acabou por ficar esquecida, perdida e finalmente rasgada …

São momentos complicados – disse apenas Albert. – Toda a gente se quer despedir.

- Toda a gente tem o direito de se despedir – respondeu Lenz, secamente (Pg.71, L.30).

Para Lenz a carta, aquela carta, ali à sua frente, tornava-se pois intolerável: um sintoma de

fraqueza da humanidade (…) . (Pg.74, L.1).

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SOBRE O AUTOR

Gonçalo M. Tavares nasceu em 1970.

Desde 2001 publicou livros em diferentes géneros literários e está a ser traduzido em

mais de 50 países.

Os seus livros receberam vários prémios em Portugal e no estrangeiro.

Com Aprender a rezar na Era da Técnica recebeu o Prix du Meuilleur Livre Étranger

2010 (França), prémio atribuído antes a Robert Musil, Orhan Pamuk, John Updike,

Philip Roth, Gabriel García Márquez, Salman Rushdie, Elias Canetti, entre outros.

Alguns outros prémios internacionais: Prémio Portugal Telecom 2007 e 2011 (Brasil),

Prémio Internazionale Trieste 2008 (Itália), Prémio Belgrado 2009 (Sérvia), Grand Prix

Littéraire du Web – Culture 2010 (França), Prix Littéraire Européen 2011 (França). Foi

também por diferentes vezes finalista do Prix Médicis e Prix Femina.

Uma Viagem à Índia recebeu, entre outros, o Grande Prémio de Romance e Novela

APE 2011. Foram-lhe ainda atribuídos o Prémio Fundação Inês de Castro, o Prémio

Fernando Namora/Casino Estoril , Prémio Melhor Narrativa Ficcional da SPA e o

Prémio Literário José Saramago.

Os seus livros deram origem, em diferentes países, a peças de teatro, dança, peças

radiofónicas, curtas-metragens e objetos de artes plásticas, dança, vídeos de arte,

ópera, performances, projetos de arquitetura, teses académicas, etc.

https://www.wook.pt/livro/aprender-a-rezar-na-era-da-tecnica-goncalo-m-tavares/16565430

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CRÍTICAS E ENTREVISTAS

Comecemos pelo aspeto mais estranho do livro: o título. O protagonista do livro, Lenz Buchmann nunca aprendeu a rezar nem a técnica é o maior obstáculo a essa falta de fé. Este título é, como tantas outras coisas na escrita de GMT, simbólico. Lenz é um pragmático radical; rezar seria a última coisa que lhe passaria pela cabeça como hipótese para enfrentar qualquer problema; nem mesmo na hora da morte, corroído pelo sofrimento mais atroz. Lenz é um ser humano abominável; para ele, o objetivo mais nobre de qualquer ser humano deve ser o de adquirir poder; ser superior. Lenz Buchmann acredita ser uma espécie de super-homem. Ele é o resultado de uma educação fortemente controladora, em que o pai assume uma imagem poderosíssima que Lenz idolatra e tudo faz para imitar. Curiosamente, o pai idolatrado tem o nome de Friedrich, tal como Nietzche, o filósofo alemão criador da ideia de super-homem – o indivíduo enquanto elemento de superação contínua.

Lenz Buchmann é o abominável anti-herói. Se o título reflete, como um espelho, uma imagem invertida do tema central da obra, o seu personagem principal é também a imagem invertida daquilo que seria um herói. Ele é abominável porque é o fruto da modernidade, num mundo dominado pela conquista do poder. Primeiro como médico-cirurgião e depois como político de sucesso, Lenz faz a síntese do homem ideal na era da técnica – aquele que associadois poderes supremos- o de salvar e o de matar, duas faces da mesma moeda. Como cirurgião, ele é dono e senhor do destino dos seus pacientes; como político ele amplia esse poder; ele controla a vida e o destino de uma sociedade, cujos membros nem se apercebem de como colocam o destino nas mãos de Lenz. Essa inocência do cidadão comum é vista por Lenz como um sinal de fraqueza; só os poderosos, os eleitos, como ele, têm o poder, a capacidade de decidir o destino dos outros. Até que um dia… uma força maior vai destronar o poderoso super-homem! Neste livro, a mensagem, a ideia, são mais importantes que o enredo. O livro é uma oportunidade para GMT explanar uma verdadeira crónica do fracasso do humanismo. Até certo ponto, a estória de Lenz é a crónica deste mundo moderno onde humanismo, solidariedade, sentimento, etc. são apenas manifestações de fraqueza. No entanto, o final do livro é ainda mais perturbador; será que há no destino dos homens uma espécie de força maior que se sobrepõe ao próprio poder supremo do super-homem? Em jeito de conclusão, trata-se de um livro interessante, em que determinadas ideias, se bem que já bastante debatidas, são aqui expostas de forma muito direta, crua, numa estória que se segue com interesse. O formato em pequenos capítulos ajuda o leitor menos paciente a avançar na leitura e a linguagem simples, direta se bem que cuidada fazem deste livro uma proposta interessante para que gosta de livros que aliem forma e conteúdo, enredo de ficção e mensagem filosófica. http://aminhaestante.blogspot.com/2015/08/aprender-rezar-na-era-da-tecnica.html

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APRENDER A REZAR NA ERA DA TÉCNICA Por Luís Mourão, publicado em 23.6.2008 na secção Recensões Críticas Posição no Mundo de Lenz Buchmann. Lisboa: Caminho. 2007. A tetralogia O Reino, que este romance encerra, é um caso sem paralelo na ficção portuguesa de hoje. Não sendo o momento de uma análise de conjunto, retenhamos apenas os elementos que transitam para esta obra, e que de algum a modo a enquadram. Tudo indica estarmos na mesma cidade sem nome e sem localização determinada dos anteriores romances. Contudo, os nomes alemães das personagens e a referência lateral mas precisa aos campos de concentração (em Jerusalém), e a uma cidade ocupada e à guerra em curso (em Um Homem: Klaus Klump), subentendem o período da segunda guerra mundial e um país próximo da cultura germânica. Este espaço-tempo difuso subtrai a tetralogia aos avatares do romance histórico, sem deixar de o enquadrar no cerne de um dos traumas maiores do século XX europeu. A cena está montada de molde a que a dimensão reflexiva sobressaia e se torne a matéria primordial destes romances, se bem que sempre apoiada num enredo ficcional que, olhado nos seus mecanismos estritos, é de grande economia, eficácia e até classicismo. Em Aprender a rezar na era da técnica dir-se-ia que estas características se radicalizam: uma escrita despojada, o pensamento predominando ainda mais sobre a história e arrastando-a nos seus lances principais, e uma personagem, Lenz Buchmann, que é o não-herói mais conseguido da galeria de personagens do autor. Mas talvez o primeiro sinal da radicalidade deste romance dentro da tetralogia que o acolhe esteja desde logo no estranho título que ostenta. Certo que o romance anterior, Jerusalém, também a partir do título e, sobretudo, por um final denso de ambiguidade, colocara já a questão religiosa. Batendo à porta de uma igreja fechada e pedindo permissão para entrar, ao mesmo tempo que se acusava de um crime que não cometera e que em si mesmo fora um acidente, a personagem feminina parecia convocar esse complexo desejo de expiação salvadora que caracteriza grande parte da religiosidade ocidental. Mas a forma como inverte o sentido e o propósito do salmo de onde se retira o título — se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que seque a minha mão direita —, fazendo dele princípio de não-perdão relativamente ao mal de que fora vítima no passado, recoloca a cena religiosa como arena de combate e violência, de que Jerusalém, enquanto cidade dividida pelo conflito de três monoteísmos, bem pode ser o símbolo. Seja como for, esse conflito, de alguma forma intra-religioso porque lidando sobretudo com a responsabilidade e a culpa, é aqui deslocado para uma dimensão mais civilizacional: do que se trata agora é de escavar, nas suas várias direcções possíveis, o que advém aos sujeitos quando a sua posição no mundo tem de ser recortada num tempo a que chamamos «era da técnica». Lenz Buchmann é o homo faber da era da técnica, quer dizer, daquela época em que o fazer não é já a história de como um corpo humano se vai separando da natureza, fazendo-a em parte para si, mas a plena história de um cérebro que se auto-reconhece como tendo a «forma e a função de uma arma» (p. 22), com a qual aquele «ponto de ruptura» (p. 42) que acontecera entre homem e natureza se torna irreversível.

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Buchmann está tão consciente desta ruptura e das suas consequências relativamente ao que é a força e o suposto destino de domínio reservado a alguns humanos, que só pode ter um profundo desprezo pelo humanismo. De facto, a ideia de harmonia entre natureza e humano, mesmo segundo a primazia deste, e de reconhecimento mútuo entre humanos, escamoteia, para Buchmann, a luta entre humanos e natureza, entendida enquanto doença e morte, e entre humanos fortes e humanos fracos. É por isso que Buchmann é, primeiro, médico, e depois político. Mas é ambas as coisas de um modo rigorosamente não-humanista. Como médico, e cirurgião, apenas a competência o motiva. Que alguns doentes agradecidos possam pensar que é a bondade que guia os seus gestos só o pode irritar (p. 32), porque isso é precisamente não perceber quanto o seu corpo e as suas mãos são uma performance que nada deve à moral mas apenas a um domínio técnico que triunfa da natureza. Triunfa não em direcção a nada de superior, mas apenas à continuação da sobrevivência e da afirmação desses mesmos que triunfam. É por isso que Buchmann passa do exercício da medicina para a política: para que a sua afirmação não se faça sobre um de cada vez, mas sobre inúmeros simultaneamente. Que esse inúmero ele o pense enquanto corpo esperando o seu bisturi re-ordenador, como antes pensava o corpo doente como Cidade minada na sua racionalidade material, é não apenas um conseguimento ficcional de cruzamento de metáforas e sua literalização paródico-grotesca, mas também o colocar do político numa espécie de patamar de totalitarismo sem causa totalitária. Buchmann quer o poder, sabe como manobrar junto dos poderosos para o conseguir, sabe como convencer os fracos a dar-lho, mas a auto-afirmação que aí procura não visa qualquer compensação psicológica, é uma auto-afirmação humanamente imotivada, ou seja, segue apenas o preceito de sobreviver no mais alto patamar do domínio: questão de técnica com a qual o humano adquiriria uma natureza de outra ordem, agora absolutamente racional, a seu modo maquínica (e daí que a única coisa que repugne a Buchmann seja a perda de controlo, a começar pelo auto-controlo que lhe falha na excitação e no sexo, em que é ele o agido e não o faber, p. 194). Como não-herói por excelência, Buchmann é aquela personagem capaz de extrair as mais extremas e impessoais consequências lógicas de um momento civilizacional, sendo ao mesmo tempo a sua encarnação e o seu fantoche. Todo o processo da doença, decadência e morte de Buchmann dá-o precisamente como fantoche da era da técnica. Uma simples frase assinala-o: «o cancro tinha-o a ele — o poderoso Lenz estava transformado num objecto» (p. 273). É a era da técnica, com a sua possibilidade de diagnóstico pormenorizado e de combate em múltiplas frentes, que impõe ao humano a possibilidade de um longo e exaustivo tempo de perda de controle. É também a era da técnica — como qualquer outra, aliás — que cria os avatares com os quais substitui as formas de evasão no imponderável das eras anteriores. No momento da morte, e numa cena que mereceria um longo comentário, a televisão está no lugar de deus: «Estava, pois, só: Lenz Buchmann, deixado para trás, sozinho, com os seus olhos. A luz, essa, não parava de o chamar. Queria sentir ódio, mas não conseguia. Ela tranquilizava e chamava-o. Depois talvez tenha existido uma pausa e de novo da televisão veio uma luz forte que o chamou pelo nome. E agora ele foi; deixou-se ir.» (p. 375.)

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Sublinharia apenas que Lenz Buchmann morre em presença daquele dispositivo que bem pode servir para marcar precisamente o fim da era da técnica tal como a modernidade a entende. A televisão, isto é, o comunicacional, é já uma outra era, como seriam bem outras as reflexões de Buchmann, o seu ethos de não-herói, se a mediação para o poder tivesse de ser percorrida segundo o império da imagem. Talvez que aprender a rezar, na dimensão disfórica que parece comportar neste romance, seja esse olhar misto de impotência e de consentido não-domínio que alguém lança para a época que lhe advirá, como que chamando bondade àquilo que outros, tão análogos a si, virão a caracterizar rigorosamente como competência técnica.

http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/news?i=16 https://www.youtube.com/watch?v=41m3TF9BDmI Pensemos numa célula, na membrana, no núcleo. Pensemos num mundo onde os caminhos se fazem a pé, o perímetro é desafiado, o âmago procurado. Uma célula é uma célula é uma célula. Individuada, porosa, em relação com outras células, com outros sujeitos, com outras palavras. Um escritor como Gonçalo M. Tavares é um mundo que nos interroga no coração do que importa. Parece possível, na sua escrita, chegar à célula unitária e recomeçar, a partir dela, a compreender o mundo, a não saber nada, a ter vontade de continuar à procura, a ter vislumbres do que as coisas são. Do que é, por exemplo, a felicidade. Foi em coisas assim que pensei quando falei com ele, numa tarde de Outono, no Folio, o festival literário de Óbidos. Interroguei-me sobre o epicentro, os seus epicentros, as palavras fundadoras. E sobre o papel da alegria no ofício de viver. (Este texto é, então, uma adaptação dessa conversa perante a plateia.) Num livro antigo, Investigações Geométricas: “Depressão, (dia seguinte). Mas afinal há ainda possibilidades (um novo dia)”. Outra entrada: “Realidade, imaginação, método para não ficar louco: abrir a tinta das coisas.” Outra ainda: “Ao medo podemos chamar possibilidade de perder a forma”. Medo, imaginação, novo: estas são as suas palavras-âmago? Há palavras com um tom meio saltitante. Torcicologologista é um exemplo. E há palavras muito mais pesadas. Ando muito entre palavras que me puxam para baixo, que me obrigam a escavar, e palavras que são como helicópteros, que puxam para cima. Tenho livros por todos os compartimentos, como toda a gente. Recentemente estava a ler um livro sobre o Holocausto. Devo tê-lo pousado numa secretária que tenho no quarto. Nessa noite, estava a adormecer e havia ali um incómodo qualquer. Parece uma coisa de filme, mas era como um som que não deixa dormir. Simbolicamente encontrei naquele livro [a razão do incómodo]. Abri a porta do quarto, pus o livro fora,

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como se põe um animal que entrou e não devia ter entrado. Fechei a porta, consegui dormir. O que se lê antes de dormir interfere connosco... Durante muito tempo lia livros muito duros, ou livros de Filosofia, e era muito difícil adormecer. Ultimamente, li Cebolinha e Mónica. Se queremos que as palavras nos embalem, para podermos adormecer, há palavras que servem para isso. E há palavras que nos acordam, que constantemente nos acordam, mesmo que tenhamos muito sono. Movimento, dança: são palavras que o içam? São palavras que o põem num plano de leveza, ao contrário de medo ou ameaça, que são as tais palavras-chumbo? Era interessante que as palavras tivessem um peso. Se calhar têm. Pôr na balança, as palavras... A palavra Paris não tem o mesmo peso para uma pessoa que se apaixonou em Paris ou para uma que partiu a perna em Paris. Mas da palavra movimento gosto muito. Há vários tipos de movimento. A Organização Mundial de Saúde, que é muito revolucionária, tem uma definição de saúde muito bonita: “A saúde é o bem-estar físico, mental e social”. É uma definição que ainda hoje não é aplicada. Estamos quase só na saúde física. Temos uma espécie de fobia da ideia do sedentário físico. E quando as pessoas falam de querer saúde falam sempre no que vão comer, se vão correr de manhã, ou não. E a OMS está a dizer que há três tipos de sedentarismo. Uma pessoa pode ser sedentário físico, sedentário mental, sedentário social. Como assim? Se alguém não lê um livro, não tem curiosidade, tem uma imobilidade mental. Não é saudável. Se alguém durante muito tempo não conhece pessoas novas, é um sedentário social. Nesse sentido, o movimento é o inimigo deste sedentário. Associo sempre o movimento físico, mental, social: são uma manifestação pelo verbo da vida e da saúde. Gostava de derivar de movimento para fuga, procura. No sentido de busca, demanda, itinerários, estar perdido. É uma coisa constante nos seus livros, alguém que está em fuga. Alguém que busca qualquer coisa (um sentido, a resolução de um enigma). A busca para corrigir o que está em desequilíbrio. É uma expressão de um filósofo de que gosto muito: a pessoa aprender enquanto está a fugir. Usar a fuga como meio de aprendizagem. Normalmente associa-se a fuga ao querer afastar-se o mais rápido possível de um inimigo. Enquanto seres vivos, estamos em fuga. Os gregos eram muito sensatos, falavam dos deuses e dos mortais. Nós somos os mortais. Os mortais: aqueles que vão morrer. Isto é tão forte, tão terrível... Mas agimos como imortais, claramente. Defensivamente vivemos na ilusão de que há para nós o instante seguinte, de que há sempre o instante seguinte.

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A pessoa perceber que é mortal é perceber que estar vivo é estar em fuga disso – da morte. E estar em fuga não é uma fuga desesperada, é uma fuga consciente. Se a pessoa perceber que é realmente mortal começa a dar um peso diferente às decisões. Tenho amigos que vivem como deuses. Ou seja? Nada tem peso. Podem ver um filme mau, sabem que é mau, como se fossem imortais, como se tivessem tempo. Quando se é mortal cada decisão tem um peso, e esse peso não deprime, alegra. É o peso de eu decidir e de aquela escolha ser a de alguém que sabe que vai morrer. Todas as manhãs devíamos dizer: aquele que vai morrer, hoje vai trabalhar. Aquele que vai morrer, hoje vai a Óbidos falar. Aquele que vai morrer por enquanto pode ir a Óbidos falar. Aquele que vai morrer tem a possibilidade de comer um pastel de nata. Se, pelo contrário, colocarmos isto tudo na imortalidade, nada tem importância. A palavra urgência adquire então um peso diferente: temos a urgência de fazer coisas porque somos conscientes da nossa mortalidade, da finitude do tempo, e isso é vivido com alegria. Sublinho esta palavra – alegria – tão preciosa. De certa maneira, caiu em desuso neste século, onde a aposta é no sucesso, na isenção da falha. A felicidade quase se transformou num conceito abstracto. No antigo Egipto, uma das perguntas que faziam depois de as pessoas morrerem, era: “Alguma vez tiraste o sorriso de uma criança?”. Era uma das perguntas que tinham peso. Alguém que dissesse: “Sim, por três vezes tirei o sorriso de uma criança”, tinha um peso negativo. O julgamento final é de quanta alegria se introduziu no mundo, de quanta alegria se tirou do mundo. O Robert Walser tem uma pergunta muito terrível, que parece muito banal: “As pessoas que vivem contigo são felizes?”. É uma pergunta decisiva. Se a esta pergunta a resposta não é um sim inequívoco, há alguma coisa que está a cair. É forçado dizer que as pessoas que nos seus livros estão perdidas (perdidas no seu século, perdidas dos seus progenitores, de si mesmas) procuram a felicidade? Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai é sobre uma menina com Síndrome de Down. E por falar em alegria, tenho tido oportunidade de me cruzar com muitos meninos com Trissomia 21. Dou mestrado em Reabilitação Psicomotora, dou aulas a futuros professores de crianças com deficiência física, mental. Cada pessoa com Trissomia 21 é muito diferente. Há meninos muito malandros e maus (felizmente, é uma maneira de se defenderem). Mas há uma coisa base que é a alegria. Nesse livro, a personagem central vai com a menina tentar encontrar o pai por várias cidades, e a menina é uma espécie de salvo-conduto. A certa altura ele chama-lhe um Moisés que separa as águas. Tudo se afasta, há uma aura [que ela tem]. Hoje, pela clonagem, um conjunto de técnicas que às vezes diabolizamos mas que têm coisas muito boas, começa a ser possível eliminar algumas doenças. A escolha de ter filho ou filha é banal nos Estados Unidos. Já se pode escolher a cor dos olhos. Mas

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tirando essas questões estéticas, há doenças. Uma das discussões que existem é se estamos à beira de eliminar a possibilidade de existir Trissomia 21. A maior parte dos cientistas diz que não devemos eliminar esta hipótese. Porquê? Podemos dizer que a pessoa não tem consciência, mas se forem bem protegidos, muitas vezes têm uma vida muito alegre. Mostra como somos invulgares enquanto espécie humana. Não faz sentido julgarmos que aquela alegria, por não ser consciente, é pior do que a nossa. Damos um peso muito grande à questão de a pessoa ter lucidez, consciência. O essencial não é isso, é a alegria. A alegria que a pessoa tem e a alegria que a pessoa consegue transmitir. Falando do Alzheimer. Tenho um colega, a mãe tem um mundo de absoluta fantasia. Um mundo que não existe. Um conjunto de imagens consecutivas que não existem. Tem a sensação de que o marido ainda está vivo. Está muito claro que ela vive num estado de alegria inconsciente. Qual é o sentido de agarrar nesta senhora e dizer: “O seu marido não está vivo”? Entre a lucidez e a alegria, não há dúvidas: a alegria é muito mais importante. Como é que ficou tão difícil uma coisa essencial – a alegria? N’ O Torcicologogista tenho duas personagens, uma que acorda a dizer sim, e uma outra que a primeira palavra que diz é não. Há por vezes tanta tensão na cidade que estamos a ser transformados em máquinas que acordam a dizer não. Quererem obrigar-nos a ser uma espécie que acorda a dizer não é das maiores violências que existem. Como é que acordamos radiantes? Não é habitual, infelizmente. Há um verso de Alexandre O’Neil (que por acaso traz para o seu último livro, num outro verso), e que agora me ocorreu. Fala do modo funcionário de viver. É nesse que vivemos, peça de uma engrenagem, árida, movimento acelerado, com grande dificuldade em parar, escutar, ver. A ideia de máquina e de processo é outra constante no seu universo. Escrevi um texto sobre a avaria. Todos estamos fascinados com a electricidade, e a electricidade é o símbolo desta velocidade. Só há momentos de paragem súbita quando há uma avaria. Quando se está em casa e a electricidade vai abaixo, há uns que estão no computador, outros na televisão, e a primeira reacção é: “Que desgraça!, o que é que nos foi acontecer?”. Com o tempo, se a avaria por felicidade se prolongar, as pessoas começam a relaxar e há qualquer coisa que aparece, que é imprevisível – é outro tempo. A electricidade ilumina. Inicialmente era a possibilidade de nos vermos uns aos outros. Quando a electricidade é transformada num meio técnico que faz com que a minha presença corporal seja apenas simbólica… Se estou ao lado de uma pessoa, a dois metros, e estou na Internet, o meu corpo simbolicamente está aqui. A electricidade transforma o nosso corpo num traço abstracto que está simbolicamente ao lado, mas na realidade estamos noutro lado.

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A nossa atenção está fora de nós, fora do nosso corpo. É, é a questão da atenção: a nossa atenção está onde estamos. O que é terrível no canto da sereia da electricidade, das comunicações, é que o sítio onde está a nossa atenção e o sítio onde está o nosso corpo é raro coincidirem. De vez em quando o nosso corpo encontra-se com a nossa atenção e diz: “Bem, há tanto tempo que não te via”. É uma fragmentação da vida muito violenta. Lá atrás falávamos de avaria... Quando as coisas avariam , quando já não posso telefonar, mandar mensagens, fico numa rua sem saída. De repente tenho o corpo e a atenção sincronizados. Quando vários corpos e várias atenções estão sincronizadas cria-se qualquer coisa muito animal e muito humana ao mesmo tempo. Estamos aqui e a nossa atenção está aqui. E há duas pessoas que têm o seu corpo e a sua atenção num mesmo espaço. Isso é qualquer coisa de invulgar, hoje. A avaria é uma possibilidade de alegria, de voltar à alegria animalesca e humana que tínhamos. Há uma coisa que acontece ao corpo e que não acontece na electricidade, ou na velocidade: a cicatriz. No seu livro Investigações Geométricas lê-se: “Não há formas novas. É impossível começar. Mas a única hipótese é voltar a começar.” Isto põe-nos no passo seguinte, aquele que sucede à cicatriz. Se pensarmos na história do século XX, percebemos que as nossas cicatrizes são quase ar. O homem é capaz de resistir a coisas impressionantes. Há casos de pessoas que estiveram em Auschwitz, que saíram e que tiveram filhos, constituíram família. Esta ideia de reconstrução, de começo novo está no centro do ser humano. Quando alguém consegue reconstruir a partir do momento em que a sua família foi exterminada, do momento em que viu coisas horríveis, e consegue ter filhos, a partir daí qualquer cicatriz é menor. Como é que não desabamos depois do extermínio, depois do fim das utopias, depois da decepção? De onde vem esse ímpeto, essa coisa vital que nos faz acreditar na nova forma do dia seguinte, ter filhos, fazer vida? A linha do horizonte é muito bonita. É uma linha ficcional, privada. Parece que é mesmo uma linha que o mundo está a traçar, e aquilo não existe. Esta capacidade óptica de vermos a linha do horizonte, alimenta-nos. Temos uma espécie de miragem, sempre. Não vemos só o muito perto, somos um animal de projecto, de linha do horizonte. O que é terrível é quando as pessoas crescem num ambiente onde levantar a cabeça é qualquer coisa de castigável. O movimento do esternocleidomastoideo, que levanta a cabeça, e que não está só circunscrito àquele corpo e àquele momento, e consegue ver o dia seguinte, é um movimento de qualquer tragédia. Durante muito tempo andei com uma frase da Clarice Lispector, do Perto do Coração Selvagem: “De qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”. Depois de qualquer conflito ou tragédia, ou depois de qualquer tédio, que às vezes é o mais difícil, levantar como um cavalo novo...

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A imagem que me ocorre para esse cavalo novo é a de um movimento que atravessa o vento, sem medo. Tem muito de pureza, de força inaugural. Uma coisa muito chocante para mim em termos da espécie humana é perceber a forma como somos indefesos. Se compararmos o homem com os outros animais, é impressionante a fragilidade. O homem é de longe o animal que nasce mais inábil, mais tonto. Um bebé recém-nascido não percebe nada. Se a consciência fosse essencial havia aqui uma coisa claramente errada. O que marca a espécie humana é que se não tivéssemos um cuidador, já tínhamos desaparecido. Existimos porque temos um instinto amoroso, que é inexplicável. Um instinto que nos faz cuidar do indefeso. É este gesto amoroso que funda o humano. O que é incrível é a fragilidade dos bebés. Um espectáculo de terror é ver um insecto que foi virado de costas para o chão, a mexer as patas, a tentar virar-se e a não conseguir. Quando crianças, por vezes, perversamente, púnhamos os insectos de costas para o chão. E depois, a brincarmos aos deuses, lá os virávamos de novo. Um bebé, até aos três, quatro meses, se se colocar de costas, não se consegue virar. Tal como o insecto, precisa de um toque de alguém, de um dedo. Um bebé precisa de alguém para se pôr na posição certa em relação ao chão. Somos na relação com outros, carentes do contacto com outros. O gesto é criador. O ódio é secundário, este gesto é que funda o humano. Individualmente somos isto, nascemos isto, somos este insecto. É extraordinário como é que há sempre pessoas para nos darem esse pequeno toque, para nos virarem. Tenho um fascínio por este toque. Quantas vezes não são os pais os cuidadores, os que dão o toque, são outros. Ouço-o falar desse insecto e lembro-me de o ver num filme de Marco Martins. Estava a escrever e atacava o computador como um animal. Era um gesto muito feroz e ao mesmo tempo voraz. Pensei que podia ser alguém que come com sofreguidão, mas também podia ser alguém que vomita. De qualquer modo trata-se de um movimento físico que remete para a condição animal. Sou amigo do Marco Martins e concordei com isso que é um bocado estranho, filmarem-me a escrever. A certa altura esqueci-me de que ele estava. Quando escrevo é uma coisa puramente física. Nos dias em que as coisas correm bem, começo a escrever e estou três, quatro horas assim. Sem fazer uma pausa, sem comer, sem beber. É mesmo seguido. Às vezes paro meio a tremer, com fome. A escrita é muito animalesca. Animalesca como?

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Deixo de ser consciente do que estou a escrever e começa qualquer coisa que tem a ver com o movimento. Como escrevo ao computador e não corrijo logo, consigo ver perfeitamente a velocidade a que escrevo pelas letras fora do lugar. Num dia meio alucinado em que escrevo 20 páginas, as primeiras páginas são escritas de forma lenta. As letras estão quase todas no seu sítio. Mas a certa altura começo a acelerar, a acelerar! Há páginas que são escritas a dez quilómetros hora, outras a 100. O mais fascinante é perceber que as páginas que escrevo a 150 quilómetros por hora são muito mais fortes do que as outras. E estão muito mais próximas do final, de estarem terminadas. Escreve sempre num jacto? Há uma imagem no pensamento e depois escrevo. Mas, quando começa a acelerar, o que tento é fazer coincidir o momento de escrita com o momento em que estou a pensar. Agrada-me muito. É perder a consciência, é perder a lucidez. Quando sou muito consciente, estou a fazer qualquer coisa que já conheço. É uma coisa mesmo física. A mesa, o computador, o corpo é quase uma bola. Como se fosse um animal híbrido que começa nos sapatos, passa pela cabeça, pelo teclado, mesa, chão, pés. Um animal híbrido que é uma esfera. Não há alegria comparável, não há nada do exterior (tirando a parte pessoal) que me dê maior alegria. Isto é próximo do sonho? E quando se lê a posteriori, quando lê essas páginas que se fazem no momento em que se fazem, que não estão pré-configuradas, como é que é esse encontro? Compreende tudo o que ali está? Decifra? A escrita para mim tem este momento de alegria, de excitação física. Depois é um olhar mais frio, mais técnico, nada entusiasmante. Muitas vezes não consigo decifrar, as letras estão de tal forma fora do lugar que não percebo o que queria escrever. Mas gosto que a velocidade me impeça de perceber o que fiz. Acontece muitas vezes que por um acaso carrego na tecla que põe maiúsculas; é como se fosse alguma coisa intencional, do próprio texto. Há um crocodilo que aparece no Torcicologologista, há uma frase que é lida quando a pessoa acorda... Tem falado de animais, temos falado de um plano cujas coordenadas não são exactas. Essa escrita violenta e rápida tem associações que não dominamos, associações imprevistas. Pode-se aproximar do sonho. A escrita não é um trabalho intelectual, é um trabalho físico. Escrever é um verbo físico. Saltar, andar, escrever. Não ponho o verbo escrever próximo do verbo pensar, ponho próximo do verbo andar. Só quando olho mais tarde é que talvez seja um processo mais pensado. E as fundações deste processo físico, deste verbo escrever? Só começou a publicar aos 31 anos, e tinha escrito já muito, muito. Uma vez disse-me que esses foram anos de fundação. Quando estava pronto, começou a edificar para fora e começou a ser visível o trabalhado no subterrâneo.

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Sobre a fundação. O meu pai é engenheiro. As obras começavam por abrir um buraco. E passados três meses o que havia era um buraco. Depois começavam as fundações. E só passados quatro ou cinco meses é que a casa ia crescendo – de baixo. Começava no piso 0, depois começava a subir. Isto marcou-me muito, a casa pousar e fundar. Fundar tem a ver com fundo, tem que se abrir um buraco, pôr lá alicerces, e depois começar a crescer. Pousar é a coisa mais frágil do mundo. Se quiséssemos fundar esta garrafa tínhamos que começar a escavar. Se quiséssemos que esta garrafa diante de um toque não caísse, a única hipótese era trabalharmos muito no que não é visível. Escavar, criar uma protecção que não é visível. Sinto que estou a começar. A começar? Há um desfasamento entre o momento em que se publica e o momento em que eu faço. A sensação é a de existirem duas vidas, uma vida exterior, a que se torna pública; e uma vida interior, que é estar noutro tempo. É como se existissem 15 anos, dez anos de interior que ainda não é público. Isso dá-me uma tranquilidade em relação ao exterior, defende-me. E tem a ver com esse tempo de fundações. Onde é que aprendeu? Um verso da Antígona: “O homem nada sabe até queimar os pés no fogo ardente”. Os livros são fogo ardente, também? É preciso deixar de ler para começar a escrever? A leitura e a escrita não podem ser vistas como inimigas, senão a escrita transformava-se num intervalo da leitura, ou vice-versa. A leitura, o cinema constroem imagens que misturadas com milhares de outras imagens vão produzir qualquer coisa. A ideia da leitura como inimiga da escrita, ou como qualquer coisa que tem que ser interrompida quando se escreve... não me parece. Se a pessoa estiver obcecada por um autor, se só ler esse autor, pode haver qualquer coisa que o marque excessivamente. Sobre a curiosidade, o Deleuze tem uma coisa muito bonita. Diz que há duas forças. Normalmente associamos o poder a emitir, a ter força para influenciar os outros. Mas o Deleuze diz que há dois tipos de poder, o poder de influenciar os outros e o poder de ser influenciado. É tão fraco aquele que não consegue marcar os outros como fraco é aquele que não consegue ser marcado pelos outros. Porque é que é uma fraqueza não ser marcado pelos outros? Porque isso é a pessoa ter medo de si própria, pensar que não tem uma autonomia, uma força suficiente para resistir aos outros. A uma leitura, um filme. Só podemos marcar os outros se tivermos disponibilidade auditiva, visual para ser marcados pelos outros. Isto é uma grande manifestação de força. A pessoa sentir-se tão forte que pode estar na posição de ouvir. Uma coisa que caracteriza a adolescência, quer os adolescentes tenham 15 anos, quer tenham 40, é a necessidade de num grupo se imporem. As pessoas fortes são pessoas que raramente falam, que ouvem. Essa disponibilidade para receber é uma força.

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Entre o interior e o exterior, entre o que foi escritor e o escritor publicado, há um mundo. Ao mesmo tempo, parece que tudo foi já feito. O que é que ainda se pode escrever de novo? A questão é sempre qual é o ponto de vista em relação ao tema. Quantos beijos existem? O beijo é a coisa mais vulgar, já vimos milhares de beijos. Se virmos aquela cena do Tarkovsky, vemos que ali não é o beijo que é novo, é o ponto de vista em relação ao beijo. É considerado um dos beijos mais bonitos da história do cinema, e está na Infância de Ivan. Alguém que tem a ilusão de pôr um tema novo… Há uma série de teóricos russos que analisam as fábulas, analisam as histórias clássicas, e mostram como estão ali todas as relações possíveis. Os gregos fizeram todas as relações possíveis. Sobra-nos um ponto de vista. Falámos já do Marco Martins e agora do Tarkovsky. De que forma o cinema se relaciona com o seu trabalho? Os livros são todos muito distintos. Há livros mais visuais. Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do seu Pai, é muito visual. Há outros que são muito de reflexão, que é o inverso do visual. O Short Movies é apenas uma forma de descrever aquilo que vemos fisicamente. Se não entrarmos na psicologia e só descrevermos os gestos, podemos chegar a qualquer coisa de muito profundo. Houve uma altura em que em Lisboa fizeram um conjunto de cerimónias ligadas ao Oriente, e um amigo levou-me a um ritual japonês do chá. A primeira coisa que fizeram foi dar uma malga pesadíssima, logo que entrámos. Precisávamos das duas mãos para a agarrar. Logo a seguir o mestre encheu-a com chá a ferver até ao topo. (Vínhamos a falar, a gozar, aquela arrogância dos 20 anos ocidentais. E em menos de um minuto estamos todos calados. E ninguém pediu silêncio. E todos imóveis. Qualquer movimento e queimávamo-nos. Se disséssemos uma palavra também nos queimávamos. Mesmo em termos de pensamento, não havia hipótese de pensarmos noutra coisa senão na malga com chá a ferver.) Depois o chá foi arrefecendo, bebemos o chá e o mestre despediu-se. Não disse uma palavra. Foi a experiência mais espiritual que tive, e foi puramente de opção material. O que é que aprendeu? Ensinou-me muito sobre como é que chegamos ao centro. Muitas vezes chegamos por um caminho que parece um caminho oposto. Pensou ser jogador de futebol. Ainda tem prazer em jogar? Não tenho há décadas o prazer de jogar futebol. O prazer do jogo é muito interessante. É inútil. Há uns anos levei aos meus alunos patinhos para eles pintarem.

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Alunos universitários. A certa altura começam a discutir o marcador verde, o vermelho. Começam a lutar entre eles enquanto ilustravam os patinhos. O jogo tem este fascínio pelo inútil. Triste é irmos abandonado o jogo, qualquer que ele seja. O jogo tem um prazer que não é diferido. A pessoa não joga para mais tarde ter qualquer coisa. É quase o inverso da lógica económica que existe. É ter como centro o prazer e não a vantagem económica. Isso é revolucionário. Hoje, se quisermos fazer micro revoluções, é fazermos um jogo. Explique melhor porque é um acto revolucionário fazer qualquer coisa inútil. Quase sempre estamos a fazer o contrário. O prazer foi colocado no dia seguinte. E as crianças têm isso muito claro: o jogo é central para as crianças porque para elas o prazer é para ser agora. Há uma fase a partir da qual pensamos: “Vou fazer isto para ter prazer mais tarde. E mais tarde faço isto para ter prazer mais tarde”. Uma espécie de adiamento de prazer que é interrompido por uma coisa chamada morte. A maior parte das pessoas, quando estão a morrer estão a dizer: “Agora que eu ia começar é que estão a interromper.” O jogo é a questão do presente. Escrever, a literatura, os seus livros são uma forma de construir utopias? Não vejo que a literatura tenha por função construir utopias ou distopias. O que me interessa é perceber pequenos gestos. A criação deve contribuir para uma alegria lúcida. Mas a lucidez não é pintar tudo de amarelo. A lucidez muitas vezes é ver o lado escondido do humano. Há uma parte de indiferença em relação ao outro ser humano que temos que assumir, isso não tem mal nenhum. O que funda a espécie humana, por um lado, é aquele gesto amoroso, o da bondade; por outro, é uma coisa muito terrível. Se formos lúcidos temos que dizer: “Prefiro que morras primeiro que eu”. Sobrevivemos porque temos este instinto. E este instinto é o da maldade. Felizmente não somos expostos ao limite de ter que matar o outro para sobreviver, mas em pequenas escalas é isso que vamos fazendo. Uma situação limite como o suicídio, é inexplicável. Somos feitos para querer viver, no limite eliminando, se for preciso, o outro. Gostava de terminar com uma passagem d’O Torcicologologista, Excelência. “Mas o que se exige é mudar a ordem das letras, a combinação das letras. A forma como as letras ao lado umas das outras formam palavras. No fundo queremos uma nova combinação entre palavras. As revoluções seguem assim a metodologia que alguns poetas aconselhavam, promover uma nova combinação de palavras. Encontros raros entre palavras era uma das definições de poesia.” O Rimbaud definia a poesia como um encontro raro entre palavras. Um encontro imprevisto entre duas palavras. O átomo da literatura não é uma palavra, são duas palavras. Na Clarice Lispector é muitas vezes essa associação improvável que eleva a frase, como se a frase ganhasse altitude a partir apenas de um conto entre duas palavras. A literatura é combater o lugar comum, a associação previsível. Eleger palavras é perigoso, mas a primeira função do escritor é partir as palavras. Individualizá-las.

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Os lugares-comuns. Mar de gente: é bonito. Era tanta gente que era um mar. Mas a certa altura transforma-se num casamento eterno. O trabalho de um escritor é separar mar, separar gente, pô-los em circulação e pô-los disponíveis para fertilizarem com qualquer outra palavra. Esta disponibilidade amorosa das palavras dá o tom da escrita. Fala de palavras como se falasse de pessoas. É pensar que as palavras estão amorosamente disponíveis ou de costas voltadas para outras palavras, como as pessoas. Muito do nosso entendimento quando falamos entre nós é construído por acasalamento de palavras que estão ali muito unidas. Às vezes pensamos que essas palavras são uma única. Mar de gente devia ser escrito com hífen no meio. Esse é que é o inimigo da linguagem, as novas palavras criadas por associações velhas. Pormos em circulação essa disponibilidade afectiva é um bom ofício. Publicado originalmente na revista Ler em Dezembro de 2015 https://anabelamotaribeiro.pt/goncalo-m-tavares-224203 Entrevista a Gonçalo M. Tavares: "Ser humano é a nossa mão tremer” O escritor fala da velocidade que nos domina, da eficácia que nos faz funcionar até no amor, da morte como presença central na sua vida, do que aprendeu com as pessoas com trissomia 21, da liberdade e de como gosta de parar diante de uma frase e sobrevoá-la como se fosse um helicóptero Aos 48 anos é um dos mais prolíficos escritores portugueses. Começou a publicar aos 31 anos, e desde então já tem 40 livros editados. O último, “Na América, disse Jonathan” (Relógio D’Água), resultou de uma viagem aos Estados Unidos mas não é um livro de viagens. Como todas as outras obras de Gonçalo M. Tavares, “Na América...” tem um género híbrido, ainda que ele insista em atribuir a cada livro uma geografia própria, colocando as suas obras em grupos específicos (reino, bairro, mitologias). Pontos de um mapa que está a construir e de uma escrita que não tem outro critério que não seja “o da liberdade, o da vontade, o da necessidade”. Aos quatro anos deixou Luanda, onde nasceu, e veio para Portugal. Tem memórias de Angola? Não. Mas acredito que há memórias que não são racionais. Há a história dos cheiros. Tenho amigos que vieram com a mesma idade e que dizem que o regresso a Angola foi comovente. O meu organismo começa a ter alguma vontade política de regressar. Começo a ter esperança de que Angola se torne um país sensato e entusiasmante. Pensa lá ir?

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Estou a preparar-me para esse regresso, como alguém que vai conhecer um familiar, de quem se afastou, ou por quem foi abandonado ou abandonou, quando era criança. Existe um certo receio. Acabou de chegar da Índia, onde esteve pela primeira vez. No livro “Uma Viagem à Índia” escreve: “Não se chega à Índia, na Índia caminha-se”. Como foi esta viagem? Para o bem e para o mal, as viagens começam antes de se chegar ao destino. Antigamente uma marcha acontecia a um ritmo muito lento, o de um barco ou de um animal. Hoje, na linha reta que traçamos entre a partida e a chegada, o meio desaparece, embora ainda existam viagens muito lentas, e por isso mais atentas ao percurso. O destino é agora o sítio onde se começa, não o sítio aonde se chega. Na viagem de avião entramos num túnel e do outro lado temos outro mundo. Durante 10 horas, ficamos numa espécie de sono, e de repente acontece uma aparição. Isso é mágico, interessante. Quando viajávamos organicamente podíamos ir vendo pequenas mudanças no nosso corpo. O corpo ia-se preparando para a grande aparição. O percurso da viagem era muito humano. A partir do momento em que se chega à Índia alguma coisa de invulgar começa. https://vidaextra.expresso.pt/artes/2019-04-07-Entrevista-a-Goncalo-M.-Tavares-Ser-humano-e-a-nossa-mao-tremer O tom é bíblico ou mitológico, uma fábula onde real e irreal surgem misturados, num “estudo sobre a desordem”. Chama-se A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado, é o mais recente livro de Gonçalo M. Tavares e inaugura uma nova série ficcional. Depois de O Bairro e O Reino, aqui estão as Mitologias. Gonçalo M. Tavares em números: 1970 Ano de nascimento, na cidade de Luanda, em Angola. 2001 Ano em que publicou a sua primeira obra: Livro da Dança. 35 Idade com que foi distinguido com o Prémio Literário José Saramago, pelo romance Jerusalém, o que levou Saramago a declarar: “Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos. Dá vontade de lhe bater.” 50 Número aproximado de países nos quais os seus livros estão traduzidos. Como nasceu a ideia para este livro? Este livro faz parte de um enorme espaço de ficção a que chamo Mitologias. É o primeiro. Muitas destas personagens vão aparecer noutros livros. E muitas outras

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personagens que não apareceram ainda em A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado vão surgir mais tarde. É um espaço. Quase como O Bairro ou O Reino. Neste caso, é um espaço mitológico e do mundo do impossível. Interessa-me muito esta suspensão do possível. Levantamos um metro acima do solo o possível e ele fica ali, na expetativa. E fazer também isso um pouco com a História, suspendê-la. Fazer com que os factos possam dissolver-se noutros acontecimentos impossíveis, se afastem das causas e dos efeitos e possam ser ligados a ficções. É como criar uma história paralela, que mistura factos concretos, reais, com ficções puras, com impossibilidades. É também uma aceleração narrativa. A ideia de que o destino arrasta tudo à frente, as coisas acontecem e não se analisa porque não há tempo, apenas se pode agir, reagir. É uma parábola sobre a civilização? Isso depende do leitor, do que ele vê no livro. Penso que, como noutros livros, quero sempre entender os acontecimentos, os factos, os comportamentos humanos. E, muitas vezes, colocando situações improváveis, personagens imaginárias e impossíveis. Escavamos em sítios do solo que não escavamos com outras ferramentas. São diferentes caminhos. Há muitas interpretações para este livro, para cada episódio. Mas estes acontecimentos não tentam explicar. É uma história. Conta-se a história de uma mulher sem cabeça que é procurada pelos filhos, de um homem de mau-olhado que tem um certo pudor em levantar a cabeça, etc. Mas não há simbolismos, não gosto de simbolismos. Uma personagem não quer significar outra coisa, um acontecimento não quer significar nem interpretar. Cada interpretação pertence a cada leitor, não a mim. Não quis dizer outra coisa senão aquilo, aquela história. É mesmo um regresso ao contar tradicional, por um lado, e ao contar mítico. Era uma vez um homem, uma mulher sem cabeça; era uma vez um homem que foi atacado pela Velocidade – como se esta fosse um qualquer animal selvagem. Enfim, há uma mistura, uma fusão entre alguns factos históricos e acontecimentos imaginários e míticos – mas é uma nova história, não quer interpretar nem explicar a outra.

Não gosto de simbolismos. Cada interpretação pertence a cada leitor, não a mim. A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau Olhado Um livro que é uma fábula “Penso que o material de um escritor não são os géneros literários, mas sim o alfabeto, em primeiro lugar. É essa a sua matéria. Como a matéria de um pintor são as tintas, e de um escultor que trabalhe a pedra é a pedra. E depois os humanos, os acontecimentos, etc.” Gonçalo M. Tavares evita catalogar os seus livros. A ideia de conto, romance, novela, não está presente no seu ato de criação. “Não me parece que a ideia de género literário traga algo de bom para a criação. A criação deve partir daquele material base e não de uma lógica taxinómica de receção.”

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Vê neste primeiro livro da coleção a que chama Mitologias qualquer coisa de paralelo com o que fez na série O Reino – de que fazem parte Um Homem: Klaus Klump, A Máquina de Joseph Walser, Jerusalém e Aprender a Rezar na Era da Técnica –, que considera “um estudo sobre o mal, ou mais precisamente, sobre a desordem”. Neste, esse estudo continua mas “com a liberdade de estar afastado do real”. Real e impossível estão misturados e, diz Gonçalo M. Tavares, “a quantidade de impossível é bem maior do que a quantidade de possível”. Se tiver de chamar alguma coisa a este livro será fábula. “Aqui interessa-me a fábula, a narrativa tradicional, a repetição. E há uma energia narrativa do contador de histórias. Que não para para dissertar sobre o porquê ou sobre as causas.” O medo é central neste livro. O medo é também central neste momento civilizacional. Como lê o medo, hoje? O medo ou é uma coisa monstruosa ou é algo subtil, de que mal se dá conta, mas existe de forma constante. Há muitas formas de medo e elas andam em definitivo por aí. Há muitas variantes, um medo que vem do terror explícito, um medo pós-terror. E há um medo pré-terror, que receia que a qualquer momento apareça algo de destrutivo, de terrível, de monstruoso. E talvez estes dois medos estejam ligados hoje. Há um pânico que surge nas cidades que sofrem atentados, logo nos instantes a seguir. A ideia de que a morte, que é intencionalmente enviada ao acaso sobre pessoas de uma cidade, possa surgir de novo a qualquer momento, em qualquer lugar. A tensão que existia em Paris ou em Londres, dias depois dos atentados, é uma tensão terrível. O espaço público torna-se uma ameaça; adquire uma potência perigosa – e até as outras pessoas se tornam essa potência perigosa. Muitas vezes já não há apenas um medo racista, há um medo do humano, de uma forma geral. Depois dos atentados, as pessoas tentam não se aproximar das outras, afastam-se das multidões e até dos pequenos aglomerados. Sente-se que se afastam fisicamente, algo que pode ser medido quase pela fita métrica. Passam a ser indivíduos atentos e vigilantes, que precisam de espaço à volta para vigiarem qualquer sinal mínimo de perigo. Um ser vigilante é alguém que quer uma espécie de deserto à sua volta para poder ver, pressentir. Há um isolamento humano terrível nos dias pós-atentados nas cidades. E isso é talvez um dos efeitos mais assustadores do medo. Intui-se a ideia de que civilização pode “evoluir” da anomalia. Há o que sai do normal e é mais frágil e há o que sai do normal e é mais forte. Julgo que a civilização e a educação começam quando estamos diante daquilo que é mais frágil do que nós. Acho que a civilização, o civil, se forma com a anomalia, ganha ética quando está diante do que é diferente, mais precisamente do que é mais frágil. Como nomeou as suas personagens e porque apenas cinco crianças, entre elas, têm o que se pode chamar nome? Os nomes das personagens estão ligados aos seus fazeres, atos, à aparência física. São nomes de acontecimentos. Muitas vezes é como se o nome próprio e o verbo se confundissem. O-Miúdo-Que-Ajuda é um nome e é uma ação. Como se cada

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personagem se definisse biograficamente pelo ato mais relevante, pelo momento mais alto. Vejo neste livro uma mitologia que coloca, ao mesmo nível, homens, mulheres, animais, elementos da natureza, máquinas, objetos. O Poço é uma personagem, como é Ber-Lim. Um acontecimento pode ser uma personagem central – ou seja, tem amigos, inimigos, família. As cinco crianças são cinco humanos no meio daquele mundo estranho de seres híbridos. Os Cinco-Meninos que andam pelo meio daquele mundo mitológico a tentar sobreviver serão em livros seguintes personagens centrais destas Mitologias.

O medo ou é uma coisa monstruosa ou é algo subtil, de que mal se dá conta, mas existe de forma constante.

O que lê Gonçalo M. Tavares? As leituras de Gonçalo M. Tavares refletem muito do seu universo criativo. Terminado mais um livro, o escritor lê O Espírito da Comédia, de António Escohotado. “É um livro que reflete sobre a comédia no espaço público. Na política, nos discursos oficiais, nas notícias.” Quanto ao que leu de melhor nos últimos tempos, destaca a poesia do napolitano Erri de Lucca: “Só conhecia a prosa. Gosto daquele tom bíblico, afetivo e forte.” Nos seus livros, o tempo é quase sempre um tempo bíblico ou mitológico, assim como o espaço. Neste, isso parece mais vincado. A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado é uma ficção instalada num tempo mitológico, sem dúvida. Um tempo que até pode resgatar acontecimentos históricos humanos bem datados, mas que os recoloca numa energia narrativa que não está preocupada com datas, o antes ou o depois. Um tempo que é mais da sincronização do que da sequência, mais ligado à ideia de que tudo pode acontecer ao mesmo tempo. E aqui o tempo é também marcado pela repetição – a sensação de que mais tarde encontraremos o que deixámos para trás. Neste, está muito presente o ritmo das narrativas tradicionais, a repetição de lengalengas ou de atos, que vai, ao mesmo tempo, confortando pela familiaridade e desassossegando pela sensação de que, a qualquer momento, pode acontecer algo. É um livro político que reflete sobre o poder, questionando o papel das multidões enquanto legitimadoras. É uma interpretação possível. A multidão está presente, sim, principalmente na questão da cura dos loucos. E é curioso que a maior parte de nós tem um certo receio de multidões. Não há uma crença muito benigna na ação da multidão. Associamos muitas vezes os atos da multidão a atos irrefletidos, fruto do contágio e não da racionalidade. E, no fundo, é isso. Não o queremos dizer, mas muitas vezes pensamos: a multidão é louca. Se fizesse sentido, internávamos uma multidão inteira que fizesse um ato tresloucado. Cada um dos homens seria internado injustamente, pois cada um

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seria talvez, no limite, inocente. Lá está, no mundo real não é possível, mas neste mundo das mitologias interessa-me a ideia de que possa existir um hospício que interne multidões e não homens isolados. Um hospício e um conjunto de médicos que declarem: esta multidão está louca! E que sejam consequentes: interne-se a multidão! Num mundo mitológico, irreal, seria possível internar uma multidão louca, mantendo livres cada um dos indivíduos que participaram. Gosto da ideia. Mas, em termos políticos, é curioso que receamos o que pode fazer uma multidão, mas toda a democracia está baseada na multidão. O que é que a multidão decide? Em quem vota? Se as pessoas se juntassem todas numa multidão para votar, ficaríamos assustados. Votar em fila indiana acalma-nos um pouco, o que é divertido e trágico ao mesmo tempo. Há uma crítica a um tempo comandado pela velocidade, a pressa. O que de mais preocupante a velocidade nos tira? A velocidade é uma forma mansa de violência, mas não deixa de ser uma violência. Acima de uma certa velocidade deixamos de ver o que está lá fora, deixamos de ver por completo, cegamos. Mesmo em termos políticos. Escrevi uma vez que a democracia é o reino da lentidão. E ainda bem, acrescento. Por vezes, a lentidão da democracia irrita-nos, claro. O tempo que demora uma lei a ser mudada, a ser cumprida. Mas essa é a parte natural da democracia, a precaução, uma certa sensatez que resulta da discussão. O diálogo nunca é rápido, atrasa sempre. Dialogar não é decidir, é adiar a decisão. Adiar a decisão para encontrar lá à frente aquilo que se acredita ser a melhor decisão. Por isso tenho muito medo quando as democracias aceleram os processos, entrando numa velocidade estonteante. Devemos desconfiar sempre de uma democracia que aprova novas leis a grande velocidade. É um sinal perigoso. A lei – Aristóteles falava disso – só é lei se é justa e se dura no tempo. Porque se é justa, dura no tempo. Se não dura no tempo, não é justa. Quando rapidamente se troca uma lei por outra e depois por outra, estamos, sem o saber, no campo da dissolução da democracia. Acima de uma determinada velocidade, a democracia corre perigo. Podemos não gostar da ideia de lentidão, mas é assim mesmo. A democracia exige lentidão mínima.

A normalização e a imprevisibilidade aparecem aqui enquanto ideal – a primeira – e doença – a segunda. É outra vez um questionar deste nosso tempo ou uma característica intemporal? As histórias aparecem porque aparece o imprevisível. Como se o imprevisível fosse o narrador. Só há história se houver um narrador e só há narrador, alguém que se interesse por contar um conjunto de acontecimentos, se neles existir um qualquer sobressalto. Mas o que é válido para a narrativa muitas vezes torna-se perigoso para uma cidade. A cidade instala uma ordem – é uma grande máquina que tenta limitar o imprevisível. Pode acontecer algo espantoso, mas o espantoso não pode derrubar a cidade no seu todo. A cidade é uma máquina de resistência ao surpreendente.

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Um homem sozinho – afastado da cidade – está muito mais frágil, de um certo ponto de vista, muito mais disponível também para o surpreendente. Quando entra numa cidade, entra não apenas num código legal bem claro, mas também numa espécie de segundo código legal urbano, em que a lógica do que é correto fazer está bem presente e produz uma normalização inconsciente. Um louco perigoso na floresta pode continuar à solta; numa cidade, é rapidamente retirado de circulação. A cidade é uma máquina que vai fazendo desaparecer o lixo que se faz em cada casa como se ele não tivesse existido. Para quem não esteja acordado às horas a que passa o carro do lixo, aquele desaparecimento é como o resultado de um ato mágico. E em quase todas as situações anómalas, ou seja, em relação a quase todos os restos, a cidade é rapidíssima na sua eliminação. Há uma incessante ação de tirar corpos da cidade ou do espaço público que de alguma maneira saem da norma – no limite, um cadáver é o maior afastamento da norma de uma cidade. É um espaço para homens vivos se encontrarem, produzirem e reproduzirem. Tudo o resto parece estar a mais. Mas a cidade não retira apenas corpos, está constantemente a esvaziar-se de objetos estragados ou inúteis, de velharias, de lixo orgânico. A cidade é para mim, quase sempre, o centro das narrativas. Acho-a fascinante. É uma grande máquina e um grande organismo ao mesmo tempo. Gostava que comentasse esta frase que, penso, resume muito da sua literatura: “Ber-lim foi tratado num hospital psiquiátrico que, em vez de se situar num lugar, se situava num século.” Este, como os outros livros deste mundo das mitologias, não tem espaço nem tempo reais. Os tempos estão distorcidos, factos reais históricos separados por séculos podem aparecer separados por uma noite, e factos com alguma semelhança com a realidade podem estar ligados a acontecimentos impossíveis. Há tangentes à História, mas é mesmo um mundo paralelo: não se cruza; paralelas que nem se encontram no infinito. É uma outra história. Com uma lógica interna muito própria. Gosto da ideia de cada livro ou de cada mundo instalar uma lógica, uma racionalidade, que é só praticada dentro desse mundo. Entrevista: Isabel Lucas Fotografias: Bruno Colaço/4SEE http://www.revistaestante.fnac.pt/entrevista-goncalo-m-tavares/ Gonçalo M. Tavares: "Uma nova mitologia tem de ter a máquina" Um novo livro sem limites inaugura uma nova série, uma mitologia para o presente. Falámos com Gonçalo M. Tavares sobre "A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado" Fotografia: Arlindo Camacho Por Catarina Moura Publicado Quarta-feira 26 Abril 2017 PUBLICIDADE

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O mapa de cadernos de Gonçalo M. Tavares não é pequeno, é organizado e ganhou agora uma nova série, ou universo, como o autor gosta de lhe chamar. "Mitologias" é novo mundo de Gonçalo M. Tavares e o autor garante que vai ser um dos maiores e mais centrais. O primeiro livro é A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado e abre portas a uma espécide de actualização dos mitos, com tudo a que temos direito nos dias de hoje. No final do livro há umas frases do Walter Benjamin que falam de já não termos muitas histórias que causem espanto mas termos muitas que nos chegam já explicadas, cheias de significados. Este livro quer retomar o puro espanto? O espantoso é uma categoria que está a desaparecer rapidamente. A acessibilidade imediata a determinada informação é extraordinária mas pode diminuir essa capacidade da surpresa. E uma pessoa espantar-se é interessante. [A ideia de WB]é uma espécie de mote para as “Mitologias”: não há uma necessidade de explicação, há um conjunto de acontecimentos que têm uma energia própria, uma aceitação do destino, e portanto é uma energia totalmente diferente da informativa. A capacidade de espanto leva à investigação. Este espanto é na óptica do utilizador/leitor? Quando estou a escrever estou constantemente a espantar-me. Quando se coloca uma Mulher-Sem-Cabeça como personagem isto tem um movimento, portanto não sei o que vai acontecer quando esta Mulher-Sem-Cabeça se cruza com a Casa-das-Máquinas. E há cruzamentos que têm muita força, como quando a Mulher- -sem-Cabeça insiste que quer entrar no cinema: há aqui qualquer coisa forte que não entra no campo da explicação. Diz alguma coisa sobre o cinema, não diz nada de concreto, mas diz. E só é possível porque há esta lógica. Se estivesse a escrever de uma forma realista não conseguia dizer isto. O que vai ser este universo das “Mitologias”? Acho que vai ser um dos meus mundos mais centrais e maiores. Eu escrevo, guardo, publico às vezes passados anos, portanto tenho já uma noção do conjunto. “Mitologias” tem um pouco a ver com a ideia de uma narrativa rápida, com o prazer da narrativa tradicional em que as coisas acontecem rapidamente e sem explicações. Por outro lado, há aqui a ideia de um mundo com liberdade, em que um espaço pode ser uma personagem, por exemplo. Como é que vês este universo em relação com os outros? Em especial com “O Reino”, tendo temas em comum – a loucura, o medo, a maldade? É de alguma maneira um estudo do mal se calhar um pouco paralelo ao Reino. Enquanto o Jerusalém e o Aprender a Rezar... são um mundo realista, aqui é um mundo da possibilidade quase infinita. Mas ninguém vai ficar chocado com uma mulher sem cabeça. Aqui está muito claro que é algo do imaginário, é uma maldade quase infantil, no limite divertida.

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Ainda não esgotaste as imagens sobre estes temas? Não sei, acho que aqui há um ponto de vista completamente diferente dos anteriores. Eu diria que aqui é mais a história da imaginação. Quando coloco outros pressupostos chego a pontos completamente diferentes. O quase tudo ser possível dá uma liberdade muito diferente. Mas o que me interessa é qualquer coisa que não mudará. Mesmo que faça um livro, sei lá, sobre o Japão ou sobre a Austrália, acho que o que me vai interessar provavelmente é o medo, a coragem, a excitação, a tendência para a violência, o estranho e o familiar. Neste universo sem espaço nem tempo, como é que aparecem referências que nos situam na História – comboios, o avião, o Dr. Charcot? Identificamos factos com a História, mas é sempre como se fosse uma História paralela, que não quer interpretar a outra. Aqui o tempo é um tempo colapsado e, apesar de nos podermos situar num determinado tempo, há acontecimentos irreais e há uma sequência narrativa mesmo nos factos históricos que não é a normal – o Ber- -lim [personagem louca] anda como um fantasma no século XIII ou XIX e depois XVIII. Como se deambulassem como o Ber-lim. Sim, como se se tivessem desprendido da História real e pudessem ser recolocados numa outra mitologia. Vejo isto como pôr em movimento homens, animais, máquinas – acho que é uma das questões que me interessa mais: a mitologia que coloca a máquina no centro. É uma espécie de actualização da mitologia? Numa fábula para a vida contemporânea há coisas essenciais, como a máquina. Pois, acho que sim. Uma nova mitologia tem de ter como um dos centros a máquina, e o que me interessava era isso: a Casa-das-máquinas é uma personagem como é o Homem-do-Mau-Olhado e num determinado momento pode ser principal. Muitas personagens têm um nome que é uma acção (o Homem-Que...) e nesse aspecto é quase transformar um homem numa máquina. Como se atingissem o seu apogeu quando a concretizam. Há episódios quase surrealistas. Por exemplo, o episódio em que uma avestruz devora a cabeça da Mulher-Ruiva deve ser dos episódios visualmente mais fortes. Qual a importância destas imagens tão fora de tudo? É difícil pensar, não faço esse exercício. Com a avestruz há a questão de enfiar a cabeça na areia — aqui enfia a cabeça dentro de outra cabeça. Lembro-me de uma imagem num livro de animais de uma avestruz em grande plano e era assustadora e isso foi um ponto de partida. A avestruz transforma-se numa personagem e mais tarde vai voltar a estar presente. Aquela coisa de haver um pescoço enorme que termina numa cabeça pequena, mas com um bico muito agressivo: isso é estranho porque, no

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caso por exemplo de uma girafa é como se o pescoço tirasse alguma força. Pensando num cão, se o que morde está próximo do tronco é como se estivesse ali uma coisa compacta, mais poderosa; quando se começa a esticar parece que se está a tirar força. Em relação à avestruz o que eu sentia é que estranhamente, com um pescoço longo, aquele bico continuava a ser assustador. Por outro lado, há o facto de, de alguma maneira, [a avestruz estar com o bico dentro da cabeça da Mulher-Ruiva] interferir no pensamento [da mulher]. Sim, e de não terminar completamente com a capacidade de pensar daquela pessoa. É engraçado porque se calhar tem alguma coisa a ver com a história do médico psiquiatra interferir com aquilo [no cérebro, através de choques eléctricos ou lobotomias], mudar o pensamento mas não o destruir [ - episódios também deste livro]. Na cena da Avestruz há a particularidade de nos apercebermos que o cérebro pode ser uma coisa ridícula, quando ela tira o bico da cabeça da Mulher-Ruiva e fica com os fios do cérebro pendurados no bico, como se não tivesse maneiras a comer. O cérebro gera uma série de coisas muito estranhas e sem limite: sobre o que é que podemos pensar? É infinito. Mas ao mesmo tempo, o que está lá dentro é finito. Há aqueles casos das primeiras dissecações: olha-se para um coração e "é só isto?" Estas imagens surrealistas levam-te onde? Pensas muito nelas? Levam-te a pensar sobre a realidade ou sobre outros livros? Qualquer situação não quer dizer mais nada do que diz. Não sou nada entusiasta do simbolismo: se há uma avestruz que está a devorar um cérebro, está a devorar um cérebro. Claro que depois podemos pensar sobre isso. Aquela imagem de alguém que está a ser devorado por trás e ao mesmo tempos os olhos estão virados para cima e a ver, os olhos continuam a ver — interessava-me essa questão: a visão continuar. Mas acho que é uma imagem forte de alguém que está a ser atacado no seu centro e de repente olha e vê quase a história da aviação [durante a cena a Mulhe-Ruiva vê lentos balões de ar quente e aviões, alguns com publicidades] e ao mesmo tempo a anunciar o momento em que os loucos vão sendo recuperados. Não vejo uma ligação tão directa com outros livros porque este mundo é muito particular, não é transferível em termos de lógica, é quase como uma disciplina diferente. https://www.timeout.pt/lisboa/pt/arte/entrevista-a-goncalo-m-tavares

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OBRAS DO AUTOR NO NOSSO CATÁLOGO

A MULHER-SEM-CABEÇA E O HOMEM DO MAU OLHADO COTA: OUT-GEN OUT-GEN-POR TAV ATLAS DO CORPO E DA IMAGINAÇÃO COTA: OUT-GEN OUT-GEN-POR TAV BIBLIOTECA 1 COTA: OUT-GEN OUT-GEN-POR TAV INVESTIGAÇÕES GEOMÉTRICAS COTA: OUT-GEN OUT-GEN-POR TAV O HOMEM OU É TONTO OU É MULHER COTA: OUT-GEN OUT-GEN-POR TAV

O TORCICOLOGISTA, EXCELÊNCIA COTA: OUT-GEN OUT-GEN-POR TAV SHORT MOVIES COTA: OUT-GEN OUT-GEN-POR TAV ÁGUA, CÃO, CAVALO, CABEÇA COTA: C&N CON-NOV-POR TAV MATTEO PERDEU O EMPREGO COTA: C&N CON-NOV-POR TAV O SENHOR BRECHT COTA: C&N CON-NOV-POR TAV O SENHOR BRETON E A ENTREVISTA COTA: C&N CON-NOV-POR TAV O SENHOR CALVINO COTA: C&N CON-NOV-POR TAV O SENHOR HENRY COTA: C&N CON-NOV-POR TAV O SENHOR JUARROZ COTA: C&N CON-NOV-POR TAV

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O SENHOR KRAUS COTA: C&N CON-NOV-POR TAV O SENHOR SWEDENBORG: E AS INVESTIGAÇÕES GEOMÉTRICAS COTA: C&N COM-NOV-POR TAV O SENHOR VALÉRY COTA: C&N CON-NOV-POR TAV A MÁQUINA DE JOSEPH WALSER: LIVROS PRETOS COTA: ROM ROM-POR TAV CINCO MENINOS, CINCO RATOS COTA: ROM ROM-POR TAV JERUSÁLEM: LIVROS PRETOS COTA: ROM ROM-POR TAV OS VELHOS TAMBÉM QUEREM VIVER COTA: ROM ROM-POR TAV UM HOMEM: KLAUS KLUMP: LIVROS PRETOS-1 COTA: ROM ROM-POR TAV UMA MENINA ESTÁ PERDIDA NO SEU SÉCULO À PROCURA DO PAI COTA: ROM ROM-POR TAV INVESTIGAÇÕES. NOVALIS COTA: POE POE-POR TAV

LIVRO DA DANÇA COTA: POE POE-POR TAV A COLHER DE SAMUEL BECKETT COTA: TEA TEA-POR TAV