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Resumo capítulo I do Livro Purificar e DestruirTRANSCRIPT
2010
PURIFICAR E DESTRUIR – JACQUES SÉMELIN Bruno César Fonseca*
*Mestre em Direito Processual pela PUC/MG; Professor de Direito Processual Civil da Universo-BH; Advogado. [email protected]
SEMINÁRIO: PURIFICAR E DESTRUIR: USOS POLÍTICOS DOS MASSACRES E DOS GENOCÍDIOS – 1ª PARTE: CAPÍTULO I (OS IMAGINÁRIOS DA DESTRUTIBILIDADE SOCIAL).1
TEXTO BASE: SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir: usos políticos dos massacres e dos genocídios. Tradução Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Difel, 2009. p.15-86. Sumário: 1 INTRODUÇÃO; 2 CAPÍTULO I- OS IMAGINÁRIOS DA DESTRUTIBILIDADE SOCIAL ;2.1 AS FALSAS PISTAS; 2.2 O PODER DO IMAGINÁRIO; 2.2.1 Fantasmas destruidores; 2.2.2 Entre o imaginário e o real: o papel da ideologia; 2.3 DA NARRATIVA DE IDENTIDADE À FIGURA DO TRAIDOR; 2.3.1 A marcação das “pequenas” diferenças; 2.3.2 As figuras do inimigo interno; 2.4 DA BUSCA DE PUREZA À FIGURA DO OUTRO A MAIS; 2.4.1 Pureza de identidade e pureza política; 2.5 DO DILEMA DE SEGURANÇA À DESTRUIÇÃO DO INIMIGO; 2.5.1 Complô e paranóia; 2.5.2 Racionalidade delirante; 2.5.3 Destruir “eles” para salvar o “nós;
1 INTRODUÇÃO
Este resumo foi elaborado com o fim de solidificar o estudo da obra, e refere-se à introdução e
ao primeiro capítulo do livro, sua utilização é meramente didática.
O livro Purificar e Destruir, de Jacques Sémelin, decorreu dos estudos empreendidos pelo autor
em mais de 20 anos de pesquisas. Nos agradecimentos no início da obra, demonstra que diversas
pessoas contribuíram para sua escrita direta e indiretamente, nos institutos de pesquisa nos quais o
autor trabalhou.
A introdução da obra é um convite à reflexão que se fará no seu decorrer, preocupando-se o
autor, desde o primeiro momento, em destacar sua visão de pesquisador, dizendo tratar dos temas da
maneira mais isenta possível, refutando qualquer ligação étnica, familiar ou sentimental com as
populações estudadas. Apesar de reconhecer a dificuldade que o tema traz consigo.2
Jacques Sémelin incita-nos ao pensamento compreensivo dos fenômenos sociais estudados.
Começa por tracejar o pensamento humano contra o inimigo e mesmo que pensemos em sua morte
isso permanece no “estado de fantasma”(2009, p.20), a “passagem ao ato”(2009,p.20) é o ponto de
análise do livro. Demonstra que muitos não se prestam à compreensão do fenômeno, em sua
complexidade, muitas vezes porque seria necessário e temeroso elucidar a “lógica dos
carrascos”(2009,p.20) para concluir que são tão humanos quanto nós mesmos.
Sémelin destaca a importância de tentar compreender os eventos, cita frases como
“compreender não é perdoar”3, demonstra a falta de explicação dos executores às vítimas4, e
1 Seminário apresentado na disciplina Teoria do Estado, no Mestrado em Direito da PUC/MG, 2ºsem./2010.
2 “Trata-se, precisamente, de uma exploração nos extremos que põe à flor da pele a sua sensibilidade, provocando
atitudes igulamente extremas de rejeição e de paixão.”(SÉMELIN, Jacques. Purificar e Destruir.p.27) 3 BROWNING, Christopher R.Des hommes ordinaires.p.9. apud SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir.p.20.
4 “Primo Levi, assim que chegou a Auschwitz, recebeu esta resposta provocante: ‘Aqui, não há por quê’(Hier ist
kein warun).”(Primo Levi, Si c’est um homme.p.29 apud SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir.p.21.)
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consequente necessidade de desvelar sem o intuito de desculpar, mas de apurar as responsabilidades,
tendo em vista que não se pode afirmar que os executores das matanças estavam sendo sempre
manipulados, tampouco que eram loucos, nos dizeres do próprio autor: “em suma, trata-se de saber
como indivíduos, imersos em determinada situação social, interpretaram a situação e a elas
reagiram...pelo massacre”(2009, p.21).
O livro tem a pretensão de investigar a destruição de populações civis no século XX, através das
ciências sociais, concentrando-se nos casos da Shoah5, Ruanda e Bósnia, sem, contudo, se esquecer dos
armênios do império otomano ou do Camboja de Pol Pot.
Destaca Sémelin(2009,p.22-25) que dois desafios permeiam a obra, diante da complexidade dos
eventos analisados, um é o da comparação e outro da pluridisciplinaridade.
A comparação, segundo o autor, serve-nos à compreensão e diferenciação, partindo de um
ponto comum, qual seja, o genocídio6, a priori entendido empiricamente como “forma de ação, o mais
frequentemente coletiva, de destruição de não-combatentes” (SÉMELIN, Jacques. 2009.p.24), tal
acepção será revista e criticada ao longo da exposição.
A pluridisciplinaridade decorre do próprio fenômeno do “massacre”, sob a perspectiva
psicológica temos teorias capazes de esclarecer as condutas. O autor possui formações desde a
psicologia à ciência política, história contemporânea e sociologia da comunicação, dando à obra uma
profundidade necessária ao tema, para não haver a dispersão demasiada utilizou-se de uma “linha
condutora”, qual seja, “o poder de destruir”.
Explora no primeiro capítulo o enfoque do imaginário, com vistas a compreender “o processo da
violência em massa”. (SÉMELIN, 2009,p.44)
Jacques Sémelin cita Foucault(Vigiar e punir)7, para explicar que “o ato de massacrar constitui a
prática mais espetacular de que um poder dispõe para afirmar sua transcendência, marcando,
martirizando, destruindo os corpos de quem ele designou inimigo”(2009,p.25). Aponta as diferenças de
suas análises para as de Foucault, as quais basicamente referem-se aos séculos XVII e XVIII, e estão
focadas no “poder que tortura o corpo, visando inspirar o respeito e o distanciamento, e em seguida
5 “Shoá (השואה), também escrito da forma Shoah, Sho'ah e Shoa, que em língua iídiche (um dialeto do alemão
falado por judeus ocidentais ou asquenazitas) significa calamidade, é o termo desse idioma para o Holocausto. É usado por muitos judeus e por um número crescente de cristãos, devido ao desconforto com o significado literal da palavra holocausto, de origem grega e conotação relacionada com a prática de expiação de pecados por incineração; os defensores dessa substituição argumentam que é teologicamente ofensivo sugerir que o massacre de judeus da Europa foi um sacrifício a Deus. É no entanto reconhecido que o uso corrente do termo holocausto para referir-se ao extermínio nazista não tem essa intenção.”Fonte: Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Holocausto. 6 Interessante que devido à polissemia do termo, Sémelin tratou da definição ao final da obra e não no início.(Cf.
SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir.p.24). 7 Refere-se o autor à execução pública de Damiens, na Praça de Grève, em 02/03/1757, por atentado contra o rei
da França, interpretada por Foucault como restauração da integridade do poder real, pela encenação ritualizada do sofrimento corporal. (SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir.p.25)
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mostrou como esse poder, no século seguinte, foi se abrandando, inventando novas formas
disciplinares, garantindo para si a docilidade dos homens, em corpos e almas”(2009,p.26). Enquanto que
o livro Purificar e Destruir aborda os “poderes que, não se contentando mais com o controle social, não
hesitaram em destruir em grande número os corpos, maciçamente, e com esse intuito se apoiando em
retóricas que se remetem ao imaginário e ao sagrado”(2009,p.26). Dessa maneira, em Foucault temos
um “Estado que aprisiona e controla”, em Sémelin temos um Estado que pratica políticas de
“‘purificação’ e de destruição do ‘corpo social’”, como ressaltado pelo autor, ocorridas no século XIX, a
partir dos nacionalismos, progredindo consideravelmente no século XX.
Por fim, Jacques Sémelin convida o leitor à adentrar na comparação do livro e ressalta que tais
massacres podem ainda estar latentes, por detrás de discursos de ódio, “um povo se torna o carrasco de
um outro povo...quando não de uma parcela de si mesmo. E é quando tudo passa a ser possível”(2009,
p.28).
2 CAPÍTULO I- OS IMAGINÁRIOS DA DESTRUTIBILIDADE SOCIAL
Na abertura do primeiro capítulo Sémelin defende “a ideia de o massacre vir, antes de tudo, de
uma operação do espírito: uma maneira de se ver o ‘Outro’, de estigmatizá-lo, de rebaixá-lo e anulá-lo,
antes mesmo de matá-lo, de fato.” Tal processo é gradual, mas ganha fortes acelerações, em especial no
período de guerra.
Em seguida demonstra como tais pensamentos estão presentes no dia a dia das pessoas, cita,
como exemplo, as rixas escolares8, nos bairros, sem falar das pichações antissemitas e antiárabes. Tudo
representando “a expressão do ódio e a rejeição do ‘Outro’”(2009,p.30),mas ainda que o massacre tome
“uma forma específica, por meio de uma cultura ou de um conflito que o pré-formam”, denotam um
traço comum de humanidade, todavia há um distanciamento “entre a ideia e a passagem ao ato. São
necessários muitos desvios sinuosos, circunstâncias sociais complexas e circunstâncias políticas
favoráveis para que aconteça o massacre”(2009, p.30).
Segundo Sémelin o massacre é fruto das lógicas de violência que se apóiam “na designação de
bodes expiatórios, na radicalização do antagonismo amigos/inimigos e, mais ainda, na matança como
ato purificador”(2009,p.30). E está latente em qualquer sociedade.
2.1 AS FALSAS PISTAS
8 O autor não faz referência expressa, mas podemos citar como exemplo do exposto o Bullying. “Bullying[1] é um
termo inglês utilizado para descrever atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, praticados por um indivíduo (bully - «tiranete» ou «valentão») ou grupo de indivíduos com o objetivo de intimidar ou agredir outro indivíduo (ou grupo de indivíduos) incapaz(es) de se defender. Também existem as vítimas/agressoras, ou autores/alvos, que em determinados momentos cometem agressões, porém também são vítimas de bullying pela turma.(Wikipedia, disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Bullying>)
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De acordo com Jacques Sémelin, é necessário “limpar o terreno, afastando as falsas
pistas”(2009,p.31), isto quer dizer que é comum se destacar “um fator em particular, pertença ele à
economia, à demografia ou à cultura”(SÉMELIN, 2009, p.31), quando em verdade nenhum desses
fatores isoladamente é determinante de uma violência em massa, haja vista a coexistência de povos que
vivem abaixo da linha de pobreza, a passividade de países com alto grau demográfico e ser a cultura um
dado mutável, a história de um povo não implica que esse povo viva em eterna selvageria.
Destaca que a “‘teoria da gaiola’”9 nunca fora provada, e é bastante discutível comparar homens
e animais, contudo, em determinadas circunstâncias é possível associar fatores demográficos aos
massacres10, como por exemplo, o caso de Kôsovo (província da ex-Iuguslávia) “onde 10% de sérvios
viviam ao lado de 90% de albaneses. O diferencial estatístico contribuiu para induzir, no seio da minoria
sérvia, preocupada com o futuro, uma convivência de desconfiança e de hostilidade com relação à
maioria albanesa.” (SÉMELIN, 2009, p.31-32). O que não aconteceu na Alemanha, em que os judeus em
1920 eram 0,076% da população. (Cf. SÉMELIN, 2009, p.32).
Desconstrói a teoria de que os africanos e os asiáticos têm maior “tendência a se matar entre si
do que os povos ‘brancos civilizados’, enquanto pode-se citar “as guerras em torno dos Grandes Lagos
da África(Burundi, Ruanda, República do Congo) e as rebeliões intercomunitárias na Índia e na
Indonésia” (SÉMELIN, 2009, p.32), podemos destacar inúmeras histórias dos europeus conquistadores,
que esmagaram os povos conquistados; o massacre dos colonos ingleses aos indígenas; a execução de
33.371 judeus ucranianos de Kiev, entre homens, mulheres e crianças, de 20 a 30/08/1941, em Babi-Yar;
mais as guerras civis da Espanha, entre 1936 e 1939; as guerras civis da Grécia, entre 1943 e 1949; a
execução de 8.000 muçulmanos bósnios em Srebrenica, em julho de 1995. (Cf. SÉMELIN, 2009, p.32-33).
Apresenta Sémelin, com base em Robert Kaplan, a chamada tese “primordialista”, segundo a
qual “o desenvolvimento e a manutenção de relações hostis entre grupos,[dá-se] em função de suas
identidades religiosas ou étnicas diferentes. Ela apresenta as relações como inconciliáveis, porque
fundadas sobre percepções afetivas irracionais de desconfiança e de exclusão recíprocas”. (SÉMELIN,
2009, p.33) Entretanto, “inúmeros trabalhos empíricos mostram que a heterogeneidade étnica ou
religiosa não conduz inevitavelmente à violência” (SÉMELIN, 2009, p.34). Outrossim, trabalhos de
Donald Horowitz demonstraram que, ainda que haja revoltas com bases étnicas ou religiosas, essas só
ganham vulto quando organizadas por líderes, às vezes com apoio de “corpos do Estado(polícia ou
exército).” (SÉMELIN, 2009, p.34).
Por fim, se não resulta o massacre de apenas uma dessas causas (econômica, demográfica,
cultural), é possível pensar que o acúmulo delas levaria. E efetivamente pode-se observar que os países
9 “quando um número exagerado de coelhos fica confinado em um mesmo cercado, eles começam a se matar,
para garantia do espaço vital. E o mesmo passaria em relação aos homens.”(SÉMELIN, 2009, p.31) 10
Faz referência à Gaston Bouthoul, para quem a guerra é um “infanticídio adiado”(SÉMELIN, 2009, p.31).
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que passaram por massacres sofriam de problemas econômicos, inúmeras desigualdades sociais e
tendência à superpopulação, mas essa conjunção, para Sémelin, está distante de conduzir
invariavelmente ao massacre, tratam-se, segundo o autor, de situações que favorecem a violência
dirigida contra um grupo, entretanto seria necessário que
formadores de opinião, detentores ou não do poder, proponham uma leitura da situação e afirmem: ‘Eis o que está acontecendo, eis o responsável pela nossa desgraça. ‘Eles’ são a causa dos nossos sofrimentos. Precisamos absolutamente nos livrar deles. Podemos garantir que tudo irá da melhor, em seguida. Basta que nos apóiem, e mais: juntem-se a nós para darmos um fim a essa peste.’ Realmente, é o tipo de discurso que pode servir para detonar uma violência em massa e acompanhá-la.(SÉMELIN, 2009, p.35)
2.2 O PODER DO IMAGINÁRIO
Nesse subtítulo Sémelin chama a atenção para os pontos comuns entre a Alemanha dos anos
30, a Iuguslávia do final dos anos 90 e Ruanda do início dos anos 90. A crise que assola esses Estados faz
surgir uma deterioração do fundamento imaginário das instituições, a razão de ser do “nós”, o que cria
uma situação favorável aos agentes sociais com expressão afetiva, que apresentam um novo imaginário.
A Alemanha “era um grande país industrial ‘civilizado’, que perdeu a Primeira Guerra Mundial e
passou, nos anos seguintes, por forte instabilidade política. A revolução bolchevique de 1917, na Rússia
– para alguns, uma formidável esperança de mudança -, contribuiu também para alimentar um grande
temor do comunismo que os partidos de direita e de extrema direita se encarregaram de explorar.”
(SÉMELIN, 2009, p.35). A crise de 1929 gerou milhões de desempregados no mundo e na Alemanha teve
efeitos drásticos. (Cf. SÉMELIN, 2009, p.36)
A Iuguslávia “entrara em um período de incertezas políticas desde a morte, em 1980, de seu pai-
fundador, Josip Broz, mais conhecido pelo nome de Tito, e que conseguira a façanha, no pós-Segunda
Guerra Mundial, de construir um Estado federal, fundado na união de diferentes nacionalidades (sérvia,
croata, eslovena etc.)”, o desaparecimento de Tito fez ressurgir na Sérvia e na Croácia, principalmente,
“um nacionalismo que o mito da ‘fraternidade comunista’ nunca conseguira totalmente eliminar.”
(SÉMELIN, 2009, p.35-36). Nos anos 80, os efeitos dos “choques pretrolíferos” fez com que o “nível de
vida” caísse em pelo menos 30%.(Cf. SÉMELIN, 2009, p.36).
“Em Ruanda, um país essencialmente agrícola e pós-colonial(esteve sob o domínio alemão e, em
seguida, belga), a situação se agravou brutalmente entre os hutus, à frente do Estado, e a minoria
tutsi.(...)11A partir de 1990, o futuro foi se tornando mais preocupante para os hutus de Ruanda, pois um
exército tutsi, a frente Patriótica de Ruanda (FPR), composto principalmente por filhos dos exilados de
1959, tentou penetrar no território ruandês com a evidente intenção de tomar o poder que os pais
11
“Em 1959, dentro do contexto geral da descolonização da África, os hutus haviam tomado o poder e massacrado uma parte dos tutsis, provocando a fuga de um grande número deles para os países fronteiriços Burundi e Uganda.Crises políticas semelhantes se sucederam, então, entre Burundi, dirigido pelo tutsis, e Ruanda, dirigido pelos hutus, combinadas com as crises internas próprias de cada um desses países.”(SÉMELIN, 2009, p.36).
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daqueles combatentes haviam sido obrigados a abandonar 30 anos antes.”(SÉMELIN, 2009, p.36). A
partir dos anos 80, a produção agrícola não desenvolveu-se paralelamente ao crescimento demográfico,
Ruanda, em 1991, possuía população de 7,15 milhões de habitantes, com 271 habitantes por km², há
registros de que em 1989, a última colheita de café, principal produto ruandês, havia sido em 1987. Os
jovens(menores de 20 anos) eram 57% da população, em 1989, sem emprego, sem terras, sem futuro.
(Cf. SÉMELIN, 2009, p.37).
Sémelin aponta que nesse contexto não há esperança em “medidas antigas”, tais como
reformas econômicas, mudanças administrativas, programas de cooperação internacional, o “que está
em jogo” é “a ‘alma’ do povo” afetada profundamente, encontram-se desestabilizadas as referências
fundamentais da coletividade(fala-se em “traumatismo coletivo”), não há muito sentido em expressões
como “nós, alemães”, ou “nós, hutus”. (Cf. SÉMELIN, 2009, p.37) Há, segundo Sémelin, uma crise dos
“fundamentos imaginários das suas instituições” expressão de Cornelius Castoriadis. (SÉMELIN, 2009,
p.37-38). “Esse imaginário, que dá sentido àquilo que vivem, ao que os faz ficarem juntos, se situa além
de todas as regulações técnicas.”(SÉMELIN, 2009, p.38). Se o imaginário está em crise, faz com que o
“nós” torne-se dor, e alguém precisaria tratar desse sofrimento.
Nesse diapasão aqueles que “sabem falar ao povo”, que têm junto à opinião pública certa dose
de afetividade, aparecem para responder “ao imaginário, em crise, com um outro imaginário, que
reestrutura o anterior, sobre novas bases.”geralmente valendo-se de “metáforas e símbolos que têm
forte ligação cultural com a sua história.”(SÉMELIN, 2009, p.38). Ainda que surjam vozes em sentido
contrário que abordem o futuro de uma maneira diversa, esses agentes “têm, em todo caso, uma arma
poderosa que lhes permite pensar em conquista do poder.(SÉMELIN, 2009, p.38).
Jacques Sémelin assevera que “o primeiro ponto dessa retórica imaginária” configura-se em
transmudar a “angústia coletiva” em “um sentimento de medo intenso, com relação a um inimigo”.
(SÉMELIN, 2009, p.38). A diferença, aponta Sémelin, é que a angústia tende a ser disseminada,
“inapreensível”, já o medo é identificável, assim coagula-se a “angústia sobre um ‘inimigo’, ao qual se dá
uma ‘figura’ concreta e do qual se denuncia a malignidade, no interior mesmo da sociedade.” (SÉMELIN,
2009, p.38-39).
Destarte, “a partir dessa ‘transmutação’ da angústia embrionária em medo concentrado por
intermédio de uma ‘figura’ hostil desenvolve-se o ódio contra o ‘Outro’ pernicioso.”(SÉMELIN, 2009,
p.39). Sémelin destaca que nesse caso o ódio não é o que definiria a base das relações, mas uma
construção volitiva dos “partidários extremosos e [dada] por circunstâncias” que favoreceriam sua
propagação. Em certo momento, a saída recairia no desejo de destruir o outro, mas, ainda, é um
imaginário, “um imaginário de morte”. Tratar o “nós”, seria “a finalidade desse processo sociafetivo”,
surge então “um fantasma de onipotência do ‘nós’ triunfante que se regenera por meio da destruição
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do ‘eles’”, temos assim um “imaginário de onipotência e glória”. Esses imaginários (onipotência e glória)
ligam-se “aos próprios fundamentos do psiquismo humano”.(Cf. SÉMELIN, 2009, p.39-40).
2.2.1 Fantasmas destruidores
Após expor a origem psíquica do ódio, através dos imaginários, Sémelin critica as abordagens
meramente políticas, sociais ou históricas que repudiam as psicológicas por não possuírem um
consenso. Afirma que ao analisar as origens do antissemitismo Norman Cohn, concluiu que se tratava de
uma “psicopatologia coletiva”, que é o ponto de partida da obra de Sémelin. (Cf. SÉMELIN, 2009, p.40).
Para abordar o enfoque psicológico dos massacres, parte Sémelin da análise e crítica da “célebre
correspondência” entre Sigmund Freud e Albert Einstein12, na qual Freud reformulou sua “teoria da
pulsão de destruição”, a qual preconiza o homem teria uma “ ‘pulsão de morte’, de origem biológica, [a
qual] incitaria o homem à autodestruição, ou à destruição dos outros”, explicou Freud à Einstein que a
prevenção à violência coletiva era quase impossível, “inclusive pelo direito”, devido à “capacidade para
se autoexterminar” (SÉMELIN, 2009,p.41).
Em decorrência da frágil construção freudiana sobre a agressividade, outros psicanalistas
ocuparam-se do tema, destacando-se, em Sémelin, a referência à Melanie Klein13 e Franco Fornari14.
Para Melanie Klein, o imaginário do recém-nascido é composto “de amor e ódio pela mãe, que ora lhe
dá o seio e ora o recusa”, essas sensações seriam a base “de nossa percepção primária do bom e do
mau, do bem e do mal, do amigo e do inimigo.” (SÉMELIN, 2009,p.42). Em nota de pé de página,
Sémelin pormenoriza a teoria de Klein, interessante para a compreensão ulterior de Fornari, senão
vejamos:
O recém nascido não tem qualquer noção do tempo. Não compreende absolutamente por que o seio não vem assim que ele grita. Ele vive isso como sendo a ação do ‘mau objeto’ contra o qual ele elabora fantasmas destruidores. Por outro lado, a satisfação oral do mamar, da qual depende toda a sua vida de recém-nascido, o faz passar por sensações de contentamento e de onipotência, percebendo o seio como um ‘bom objeto’. A mãe seria, então, percebida, em um nível muito primitivo, como um bom objeto a se conservar e um mau objeto a se destruir. (SÉMELIN, 2009,p.42)
Franco Fornari, psicanalista italiano, a partir do trabalho de Melanie Klein, “tentou lançar as
bases psicológicas para uma interpretação da guerra.” Para tanto, valeu-se da distinção proposta por
Klein, entre “ ‘posição depressiva’ e ‘posição paranoica’”, desenvolvidas “a partir dos primeiros meses
de vida e a partir da clivagem entre a mãe boa e a má.”(SÉMELIN, 2009,p.42-43). Ocorre que na “posição
depressiva”, haveria a preocupação “em salvar o objeto amado pelo qual ele se sente viver, a ponto de
12
Albert Einstein e Sigmund Freud. Por que a guerra?. Sociedade das Nações, Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, 1993 apud SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir.2009, p.41. 13
Essais de psychanalyse.Paris: Payot, 1972 apud SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir.2009, p.42. 14
Psychanalyse de la situation atomique. Paris: Gallimard, 1969 apud SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir.2009, p.43.
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se sacrificar pelo amor desse objeto. Na posição paranoica, pelo contrário, o recém-nascido procura
salvar o Eu, destruindo o objeto que pressente poder destruí-lo” (FORNARI apud SÉMELIN, 2009,p.43).
Interessante a análise de Klein e Fornari, quanto ao estágio depressivo, que é posterior ao
paranoico, segundo os autores estaria nessa fase a origem da civilização, já que decorreria da “posição
depressiva” o remorso em querer destruir o objeto amado, daí o surgimento de uma lei proibindo
matar. Contudo, em que pese conter a violência individual, não seria eficaz para impedir a guerra. (Cf.
SÉMELIN, 2009,p.43)
Franco Fornari aduz que a guerra seria, portanto, um “procedimento paranoico”, tendo em vista
acreditar-se que ao matar o inimigo estar-se-ia sobrevivendo. Nesse sentido, “a violência paranoica que
se emprega na guerra é uma típica ilusão psicótica: matando o ‘Outro’-inimigo, o sujeito acredita vencer
a morte. Em suma, a posição paranoica volta à equação elementar: TUA MORTE É MINHA VIDA.”
(SÉMELIN, 2009,p.43)
A remissão de Sémelin à tais teoria tem sua razão no fato de que, para Fornari, a guerra é um
“fenômeno imaginário, ligado aos fantasmas destruidores da primeira infância”, isto porque no
“desenvolvimento afetivo do neném, a posição paranoica é anterior à ameaça real, originando-se em
algum inimigo real.”15 (SÉMELIN, 2009,p.43).
Aponta Sémelin que através “de representações hostis, como a do ‘Judeu’ ou do ‘Tutsi’”, o que
se constrói é “um mecanismo regressivo daquele tipo contra um inimigo interior”, levando os indivíduos
em situações extremas, em determinadas épocas da história do país, a ultrapassarem a posição
depressiva, que lhes albergara um processo de civilização, para, na contramão da evolução psíquica,
vivenciar um “processo de descivilização”. (SÉMELIN, 2009,p.44).
Destaca Sémelin que os discursos políticos extremistas aparecem sob o “ponto de vista
psicológico, como os mais regressivos”, pois buscam meios para atingir o imaginário infantil,
interpretando a realidade em crise, criando na figura do carrasco, também a figura da vítima, apoiando-
se em discursos preexistentes, baseados em estereótipos negativos, e com base em Frank Chalk e Jurt
Jonassohn, Sémelin assevera que “no olhar do carrasco quem um ‘Outro’ ganha a imagem de inimigo a
se destruir”. (SÉMELIN, 2009,p.43-44).
Cita como exemplo desse imaginário preexistente os estereótipos negativos dos tutsis, de
origem colonialista, que supostamente defendiam uma superioridade tutsi, sendo assim considerados
arrogantes, dominadores, estrangeiros, malignos, dentre outros.
Em seguida, Sémelin passa a enfrentar as estruturas desse imaginário, para tentar compreender
como se vai da angústia para a destruição.
15
Sémelin cita, ainda, Rená Spitz, o qual expõe o fato da criança projetar uma intenção agressiva sobre o desconhecido, o estranho, vendo-o como um inimigo, sem mesmo nunca ter-lhe feito qualquer mal. (SÉMELIN, 2009,p.43)
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2.2.2 Entre o imaginário e o real: o papel da ideologia
O subtítulo é iniciado com um alerta, devido à análise psicológica que se cuida a obra o autor
acentua que não está tudo no plano imaginário, pois as vítimas não são puramente fantasmagóricas,
pelo contrário, são reais, isto é, os judeus não foram inventados pelos nazistas, os próprios já se
definiam como tais, assim como os “tutsis” ou os “’muçulmanos da Bósnia-Herzegovina’”, mesmo antes
de se tornarem “objeto de zombarias e de perseguições”. E é por essa razão que o imaginário antes
descrito, “é tão perigoso”, pois se apoia no real. (Cf. SÉMELIN, 2009,p.45-46).
Entretanto, Sémelin defende que se acreditarmos na psicologia, os fantasmas da destruição, de
nossa tenra infância, se realizaram apenas nos sonhos, e nossos pais nos ajudaram a superá-los, ocorre
que eles podem ser “acionados” e passarem à realidade. Para tanto, é necessário um “‘cimento
comum’: um discurso que seja entendido como coerente e verossímil, e, ainda, de natureza a bloquear a
angústia dos indivíduos.” Esse papel é exercido pela ideologia, que para Sémelin é “um discurso fundado
em argumentos, ao mesmo tempo racionais e irracionais, que se constrói contra o ‘Outro’ maligno.”
(SÉMELIN, 2009,p.46).
Portanto, as ideologias “sedimenta[m]” o elo entre o imaginário e o real, “esses discursos em
que se cruzam mitos e realidades podem servir de trampolim para o massacre.” (SÉMELIN, 2009,p.47).
Jacques Sémelin percebeu em sua densa pesquisa que há uma retórica, nos discursos rondantes
nos episódios estudados, isto é, Ruanda, Alemanha e Iuguslávia que se estrutura em “três temáticas
principais: identidade, pureza e segurança. Remetendo-se à vida, à morte e ao sagrado, não deixam
lugar à indiferença: ‘falam’ a todo mundo, misturando imaginário e realidade.” (SÉMELIN, 2009,p.47).
2.3 DA NARRATIVA DE IDENTIDADE À FIGURA DO TRAIDOR
Nesse ponto Sémelin faz uma revisita histórica dos países estudados, para refutar a afirmação
de Paul Valéry de que a História embriagaria os povos, incutindo-lhes falsas lembranças para manter
velhas feridas, seria para Válery a História “o produto mais perigoso que a química do intelecto
elaborou”, levaria a delírios de grandeza e de perseguição, tornando as nações “amargas, soberbas,
insuportáveis e vãs.” (VÁLERY apud SÉMELIN, 2009,p.47).
Sémelin entende que Paul Válery haveria descrito o papel da memória que os povos constroem
do passado e não o papel da História em si, isto porque, segundo o autor, “os acontecimentos históricos
não pesam tanto na vida dos povos, mas sim as representações que eles fazem desses acontecimentos.”
(SÉMELIN, 2009,p.47).
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No caso da Alemanha pós-1918 , não fora o tratado de Versalhes que determinara o futuro, mas
a interpretação levada a cabo por certos agentes políticos, dada às desfavoráveis condições do tratado,
“para atiçar o fogo nacionalista”. Sémelin destaca que, logicamente, outros fatores tornaram-se
contributos, tais como situação econômica, turbulências políticas, o que levou a uma “‘brutalização’ das
relações sociais”. Tal afirmação, com base em George Mosse, demonstra que nos anos 1920, ocorreu
um “verdadeiro culto à violência”. Nesse sentido, discursos políticos tentaram resgatar o sentimento de
derrota, em especial a direita e extrema direita, “propondo uma narrativa que salvasse a honra do país e
lhe desse novo impulso.” (SÉMELIN, 2009,p.48).
Exsurge “uma espécie de transmutação do traumatismo inicial, por meio desse ‘nós’ salvador e
grandioso, em que os indivíduos vão buscar a energia para a reafirmação coletiva.” (SÉMELIN,
2009,p.49). Sémelin explica, com base no suíço Philippe Burrin, que
‘o ressentimento(...) é um sentimento de injustiça, de direito postergado, acompanhado pela constatação da impotência, de forma a incessantemente ruminar o que se sofreu. Mas essa revivescência pode, em certos casos – pensa-se de imediato em Nietzche -, produzir uma transmutação de valores, isto é, a imposição de um signo negativo ao que se tinha antes desejado e que permaneceu inatingível, e tal em nome de um novo conjunto de valores, antitético ao anterior, que dá um sentimento de autoestima’. (BURRIN apud SÉMELIN, 2009,p.49).
A constatação dessa mudança de valores pelo ressentimento ocorreu em Hitler, que encontrou
na ideologia nazista, a projeção de valores que deveriam ser introjetados pelos arianos, predestinados,
afastando-se a humilhação e criando uma ideia de “potência existencial”. (Cf. SÉMELIN, 2009,p.49).
A Iuguslávia, aponta Sémelin, igualmente padecia de ressentimentos históricos entre os povos. A
desconfiança entre croatas e sérvios não fora superada pelas tentativas de um Estado federal entre
1919 e 1941 e 1945 e 1991. Os croatas tinham a sensação de estar sempre dominados, “no século XIX,
por Viena e Budapeste; no século XX, por Belgrado”, já os sérvios sempre se viram no centro do Império,
e nunca recompensados pelo sangue derramado nas Grandes Guerras, queriam reconhecimento e
poder. A crise econômica, fez ressurgir os discursos nacionalistas “em ambos os lados”. A crise não
superada pelas elites fez com que, segundo Sémelin, “os responsáveis políticos” escolhessem “entre
ethnos e demos, ou seja, entre uma ‘comunidade imaginada’(sobre uma base étnica) e uma ‘cidadania
comum’ redefinida (de tipo iugoslavo). Com essa questão a inflamar os debates políticos, Milosevic,
assim como Tudjman, preferiu o princípio etnonacional.” (SÉMELIN, 2009,p.50).
Em Ruanda já existia uma “identidade flutuante” entre hutus e tutsis, os hutus possuíam uma
memória de domínio, construindo-se uma “narrativa vitimária”. Os historiadores concordam que a
colonização ocorrida no final do século XIX, contribuiu para reafirmar representações raciais, projetadas
por alemães e belgas que dominaram o país seguidamente. O fato de o país ser dirigido por um rei tutsi,
representante da minoria da população, formada por sua maioria de hutus, fez surgir uma teoria racial
para explicar o domínio, como não havia diferenças culturais, tampouco lingüísticas, tal teoria baseou-se
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em distinções físicas, sendo os hutus “pequenos, atarracados e de rostos pesados” e os tutsi “grandes,
esbeltos e com traços finos”, esses eram tidos como “negros de verdade” enquanto os hutus eram
considerados “camitas”16. A origem das “raças” eram também distintas, sendo os tutsis originários do
Egito, um povo de pastores, dominaram rapidamente os hutus sedentários e agricultores. Os belgas
chegaram a instituir nos anos 1930 registro de identidade com indicação da origem do indivíduo, tutsi,
hutu ou twa, a Igreja Católica e a administração colonial belga, apoiada na realeza tutsi, favoreceram a
educação dos tutsi, “considerados mais inteligentes”. Após 1950, os belgas mudaram de posição e
inflamaram a maioria hutu, elaborando um discurso sustentado pelos hutus “mais ‘educados’”, de que a
direção do país deveria ser ocupada pelo “povo majoritário, para pôr fim à exploração da minoria tutsi”,
pois ocuparam o país muito antes deles. Tal discurso foi sustentado pelo primeiro presidente ruandês,
Grégoire Kayibanda, sendo o Estado construído “sobre a proclamação soberana do ‘nós, os hutus’, ‘povo
majoritário’.” (SÉMELIN, 2009,p.52).
Nos três casos há a construção de “um processo identitário de renascimento ou de
recomposição do ‘nós’, como resposta coletiva para uma situação de crise, de traumatismo ou de
reviravoltas intensas.” Sémelin acentua que a “identidade se concebe pela percepção da diferença,
dando simultaneamente consistência a Um e ao Outro.” Esses podem conviver perfeitamente, contudo
também pode ser razão para exclusão do “Outro”, os critérios para essa separação podem ser raciais ou
étnicos, ou até mesmo a ideia de “nação”. (SÉMELIN, 2009,p.52).
Jacques Sémelin assevera que “a ideia de ‘raça’, outrora defendida por muitos cientistas (pelos
etnólogos, em primeiro lugar), hoje é totalmente rejeitada, apesar de ainda se apoiar em preconceitos
tenazes.” Da mesma forma a de etnia passa a ser abandonada, por não ser possível tecer uma “definição
pertinente”. A ideia de “nação”, segundo Sémelin, apesar de defendida contemporaneamente, trata-se
de “uma construção imaginária” como demonstrado pelo “antropólogo americano Benedict
Anderson”17, cita, ainda Ernest Gellner para quem “‘as nações nãos existem como tais: o nacionalismo
cria a ideia de nação.’”18 (SÉMELIN, 2009,p.54).
2.3.1 A marcação das “pequenas” diferenças
16
“Camitas é a denominação dada aos povos do norte da África que, de acordo com o Gênesis, seriam descendentes de Cam, segundo filho de Noé.Os camitas foram os primeiros habitantes do antigo Egito. Inicialmente eram grupos nômades que se juntaram formando clãs. Com o passar do tempo, tornaram-se sedentários, aproveitando as boas colheitas da região, e os clãs se transformaram em grupos cada vez maiores chamados nomos. À medida que as colheitas se tornavam mais abundantes, os nomos se juntaram, formando dois reinos: o Alto Egito e o Baixo Egito. Finalmente, esses dois reinos de unificaram, sob a égide de um único soberano - o faraó.” Fonte: Wikipedia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Camitas. Sémelin refere-se aos hutus como “camitas”, contudo refere-se à origem do tutsis vindos do antigo Egito, criando uma aparente contrariedade na exposição da teoria que diferenciava as duas populações, todavia, após 1950 surge um discurso dizendo que os hutus chegaram às colinas de Ruanda muito antes dos tutsis. 17
L’Imaginaire national: réflexions sur l’origine et l’essor du nationalism. Paris: La Découverte, 1996. apud SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir.2009, p.54. 18
Nations et Nationalisme. Paris: Payot, 1989 apud SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir.2009, p.54.
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Sémelin destaca que a obra não se trata de discutir o que seja “o racismo, o etnismo ou o
nacionalismo”, mas de como os indivíduos que acreditam pertencer a uma raça, etnia ou nação para
atravessar momentos de crise, fazem a representação imaginária do real a partir dessas bases. Afirma o
autor que ocorre um “abandono das individualidades próprias para se fundirem naquilo que percebem
como grupo comum de confluência, sua ‘comunidade’”, e isso se torna a razão que acreditam ser a
“substância do combate”. (SÉMELIN, 2009,p.54-55).
Sémelin passa a tracejar a construção do “nós” feita “à custa da rejeição do ‘Outro’, percebido
como ‘eles’”, a partir do estudo freudiano e seus desenvolvimentos por outros autores, do que Freud
denominou de “estudo das pequenas diferenças”, destacando que “os seres humanos – sempre
semelhantes – procuram se diferenciar, valorizando pequenas diferenças,” exageradamente, o que gera
uma “hostilidade”, sendo “uma inclinação de natureza basicamente narcisista”, a distinção com o outro
é motivo de satisfação consigo mesmo. Interessante, ainda, que como Freud demonstrou quanto mais
próximos os grupos humanos, maiores possibilidades de se “mostrar reciprocamente hostis”, apontando
mesmo um paradoxo. (SÉMELIN, 2009,p.55-56).
O nacionalismo foi entendido por Michael Ignatieff “como uma forma de narcisismo”, eis que
parte de diferenças pequenas, “para transformá-las em diferenças maiores”. Sémelin assevera que o
conflito não é gerado pela marcação da diferença, mas pela “percepção particular dessa diferença – e a
sua instrumentalização -, para assegurar um grupo de indivíduos quanto à sua identidade diante de uma
situação que parece ameaçadora ao grupo.” (SÉMELIN, 2009,p.55-57).
Os indivíduos convivem com as diferenças em tempos de paz sem sequer criarem tensão de sua
identidade, chegando à ignorá-la. Demonstra Sémelin que na Alemanha foram dissolvidas uniões mistas,
relações profissionais e de amizade, esmagando a individualidade, e isso se dá pelo “critério de
identidade”. (SÉMELIN, 2009,p.57).
2.3.2 As figuras do inimigo interno
Sémelin reforça a ideia de que o critério de identidade somente ganha vulto com sua utilização
política, não se deve apenas ao fato de “impulsos da psicologia coletiva”. Os detentores do poder valem-
se “da força emocional da identidade”, manipulando as “emoções de nacionalismo, de racismo ou,
etnicismo.” Todavia, não será barreira para manter-se ou alcançar o poder, apenas o “eles”, mas
também aqueles que fazem parte do “nós” e que não se renderam “à visão de identidade, no que se
refere ao futuro do país.”
Surge daí outro paradoxo, o primeiro inimigo, ao contrário do que se espera, não é o “Outro”
mas partes do “nós”. Sémelin exemplifica nos três casos estudados, que o primeiro inimigo construído
foram os opositores políticos dos detentores do poder, sendo que na Alemanha os campos de
concentração foram criados “para encarcerar os opositores políticos, socialistas e comunistas”;
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Milosevic cerceou “todos aqueles que, no aparelho comunista iugoslavo, eram hostis à sua linha
nacionalista”; Habyarimana humilhou e agrediu, antes do genocídio, os hutus moderados, tidos como
monstros, designados de “ibihindugemb”(“seres sem pé nem cabeça”). (SÉMELIN, 2009,p.58).
Essa construção se dá em razão da necessidade de um controle dos membros do grupo, um
controle que congregasse todos esses membros, rejeitando-se aqueles que se tornavam cúmplices dos
“Outros”. Dessa forma o “totalitarismo”, tido como a “visão de uma sociedade totalmente nivelada”,
parece esbarrar, como de fato esbarra, na diversidade social real intrassistêmica.19 (SÉMELIN,
2009,p.59).
Sémelin aborda a visão de Hannah Arendt, que afirmara ser a relação entre ideologia e terror, a
base do totalitarismo, para acrescentar que isso aponta mais para uma forma de instrumentalização,
sem considerar os “fatores do imaginário: o imaginário da unidade a qualquer preço contra um inimigo
comum.” Cita essa consideração, a partir da obra de Claude Lefort, que demonstrou a “imagem do ‘povo
Uno’” eliminando os que não eram parte “dessa unidade”. O importante nesse ponto é que essa busca
por unidade, apesar de fictícia, traz uma conformação às relações sociais, tornando-se o locus de
“poderosos vetores do crescimento da violência em massa: o desejo louco de se querer construir um
mundo sem conflitos, sem inimigos.” (SÉMELIN, 2009,p.61).
Sémelin aborda ao final desse subtítulo uma breve compilação dos itens anteriores, defendendo
que o “poder do imaginário oferece uma abordagem menos restritiva”, dessa forma:
A vontade de identidade, que se constrói com a rejeição do ‘Outro’ diferente, exprime, no fundo, o desejo regressivo de uma ‘unidade’ perfeita. O fantasma narcísico da quietude absoluta do recém-nascido, expulsando o mau objeto, como descreveu Franco Fornari, não está longe disso. Essa reconstrução de identidade do Um contra o Outro atesta o desejo fantasmático de reencontrar o Um sem o Outro. O desejo fusional do Um com o Um ou do Eu com o Eu impede qualquer veleidade de discussão e compromisso. É impossível que um indivíduo pertencendo ao ‘nós’ ouse dizer seu desacordo com relação à mônada identidade. (SÉMELIN, 2009,p.61)
2.4 DA BUSCA DE PUREZA À FIGURA DO OUTRO A MAIS
A pureza é um fator que contribui na construção da identidade, pois como explica Sémelin,
“definir-se como ‘puro’ implica, na prática, categorizar um ‘Outro’ como impuro.” Nesse sentido, “a
necessidade de purificação é uma mola propulsora do religioso, constituindo um formidável trampolim
para que se desencadeie uma violência purgadora.” (SÉMELIN, 2009,p.62).
19
Sémelin cita como exemplo a situação vivida pela alemã “Marie Kahle, uma ‘ariana’ que se atreveu a ajudar uma comerciante judia, em Bonn, a repor a ordem em sua loja, devastada por militantes nazistas na Noite dos Cristais quebrados (9 de novembro de 1938)”, esse “simples gesto” foi denunciado na imprensa, o marido “passou a ser prejudicado no trabalho, sem contar os maus-tratos que os filhos sofreram na escola.” Sua casa foi pichada com os seguintes dizeres: “Traidores do povo, amigos de judeus.” (SÉMELIN, 2009,p.60)
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Sémelin aborda o aspecto psicológico da estruturação “binária” dos “clichês – puro/impuro,
limpeza/sujeira, brancura/negrura”, porque responde “ao funcionamento elementar do psiquismo
humano em situação de crise.” É de onde surge a questão de “saber quem nos quer bem ou mal”, a
diferenciação “constitui o espaço imaginário, dentro do qual podem sedimentar ideologias que, apesar
de erradas, parecem credíveis e tranqüilizadoras.” (SÉMELIN, 2009,p.62).
Essa ideia de pureza tem uma ligação com a “apologia da natureza”, levando a uma construção
de “um todo homogêneo, quase corporal” que o sociólogo Michael Mann denominou “‘pureza
orgânica’”. Os Estados modernos, em sua maioria, referem-se “à ideia de povo, que se pressupõe dizer
‘nós’, como se tratando de uma só e mesma ‘pessoa’ coletiva.” Ocorre que, ao se conceber como “um
todo orgânico”, em dado território, essa construção se faz “à custa de um Outro, percebido como
estrangeiro.” A noção de povo congrega duas significações distintas, uma é o “demos” (“massa da
população”), a outra, utilizada na modernidade, o povo seria a “nação”, traduzida pela ideia grega do
“ethnos”, isto é, “um grupo étnico, uma população partilhando a mesma herança comum, diferente de
outro povo.” Gerando o risco iminente “da autodefinição como ‘povo puro’, com relação a um outro,
‘impuro’.”20 (SÉMELIN, 2009,p.65).
Sémelin destaca que “as ideias fundadoras da democracia podem, assim, engendrar formas
diversas de violência política ou de purificação étnica.” Com base em citação de Michael Mann, aponta
que a “concepção orgânica da nação e do Estado” formada pela junção entre demos e ethnos,
“encoraja a purificação étnica das minorias”, e isso seria o substrato da democracia. Mann comprova
tais alegações com base nos massacres indígenas realizados pelas “potências eurpeias” e pelos
presidentes estadunidenses, inclusive em seus discursos chegaram a propugnar o assassinato de
mulheres e crianças(Andrew Jackson). (SÉMELIN, 2009,p.65-66).
Não só os projetos democráticos, mas também o fascismo e o comunismo, demonstra Mann,
exploraram a “pureza orgânica”, alternando apenas na construção do inimigo, sendo o primeiro étnico e
o segundo político, estabelecendo-se um “paralelo entre inimigos de ‘raça’ e inimigos de ‘classe’. (Cf.
SÉMELIN, 2009,p.66-67).
Sémelin acresce à teoria de Mann, dizendo que o autor não percebeu as diferenças entre “os
dois tipos fundamentais de pureza”, sendo que teríamos “uma pureza baseada na identidade (da qual o
nazismo foi a expressão mais acabada) e uma pureza baseada na política (da qual os comunismos
stalinista e cambojano foram as formas paroxísmicas)”, cada uma delineia o inimigo de forma diferente.
A pureza de identidade cria o “‘eles’, percebido como fundamentalmente diferente do ‘nós’, se torna
algo como um Outro a mais.” Exorbita-se a diferença, a “angústia do ‘nós’” faz “querer a sua 20
Sémelin destaca para ilustrar essas afirmações a Constituição dos Estados Unidos e o hino francês, sendo que vemos essa pessoa coletiva no primeiro exemplo, “Nós, o povo(We, the people)”, e no segundo a ideia do orgânico e do ethnos, nos seguintes trechos, “Vamos, filhos da pátria[Allons, enfants de la patrie...]” e “Que um sangue impuro embeba os sulcos do arado![Qu’un sang impur abreuve nos sillons!]”. (SÉMELIN, 2009,p.65)
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destruição.” Sémelin demonstra que a partir desse imaginário criam-se diferenças qualitativas de
sangue, costumes, nariz, cor, origem, dentre outras, gerando um discurso de “purificação étnica”,
entendendo-se primeiramente como vítimas, sujeitas a uma contaminação. (SÉMELIN, 2009,p.67-68).
2.4.1 Pureza de identidade e pureza política
Sémelin vale-se da distinção entre pureza de identidade e pureza política como
“enquadramentos fundamentais de leitura dos processos de violência que podem conduzir aos
massacres”. (SÉMELIN, 2009,p.73).
A distinção fundamental é a de que na pureza de identidade “o olhar(...) tende a se concentrar
em um inimigo único, como o ‘judeu’, ou o ‘tutsi’, enquanto o da pureza política faz uma varredura do
corpo social em busca de seus supostos traidores.” Da pureza de identidade surge “o inimigo, visto
como um Outro a mais”, da pureza política objetivasse “submeter a sociedade, eliminado o inimigo visto
como suspeito”, são, portanto, “lógicas de violência” distintas. (SÉMELIN, 2009,p.72).
A semelhança entre as duas formas de pureza está no fato de que preconizam uma
“animalização do que percebem como impuro”, mas o que Sémelin quer chamar a atenção é
exatamente para o fato de que, em que pese haver uma interação dessas “lógicas de violência”, como
demonstrado na base de formação do “nós” contra “eles”, mais precisamente no que toca à eliminação
de parte do “nós”(item 2.3.2), uma ou outra constituirá a “‘marca de fábrica’ original de um sistema de
violência”, não as duas juntas. (SÉMELIN, 2009,p.72-73).
2.5 DO DILEMA DE SEGURANÇA À DESTRUIÇÃO DO INIMIGO
Além da busca da pureza como fator essencial à deflagração do processo de violência, Sémelin
aponta que “a necessidade de segurança” é outro multiplicador das potencialidades desse processo. O
medo do “Outro, percebido como um estranho ou um semelhante hostil, sobre o qual se catalisa a
angústia do desconhecido.” Há uma perda dos referenciais, e os momentos de crise são propensos
para o desenvolvimento dos medos. A dificuldade de se compreender esse medo, faz com que se
transforme em ódio do Outro. Os discursos que surgem ajudam a estruturar esse medo em ódio,
despertando lembranças dolorosas. Como apontou a antropóloga Véronique Nahoum-Grappe, citada
por Sémelin, “a percepção coletiva de um perigo funesto cria o sentimento do trágico”, desta forma,
“uma situação dita trágica não tem saída, obriga a ação humana a uma atitude, no mais das vezes
violenta”, suscitando um desejo de vingança. (SÉMELIN, 2009,p.73-75).
2.5.1 Complô e paranóia
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Nesse subitem Sémelin une as figuras do inimigo interno e externo, pois a criação deste último
reforça a angústia, fala-se em guerra, o que torna as representações imaginárias destes dois inimigos
“um potencial de violência,(...) passível de vir se materializar na realidade.” (SÉMELIN, 2009,p.75-76).
Nesse contexto surge “a retórica do complô”, o inimigo externo sustenta o interno, “são os
mesmos”. Sémelin destaca que as teorias da conspiração21 que surgem nesses contextos são
tipicamente paranoicas, pois se assemelham às descrições psiquiátricas para as personalidades
paranoicas, senão vejamos:
As características paranoicas se reconhecem na associação da desconfiança (agressividade exagerada com relação ao próximo), com a psicorrigidez (incapacidade para questionar seu próprio sistema de valores), a hipertrofia do ego (podendo chegar à megalomania) e o falseamento do juízo que constitui o traço essencial de uma personalidade paranoica. A lógica do paranoico é desvirtuada pela paixão, que o leva a uma interpretação delirante da realidade. Suas ideias se orientam por uma crença a priori. A dúvida é tão estranha ao paranoico quanto a autocrítica. Seu raciocínio, aparentemente racional, na verdade tem natureza hiperafetiva e, no final das contas, representa apenas a justificativa das suas tendências emocionais.(SÉMELIN, 2009, p.77)
Em suma, o paranoico não questiona suas premissas, imputa todas as dificuldades aos outros,
todos estão errados menos ele, mas dada à incolumidade das faculdades mentais e racionalidade das
interpretações, pode angariar adesão ao seu pensamento. (Cf.SÉMELIN, 2009,p.77-78)
2.5.2 Racionalidade delirante'
Sémelin denomina “racionalidade delirante” o “núcleo retórico” dos discursos que unem o “nós”
contra o “eles” maligno, gerando adesão e construindo o processo de violência. Tais discursos têm apoio
em teorias científicas, justificando-os, como por exemplo, o “darwinismo social”, a “seleção natural das
espécies animais” transmutou-se em guerra de raças, “a raça germano-ariana, produtora, e a raça
judaica, parasita.” (SÉMELIN, 2009,p.79).
Sémelin destaca que essa “racionalidade delirante” tem o papel não só de “estruturar, em um
discurso ideológico suficientemente elaborado, as figuras do inimigo a se destruir”, mas também ajustar
esse discurso “a uma prática de destruição”, verificando-se “a permeabilidade entre o imaginário e o
real.” (SÉMELIN, 2009,p.79-80).
Em sequência Sémelin desconstrói a afirmativa de que quem difunde esses discursos possui
necessariamente uma personalidade paranoica (Hitler e Stalin), ou carismática (Hitler). Milosevic, por
exemplo, converteu-se do comunismo ao nacionalismo, por oportunismo político, massacres ocorreram
21
Cita como exemplo a associação “judeo-bolchevismo” feita por Hitler, pós 1920, reforçada pela publicação de seu “livro-manifesto, Mein Kampf, em 1923”. A tese de Hitler baseava-se no sucesso perpetrado na revolução de 1917, pelo documento denominado Os protocolos dos sábios de Sião, elaborado no século XIX pela polícia czarista, no qual um membro do governo que era “judeu (os sábios de Sião) expunha, ao longo de 24 reuniões secretas, a maneira de se chegar ao domínio do mundo”. Criando-se o mito de que os judeus queriam conquistar o mundo, estavam ligados aos bolcheviques. (Cf.SÉMELIN, 2009,p.76-77).
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sem que os países fossem governados por líderes carismáticos. Sémelin destaca que parece mais
importante a “natureza do discurso proposto ao público em situações de crise. A estrutura e os temas
do discurso irão ou não acarretar a adesão.” (SÉMELIN, 2009,p.80).
Uma vez mais reforça a ideia de que em situações de crise os discursos paranoicos captam a
emoção coletiva, criando a figura imaginária do inimigo, jungido à racionalidade, suscita a convicção e
mobilização “em proveito de uma ação, donde o perigo dessa racionalidade delirante”. Daí advém “uma
das chaves para compreensão da passagem ao ato. Convencidos da iminência do perigo, elaborado a
partir do imaginário do medo, os homens são levados a buscar meios racionais para erradicar a
ameaça.” (SÉMELIN, 2009,p.80).
Sémelin refuta a ideia de que essa dinâmica que conduz à violência, a partir da exacerbação do
“imaginário do medo”, é típica de regimes totalitários, pois o fenômeno do “confronto radical entre o
‘nós’ e ‘eles’ pode ser observado em outros contextos de crise.” Aponta como exemplos, a propaganda
nazista dos anos 20, que já preconizava a destruição do “eles”, bem como no período antecedente ao
confronto sérvio e croata, os diversos conflitos “étnicos” e “religiosos”. A questão é que “tudo se passa
como se o conflito imaginário ganhasse a configuração de um imperiosos dilema de segurança”, esse
dilema é semelhante a uma situação de guerra, tornando a ação “inelutável: já que eles querem nos
matar, vamos matá-los antes.” (SÉMELIN, 2009,p.82).
2.5.3 Destruir “eles” para salvar o “nós
Sémelin compara a radicalização da oposição amigos/inimigos, tido como ponto inicial da
guerra, tratado no final do subitem anterior, com a concepção de político apresentada por Carl Schmitt,
para quem “a percepção do inimigo a se destruir é a essência, propriamente, da política.” Apesar de
entender que os políticos também podem servir como conciliadores, construtores de um espaço
público, entende que em momentos de crise, há o desaparecimento de um terceiro mediador,
reduzindo-se a relação conflituosa, seja no imaginário, seja no real, “ao confronto radical
amigos/inimigos”. (SÉMELIN, 2009,p.83).
Essa radicalização traz a representação de um “‘Outro total’, totalmente inimigo”, as diferenças
tornam-se intransponíveis, esse “Outro”, não mais animalizado, torna-se coisa22.
Em suma, o processo dos imaginários da destrutibilidade social se inicia com a “construção da
identidade pela marcação da diferença”, esse processo se radicaliza para gerar a reivindicação da pureza
para si e contra um “‘Outro’, percebido como sujo, estranho, corrompido e traidor.” O medo,
potencializa, por razões de segurança, a rejeição ou destruição do “eles”, o que “marca, bem
22
Sémelin cita Simone Weil para quem “A violência é o que torna qualquer pessoa uma coisa. Quando exercida até o fim, torna o homem uma coisa, no sentido mais literal, pois torna-o um cadáver.” (L’Iliade ou le poème de la force, in: La Source grecque. Paris: Gallimard, 1953, pp.12-13 apud SÉMELIN, 2009,p.84).
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claramente, a onipotência de um ‘nós’ que triunfa da morte.” A identidade, pureza e segurança,
portanto, estão “imbricadas e se reforçam mutuamente”, cada uma em seu papel, sendo a identidade
fornecedora do “quadro em que toma forma o processo de violência. A vontade da pureza endurece
esse enquadramento de identidade, enxertando nele a temática do sagrado, religioso ou secular, que,
com isso, se remete ao absoluto”, por fim a “necessidade de segurança”, emergida num “contexto de
crise que levou ao desenvolvimento daquela formação imaginária, torna urgente a passagem ao ato.”
Dessa forma, Sémelin entende que “esse núcleo psicológico elementar, enraizado no imaginário infantil,
se encontra na base dos processos de violência que eventualmente levam ao massacre.” E em que
pesem as diferenças na concretização política dos massacres, é a manipulação desse “núcleo
psicológico”, imaginário, em contextos de crise, dominados por “ansiedades” que se “torna realmente
destrutivo ‘entrando em reação’”.
Posteriormente, Sémelin faz referências às teorias autorrealizadoras, com base nos trabalhos de
Georges Lefebvre, Robert Merton, Keynes e Jeans François Bayart, segundo as quais o imaginário ou as
representações imaginárias podem criar o real, citando os casos da Revolução Francesa, quebra de um
banco em 1932, e o caso de Ruanda. Para daí concluir que se o cenário de um discurso público, que
“cristaliza” o “imaginário político de destruição do ‘Outro’” seria “suficiente para precipitar a passagem
ao ato”, então admitiríamos que “o problema da intenção” estaria na articulação do massacre.
Nesse subitem de conclusão do capítulo I, portanto, Sémelin aborda uma visão geral dos pontos
tratados nos itens anteriores, a fim de estabelecer o ponto de partida do segundo capítulo, isto é,
“como o imaginário de onipotência e destruição, (...) pode, pouco a pouco, afetar uma sociedade,
fazendo nascer um verdadeiro discurso incendiário e, finalmente, causando efeitos sociais cada vez mais
devastadores?” (SÉMELIN, 2009,p.87).