lacan, jacques - o seminário - livro 8 - a transferência copy

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uesLacan MINARIO livro 8 n ferencia It xl tabelecid~ por J'l ques-Alain Miller Alcibiades quis subordln r 6r t 0 objeto de seu desejo, d I , AI Ibr d s, que e agalma, 0 bom ·objeto. Como neo reconhecermos, nos analistas, 0 qu sta em questeo? Isso e dito c1aram nt :e 0 bom objeto que Socrates temnoventre .. Socrates, ali, nao e mais que um Involu- cro daquilo que e 0 objeto do desejo. E mesmo para marcar que ele neopassa desse involucro que Alcibiades qUis ma- nifestar que Socrates e, em relac;ao a ele, o servo do desejo, que Socrates Ihe esta assujeitado pelo desejo. 0 desejo de So- crates, ainda que 0 conhecesse, elequis ve-Io manifestar-se em seu sinal, para saber que 0 outro, objeto, agalma, estava a sua merce. Ora, e justamente 0 ter fracassado nessa tentativa que, para Alcibiades, 0 cobre de vergonha. [...] E que, diante de todos, e desvelado em seu trac;o 0 segredo mais chocante, a ultima mola do desejo, que sempre obriga, no amor, a dissimula-Io um pouco: seu objetivo ea. queda do Outro, A, em outro, a. IlilmlrjlO~mr 9 788571 102361 IJz'EI Jorge Zahar Editor quesLacan SEMINARIO livro 8 a transfer9ncia Jorge Zahar Editor

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Page 1: lacan, jacques - o seminário - livro 8 - a transferência copy

uesLacanMINARIO

livro 8n ferencia

It xl tabelecid~ porJ'l ques-Alain Miller

Alcibiades quis subordln r 6 r t 0

objeto de seu desejo, d I , AI Ibr d s,que e agalma, 0 bom ·objeto. Como neoreconhecermos, nos analistas, 0 qu staem questeo? Isso e dito c1aram nt : e 0

bom objeto que Socrates tem no ventre ..Socrates, ali, nao e mais que um Involu-cro daquilo que e 0 objeto do desejo.

E mesmo para marcar que ele neo passadesse involucro que Alcibiades qUis ma-nifestar que Socrates e, em relac;aoa ele,o servo do desejo, que Socrates Ihe estaassujeitado pelo desejo. 0 desejo de So-crates, ainda que 0 conhecesse, ele quisve-Io manifestar-se em seu sinal, parasaber que 0 outro, objeto, agalma, estavaa sua merce.

Ora, e justamente 0 ter fracassado nessatentativa que, para Alcibiades, 0 cobre devergonha. [...] E que, diante de todos, edesvelado em seu trac;o 0 segredo maischocante, a ultima mola do desejo, quesempre obriga, no amor, a dissimula-Ioum pouco: seu objetivo ea. queda doOutro, A, em outro, a.

IlilmlrjlO~mr9 788571 102361

IJz'EI Jorge Zahar Editor

quesLacanSEMINARIO

livro 8

a transfer9nciaJorge Zahar Editor

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CAMPO FREUDIANO

NO BRASIL

Colel(ao dirigida por Jacques-Alain e Judith MillerAssessoria brasileira: Angelina Harari

Jacques Lacan,o SEMINARIO

livro 8a transferencia

Texto estabelecido porJacques-Alain Miller

Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

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TItulo original:Le Seminaire de Jacques Lacan

Livre VIII: Le Transfer! (1960-1961 )

Tradu9ao autorizada da primeira edi9ao francesa,publicada em 1991 por Editions du Seuil, de Paris, Fran9a,

na cole9ao Champ Freudien, dirigida por Jacques~Alain e Judith Miller

Consultor desta versao: Antonio Quinet

Copyright © 1991, Editions du Seuil

Copyright © 1992 da edi9ao em lingua portuguesa:Jorge Zahar Editor Ltda.rua Mexico 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro, RJtel.: (21) 240-0226 / fax: (21) 262-5123

e-mail: [email protected]: www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados.A reprodu9ao nao-autorizada desta publica9ao, no todoou em parte, constitui viola9ao do copyright. (Lei 5.988)

Edi9ao para 0 Brasil

Copidesque: Andre TellesComposi9ao: TopTextos Edi90es Graficas

a transferencia1960-1961

CIP-Brasil. Cataloga9ao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Lacan, Jacques, 1901-1981L129s 0 seminario, livro 8: a transferencia 1960-1961 / Jacques

Lacan; texto estabelecido por Jacques Alain-Miller; versaobrasileira de Dulce Duque Estrada; revisao do texto, Romildodo Rego Barros. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

(Campo Freudiano no Brasil)

Tradu9ao de: Le Seminaire de Jacques Lacan, livre VIII:Ie transfert (1960-1961)

Inclui bibliografiaISBN: 85-7110-236-8

Versao brasileira deDulce Duque Estrada

Revisao deRomildo do Rego Barros

1. Complexos (Psicologia). 2. Psicanalise - Discursos,conferencias etc. I. Miller, Jacques-Alain. II. Titulo. III. Titulo:A Transferencia. IV. Serie.

COD -150.195CDU - 159.964.2

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A MOL A DO AMORUrn comentario sobre 0 Banquete de Platao

II Cenario e personagens . . . . . .III A metafora do amor: Fedro . . .IV A psicologia do rico: Pausanias .V A harmonia medica: Eriximaco .

VI A derrisao da esfera: Arist6fanesVII A atopia de Eros: Agatao

VIII De Episteme a MuthosIX Saida do ultra-mundo ..X Agalma . . . . . . . . . .

XI Entre Socrates e Alcibiades

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100115128139152

o OBJETO DO DESEJOE A DIALETICA DA CASTRA<;Ao

XII A transferencia no presente . . . . . . .XIII Critica da contra-transferencia .....XIV Demanda e desejo nas fases oral e anal .XV Oral, anal, genital .

XVI Psique e 0 complexo de castra~ao .XVII 0 simbolo <I> . .

XVIII A presen~a real . . . . . . . . . . .

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o MITO DE EDIPO HOJEUrn comentario da trilogia dos CoUfontaine,

de Paul Claudel

XIX 0 niio de Sygne. . . .XX A abje~iio de TureIure

XXI 0 desejo de Pensee . .XXII Decomposi~iio estrutural

261275291305

XXIII Deslizamentos de sentido do ideal ...XXIV A identifica~iio por ein einziger Zug ..XXV A angustia na sua rela~iio com 0 desejo

XXVI Sonho de uma sombra, 0 homemXXVII 0 analista e seu luto . . . . . . .

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Nota .Notas de tradu~iio

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A Schwarmerei de Platlio.Socrates e Freud.Critica da intersubjetividade.A beleza dos corp os.

Anunciei para este ana que trataria da trapsfurencia em su diSJzarz aaesulJietiva~ su :..p.r:e.tenSa-situa£aq;, fSuGsexcurs6esJicnLca~

Disnaridade nao e urn termo que tenha escolhido facilmente. Elesublinha, essencialmente, que aquilo de que se trata vai alem da simplesn~ao de uma dissimetria entre os sujeitos. f:le se insur~, se assim possodizer, desde 0 principio, contra a ideia de ue a intersub'etivida §a,por si s6 fomecer 0.9uadro no ffilll-lsejnscreve 0 fenQmeno. Para dize-Io,existem palavras mais ou menos c6modas, con forme as linguas. E doterm~ que busco algum equivalente para qualificar 0 que a transfe-rencia con tern de essencialmente impar. Nao existe termo para desig-mi-lo, a nao ser 0 termo imparidade (imparite'), que nao e usual em frances.

Sua pretensa situarag, diz ainda meu titulo, indicando desse modoalguma referencia ao esfor~o feito nesses ultimos anos, na analise, paraorganizar aquilo que se passa no tratamento em tomo da no~ao desitua~ao. A palavra pretensa esta ai para dizer que me inscrevo em fa Iso,ou pelo menos numa posi~ao corretiva, em rela~ao a esse esfor~o. Naocreio que se possa dizer sobre a analise, pura e simplesmente, que haja aiuma situa~ao. Se houver uma, e uma da qual se pode tambem dizer quenao e uma situa~ao, ou ainda, que iJuna situa~ao bem fa~

Quanto a tudo 0 que se apresenta como~, isso deve seinscrever como referido a esses principios ou, pelo menos, a essa buscade principios que ja se evoca na indica~ao dada por meu titulo dessas

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diferens:as de abordagem. Em uma palavra, uma justa topologia e aquirequerida, e por conseguinte, uma retificas:ao daquilo que esUi comumenteimplicado no uso que fazemos diariamente da nos:ao, teorica, de transfe-rencia. Trata-se de referi-Ia a urna experiencia. Esta, no entanto, conhe-cemos inuito bern, na medidaem que ten amos, de alguma forma, prati-cado a experiencia analitica.

Demorei muito a chegar a este mieleo de nossa experiencia. Deacordo com a data em que comes:a este seminario, que e aquele no qualoriento alguns de voces ha alguns anos, e no seu oitavo ou decimo anoque abordo a transferencia. Verao que este longo atraso nao era sem raziio.

Comecemos, pois.

No come~o-Todos me irao logo imputar uma referencia a alguma parafrase da formulaNo come~o era 0 Verbo.

1m Anfang war die Tat, diz urn outro.Para urn terceiro, no principio, isto e, no comes:o do mundo humano,

no principio era a praxis.Eis ai tres enunciados aparentemente incompativeis. Mas na verda-

de, do ponto em que nos situamos para aborda-Ia - a experiencia analitica- 0 que importa nao e, de modo algum, seu valor de enunciado, mas simo seu valor de enuncia~ao, ou ainda de anuncio, quero dizer, aquilo peloqual fazem surgir 0 ex-nihilo proprio a toda a crias:ao, e mostram sualigas:ao intima com a evocas:ao da palavra. Neste myel, manifestamevidentemente que recaem no primeiro enunciado, No come~o era 0

Verbo.Se evoco isto, e para diferencia-Io do que digo, e 0 ponto de onde

YOUpartir para enfrentar esse termo, 0 mais opaco, este nUeleo de nossaexperiencia, que e a transferencia.

Entendo partir, quero partir, YOUten tar partir - comes:ando comtodo 0 mau jeito necessario - partir hoje disso: que Q termo no come£o!9D, certamente, um outro sentido em analise.

,No come~o d~p-!<riencia analitica, vamos lembrar, foi 0 arnor.Este come~o e algo diferente da transparencia propria da enuncia~ao, quedava seu sentido as formulas de agora ha pouco. E um come~o espesso,um come~o confuso. E urn com~o, nao de cria~ao, mas de forma~ao.Logo chegarei ao ponto historico, onde nasce, do encontro de urn homeme urna mulher, de Joseph Breuer e Anna O. no caso inaugural dos "Studieniiber Hysterie", onde nasce aquilo que ja e a psicanalise, e que a propriaAnna batizou com 0 termo talking-cure, ou ainda limpeza de chamine,chimney sweeping.

Antes de chegar la, quero lembrar urn instante, para os que naoestavam aqui no ana passado, alguns dos termos em tomo dos quais girounossa exploras:ao daquilo a que chamei a etica da psicanalise.

No ana passado, quis explicar para voces - dig amos, para mereferir a palavra "crias:ao" que dei ha POllCO- a estrutura criacionistado ethos humano enquanto tal, 0 ex-nihilo que subsiste em seu ceme e queconstitui, para empregar um termo de Freud, 0 nueleo de nosso ser, Kernunseres Wesens. Quis mostrar que este ethos toma forma em tomo desseex-nihilo, que subsiste num vazio impenetravel.

Para aborda-Io, e para designar esse carater impenetravel, comecei,como se recordam, por urna critica cujo fim consistia em rejeitar expres-samente aquilo a que me permitirao chamar, ou pelo menos aqueles queme escutaram vao tolerar que eu chame assim, a Schwiirmerei de Platiio.

(Schwiirmerel para os que nao sabem, designa em alemao~Cfilnta~ dirigido para urn entusiasmo qualquer, e mais especialmente para

a superstilYao. Em suma, trata-se de uma notalYaocritica, acrescentada pe1ahistoria, na ordem da orientalYao religiosa. 0 termo Schwiirmerei tern, ~~!>

nitidamente, essa inflexao nos textos de Kant. Pois bern, ,a Schwiirmerei ~~de Platiio e ter projetado, sobre a uilo a_que eu chama 0 vazio im12enetra- ~~,,+'"~a..ao Bern s.upremo.

Tal e 0 caminho que, com mais ou menos sucesso, seguramente,numa intenlYao formal, tentei seguir. 0 que resulta para nos da rejeilYao danOlYaoplat6nica de Bern Supremo como ocupando 0 centro de nosso ser?

Para retomar nossa experiencia, sem duvida, mas com urna visadacritica, procedi em parte do que se pode chamar de conversao aristotelicacom relalYao a Platiio. Aristoteles, sem duvida alguma, esta superado paranos no plano etico, mas no ponto em que estamos, ao dever mostrar 0

destino historico das nOlYoeseticas a partir de Platao, a referencia aristo-telica e certamente essencial.

Acompanhando 0 que contem a Etica a Nic6maco de passo decisivo 'L\;;\

II na edificalYao de uma reflexao etica, e dificil deixar de ver que, se man tern ~Jt<)'o\\c-

a no~ao de Bern Supremo, ela altera profundamente 0 seu sentido. Por urn~xaoJnverso, vai faze.::lQ....c~oJlSisllrJla-kOlltrnlpla~sI!§trg~, isto e, da esfera !llais exterior do lDID1do.E e justamente porqueesta esfera, que era para Aristoteles urn existente absoluto, incriado,incoITuptivel, e para nos decisivamente volatilizada na pulverizalYao dasgalaxias, ultimo termode nossa investigalYao cosmologica, que se podetomar a referencia aristotelica como ponto critico daquilo que esta natradilYao antiga da nOlYaode Bern Supremo.

Fomos sendo levados, por este passo, a ficar contra a parede, aparede sempre a mesma desde que urna reflexao etica tenta se elaborar.Era-nos preciso assumir ou nao algo de que a reflexao, 0 pensamentoetico, nunca puderarn se desembaras:ar, a saber, que so existem born, good,

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Gute e prazer a partir do Bern. E restava-nos buscar 0 princlplO doWholtat, do bem-estar, e 0 que dele se infere permite dizer que talvez elenao seja simplesmente a B.A., a boa a9ao, ainda que elevada it potenciakantiana da maxima universal.

Se devemos levar a serio a demincia freudiana da falacia das satis-fa90es ditas morais, na medida em que ali se dissimula uma agressividadeque atua furtando itquele que a exerce 0 seu gozo, ao mesmo tempo emque repercute sem cessar, sobre seus parceiros sociais, os seus maleficios- 0 que e indicado por essas long as condicionais circunstanciais eexatamente 0 equivalente ao "Mal-estar na civiliza9ao" na obra de Freud.Deve-se uestionar atraves de ue meios 0 erar honestamente com os<jesejos. Isto e, como preservar_o desej~Q., a_rela ao do desej2....c0!llo ato? .0 desejo enco.nlIa comumente, no ate antes Q. se.!!...£olapso que a~ua realiza9ao, e na melhor das hi oteses 0 ate so a res~nta_a.o desej~a'pr~eza, seu gesto heroico. Como preservar, digo, do desejo a es~,!!quilo a que se pode chamar de uma rda9ao simples, ou salubre?

Deixemos de rodeios uanto ao significado de r[tilu~ no sentidoda experiencia freudiana ignifica livr , tiio livre quanto possivel dessainfec9ao, que e, aos nossos olhos - mas nao somenle aos nossos olhos,aos olhos desde sempre, desde que se abrem it reflexao etica - a basmovedi9a de lodo estabelecimento social en uanto tal. --

Isso Sllpoe; decerto, que a psicanalise, em seu proprio manual deopera90es, nao respeita este ponto cego, essa catarata inventada recente-mente, essa praga moral, essa forma de cegueira constituida por uma certapratica do ponto de vista dito sociologico. Poderia lembrar aqui 0 quesignificou a meus olhos certo encontro recente com 0 resultado, vazio eescandaloso ao mesmo tempo, desta pesquisa que pretende reduzir umaexperiencia como a do inconsciente it referencia de dois, tres, ate mesmoquatro modelos sociologicos - mas minha irrita9ao, que foi grande, japassou, e you deixar os autores de tais exercicios cairem nas arapucas queos quiserem recolher.

Devo esclarecer que, falando nesses termos de sociologia, nao merefiro certamente ao nivel de medita9ao em.que se situa a reflexao de urnLevi-Strauss - consultem seu discurso inaugural no College de France- que se refere expressamente a uma medita9ao etica sobre a praticasocial. A dupla referencia a uma norma cultural, por urn lado, mais oumenos miticamente situada no neolitico, e it medita9ao politica de Rous-se·au, por outro lado, e ali suficientemente indicativa. Mas deixemos isso,que nao nos interessa absolutamente aqui.

Vou recordar apenas que foi pelo vies da referencia propriamenteetica, constituida pela reflexao selvagem de Sade, que foi sobre os cami-nhos insultuosos do gozo sadiano que lhes demonstrei urn dos acessospossiveis it fronteira propriamente tragica na qual se situa 0 Oberland

freudiano. E no seio daquilo que alguns de voces batizaram de entre-duas-mortes -, termo muito exato para designar 0 campo onde se articula comotal tudo 0 que acontece no universo tra9ado por SOfocles, e nao apenas naaventura do Edipo rei - que se situa este fenomeno do qual creio poderdizer que introduzimos urn ponto de referencia na tradi9ao etica, nareflexiio sobre os motivos e as motiva90es do Bem. Este ponto de referen-cia, designei-{) adequadamente como sendo 0 da beleza, na medida emque esta adorna, ou melhor, tern por fun9ao constituir a ultima barreiraantes doacesso a coisa ultima, Ii coisa mortal, nesse ponto em que amedita9ao freudiana veio fazer sua ultima admissao sob 0 termo pulsiiode morte.

Pe90-lhes perdiio por este longo desvio, que nao e mais que urnbreve resume no qual acreditei dever tra9ar aquilo que dissemos no anopassado. Essa digressiio era necessaria para recordar, na origem do quetemos a dizer agora, aquilo em que nos detivemos relativamente Ii fun9aoda beleza. Com efeito, nao precise evocar, para a maioria de voces, 0 queconstitui 0 termo "belo", "beleza", neste ponto de inflexao que chameia Schwdrmerei platonica.

Provisoriamente, a titulo de hipatese, vamos considerar que estaconstitui, no nivel de uma aventura senao psicologica, ao menos indivi-dual, 0 efeito de urn luto que se pode bem dizer imortal, ja que esta napropria origem de tudo 0 que se articulou a partir dai, em nossa tradi9ao,sobre a ideia de imortalldade - do luto imortal daquele que encamou estaaposta de sustentar sua questiio, que e a propria questiio de todo falante,no ponto em que ele a recebeu, essa questiio, de seu proprio demonio,segundo nossa formula, sob urna forma invertida. Estou falando de Socra-tes - Socrates posto, assim, na origem, vamos dize-Io sem demara, damais longa transferencia - 0 que daria a essa formula todo 0 seu peso -ja conhecida pela historia.

~do..fazUos sentir Que 0 segredo de Socrates estara PQ.Ltrlis_de!!!do 0 ue diremos este ano sobre a transferencia.

Este segredo, Socrates 0 confessou. Mas nao e porque se 0 confessa queurn segredo deixa de ser um segredo. Socrates pretende nada saber, senaosaber reconh c~que e 0 amor, saber reconhecer infalivelmente, nos dizele - passo ao testemunho de Platiio, em especial no Lisis, paragrafo 204c -,1all onde os encontra, QIUk-.es.tli0 amante....!Londeesta 0 amado.

Sao multiplos os casos dessa referencia de SOCrates ao amor, e nosreconduzem ao nosso ponto de partida, na rnedida em que pretendo hojeacentua-Io. De fato, por pudico ou inconveniente que seja 0 veu mantido,

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semidescartado, sobre 0 acidente inaugural que desviou 0 eminenteBreuer de dar toda uma continuidade a primeira experiencia, no entantosensacional, da talking cure, e bem evidente que se tratava de uma historiade amor. Que essa historia de amor nao tenha existido apenas pelo ladoda paciente tambem nao e duvidoso.

Nao basta dizer, nos termos deliciosamente contidos que SaD osnossos, como faz 0 Sr. Jones em certa pagina de seu primeiro volume dabiografia de Freud, que Breuer teria sido vitima do que se chama - dizele - uma contra-transferencia urn pouco acentuada. E claro que Breueramou sua paciente. Nao precisamos de urna prova mais evidente disso doque aquela que, em casos semelhantes, e a saida bem burguesa, 0 retornoa urn fervor conjugal reanimado, a via gem urgente a Veneza, tendo mesmocomo resultado 0 froto de uma nova garotinha acrescentada a familia,sobre a qual, com muita tristeza, Jones nos indica que 0 fim, muitos anosdepois, deveria se confundir com a catastrofica irruP9ao dos nazistas emViena.

Nao se deve ironizar sobre esses tipos de acidentes, a nao ser,certaQlente, no tocante ao que podem apresentar de tipico quanto a urncerto estilo proprio as rela Oes ditas bur uesas com 0 amor. Eles revelama carencia, a necessidade de urn despertar dessa incuria do cora9ao quetao hem se harmoniza com 0 tipo de abnega9ao no qual se inscreve 0 deverburgues.

Nao e isso 0 importante. Pouco importa que Breuer tenha resistidoou nao. 0 que devemos, antes, bendizer nesse momenta e 0 divorcio, jainscrito com mais de dez anos de antecedencia, entre Freud e ele. Isso sepassa em 1882, serao necessarios dez anos para que a experiencia de Freudatinja a obra dos Studien iiber Hysterie escritos com Breuer, quinze anos

[(

para que Breuer e Freud se separem. Estli tudo ai. a pequeno Eros, cujamalicia abateu 0 primeiro no auge de sua surpresa, obrigando-o a fugir,encontra seu senhor no segundo, Freud. E por que?

Eu poderia dizer - deixem que me divirta por urn instante - quee porque, para Freud, 0 caminho da retirada estava bloqueado. Esseelemento pertence ao mesmo contexto daquele que conhecemos desde quetemos acesso a sua correspondencia com a noiva, 0 desses amores intran-sigentes dos quais era sectario. Ele encontra mulheres ideais, que lherespondem com modos de porco-espinho, Sie streben dagegen, comoele escreve no sonho da inje9ao de Irma, no qual as alusoes a suapropria mulher nao sao evidentes, nem confessadas - elas saDsempredo contra. A Frau Professor aparece, em todo caso, como urn elementodo objetivo permanente a nos confiado por Freud, de sua sede, e eocasionalmente objeto dos deslumbramentos de Jones, que no entanto,a acreditar em minhas informa90es, sabia 0 que significa deixar correrfrouxo.

Seria urn curioso denominador comurn entre Freud e Socrates,Socrates sobrl( 0 qual voces sabem que tambem tinha que lidar, em casa,com uma dona-de-casa nada comoda. A diferen9a entre os dois, para sersensivel, seria a mesma que AristOfanes nos apresenta entre a vistosalontra, de que nos mostrou 0 perfil, e urn perfil de doninha lisistratesca,da qual devemos farejar, nas replicas de AristOfanes, 0 poder de mordida.Simples diferen9a de odor.

Jli basta desse assunto. Penso que existe ai apenas urna referenciaocasional, e que este dado quanta a vida conjugal nao e de modo algumindispensavel, fiquem tranqililos, a boa conduta de voces. Devemosprocurar mais longe 0 misterio de que se trata.

/!.. difere~.a-de...Breuer, e qualquer que seja sua causa, a conduta ::adotada or Freud faz dele 0 senhor do temivel pequeno deus. Ele escolhe, ~ ~~como Socrates servi-Io l2ara s~ir-=-se dele. Ai,~servir-se dele de ..~ "Eros - ainda era preciso sublinha-Io - come9am ara nos os problemas. I~

Pois servir-se dele para que?E justamente nesse ponto que era preciso recordar-Ihes os pontos! ~

de referencia de nossa articula9ao do ana passado - ~rvir-se d~pJlra .~ ..59~~em? Sabemos que 0 dominio de Eros vai infinitamente mais longe 7 0

\ que qualquer campo que possa ser coberto pelo Bern. Pelo menos, i {vamos partir des sa premissa, e e nisso que os problemas que a transfe- ~.rencia nos coloca so fazem aqui come9ar. Essa, alias, e uma coisa '" Jperpetuamente presente em meu espirito - e no de voces, na medida c<; •em que e lingua gem corrente, discurso comum sobre a analise, dizer, ~ '"a respeito da transferencia ue nao se deve de nenhuma ma eira nem ~ '1.preconcebida, nem ermanente colocar como nrimeiro termo do fim .de SllaJl9jo_o !>em p'retenso ou nao ~sJlli-l2aciente.,..!!ll!-s Qrecisamente£ seu ero_s.

Nao creio que deva deixar de recordar mais uma vez aqui, 0 quereline, no ponto maximo do escabroso, a iniciativa socratica e a freudiana,aproximando suas saidas na duplicidade de termos desta expressao con-densada:.£ocrates~ ~btm,_escolhe servH a Eros p~selY.ic~c-de1e.,servindo-se dele ao mesmo tempo. Isso 0 levou muito longe, reparem: urnmuito longe que nos esfor9amos para camuflar fazendo urn puro e simplesacidente daquilo que eu chamava ha pouco de base movedi9a da infec9aosocial. Mas acreditar nele nao sera fazer-lhe urna injusti9a, negar-lheraziio? Acreditar que ele nao sabia perfeitamente que estava indo contraa corrente de toda aquela ordem social, em meio Ii qual se inscrevia suapratica quotidiana? Nao era seu comportamento na verdade insensato, eescandaloso, mesmo levando-se em conta todo 0 merito com que maistarde, a dev09ao de seus discipulos tentou revesti-Io, valorizando suasfaces heroicas? E claro que so puderam faze-lo deixando de registrar

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aquela que e uma caracteristica principal em Socrates, e que 0 proprioPlatao qualificou com um termo tornado celebre entre os que se aproxi-maram do problema de Socrates: sua~a ordem da cidade.

No la~o social, as opini6es nao adquirem um lugar se nao saocomprovadas por tudo 0 que assegure 0 equilibrio da cidade, e a partir daiSocrates nao apenas nao tem seu lugar nela, mas nao 0 tem em lugarnenhum. 0 que ha de espantoso se uma a~ao, tao vigorosa em seu carMerinclassificavel que ainda vibra, e tem seu lugar ate em nossos dias, 0 queha de espantoso no fato de que ela tenha levado a pena de morte? Isto e,da forma mais clara, a morte real, infligida numa hora previamenteescolhida, com 0 consentimento de todos, e para 0 hem de todos - eafinal, sem que os seculos pudessem jamais esclarecer se a san~ao erajusta ou injusta. Dai, aonde vai 0 destino de Socrates? Um destino que naoe excessivo considerar - parece-me - nao como extraordinario, mascomo necessario.

Freud, por outro lado, nao e seguindo 0 rigor de seu percurso quedescobriu a pulsao de morte? 0 que e tambem algo de muito escandaloso,ainda que menos custoso, sem duvida alguma, para 0 individuo. Sera essauma verdadeira diferen~a?

A logica formal repete ha seculos, nao sem raziio em sua insistencia,que Socrates e mortal, e que deveria portanto morrer um dia. Mas nao eo fato de que Freud tenha morrido tranqiiilo em sua cama que nos importaaqui. Do que all se tra~ou, esforcei-me no ana passado para lhes mostrara convergencia com a aspira~ao sadiana. A ideia da morte eterna deve seraqui distinta da morte, na medida em que ela faz do proprio ser seu desvio,sem que possamos saber se ha nisso senso ou nao-senso, e tambem daoutra, a segunda, ados corpos, aqueles que acompanham sem compromis-so Eros - Eros pelo qual os corpos se unem, para Platao, numa sO alma,para Freud, sem alma nenhuma, mas mesmo assim num so - Erosenquanto une unitivamente.

Decerto, podem me interromper neste ponto. Para onde os conduzo?Este Eros, vao concordar comigo, e realmente 0 mesmo nos dois casos,mesmo que nao nos agrade. Mas essas duas mortes, para que bater namesma tecla do ana passado? Ainda esta pensando nisso? Para nos fazeratravessar 0 que? 0 rio que as separa. Estaremos na pulsao de morte, ouna dialetica? Respondo-Ihes: sim. Sim, se uma levar a outra para faze-Ioschegar ao espanto.

Concordo, de bom grado, que me perco, que nao tenho que condu-zi-Ios aos ultimos impasses, que fazendo-o de saida irei espantli-Ios, se janao 0 estiio, com Freud, senao com Socrates.

Sem duvida, esses proprios impasses, se nao quiserem se espantarcom nada, vai-se provar a voces que sao simples de resolver. Basta quetomem como ponto de partida algo simples como um "bom-dia", claro

como agua da nascente, a intersubjetividade. Eu te intersubjetivo, tu meintersubjetiv;ls pela barbicha, e 0 primeiro que rir leva um tapa, e bemmerecido.1

Dizem: quem niio ve que Freud ignorou que nada ha aIem disso naconstante sadomasoquista? 0 narcisismo expllca tudo. E dirigem-se amim. 0 senhor nao esteve quase a ponto de sustentar isso? Epreciso dizerque naquele tempo eu ja estava resistente a fun~ao de sua ferida, aonarcisismo, mas pouco importa. E me dirao tambem que meu Socratesintempestivo deveria mesmo ter retomado, tambem ele~ a essa intersub-jetividade. Em suma, so houve um erro, 0 de violar a marcha, pela qualsempre convem nos orientar, das massas, que todos sabem que e precisoesperar para que se faya a menor altera~ao no terreno da justi~a, pois elaschegarao la, necessariamente, amanha. Eis como e regido 0 espanto,lan~ado na conta da falta. Os erros jamais passarao de erros judiciarios.

Isso, sem prejuizo de motiva~oes pessoais, do tipo que se possaconstituir em mim pela necessidade, que sempre tenho, de exagerar, e quedeve ser creditada a meu gosto por fazer bonito. Caimos de pe. E umatendencia perversa. Logo, minha sofistica po de ser superflua. Vamosrecome~ar, entao, a partir do A, e retomarei, ao desembarcar, a for~ada litot~ para dar indica~oes, sem que voces fiquem nem um poucoespantados.

A intersubjetividade DaDseria aquilo que e 0 mais estranho ao encontro /,-,J- ;:.,'"analitico? Ali, basta que ela apare~a para que fujamos, certos de que e ..,~'"~itli-Ia. ~ experiencia freudiana estanca desde Que ela !2urge._E ?~"'';'', . -.r 'lflor~sce a~nas em sua ausencla. " .

o medico e 0 paciente, como se diz para nos, essa famosa rela~aoda qual tanto se escarnece, irao se intersubjetivar em beneficio de umdeles? Talvez, mas pode-se dizer que nesse senti do ambos nao vao muitolonge. Ele me diz isso para me consolar, ou para me agradar, pensa um.Ele estd querendo me enrolar? pensa outro. A rela~ao pastor-pastora, elapropria, se assim se estabelecer, estara se estabelecendo mal. Estli conde-nada, se ficar nisso, a nao levar a nada. Enisso, justamente, que essas duasrela~6es, mCdico-paciente, pastor-pastora, devem diferir a todo custo danegocia~ao diplomatica e da emboscada.

o que se chama 0 paquer, 0 paquer da teoria, queira ou nao 0 Sr.Henri Lefebvre, nao deve ser procurado na obra do Sr. yon Neumanncomo, no entanto, ele afirmou recentemente - 0 que faz com que, emvista da minha henevolencia, eu so possa deduzir dai uma coisa: que eleso conhece da teoria de yon Neumann 0 titulo que figura no catlilogo das

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edi~6es Hermann. E verdade que, ao mesmo tempo, 0 sr. Henri Lefebvrep6e no registro do pOquer a propria discussao filosOfica a qual nosentregavamos. Se isso nao e urn direito seu, afinal, so posso lhe devolvero merito.

Para vol tar ao pensamento de nosso par intersubjetivo, meu primeirocuidado como analista sera 0 de nao me colocar em tal situa~ao que meupaciente tenha mesmo de me relatar tais reflex6es, e a maneira maissimples de poupa-Io disso e, justamente, evitar toda atitude que se presteIi imputa~ao de consolo, afortiori de sedu~ao. Mesmo que evite absolu-tamente esta imputa~ao, pode ocorrer que ela venha a me escapar enquan-to tal - se vejo 0 paciente, em caso extremo, tomar tal atitude, mas soposso faze-Io na medida em que friso que e Iisua revelia que suponho queele 0 fa~a. Sera preciso ainda que eu tome minhas precau~6es para evitartodo mal-entendido, ou seja, parecer que 0 acuso de uma esperteza, pormenos calculada que seja.

Isso nao significa que caiba Ii analise, propriamente, retomar aintersubjetividade nurn movimento que a eleve a uma segunda potencia- como se 0 analista pretendesse que 0 analisado caisse na propriaarmadilha para que ele mesmo, 0 analista, 0 orientasse. Niio, esta inter-sub' etividade e convenientemente reservada ou melhor ainda adiada~ne dieJlara deixar que_ap.a.r.e..~aurna outra capJw:a.,.J;ll.ilL£aracteristica ~justamente..ane-S,tl, essencia ente a transferenclli.,

a proprio paciente sabe disso, provoca-o, quer ser surpreendidonoutro lugar. Diriio que este e urn outro aspecto da intersubjetividade,ate mesmo - coisa curiosa - pelo fato de que fui eu mesmo a tertrilhado 0 caminho. Mas onde quer que se situe essa iniciativa, cia sopo de me ser imputada como contra-senso. E de fato, se eu niio houvesseformalizado na posi~ao dos jogadores de bridge as alteridades subjeti-vas que estao em jogo na posi~ao analitica, jamais teriam podido fingirme vcr dar um passo convergente com 0 esquema de falsa audacia deque um Rickman, um dia, se deu conta, sob 0 nome de two-bodies'psychology.

Semelhantes cria~6es sempre tem um certo sucesso no estado derespira~ao anfibia em que se sustenta 0 pensamento analitico. Para quedeem certo, bastam duas condi~6es. Em primeiro lugar, que sejam consi-deradas como provenientes de zonas de atividade cientificamente hono-raveis, de onde possa retornar na atualidade, alias facilmente envelhecida,da psicanalise, uma bonifica~ao de lustro. Era este 0 caso, aqui, poisRickman era um homem que, pouco antes da guerra, tinha a aura beneficade ter participado da revolu~iio russa, 0 que, supunha-se, 0 teria deixadocom plena experiencia em interpsicologia. A segunda raziio do sucesso enao perturbar em nada a rotina da analise. E e assim que se desvia umcaminho para os trilhos mentais que nos reconduzem Ii garagem.

A denomina~ao two-bodies' psychology poderia ao menos ter tidoa virtude de nos despertar no senti do de que a atra~ao dos corpos por elaevocada pode'ter algo a ver com a pretensa situa~ao analitica. Mas estesentido, observem, e justamente 0 que e completamente elidido peloemprego de sua formula.

E curioso que tenhamos necessidade de passar pela referencia so-cratica para apreender 0 seu alcance. Em SOCrates, quero dizer, ali ondese 0 faz falar, a referencia Ii beleza dos corpos e permanente. Ela e, seassim se pode dizer, animadora desse momenta de interroga~ao no qualainda nem sequer entramos, e onde ainda nem mesmo sabemos como serepartem as fun~6es do amante e do amado. Pelo menos, ali as coisas saochamadas pelos seus nomes, 0 que nos permite fazer observa~6es titeissobre 0 assunto.

Se alguma coisa na interroga~ao apaixonada que anima 0 ponto departida do processo dialetico tern efetivamente rela~iio com 0 corpo,'deve-se realmente dizer que na analise esta rela~iio e acentuada por tra~oscujo valor de destaque ganha peso devido a sua incidencia particularmentenegativa. a fato de que os proprios analistas - espero que aqui ninguemse sinta visa do - niio primam pela harmonia corporal e aquilo a que afeitira socratic a da seu mais nobre antecedente, ao mesmo tempo, alias,em que nos recorda que isso niio e, em absoluto, urn obstaculo ao amor.Mas e preciso, mesmo assim, sublinhar que 0 ideal fisico do psicanalista,pelo menos tal como se modela na imagina~iio da massa, comporta umacrescimo de grossura obtusa e de rudeza opaca que veicula realmenteconsigo toda a questao do prestigio.

A tela do cinema e aqui 0 revelador mais sensivel. Para nos servir-mos, simplesmente, do mais recente filme de Hitchcock, vejam sob queforma se apresenta 0 decifrador do enigma, aquele que ali se apresentapara decidir, sem apela~iio, ao se esgotarem todos os recursos. Franca-mente, ele porta todas as marcas do jntocavel.

Tocamos, tambem ai, num elemento essencial da conven~iio, ja quese trata da situa~iio analitica. Para que ela seja violada de uma forma quenao seja revoltante - vamos adotar sempre 0 mesmo termo de referencia,o cinema - e preciso que aquele que desempenha 0 papel de analista -vejam De Repente, no Ultimo Verdo - que 0 terapeuta, aquele que levaa caritas ate 0 ponto de retribuir nobremente 0 beijo que uma infelizpespega em sua boca, seja um belo rapaz. Ali, e absolutamente necessarioque ele 0 seja. E verdade que ele tambem e neurocirurgiao, e que eprontamente devolvido a suas trepana~6es. Nao e uma situa~iio que possadurar.

Em Sllma, a analisu a )!nica p-raxis na qual 0 encanto e mIl.inconveniente. uebraria 0 encanto. Q~ja ouviu falar num analiencantador?

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Essas nao san observayOes inuteis, embora possam parecer feitaspara nossa diversao. Importa que sejam evocadas a seu tempo. Nao emenos notavel gu~ na direyao do paciente 0 proprio acesso ao corpo, queo ex_a!!l!<medico parece_exigjr, seja al sacrificado comumente, <tentro da.reg~. Isso vale a pena ser notado. Nao basta dizer que isso e para evitaros efeitos excessivos da transferencia. E por que esses efeitos seriam maisexcessivos nesse nive!? Tambem nao e devido a urn pudor anacr6nico,como se ve subsistir em alguns trayos nas zonas rurais, nos gineceusislamicos, neste incrivel Portugal onde 0 medico so ausculta atraves dasroupas a bela estrangeira. Nos vamos ainda mais longe neste ponto, e umaausculta, por necessaria que possa parecer no inicio de um tratamento, ouo seja no seu decorrer, constitui aqui urna ruptura da regra.

Vejamos as coisas sob um outro angulo. Nada menos erotico queessa leitura dos estados instantiineos do corpo, na qual alguns psicanalistassan insuperaveis, pois e em termos de si nificante, pode-se dizer, que~s~dos do corpo san traduzidos. 0 foco de distiincia em que essa

'Ieitura se acomoda exige, da parte do psicanalista, tanta aversao quantainteresse.

Disso tudo, nao vamos nos precipitar a decifrar 0 sentido.Poderiamos dizer que esta neutralizayao do corpo, que parece,

afinal, ser 0 fim primeiro da civilizayao, tem aver aqui com uma urgenciamaior, e que tantas precauyOes sUpOem a possibilidade de seu abandono.Nao estou certo disso. Introduzo aqui, apenas, a questiio do que e estaipoche. Sem duvida, seria urn mau julgamento nao reconhecer de saidaque a psicanalise exige, no seu inicio, um alto grau de sublimayao libidinalno nivel da relayao coletiva. A extrema decencia, que bem se pode dizerser mantida 0 mais das vezes na relayao analitica, leva a pensar que, se 0

confinamento regular dos dois interessados num recinto ao abrigo de todaindiscriyao so muito raramente atinge uma imposiyao do corpo de umsobre 0 do outro, e que a tenta9ao que esse confinamento provocaria emqualquer outra ocupayao e menor aqui do que alhures. Vamos nos ater aisso por ora.

b- cela analitica...m~cia nao e nada menos ue um leito eamor e isso devido ao fat d g~Resar de todos os esfor os feitos arareduzi-Ia ao denominador comum da situa ao com toda a ressonancia uep~a.!. a este ~~nTIO!amiliar, nao e uma situ~yaO senan potyjr_Comoeu dizia na ~ , a situa ao ma' falsa..p.Qss'vel.

. 0 que nos permite compreende-Io e justamente a referencia, que

\tentaremos adotar na proxima vez, aquilo que e, no contexto social, asituayao do proprio amor. E edida em que 0 amos estreitar maisde Rerto aguilo ue Freud tocou or mais de uma vez a saber 0 ue e naJ0ciedade, a l?0siy~o do amoJ:, posly.aQprec:iria,JIDsiry.aQ..ll.lllea.yda vamosdizer logo, posiyao c1~d~stilJ1l =-e nes.s.a..medida me.s!ll~_~ poderell!Qs

~edar porque e como, no uadro mais _prote_ ido de todos 0 d nsul-torio~nalffico a osi ao do amorJ'~orna ainda mais_parado a1.

Suspendo, aqui, arbitrariamente, este processo. Que lhes baste verem que sentido pre tendo que encaremos a questiio .

Rompendo com a tradiyao que consiste emabstrair, em neutralizar,e esvaziar de todo 0 seu sentido 0 que pode estar em causa no fundo darelayao analitica, entendo partir do extremo, do que e suposto pelo fatode que alguem se isole com urn outro para the ensinar 0 que? - ..lI..9.!!!lo

ue the falta.Situayao ainda mais temivel se imaginamos, justamente, que, devi-

do Ii natureza da transfe.rencia,-.<LqueJhe faltat-el~y'ai ~RreJld.eLamaado.Se estou ali para 0 seu bem, certamente que nao e no sentido despreocu-pado em que a tradiyao tomista 0 articula como Amare est velie bonumalicui, pois que este bem ja e urn termo mais que problematico - se meacompanharam no ano passado, ele esta superado.

Nao estou ali, afinal de contas, aLa!:>~u bemJ...!P-Jls ara u~ ele_ame. Isso querjizer ~ue devo~nsina-Ip a_amar? Certamente, parece dificil ~.elidir essa necessidade - uanto ao ~ vem a ser amar e 0 que ve!!!. a-J »..:.~S~!.2J!mOI, hi que dizer que as duas coisasnKo se confuiidem. Quanto ao ,,-:'que e amar e saber 0 que e amar, devo ao menos, como S6crates, poderdar testemunho de que sei algo sobre isso. Ora, se entrarmos na Iiteraturaanalitica, e precisamente isso que e 0 menos dito. Parece que 0 amor, noseu acoplamento primordial, ambivalente, com 0 6dio, e um termo evi-dente por si. Nao vejam nada mais, em minhas observayOes humoristicasde hoje, que algo destinado a Ihes fazer c6cegas nas orelhas.

Do amor, no entanto, uma longa tradiyao vem nos falar. Ele acaboudando, em seu ultimo termo, nessa enorme elucubrayao de um AndersNygren, que 0 dnde, radicalmente, nesses dois term os incrivelmenteopostos em seu discurso, Eros e Agape. Mas par tras disso, duranteseculos, nao se fez outra coisa senao debater 0 amor. Nao sera ainda umoutro motivo de espanto que de n6s, analistas, que nos servimos dele, queso temos essa palavra na boca, se possa dizer que, no que se refere a essatradiyao, apresentamo-nos verdadeiramente como os mais despossuidos,desprovidos de toda tentativa, mesmo parcial, nem digo de revisao, deacrescimo ao que se pesquisou durante seculos sobre este termo, mas atemesmo de alguma coisa que simplesmente nao seja indigna desta tradi-yao? Nao hi ai algo de surpreendente?

Para demonstrar e fazer sentir isso a voces, tomei como objeto demeu pr6ximo seminario a recordayao de um texto de interesse realmentemonumental, original com referencia a toda tradiyao que e a nossa, no quediz respeito a estrutura do amor: 0 Banquete.

Se alguem, que se sentisse visado 0 bastante, quisesse dialogarcomigo neste ponto, eu s6 veria nisso vanta gens para inaugurar uma

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releitura desse texto recheado de enigmas, onde ha tudo a ser mostrado,e em especial tudo 0 que a propria massa dessa elucubrayiio religiosa, quepenetra por todas as nossas fibras, que esta presente em todas as nossasexperiencias, deve a este testamento extraordinario da Schwiirmerei dePlatiio.

You mostrar-Ihes 0 que podemos encontrar ai, 0 que podemosdeduzir dai, como marcos essenciais, ate na historia deste debate sobre 0

que realmente ocorreu na primeira transferencia analitica. Penso que,quando 0 tivermos provado, voces niioviio duvidar de que possamosencontrar all todas as chaves possiveis.

Certamente, esses niio siio termos - siio tiio gritantes - que eudeixarei passar facilmente num relatorio publicado. Tambem niio siioformulas cujos ecos eu gostaria que fossem alimentar, em outras paragens,as palhayadas habituais. Espero que, este ano, saibamos entre quemestamos e quem somos.

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Alcibiades.Os eruditos.o Banquete, uma sessiio.A grava~iio 110 cerebro.o amor grego.

Trata-se hoje de entrar no exame do Banquete. Pelo menos, foi 0 que lhesprometi.

o que lhes disse, da ultima vez, parece ter obtido efeitos diversos.Os degustadores degustam. Dizem entre si: sera urn born ano? Gostaria,simplesmente, que nao nos detivessemos demais no que pode parecerimpreciso em alguns pontos a partir dos quais tento iluminar nossocaminho.

Tentei, da ultima vez, mostrar a voces os bastidores da cena ondeira ocorrer 0 que temos a dizer a respeito da transferencia. E bem verdadeque a alusao ao corpo, e especial mente ao que pode afeta-Io na ordem dabeleza, nao era simplesmente uma oportunidade para fazer gracra sobre 0

tema da referencia transferencial.Objetam-me, eventualmente, que no cinema, que tomei como

exemplo da compreensao comum quanto ao aspecto do psicanalista,acontece as vezes que 0 psicanalista seja urn belo rapaz, e nao apenasno caso excepcional que assinalei. Respondo que is so se da, precisa-mente, no momento em que a analise e tomada como pretexto para acomCdia.

Em suma, voces vao ver que as principais referencias que destaqueida ultima vez encontram sua justificativa no caminho pelo qual teremoshoje que seguir.

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Como relatar 0 que vem a ser 0 Banquete? Nao e c6modo, dados 0

estilo e os limites que nos sa~ impostos por nosso lugar e nosso objeto, 0

qual, na~ esque~amos, e particularmente 0 da experiencia analitica.Dispor-se a fazer urn comentlirio adequado desse texto extraordinariost:ria talvez for~ar-se a urn desvio bem longo, que na~ nos deixariadepois tempo suficiente para outras incursoes neste campo, ao qual 0Banquete nos pareceu ser uma introdu~ao luminosa, e foi porque 0

escolhemos. Vai-nos ser necessario, pois, proceder de acordo com umaforma que nao e evidentemente a de urn comentario, digamos, univer-sitario.

Por outro lado, sou for~ado a supor que ao menos alguns de vocesna~ foram realmente iniciados no pensamento plat6nico. Nao yOU lhesdizer que eu mesmo me considere, nesse sentido, absolutamente prepara-do. Entretanto, disso tenho suficiente experiencia e ideia bastante paracrer que posso me permitir concentrar os projetores sobre 0 Banqueterespeitando todo urn plano de fundo. Rogo, alias, aos que sa~ capazes defaze-Io, que me controlem e me fa~am observar, na ocasiao devida, 0 queesse esclarecimento possa ter, na~ de arbitrario - ele 0 e, for~osamente- mas, em seu arbitrario, de for~ado e dispersivo.

Alem disso, na~ detesto - e creio mesmo dever ressalta-Io - 0

nao-sei-que de crn, de novo, na abordagem de urn texto como 0 doBanquete. Eis porque va~ desculpar-me por apresenta-Io sob uma formaa principio urn pouco paradoxal, ou que talvez assim lhes pare~a.

Parece-me que alguem que leia 0 Banquete pela primeira vez, senao se deixar atordoar peIo fato de ser ele urn texto de uma tradi~aorespeitada, na~ poded deixar de experimentar 0 sentimento que e maisou menos expresso por essas palavras:ficar embasbacado.

Direi mais: se tiver urn pouco de imagina~ao historica, devera seperguntar como tal coisa pade ser conservada ate nos atraves do quechamarei, com boa vontade, de gera~oes de monges e escrevinhadores,todos eles pessoas que na~ pareciam destinadas a nos transmitir urn textosobre 0 qual na~ pode deixar de nos surpreender 0 fato de, por uma desuas partes pelo menos, pelo seu tim, estar ligado - por que na~ dize-Io?- ao que chamamos hoje uma literatura especial, aquela que pode servitima de batidas policiais.

Para dizer a verdade, se voces souberem ler, simplesmente - e,por uma vez, passa -, acredito que em seguida ao meu amincio daultima vez algum de voces adquiriram essa obra e devem, portanto,te-Ia come~ado ~ na~ poderao deixar de ser cativados ao menos peloque acontece na segunda parte desse discurso, entre Alcibiades eSocrates.

a que se passa entre Alcibiades e SOCrates vai aIem dos limites doque constitui 0 banquete.

f

a que e, entiio, 0 banquete?E uma cerim6nia com regras, uma especie de rito, de concurso intimoentre pessoas da elite, de jogo de sociedade. A realiza~ao de urn talsimposio na~ e, portanto, urn simples pretexto para 0 dialogo de Platiio,mas refere-se a habitos, costumes reais diversamente praticados conformeas localidades da Grecia e, digamos, 0 nivel cultural. a regulamento queali se impoe nada tern de excepcional - que cada urn de sua quota, sobforma de uma pequena contribui~ao, que consiste num discurso pautadosobre urn tema.

Estabeleceu-se a regra,no come~o de nosso banquete, de que na~se bebera demais ali. a pretexto para isso, sem duvida, e que a maioriadas pessoas presentes ja esta com uma forte ressaca por ter bebido urnpouco a mais na vespera, mas tambem nos damos conta, dessa forma, daimportiincia e da seriedade do grnpo de elite que e compos to naquela noitepelos co-bebedores. Ainda assim, produz-se alguma coisa que na~ estavaprevista, uma desordem, se assim se pode dizer.

No momento em que a reuniao esta longe de terminar, e quando urndos convivas, AristOfanes, tern alguma observa~ao a fazer, uma emendaa ordem do dia ou urn pedido de explica~ao, surge a entrada urn grupo depessoas, estas completamente embriagadas: Alcibiades e seus companhei-ros. E Alcibiades, meio as tontas, usurpa a presidencia e come~a a fazerdeclara~oes cujo carater escandaloso pre tendo ressaltar para voces.

Isto sUpOe que se tenha uma certa ideia de quem e Alcibiades, etambem Socrates, 0 que nos levara longe.

Para uso corrente, leiam em A Vida dos Homens /lustres 0 quePlutarco escreve sobre isso, e va~ se dar conta do formato do personagemde Alcibiades. Mas sera preciso ainda que fa~am urn esfor~o, pois estavida nos e descrita por Plutarco no que chamarei de atmosfera alexandri-na, a saber, urn estranho momento da Historia onde tudo nos personagensparece passar a urn estado de sombra. Falo do acento moral do que nosvem dessa epoca, que participa de uma saida das sombras, de uma nelatiacomo se diz na Odisseia. A fabrica~ao de Plutarco, seus personagens como que, alias, comportavam de modelo, de paradigma para toda umatradi~ao moralista que se seguiu, tern este nao-sei-que que nos faz pensarnos zumbis. E dificil fazer com que corra de novo, ali, urn sangueverdadeiro. Mas tentem imaginar, a partir des sa singular carreira que nostra~a Plutarco, 0 que pode ter sido esse homem, esse homem que apareceali diante de Socrates, isto e, diante daquele que declarou, em outro lugar,ter sido seu proto:; erdstes, 0 primeiro que 0 amou, a eIe, Alcibiades.

Alcibiades e uma especie de pre-Alexandre. Suas aventuras politi-cas, sem duvida alguma, sao todas marcadas pelo signo do desafio, do

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extraordinario, do tour de force, da incapacidade de situar-se ou deter-seem parte alguma - par onde quer que passe, invertendo a situayao,fazendo passar a vitoria de urn campa a outro por todos os lugares ondepasseia, mas em toda parte perseguido, exilado, e e mesmo preciso que sediga, devido a seus delitos.

Parece que, se Atenas perdeu a guerra do Peloponeso, foi namedida em que experimentou a necessidade de chamar Alcibiades, empleno curso das hostilidades, para faze-Io relatar uma historia obscura,aquela dita da mutilayao dos Hermes, que nos parece tao inexplicavelquanto amalucada, vista a distiincia, mas que comportava certamente,no fundo, urn carater de profanaC;ao e, falando propriamente, de injuriaaos deuses.

Tambem nao pademos, absolutamente, absolver a memoria de AI-cibiades e de seus companheiros. Sem duvida, nao foi sem razao que 0

povo de Atenas the pediu contas. Ali ha uma pratica evocadora, poranalogia, de uma especie qualquer de missa negra. Nao pademos deixarde ver sobre que fundo de insurreiyao, de subversao das leis da cidade,surge urn personagem como 0 de Alcibiades - urn fundo de ruptura, dedesprezo pelas formas, pelas tradiyoes, pelas leis, e sem duvida pelapropria religiao.

E bem isso que tal persona gem arrasta atras de si de perturbador.Arrasta tambem, par onde quer que passe, uma seduC;ao muito singular. Edepais dessa demanda judicial do pavo ateniense ele se passa, nem maisnem menos, para 0 inimigo, para Esparta, esta Esparta onde contribuiu dealguma maneira para 0 fato de que seja inimiga de Atenas, ja queanteriormente fizera de tudo para que as negociac;oes de acordo fracas-sassem.

Portanto, la esta ele passando para Esparta, e logo em seguida naoencontra nada melhor, mais digno de sua memoria, do que fazer urn filhona rainha, bem a vista de todos. Acontece que se sabe muito bem que 0

rei Agis nao dorme ha mais de dez meses com sua mulher, por raz6es quelhes poupa. A rainha, pois, tern urn filho dele. Nao e por prazer que fizisso, diz ele a Orestes, mas porque me pareceu digno de mim assegurarurn trono para a minha descendencia, e honrar, dessa maneira, 0 trono deEsparta com alguem de minha raya.

Esse tipo de coisa, concebe-se, pode cativar por algum tempo, masnao e facilmente perdoado. E voces sabem, e claro, que Alcibiades, depoisde haver contribuido, com este presente e algumas ideias engenhosas, aconduyao das hostilidades, levanta acampamento rumo a outras paragens,nao deixando de passar ao terceiro campa, 0 dos persas. Dirige-se a pessoaque representa 0 poder do rei da Persia na Asia Menor, a saber, Tissaferno,que, conta Plutarco, nao gosta dos gregos, detesta-os para ser franco, masfica seduzido par Alcibiades.

E a partir dai que Alcibiades vai se dedicar a reverter a sorte deAtenas. Ele 0 faz mediante condiyOes cujo historico tambCm e muitosurpreendente, ja que isso parece se dar em meio a uma rede de agentesduplos e de uma traiyao permanente. Todas as suas mensagens de avisoaos atenienses SaG imediatamente, atraves de urn circuito, enviadas aEsparta, e aos proprios persas, que as transmitem aquele da frota atenienseque passou a informayao, de modo que Alcibiades e, por sua vez, in for-mado de que ja se sabe perfeitamente, nas altas esferas, que ele traiu.

Enfim, esses personagens se viram cada urn como pade. a certo eque, em meio a tudo isso, Alcibiades restabelece a fortuna de Atenas. Eem conseqiiencia, sem que possamos estar absolutamente certos dosdetalhes, que variam conforme as narrativas dos historiadores antigos, naoe de se admirar que Alcibiades volte a Atenas com as marcas de urn triunfoinusitado que, apesar da alegria do povo ateniense, sera 0 comec;o de umamudanc;a na opiniao. Pois estamos em presenya de alguem que nao deixa,a cada instante, de provocar 0 que se pade chamar de opiniao.

Sua morte e tambCm uma coisa muito estranha. Paira uma obscuri-dade quanta ao seu responsavel. Parece que em seguida a uma serie dereviravoltas, cada uma mais surpreendente que a outra, de sua fortuna -como se, em qualquer caso, quaisquer que fossem as dificuldades em quese metesse ele jamais pudesse ser abatido - urna especie de imensaafluencia de odio vai conseguir acabar com ele, atraves de procedimentosque SaGos que a lenda, 0 mito, dizem ser preciso usar contra 0 escorpiao- prendem-no no interior de urn circulo de fogo, do qual ele escapa, e ede longe, a golpes de dardos e flechas, que se 0 deve abater.

Tal e a carreira singular de Alcibiades. Se lhes fiz aparecer nele 0

nivel de uma potencia, de uma penetrayao de espirito muito ativa, excep-cional, direi no entanto que 0 trayo mais saliente do personagem ainda eo reflexo acrescentado pelo que se diz quanto a sua beleza. Nao somentea beleza precoce do menino Alcibiades, na medida em que conhecemosesse trayo, inteiramente ligado a Historia, do modo de amor que reinavaentiio na Grecia, a saber, 0 amor das crianc;as, mas sua beleza longamenteconservada, que em idade avan9ada faz dele alguem que seduz tanto parsua forma fisica quanta por sua excepcional inteligencia.

Assim e 0 personagem. E ei-Io que chega ao banquete, esse concursoque reune horn ens sabios e graves, ainda que nesse contexto de amor gregoque vamos acentuar daqui a pauco, e que ja traz urn fundo de erotismopermanente, sobre 0 qual se destacam os discursos sobre 0 amor. E eleconta a todos 0 que se pode resumir nesses term os: os vaos esforyos quefez em sua juventude, no tempo em que Socrates 0 amaYa, para levar esteultimo para a cama. Isso e desenvolvido longamente, com detalhes, e comgrande crueza de termos. Fica evidente que ele quis levar SOCrates a perdero controle, a manifestar sua perturbayao, a ceder a convites corpora is e

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diretos, a uma aproxima~ao fisica. E isso e dito publicamente, por umhomem bebado, sem dlivida, mas do qual Platiio nao desdenha relatar asdeclara~6es em toda a sua extensao.

Nao sei se me fa~o entender bem. Imaginem um livro que fosselan~ado, nao digo em nossos dias, ja que Platao 0 publicou uns cinqiientaanos, mais ou menos, depois da cena que e relatada - imaginem que numlivro a ser publicado dentro de algum tempo, para acomodar as coisas, urnpersonagem que seria, digamos, 0 Sr. Kennedy, urn Kennedy que aomesmo tempo tivesse sido urn James Dean, viesse contar, num livrinhodestinado a elite, como fez tudo, no seu tempo de universidade, paraconseguir fazer amorcom - deixoa voces os cuidados da escolha dopersonagem. Nao e preciso, em absoluto, situa-Io no corpo docente,ja queSocrates nao era exatamente urn professor, mas era-o mesmo assim, deforma urn pouco especial. Imaginem que fosse alguem como 0 Sr. Mas-signon, e ao mesmo tempo Henry Mjller. Isso causaria urn certo efeito, etraria alguns aborrecimentos ao Jean-Jacques Pauvert que publica ria essaobra. Vamos nos lembrar disso, no momento em que se trata de constatarque foi pelas maos daqueles a quem devemos chamar, ainda assim, deIrrnaos, ignorantinhos2 em diversos graus, que essa obra espantosa nos foitransmitida atraves dos seculos, 0 que faz com que tenhamos, sem dlividaalguma, seu texto completo. Enisso que eu pensava, nao sem uma certaadmira~ao, ao folhear a admiravel edi~ao que dele nos foi dada porHenri Estienne, com uma traduyao latina. Esta edi~ao e bastante defi-nitiva, e ja tiio perfeitamente critica, que ainda hoje, todas as edi~oes,mais e menos eruditas, nao dao a sua pagina~ao. Para os que sao novosno assunto, saibam que os pequenos 872 a e outros, pelos quais aspaginas estao anotadas, sao da pagina~ao de Henri Estienne, que datade 1575.

Henri Estienne nao era, certamente, urn ignorantinho, mas custa acrer, de alguem que seja capaz - e ele nao fez somente isso - de seconsagrar a compor edi~6es tiio monumentais, que sua abertura para a vidaseja tal que the permita apreender plenamente 0 contelido daquilo que hanesse texto - na medida em que e urn texto sobre 0 amor.

Na mesma epoca de Henri Estienne, outras pessoas se interessavampelo amor, e, bem posso lhes dizer tudo: quando lhes falei no ana passado,longamente, da sublima~ao em tome do amor pela mulher, a mao que eusegurava no invisivel nao era a de Platiio, nem a de algum erudito, mas ade Margarida de Navarra. Fiz uma alusao, sem insistir muito. Saibam que,desse tipo de banquete, de simposio, que e tambem 0 seu Heptameron, elaexcluiu cuidadosamente esses personagens de unhas negras que apare-ciam na epoca, renovando 0 conte lido das bibliotecas. Ela so queriacavaleiros, senhores, personagens que, ao falar de amor, falassem dealguma coisa que tivessem tido 0 tempo de viver. Igualmente, em todos

os comentlirios do Banquete, e mesmo dessa dimensao, que com muitafreqiiencia parece faltar, que temos sede. Mas, pouco importa.

Para os que nunca duvidam de que sua compreensao, como dizJaspers, alcance os limites do concreto, e sensivel, do compreensivel, ahistoria de Alcibiades e Socrates sempre foi dificil de engolir. Como provadisso, basta dizer que Louis Le Roy, Ludovicus Rejus, primeiro tradutorpara 0 frances desses textos que acabavam de emergir do Oriente para acultura ocidental, simplesmente parou por alL Nao traduziu mais. Pare-ceu-Ihe que ja se havia feito belos discursos 0 bastante antes da entradade Alcibiades - 0 que e bem 0 caso, alias. Alcibiades pareceu-lhe algumacoisa acrescentada, ap6crifa.

Nem e ele 0 linico a comportar-se assim. Dispenso os detalhes, masRacine recebeu urn dia, de uma senhora que se havia dedicado a isso, 0

manuscrito de sua tradu~ao do Banquete para que ele 0 revisse. Racine,que era urn homem sensivel, considerou intraduzivel, nao so mente ahistoria de Alcibiades, mas todo 0 Banquete. Temos suas notas, compro-vando que ele examinou com muita aten~ao 0 manuscrito que Ihe foraenviado. Mas, quanta a refaze-Io - pois tratava-se de nada menos do querafaze-Io, era preciso alguem como Racine para traduzir grego - recusou.Muito pouco para ele.

Terceira referencia. Tive a sorte de haver colhido ha muito tempo,em algum canto, as anota~oes manuscritas de urn curso de Victor Bro-chard sobre Platiio. E extraordinario, as notas sao admiravelmente redigi-das, a escrita e deliciosa e, a proposito da teoria do amor, ele se refere atudo 0 que convem, Lisis, Fedro, e sobrettido 0 Banquete. Mas hli ali urnbonito jogo de substituiyao quando se chega ao caso de Alcibiades - elemuda de rumo e passa a falar do Fedro, que serve de alternativa. Dahistoria de Alcibiades ele nao se ocupa.

Esta reserva merece, antes, 0 nosso respeito. Ela testemunha, pelomenos, 0 sentimento de que hli ali alguma coisa a se questionar. Epreferimos isso a ve-Ia resolvida por hipoteses singulares, que nao e raroaparecerem.

A mais bela dentre estas, voces nem podem imaginar - e 0 sr.Leon Robin adere a e1a, 0 que e espantoso - e que Platao quis, ali,fazer justi~a a seu mestre. Os eruditos descobriram que um tal dePolicrates havia publicado, alguns anos depois da morte de Socrates,um panfleto on de se 0 ve sucumbir sob diversas acusayoes, das quaistres personagens sao os porta-vozes. Este Policrates teria posta na bocade um deles, Anitos, uma longa perorayao, cujo corpo principal seriaconstituido pelo fato de Socrates ser 0 responsavel por aquilo de queIhes falei ha pouco, a saber, as marcas de corrup~ao e de esciindalo queAlcibiadcs deixou atras de si por toda a vida, com 0 sequito de proble-mas, senao de catlistrofes, que suscitou.

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E preciso admitir que a ideia de que Platiio teOOainocentado SOcra-tes e seus costumes, seniio sua influencia, pondo-nos em face de uma cenade confissiio publica desse teor, e realmente desastrada. 0 que pensam aspessoas que emitem semelhantes hipOteses? Que SOCrates tenha resistidoas investidas de Alcibiades, e que isso, por si so, possa justificar que seapresente esse trecho do Banquete como destinado a reabilitar 0 sentidode sua missiio perante a opiniiio publica, isso me deixa, quanto a mim,estupefato.

Das duas, uma: ou bem estamos ai diante de uma serie de razOes dasquais Platiio niio nos adverte, ou entiio esse trecho tern, com efeito suafun~iio. Por que a irru~iio do personagem de Alcibiades? - e jun:o aopersonagem de Socrates, que Ihe pode ser reunido, que e sem duvida deurn horizonte mais elevado, mas que de alguma maneira est<!ligado a eIeda forma mais indissoluvel possivel. Alcibiades, transportando-se aiem carne e osso, tern, de fato, a mais estreita relalj:iio com a questiio doamor.

Vejamos agora 0 que vem a ser isso, ja que ai esta 0 ponto em tomodo qual gira tudo aquilo de que se trata no Banquete. E ai que se vaiesclarec~r, da maneira mais profunda, niio tanto a questiio da natureza doam or, e SI~ a.quest;i0 qu.e nos interess~ aqui, a saber, a de sua relalj:iio coma transferencla. E e por ISS0 que enfattzo a articulalj:iio entre os discursospronunciados no simposio - pelo menos, segundo 0 texto que dele nos erelatado - e a irrup~iio de Alcibiades.

sucessivo de cada urn dessesflashes pelo seu sucessor, e depois, no fim,o que nos e, narrado como urn fato bruto, ate mesmo embara~oso - airru~iio da vida ali dentro, a presen~a de Alcibiades. E cabe a noscompreender 0 senti do que ha em seu discurso.

Ora, pois, se e disso que se trata, teriamos dele, segundo Platiio, umaespecie de grava~iio. Como niio existia gravador, diremos que e umagrava~iio no cerebro.

A grava~iio no cerebro e uma pratica excessivamente antiga, e quesustentou mesmo, durante long os seculos, 0 modo de escuta das pessoasque participavam de coisas serias, enquanto a escrita ainda niio tinhaassumido essa fun~iio de fator dominante na cultura que tern em nossosdias. Como as coisas podem ser escritas, aquelas que devem ser conser-vadas ficam para nos no que chamei de quilos de linguagem: pilhas delivros e montes de papeI. Mas quando 0 papel era mais raro e os livrosmuito mais dificeis de se fabricar e difundir, uma coisa essencial era terboa memoria e, se Ihes posso dizer, viver tudo 0 que se ouvia no registroda memoria que 0 guardava. E niio e simplesmente no come90 do Ban-quete, mas em todas as tradilj:Oes que conhecemos, que temos 0 testemu-000 de que a transmissiio oral das ciencias e da sabedoria era ali absolu-tamente essenciaI. E atraves dela, alias, que ainda conhecemos algumacoisa disso. Niio existindo a escrita, e a tradilj:iio oral que tern fun9iio desuporte.

E a isso que Platiio se refere quando nos apresenta 0 modo sob 0qual nos chega 0 texto do Banquete. Ele 0 faz ser narrado por alguem quese chama Apolodoro. Conhecemos 0 personagem, que existe historica-mente. SupOe-se que ele tenha vivido numa epoca que, com referencia aolan9amento do Banquete, data de urn pouco mais de trinta anos antes, seadotalmos a data de 370, aproximadamente, para a publica9iio do texto.Portanto, e antes da morte de Socrates que se da 0 que Platiio nos diz sero momenta em que e recolhido por Apolodoro 0 relato daquilo que sepassou. E este, supostamente, 0 teria recebido de Aristodemo, dezesseisanos depois do pretenso simposio, ao qual este ultimo teria assistido, jaque temos razoes para saber que foi em 416 que ele teria ocorrido.

E, pois, dezesseis anos mais tarde que urn personagem extrai de suamemoria 0 texto literal daquilo que se teria dito. Em conseqiiencia, 0minimo que se pode dizer e que Platiio utiliza todos os procedimentosnecessarios para nos fazer crer nessa grava9iio no cerebro que se praticavana epoca, que sempre se praticou nessas fases da cultura. Ele frisa queeste Aristodemo, estou citando 178 a, nao tinha guardado uma lembrant;acampleta, niio mais que 0 proprio Apolodoro, que ha trechos da fitaestragados, e que pode haver falhas em alguns pontos. Tudo isso, evidcn-temente, niio resolve de modo algum a questiio da veracidade hist6riclI,mas tern, no entanto, uma grande verossimilhanlj:a. Se e uma mcnLirn, (

E preciso em primeiro lugar que eu esboce para voces alguma coisareferente ao sentido desses discursos, mas antes 0 texto que dele nos eretransmitido, a narrativa.

o que vem a ser esse texto? E 0 que nos conta Platiio? Pode-seper~untar i~so para comelj:a~. Sera uma fic9iio, uma fabricalj:iio? - comoo sao, mamfestamente, mUltos dos seus dialogos, que siio composilj:oesobedecendo a certas leis. So Deus sabe 0 quanta haveria a dizer a esserespeito. Por .que esLe gener~? Por que esta lei do diaIogo? E preciso,re,al~ente, delxar algu~as COlsas de lado, e indico a voces, apenas, queha ah toda. uma enormldade de coisas a se conhecer. Mas a Banquete,mesmo asslm, tern urn outro carater, 0 qual niio e de todo estranho ao modopelo qual nos siio mostrados alguns de seus dialogos.

Par~ me fazer e?tender, direi inici~lmente do Banquete que va-mos toma-Io como, dlgamos, uma especle de relato de sessoes psica-naliti~as. Co~ efeito, e de algo dessa ordem que se trata. A medida queprognde 0 dlalogo, e que se sucedem as contribui90es dos diferentesparticipantes desse simposio, acontece alguma coisa que e 0 espoucar

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uma bela mentira - e como e, por outro lado, manifestamente urna obrade amor, e talvez cheguemos aver despontar a no~iio de que, afmal, so osmentirosos podem responder dignamente ao amor - nesse caso, mesmo,o Banquete responderia decerto aquilo que e como que a referenciaeletiva da a~iio de Socrates ao amor - isso, sim, nos e leg ado semambigilidades.

Por isso mesmo e que 0 Banquete e um testemunho tiio importante.Sabemos que 0 proprio Socrates afmna nada conhecer, realmente, a niioser nesse registro. Sem duvida, 0 Teages, onde ele diz isso, niio e umdialogo de Platiio, mas e, ainda assim, um dialogo de alguem que escreviasobre 0 que se sabia de Socrates e aquilo que restava dele. E ali se atestaque Socrates teria dito expressamente nada saber, em suma, a niio ser essacoisinha, suicrou finos, da ciencia, matematos, que diz respeito a toneroticon, as coisas do amor. Ele 0 repete nos proprios termos, e em termosque siio exatamente os mesmos, num ponto do Banquete.

Qual e 0 tema do Banquete? 0 tema foi anunciado pelo personagemFedro. Este e, nem mais nem men os, 0 mesmo que deu seu nome a urnoutro dialogo, ao qual me referi no ana passado a proposito do belo, eonde tambem se trata de amor, pois os dois estiio ligados no pensamentoplat6nico. Fedro e dilo pater tou logou, 0 pai do tema a proposito do qualvai se tratar no Banquete. 0 tema e 0 seguinte: de que serve ser sabio emamor? E sabemos que Socrates niio pretende ser sabio em nenhuma outracoisa.

So se torna mais espantoso fazer a observa~iio seguinte, que poderiioapreciar em seu justo valor quando se remeterem ao texto: Socrates niiodiz quase nada em seu nome. Este quase-nada, YOU lhes dizer hoje setivermos tempo, e importante, acredito mesmo que estamos chegandojustamente ao momenta em que posso dize-Io a voces - ele e sem duvidaessencial, pois e em torno deste quase-nada que gira realmente a cena, eque se comec;:a, como era de se esperar, a falar verdadeiramente doassunto.

Socrates efetua uma especie de arbitrio, de acomoda~iio do nivel emque as coisas devem ser tomadas, e no fim das contas, com rela~iio ao quedizem os outros, Socrates niio pOe 0 amor em lugar tiio elevado. 0 que elediz consiste, antes, em enquadrar as coisas, ajustar as luzes de modo que'se veja,justamente, essa altura, que e mediana. Se Socrates nos diz algumacoisa, e certamente que 0 amor niio e coisa divina. Ele niio 0 coloca muitoalto, mas e isso que ele ama. Ele so ama, mesmo, isso.

o momento em que ele toma a palavra, vale bem ser ressaltado, elogo depois de Agatiio. Fac;:oentrar os personagens a medida que prosse-gue meu discurso, em lugar de apresentli-los a voces de saida. Estiio aliFedro, Pausanias, Aristodemo que veio de penetra, isto e, que encontrou-se com Socrates e foi levado por ele. Ha tambem Eriximaco, que e urn

co leg a da maioria de voces, ja que e medic~, e Agatiio, 0 dona da cas~.Socrates, que trouxe Aristodemo, chega mUlto atrasado porque, no call11-nho, teve 0 que se poderia chamar de uma crise. As crises de Socrate.sconsistiam em parar bruscamente e ficar de pe num canto, numa perna so.Nessa noile ele parou na casa vizinha, onde niio tinha nada que fazer.Plantou-se no vestibulo entre 0 porta-guarda-chuvas e 0 porta-casacos, eniio houve meios de despertli-lo. E preciso acrescentar urn pouquinho deatmosfera a essas coisas. Niio siio, de modo algum, historias tiio tediosascomo voces veem no coIegio.

Urn dia eu gostaria de lhes fazer urn discurso - no qual tomariameus exemplos, justamente, do Fedro, ou ainda de certa pe~a de Aristo-fanes - sobre um tra~o essencial, absolutamente, sem 0 qual niio ha meiosde se compreender como se situa 0 que YOU chamar, em tudo 0 que aAntiguidade nos propOe, de circulo iluminado.

Nos vivemos 0 tempo todo em meio a luz. A noite nos e veicula-da, em suma, por uma torrente de neon. Mas imaginem que ate umaepoca relativamente recente - niio e preciso que nos reportemos aostempos de Platiio - a noite era a noite. Quando se vem bater a porta,no come~o do Fedro, para acordar ~ocrates, porque. e preci~o selevantar urn pouco antes do raiar do d1a - espero que 1SS0esteJa noFedro, mas pouco importa, e no come~o de urn dialogo de Platiio -,e toda uma complica~ao. Ele se levanta, e esta realmente no escuro,isso e, a cada tres pass os que da derruba alguma coisa. 0 me~moacontece no inicio de uma pe~a de AristOfanes. Quando se esta noescuro, esta-se realmente no escuro. E de niio se reconhecer a pessoaque toca em nossa miio.

Para tomar 0 que acontece, ainda no tempo de Margarida deNavarra, 0 Heptameron esta cheio de historias baseadas no fato de que,naquele tempo, quando alguem deslizava para 0 leito de uma damadurante a noile, era considerado uma coisa perfeitamente possivel, soba condi~iio de se calar a boca, passar-se por seu marido ou seu amante.E isso era praticado, ao que parece, de modo gera!. E evidente que 0que vou chamar, num sentido inteiramente outro, de difusiio das luzes,mud a muita coisa na dimensiio das relac;:oes entre os seres humanos. Anoite niio e para nos uma realidade consistente, niio po de escorrer deuma concha, fazer urn escuro denso. Isso nos retira certas coisas,muitas coisas.

Tudo isso para voltar ao nosso assunto, que e aquele ao qual e bempreciso chegarmos, a saber, 0 que significa este circulo iluminado no qualestamos, e aquilo de que se trata, a proposito do amor, quando se fala delena Grecia.

Quando se fala dele, pois bern, como diria 0 sr. de La Palice, trala-s .do amor grego.

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por seu efeito de censura, uma fonna de desagrega~ao que ~ chama d.eneurose e nunJ. sentido contr3.rio de elabora~ao, de constru~ao, de subli-ma~ao ~ digamos 0 tenno - que se pode conceber a perversiio quandoela e produto da cultura. E 0 circulo se fecha, a perversao traz~n~o oselementos que trabalham a sociedade, a neurose favorecendo a crta~ao denovos elementos de cultura.

Isso nao impede que 0 amor grego pennane~a uma perversao, pormaior sublima~ao que seja. Nenhum ponto de vista culturalista prevale~eaqui. Que nao nos venham dizer, a pretexto de que essa era uma perv:rsaoaceita, aprovada, ate mesmo festejada, que nao fosse uma_perv~rsao. Ahomossexualidade nao deixava de ser 0 que e, uma perversao. Dlzer-nos,para acomodar as coisas, que se tratamos dela e porque, em nosso tempo,a homossexualidade e inteiramente diferente, nao esta mais na moda, aopasso que no tempo dos gregos ela exercia sua fun~ao cultural, ~e~doenquanto tal digna de toda a nossa considera~ao, e realmente ehdrr 0problema. .'

A unica coisa que diferencia a homossexuahdade contemporanea .ea perversao grega, meu Deus, acho que so pode ser encontr~~a na quah-dade dos objetos. Aqui, os ginasianos sao espinh~n~os e creuruzad~s ~laeduca~ao que recebem. Entre os gregos, as condl~oe~ eram fav~ravels aque fossem eles 0 objeto de homenagens, sem que se tlvesse que ~rbuscaresses objetos nas esquinas reconditas, na sarjeta. Essa e toda a diferen~a.Mas a estrutura, esta nada tern de diferente.

Isso faz escandalo, haja vista a eminente dignidade com que reves-timos a mensagem grega. Cercamo-nos para isso de bons propositos.Assim mesmo, nos dizem, nao creiam que as mulheres nao recebessemigualmente as homenagens que lhes convin~am. ~ssim, quant? a Socra-tes nao esque~am que se no Banquete ele dlZ mUlto pouca COlsa em seuno:ne faz falar em seu lugar uma mulher, Diotima. Nao veem nisso 0teste~unho de que a suprema homenagem cabe, mesmo na bo~a deSocrates, a mulher? Pelo menos, e isso que as boas almas nunca delxam,neste ponto, de nos ressaltar. E acrescentam: Sabem, de vez et.D~uando,ele ia visitar Lais, Aspasia, Teodota que era a amante de Alclblade~ -enfim tudo 0 que se pode extrair das fofocas dos historiadores. E Xantlpa,a fam~sa, da qual eu lhes falava outro ~ia, estava la no dia de s~a ~orte,voces sabem, e ate mesmo soltava grttos ensurdecedores. So ha umainfelicidade - isso nos e atestado no FMon -: Socrates pede que a fa~amsair imediatamente, que a fa~am ir se deitar logo para que possamconversar em paz porque so the restam algumas horas. Nao fosse poris so a fun~ao da dignidade das mulheres estaria preservada entre osgregos.

Nao duvido, por minha parte, da importc1ncia ~s mUI~lercs !18sociedade grega antiga. Diria mesmo que isso e uma COlsa mUlto sena,

a amor grego, e preciso que se acostumem a esta ideia, e 0 amor dos belosrapazes. E depois, um travessiio, nada mais.

E bem claro que, quando se fala de amor, nao se fala de outra coisa.Todos os esfor~os que fazemos para situa-Io estao fadados de antemao aofracasso. Para ten tar ver exatamente 0 que e isso, sem duvida seremosobrigados a arrastar os moveis de uma certa maneira, a restabelecer certasperspectivas, a colocar-nos em certa posi~ao mais ou menos obliqua, dizerque nao havia, for~osamente, apenas isso, e evidente, e claro. Nem porisso deixa de ser verdade que no plano do amor sO havia isso.

Voces me dirao que 0 amor dos rapazes e algo aceito universalmen-te. Ha muito tempo que 0 dizem alguns de nossos contemporaneos, quelamentam nao terem nascido urn pouco mais cedo. Nao! Ainda assim, emtoda uma parte da Grecia, ele era muito malvisto, e em toda uma outraparte da Grecia - Pausiinias 0 enfatiza no Banquete - era muito bem-visto. E como isso era na parte totalitaria da Grecia, entre os beocios, osespartanos, onde tudo 0 que nao era proibido era obrigatorio, nao apenasisso era muito bern-vis to, mas era uma ordem a se cumprir, nao haviacomo furtar-se a ela. Ha pessoas que estiio muito melhor, diz Pausanias:entre nos, atenienses, isso e bem-visto, mas proibido assim mesmo, e isso,naturalmente, eleva 0 pre~o da coisa.

Tudo isso nao nos ensina grande coisa, senao que is so era maisverossimil, e sob a condi~ao de compreendermos mais ou menos ao quecorresponde. Para fazer uma ideia, devem se referir ao que eu disse noana passado sobre 0 am or cortes. Nao e a mesma coisa, mas ocupa nasociedade uma fun~ao analoga. E bem evidentemente da ordem da subli-ma~ao, no sentido em que tentei no ana passado fazer uma ligeira retifi-ca~ao, em seus espiritos, sobre 0 que vem a ser realmente a sua fun~ao.

Nao se trata ai de nada que se possa classificar no registro de umaregressao em escala coletiva. Se e verdade que a doutrina analitica nosindica como suporte do la~o social como tal a fraternidade entre oshomens, a homossexualidade - e ela que liga 0 homem a neutraliza~aodo la90 ---:-nao e _0 que esta em ~ausa aqui. Nao se trata, de modo algum,de uma dlssolu9ao do la~o SOCIale de urn retorno a fonna inata. E, demodo bem evidente, uma outra coisa: e urn fato da cultura, e e tambem nomeio dos mestres da Grecia, no meio de pessoas de uma certa classe nonive! onde reina e se elabora a cultura, que esse amor e posto em pratica.Esse amor e, evidentemente, 0 grande centro de elabora9ao das rela~6esinter-humanas.

Lembro a voces, sob uma outra fonna, 0 que havia indicado no finaldo seminario anterior, 0 esquema da rela9ao da perversao com a cultura,na medida em que esta se distingue da sociedade. Se a sociedade acarreta,

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cujo alcance voces veriio em seguida. E que elas tinham 0 que chamard~e seu verdadeiro lugar. E niio apenas tinham seu verdadeiro lugar, masttnham urn peso, de todo eminente nas rela90es de amor. Temos disso todotipo de testemunhos. De fato, verifica-se, sempre sob a condi9iio de ses.aber ler - niio se deve ler os autores antigos com antolhos - que elasttnham urn papel que para nos e velado, mas que e no entanto de formamuito acentuada, 0 delas no amor: simplesmente, 0 papel ati;o. A dife-ren9a que existe entre a mulher antiga e a mulher modem a e que a mulherantiga exigia 0 que the era devido, atacava 0 homem.

Ai esta 0 que viio encontrar, palpavel, em muitos casos. Quandodespertarem para este ponto de vista sobre a questiio, viio observarmuitas coisas na historia antiga que, de outra maneira, pareceriamestranhas. Aristofanes, que era urn excelente diretor de teatro devariedades, niio nos ocultou como se comportavam as mulheres no seutempo. Nunca houve nada de mais caracteristico e de mais cru no quese refere aos empreendimentos das mulheres, e e justamente por issoque 0 amor culto, se assim posso dizer, se refugiava noutra parte.Temos ai uma das chaves da questao, e que niio foi feita para espantartanto assim os psicanalistas.

Tudo isso talvez va parecer urn desvio muito longo em nossaer.nl?reitada, que e a de analisar urn texto cujo objeto e saber 0 que e sersablO no amor. Que se desculpe esse desvio. Sabemos que esse texto vemdos tempos do amor grego, e que este amor e, se posso assim dizer 0 daescola, quero dizer, dos escolares. E por razoes tecnicas, de simplifida9iio,de exemplo, de modelo, esse amor permite apreender uma articula9iiosempre elidida naquilo que M de excessivamente complicado no amorcom as mulheres. E nisso que este amor da escola pode legitimamenteservir, a nos e a todos, de escola de amor.

. Isso niio quer dizer que ele deva recome9ar. Fa90 questiio deeVltar todos os mal-entendidos - logo estarao dizendo que estou mefazendo aqui de propagador do amor plat6nico. Ha muitas razoes pelasquais isso nao po de mais servir de escola de amor. Se lhes dissessequais, isso seria rasgar cortinas a golpes de espada, sem que se tenhacontrole do que ha por detras. Acreditem-me, em geral, evito isso.Existem. razoes que fazem com que niio haja que recome9ar, que sejamesmo Impossive! recome9ar. Vma dessas razoes, que talvez os sur-preenda se afirma-Ia diante de voces, e que para nos, no ponto em queestamos, 0 amor e seu fenomeno, e sua cultura, e sua dimensiio 0 amoresta j~ ha ~lgum tempo, desengrenado da beleza. Isso pode esp;nta-Ios,mas e aSSlm.

Mesmo que ainda niio tenham percebido, viio percebe-Io se refleti-rem urn pouco. Observem isso pelos dois lados: por urn lado as bel asobras, da arte, e pelo outro, 0 amor, e perceberiio que isso e verdade. Esta

e, em todo caso, uma condi9ao que toma dificil para voces acomodar-secom aquilo de que se trata, e e justamente por esse motivo que fa90 todaessa digressa~. Voltamos a heleza, a sua fun9iio tragica da qual destaquei,no ana passado, a dimensao, ja que e ela que da seu verdadeiro sentido aoque Platiio vai nos dizer do amor.

Por outro lado, e absolutamente claro que atualmente nao se atribuimais ao amor, de modo algum, 0 nivel da tragedia, nem tampouco urnoutro nivel de que falarei daqui a pouco. Ele esta no nivel do que se chama,no discurso de Agatiio, 0 nivel de Polimnia. E 0 nivel do que se apresentacomo a materializa9ao mais viva da fic9ao como essencial. Entre nos, e 0

cinema.Platiio ficaria satisfeito com essa inven9ao. Niio M melhor ilustra-

9iio nas artes daquilo que Platiio coloca na origem de sua visiio de mundo.o que se exprime no mito da cavema, nos 0 vemos todos os dias, ilustradopor esses raios dan9antes que vem, sobre a tela, manifestar todos os nossossentimentos em estado de sombras. E e realmente a esta dimensao que, naarte de nossos dias, pertencem, de modo mais eminente, a defesa e ailustra9iio do amor.

t por isso que Ihes disse outrora - afirmativa que nao deixa de lhesdespertar reticencias, porque eu 0 disse de maneira muito incidental, e quesera no entanto 0 pivo de nosso progresso - que 0 amor e urn sentimentoc6mico. E necessario urn esfor90 para chegar ao ponto de acomoda9iioadequado que the da sua importiincia.

Ha duas coisas que observei em meu discurso passado, referentesao amor, e vou recorda-Ias para voces.

A primeira e que 0 amor e urn sentimento comico. Voces verao, emsuas investiga90es, 0 que vai ilustra-Io, e para esse fim daremos 0 fecha-mento que ira nos permitir chegar ao que e essencial, a verdadeira naturezada comedia. Isso e tiio essencial, e tiio indispensavel, que e a raziio deexistir no Banquete essa presen9a que, no decorrer do tempo, os comen-taristas jamais conseguiram explicar, a de Aristofanes, que no entanto era,historicamente falando, 0 inimigo jurado de Socrates.

A segunda coisa que gostaria de dizer, que vamos encontrar a todoinstante e que nos servira de guia, e que 0 amor e dar 0 que nao se tern.Verao isso vir, igualmente, numa das espirais essenciais do que teremosde encontrar em nosso comentario.

Seja como for, para entrar na desmontagem pela qual 0 discurso deSocrates vai ter para nos sua fun9iio esclarecedora, digamos que 0 amorgrego nos permite retirar, na rela9iio do amor, os dois parceiros do neutro.Trata-se daquela coisa pura que se exprime naturalmente no generomasculino, e que permite inicialmente articular 0 que se passa no amor nonivel deste par formado, respectivamente, pelo amante e pelo amado, 0hastes e 0 er6menos.

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o que lhes direi da proxima vez vai Ihes mostrar como 0 processo do quese desenrola no Banquete nos permite qualificar essas duas funyOes, 0

amante e 0 amado, com todo 0 rigor de que a experiencia analftica e capaz.Em outras palavras, numa epoca em que falta a experiencia analftica

como tal, quando 0 inconscienle em sua funyiio propria com relayiio aosujeito e, certamente, a dimensiio mais insuspeitada, e portanlo com asIimitayOes em que isso implica, veremos ai, c1aramenle articulado, algoque vem encontrar os pincaros de nossa experiencia, e que ten lei des en-volver diante de voces sob dupla rubrica: num primeiro ano, A Rela(:iiode Objeto, e em seguida, 0 Desejo e sua 11lterpreta(:iio. Para dize-Io nasformulas as quais chegamos, voces veriio aparecer c1aramente 0 amantecomo 0 sujeito do desejo - com todo 0 peso que lem para nos esle lermo,o desejo - e 0 amado como aquele que, nesse par, e 0 unico a ler algumacoisa.

A questiio e de saber se aquilo que ele possui lem relayiio, diriamesmo uma relayiio qualquer, com aquilo que ao outro, 0 sujeito dodesejo, falta.

A questiio das relayoes enlre 0 desejo e isso diante do que ele se fixaja nos conduziu a nOyiio do desejo enquanto desejo de oulra coisa.Chegamos ate ai pelas vias da analise dos efeilos da Iinguagem sobre 0

sujeito. E muito estranho que uma dialelica do amor, a de Socrates, quese fez por inteiro, precisamente, por meio da dialetica, e atraves de umaprova dos efeilos imperalivos da interrogayiio como tal, niio nos leve aomesmo entroncamento. Ela faz muito mais: permite-nos ir mais alem ecaptar 0 momenta de bascula, de virada onde, da conjunyiio do desejo comseu objeto enquanto inadequado, deve surgir essa significayiio que sechama 0 amor.

Para quem niio apreendeu esta articulayiio e 0 que ela implica comocondiyoes no simbolico, no imaginario e no real, e impossivel captaraquilo de que se trata nesse efeito, liio estranho por seu automatismo, quese chama a transferencia, impossivel comparar a transferencia e 0 amor,e medir a parte, a dose, do que se deve atribuir a cada urn, e reciproca-mente, de Husiio ou de verdade.

Nisso, a investigayiio a qual hoje os introduzi vai provar ser paranOs de uma impottincia inaugural.

o ser do outro: um objeto?Do "Conhece-te a t; mesmo" ao "Ele mio sabe ".Os deuses pertencem ao real.Orfeu, Alceste, Aquiles.

Ficamos, da ultima vez, na posiyiio do erastes e do er6menos, do amantee do amado, de modo que a dialetica do Banquete nos permitira introdu-zi-Ia como a base, 0 ponto critico, a articulayiio essencial do problema doamor.

a robleml!. clo_!!mpr nos interessa na medida em que vai nos.permitir compreeR<le.r.o_qnese p.assa na transferencia -.$, ate certo ponto,

or causa da transferencia.Para justificar urn desvio assim tiio longo, que pode parecer super-

fluo para aqueles de voces que iniciam 0 seminario esle ano, tenlarei lhesapresentar 0 sentido que devem apreender de imediato do alcance de nossainvestigayiio.

Parece-me que, em qualquer nivel que esteja de sua formayiio, algo deveestar presente ao psicanalista como tal, e que pode captura-Io, puxa-Iopela aba do paleto em mais de uma ocasiiio.

o mais simples niio sera 0 trayo seguinte? - dificil de evitar,parece-me, a partir de uma certa idade, e que deve comportar desde ja para

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A META FORA DO AMOR I 45.•.~ ,t!f..l J ,,' 1'" .:,~.• ~ i'..r':'

efeito, havia naquela epoca'iao que parece, imagens cujo exterior repre-sentava urn satiro ou urn sileno e no interior, como nas bonecas russas,havia uma ~utra coisa, nao sabemos direito 0 que, mas certamente eramcoisas preciosas. Pois bern, Alcibiades compara SOCrates a esses pequenosobjetos. E para nos, 0 que deve haver, 0 que pode haver, 0 que e supostohaver, disso, na analise, e ao que se ateni nossa questiio, mas so no final.

Tento abOrdar 0 problema da relayao do analisado ao analista, quese manifesta por este fenomeno tiio curioso da transferencia, de maneiraque 0 aproxime mais de perto e esconda 0 menos possivel suas formas.Todo analista 0 conhece, mas procura-se, mais ou menos, abstrair seupeso, evita-Io. Nadl!.Q!<llLelhor podemos fazer, nesse s«ntido, do que partirde..-Yma interroga~ao.s_obre_aquila que 0 Jenomen_Q_9a trapsferenqia e.considerado imitar ao mliximo, ate mesmo chegando a confundir·se COQl

ele: 0 amor.Urn texto celebre de Freud, classificado entre 0 que se costuma

chamar de Escritos tecnicos a ~Observayao sobre 0 amor de transferen-cia", vai nesse sentido. 0 texto situa a transferencia com relayao aquilocom 0 que ela esta estreitamente em contato. Mas ha, des de sempre, umasuspensao no problema do amor, uma discordia interna, nao se sabe queduplicidade, que e justamente 0 que nos cabe aproximar mais de perto.Isso, justamente, pode ser esclarecido pela ambigiiidade de algo diferente,que e esta substituiyao feita no meio do caminho, sobre a qual, depois dealgum tempo do seminario aqui" voces devem saber que e real mente 0 quese passa na ayao analitica, e que posso resumir para voces.

Aquele que vem ao nosso encontra, partindo dessa suposiyao de quenao sabe 0 que tern - ja esta ai toda a implicayao do inconsciente, do ele

, Imio sabe fundamental. E por ai que se estabelece a ponte que pode ligar, nossa nova ciencia a toda a tradiyao do conhece-te a ti mesmo.

Existe, e claro, uma diferenya fundamental. A enfase e completa-mente deslocada por este ele niio sabe. Penso ja Ihes ter dito 0 bastantesobre isso para nao precisar fazer mais do que apontar, de passagem, paraessa diferenya.

Trata-se daquilo que 0 sujeito lem, realmente, em si mesmo, do queele demanda ser, e nao apenas ter. Apenas, que ele seja educado, criado,cultivado segundo 0 metodo de todas as pedago~ias tradicionais, que secolocam a sombra do poder fundamentalmente revelador de algumadialetica, e sao os rebentos, os brolos da trajetoria inaugural de Socrates,na medida em que e filosofica - sera a isso que vamos conduzir aqueleque vem ao nasso encontro, enquanto analistas?

Simplesmente, como leitores de Freud, voces ja devem saber bemalgo sobre 0 que, pelo menos a primeira vista, aparece como 0 paradoxodo que se apresenta a nos como, termo, telos, ponto de chegada, terminoda analise. 0 que nos diz Freud? Senaa que, no fim das contas, 0 que vai

voces, de maneira muito presente e por si so, 0 que vem a ser 0 problemaI do amor. Sera que nunca Ihe chamou a aten9ao que num dado momento,naquilo que voces deram aos que Ihes sac mais proximos, alguma coisafaltou? E nao apenas alguma coisa faltou, mas algo que os deixa, a esses

Jditos mais proximos, irremediavelmente em falta por voces? Eo que?o fato de serem analistas permite-Ihes compreender isso: que, ~om

.§eus proximos, voces so fizeram girar em torno da fantasia cuja satisfa9a9~aram, mais ou menos, neles. ~ssa fantasia, de certa!s>rma, substituiupor eles sua~ imagens e suas cores.- - Este ser, de quem voces podem se lembrar de stibito por urn acidente

I qualquer, cuja morte e realmente 0 que nos faz escutar de mais longe asua ressoniincia, este ser verdadeiro, na medida em que 0 evocam, ja sedistancia, ja esta eternamente perdido. Ora, este ser, ainda assim, e aquelemesmo a que tentam reunir-se pelos caminhos do seu desejo. So que esteser e 0 de voces. Como analistas, bem sabem que de certa forma, por naote-Io querido, e que voces tambem meio que 0 perderam. Mas, pelo menos,aqui voces estiio no nivel de sua falta, e seu fracasso mede isto comex atidiio.

E este outro que voces tanto negligenciaram, nao seria por teremfeito dele, como se diz, somente 0 seu objeto? Praza aos ceus que, a essesoutros, voces os tenham tratado como objetos, dos quais se aprecia 0 peso,o gosto e a substancia. Hoje, estariam menos perturbados pela lembran9adeles. Teriam Ihes rendido justi9a, homenagem, amor. Teriam-nos amado,ao menos como a si mesmos, so que voces se amam mal. Mas nem mesmoe da sorte dos mal-amados que partilhamos. Voces terao feito deles, semdtivida, como se diz, sujeitos - como se fosse este 0 objetivo do respeitoque eles mereciam, respeito, diz-se, por sua dignidade, 0 respeito devidoaos semelhanles.

Receio que este uso neutralizado do termo, flOSSOS semelhafltes, seja:algo hem diferente daquilo de que se trata na questiio do amor. Esses, semelhantes, receio que 0 respeito que Ihes pres tam se dirija com dema-I siada pressa aos seus caprichos de resistencia, as suas ideias teimosas, a, sua burrice de nascenya - as coisas deles, sei la! Eles que se virem. EstaIjustamente ai, creio, 0 fundamento deste conter-se diante da liberdadedeles que freqiientemente dirige a conduta de voces. Liherdade de indife-renya, diz-se, mas nao da deles, antes da de voces.

.E e nisso, realmente, que a questiio se coloca para urn analista. Asab«r, ..qual a nossa rela9ao com 0 ser de nosso paciente? Sabe-se bern,afinal, que e disso que se trata em analis~. ~o ac(;sso 'a ess~ se.r,.§erapu nao 0 do amor.? Tera algurna relayao, este acesso, com aquilo que'vamos saber, a partir da questiio que colocamos este ano, quanto anatureza do amor? Isso, verao, nos levara hem longe. Existe, precisamenteno Banquete, uma metlifora da qual pretendo me servir com este fim. Com

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encontrar, no tennino, quem segue este caminho nao e outra coisa,essencialmente, alem de uma falta.

Quer chamem a essa falta de castrariio ou Penisneid, isso e signo,metafora. Mas se e realmente contra isso que vern, ao tennino, se chocara analise, ja nao ha ai alguma ambigiiidade? Em sum a, lembJ;"~ndo"lhes 0

~lQ registro entre 0 come~o, a partida de princfpio, _da experiencia, e~ tennino, nao me escapa que seu primeiro aspecto possa aparecer, etiio necessariamente, decepcionante. No entanto, todo 0 seu desenvolvi-men~ se inscreve af. Seu desenvol~imento e, prop_rialI!t<nle fallilldo, arevela~ao deste algo, por inteiro no seu texto, que se chama 0 Outro!nconsciente.

Para quem quer que ou~a falar nisso pela primeira vez - mas pensoque ninguem aqui esteja nesse caso - tudo isso so pode ser ouvido comourn enigma. Nao e, absolutamente, a este titulo que eu 0 apresento a voces,mas a titulo da reuniao dos tennos onde se inscreve nossa a~ao. Eigualmente para iluminar de imediato 0 plano geral que vai seguir nossoencaminhamento. Afinal, meu Deus, nao se trata de nada alem de apreen-der imediatamente 0 que tern de ana logo esse desenvolvimento e essestermos com a situa~ao inicial, fundamental, do amor. Esta, para ser claro,nunca foi, que eu saiba, situada nos termos nos quais proponho articula-lade imediato, esses dois termos de onde partimos, 0 erastes, 0 amante, ouainda 0 eron, aquele que ama,3 e 0 eromenos, aquele que e amado.

Tudo isso nao vai se situar melhor logo de saida? Nao ha porquebrincar de esconde-esconde. Podemos ve-lo de imediato em tal assembleia- 0 que caracteriza 0 erastes, 0 amante, para todos os que dele se~roximam, nao sera essencialmJ:nte aquilo que Ihe falta? Quanto a nos,Ipodemos acrescentar desde logo que ele nao sabe 0 que e que Ihe falta,t com aquele tom particular de "inciencia" que e 0 do inconsciente.

gpor outro lado, 0 eromellos, 0 objeto amado, nao se situou semprecomo aquele que nao sabe 0 que tern, 0 que tern de oculto, e que constitui,suaatra'~ao? 0 que ele tern nao e aquilo que, na rela~ao de amor, econvocado nao apenas a se revelar, mas a tornar-se, a ser atualizado,quando era, ate entao, apenas possivel? Em suma, vamos dize-lo com urntom analftico, ou mesmo sem este tom, 0 amado, ele tambem, nao sabe.Mas e de outra coisa que se trata - ele nao sabe 0 que tern.

Entr~~sse~ dois ~~ gue constituem,_em_sua.e~encia, 0 amante~I!lado, observem que nao ha nenhuma coincidencia. 0 que falta.a urn_n,aoe 0 que existe, escondido, no outro. ~i esta todo 0 problema do amor.Quer se 0 saiba ou nao, isso nao tern importiincia alguma. No fen6meno~encontra-se a cada passe 0 dilaceramento, a discordiincia. Ninguem, no;entanto, precisa dialogar, dialetizar, dialektikeuestai, sobre 0 amor -basta que se esteja nele, basta amar, para ser presa desta hiancia, dessadiscordia.

Isso sera mesmo dizer tudo? Sera que basta? Nada mais posso fazeraqui. 0 que fa~o ja e muito. Exponho-me ao risco de uma certa incom-preensao imediata. Mas nao tenho a inten~ao, aqui, de engana-los, e desdeja acendo a minha lanterna.

Certamente, as coisas vao mais alem. Podemos dar aqui, nos termosdos quais nos servimos, uma formula que retoma 0 que ja e indicado pelaanalise, da cria~ao do sentido na rela~ao significante-significado, mesmodeixando para ver, depois,o seu manejo e a sua verdade. 0 a1l!or £91!!.0significante - pois, para nos, ele e urn, e nao mais que isso - 0 amor euma metafora - na medida em que aprendemos a articular a metafora~o-substitui~ao.- E aqui que entramos no obscuro. fuo-lhes, por ora, admiti-losim lesmente, e manter ~ lIlao aquilo que aqui promovo como 0 que e, a

.saber, uma formula alg~rica ..E na medida em que a fun~ao do erastes,do a~ante,_na medi.da em que e ele 0 sujeito da falta, vem no lugar,substitui a fun~ao do eromenos, 0 objeto amado, que se produz a signifi-

\,£.a~ao do l!..1I!0r~Levaremos, talvez, urn certo tempo para esclarecer essa formula.

Havera tempo para faze-lo neste ana que temos pela frente. Pelo menos,nao terei deixado de Ihes dar, de saida, este marco que pode servir, naocomo charada mas como referencia, propria para Ihes evitar certas ambi-giiidades em meus futuros desenvolvimentos.

Entremos agora neste Banquete, do qual na ultima vez, montei 0 cenarioe Ihes apresentei os personagens.

Estes nada tern de primitivos, apesar da simplifica~ao do problemaque nos apresentam. Sao personagens muito sofisticados, e bem 0 caso dedize-lo. E volta a tra~ar, agora, um dos alcances daquilo que passei meutempo, da ultima vez, a Ihes dizer, pois considero importante que isso sejaemitido com todo 0 seu carater provocante.

Existe, ainda assim, algo de bastante humoristico em pensar que,durante quase vinte e quatro seculos de medita~ao religiosa, nao houveuma tinica reflexao sobre 0 amor, fosse pelos li~rtinos, fosse pelospadres, que nao se referisse a esse texto inaugural. Porque, afmal de contaseste banquete, tomado em seu aspecto exterior, por alguem que nelepenetre inadvertidamente, pelo campones que sai de seu pequeno rincaonos arredores de Atenas, representa, convenhamos, uma especie de assem-bleia de tias, como se diz, uma reuniao de bichas velhas. SOCrates estacom cinqiienta e tres anos, Alcibiades, sempre belo ao que parece, comtrinta e seis, e 0 proprio Agatiio, em cuja casa estiio reunidos, tern trinta

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- ele acaba de ganhar 0 premio no concurso de tragedias, e e isso 0 quenos permite datar com exatidiio 0 Banquete.

Nao devemos nos deter nessas aparencias. E sempre nos saloes, istoe, nos lug ares onde as pessoas niio tern em seu aspecto nada de particu-larmente atraente, e em casa das duquesas, afinal de contas, que se dizem,no decorrer de urna noitada, as coisas mais sutis. Essas coisas ficamperdidas para sempre, e claro, mas nao para todos, pelo menos nao paraaqueles que as dizem. Aqui, temos a chance de saber 0 que esses perso-nagens, cada urn por sua vez, discutiram naquela noite.

Hse falou muito desse Banquete. Imitil dizer-lhes que aqueles cujooficio e ser filosofo, filologo, helenista, 0 examinaram com lupa. Naoesgotei a soma de suas observayoes, mas elas tambem nao sao inesgoui-veis, giram sempre em tome de urn ponto. Por menos inesgouivel que seja,esui fora de cogitayao, assim mesmo, que eu restitua para voces a somados debates miudos feitos em tome de tal ou tallinha. Em primeiro lugar,nao esui dito que estes nos evitariam deixar escapar alguma coisa impor-tante. E depois, nao e comodo para mim, que nao sou filosofo, nemfilologo, nem helenista, por-me na pele destes, e dar-Ihes uma aula sobreo Banquete. 0 que posso simplesmente esperar e dar-Ihes, inicialmente,uma primeira apreensao dele.

Peyo-Ihes que acreditem que nao e na primeira leitura que estoume fiando. Deem-me 0 credito de pensar que nao foi pela primeira vez,e para uso deste seminario, que entrei neste texto. Deem-me tambemo credito de pensar que fiz urn certo esforyo para refrescar 0 que tinhade lembranyas com relayao as obras que se a ele dedicaram, ou mesmopara me informar sobre aqueles que pudesse ter negligenciado ateentao.

Digo-Ihes is so para me desculpar por ter abordado as coisas pelofinal. Fiz isso porque creio ser 0 melhor. Decerto, a partir do propriometodo que Ihes ensino, 0 que compreendo disso deve ser, para voces,objeto de uma reserva. E ai que corro os maiores riscos - sejam-mereconhecidos por corre-Ios no lugar de voces. Que isso Ihes sirva apenasde introduryao as suas criticas, que nao vao incidir tanto sobre 0 que IhesyOU dizer do que entendi, mas sim sobre 0 que esta no texto, e que, depoisdo que Ihes digo, vai-Ihes aparecer como aquilo que capturou minhacompreensao. Que esta compreensao seja verdadeira ou falsa, 0 que ajustifica no texto e, como significante, impossivel de evitar para voces,mesmo que 0 compreendam de outra maneira.

Portanto, dispenso-Ihes as primeiras paginas, estas paginas queexistem sempre nos dialogos de Platiio. Este nao e urn dialogo como osoutros, mas encontra-se nele, ainda assim, esta situayao feita para criar 0

que chamei de ilusao de autenticidade, esses recuos, esses apontamen-tos da transmissao, de quem repetiu 0 que outro the dissera. E sempre

esta a forma pela qual Platiio entende criar, de saida, urna certa profundi-dade, e s«m duvida ela serve, a seus olhos, para a ressoniincia do que elefaz dizer.

Passo, tambem, por cima do regulamento ao qual fiz alusiio daultima vez, das leis do banquete. Indiquei-Ihes que essas leis nao eramapenas locais, improvisadas, mas que se relacionavam com urn prototipo.o simposio era algo que tinha suas leis, mas nao, sem duvida, as mesmasexatamente aqui e ali, em Atenas e em Creta.

Passo por cima de todas essas referencias para chegar a realizayaoda cerimonia que vai incluir 0 seguinte,que deve ser chamado por urnnome, 0 qual, indico-Ihes de passagem, se presta a discussiio: urn elogiodo amor. Sera enkOmion? Sera epainesis? Poupo-Ihes a discussao, que ternseu interesse, mas que e secundaria. Queria hoje, simplesmente, situar 0

progresso do que vai se desenrolar atraves da sucessiio dos discursos.o primeiro e 0 de Fedro. Fedro e urn outro personagem bem original.

Seria necessario trayar seu carater, embora isso nao tenha tanta importiin-cia. Por hoje, saibam apenas que e singular que tenha sido ele quem trouxeo tema a baila, que fosse 0 pater tou logou, 0 pai do tema, pois nos 0

conhecemos urn bocadinho pelo comeyo do Fedro: e urn curioso hipocon-driaco. Essa observayao talvez lhes sirva mais adiante.

Aproveito, enquanto estou pensando nisso, para pedir desculpas avoces. Quando Ihes falei sobre a noite, na ultima vez, nao sei por queremeti-os ao Fedro. Lembrei-me de que nao e 0 Fedro que comes:a coma noite, mas 0 Protdgoras. Corrigido isso, continuemos.

Fedro, Pausiinias, Eriximaco. Antes de Eriximaco, deveria ter sidoAristofanes, mas este esui com solus:os e deixa que 0 outro passe a suafrente. AristOfanes, 0 poeta comico, eis 0 etemo problema de saber porque se encontrava ali com Socrates, quando todos sabem que ele faziamais do que critica-Io: ridicularizava-o, difamava-o em suas comedias, eos historiadores em geral 0 consideram parcial mente responsavel pelacondenas:ao e pelo fun tragico de Socrates. Ha, sem duvida, ja lhes disse,uma razao profunda para sua presens:a, da qual nao dou, assim como osoutros, a solus:ao ultima. Mas talvez tentemos lans:ar sobre este ponto urncomecinho de luz. \

Em seguida vem Agatiio, e depois de Agatiio, Socrates. Isso consti-tui 0 banquete propriamente dito, isto e, tudo 0 que se passa ate este pontocrucial sobre 0 quallhes indiquei, da ultima vez, que devia ser consideradocomo essencial, ou seja, a entrada de Alcibiades. Esta corresponde asubversao de todas as regras do banquete, no minimo pelo fato de Alci-biades apresentar-se embriagado, anunciar-se como estando essencial-mente embriagado e que, dessa maneira, esta como tal na embriaguez.

Suponhamos que voces digam que 0 interesse deste dialogo doBanquete e manifestar a dificuldade de se dizer, sohre 0 amor, alguma

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coisa que se sustente. Se se tratasse apenas disso, estariamos, pura esimplesmente, numa cacofonia. Mas 0 que Platao - pelo menos, e 0 quepretendo, e nao e especialmente audacioso faze-lo - 2-.9.!le Platao nos.!!l0stra, de uma forma jamais clara, tornada visivel, e que 0 contorDogesenhado por esta dificuldade nos indica 0 ponto onde se situa a tQpolo-gil! fundamental que impede de dizer sobre 0 amor alguma coisa ~_~s~sustente.

o que lhes digo ai nao e muito novo. Ninguem sonha contesta-lo,dentre todos aqueles que se ocuparam dessepretenso dialogo - entreasp as, pois mal chega a ser urn texto que mere~a este titulo, ja que e umaserie de elogios, uma seqiiencia de caneronetas, de can~6es para beber emhonea do amor. Certamente, como essas pessoas san urn pouco maissabidas que as outras, isso ganha toda uma importancia - e alem disso,dizem-nos que este e urn tema que nao e escolhido com freqiiencia, 0 quepoderia surpreender a primeira vista.

Dizem-nos que cada urn traduz 0 negocio no seu tom, no seudiapasao. Alias, nao se sabe bem por que, por exemplo, Fedro seraencarregado de introduzi-lo - dizem-nos - sob 0 angulo da religiao, domito, ou mesmo da etnografia. E com efeito, nisso tudo ha urna certaverdade. Nosso Fedro introduz-nos 0 amor dizendo-nos que ele e megastheos, urn grande deus. Nao diz apenas isso, mas refere-se a dois teologos,Hesiodo e Parmenides que, a titulos diversos, falaram da genealogia dosdeuses, 0 que e algo de realmente importante. A Teogonia de Hesiodo, 0Poema de Parmenides, nao vamos nos sentir obrigados a nos remetermosa eles, sob 0 pretexto de que urn de seus versos e citado no Fedro.Assinalo, assim mesmo, que ha dois ou tres anos, talvez quatro, publicou-se urn estudo muito importante sobre 0 Poema de Parmenides, de urn

,\contempodineo, Jean Beaufret. Deixemos isso de lado, e tratemos de darconta do que ha no discurso de Fedro.

J1a, ~~is, a !~~erencia aos_deuses. Por que aos deuses, no plural?Nao sei que sentido tern para voces os deuses, especialmente os deusesantigos, mas fala-se deles 0 bastante nesse dialogo para que seja util,ate mesmo necessario, que eu responda a essa pergunta como sehouvesse sido feita a mim por voces. 0 que pensam, afinal, dos de.!lses?_Onde-e que isso se situa com relaerao --;; simbolico, ~.Qil!!~ginari~~ a~~? Nao e uma pergunta va, de modo algum. ~t(o fim, a questao_de.que Se vai tratllr e a de saber se, sim oy !lao, Q am9Le_um_deus, e ao,final, pelo menos,t~ra sido feito esse progresso, 0 de saber com ~ertezague el~ !!ao e urn.,

Nao yOU Ihes dar, a propOsito disso, urna aula sobre 0 sagrado. Serasuficiente, para mim, definir algumas formulas sobre esse assunto. Osdeuses - na medida em que existem, para nos, no registro que nos servepara avan~ar nossa experiencia, se e verdade que essas tres categorias nos

san de algum uso - ..2.sde uses, isso e bem cert(), pertencem ao real. Osdeuses, go_urn modQ de revelaerao do r~al.

I E por esta razao que todo progresso filosofico tende, por sua proprianecessidade, a elimina-los. E por isso tambem que a revelaerao crista,como muito bem observou Hegel, esta a caminho de sua elimina~ao -ela esta urn pouquinho mais adiante, vai urn bocadinho mais profunda-mente, na via do politeismo ao ateismo. Relativamente a n09ao do deuscomo summum de revela~ao, de lumen, como clarao e apari~ao - e umacoisa fundamental - reais, 0 mecanismo da revelaerao crista se encontra,de maneira incontestavel, no caminho que leva a sua reduerao e, em ultimainsrancia, a sua aboli~ao. Com efeito, ele tende a deslocar 0 deus destarevela~ao, bem como 0 dogma, em direerao ao Verbo, 0 logos. Em outraspalavras, esta num caminho paralelo ao que segue 0 filosofo, na medida .em que sua fatalidade e negar os deuses.

Essas revel~oes, que 0 horn em encontrava ate entao no re.l!J -no real onde aquilo' que se revela e, alias real - ~lo r~l que 0 desloc~,~le vai busca-las no logos, isto e, no nivel de urna articula~ao significante.

E isso 0 que faz toda interrogaerao que, no comeero da trajetoriafilosofica tende a se articular como ciencia, e Platao nos eosina, certo ouerrado, v~rdadeiro ou falso, que era 0 que fazia SOCrates. SOCrates exigiaque aquilo com 0 que mantemos essa rela~ao inocente que se chama doxa,e que, - Meu Deus, por que nao? - e verdadeira, as vezes, que nao noscontentassemos com isso, mas perguntassemos por que, que nao nossatisfizessemos senao com este verdadeiro assegurado que ele chamavade episteme, ciencia, saber que presta contas de suas raz6es. E disso, nosdiz Platao, que se ocupara 0 philosophein de SOCrates.

Ja lhes falei daquilo a que chamei a Schwiirmerei de Platao. Epreciso, com efeito, crer que alguma coisa, ao final dessa empreitada,permaneera fracassada, para que 0 rigor, 0 talento desenvolvido na de-moostraerao de urn tal metodo, nao tenha impedido que tantas coisas emPlatao tivessem posteriormente servido, ajudado a todas as mistagogias.Falo, antes de mais nada, da gnose e de tudo aquilo que, no propriocristianismo, sempre permaneceu gnostico. Nem por isso deixa de serclaro que 0 que Ihe agrada e a ciencia. Como poderiamos recrimina-lo pornao ter conduzido este encaminhamento, desde os primeiros passos ate 0

final?Seja como for, pois, para introduzir 0 problema do amor, 0 discurso

de Fedro se refere a essa no~ao de que ele e urn grande deus, quase que 0mais antigo dos deuses, nascido imediatamente depois do caos, como dizHesiodo. E tambem 0 primeiro no qual peosou a deusa misteriosa, a Deusaprimordial do discurso parmenidiano.

Nao nos e possivel aqui - e este empreendimento talvez seja, alias,impossivel de se levar adiante - determinar tudo 0 que esses termos

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podiam significar no tempo de Platiio. Mas tentem, mesmo assim, partirda ideia de que, nas primeiras vezes em que se diziam essas coisas, etotalmente fora de questiio que elas tivessem esse aspecto de eclogabestificante que tem, por exemplo, no Seculo XVIT, no qual, quando sefala de Eros, todos brincam disso. Nesta epoca, tudo isso se inscreve numcontexto inteiramente outro, um contexto de cultura cortes, de ecos daAstreia, e tudo 0 que se segue, a saber, palavras sem imporroncia. Aquias palavras tem sua plena importiincia, a discussao e verdadeiramenteteologica.

Para faze-los compreender esta imporr:ancia, nao encontrei nadamelhor para Ihes dizer: se quiserem realmente entende-lo, apanhem asegunda Eneada de Plotino e vejam como aquilo de que ele fala se situamais ou menos no mesmo nivel. Trata-se, ali tambem, de Eros, so se tratamesmo disso. Nao Ihes sera possivel, por menos que tenham lido algumtexto teologico sobre a Trindade, deixar de perceber que esse discurso dePlotino - estamos no final do Seculo ITI - e simplesmente, creio quecom a diferen~a de urnas tres palavras, urn discurso sobre a Trindade. EsseZeus, essa Afrodite, esse Eros, sao 0 Pai, 0 Filho e 0 Espirito Santo. Isso,simplesmente para permitir-lhes imaginar aquilo de que se trata quandoFedro fala de Eros.

Para Fedro, falar de amor e, em suma, falar de teologia. E muitoimportante que se perceba que este discurso come~a por uma tal introdu-~ao, pois, para muitos ainda, e justamente na tradi~ao cristii por exemplo,falar do amor e falar de teologia.

Mas esse discurso niio se limita ai. Prossegue por uma ilustra~aodesses objetivos. 0 modo de ilustra~ao de que se trata tambem e muitointeressante.

Vao nos falar deste amor divino e, precisamente, de seus efeitos.

Os efeitos do amor silo eminentes, em seu nivel, pela dignidade querevelam.

Encontramos aqui urn tema que, desde entiio, ficou urn poucodesgastado nos desenvolvimentos da retorica, a saber, que 0 amor e urnvinculo contra 0 qual qualquer esfor~o hurnano viria se quebrar. Urnexercito feito de amados e amantes - a ilustra~iio classica subjacente ea famosa legiao tebana - seria um exercito invencivel, na medida em queo amado, para 0 amante, tanto quanta 0 amante para 0 amado, saoeminentemente suscetiveis de representar a mais alta autoridade moral,aquela diante da qual nao se cede, aquela diante da qual nao se pode serdesonrado. Esta n~ao alcan~a, no seu ponto extremo, 0 amor comoprincipio do sacrificio ultimo.

Nao deixa de ter interesse ver emergir aqui a imagem de Alceste nareferencia euripidiana, ilustrando mais uma vez aquilo que Ihes trouxe noana passado' como sendo 0 que delimita a zona da tragedia, a saber, 0entre-duas-mortes. Vou resumir. a rei Admeto e urn homem feliz, mas aquem a morte vem, de subito, acenar. Alceste, encarna~ao do amor, e aunica - unica dentre todos os parentes, e nlio os velhos pais do rei, a quemtiio pouco tempo resta para viver, segundo todas as probabilidades, nemos amigos, nem os filhos - a unica que 0 substitui para satisfazer ademanda da morte.

Num discurso onde se trata essencialmente do amor masculino, eiso que pode parecer notavel' e que hem vale guardannos. Alceste, portanto,nos e proposta ai como urn exemplo. Isso tern 0 interesse de valorizar 0

que ira se seguir. Dois exemplos, com efeito, sucedem 0 de Alceste,dois que, no dizer do orador, avan~aram tambem no campo de entre-duas-mortes.

o primeiro, Orfeu, conseguiu descer aos infernos para ir buscar suamulher Euridice. Como sabem, ele voltou de mlios abanando, por umafalta que cometeu, a de voltar-se antes do momenta pennitido. Este temamitico e reproduzido em muitas lendas de outras civiliza~oes alem dagrega, dentre as quais urna lenda japonesa que e celebre. a outro exemploe 0 de Aquiles.

Nlio poderei, hoje, levar as coisas muito mais alem, mostrando-lhesapenas 0 que se destaca da aproxima~lio desses tees herois. Eum primeiropasso, que ja os colocara no caminho do problema.

Tomemos em primeiro lugar as observa~oes de Fedro sobre Orfeu.a que nos interessa aqui e 0 comentlirio de Fedro. Nlio importa se ele vaiao fundo das coisas, nem se isso e justificado, nao podemos ir ate la. 0que nos importa e aquilo que ele diz. E e justamente a estranheza do queele diz que nos deve deter.

Ele nos diz de Orfeu, filho de Eagro, que os deuses nlio gostaramnem urn pouco do que fez. A raziio que da para isso encontra-se nainterpreta~ao que prop6e do que os deuses fizeram a este sujeito, que nlioera tiio born assim, urn moleiriio - nlio se sabe por que Fedro, e tambemPlatao, tern rancor contra ele. Os deuses nlio Ihe mostraram urna verda-deira mulher, e sim urn fantasma de mulher. Isso faz eco 0 bastante aquilo

~atraves do que introduzi hli pouco meu discurso referente a rela~lio como outro, a saber, a diferen~a que existe entre 0 objeto de nosso amorenquanto recoberto pelas nossas fantasias e 0 ser do outro, na medida em

\ que 0 amor fica se interrogando para saber se pode alcan~a-Io.E realmente este ser do outro que, no dizer de Fedro, vemos aqui

Alceste substituir na morte. Encontrarao no texto esse termo, que nao sepoderli dizer que fui eu quem 0 pOs ali: hyperapotanein. A substitui~ao,a metlifora, de que lhes falava hli pouco e aqui realizada no sentido literal.

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Alceste se coloca, autenticamente, no lugar de Admeto. Este hyperapota-nein, 0 sr. Ricoeur, que tern 0 texto diante dos olhos, pode encontni-Ioexatamente em 180a. Sendo Orfeu eliminado dessa competiryiio de meritosno amor, esta expressiio e enunciada para marcar a diferenrya que llli entreAlceste e Aquiles.

Aquiles e outra coisa. Ele e 0 que escolhe epapotaneill. E aqueleque me seguird. Segue, na morte, patroclo.

o que significa para urn antigo eSta interpretaryiio do gesto deAquiles mereceria, para que 0 compreendessemos, muitos comentarios.Isso fica muito menos claro do que no casu de Alceste. Somos forryados arecorrer a textos homericos dos quais resulta que, em suma, Aquiles teriatido escolha. Trata-se de matar Heitor, unicamente para vingar a morte depatroclo. Se tu niio matares Heitor - diz-Ihe sua miie Tetis - voltaraspara casa tranqililo e teras uma velhice feliz e tranqilila. Se 0 matas, tuasorte estara selada: e a morte que te espera. Aquiles duvidou tiio poucodisso que temos outra passagem onde ele faz essa reflexiio para si mesmo,a parte: - Eu poderia ficar em paz. E depois, isso e impensavel, ele dizpor que razoes. Esta escolha e considerada por si so como tiio decisivaquanto 0 sacrificio de Alceste. A escolha da Moi"ra,do destino, tern 0mesmo valor que a substituiryiio de ser por ser.

Niio e realmente necessario acrescentar a isso, como 0 faz numanota, niio sei por que, 0 sr. Mario Meunier, no entanto urn born erudito,que em seguida Aquiles se mata sobre 0 ttimulo de patroclo. Ocupei-mebastante, esses dias, da morte de Aquiles, que me embararyava, e niioencontro em parte alguma uma referencia que permita articular semelhan-te coisa a lenda de Aquiles. Vi, alias muitos modos de morte por parte deAquiles, a quem alguns atribuem curiosas atividades do ponto de vista dopatriotismo grego, ja que se supoe que ele haja traido a causa grega poram or de Polixena, que e uma troiana - 0 que tiraria urn pouco daimpormncia do discurso de Fedro.

Para nos atermos a esse discurso, 0 importante e que Fedro seentrega a consideraryoes longamente desenvolvidas a respeito da funryiioreciproca de Patroclo e Aquiles em sua ligaryiio erotica. Ele nos corrigequanto ao ponto seguinte: niio imaginem, de modo algum, que Patroclo,como se acreditava geralmente, fosse 0 amado. Conclui-se, diz-nos Fedro,a partir de urn exame atento das caracteristicas dos personagens, que esteso poderia ser Aquiles, muito mais jovem e imberbe. Escrevo-o porquevolta sem cessar essa his tori a de saber em que momento se deve ama-Ios,se antes da barba ou depois da barba. So se fala disso. Essa historia debarba, encontramo-Ia por toda parte. Podemos agradecer aos roman os pornos terem livrado dessa historia. Isso deve ter suas razoes. Enfim, Aquilesnii~ tinha barba. Logo, e ele 0 amado. Quanto a Patroclo, era uns dez anosmaiS velho. Pelo exame dos textos, e ele 0 amante.

Niio e isso 0 que nos interessa, mas esse pri'tneiro apo.ntamento ondesurge algmpa coisa que tern relaryiio com 0 que ihes of~reci como sendo 0

objetivo em direryiio ao qual devemos avanryar. Com efeIlo, 0 que os deusesacham sublime, mais maravilhoso que tudo, e quando 0 amado se com-porta como se espera que se comporte 0 amante. Ne~se ponto, 0 exemplode Alceste se op6e estritamente ao exemplo de AqUlleS. .

a que quer dizer isso? Isso e 0 texto. Niio se v~ por que F~dro fa~Iatoda essa historia que dura duas paginas se isso niio ~vesse s~a Importan:cia. Voces pensam que explore 0 Mapa do Temo, m~s nao so.u eu, ePlatiio. E isso e muito bem articulado. E realmente preciso deduzu 0 quese impoe a partir dai. Ja que Fedro opae expressamente Aquiles a Alceste,e faz pender a balanrya do premio a ser dado ao amor pelos deuses pa.ra_0lade de Aquiles, isso quer dizer, portanto, que Alceste estava na ~o~Iryaodo hastes, do amante. E na medida em que Aquiles estava na'p0sIryao d?

.•.• . . d " 1\"';\('" ,"t.. ,0' I"" \amado que seu sacnflclO e mUlto maiS a muave: :k, <r ,.,,, '" , "\ .

Em outras palavras, todo 0 discurso teoiogico do hipocondnaco .. ,\ ~.,d· - d b q e j,\( )Fedro acaba por apontar que e nessa ueryao qu~ _esem.oca 0 .u \

chamei ha pouco da significa~iio do amor. Sua apan~ao maiS sens~clO-nal a mais notave!, sancionada, coroada pe!os deuses, que dao aAq~iles urn lugar todo especial no dominio dos Bem-avent~r~dos -como todos sabem, e uma ilha que existe ainda na foz do DanubIo, ond~se inventou agora urn asilo ou urn negocio para delinqiientes - estaligado precisamente ao fato de que aqui urn amado se comporta comourn amante.

Niio poderia ir mais adiante hoje em meu discurs~,. n,tas quer.oterminar com algo de sugestivo, que talvez venha nos permItlr lOtroduZlrai alguma questiio pratica. E isso: ,go par eroti~o e, em su~~, do lade ~oamante gue se encontra, se assim se pode dizer, na posI~~~atural, ~-- --atividade. .---Esta observaryiio tera muitas conseqiiencias para n?s se, ~onsideran-do 0 par Alceste-Admeto, quiserem entrever 0 que e pa~~cularmentecolocado ao seu alcance por aquilo que descobrimos na analIse do que a

I mulher pode experimentar de sua propria ~alta. Por que niio .conceber, ao

(

.menos num certo nivel, que no par, aqm heteros.sexual, e do lado. damulher que estiio ao mesmo tempo a falta, como dizemos, mas tambem,e ao mesmo tempo, a atividade?

: Seja como for, 0 proprio Fedro, niio duvida disso. E do outro.l~do:Do lade do amado, do ir6minos? Ou, vamos po-Io no neutro, do erome-non, pais igualmente 0 que se iromene, 0 que se erra, 0 que se .ama ~m

Itoda essa historia do Banquete, 0 que e? E alguma coisa que.se diZ n,tUlto!freqiientemente no caso neutro,.ta pai~ikd. ~ 0 ob~eto. 0 ~ue ISSO~esigna,a saber, uma fun~iio neutra, esta associado a fun~ao daqmlo que e amado.E deste lade que esta 0 termo forte.

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Voces veriio isso mais adiante, quando tivennos de articular por queo problema e mais complexo no estagio superior, quando se trata do amorheterossexuaI. Neste nivel, ve-se c1aramente que a dissocia~iio entre 0

ativo e 0 forte vai nos servir. Mas era importante aponta-Io no momentaem que isso se encontra tiio manifestamente i1ustrado pelo exemplo de

. Aquiles e Patroclo. E uma miragem acreditar que 0 forte se confunda com

/

0 ativo, que Aquiles, por ser manifestamente mais forte que Patroclo, niioseja 0 amado. E isso 0 que, nessa passagem do texto, e denunciado, e eeste 0 ensinamento que temos para guardar dessa passagem.

1

Chegado a esse ponto de seu discurso, Fedro passa a vez a Pausanias,reconhecido, durante seculos, como 0 que exprime, sobre 0 amor dosrapazes, a opiniiio de Platiio.

Reservei cuidados absolutamente especiais a Pausanias. E urn per-sonagem muito curioso, que esta longe de merecer a estima que se Ihededica, por ter na ocasiiio merecido 0 imprimatur de Platiio. E, a meu ver,urn personagem absolutamente episOdico, importante, no entanto, sob urncerto angulo: na medida em que 0 melhor comentario a ser posto a margemde seu discurso e esta verdade evangelica, que 0 reino dos ceus e proibidoaos ricos.

Espero, da proxima vez, mostrar-Ihes por que.

Mito da muda do amado.Regras do amor plat6nico.o amor calvinista.Kojeve e as solur;os de Arist6fanes.

Tentarei hoje avan~ar na analise do Banquete, ja que este e ~ ca~o queescolhi para introduzi-Ios este ana ao proble~a ~a tr~nsferencla.

Fomos, da ultima vez, ate 0 fim do pnmeuo dISCurSO,? ~e Fedro.Voces sabem os discursos que viio se suceder: 0 de Pausamas, 0 deEriximaco, 0 de AristOfanes, 0 de Agatiio, que eo anfitriiio deste banquete,cuja testemunha e Aristodemo. Do inicio ao ~im e Apol~doro que.m fala,repetindo 0 que colheu de Aristodemo. Depois de Agatao vem Socrat~s,do qual veriio 0 caminho singular que toma para se ex~r~ssar so?r~ ~q~loque ele sabe ser 0 amor. Sabem igu~~ent~ q~e 0 ultlmo epIs?<!lO ~ aentrada de Alcibiades, espantosa conflssao pubhca na sua quase.mdec~n-cia, que permaneceu urn enigma para todos os comentadores. Ha tambemalguma coisa depois, chegaremos la. .

Gostaria de evitar faze-Ios percorrer este cailllnho passo a pas so,discurso por discurso, ficando voces no final extraviados. ~u .cansados ~perdendo 0 objetivo, 0 senti~o do po~to par~ onde nos dmglmos. E fmpor isso que, da ultima vez, mtroduzi meu dlscurSO com essas pala:rassobre 0 objeto,~obre este ser do objeto, que sempre podemos no~er,com razoes mais ou menos boas, mas sempre com_alguma razao, terperdido: ~ lJ.Orthe haver faltado. . . . . .

ESte ser do outro que conVlOa procurassemos atmgu enquanto e~a\ tempo, voltarei a ele, esclarecendo aquilo de que se trata quanta aos d01S

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Itennos de referencia daquilo a que se chama ocasionalmente a intersub-f jetividade.I

Quando se invoca a intersubjetividade, a enfase e posta no fato de que,este outro, devemos reconhecer nele urn sujeito <lomon6s. E nessa dir~saoe que residiria 0 essencial da elevas:ao do outro ao ser.

Mas existe tambem uma outra dires:iio, que indico uando ten toarticular a funs:iio do desejo na apreensilo do outro, tal como ela se roduzno par erastes-eromenos, que organizou toda a meditas:ao sobre 0 amordesde Platiio ate a meditas:ao cristii.

Q..ser do outro no dese~ enso te-lo indicadQj.a.-Q...\Jastante nao ede modo algum urn sujeito. 0 eromenos e eromenon, no caso neutro, eigualmente ta paidikd, noneutro plural - as coisas da crian~a amada,pode-se traduzir. 9 outro e~quanto vis~o no desejQ e visado d~,.como objeto amado.

Que_quer dizer isso? 0..9ue pod~mos dizer que faltou liquele que jaestB longe demais para que possamos corrigirnossafalha? justamente, su~qualidade de objeto. 0 que inicia 0 movimento de que se trata no ac~oao outro que nos e dado pelo amor e este de.sejp pelo objeto amaJlu-queeu compararia, se quisess~ imaja-lo, Ii mao que se adianta para pegar 0froto quando maduro, para atrair a rosa que se abriu, para atis:ar a chamana lenha que de subito se inflamou.

Entendam-me bem na seqiiencia do que YOU dizer. Com esta ima-gem, que nao ira mais longe, esb~o diante de voces aquilo a que se chamaurn mito. Vao ve-lo bem no caniter miraculoso da seqiiencia. Disse-Ihesda ultima vez, sobre os deuses de onde se parte no Banquete, -megasthe6s, e urn grande deus 0 amor, diz Fedro no inicio - que silo umamanifestas:ao do real. Ora, toda passagem dessa manifestas:ao para umaordem simb6llca nos distancia da revelayao do real.

Fedro nos diz que 0 amor e 0 primeiro dos deuses imaginados pelaDeusa do Poema de Pannenides, que Jean Beaufret em seu livro identifi-ca, com maior justiya, creio, que a qualquer outra funs:ao, Ii verdade, averdade em sua estrutura radical - remetam-se, neste ponto, Ii maneirapela qual falei disso em "A Coisa freudiana". A primeira imaginas:ao,invens:ao, da verdade, e 0 amor. E ele nos e aqui igualmente apresentadocomo nao tendo pai nem mae. Nao ha nenhuma genealogia do amor. E noentanto, ja em Hesiodo, nas fonnas mais miticas da apresentas:ao dosdeuses, se ordena uma genealogia, urn sistema de parentesco, uma teogo-nia, urn simbollsmo.

o deus cristiio, que e este meio-caminho de que lhes falei entreteogonia e ateismo do ponto de vista de sua organizas:ao interna, esse

deus trino, urn em tres, 0 que e ele? - senao a articulas:ao rad~cal .doparentesco como tal, no que este te~ de mais irredutive~mente, lll1steno-samente simb6lico. A relas:ao malS oculta, e, como dlZ Freud, menos

~ ~' a mais puramente si.mb6lica, e a relayao do pai com 0 mho. E_oII terceiro termo permanece all presente sob 0 nome .de ~~Q.r. .Foi dai que partimos, do amor como deus, lsto e, como real!4;ade

ue se manifesta e se revela no real. Como tal, nao podemos f~9senao ~ mito. E igualmente 0 que me autori~a a fixar dia?te de voce~a orienta ao .que es_tBem Q!.1estao,encaniin a~ o-os..rumo_lLf~nnula ~metafora, Ii substituiyao, do erastes pelo eromenos. ~ ~s~ metafora-9!!.egera a ~g~ifica~ao do amor. , . . ":c\.[?' Gl;:T." ,. --Para materializar isso diante de voces, tenho 0 direlto de completarminha imagem, e de fazer dela realmente urn mito. c'v..•••

Esta mao que se estende para 0 fruto, para a. rosa, p~ra a,acha 9uese inflama de repente, seu gesto de pegar, de atraIr, de atlya~ e estrelta-mente solidario Iimaturayao do fruto, Iibeleza da flor, ao fl~meJar da_acha:Mas quando, nesse movimento de pegar, de atrair, de atlyar, a mao fo~longe 0 bastante em dires:ao ao objeto, se d_ofruto" da flor, d~ acha, saluma mao que se estende ao encontro .da mao qu~ e a de voces, e nestemomento e a sua mao que se detem flxa na plerutude fechada do froto,aberta da flor, na explosao de uma mao em chamas - entiio, 0 que ai seIproduz e 0 amor. '"

Convem ainda nao l2..araLp.oraqUl .!UIlzer que_e..,9 amor em face,quero dizer que e 0 de voces, quan~~ sao voces que e~am i,nicialmente 0

eromenos, 0 objeto amado, e de subltO se tomam 0 er~~s,aquele q~deseja. .. .

Vejam 0 que pretendo frisar com.este mllo. Tod~ mllo se relaCl.onacom 0 -inexplicavel do real, e e sempre inexplicaveLq~e 0 que q.!1er_gueseja resl20nda a.o desejo.

A estrutura de que se trata nao e de simetria e de retorno. Igualmente,essa simetria nao e uma simetria, pois na medida em que a mao se estendee em direyao a urn objeto. A mao que surge do outro lado e 0 milagre. Masnao estamos aqui para organizar os milagres. Estamos aqu! e~atamentepara 0 contrario: para saber. Eo que ~e.trat~ de ace~tu~r_nao e,o_qu~ sepassa dali para alem, eo que se passa all, lsto e, a subStltU1yao do eromenosou eromenon pelo erastes. _ ..

Alguns acreditaram numa certa flutuas:ao no que eu havla artlcula-do da ultima vez, quanta Ii substituiyao metaf6rica do eromenos peloer~es, e quiseram ver nisso alguma contra~iy~o no exemplo supremocoroado pelos deuses, diante do qual os propnos deuses se es~antam,agastentes. A saber, que Aquiles, 0 amado, epapota.nein, ?10?,e, dlgamos- para ficar no impreciso, pois veremos 0 que ISS0 slgrufica - porPatroclo, no que e superior a Alceste, que se ofereceu Ii mort~ .em lugardo marido que amava. 0 tenno empregado por Fedro a propoSlto desta,

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hyperapotanein, se op<>ea epapotanein. Ela morre em lugar, hyper, de seumarido. Com Aquiles e outra coisa, porque Patroclo ja esm morto.

Alceste troca de lugar com 0 marido requisitado pela morte,franqueia este espayo de ainda ha pouco, situado entre aquele que eslaali e 0 oUlra; ela realiza algo que e feito mesmo para arrancar aosdeuses urn testemunho desarmado diante deste extremo, que Ihe valerareceber 0 premio singular de retornar entre os seres humanos aIem dosmortos.

Mas ainda hi algo mais forte, e jUSlamente 0 que Fedro articula. Emais forte que, em vez de voltar a sua terra, com seu pai, ao seio dos seuscampos, Aquiles tenha aceilado seu destino tragico, seu destino falal, amorte cerla que 0 esperava, se prosseguisse na vinganya de Patroclo. Ora,Patroc1o niio era seu amado. Ele e quem era 0 amado. Certo ou errado,pouco nos importa, Fedro articula que Aquiles, do par, era 0 amado, e s6poderia ter essa posiyiio. Por seu ato, que e, em suma, 0 de aceitar seudestino lal como esta escrito, ele se POe, niio no lugar de Patroclo, mas nasua continuayiio, faz do destino de Patroclo a divida a qual ele mesmo ternque responder, a qual tern de enfrenlar, e e isto 0 que imp<>e,aos olhos dosdeuses, a admirayiio mais necessaria e maior, pois 0 nivel atingido naordem das manifestayoes de amor e, diz-nos Fedro, 0 mais elevado.Aquiles e mais honrado pelos deuses, na medida em que siio eles quejulgaram 0 seu ato. A relayiio destes, ali, e de admirayiio, falando propria-mente, quero dizer tambem de espanlo - eles fie am surpresos com 0

espemculo do valor do que Ihes of ere cern os humanos na manifeSlayiio doam or. Ate certo ponto os deuses, impassiveis, imorlais, nao sao feitos paracompreender 0 que se passa no nivel dos morlais. Eles avaliam a distiincia,e veem 0 que se passa na manifeSlayiio do amor como urn milagre.

Porlanto, ha realmente no texto de Fedro, no epapotanein oposto a,hyperapotanein, uma enfase dada ao falo de que Aquiles, iromenos, setransforma em irastes. 0 texto 0 diz e 0 afirma: e enquanto irastes que

IIAlceste se sacrifica por seu marido, e isso e uma manifeslayiio de amormenos radical, tOlal, clara, que a mudanya de papel que se produz emAquiles, quando, de iromenos, ele se transforma em erastes.

Logo, niio se trala, neste erastes sobre eromenos, de uma relayaocuja imagem humoristica seria dada pelo amante sobre 0 amado, 0 paisobre a miie como diz em algum Iugar Jacques Prevert. E foi isso, semdtivida, 0 que inspirou a Mario Meunier este erro bizarro de que Ihesfalava, que 0 faz dizer que Aquiles se mata sobre a tumba de patroclo.Niio se pode dizer que Aquiles, enquanto eromenos, venha substituirPatroclo, pois Patroclo ja esm para alem de todo alcance, de toda apreen-siio. 0 acontecimento propriamente miraculoso em si mesmo e que Aqui-Ies se trans forme, ele, 0 amado, em amante.

E dessa maneira que se introduz na dialetica do Banquete 0 feno-meno do amor.

Niio podemos tomar nos seus detalhes, linha por linha, 0 discurso dePausanias, devido ao tempo. Devemos escandi-Io.

Esse discurso, e voces, de urn modo baslante geral, leram 0 Banque-te para que eu 0 diga, e introduzido por uma distinyao entre duas ordensdo amor. 0 amor, diz Pausanias, niio e tinico. Trala-se de saber qual delesdevemos louvar. Ha ai uma nuance entre 0 enkomion e 0 epai"nos, do qualfiz, na vez passada, niio sei por que, 0 epai'nesis. 0 elogio, epai'nos, doamor deve, pois, partir do seguinte: 0 amor niio e tinico. Faz-se ~ distinyiiopor sua origem. Niio exisle, diz ele, Afrodite sem Amor, ora eXIstem duasAfrodites.

Uma delas em nada participa da mulher: ela niio lem miie, nasceuda projeyiio sobre a terra da chuva engendrada pela castrayao primordialde Urano por Cronos. E dai que nasce a Afrodite Urania, que nada devea duplicidade dos sexos.

A outra Afrodite nasceu urn pouco depois, da uniao de Zeus comDione. Lembro a voces que toda a hist6ria do advento daquele quegoverna 0 mundo presen~e, Zeus, e~ta liga~a. -: remeto-?s a J:lesiodo.-=-a suas relayOes com os Tltiis, que sac seus lrnmlgos, e DIOne e uma Tlta.Niio insisto. A Afrodite nascida do homem e da mulher e dila Pandemia.o tom depreciativo, de desprezo, e expressamente formulado no discursode Pausiinias - e a Venus popular, inteiramente do povo, a Venusdaqueles que misturam todos os amores, que os procur.am ~os niveisinferiores, que niio fazem do amor esse elemento de dommayao elevadatrazido pela Afrodite Urania. ." .

Eis 0 tema em torno do qual se desenvolve 0 dlscurso de Pausarnas.Ao contrario do discurso de Fedro, que e urn discurso de mitomano, nosenti do pr6prio, urn discurso sobre urn mito, 0 de Pausanias e urn discursode soci610go, ou melbor, pois isso seria exagerado, de observador dassociedades. Aparentemente tudo se baseia na diversidade de posiyOes nomundo grego quanto ao amor superior, o.qu~ se da entre aque,les que ~oao mesmo tempo os mais fortes e os malS vIgorosos, e tambem que ternmais espirito, que sao agatoi, que sabem pensar, isto e, entre as pessoascolocadas no mesmo nivel por sua capacidade - os homens.

Os costumes, nos diz Pausiinias, divergem grandemente entre 0 queocorre na Jonia ou entre os persas, onde este am or - ele nos da testemu-nho disso - seria reprovado, e 0 que se passa na Elida, ou entre osIacedemonios, onde este amor e mais que aprovado, uma vez que fica

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muito mal para 0 amado recusar seus favores ao amante: ele deve karis-sestai. 0 que se passa entre os atenienses parece-Ihe 0 modo de apreensiiosuperior do rito, se assim se pode dizer, da colocacriio em forma social dasrelacroes do arnor.

Se Pausanias aprova os atenienses por lhes imporem obstaculos,formas, interdicroes - pelo menos e assim, sob uma forma mais ou menosidealizada, que ele nos apresenta isso - e que essas prMicas respondema um certo fim. E intencionalmente que esse amor se manifesta severi fica, se estabelece, numa certa duracriio, e mais que isso, numa dur;criiocomparavel, diz ele formalmente, a uniiio conjugal. Ha uma competicriiodo amor - agonoteton, 0 amor preside a luta, a concorrencia entre ospostulantes, pondo a prova aqueles que se apresentam em posicriio deamante, e trata-se de que a escolha que sucede a essa competicriio seja amelhor.

Durante toda uma pagina, a ambigilidade e singularmente sustenta-da. Onde se situa a virtude, a funcriiodaquele que escolhe? Pois, da mesmaforma, aquele que e amado, ainda que Pausanias 0 queira urn pouquinhomais que uma criancra, ja capaz de algum discernimento, e mesmo assim,dos dois, 0 que menos sabe, 0 menos capaz de julgar a virtude daquilo aque se pode chamar a relacrao proveitosa entre os dois. E ai que esta 0 quee deixado para uma prova ambigua entre os dois. Esta virtude esUiigualmente n? amante, a saber, no modo pelo qual sua escolha se dirige,segundo aqUIlo que ele vai buscar no amado. 0 que ele vai bus car noamado e algo para the dar. Ambos vao se encontrar neste ponto que elechama, em algum lugar, de ponto de encontro do discurso, onde tera lugara conjuncrao, a coincidencia. De que se trata?

Trata-se de uma troca. 0 primeiro, como traduziu Robin no texto dacolecriio Bude, se mostra capaz de uma contribuicrao cujo objeto e ainteligencia, a fronesis, e 0 conjunto do campo de meritos, a areti. 0se~un~o precis.a ganhar no sentido da educayao, e em geral, do saber, apaldela e a sofia. Eles vao se encontrar aqui, e em seu dizer, constituir 0

par de uma associacrao do nivel mais elevado. E no plano do ktaomai, deuma aquisicrao, de urn proveito, de urn adquirir, de urna posse, que se vaiproduzir 0 encontro desse par, que articulara para sempre esse amor ditosup~rior, esse amor que, mesmo quando tivermos mUdado seus parceiros,sera chamado pelos seculos seguintes de amor platonico.

. Parece-me muito dificil, lendo esse discurso, deixar de sentir a quereglstro pertence esta psicologia. Todo 0 discurso se elabora em funcraod.e uma cotayiio de val ores, de uma procura dos valores cotados. Trata-se,sunplesmente, de aplicar seus fundos de investimentos psiquicos. SePausanias demanda em algum lugar que regras severas - vejamos umpouco acima, no discurso - sejam impostas ao desenvolvimento do amor,da corte ao amado, essas regras encontram-se justificadas pelo fato de que

convem que urn excesso de cuidados, poUi spoudi - trata-se realmentedesse investim,ento de que falava - nao seja dispensado, desperdicradocom rapazolas que nao valem a pena.

Igualmente, e por essa razao que se pede que aguardemos que elesestejam mais formados, que se saiba com 0 que se esUi lidando. Maisadiante ainda, Pausanias vai dizer que aqueles que introduzem a desordemnessa ordem de postulancia, de merecimento, sao selvagens, barbaros.Nesse sentido, 0 acesso aos amados deveria ser preservado - diz ele -pelos mesmos tipos de interdiyOes, de leis, pelos quais nos esforyamospara impedir 0 acesso as mulheres livres, na medida em que, atra~es delasunem-se duas familias de senhores, e que elas representam por Sl mesmastudo 0 que se quiser de urn nome, urn valor, urna firma, urn dote, como sediz hoje. Por esse motivo, sao protegidas pela ordem. E uma protecraocomparavel a esta que deve proibir, aqueles que nao sao dignos, 0 acessoaos objetos desejados.

Quanto mais avancrarem nesse texto, mais verao afirmado 0 que Ihesindiquei em meu discurso da ultima vez, a saber, a psicologia do rico.

o rico existia antes do burgues. Mesmo numa economia agricola,ainda mais primitiva, 0 rico existe. Ele existe e se manifesta des de aorigem dos tempos, quando mais nao seja pelo seguinte, cujo caniterprimordial lemos nas manifestacroes periodic as sob 0 modo de festas, ouseja, 0 gasto de luxo. E este 0 primeiro dever do rico nas sociedades -primitivas.

E bastante curiosa que, a medida que essas sociedades evoluem, estedever parecra passar a urn plano, senao secundario, ao menos clandestino.Mas a psicologia do rico parece se basear inteiramente nisso, que na suarelacrao com 0 outro e do valor que se trata. Trata-se daquilo que se podeavaliar segundo maneiras explicitas de comparayao e escala, daquilo quese com para numa competi9ao aberta, que e, propriamente falando, a possede bens.

Trata-se da posse do amado, porque este e urn born fundo - 0 termoaqui e krestos, e que uma vida nao sera bastante para valorizar. Igualmen-te, alguns anos depois desse banquete, sabemos disso pelas comedias deAristOfanes, Pausanias ira urn pouco mais longe com Agatao, que e aquiprecisamente, as vistas de todos, 0 bern-amado, ainda que ja hli algumtempo tenha 0 que chamei de barba no queixo, termo que tern aqui todasua importancia.

Agatiio tern trinta anos, e acaba de ganhar 0 premio no concurso detragedia. Pausanias, alguns anos mais tarde, desaparecera com ele no queAristOfanes chama de dominio dos Bem-aventurados, a saber, urn lugarafastado, nao apenas no campo, mas numa regiao distante. Nao e 0 Taiti,mas a Macedonia, onde ele ira permanecer enquanto the garantiremsegurancra. 0 ideal de Pausanias em materia de am or e a capitalizacrao

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protegida, 0 deposito em cofre daquilo que lhe pertence por direito comosendo 0 que ele soube discernir e que e capaz de valorizar.

Niio digo que niio haja seqiielas deste personagem, tal como 0

entrevemos no discurso plat6nico, nesse outro tipo que lhes you designarrapidamente, porque esta na extremidade des sa cadeia.

Trata-se de alguem que encontrei, niio em analise - eu niio Ihesfalaria disso - que encontrei com bastante freqiiencia para que ele meabrisse 0 que the servia de coraeriio. Este persona gem era realmenteconhecido, e conhecido por ter um sentimento vivo dos Iimites impostos,precisamente no amor, pelo que constitui a posieriio do rico. Era urnhomem excessivamente rico; tinha, niio e metlifora, cofres-fortes repletosde diamantes - porque nunca se sabe 0 que pode acontecer. Isso foi logodepois da guerra, e todo 0 planeta podia pegar fogo.

Era urn rico calvinista. Peero desculpas aqueles aqui presentes quepossam pertencer a esta reIigiiio. Niio penso que seja privilegio do calvi-nismo fazer ricos, mas e importante dar essa indicaeriio, pois pode-seobservar, ainda assim, que a teologia calvinista teve esse efeito de fazeraparecer, como um dos elementos da direeriio moral, que e nesta terra queDeus cumula de bens aqueles a quem ama. Num outro lugar tambem,talvez, mas comeerando por esta terra. Acreditar que a observiincia dosmandamentos divinos tenha por fruto 0 sucesso terrestre niio deixou deser fecundo em todas as especies de empreendimentos. Seja como for, 0

calvinista em questiio tratava a ordem dos meritos que adquiria na terrapara 0 mundo futuro exatamente no registro da pagina de uma contabili-dade - Adquirido em tal dia. E todas as suas aeroes eram dirigidas nosentido de adquirir para 0 aIem um cofre-forte bem recheado.

Fazendo esta digressiio, niio quero parecer contar urn apOlogo facildemais, mas e impossivel niio completar este quadro com 0 desenho doque foi seu destino matrimonial. Urn dia ele atropelou alguem na rua comos para-choques de seu enorme automovel, em bora dirigisse sempre comperfeita prudencia. A pessoa atropelada sobressaltou-se. Era bonita, erafilha de porteiro, 0 que niio e de modo algum impossivel quando se ebonita. Ela recebeu com frieza suas desculpas, com mais frieza suaspropostas de uma indenizaeriio, e com mais frieza ainda seus convites parairem jantar juntos. Em suma, a medida que, para ele, mais se elevava adificuldade de acesso a este objeto milagrosamente encontrado, sua noc;iiocresci a em seu espirito. Ele dizia a si mesmo que se tratava ali de urnverdadeiro valor. Tudo is so 0 levou ao casamento.

Trata-~~. ai da mesma tematica que nos e exposta pelo discurso deJ~5!\lsiinias. Este nos explica ate que ponto 0 amor e urn valor. Considerernurn pouco - nos diz ele -, ao amor perdoamos tudo. Se alguem, paraobter uma colocaeriio, urn cargo pUblico, uma vantagem social qualquer,se entregasse a menor das extravagancias que admitimos quando se tratadas relac;oes entre urn amante e aquele a quem ele ama, seria desonrado,

seria culpado do que se pode chamar de baixeza moral~ an;le.uteria, poise isso que guer dizer a adulaeriio, Kolakeia. Adular nao e digno de urnsenhor para obter 0 que quer.

E, pois, a medida que se ultrapassa a margem de alerta que p~emosjulgar 0 que e 0 amor. Isso pertenceao mesmo registro de ~eferencla quelevou meu bom calvinista, acumulador de bens e de mer~clffientos, a.ter,efetivamente, durante algum tempo, uma mulher ~avel, a cohn-la,naturalmente, de joias que, todas as noites, eram retnadas de seu corpopara serem recolocadas no cofre-forte, e de~is a chegar ao r.esu.~tadoseguinte: um dia, ela se foi com um engenheno que ganhava cmquentamil francos por meso

Eu niio queria parecer forerar a miio neste tema. Apresentam-nos,singularmente, esse discurso de Pausanias como 0 exemplo de _que ha~e-ria, no amor antigo, niio sei que exaltac;iio da busca moral. Nao preclsochegar ao fim desse discurso para perceber que ele mostra bem a ~al~aque existe em toda moral Iigada apenas ao que se pode chamar de smalSexteriores do valor. ...

Pausanias, com efeito, so pode termmar seu dlSCurSOdlzendo que,se todo 0 mundo admitisse 0 caniter primordial, prevale~t~ dessas b~l~sregras pelas quais os valores siio atribuidos apenas ao mento, 0 que maacontecer? Vamos ler a tradueriio Robin em 185 a: Neste caso, mesmo quese tenha sido completame nte enganado, niio hd desonra. Suponhamos quealguem, com eJeito, tendo em vista a riqueza, aquiesr;a a u!}1amante,acreditando ser este rico e que, enganando-se totalmente, nao obt~~~avantagens pecunidrias, por se ter revelado pobre 0 amante; a opzmaogeral e de que se estd mostrando 0 que s~ ~ realmente: um hom,em ca1!a~de por dinheiro, servir em qualquer negoclO a qualquer um, e zs~o n~~ eu~a bela coisa. Sigamos exatamente, ate 0 Jim, ,0 mesmo raCIOClnlO:suponhamos 0 caso em que alguem, tendo concedzdo seus/avores. a umamante que cre virtuoso, e esperando aperfeieroar-se graeras a sua amlzade,seja enganado e 0 amante em questiio se revele ~akos"fundamentalment~mau, vicioso e desprovido de mirito, niio possUlndo vzrtude, no entanto ebelo ser enganado. .. .

Quis-se reconhecer aqui de modo geral, cunosamen.te, a P!~~e~~~manifestaeriio na historia daquilo a que Kant cham?u a mte.?erao re~.Parece-me que e realmente participar de urn erro smgular nao ver, at,antes, 0 seguinte. . .

Sabemos por experiencia que toda a enca do amor educador, doamor pedagogico, em materia de amor homossexual e mesmo do outro,participa sempre em si de algum logro, e e esse logro que se mostra.nofinal. H que estamos no terreno do amor grego, ~Ivez tenha acontecldoa voces que um homossexuallhes tenha sido trazldo por seu ~roteto!, eisso sempre se da, por parte deste ultimo, com as melhores mteneroes.

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Duvido que dessa protefYao mais ou menos calorosa voces tenham vistoalgum efeito bem manifesto da ordem do Bern, quanta ao desenvolvimen-to daquele que foi promovido diante de voces como 0 objeto desse amor,que se apresenta como urn amor para 0 Bern, para a aquisifYao do bemmaior. E isso 0 que me permite dizer-Ihes que esta longe de ser esta aopiniao de Platiio.

a discurso de Pausanias se conclui, efetivamente, de forma bastanteprecipitada, devo dizer, em linhas que dizem mais ou menos isso: 0 AmorUranio, e isso, e aqueles que nao 0 alcanfYam, pois bern, que recorram aoutra, a Venus Pandemia, a grande libertina, que tambem nao 0 aIcanfYa.Que vao se foder, se e isso que querem. E neste ponto, diz ele, que youconcluir meu discurso sobre 0 amor. No que diz respeito a plebe, ao amorpopular, nada mais temos a dizer. Se Platao estivesse de acordo com isso,acreditam que veriamos aparecer 0 que acontece logo em seguida?

Nao creio de modo algum que houvesse referencia, na ocasiao,particularrn,ente distanciada, a maneira pela qual Isocrates ~~neja a iso·logia quando se trata de demonstrar, por exemplo, os mcntos de urnsistema politico, e todo 0 desenvolvimento que encontrarao sobre esteponto no prefacio do Banquete por Leon Robin e certamente interessante,mas sem relafYaocom este problema. Eis porque:

Minha convicfYao, sem duvida, ja estava firmada quanto a importan-cia do discurso de Pausanias, e cheguei mesmo a da-Ia por inteiro a voces,da ultima vez, dizendo-Ihes que e real mente a imagem da maldifYaoevangelica, que 0 que real mente vale a pena seja para sempre recusadoaos ricos. Mas acredito ter tido uma confirmafYao disso, que proponho aoseu julgamento, no domingo passado, quando .esti.ve - con.tinuo ~ .ci~rminhas fontes - com alguem sobre 0 qual eu flcana aborrecldo de Ja naoter-Ihes dito da importancia na minha propria formafYao, e sobre 0 qualpenso que alguns sabem que e a ele que devo ter sido introduzido a Hegel:a saber, Kojeve.

Estava, entiio, com Kojeve, e certamente, ja que estou sem~repensando em voces, falei-Ihe de Pla0~' Kojeve atual~ente faz uma COlsainteiramente diversa da filosofia, pOlSe urn homem emmente, mas escreveassim mesmo, de vez em quando, duzentas paginas sobre Platiio, manus-critos que saem passeando por diversos lugares. Ele me contou naquelaocasiao urn certo numero de coisas que descobriu muito recentemente emPlatao, mas nada pode me dizer sobre 0 Banquete, pois nao 0 havia relido,e isso nao faz parte da economia de seu discurso recente.

Eu estava, entiio, por minha propria conta, embora tenha sid~ muitoencorajado por muito do que ele me disse sobre outros pontos do dlSCurSOplatonico, e principal mente sobre 0 seguinte - e ~ue. e abs~lutamenteevidente - que Platao nos esconde 0 que pensa na propna medlda em queno-lo revela. E na medida da capacidadede cada urn, isto e, ate urn certolimite que certamente nao e superavel, que podemos entreve-Io. Naodevem, pois, se zangar comigo se nao lhes dou a ultima palavra _sobrePlatiio, porque Platao decidiu mesmo que, esta ultima palavra, ele nao nosdiria.

No momento em que tudo 0 que lhes conto sobre Platiio fara, talvez,com que abram 0 Fidon, por exemplo, e importante que Voces tenham aideia de que 0 objetivo do Fidon talvez nao seja exata~~nte 0 dedemonstrar, apesar das aparencias, a imortalidade da alma. Dma mesmoque seu fim e, evidentemente, contrario. Mas deixemos isso de lado.

Ao deixar Kojeve, eu disse a ele: - Entiio, esse Banquete, afinalnao falamos muito dele. E como Kojeve e uma pessoa muito, muito fma,isto e, urn esnobe, respondeu-me: Seja como for, voce nunca interpretarao Banquete se nao souber por que AristOfanes estava com solufYos.

Logo em seguida, Apolodoro retoma a palavra e diz: Pausaniou pausa-menou, Pausanias tendo feito a pausa.

A expressiio e dificil de traduzir, e ha uma pequena nota dizendoque nenhuma expressiio francesa corresponde a ela; a simetria numericadas silabas e importante, existe ali provavelmente uma alusao, vide nota.a sr. Leon Robin nao e 0 primeiro a ter se tocado neste ponto. Na edifYaoHenri Estienne ja existe uma nota a margem. Todo mundo se tocou comeste Pausaniou pausamenou, porque se viu ali uma intenfYao. Vou-Ihesmostrar que nao se viu, absolutamente, qual era ela.

Logo depois dessa astucia, Apolodoro frisa bem que e urna astucia- ~aprendi com os sabios, como veem, a isa legein, a falar por isologia".Pode-se traduzir por jogo de palavras, mas a isologia e realmente umatecnica. Vou poupa-Ios de tudo 0 que ja se pooe gastar em engenhosidadepara descobrir de que sabio se trata. Seria PrOdico? Nao seria antesIsocrates? Em Isocrates ha iso, e seria particularmente iso isologar Iso-crates. a que nos leva a problemas - voces nem imaginam 0 quanto essesproblemas engendraram de pesquisas. Isocrates e Platiio seriam amigos?

Censuram-me por nem sempre citar minhas fontes; pois bern, apartir de hoje resolvi faze-Io. Aqui, trata-se de Ulrich yon Wilamowitz-Moellendorf, que e urn personagem sensacional. Se souberem ler alemaoe seus livros lhes cairem nas maos, tratem de adquiri-Ios. Eu bem gostariade ter seu livro sobre Simonides. Era urn erudito alemao do comefYo doseculo, personagem consideravel cujas obras sobre Platiio sao absoluta-mente esclarecedoras. Niio e ele que ponho em causa a proposito doPausaniou pausamenou,ja que nao se deteve especialmente nesse gracejomiudo.

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Ia lhes disse que isso era muito importante. E evidente que e muitoimportante. Por que estaria ele com solu~os se niio houvesse uma raziio?

Certamente que eu niio sabia nada sobre isso, por que ele estava comsolu~os. Mas, encorajado por esse pequeno impulse, disse a mim mesmo:Vamos voltar a isso - alias, com grande cansa~o, niio esperando nadamenos aborrecido do que voltar a encontrar especula~6es sobre 0 valorantigo, ate mesmo psicossomatico, dos solu~os e dos espirros. Reabro meuexemplar, distraidamente, e olho para este texto no ponto do Pausanioupausamenou, pois e logo em seguida que AristOfanes toma a palavra, epercebo que durante dezesseis linhas so se trata de parar com essessolu~os. Quando acabariio esses solu~os? Viio passar, niio viio passar? Seniio passarem, tome tal e tal coisa e no fim eles passariio. De tal modo que,com os pausai, pausomai, pause, pauestai, pausetai, com 0 pausanioupausamenou, do come~o, encontramos sete repeti~6es de paus nessaslinhas, ou seja, urn intervalo de em media duas linhas e urn setimo entreas ocorrencias dessa palavra etemamente repetida. Se acrescentarem aique isso dara ou niio dara algum resultado, e que eu farei 0 que voce disseque fizesse, onde 0 termo poieso se acha repetido com uma insistenciaquase igual, as homofonias, ate mesmo as isologias em questiio retomama uma linha e meia de intervalo. E, ainda assim, extremamente dificildeixar de ver que, se Aristofanes esta com solu~os, e porque durante todoo discurso de Pausiinias ele morreu de rir, e Platiio niio fez por menos.

Em outras palavras, 0 fato de que Platiio nos solte alguma coisacomo e tentador tentar, e nos repita em seguida durante dezesseis linhasa palavra tentador e a palavra tentar deve nos deixar de orelha em pe, poisniio existem outros exemplos num texto de Platiio de uma passagem tiiocruamente semelhante a urn trecho do Almanaque Vermot. Alias, eis aitambem urn dos autores com os quais formei minhajuventude - nele, lipela primeira vez urn dialogo plat6nico que se chama Theodore cherchedes aUumettes, de Courteline, que e realmente imperdivel.

Portanto, creio estar suficientemente claro que, para 0 proprioPlatiio, que fala aqui sob 0 nome de Apolodoro, 0 discurso de Pausiiniase algo de derrisOrio.

Trata-se de sse dicecisme, diokistemen, como ele se expressa, do separadoem dois, dl;ssa Spaltung, desse splitting, que, mesmo niio sendo identicoao que desenvolvo para voces no grafico, certamente niio deixa de comele apresentar algum parentesco.

Depois do discurso de AristOfanes, verei 0 discurso de Agatiio.Assinalo para voces desde ja, para que saibam para onde viio enquantoesperam pela proxima vez, e ai niio preciso de uma sabia prepara~iio paradar a esse tra~o mais valor, que existe uma coisa, e uma sO, que Socratesarticula ao falar em seu proprio nome, que e primeiramente que 0 discursode Agatiio, 0 poeta tragico, niio vale nada. Diz-se que e para pouparAgatiio que ele se faz substituir, se assim posso dizer, por Diotima, e nosda sua teoria do amor pela boca desta. Niio vejo, absolutamente, em quese possa apaziguar a suscetibilidade de alguem que acaba de ser executa-do. Ora, e isso 0 que ele faz com rela~iio a Agatiio.

Pe~o-lhes desde agora que pontuem 0 que esta em questiio, nem queseja para objetar ao que eu digo, se for 0 caso. a que e que Socratesarticula, depois de todas as belas coisas que Agatiio, por sua vez, tera ditosobre 0 arnor, niio sobre os bens do amor, 0 proveito que se pode tirar doamor mas sobre todas as suas virtudes, todas as suas belezas, nada e belodem:is para ser lan~ado na conta dos efeitos do amor, etc.? De uma ~ovez, Socrates derrul:J.atudQ is§o JllH,_ bases, remt<t~ndo as coisas a sua raiz1qlieiesr.a:-Amor? Amor de que?- Do arrior,-passamos assim ao desejo, e a caracteristica do desejo,~~an~o §rQs e~a,_gIJe Eros deseja, e que 0 que esta~~ ~esti!o, isto e,aquilo que ele e suposto levar consigo, 0 proprio belo, isso lbe fatta,eildens, endeia. Nesses Qois termos, ele falta, ele e identicopor si mesmoa falta. Ai esta tod~ a-contribui~iio pessoal trazi~ P9r Socrates em seunome ne~e discurso ao Banquete. -- -

--A partir dai, algo vai come~ar, algo que esta bem longe de chegar aser alguma coisa que voces possam segurar nas miios. E como se poderia,mesmo,conceber isso? Ate 0 fim, ao contrario, vamos nos aprofundarprogressivarnente nas trevas, e reencontraremos aqui a noite antiga, sem-pre maior. Tudo 0 que ha a dizer sobre 0 pensamento do amor no Banquetecome~a ai.

Ja que eis-nos cbegados a uma bora avan~ada, niio YOU fazer hoje a analisedo discurso seguinte, 0 de Eriximaco, que fala em lugar de AristOfanes.Veremos, da proxima vez, 0 que significa 0 discurso desse medico sobrea natureza do arnor.

Veremos tambem, 0 que penso ser muito mais importante, 0 papelde AristOfanes. Seu discurso nos fara dar urn passo, 0 primeiro realmenteesclarecedor para n6s, seniio para os antigos, para quem 0 discurso deAristOfanes permaneceu sempre enigmatico, como uma enorme mascara.

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Da ciincia suposta ao am or.Do hem ao desejo.A medicina e a ciincia.A via da comidia.

saida, suposto the ser mais estranho. E no en tanto, ao mesmo tempo,eis 0 que encontramos no inicio da analise: esta ciencia, ele e supostote-Ia.

Definimos aqui a situa~iio em term os subjetivos, quero dizer, nadisposi~iio daquele que se adianta como 0 que demanda. Por ora, nemmesmo precisamos incluir ai tudo 0 que essa situa~iio comporta, objetiva-mente, e que a sustenta, a saber, 0 que devemos ai introduzir da especifi-cidade do que e propos to a essa ciencia, isto e, 0 inconsciente enquantotal. Disso 0 sujeito niio tern, tenha ele 0 que tiver, qualquer especie deideia.

Logo, esta situa~iio, para defini-Ia simplesmente de urn modoassim subjetivo, como e que ela engendra alguma coisa - primeiraaproxima~iio - que se assemelhe ao amor? Mgum~ ~_~isaque se asseme-lha ao amor, e assim que se pode, numa primeira aproxima~iio, defmir atransferencia.

Digamos melhor, digamos mais alem - a transJeren~il! e algo quePOe em~ausa 0 amor"que 0 pae ~m causa muito prQfundamenJe no 9..\!es.ereft<re_a tt.~flex~oanalftica por ter introduzido nela, cQmo uma dimensii9essencial, aquilo a que se chama a sJ.lailmbivalencia, Ai esta urna n~iionova relativa a uma tradi~iio filosofica, niio sendo em viio busca-Ia aqui,exatamente na origem. Essa estreita liga~iio entre 0 amor e 0 Mio, eis urntra~o ausente no ponto de partida dessa tradi~iio, se este ponto de partida- e preciso que se 0 escolha em algum lugar - for escolhido por n6scomo 0 socratico.

Mas vamos ver hoje que existe algo antes disso, de onde, justarnente,ele parte.

Essa questiio, que e aquela na qual se articula a possibilidade desurgimento da transferencia, niio nos adiantariamos de modo tiio audaz acoloca-Ia se ja niio se tivesse, de algum modo, come~ado a escavar 0 tunela partir da outra extremidade. Vamos ao encontro de algo que conhece-

\

mos, por ja termos seriamente aproximado a topologia do que 0 sujeitodeve encontrar na analise em lugar daquilo que procura. Se ele parte embusca do que tern e niio conhece, 0 que vai encontrar e 0 que lhe falta. Ee real mente porque articulamos isso em nosso encaminhamento anterior

I que ousarnos colocar a questiio que formulei inicialmente. E como aquilogYe lhe_falta que se articJlla _o_queele vai encontrar na analise, a sabe!,~seu d~.i-o.

o desejo niio e urn bem em nenhurn sentido do termo. Niio 0 e,precisamente, no sentido de urna ktesis, de alguma coisa que, a urn tituloqualquer, ele teria. §.Jl.2.. temP9, defmido no duplo sentido cronologico e!QJX>16gico-da eclQsao_ do arnor de tranSferencia, que se deve leressa!nversiio q~e, da busca de urn bern, faz a realiza~iio do desejo.

Trata-se de bem ver a natureza da empreitada a qual sou levado a fun dequ~ possam suportar seus desvios no que estes possam ter de fastidiosopOlS, afinal, voc~~ nii~ vem aqui para escutar 0 comentario de urn text~grego no qual, alIas, nao pretendo ser exaustivo.

A maior par~e d.o trabalho, fa~o-a por voces, quero dizer, em seu!ug~r: na sua ausencla, e 0 melhor servi~o que lhes posso pres tar elD~Ita-Ios a se reportarem ao texto. Se a ele se remeterem, por sugestiiom~ha, talvez lhes aconte~a de lerem, mesmo que s6 urn pouquinhommhas lentes. Sem duvida, isso e melhor do que nada ler. ' com

Conve~ ~iio perder de vista aquilo que estamos destinados a a1can-~ar, nosso obJettvo, .que domina 0 conj';IDto do empreendimento, e apreen-der, realmente, aquIlo que lhes permlttra acompanha-Io de maneira maisou menos :o~e~tada. Pr?curamos responder a questiio de onde partimos.Essa questiio e SImples, e a da transferencia.

Ao diz~r. que essa questiio e simples, quero dizer que ela e proposta portermos Ja elaborados.

. Ai esta urn homem, 0 psicanalista, de quem se vem buscar a cienciadaquIlo que se tem de mais intimo - e bem este 0 estado de espfrito comque se 0 aborda comumente - e, portanto, daquilo que deveria ser, de

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~oces compreendem que esse discurso sup6e que realiza~ao_!Iodesejo nao e, justamente, posse de urn objeto. Trata-se, com efeito, 9a~rgencia a realidade do desejo como tal., E foi isso 0 que me levou esteana a intrOOuzi-los ao Banquete. Nao e 0 acaso de urn encontro. Mas comoeu procurava, como no cora~ao do campo das minhas recorda~oes, ondeencontrar 0 ponto central do que tinha podido reter de articulado daquiloque aprendera, guiado por alguma blissola que se cria a partir de umaeX~riencia, pareceu-me que 0 Banquete, por mais distante de nos queestlvesse, era 0 lugar onde se havia agitado, da maneira mais vibrante, 0

sentido dessa questiio, e particularmente no momento que 0 conclui,quando aparece Alcibiades.

Alcibiades irrompe estranhamente, em tOOosos sentidos do termotanto no nivel da composi~ao da obra como na cena suposta. Manifesta~mente, a seqiiencia de discursos ordenados, prefigurada no programa dobanquete, se qllebra de subito com a irru~ao da verdadeii'a festa, 0

tumulto introduzido por essa ordem diferente. Mas, tambem em seuproprio texto, 0 discurso de Alcibiades e a confissao de seu propriodesconcerto. 0 que ele diz e realmente 0 seu sofrimento, seu arrancamentode si proprio, por urna atitude de Socrates que 0 deixa ainda, quase tantoquanto no momento em que ocorreu, ferido, mordido por nao sei queestranha magoa.

E por que essa confissiio publica? E por que essa interpreta~ao deSocrates, que the mostra que essa confissao tern urn objetivo imediato?- a saber, de separa-lo de Agatiio, ocasiao imediata para uma volta aordem? Todos aqueles que se referiram a este texto, desde que lhes falodele, nao deixaram de se surpreender com 0 que essa estranha cena ternde consoante com todas as especies de situa~oes ou de posi~6es instantii-neas, susce~iveis de serem vividas na transferencia. Trata-se, ainda, ape-nas de urna Impressao, e sera preciso uma analise mais aprofundada e maissutil para ver 0 que nos e dado por uma situa~ao que nao se deve atribuirmanifestamente a urn tipo de pressentimento da sychanalisse, como dizAragon em Ie Paysan de Paris. Nao, e antes um encontro, a apari~ao dealguns delineamentos, para nos reveladores.

Se demoro a mostra-lo para voces, nao e simplesmente por urn recuoantes do saIto que deve ser, como diz Freud, 0 do leao, isto e, unico. Eque, para compreender 0 que significa plenamente 0 evento da cenaAIcibiades-Socrates, devemos compreender bem a inten~ao geral dao?ra. Esta~elecer 0 terreno e indispensavel. Se nao sabemos 0 que querdlzer Platao ao trazer esta cena, e impossivel situar com exatidao suaimportiincia.

Estamos hoje no discurso de Eriximaco, 0 medico.

Vamos ret~r 0 fOlego por urn momento. 0 fato de que seja urn medico terntudo para nos interessar.

Isso significa que 0 discurso de Eriximaco deva nos induzir a umapesquisa de historia da medicina? Nao posso sequer esb~ar semeIhantetarefa, por todos os tip os de raz6es. Em primeiro lugar porque nao eassunto nos so, e esse desvio seria bastante excessivo. Em seguida, porquenao creio que isso seja realmente possivel.

Nao acredito que Eriximaco esteja especificado, que seja nurndeterminado medico que Platao esta pensando ao nos trazer seu persona-gem. Mas os tra~os fundarnentais da posi~ao trazida por ele devem serdestacados. Nao sao for~osarnente tra~os de historia, a nao ser em fun~aode uma linha divisoria muito geral, mas talvez nos fa~am refletir por urninstante, de passagem, sobre 0 que vem a ser a medicina.

Ja se observou que ha em Socrates uma referencia ambiente amedicina. Com muita freqiiencia, quando quer levar seu interlocutor aoplano de dialogo no qual entende dirigi-lo rumo a perce~ao de urnpercurso rigoroso, ele se refere a tal arte de tecnico. Se sobre tal assuntoquiserem saber a verdade, pergunta freqiientemente, a quem se dirigirao?E, dentre estes, 0 medico esta longe de ser excluido. Ele e mesmo tratadocom Uma reverencia particular. 0 nivel em que se situa nao e, certarnente,aos olhos de Socrates, de uma ordem inferior. E claro, ainda assim, que aregra de seu percurso esta longe de se pOOer reduzir, de algurna maneira,a uma higiene mental.

o medico de que se trata aqui, Eriximaco, fala como medico, e deimediato promove, mesmo, a sua medicina como, de todas as artes, amaior. A medicina e a grande Arte.

So farei aqui indicar brevemente a confuma~ao que ganha aqui 0

que Ihes disse, da ultima vez, a respeito do discurso de Pausiinias. Aocome~ar, Eriximaco formula, com efeito, expressamente 0 seguinte: jaque Pausiinias, depois de urn bom come~o - isso nao e uma boa tradu~aopara ormesas - depois de se ter lan~ado bem ao seu discurso, nao 0

rematou com tanto brilho, de forma igualmente adequada, etc.Fica claro, portanto, para todos, que Pausiinias terminou mal seu

discurso e isso e implicado como algo evidente. Deve-se dizer que nossosouvidos ainda nao estao exatamente acomOOados, e nao temos a impressiiode que 0 discurso de Pausiinias tenha sido urn fracasso tiio grande. Estamosde tal modo habituados a ouvir sobre 0 arnor essa especie de bobagem. Etanto mais estranho ver ate que ponto essa carateristica no discurso deEriximaco apeIa realmente para 0 consentimento geral, como se 0 discursode Pausiinias se tivesse reveIado a tOOoscomo realmente malfeito, comose todas essas brincadeiras pesadas sobre 0 pausamenou dispensassemexplica~6es para 0 leitor antigo.

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Creio ser essencial referinno-nos ao que podemos entrever a partirdessas questoes de tom, as quais 0 ouvido do espirito se refere sempre,mesmo que nao fa-ra delas, abertamente um criterio. Isso e invocado commuita freqiiencia nos textos platonicos, como aquilo a que Socrates serefere a todo instante. Quantas vezes, antes de come-rar seu discurso, ouabrindo parenteses no discurso de um outro, nao invoca ele os deuses demaneira fonnal, para que 0 tom seja sustentado, mantido, afinado. IssoesUi muito proximo, como verao, do nosso objetivo de hoje.

Antes de entrar no discurso de Eriximaco, gostaria de fazer obser-va-roes, cujo distanciamento mesmo que para nos conduzir a verda desprimordiais, nao e, no entanto, pennitido ta~ facilmente. Vou lhes de-monstrar de passagem que a medicina sempre se acreditou cientifica. Nolugar de voces, como dizia hIi pouco, e que foi necessario que, durantedias, eu tentasse destrinchar esse pequeno capitulo da historia da medici-na. Foi mesmo necessario, para isso, sair do Banquete e me referir adiversos outros pontos do texto platonico.

Por mais negligenciado que seja este capitulo da fonna-rao de vocesem medicina, terao ouvido falar de urna serie de escolas na Antiguidade.A mais celebre, aquela que ninguem ignora, e a escola de Hip6crates.Antes, houve a escola de Cnido da Sicilia e, antes ainda, aquela cujogrande nome era 0 de Alcmeon, os alcmeonidas, da qual Crotona e 0

centro, e cujas especula-r6es saD impossiveis de se dissociar daquelas deuma escola cientifica que florescia no mesmo momento, no mesmo lugar,a saber, ados pitagoricos. Mas especular sobre 0 papel e a fun-rao dopitagorismo, essencial, como todos sabem, para compreender 0 pensa-mento platonico, nos levaria a urn desvio no qual nos perderiamos,literalmente, de sorte que vou ten tar, em vez disso, destacar dai os temasque se referem estritamente ao nosso prop6sito, a saber, 0 sentido dessaobra, 0 Banquete, na medida em que e problematica.

Nao sabemos grande coisa sobre 0 persona gem Eriximaco em simesmo, mas sabemos algo sobre urn certo mimero de outros personagensque intervem no discurso de Platao, e que estao ligados diretamente aescola medica dos alcmeonidas, na medida em que estes estao, elesproprios, ligados aos pitagoricos. Por exemplo, Simias e Cebes, quedialogam com Socrates no Fidon, saD discipulos de Filolau, 0 qual e urndos mestres da primeira escola pitagorica. Se voces se remetereDl aoFidon, vao ver que suas respostas as primeiras proposi-r6es de Socratessobre 0 que deve assegurar a alma sua imortalidade fazeDl referencia,exatamente, aos mesmos tennos que 0 discurso de Eriximaco e emprimeiro lugar, a no-rao de armonia, harmonia, acorde.~ , ,

A medicina, observam aqui, sempre se acreditou cientifica. E nisso,alias, que ela sempre mostrou suas fraquezas. Por uma especie de neces-

sidade interna de sua posi-rao, ela sempre se referiu a urna ciencia que eraa de seu tempo, fosse esta boa ou ma. Boa ou ma, como saM-Io do pontode vista da'medicina?

Quanto a nos, temos a sensa~ao de que a nossa ciencia, nossa fisica,e uma boa ciencia, e que durante seculos tivemos uma fisica muito ruim.Isso, efetivamente, esUi de todo assegurado. Mas 0 que nao esUi assegu-rado e 0 que a medicina tem a ver com a ciencia. Ou seja, como, por queabertura, por que extremidade ela pode captar esta ciencia? - e isso,quando ha alguma coisa sequer elucidada por ela, pela medicina, umacoisa que nao e das menores, ja que se trata da ideia de saude.

o que e a saude? Estariam enganados se acreditassem que, mesmopara a medicina moderna, que com rela-rao a todas as outras se crecientifica, a coisa esteja plenamente assegurada. De tempos em tempos,a ideia do nonnal e do patologico se prop6e como tema de tese a algumestudante, em geral por pessoas que tem uma fonna-rao filosofica. Temosai um excelente trabalho do sr. Canguilhem, seu Essai sur quelquesproblbnes concernant Ie normal et Ie pathologique, mas cuja influenciae, evidentemente, muito limitada nos meios propriamente medicos. Semprocurar especular num nivel de certeza socratica sobre a saude em si, 0

que demonstra, por si so, especialmente para nos psiquiatras e psi canalis-tas, ate que ponto a ideia de saude e problematica, saD os proprios meiosque empregamos para alcan-rar 0 estado de saude. Para dizer as coisas emtennos mais gerais, eles nos mostram que, qualquer que seja a naturezada saude, e a boa fonna que seria a da saude, somos levados a postular,no seio desta boa fonna, estados paradoxais -, e 0 minimo que se podedizer - estes mesmos cuja manipula-rao em nossas terapeuticas e respon-savel pelo retorno a urn equilibrio que pennanece, no conjunto, muitopouco criticado enquanto tal.

Ai esUi, portanto, 0 que encontramos, no nivel dos postulados menosacessiveis a demonstra-rao, sobre a posi-rao medica. Ejustamente esta quesera consagrada aqui no discurso de Eriximaco sob 0 nome de harmonia.Nao sabemos de que harmonia se trata, mas a no-rao e bastante fundamen-tal para toda a posi-rao medica como tal. Tudo 0 que devemos buscar e 0

acorde. E nao estamos muito avan-rados, quanto a posi-rao de um Erixi-maco, quanto ao que seja a essencia ou a substancia dessa ideia de acorde.

E urna no-rao tomada de emprestimo a um dominio intuitivo, e nessesentido ela esUi simplesmente mais proxima das origens. Mas tambem esUihistoricamente mais definida, e mais sensivel, na medida em que serelaciona expressamente ao dominio musical, que aqui e 0 modelo, afonna pitagorica por excelencia. Da mesma fonna, tudo 0 que, de urnmodo qualquer, se refere ao acorde dos tons, seja ele de uma natureza maissutil, seja este tom do discurso ao qual fazia alusao ha pouco, nos remete

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a essa mesma aprecia~iio. Niio e absolutamente por acaso que falei, depassagem, em ouvido - a aprecia~iio das consonancias e essencial an~iio de harmonia.

Por menos que entrem no texto desse discurso, que lhes poupo 0

tedio de ler linha por linha, 0 que nunca e muito possivel em meio a urnauditorio assim tiio amplo, veriio 0 carater essencial da no~iio de acordepara compreender como se introduz aqui a posi~iio medica.

Tudo 0 que aqui se articula e fun~iio de um suporte que niio podemos nemesgotar, nem de nenhum modo, reconstruir a saber, a tematica das discus-sOes que se sUpOem presentes no espirito dos ouvintes.

Niio vamos nos esquecer de que nos encontramos no ponto his toricoculminante de uma epoca particularmente ativa. Os seculos VI e V dohelenismo siio superabundantes em criatividade mental. Voces podem seremeter neste ponto, a boas obras, por exemplo, para aqueles que leemingles, a esse grande livro, como so os editores ingleses podem se dar aoluxo de publicar, e que e como um testamento filosofico, pois e BertrandRussell, em sua idade avan~ada, que 0 oferece a nos.

Este volume e muito born para 0 Ano-Novo, esta constelado, emsuas grandes margens, de admiraveis figuras a cores, de extrema simpli-cidade, dirigidas a imagina~iio de uma crian~a, e compreende tudo 0 quese deve saber, desde esse periodo fecundo ao qual me refiro hoje, a epocapre-socratica e socratica, ate nossos dias, ao positivismo ingles. Ninguemrealmente importante e esquecido. Se 0 que importa, para voces, e brilharnas reunioes socia is, depois de ler este livro saberiio tudo, realmente tudo,a niio ser, e claro, as unicas coisas importantes, isto e, aquelas que niio sesabe. Mas ainda assim lhes aconselho sua leitura. Chama-se Wisdom ofthe West. Ele ira preencher para voces, como alias para qualquer pessoa,um numero consideravel de lacunas quase obrigatorias na sua informa~iio.

Vamos tentar, entiio, ordenar um pouco aquilo que se esb~a quandonos engajamos na via de compreender tudo 0 que quer dizer Eriximaco.

As pessoas da epoca dele acham-se exatamente diante do mesmoproblema que nos. E no entanto, viio mais diretamente a antinomiaessencial. Seria isso devido a niio terem uma quantidade tiio grande quantonos de pequenos fatos para preencher seus discursos? Ai esta uma hip6teseque se origina do erro e da iluslio. Esta antinomia e aquela mesma que eucome~ava ha pouco a promover diante de voces - seja como for, niiopodemos tomar nenhum acorde pelo seu valor extrinseco. A experiencianos ensina que 0 acorde oculta alguma coisa em seu seio, e toda a questiioe saber 0 que e exigivel do que esta subjacente ao acordo. Este ponto de

vista niio e apenas atingido atraves da experiencia, mas comporta sempreum certo a priori mental, na falta do qual ele niio e passivel de serformulado. '

Este acorde novo e exigido do semelhante, ou podemos nos conten-tar com 0 semelhante? Todo acorde sUpOealgum principio de acordo? 0consonante pode sair do discordante? Do conflitual? Niio pensem vocesque seja em Freud que tal questiio ira emergir pela primeira vez. A provadisso e ser esta a primeira coisa trazida a nos pelo discurso de Eriximaco.A n~iio do acordado e do discordado, isto e, para nos, a da fun~iio daanomalia com rela~iio a normal, vem em primeiro lugar no seu discurso,a partir da nona linha, mais ou menos, 186 b - Com e!eito, 0 de~eme-lhante deseja e ama as coisas dessemelhantes. Uma cO/sa - conunua 0

texto - e 0 amor inerente ao estado sadio, outra 0 amor inerente aoestado morbido. E entao, quando Pausanias dizia hd pouco que era belodar seus favores aos homens que sao virtuosos, efeio faze-lo aos homensdesregrados, etc. Eis-nos agora transportados a questiio do fisico, daquiloque significam esta virtude e este desregramento. .

Encontramos logo em seguida uma formula que niio posso delxar dedestacar na pagina. Niio que ela nos diga grande coisa, mas deve ser aindaassim, para nos, analistas, 0 objeto de urn interesse de pass~gem ..~a aium certo murmurio feHo exatamente para nos chamar a aten~ao ..Enxlma,-co nos diz, tradu~iio textual, que a medicina e a ciencia das eroticas docorpo, episteme ton tau somatas erotilwn. Parece-me que l!iio se pode daruma melhor deftni~iio da psicanalise.

Ele acrescenta: pros plesmonen kai kenosin - no que se refere dreplerao e d evacuarao, traduz brutalmente 0 texto. Trata-se, ali, daeVOca~iio desses dois termos, cheio e vazio, cujo papel vamos ver natopologia, na posi~iio mental, daquilo que esta em jogo neste ponto dejun~iio da fisica e da opera~iio medica. Niio e este 0 unico texto onde es~echeio e esse vazio siio evocados. Esta ai urna das intui~oes fundamentalsque se deveriam valorizar num estudo sobr~ 0 disc~rso s<><:ra~co: .

Aquele que se dedicasse a tal empreltada, nao preclsana tr mUltolonge para encontrar uma referencia a mais. Vejam no inicio do Banquete.Socrates atrasou-se no vestibulo da casa vizinha, onde podemos sUpO-lona posi~iio do ginastosofista,6 num pe so, tal como uma cegonha, e imove~ate que tenha encontrado a solu~iio de niio sei que problema. Ele chega acasa de Agatiio quando todos ja 0 esperavam. Muito bem, ja resolveu seunegocio, venha para perto de mim, lh~ diz Agatiio~ E Socrates faz ~pequeno discurso para dizer: Talvez Slm, talvez nao, ~as 0 que voceespera e que aquilo de que me sinto atualmente preenchido passe ao seuvazio tal como 0 que acontece com dois vasos, quando alguem se servedeles 'para fazer a agua escorrer por um fio de Iii. E preciso acreditar que,por niio se sabe qual raziio, esta experiencia de fisica recreativa era

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praticada com basmnte freqiiencia, cermmente porque sua referenciaconstituia uma imagem comum a todos. A passagem do interior de umvasa para outro, a transforma<;ao do cheio em vazio, a comunica<;ao doconteudo e uma das imagens basicas que regulam 0 que se poderia ehamarda concupiseencia fundamenml de todas essas troeas filosoficas. Eta deveser guardada para se eompreender 0 sentido do diseurso que nos eproposto.

Eneontra-se um poueo mais adiante a referencia Iimusica como noprincipio do acorde, que e 0 fundamento do que nos vai ser propos to comoa essencia da fun<;ao do amor entre os seres, e isso nos leva a encontrar,na pagina seguinte, isto e, no panigrafo 187, viva no discurso de Erixima-co, essa escolha que eu lhes dizia ser primordial quanto ao tema daquiloque e concebivel como estando no principio do acorde, a saber, 0 seme-lhante e 0 dessemelhante, a ordem, 0 conflitual.

Quando se tram de definir esm harmonia, Eriximaco nom 0 paradoxaque volmmos a encontrar sob a pena de um autor anterior em mais oumenos um seculo, Heraclito de Efeso. E, com efeito, Ii oposi<;ao doscontrarios que Heraclito se refere expressamente como sendo 0 principioda composi<;ao de toda unidade. A unidade, nos diz Eriximaco, opondo-sea si mesma se comp6e, assim como a harmonia do arco e a da lira. Esmosper armonian toxou te !wi luras e celebre ao extremo, quando mais naoseja por ter sido cimda aqui de passagem. Mas e citada em muitos outrosautores, e chegou ate nos nesses poucos fragmentos esparsos, reunidospelos eruditos alemaes, com referencia ao pensamento pre-socratico.Dentre aqueles que nos resmm de Heraclito, este aqui e realmente domi-nante. No livro de Bertrand RuSsell, cuja leitura lhes recomendava aindaha pouco, voces vao encontrar, efetivamente represenmdos, 0 arco e suacorda, e ate mesmo 0 desenho simultaneo de uma vibra<;ao, que e aquelade onde partira 0 movimento da flecha.

a que e surpreendente e a parcialidade, euja raziio nao vemos muitobem de passagem, de que Eriximaeo dli provas relativamente Ii formula<;aoheraclitiana. Ele eneontra nela algo de repreensivel. Pareee que existemaU essas exigencias euja fonte mal podemos sondar. Eneontramo-nos aquinuma eonfluencia na qual estamos impedidos, sobretudo tratando-se depersonagens tao antigos, tao espeetrais, de nos afasmr de preconceitos, deapriorismos, de eseolhas feitas em fun<;ao de uma cerm eonsistencia dostemas num eonjunto teorico, de vertentes psicologicas. Devemos noscontentar em nomr que hli ali, efetivamente, alguma coisa cujo ecoencontramos em muitos outros trechos do discurso platonico. Nao sei queaversiio e marcada ai Ii idCia de se referir a qualquer conjun<;ao possivelde contrarios, mesmo que se a situe no real, como a cria<;ao de urnfenomeno que me parece nao the ser em nada assimilavel, a saber, 0 doacorde. Parece que quando se trata de zelar pela ideia de harmonia - para

falar em termos medicos, em diems e dosagens - a ideia de medida, depropor<;ao, geve ser mantida ate em seu principio. A visao heraclitiana doconflito como criador em si mesmo nao pode ser de modo algum susten-mda segundo certos espiritos - ou cerms escolas, vamos deixar a coisaem suspenso.

Existe ali uma parcialidade de que nao partilhamos. Todas as espe-cies de modelos da fisica nos trouxeram a ideia de uma fecundidade doscontrarios, dos contrastes, das oposi<;6es, e de uma nao-contradi<;ao abso-lum do fenomeno com seu principio conflitual. Toda a fisica tende muitomais .para 0 lado da imagem da onda do que para 0 lado da forma, daGestalt, da boa forma, nao importa 0 que disso tenha feito a psicologiamodema. Nao podemos deixar de nos surpreender, digo eu, moto nessapassagem quanto em varias outras de Platao, ao ver sustenmda a ideia denao sei que impasse, que aporia, de nao sei que preferencia a ser dada aolado do carater for<;osamente fundamental do acorde com 0 acorde, daharmonia com a harmonia.

Se voces se remeterem a urn dialogo extremamente impormnte de se lerpara 0 alicer<;amento dq nossa compreensao do Banquete, a saber, 0

Fidon, vao ver que toda a discussao com Simias e Cebes repousa sobre ana<;ao de harmonia.

Como dizia a voces no outro dia, todo 0 arrazoado de Socrates emdefesa da imomlidade da alma e ali apresenmdo da maneira mais mani-fesm sob a forma de um sofisma, que vem a ser 0 mesmo em tomo do qualfa<;o girar minhas observa<;oes - a saber, que a propria ideia da almaenquanto harmonia exclui que entre nela a possibilidade de sua ruptura.Quando seus dois interlocutores objetam que essa alma, cuja natureza econstancia, permanencia, dura<;ao, bem podera se desv~necer ao mesmotempo em que se dispersarem os elementos corporais cuja conjun<;ao faza sua harmonia, Socrates nao responde outra coisa senao que a ideia deharmonia de que a alma participa e em si mesma impenetravel, que elavai se esquivar, vai fugir diante da propria aproxima<;ao daquilo que possapor em causa a sua constancia.

A idCia da participa<;ao do que quer que seja de existente nessaessencia incorporea que e a ideia platonica revela sua fic<;ao e seu logro.Ese da a tal ponto, nesse Fidon, que e impossivel nao se dizer que naotenhamos razao alguma para supor que Platao veja menos esse logro doque nos. A pretensao que temos de ser mais inteligentes que 0 personagemque desenvolveu a obra platonica tern algo de formidlivel, de inimagimi-vel, de realmente assombroso.

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E por isso mesmo que, quando Eriximaco entoa sua can~oneta, semque isso acarrete de imediato conseqiiencias evidentes, temos 0 direito denos perguntar 0 que quer dizer Platiio quando faz com que, no Banquete,se suceda nessa ordem essa.serie de tiradas. Percebemos, ao menos, quea de Pausanias, imediatamente anterior, e derrisoria. E, se conservarmoso tom de conjunto que caracteriza 0 Banquete, temos, legitimamente, 0

direito de nos perguntar se 0 que esta em questiio nao e consoante a obracomica como tal. Em se tratando de amor, e claro que Platao adotou a viada comedia.

Tudo 0 que se segue vai confirma-Io, e tenho minhas razoes paracome~ar agora a afirma-Io, no momenta em que vai entrar em cena 0

grande comico, sobre 0 qual desde sempre quebramos a cabe~a para saberpor que Platiio 0 fez vir ao banquete. Esciindalo, ja que este grande comicoe urn dos responsaveis pela morte de Socrates.

a Fedon, a saber, 0 drama da morte de Socrates, apresenta-se paranos com 0 carater altivo que the e dado pelo tom tragico que vocesconhecem. a que, alias, nao e assim tiio simples, uma vez que ali tambemha coisas comicas, mas a tragedia predomina, e e representada diante denos. No Banquete, ao contrario, nao existe urn so ponto do discurso quenao se deva tomar com uma suspeita de comicidade, inclusive 0 tiio brevediscurso de Socrates em seu proprio nome.

Para nao deixar nada pendente, gostaria de responder em especial aurn dos ouvintes que mais me honra com sua presen~a, e com 0 qual tiveuma rapida conversa sobre este assunto. Nao sem razao, sem motivo, semjusti~a, meu interlocutor acreditara ter percebido que eu tomava 0 discursode Fedro por seu valor extrinseco ao contrario do de Pausanias. Pois bern,no sentido do que afirmo aqui, 0 discurso de Fedro, que se remete, sobreo tema do amor, a apreciayao dos deuses, nao deixa de ter, tambem urnvalor ironico. Pois os deuses,justamente, nada podem compreender sobreo amor. A expressao de urna divina burrice deveria ser, a meu ver, maisdifundida. Ela e sugerida com freqiiencia pelo comportamento dos seresaos quais nos dirigimos, justamente no terre no do amor. Tomar os deusescomo testemunhas daquilo que esta em questiio no que diz respeito aoamor me parece, seja como for, nao ser heterogeneo a continua~ao dodiscurso de Platiio.

Eiscnos chegados a orla do discurso de Aristofanes. Todavia, ainda·nao vamos entrar nele. Quero pedir-Ihes, simplesmente, que completempor seus proprios meios 0 que resta a ser visto do discurso de Eriximaco.

Para 0 sr. Leon Robin e urn enigma 0 fato de que Eriximaco retomea oposi~ao do tema do amor uranio e do amor pandemico, dado 0 que elenos traz com rela~ao aomanejo medico, fisico, do amor. Na verdade, creioque nosso espanto e, realmente, a unica atitude que convem para respon-

der ao do autor dessa edi~ao, pois a coisa fica esclarecida no discurso doproprio Erixjmaco, confmnando a perspectiva na qual tentei situa-Ia paravoces.

Se, a proposito dos efeitos do arnor, ele se refere Ii astronomia -paragrafo 188 - e na medida em que esta harmonia, com a qual trata-sede confluir, de concordar, quanto Iiboa ordem da saude do horn em, e umaunica e mesma coisa que aquela que rege a ordem das esta~6es. Quandoe 0 arnor em que existe arrebatamento, hubris, algurna coisa em excesso,que consegue prevalecer no que se refere as esta~oes do ano, enta~comes:am os desastres, a desordem, os prejuizos, como ele se exprime, osdanos, no nivel dos quais sao classificadas as epidemias, mas tambem -no mesmo nivel - a geada, 0 granizo, a praga do trigo e toda urna seriede outras coisas.

Eis-nos remetidos a urn contexto no qual sao utilizaveis as n~oesque promovo para voces como categorias radicais as quais somos for~adosa nos referir para expor sobre a analise urn discurso valido, a saber, 0

imaginario, 0 simbOHco e 0 real.Fica-se espantado que urn bororo se identifique com uma arara. Nao

lhes parece que nao se trata ai, de modo algum, de pensamento primitivo,e sim de uma posi~ao primitiva do pensamento relativamente aquilo como que ele tern a ver para todos, tanto para voces como para mim? a homemque se interroga, nao sobre 0 seu lugar, mas sobre sua identidade, tern quese situar, nao no interior de urn recipiente Iimitado que seria seu corpo,mas no real total e bruto com 0 qual eIe tern de Hdar. Nao escapamos aesta lei, de onde resulta que e no ponto preciso deste delineamento d? realem que consiste 0 progresso da ciencia que sempre teremos que nos sltuar.

No tempo de Eriximaco, nao hli 0 menor conhecimento do que sejaurn tecido vivo enquanto tal, e esta fora de questiio que 0 medico possafazer dos humores alguma coisa heterogenea a umidade, onde, no mundo,podem proliferar as vegeta~oes naturais. A desordem que vai provocar nohomem tal excesso devido Ii intemperanya e ao arrebatamento e a mesmaque vai acarretar os disturbios aqui enumerados nas esta~oes do ano.

A tradiyao chinesa nos apresenta 0 Imperador executando com asproprias maos os ritos principais dos quais depende 0 equilibrio de to~oo Imperio do Centro, trayando, no inicio do ano, os primeiros suIcos, cUJodirecionamento e retidiio se destinam a assegurar 0 equilibrio da natureza.Nao ha nessa posi~ao, se ouso dizer, nada aIem do natural. Eriximaco estabem apegado a n~ao, para empregar 0 termo, do homem microcosmo, ouseja, nao e que 0 homem seja em si mesmo urn resumo, uma imagem danatureza mas 0 homem e a natureza sao uma so e me sma coisa; nao sepode sOnhar compor urn homem a nao ser pela ordem e pela harmonia doscomponentes cosmicos. Essa posi~ao, apesar da limita~ao a qual acredi-

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tamos ter reduzido 0 senti do da biologia, nao tera deixado alguns trayosem nossos pressupostos mentais? Gostaria de deixa-Ios, por hoje, com estaquestiio.

Certamente, detectar os trayos nao e tao interessante quanto perceberonde, em que nivel fundamental, nos situamos, nos analistas, quandoagitamos, para compreender a nos mesmos, noyOes como a do instinto demorte. Como Freud nao desconheceu, esta e uma nOyao empedocleana.

Vou mostrar-Ihes, da proxima vez, que a formidavel gag constituidapelo discurso de AristOfanes, apresentado manifestamente como entradaem cena de um clown na comedia ateniense, se refere expressamente _vou-lhes mostrar as provas disso - Ii conce~ao cosmologica do homem.E you lhes mostrar, a partir dai, a abertura surpreendente que disso resulta,a abertura deixada escancarada quanto Ii ideia que Platao pudesse fazerdoamor.

Trata-se - you ate ai - da derrisao radical que a simples aborda-gem dos problemas do amor traz a essa ordem incorruptivel, material,superessencial, puramente ideal, participatoria, eterna e incriada, que eaquela que toda a sua obra descobre para nos - ironicamente, talvez.

Do Universo Ii verdade.S6crates e seu testemunho.o bufiio.o movimento perfeito.

Nosso objetivo, espero, passara hoje, diante da conjuntura celeste, por seusolsticio de inverno.

Arrastados pelo orbe comportado por ele, pode lhes ter parecido quenos afastlivamos sempre mais de nosso assunto, a transferencia. Fiquem,porta~to, tranqililos, atingimos hoje 0 ponto mais baixo desta elipse. Apartir do momenta em que entrevllnos que haveria para nos algo aaprender com 0 Banquete, e na medida em que isso se veri fica ser valido,era necessario avanyar, ate 0 ponto em que 0 faremos hoje, a analise departes importantes do texto, que podem aparentar nao ter relayao diretacom nosso tema.

Mas pouco importa, eis-nos agora engajados, e quando se comeyouem detenninada via de discurso, ha uma certa necessidade, nao fisica, quese faz sentir ao querermos leva-Io a termo.

Seguimos, aqui, 0 guia de urn discurso, 0 de Platiio no Banquete. Amaneira de um instrumento musical, ou antes, de urna caixinha de mlisica,ele estli carregado de todas as significayoes que fez ressoar atraves dosseculos, e e por isso que urn certo aspecto de nosso esforyo e 0 de voltaro mais perto possivel de seu sentido. Para compreende-Io e julga-Io, niiose pode deixar de evocar 0 contexto de discurso, no sentido do discursouniversal concreto, no qual ele se situa.

Que me entendam bem. Nao se trata, propriamente falando, deressituli-Io na historia. Voces bem sabem que nao e esse nosso metoda de

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comenrario, e que e sempre pelo que ele nos da a entender que interroga-mos urn discurso, mesmo se pronunciado numa epoca muito longinqua,quando as coisas que temos a entender ainda niio estavam absolutamente

/visiveis. Mas niio e possivel, no que diz respeito ao Banquete, deixarmosde nos referir Ii rela~iio entre 0 discurso e a historia ..Ou seja, niio como 0

'ldiscurso se situa na historia, mas como a propria historia surge de urn certomodo de entrada do discurso no real.

Da mesma forma, devo recordar-Ihes que, no momento do Banque-te, estamos no segundo seculo do nascimento do discurso concreto sobreo universo. Niio vamos nos esquecer do florescimento filosofico, se assimpodem dizer, do Seculo VI, tiio estranho, tiio singular, alem disso, pelosecos, ou pelos outros modos de uma especie de coro terrestre que se fazemouvir na mesma epoca em outras civiliza~6es, sem rela~iio aparente. Masnem quero esbo~ar a historia dos filosofos do Seculo VI, de Tales aPiUigoras, ou Heraclito, e tantos outros. 0 que quero faze-Ios sentir e queesta e a primeira vez em que, na tradi~iio ocidental, aquela Iiqual se refereo livro de Russell cuja leitura lhes recomendei, forma-se urn discurso quevisa expressamente 0 Universo, e visa torna-Io discursivo.

No inicio deste primeiro passo, da ciencia como sabedoria, 0 Uni-verso aparece como universo de discurso. Num certo sentido, jamaishavera universo seniio de discurso. E tudo 0 que encontramos nessa epoca,ate a defini~iio dos elementos, sejam eles quatro ou mais, traz a marca, 0

cunho, 0 selo dessa exigencia, desse postulado, de que 0 universo deveser entregue Ii ordem do significante.

Sem duvida, niio se trata de modo algurn de encontrar no universoelementos de discurso, mas ainda assim elementos que se agenciam Iimaneira do discurso. E todos os passos que se articulam nessa epoca entreos partidarios, os inventores deste vasto movimento interrogatorio mos-tram bem que, se sobre urn desses universos que se formam niio se puderdiscorrer de maneira coerente com as leis do discurso, a obje~iio e radical.Lembrem-se do modo de operar de Zeniio, 0 dialetico, quando, paradefender seu mestre Parmenides, prop6e os argumentos sofisticos adequa-dos para lan~ar seu adversario nurn embara~o sem saida.

Entiio, no plano de fundo do Banquete, e no resto da obra de Platiio,temos urna tentativa grandiosa em sua inocencia, essa esperan~a quehabita os primeiros filosofos ditos fisicos, de encontrar, sob a garantia dodiscurso, que e, em surna, todo 0 seu intrumento de experiencia, 0 acessoultimo ao real.

Peyo-Ihes perdiio por evitar esse assunto. Niio se trata aqui de urndiscurso sobre a filosofia grega. Proponho a voces apenas, para interpretarum texto especial, a temlitica minima que e nefessaria terem em mentepara bem julga-Io.

Devo em primerro lugar recordar que 0 real, 0 acesso ao real niio deve serooncebido nessa e~ca como 0 correlativo de urn tema, ainda que este seja~rsa1~ Ele -~ correlativo de uni termo que you tomar emprestado aPlatiio, que na-carta VII, durante urna digressiio, nomeia 0 que e buscadopela operayiio da diaIetica, to pragma.

Ai esUi, simplesmente, 0 mesmo termo que tive de levar em contano ano passado em nossa exposi~iio sobre a etica, e a que chamei~~oi~-Bsta niio e die Sache, urn negocio, ou entiio, entendam se assim quiseremo grande negocio, a realidade ultima, aquela da qual depende 0 propriopensamento que com ela se defronta, que a discute, e que e apenas, seposso dizer, uma das maneiras de pratica-Ia, to pragma, a Coisa, a praxisessencial.

Lembrem que a theoria, cujo termo nasce na mesma epoca, por maiscontemplativa que se possa afmnar, niio e somente isso, e a praxis da qualela sai, a pratica orfica, 0 demonstra de modo suficiente. A teori!Lniio ~,£2mo implica 0 nosso emm:ego do termo, a abstra~iio da prl!xis, nem sua!,eferenc!a ger~l, nem Q moP~lo <4lquilo que seria sua aplica~iio. Em ~eusurgimento ela e a prQ.p~iapraxis. E ela mesma, a thioria, 0 exercicio dopoder, to pragma, 0 grande neg6cio.

Urn dos mestres dessa epoca - que escolho como unico a citar, porser ele, gra~as a Freud, urn dos patronos da especula~iio analitica, Empe-docles -, em sua figura sem duvida legendaria, e igualmente e isso 0 queimporta, que seja esta a figura que nos foi legada - Empedocles e urnonipotente. Apresenta-se como senhor dos elementos, capaz de ressuscitaros mortos, magico, senhor do segredo regiosobre os mesmos dominiosnos quais os charlatiies, mais tarde, deveriam se apresentar com umapostura paralela. Pedem-Ihe milagres, e ele os produz. Como Edipo, niiomorre, mas retorna ao cora~iio do mundo, no fogo do vulciio e na hiancia.

Isso, como viio ver, esUi muito proximo de Platiio. Nem e por acasoque seja a ele, numa epoca muito mais racionalista, que vamos natural-mente tomar de emprestimo a referencia a to pragma.

Mas, e Socrates? Seria bem singular que toda a tradiyiio historicativesse se enganado ao dizer que ele acrescenta a essa base algo deoriginal, uma ruptura, urna oposi~iio. Socrates se explica a respeito - a

I

crer em Platiio, que 0 apresenta para nos, com efeito, manifestamente, nocontexto de urn testemunho historico - experimentando urn movimen-to de recuo, de cansayo, de repugnancia pelas contradiyoes engendra-das por essas primeiras tentativas filosoficas, tais como acabo de lhescaracterizar.

E de Socrates que procede essa ideia nova e esse!1cial, de que epreciso em primeiro lugar garantir 0 saber. Mostrar a todos que eles nada

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sabem e uma via por si mesma reveladora - reveladora de urna virtudeque, em seus sucessos privilegiados, nem sempre e bem-sucedida. Q.g~eSocrates chama de episteme, a ciencia, 0 que ele descobre, em suma, Q,que ele extrai, 0 que destaca, e que 0 discurso engendra a dimensao d~verdade. 0 discurso que se garante por uma cer~ezaintema a sua propria~ao ass~gura, ali onde 0 pode, a verdade como tal. Nada_maishli alen:tdessa pnitica do discurso.

Quando Socrates diz que e a verdade, e nao ele mesmo, que reCutaseu interlocutor, mostra ai algurnacoisa cuja maior solidez e sua referen-cia a uma combinatoriaprimitivaque, na basede nosso discurso, e semprea mesma. Dai resulta, por exemplo,que 0 pai nao e a mae, e que e por estecriterio, e apenas por este, que se pode declarar que 0 mortal deve serdistinto do imortal. Socrates remete, em suma, ao dominio do purodiscurso toda a ambiyao do discurso. Ele nao e, como se diz, aquele querefere 0 homem ao hornem, nem mesmo todas as coisas ao homem. FoiProtagoras quem deu essa palavra de ordem, 0 homem como medida detod(ls as coisas. Ja Socrates refere a verdade ao discurso. Ele e, se assimse pode dizer, 0 supersofista, ee niss-;qu~ reside seu-misterio, pois sefosse apenas 0 supersofista, nao teria engendrado nada mais que ossofistas, ou seja, 0 que resta destes, uma reputayaoduvidosa.

Foi, justamente, algo diverso de urn tema temporal 0 que haviainspirado sua ayao. E chegamos, ai, a atopia, ao lado insitulivel, deSocrates.E isso 0 que nos interessa.Farejamos, ai, algumacoisa que podenos esclarecer quanto a atopia que e exigivel de nos.

Foi por sua atopia, por este lugar nenhum de seu ser, que Socratescertamente provocou - os fatos 0 atestam - toda uma linhagem depesquisas. Seu destino esta ligado, de maneira ambigua, a toda umahistoria que se pode fragmentar - a historia da consciencia, como se dizem termos modemos, a historia dareligiao, a da moral, a da politica, atecerto ponto, e claro, e, em menorgrau, a da arte. Toda essa linha ambigua,difusa e viva, para designa-Ia eu so precisaria Ihes indicar a questiiorenovada pelo mais recente imbecil, Por que fil6sofos? - se a sentisse-mos, essa linha, solidaria de uma chama que e transmitida, sendo aomesmo tempo, de fato, estranha a tudo 0 que ilumina, quer seja 0 bern, 0bela, 0 verdadeiro, 0 mesmo, de que ela se digne ocupar.

Se, atraves de testemunhos contemporaneos ou proximos, bemcomo atraves de efeitos distantes, se tentar ler a descendencia socratica,podera nos advir a formula de urnaespecie de perversao sem objeto.

Na verdade, quando nos esforyamosem acomodar,aproximar, ima-ginar, fixar, 0 que podera ter sido efetivamente esse personagem, acredi-tern-me, isso e cansativo. 0 efeito desse ca~ayo, nao poderia formular-Ihes melhor que com as palavras que me vieram urn desses domingos a

A DERRIsAo DA ESFERA

noite: _ Esse S6crates me maW. Coisa curiosa, acordeina manha seguin-

te infi~~:;~:;:~v~s~~~t~~meyar tomandoao pe ~a letra 0 que nos ~

atesta~opellos qued~odeaq:~a~~::t~:'c~~~~ a~~ ;~~~k:o~et::e~~~:~que fot e e quem Isse , , . . - b mos

d I nada sabemos e especlalmente, nao sa e ,de urna morte a qua .'acrescenta ele, se nao .serauma cOlsa;oahabituados a sO ler nos textos

Quando lemos ISS0,estamos 0 e 'Ic1assicosboas palavras que.naoIhe damos ma~~:x~~~~:o~~:os n~~;~;

d fazemos com que ISS0ressoe no co 'I .~:~a~s quando cercadopor seusultimosfieis,ele Iheslar: ~sse~ u~oolbar ~ pouco baixo, que Platiioreprodu; de fonte s~~~ati~~e~':;::"~

tava la e que chama de olhar de touro. ensem em dies , Se a Apologia de S6crates reproduz exatamente 0 que s~eo'proc~so. 'uizes e dificil pensar, escutando sua defesa, que ele na?i~~;:~~~7:~:~;~~::~~o:~s~~ ::~~~~ee:,p:::~:'::~~:~~~J~::~rituais dos acusados.· . 'tica

Estou visando, ai, numa primeira abordagem,a na~urezaemgm~d d e'o de morte. Sem duvida, este pode ser conslderado amblguo,. ~.urn s~St;atade urn homem que tera levado setenta ~nos para 0dbteraJa que . - podena ser toma 0 nosatisfa ao deste desejo, e certamente ISS0nao .sentid~ ?e tendencia ao sUicid~, a~~~~~~s~~:~:n:~I:~~u~~:~~u:~i~:~masoqUlsmO,moral ou outro. as e , l d deligado a manutenyiio deste homem numa. zona de no-man s an ,

entre-d~as-mortes, ~e al~:a qf~:~~ g~~~~:he fez sua descoberta, estaSocrates, voces sa , . . d' t da sua obra

subiu-Ihe a cabeya. 0 Nascimento da Tragedza sam aI, eo. .,. Ih s falo devemarcarbem uma certa Impaclen-

P?stert~~a~ ~: c:~:: a~im incontestave1,e Nietzsche apontou para~la pes b~sta abrir urndialogo de Platiio,mais ou menos ao acaso, para~:~fi~~; a profunda incompetenciade Socrates cada vez que e1~toca no

~~~n~~d~~aI1~~~ ;:a:e~oo ~6:~~~ d: I~s~~jg:dia~~~!~t~~~ae~:~da mais a se dizer dela. Nenhum traglco, ne urn

qualquer outr~,.na diz em nossos dias, sustenta a atopia desentimento tragltco,cOd~~;~o Niiovamosesquece-Io,este daimon, poisSocrates, somen e urn .ele nos fala disso sem ces~ar. permitir-lbesobreviver

Este dem6nio 0 alucma, ao que parece, para od' '. N- fal'ad . I t aosburacosonde p ena caIr. ao y

nesse espay~,e a, verU- 0 quando m deus do qual 0 proprio Socratesnosisso. E depots, ha ~mensa~em e u , e chamar de suavocayao.Urn~:~=~:c~::fo~a~e:~~~~I~~:e~~u:b::rd~ deve-se dizer, de ir consultar

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o deus de Delfos, Apolo. E 0 deus the respondeu - Existem alguns sabios,um deles nao e nada mal, Euripides, mas 0 sabio dos sabios, 0 fino do fino,o quente, e Socrates. A partir desse dia, SOCrates disse a si mesmo: Epreciso que eu realize 0 oraculo dos deuses, eu nao sabia que era 0 maissabio, mas ja que ele 0 disse, devo se-Io. E nesses termos que Socratesnos apresenta a virada de sua passagem a vida publica. E, em sum a, umlouco que se cre ordenado a servi~o de um deus. E um messias, numasociedade de falastroes, ainda por cima.

Nao ha nenhuma outra garantia da palavra do Outro aMm destapropria palavra, e nenhuma outra fonte de tragico alem desse propriodestino, que bem nos pode aparecer, por um certo lado, como sendo nada.Tudo isso 0 conduz a ceder aos deuses uma boa parte do terreno de quelhes falava outro dia, 0 da reconquista do real, 0 da conquista filosofica,isto e, cientifica.

A proposito disso, se lhes disse os deuses sao 0 real nao foi parafazer paradoxo, como alguns me confiaram. Bem que 0 senhor se divertiu- disseram-me eles - nos surpreendendo quando perguntou: 0 que saoos deuses ? Todos esperavam que fosse dizer simbolico, e 0 senhor fezuma boa farsa dizendo que eram 0 real. Pois bem, nada disso. Nao fui euquem inventou isso. Eles sao para Socrates, manifestamente, apenas real.

E este real, sua participa~ao nao estli de forma alguma no principioda conduta de Socrates, que so visa a verdade. Ele estli pronto, perante osdeu:ses, a obedecer-Ihes ocasionalmente, con tanto que se the defina essaobediencia. Sera isso realmente obedecer-Ihes, ou antes ficar quites,ironicamente, para com seres que tem, tambem eles, suas necessidades?De fato, nao sentimos ai qualquer necessidade que nao reconhe~a asupremacia e a necessidade intema a demonstra~ao do verdadeiro isto eda ciencia. ' ,

o que pode nos surpreender e a sedu~ao exercida por um discursotiio severo, e que nos e atestada no transcorrer de um ou outro dialogo. 0discurso de SOCrates, mesmo repetido por crian~as ou mulheres, exerceum encanto siderador, e bem 0 caso de dize-Io. Assimfalava Socrates-uma forcya dai se transmite, que eleva aqueles que dele se aproximam,dizem sempre os textos platonicos, apenas com 0 ruido de sua fala, ealguns dizem, ao seu contato.

Reparem ainda, ele nao tem discipulos, mas antes familiares, curio-sos tambem, e finalmente os extasiados, como se diz nos santinhos depresepio proven~ais. E mais os discipulos alheios, que tambem vem batera sua porta.

Platao nao faz parte de nenhum desses grupos. E um retardatario,demasiado jovem para poder ter visto mais que 0 final do fenomeno. Elenao estli entre os familiares que la estavam no ultimo instante. E eexatamente esta a razao ultima, vamos dize-Io de passagem, desse modo

de testemunho ao qual ele se apega cada vez que quer falar de seu estranhoheroi: Fulano ouviu isso de Beltrano que estava la, a partir de tal visita,quando eles c0nduziram tal debate. A grava~ao no cerebro, eu a tenhoaqui em primeira, ali em segunda edi~ao.

Platao e uma testemunha muito particular. Pode-se dizer que elemente, e, por outro lado, que e veridico mesmo quando mente, pois aointerrogar Socrates e a sua questiio - dele, Platao - que abre sua trilha.

Platao e outra coisa, bem diferente. Nao e um joao-ninguem. Nao eum errante. Nenhum deus lhe fala, nem 0 chamou. E, na verdade, creio,

. para ele os deuses nao sao grande coisa. Platao e um mestre, um verda-deiro, um mestre do tempo em que a cidade se decompOe, arrebatada pelasrajadas democraticas que sao 0 preludio das grandes confluencias impe-riais - uma especie de Sade, mais engra~ado.

Naturalmente, ninguemjamais pode imaginar a natureza dos pode-res que 0 futuro reserva. Os grandes saltimbancos da tribo mundial,Alexandre, Seleucides, Ptolomeu, os militares misticos, etc., tudo issoainda e impensavel. 0 que Platiio ve .no horizonte e uma cidade comuni-.aria, absolutamente revoltante tanto a seus olhos quanto aos nossos. 0haras para todos, eis 0 que ele nos promete num panfleto que foi sempreo pesadelo de todos aqueles que nao conseguem se recuperar da discordia,cada vez mais acentuada, da sociedade com seu sentimento do bem. Issose chama A Republica, e todo 0 mundo a levou a serio, acreditando queera isso, realmente, 0 que queria Platiio.

Existem alguns outros mal-entendidos e elucubra~oes miticas. 0mito da Atlantida, por exemplo, me parece muito mais ser 0 eco dofracasso dos sonhos politicos de Platiio, e nao deixa de ter rela~Oes coma aventura da Academia. Mas talvez Voces achem que meu paradoxaprecisaria ser mais bem fundamentado, e e por isso que passo adiante.

o que ele quer, em todo caso,e afinal de contas a Coisa, to pragma.Platiio retomou 0 percurso dos magos do seculo anterior num nivel

literano. A Academia e uma cidade reservada, um refugio dos melhores,e e no contexto deste empreendimento, cujo horizonte decerto ia muitolonge, que se situa 0 que sabemos do que ele sonhou em sua viagem aSicilia e, curiosamente, nos mesmos lug ares onde sua aventura faz eco aosonho de Alcibiades, que tambem desejou, claramente, um imperio me-diterrlineo de centro siciliano. 0 sonho de Platiio portava um sinal desublima~ao mais elevada. E como uma especie de utopia da qual elepensou poder ser 0 diretor. Para 0 porte de Alcibiades, tudo isso eviden-temente se reduz a um nivel menos elevado, e talvez nao fosse mais doque urn apice de elegancia masculina. Mas seria depreciar esse janotismometafisico nao ver 0 alcance daquilo de que ele era capaz.

Acred1to que se tem razao em ler 0 texto de Platiio sob 0 lingulodisso que chamo de seu janotismo, e nele ver escritos para 0 exterior.

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Chegarei a dizer que ele atira aos dies, que somos nos, os bons ou mausbocados de urn humor muitas vezes bastante infernal. Mas e urn fato queele foi entendido de outra maneira.O fato de que 0 desejo cristao, que ternta~ pouco a ver com todas essas aventuras, que esse desejo cujo osso, aessencia, esta na ressurrei~ao dos corpos - leiam Santo Agostinho paraperceber 0 lugar que isso ocupa - que 0 desejo cristao seja reconhecidoem Platao, para quem 0 corpo deve se dissolver numa beleza supraterrestree reduzido a uma forma extraordinaria descorporalizada, este e 0 sinal deque estarnos em pleno mal-entendido.\ 0 carater delirante de tal retomada de um discurso num contexto'lque the e contraditorio nos remete, precisamente, a questao da transferen-cia. 0 que e isso senao a fantasia plat6nica afirmando-se ja como urnfen6meno de transferencia? Nao creiam que estas sejam considera~Oes~erais, pois vamos nos aproximar delas 0 mais possivel.

Como os cristaos, a quem urn deus reduzido ao simbolo do Filhohavia dado sua vida em sinal de amor, se deixaram fascinar pela inanidade- vao se recordar do termo que usei ha pouco - especulativa oferecidacomo alimento espiritual pelo mais desinteressado dos homens, Socra-tes? Nao se deveria reconhecer ai 0 efeito da ooica convergencia palpavelentre as duas tematicas, que e 0 Verbo, apresentado como objeto deadora~ao?

Nao se pode negar que 0 amor tenha produzido na mistica cristafrutos e loucuras bastante extraordinarios, segundo a propria tradi~aocrista. Diante disso, e importante delinear qual a impormncia do arnor natransferencia que se produz em torno desse outro, Socrates, que do seulado, e apenas urn homem que se pretende especialista em amor, mas queso deixa disso a prova mais simplesmente natural.

E a seguinte. Seus discipulos mexiam com ele por seu habito deperder a cabe~a, de vez em quando, por urn belo rapaz, e como nostestemunha Xenofonte, por ter urn dia, - isso nao vai longe - tocadocom seu ombro 0 ombro nu do jovem Critobulo. E Xenofonte nos diz 0

resultado disso: ele ficou com uma dor muscular, nada mais, nada menos.Isso nao e pouco, num cinico tao experimentado - pois ja ha em Socratestodas as figuras do cinico. A anedota mostra, decerto, uma certa violenciado desejo, mas igualmente deixa nele 0 amor numa fun~ao urn poucoinstantanea. Em todo caso, ela nos permite situar que, para Platao, essashistorias de amor sao simples bufonarias.

o modo de uniao ultima com to pragma, a Coisa, nao deve certa-mente ser buscado no sentido da efusao de amor, no sentido cristao dolermo. E nao e em outro lugar que se deve procurar a raziio para isso: noBanquete, 0 unico que fala do amor como convem - verao 0 que entendopor este termo - e urn bulao. L ~",k(,.:"

\ ~ 1

AristOfanes, para Platao, nao e outra coisa. Urn poeta c6mico, para ele, eurn bulao.

o AristOfanes, que e, acreditem-me, urn senhor muito distante daplebe e tambem um homem obsceno. Devo lembrar-lhes 0 que podemenco~trar na abertura de qualquer uma de suas comedias? 0 minimo quese ve surgir em cena e 0 que esta, por exemplo, nas Tesmoforias. Urnparente de Euripides vai se disfar~ar de mulher para se exp6r a sorte deOrfeu isto e ser despeda~ado na assembIeia das mulheres, em lugar deEuripides. D~do que as mulheres, como ainda hoje no Oriente, se dep~lam,fazem-nos assistir a queima dos pelos do cu, e poupo-lhes malOresdetalhes.

Isso supera tudo 0 que nao se pode ver atualmente senao no palcode um music-hall de Londres, e nao e dizer pouco. 0 vocabulario e melhor,mas nem por isso mais distinto. ? termo "cu arreganhado" er~petido ~mdez replicas seguidas para deslgnar aqueles dentre os q~lS convet.ttescolher 0 que hoje chamariamos, em nossas linguas, os eandldatos matsaptos a todos os papeis de vanguarda, pois e destes que AristOfanes seressente mais particularmente.

Em suma, 0 fato de que seja um personagem desta espicie - e, 0

que e mais, que desempenha 0 papel que voces sabem na dif~a~ao deSOCrates- que Platao escolha para fazer dizer as melhores eOlsassobreo amor, isso nao nos deveria despertar urn poueo a eaehola?

Vou ilustrar imediatamente 0 que quero dizer, frisando que e a eleque Platao faz dizer as melhores eoisas sobre 0 amor. Mesmo um eruditota~ moderado, eomedido em seus julgamentos, prudente, quanto podese-Io 0 ilustre professor que fez a edi~ao que tenho sob os olhos, 0 sr. LeonRobin, nao pOdedeixar de ficar eomovido a ponto disso the ter arraneadolagrimas - AristOfanes e 0 primeiro que fala do arnor, meu Deus, comonos falamos dele, e diz eoisas que causam impressao violenta.

AristOfanes faz a seguinte observa~ao, bastante sutil, e que nao e 0que se espera de urn bUlao, mas e justamente por essa raziio que isso eposto em sua boca. Ninguem - diz ele - pode crer que seja e tonaphrodision sunousia - traduz-se como a comunidade do gozo amoroso,tradu~ao que me parece detestavel, e 0 sr. Uon Robin fez ou~a bemmelhor em La P/eiade, falando em partilha do gozo sexual - mnguempode acreditar que seja 0 prazer de se est(Jr juntos no leito 0 que e,. emdefinitivo, 0 objeto em vista do qual cada um deles se compraz em Vlverem comum com 0 outro, e num pensamento transbordante de solicitude,em grego, outos epi megales spoudes. E este mesmo spoude que eneon-trararn no ana passado na defIni~ao aristoteliea da tragedia, que signifiea

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solicitude, cuidado, zelo, mas tambem seriedade. Resumindo, essas pes-soas que se amam tern urn jeito curioso de seriedade.

Deixemos esta nota psicologica, para designar onde esta 0 misterio.AristOfanes nos diz que e uma coisa inteiramente diversa 0 que desejamanifestamente a alma dessas pessoas, urna coisa que ela e incapaz deexprimir, mas que no en tanto adivinha, e que prop6e como urn enigma.

Suponham mesmo, dizArist6Janes, que enquanto repousam sobre 0 mesmoleito, Hefesto - isto e, Vulcano, 0 personagem com a bigorna e 0 martelo- erga-se diante delas com suas ferramentas e Ihes diga: "Nao e este 0objeto dos vossos anseios, 0 que mais desejam: identificar-se 0 maispossivel urn ao outro, de modo que nem de noite nem de dia abandonemurn ao outro? Se e realmente isso 0 que desejam, de born grado possofundi-Ios juntos, reuni-Ios pelo sopro de minha forja, de tal modo que, dedois que sao, tomar-se-ao urn, e enquanto durarem suas vidas viverao, urne outro em comum, como que fazendo urn sO,e apes sua morte, la no Hades,em lugar de dois serao urn, tornados ambos por uma morte comum ... Poisbem! Vejam se e a isso que aspiram e se poderao contentar-se com talsorte ..." Ouvindo essas palavras, nao haveria urn sO, bem sabemos, quedissesse nao, nem evidentemente que desejasse outra coisa, mas cada urndeles pensaria, ao contrario, ter simplesmente ouvido 0 que ha muito tempodesejava: que por sua reuniao, por sua fusao com 0 amado, seus dois seresnao fossem, enfim, senao urn sO.

Eis 0 que Platao faz dizer pela boca de Aristofanes, mas nao apenasisso. Voces sabem que AristOfanes conta coisas que SaGgrosseiras, e queele mesmo anunciou como devendo se situar entre 0 risivel e 0 ridiculo,conforme 0 riso venha a incidir sobre 0 que e visado pelo c6mico ou sobreo proprio comediante. E claro que Aristofanes faz rir, e passa a barra doridiculo. Platao vai-nos fazer rir do amor? Isso ja Ihes testemunha 0

contrario.Em parte alguma, em nenhum momento dos discursos do Banquete,

leva-se 0 amor ta~ a serio, nem ta~ tragicamente. Estamos ali exatamenteno nivel que imputamos ao amor, nos os modemos - depois da sub lima-~ao do amor cortes de que lhes falei no ana passado, e depois do que eupoderia chamar do contra-senso romantico dessa sublima~ao, a saber, asuperestima narcisica do sujeito, do sujeito suposto no objeto amado.

Gra~as a Deus, no tempo de Platao ainda nao se havia chegado la,com exce~ao desse estranho Aristofanes, mas este e urn bufao. Coloca-mo-nos, antes, numa observa~iio de certo modo zoologica, de seresimaginarios, que assume seu valor pelo que evoca nos seres reais e peloque pode ser considerado ai, certamente, como derrisorio.

Trata-se desses seres cortados em dois como urn ovo cozido, dessesseres bizarros como aqueles que encontram9s nos bancos de areia, umasolha, urn linguado, urn barbado, que parecem ter tudo 0 que Ihes e

preciso, dois olhos, todos os orgaos pares, mas que SaG achatados de talmaneira que aparentam ser a metade de urn ser completo.

o primeiro comportamento que se segue ao nascimento de seresgerados por uma tal parti~ao, que e a base do que aparece de repente paranos com uma luz tao romantica, e uma fatalidade panica, que faz a cad aurn desses seres procurar em primeiro lugar e antes de mais nada suametade e entao aferrando-se a ela com uma tenacidade, se assim se podedizer, s~m saida, perecer ao lado do outro pela impotencia emjuntar-se aele. E isso 0 que AristOfanes nos define em longos desenvolvimentos, comtodos os detalhes, de urna maneira extremanente imajada, projetando-ono plano do mito. Tal e a imagem da rela~ao amorosa que forja 0 escultorque e aqui 0 poeta.

Sera neste ponto que reside 0 que devemos supor, e que tocamoscom 0 dedo, 0 que ha aqui de risivel? Evidentemente que nao. Mas issoesta nao obstante inserido num trecho que nos evoca irresistivelmente 0

que 'poderiamos v~r ainda hoje no picadeiro de urn circo, se os palha~osentrassem, como fazem as vezes, abra~ados, agarrados dois a dois, aco-plados ventre com ventre, e fizessem uma ou varias voltas pela pista num~grande girayao de quatro bra~os, quatto pemas e duas cabe~as. Isso em S1

e alguma coisa que vemos combinar muito hem com 0 modo de fabricayaodeste tipo de cora que, num 011trogenero, daAs Vespas, As Aves, ou aindaAs Nuvens, das quais nunca saberemos sob que tela apareciam em cena.

Mas, aqui, de que especie de ridiculo se trata? Trata-se simplesmen-Je do carMer por si so bastante jubiloso dessa imagem, ja Ihes disse,~clownesca"?

E ai que YOU incluir urn pequeno desenvolvimento, que peyo medesculparem se ele nos obriga a urn bem longo pois e essencial.

Nao sou 0 unico a saber ler urn texto,ja que 0 sr. Leon Robin tambem ficaimpressionado com isso, a ponto de, extraordinariamente, insistir nocarMer esferico do personagem inventado por AristOfanes. .

E dificil nao ve-lo, porque este esferico, este circular, este splzai'rae repetido com tamanha insistencia. Dizem-nos que as costas, os fIancos,pleuras kuklo eXOll, tudo isso se segue de uma forma hem redonda. Epreciso vermos isso como Ihes dizia ha pouco, como duas rod as colocadasuma sobre a outra e naturalmente chatas,enquanto aqui e redondo.

E redondo, e isso incomoda 0 sr. Leon Robin, que nao hesita, emsua nota, em trocar uma virgula que ninguem jamais trocou, dizendo: -:--Fayo isso porque nao quero que se insista tanto na esfera, 0 corte e matsimportante. Nao sou eu quem ira diminuir a importancia deste corte, c

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voltaremos a ele daqui a pouco, mas e dificil nao ver que estamos diantede algo muito singular, e sobre 0 qual yOU dizer desde ja 0 termo exato: aderrisao de que se trata, aquilo que e exposto sob esta forma ridicula ejustamente a esfera. '

Naturalmente isto nao os faz rir, porque a esfera 0 deixa indiferen-tes. So que devem se lembrar de que, durante seculos, as coisas nao forambem assim.

Voces conhecem a esfera apenas sob a forma deste fato de inerciapsicologiea a que se chama a boa forma. Urn certo mimero de pessoas, 0sr. Ehrenfels e outros, percebeu que as formas tinham uma certa tendenciaIi perfei~ao, isto e, no estado de dtivida, a se assimilarem Ii esfera. Emsuma, a esfera e 0 que dli mais prazer ao nervo otico. Isso e muitointeressante, mas so faz esb~ar 0 problema, pois assinalo de passagemque essas no~6es de Gestalt sobre as quais se caminha tao resolutamenteso servem para relan~ar 0 problema da percep~ao. Se existem boas formas,a perce~ao deve consistir em retifica-Ias no sentido das mas isto e dasverdadeiras. Mas vamos deixar a dialetica da boa forma. ' ,

A forma esferica tern aqui urn sentido inteiramente diverso dessaobjetiva~ao cujo interesse esta limitado Ii psieologia. Em Platao, e bemantes dele, essa forma, Sphairos no masculino, como diz ainda Empedo-cles, cujos versos 0 tempo nao me permite ler para voces, e um ser que e,de todos os lados, semelhante a si mesmo, sem limites, sphalros kuklote-res, sphairos, que tem aforma de uma bola, reina em sua regia solidao,repleto de seu proprio co nte ntamento, de sua propria sujiciencia. Essesphai'ros que obceca 0 pensamento antigo e a forma que assume, no centrodo mundo de Empedocles, a fase de reuniao daquilo que ele denomina emsua metafisica philie ou phi/otes, 0 amor, que ele chama em outro lugarde skedune phi/otes, 0 amor que une, que aglomera, que assimila, queaglutina. Aglutinar e a ktesis, a ktesis de amor.

E muito singular ver reemergir, sob a pena de Freud, 0 amor comopotencia unificante pura e simples, de atra~ao sem limites, para op6-10 aTanatos - quando temos correlativamente, e de maneira discordante, ano~ao tao diversa, e tao mais fecunda, da ambivalencia amor-odio.

Esta esfera, vamos encontra-Ia por toda parte. Eu lhes falava outrodia, em Filolau. Ele a admite, essa mesma esfera, no centro de urn ~undoonde a Terra tern uma posi~ao excentriea, e voces sabem que ao tempo dePitligoras ja se suspeitava disso. Mas nao e 0 sol que ocupa 0 centro, e umfogo central esferico, ao qual a face habitada da Terra sempre volta ascostas. Situamo-nos, com rela~ao a este fogo, como a lua com rela~ao an,?ssa terra e e por isso que nao 0 sentimos. Parece que foi para evitar quefossemos afetados por essa irradia~ao central que Filolau inventou essaelucubra~ao da anti-terra, que ja quebrava ,a cabe~a das pessoas naAntiguidade, ate do proprio Aristoteles. Qual poderia ser, realmente, a

necessidade desse corpo estritamente invisivel, suposto ocultar todos ospoderes contrlirios aos da terra, e que exercia ao mesmo tempo 0 papel decorta-fogo? Serla preciso, como se diz, analisa-Io.

Tudo isso foi feito apenas para introduzi-Ios Ii dimensao, Ii qualvoces sabem que atribuo uma impoltincia muito grande, da revolu~aoastron6mica, ou ainda coperniciana. E para colocar defmitivamente osping os nos ii, repito que nao e 0 geocentrismo supostamente desmanteladopelo chamado c6nego Copernico que e importante, e e mesmo nessesentido que e bem falso e intitil chamar de coperniciana a revolu~ao

, astron6mica. Em seu livro Sobre a Revoluriio dos Orbes Celestes, ele nosmostra uma figura do sistema solar que se assemelha Ii nossa, Ii dosmanuais escolares, onde se ve 0 sol no meio e todos os astros girando Iisua volta em ordem.Mas nao era, absolutamente, urn esquema novo. Todomundo sabia, no tempo de Copernico - nao fomos nos que 0 descobrimos- que na Antiguidade, 0 tal de Heraclides e Aristarco de Samos, de umaforma perfeitamente comprovada, haviam feito 0 mesmo esquema.

Copernico nao passa de uma fantasia historica. Teria sido diferentese seu sistema fosse, nao mais aproximado da imagem que temos dosistema solar real, mas mais verdadeiro, isto e, mais desembara~ado queo sistema de Ptolomeu de elementos imaginarios, que nada tern a ver coma simboliza~ao modema dos astros. Ora, nao e nada disso, porque seusistema estli repleto de epiciclos.

o que e isso? E algo inventado, e no qual ninguem podia crer. Arealidade dos epiciclos, nao se acreditava nela. Nao pensem voces queel~s fossem burros 0 bastante para pensar que existisse no ceu aquilo quevoces veem quando abrem seus relogios, uma serie de rodinhas. Mastinham essa ideia, a de que 0 tiDieo movimento que se podia imaginar erao movimento circular. Tudo 0 que se ve no ceu e muito arduo de interpre-tar, pois os pequenos planetas errantes se entregam a toda especie deestripulias irregulares entre si, e tratava-se de explicar seus ziguezagues.Pois bern, so se ficava satisfeito quando cada urn dos elementos de seuscircuitos podia ser reduzido a um movimento circular.

o estranho e que nao tenham conseguido fazer melhor. Poderiamospensar, em principio, que, Ii for~a de combinar movimentos rotativossobre movimentos rotativos, poderiam ter chegado a se dar conta de tudo.Era simplesmente impossivel, porque, Iimedida que se observava melhoros astros, notava-se que havia cada vez mais coisas ainda por explicar,quando mais nao fosse, ao aparecer 0 telescopio, sua varia~ao de grande-za. Mas nao importa, 0 sistema de Copernico era tao carregado quanto 0de Ptolomeu dessa superafeta~ao imaginaria, que 0 fazia pesado e emba-ra~oso.

Seria necessario que voces lessem, durante essas ferias - e vao verque isso e possivel - para seu prazer, como Kepler partiu dos elementos

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deste mesmo Timeu de' que Ihes you falar, isto e, de uma conce~iiopuramente imaginaria - com 0 acento que este termo possui no vocabu-lario do qual me sirvo com voces - do universo, inteiramente pautadanas propriedades da esfera, definida como a forma que porta em si asvirtudes da suficiencia, de modo que pode combinar nela a eternidade domesmo lugar com 0 movimento etemo.

As especula~Oes de Kepler siio dessa especie. Siio, alias, refmadas,pois que ele introduz nelas, para nosso espanto, os cinco sOlidos perfeitosinscritiveis na esfera - como sabem, so ha cinco deles. Esta velhaespecula~iio platonica, ja superada trinta vezes, toma a emergir nessavirada da Renascen~a, quando os manuscritos platonicos siio reintegradosa tradi~iio ocidental, e sobe,literalmente, a cabe~a desse persona gem, cujavida pessoal, no contexlo da revolu~iio dos camponeses, depois da Guerrados Trinta Anos, e om tanto extravagante. Pois bem, 0 dito Kepler, embusca das harmonias celestes, chega, por om prodfgio de tenacidade, e noqual se ve realmente 0 jogo de esconde-esconde da forma~iio inconscien-te, a formular a primeira compreensiio daquilo em que consiste, verdadei-ramente, 0 nascimento da ciencia modema. E procurando oma rela~iioharmonica que ele chega a rela~iio entre a velocidade do planeta em suaorbita com a area da superficie COberta pela linha que une 0 planeta aosol. Isso significa que ele percebe, ao mesmo tempo, que as orbitasplanetlirias sao elipses.

Alexandre Koyre escreveu um livro muito bonito que se chamaFrom the closed world to the infinite universe, publicado por JohnsHopkins, e que foi recentemente traduzido. E eu me perguntava 0 quepoderia ter feito com ele Arthur Koestler, que nem sempre e consideradocomo um autor de inspira~ao muito segura. Afian~o-Ihes que Os Sonam-hulos, de que se fala por toda parte, e seu melhor livro. E fenomenal,maravilhoso. Voces niio precisam nem saber as matematicas elementares,viio entender tudo atraves da biografia de Copemico, de Kepler e deGalileu, com urn pouco de parcialidade para com Galileu - deve-se dizerque ele era comunista, ele proprio 0 confessa.

Comunista ou niio, e absolutamente verdadeiro que Galileu nuncaprestou a menor aten~ao ao que Kepler havia descoberto. 0 passo genialdado por ele em sua inven~ao da dinamica modema e ter encontrado a leiexata da queda dos corpos. Apesar deste passo essencial, e a despeito deter sido com a historia do geocentrismo que ele teve todos os seusproblemas, 0 fato e que ele era tiio retrogrado quanta os outros, tiioreacionario, tiio apegado a ideia do movimento circular perfeito, entiio 0

linico possivel para os corpos celestes. Para dizer tudo, Galileu nemmesmo atravessou 0 que chamamos de revolu~iio coperniciana, e sobre aqual sabemos que nao e de Copernico. Estiio venda 0 tempo que levam as

verdades para abrir seus caminhos, diante de urn preconceito tiio solidocomo a perfei~ao do movimento circular.

Eu teria 6 que Ihes dizer sobre isso durante horas, porque e muitodivertido considerar por que e que e assim, ver quais siio realmente aspropriedades do movimento circular, e por que os gregos fizeram dele 0simbolo do limite, enquanto oposto a apei"ron. Coisa curiosa, e justamenteporque essa e uma das coisas mais adequadas a se lan~ar no apei"ron. Seriapreciso que, diante de voces eu fa~a diminuir urn pouco, decrescer, reduzira om ponto, infinitizar-se essa esfera, que voces, alias, sabem que serviu

. de simbolo corrente a essa famosa infinitude.Ha muito 0 que dizer. Por que esta forma tern virtudes privilegiadas?

Responder a essa pergunta iria nos mergulhar no cora~iio dos problemasreferentes a fun~ao e ao valor da intui~iio na constru~iio matematica.

Antes de tad os esses exercicios que nos fizeram desexorcisar aesfera, se 0 charme desta continuou a ser exercido sobre os tolos e porquea philia do espirito se colava ali, mal e porcamente, como um adesivoesdrlixulo. Ao menos, era esse 0 caso de Platiio, e remeto-os ao Tillleu, aoseu longo desenvolvimento sobre a esfera, que ele nos descreve em todos .os detalhes. Isso responde de modo curiosa, como uma estrofe altemada,ao que diz AristOfanes quanto aos seres esfericos.

Por urn lado, no Banquete, AristOfanes nos diz que esses seres ternpatas, pequenos membros que apontam e gesticulam. Por outro lado, noTillleu, Platiio, com uma enfase muito surpreendente quando se trata dodesenvolvimento geometrico, sente a necessidade de nos fazer notar, depassagem, que a esfera tern tudo 0 que Ihe e preciso em seu propriointerior. Ela e redonda, ela e cheia, ela e contente, ela ama a si mesma, eprincipalmente, nao precisa de olho nem de orelha,ja que e, por defini~ao,o involucro de tudo 0 que pode ser vivo. Por esse motivo, e 0 que vive porexcelencia, e isso nos traz, em acrescimo, a dimensao mental na qual podiase desenvolver a biologia - a no~ao de que esta forma e 0 que constituiaessencialmente 0 vivo, devemos toma-Ia num soletramento imaginarioextremamente estrito.

Assim, pois, a esfera nao tern olhos nem orelhas, nao tern pes nembra~os, e so Ihe foi conservado urn movimento, 0 movimento perfeito,sobre si mesma. Existem seis deles: para cima, para baixo, para a esquer-da, para a direita, para a frente e para tnis. A partir da compara~iio entreos textos do Banquete e do Tillleu, e desse mecanismo de dupla face que,consiste em fazer de bufiio 0 personagem que e para ele 0 linico digno defalar de amor, resulta que, no discurso de Aristofanes, Platiio parece sedivertir fazendo om exercicio comico sobre sua propria concep~ao domundo e da alma do mundo.

o discurso de AristOfanes e a derrisao do Sphai"ros platonico, talcomo e articulado no Timeu.

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o tempo me limita, e haveria muitas outras coisas por dizer. Mas,que a referenda astron6mica e absolutamente certa aqui, you lhes darimediatamente a prova, pois pode lhes parecer que estou brincando. Essestres tipos de esfera imaginados por Aristofanes, uma toda macho, outratoda femea, uma macho e femea - cada uma delas' tern, assim mesmo,urn par de genitais - os androginos, como sao chamados, tern origens. Equais sao essas origens? Sao estelares. Os machos vem do sol, as toda-mulheres vem da terra, e da lua os androginos - confirmando assim, alias,a origem lunar, diz-nos AristOfanes, daqueles que tern tendencia aoadulterio, pois nao e por outro motivo senao por ter uma origem compo-sita. Ai esta 0 elemento astron6mico.

Pois bern, alguma coisa ai nao desponta para nos revelar 0 mecanis-mo da fascinayao da forma esfCrica?

£, essa a forma que nao se podia tocar, conte star; ela deixou 0

espirito humane durante seculos neste erro, recusando-se a pensar quefora de toda ayao, de todo impulso estranho, 0 corpo esteja ou em repousoou em movimento retilineo uniforme. 0 corpo em repouso era suposto sopoder ter, fora do repouso, urn movimento circular, e toda a sua dinamicafoi barrada. Ora, a ilustrayao incidental disso que nos e dada sob a penade Platiio, que se pode tambCm chamar de poeta, nao nos mostra que 0

que esta em questao, nessas formas onde nada se prolonga e se deixapegar, tern seus fundamentos na estrutura imaginaria? Mas a que se devea adesao a essas formas, na medida em que e efetiva, senao a Verwerfungda castrayao?

Isso e tao verdadeiro que vamos encontra-Io no discurso de Aristo-fanes. Esses seres, separados em dois como uma pera cortada ao meio,vao, num tempo que nao nos e indicado com precisao, ja que se trata deurn tempo mitico, morrer num imitil abrayo ao se reunirem. Dedicam-sea vaos esforyos de procriayao na terra, e dispenso voces de toda esta miticaque nos levaria longe demais. Como e que a questiio vai se resolver?AristOfanes nos fala, ali, exatamente, como 0 pequeno Hans - vao lhesdesatarraxar os genitais que tern no lugar errado, porque estiio no lugarem que se situavam quando eram redondos, e reaparafusa-Ios no ventre,exatamente como a torneira do sonho que voces conhecem pelo relatoclinico de Freud a que aludo.

£, tinico, e assombroso, escrito por Platiio: a possibilidade de apazi-,guamento amoroso se encontra referida a alguma coisa que tern relayaoincontestavel, no minimo, com uma operayao nos genitais do sujeito. Queroclassifiquemos ou nao no complexo de castrayao, e claro que 0 desviono texto insiste na passagem dos genitais para a frente do corpo. Isso nao~uer dizer, simplesmente, que 0 orgao genital apareya ali como possibili-dade de corte, e como junyao com 0 objeto amado, mas que, literalmente,ele surge com este objeto, numa relayao de superimpressao, quase que

Ide s."p~rimpo.siyao. £, este 0 tinico ponto em que ~e trai, se tra~uz, a funyaodo orgao gerutal. Quando se sabe que a apreensao da tragedla por Platiio

1- ele nos da mil provas disso - nao ia muito mais longe que a deSocrates, como nao se impressionar com 0 fato de que ali, pela primcira

~ vez, pela tinica vez, num discurso referente a urn assunto grave, 0 do amor,1 ele faya entrar em jogo 0 argao genital como tal?

Este fato confirma 0 que eu lhes disse ser 0 essencial do mecanismodo comico, que e sempre no fundo referencia ao falo. E nao e por acasoque e AristOfanes quem fala disso. Ele e 0 tinico a poder faze-Io. MasPlatao nao sabe que, fazendo-o falar disso, acaba por nos trazer, a nosaqui, a cavilha que faz bascular toda a sequencia do discurso para urn outrolado.

£, a partir deste ponto que retomaremos as coisas na proxima vez.

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Os mandamentos da segunda morte.o significante e a imortalidade.o desejo do analista.A fantasia macarr6nica do tragico.

Vma paradinha antes de faze-Ios ingressar no grande enigma do amor detransferencia.

Tenho minhas razoes para marcar, as vezes, tempos de parada.Trata-se, com efeito, de nos entendermos e niio perdermos nossaorientayiio.

Desde 0 inicio deste ano, pois, sinto a necessidade de lembrar-Ihes que,em tudo 0 que Ihes ensino, penso so ter feito observarem que a doutrinade Freud implica 0 desejo numa dialetica.

Ai ja e preciso que eu me detenha para faze-Ios notar que a pista jafoi tomada. Assim, ja lhes disse que 0 desejo niio e uma funyiio vital, nosentido em que 0 positivismo deu seu estatuto a vida. a desejo e tornadonuma dialetica porque esta suspenso - abram parenteses, eu disse de queforma ele esta suspenso, sob a forma de metonimia - suspenso a umacadeia significante, que e, como tal, constituinte do sujeito, aquilo peloqual este se distingue da individualidade tomada, simplesmente, hic etnunc. Niio esqueyam de que este hic et nunc 6 0 que a define.

Fayamos urn esforyo para penetrar no que vem a ser a individuayiio,o instinto da individualidade, na medida em que a individuayiio teria,

como nos e explicado em psicologia, que reconquistar para cada uma dasindividu~lidades, pela experiencia ou pelo ensinamento, toda a estruturareal. Isso niio e pouca coisa, e niio se chega a concebe-Io sem a suposiyiiode que ela estaria ai pelo menos ja preparada por uma adaptayiio, ou umaacumulayiio adaptativa. a individuo humano, enquanto conhecimento, jaseria froto de consciencia ao final de uma evoluyiio.

Disso duvido profundamente, niio por considerar que seja umadimensiio sem fecundidade, nem tampouco sem saida, mas apenas namedida em que a id6ia de evoluyiio nos habitua mental mente a todas asespecies de elisoes, muito degradantes para nossa reflexao, e em especialno que se refere a nos, analistas, para nossa 6tica. Em todo caso, parece-meessencial vol tar a essas elisoes, demonstrar ou reabrir as hiiincias deixadasem aberto pela teoria da evoluyao, na medida em que esta tende semprea recobri-Ias para facilitar a conceptibilidade de nossa experiencia. Se aevoluyiio e verdadeira, uma coisa, no entanto, e certa; ela nao e, comodizia Voltaire a proposito de outra coisa, tiio natural assim.

De qualquer forma, quanta ao desejo, e essencial nos referirmos as~_~~ndi~oes, aquelas que nos ;~-;;-dad~s ~ssa eiperi~ncili, 0 querevoluciona todo 0 problema dos dados. Com efeito, trilta.-se <!o.~egyjntl(;..2-§!l·eito conserva u~ja_articulada fora da consciencia, inacessivela consciencia. uma demanda, e nao um empurriio, ou um mal-estar, ou

~~a marca, ou ainda 0 que quer que seja que voces tentem caracterizarnuma ordem de primitividade tendencialmente definivel. Pelo contrario,

!se ha urn rastro, e urn rastro delimitado, se 0 posso dizer, por urn trayoisolado e referido como tal a uma potencia, digamos, ideognifica, sob a

I condiyiio de se frisar bem que nao se trata em absoluto de urn indice, referivel ao que quer que seja de isolado, mas que esta sempre ligado aI uma concatenayiio, sobre uma linha, com outros ideogramas, estes mes-\ mos demarcados por essa funyao que os faz significantes. Esta demanda\ constitui uma reivindicayao eternizada no sujeito, embora latente e ina-Icessivel a ele. Eurn estatuto, urn cademo de atribuiyoes. Nao a modulayaoque resultaria de alguma inscriyao fonetica do negativo inscrito numfilme, uma fita magnetica, urn trayo, mas algo datado para sempre. Vmagravayao, sim, mas se acentuarmos 0 termo gravayiio, registro, como aclassificayao num arquivo. Vma memoria, sim, mas no senti do que assu-me este termo numa maquina eletr6nica. Pois bern, 0 genio de Freud e terdesignado 0 suporte dessa cadeia. Creio te-Io demonstrado 0 bastante, eYOU demonstra-Io ainda, especialmente num artigo que e 0 que acrediteidever refazer a partir do que disse no congresso de Royaumont, e que serapublica do - Freud designou seu suporte quando falou do isso, na propriapulsao de morte, na medida em que acentuou 0 carMer mortiforme doautomatismo de repetiyao.

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A morte. Aquilo esta all, articulado por Freud, como tendencia paraa morte, como desejo de urn impensavel sujeito, que se apresenta no servivo, em quem isso fala. Este e, precisamente, irresponsavel por aquiloque esta em jogo, a saber, essa posiyao excentriea do desejo no homem,que e desde sempre 0 paradoxo da etica. Paradoxo absolutamente insohi-vel, parece-me, na perspectiva do evolucionismo. as desejos, no que sepode chamar de sua permanencia transcendental, a saber, 0 carMer trans-gressor que lhes e fundamental, por que, como, nao seriam eles nem 0

efeito, nem a fonte daquilo que constituem? - a saber, uma desordempermanente num corpo considerado submisso, sob alguma incidenciacujos efeitos se admitem, ao estatuto da adaptayao.

Ai, como na historia da fisiea, ate agora tentou-se, apenas, salvar asaparencias. E creio te-Ios feito sentir, ter-Ihes dado ocasiao de completara enfase do que quer dizer salvar as aparencias quando se trata dosepiciclos do sistema ptolomaico.

Nao vao imaginar que as pessoas que ensinaram este sistema duranteseculos, com a proliferayao de epiciclos de que ele necessitava, de trintaa setenta e cinco, conforme as exigencias de exatidao que se fazia,acreditavam realmente nisso, nesses epiciclos. Elas nao acreditavam, dejeito nenhum, que 0 ceu fosse feito como as pequenas esferas armilares.Fabriearam-nas, com seus epiciclos, e vi recentemente, num corredor doVaticano, uma bonita coleyao del as, regulando os movimentos de Marte,de Venus, de Mercurio. E necessario urn certo numero desses epiciclos,que devem ser colocados em tomo da pequena bola para que esta respondaao movimento, mas jamais alguem acreditou nisso seriamente. Manter asaparencias que ria dizer simplesmente dar conta do que se via em funyaode uma exigencia de principio, 0 pressuposto da perfeiyao da formacircular.

Pois bern, e mais ou menos igual quando se expllcam os desejos pelosistema de necessidades, quer sejam individuais ou coletivas. E sustentoque ninguem mais acredita nisso em psieologia, quero dizer, naquela quedesponta em toda a tradiyao morallsta, nao mais do que se acreditou algumdia nos epieiclos, mesmo no tempo em que se ocupavam deles. Tanto numcaso como no outro, manter as aparencias significa nada mais que quererreduzir as formas supostas perfeitas e exigiveis no fundamento da deduyaoaquilo que nao se pode, de modo algum, de maneira sensata, incluir.

Desse desejo, de sua interpretayao, em suma, de uma etiea racional,tento fundar com voces a topologia de base. Nessa topologia, viramdestacar-se, durante 0 ana passado, a relayao dita de entre-duas-mortes,que nem e assim tao dificil, porque nada mais quer dizer senao isso, quenao ha para 0 homem coincidencia das duas fronteiras que se limitam comessa morte.

A primeira fronteira, quer esteja ligada a urn prazo fundamental aque se chama velhice, envelhecimento, degradayao, quer a um acidenteque rompe 0 fio da vida, a primeira fronteira e aquela onde, com efeito, avida se acaba e tern seu desenlace. Pois bern, e evidente, e desde sempre,que a situayao do homem se inscreve no seguinte: que essa fronteira naose confunde com a da segunda morte, que se pode definir sob a formulamais geral, dizendo que 0 homem aspira a aniquilar-se para se inscrevernos termos do ser. A contradiyao oculta, 0 detalhe a se compreender e queo homem aspira a destruir-se na propria medida em que se eterniza.

Isso voces vao encontrar por toda a parte, inscrito nesse discurso,tanto quanto nos outros. Encontrarao seus trayos no Banquete. Tomei 0

cuidado de ilustra-Io para voces no ana passado, mostrando-Ihes os quatrocantos onde se inscreve 0 espayo em que se desenvolve a tragedia. Naoha uma tragedia que nao seja por ele esclarecida, e precisamente porquealguma coisa foi, historieamente, furtada, para dizer a palavra, aos poetasdo espayo tragieo, do Seculo XVII, por exemplo.

Tomem qualquer uma das tragedias de Racine, e verao que, para quehaja urn ar de tragedia e preciso que, de algum lado, haja inscriyao noespayo de entre-duas-mortes. Andromeda, Ifigenia, Bajazet - sera preci-so lembra-Ios do enredo? -, se alguma coisa subsiste ali que se assemelhea uma tragedia e realmente porque, nao importa a maneira como sejamsimbollzadas, as duas mortes estao sempre alL a que ha entre a morte deHeitor e aquela que esta suspensa na fronte de Astianax nao passa do signade uma outra duplicidade. Que a morte do heroi seja sempre colocadaentre uma ameaya iminente it sua vida e 0 fato de que ele a enfrenta parapassar it memoria da posteridade, forma derrisoria do problema - eis 0

que significam os dois termos, sempre reencontrados, da duplicidade dafunyao mortifera.

Sim. Mas, mesmo que isso seja necessario para manter 0 enquadredo espayo tragico, trata-se ainda de saber como ele e habitado. Queroapenas romper, de passagem' as teias de aranha que nos separam de umavisao direta, para incita-Ios a que se refiram it tragedia de Racine, a essescumes da tragedia crista que permanecem para voces, por todas as suasvibrayoes lirieas, tao rieos em ressoniincias poeticas.

Tomem Ifigenia, por exemplo. Tuda 0 que ali se passa e irresisti-velmente camieo, tirem a prova. Agamenon e caracterizado ai, fundamen-talmente, por seu terror da cena conjugal: - Ei-los. eis os gritos que eutemia escutar, ao passo que Aquiles aparece numa posiyao incrivelmentesuperficial.

E por que? Vou tentar indiear-Ihes daqui a pouco - em funyao desua relayao com a morte, relayao tradicional para a qual ele e Semprecitado em primeiro plano por urn moralismo do circulo mais intimo emtorno de Socrates. A historia de Aquiles, que prefere, deliberadamente, a

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morte que·vai tormi-lo imortal a recusa ao combate que the pouparia avida e, alias, reevocada em toda parte, e na propria Apologia de Socrates,onde Socrates a relata para definir 0 que sera sua propria conduta diantede seus juizes. Encontramos seu eco ate no texto da tragedia raciniana,sob uma outra luz, muito mais importante. Isso faz parte dos lugarescomuns que, no decorrer dos seculos, niio cessam de ressoar, de ressurgirsempre crescentes, com uma ressonancia sempre mais oca e empolada.

o que e que falta, entiio, a tragedia quando esta prossegue para alemdo campo dos limites que the dariam seu lugar na respirayiio da comuni-dade antiga? Toda a diferen9a repousa em alguma sombra, obscuridade,ocultayiio incidindo sobre os mandamentos da segunda morte.

Esses mandamentos niio tem sombra alguma em Racine, pel a raziiode que niio estamos mais no texto onde 0 ocaculo delfico pode realmentese fazer ouvir. Isso niio passa de crueldade, contradiyiio imitil, absurdo.Os personagens epilog am, monologam, dialogam para dizer que existecertamente um mal-entendido, afinal de contas.

Niio e assim, de modo algum, na tragedia antiga. 0 mandamento dasegunda morte esta alL E por estar ali de uma forma velada, pode serformulado e descarregado sobre uma vitima, sem que esta haja merecidoa puni9iio. Em resumo, e este ele niio sabia que inscrevi para voces noalto do grafico, na linha dita da enuncia9iio fundamental da topologia doinconsciente. Ai esta 0 que ja e atingido na tragedia grega, ou melhor,prefigurado - diria assim, se este niio fosse um termo anacronico - comrela9iio a Freud, que 0 reconhece de saida como referindo-se a raziio deser que ele acaba de descobrir no inconsciente.

Se Freud reconhece sua descoberta e seu dominio na tragedia doEdipo niio e porque Edipo matou seu pai, nem porque e1e quer dormir comsua miie. Um mitologo muito divertido, Robert Graves - que juntou umavasta coleyiio de mitos numa obra que niio tem qualquer renome, mas quee bem util e de bom uso pratico, dois pequenos volumes publicados pelosPenguin Books, nos quais reuniu toda a mitologia antiga - acredita poderbancar 0 esperto no que diz respeito ao mito de Edipo. Por que Freud -diz e1e - niio vai buscar seu mito entre os egipcios, onde 0 hipopotamoe reputado por dormir com a miie e destruir 0 pai? Por que niio 0 chamoude complexo de hipopotamo? E ele acredita ter, com isso, dado umaestocada certeira na barriga da mitologia freudiana.

Mas niio e por esta raziio que Freud escolheu Edipo. Muitos outrosherois alem do Edipo siio 0 lugar dessa conjunyiio fundamental. 0 motiv..Qde Freud encontrar sua figura fundamental na tragedia do Edipo e 0 ele;;a;;s{ibia, que tinha matado seu pai e dormia com sua miilE.. --

Eis, portanto, relembrados os term os fundamentais de nossa topo-logia. Esse lembrete era necessario para continuar a analise do Banquete,

a saber, para que voces percebessem 0 interesse de que seja agora Agatiio,o poeta tragi,co, quem vem fazer seu discurso sobre 0 amor.

Mas devo ainda prolongar essa pequena pausa para esclarecer meupropOsito quanto ao que, pouco a pouco, atraves deste Banquete, promovodiante de voces sobre 0 misterio de Socrates.

Este misterio de Socrates, dizia-lhes outro dia que por urn momento tivea sensa9iio de me matar com isso. Ele niio me parece insituavel. E ejustamente porque acredito, ao contrario, que possamos perfeitamentesitua-lo, que se justifica que partamos dele para nossa pesquisa deste ano.

o que e 0 misterio de Socrates? Vou recorda-Io, nos mesmos termosanotados que acabO<Ief(;artlcular diante de voces, e para que 0 confrontemcom os textos de Platiio, que siio nosso documento.em primeira miio. Umavez que observo que niio e mais inutilmente, ja ha algum tempo, que osremeto a leituras, niio hesitarei em cODvida-los a redobrar a leitura doBanquete, que quase todos fizeram, pela do Fidon, que lhes dara um bornexemplo do metodo socratico, e do motivo pelo qual este nos interessa.

Diremos, pois, que 0 misterio de Socrates - e e preciso voltar aesse documento em primeira miio para faze-lo rebrilhar em sua originali-dade -.iJi instala9iio daguilo a que e1e mesmo chama ipisteme, a ciencia.

IPoderiio checar, no texto, 0 que isso significa. E bem evidente que

ele niio tern, aqui, 0 mesmo sentido nem a mesma tonica que para nos, ja

Ique niio havia, entiio, 0 menor indicio do que se articulou para nos sob arubric a de ciencia. A melhor formula que voces possam dar dessa insta-layiio da ciencia - em que? na consciencia numa posiyiio, numadignidade de absoluto, ou mais exatamente, numa posiyiio de absolutadignidade. Niio se trata de nada mais do que podemos exprimir em nossovocabulario como a promoyiio a uma posi9iio de absoluta dignidade, deum significante como tal. ~tque Socrates chama de ciencia e aquilo qu~se im 6e nec~s!!riamente a toda interlocuyiio em fun9ao de JIma certamanipulayiio, de uma certa coerencia interna, que esta ligada, ou que eleere ligada a unica, Q.!lr~e simpl!Z§ ieferencia ao significante ..

Voces veriio isso, no CFidon; levado ao seu ultimo termo pelaincredulidade de seus interlocutores que, por mais impositivos que sejamos seus argumentos, niio conseguem, niio mais que os outros, cedercompletamente a afirma9iio de Socrates sobre a imortalidade da alma.

I Aquilo a que, em ultima instiincia, ele se refere, e de uma forma cada vezmenos convincente, ao menos para nos, e as propriedades como as do pare do impar. E sobre 0 fato de que 0 numero tres niio poderia de formaalguma receber a qualificayiio de paridade, e sobre coisas assim que

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I repousa sua demonstrayao de que a alma nao poderia receber, por estar

\

no proprio principio da vida, a qualificayao de destrutivel. Verao ate queponto 0 que chama de referencia privilegiada ao significante promovidacomo urna especie de cuI to, de rito essencial, e tudo 0 que esta em questiioquanto ao que traz de novo, de original, de decisivo, de fascinante, desedutor - disso temos 0 testemunho historico - 0 surgimento de Socra-tes no meio dos sofistas.

Segundo termo a destacar do que possuimos desse testemunho -atraves de Socrates, da presenya, desta vez total, de SOCrates, de seudestino, de sua morte e do que ele afirma antes de morrer, fica evidenteque essa prom~ao e coerente com este efeito que lhes mostrei, que e 0

de abolir num homem, de maneira, ao que parece, total, aquilo que YOUchamar, com urn termo kierkegaardiano, de 0 temor e 0 tremor, diante doque? - precisamente, nao diante da primeira, mas da segunda morte.

Neste ponto nao ha mais, para Socrates, hesitayao. Ele nos afirmaque e nessa segunda morte - encarnada em sua dialetica pelo fato de eleelevar a coerencia do significante a potencia absoluta, a potencia de liriicofundamento da certeza - que ele, Socrates, encontrani sem dlividaalguma sua vida eterna.

Sob a condiyao de que voces nao the atribuam mais importiincia doque a que direi, YOUme permitir desenhar a margem, como uma especiede parodia, a figura da sindrome de Cotard. Este infatigavel questionadorde Socrates me parece desconhecer que sua boca e carne, e e nisso que ecoerente a sua afirmayao, nao se pode dizer sua certeza. Nao estaremos aiquase que diante de uma apariyao que nos e estranha, diante de umamanifestayao da qual direi, para empregar nossa linguagem, para me fazercompreender, para andar depressa, que e da ordem do nucleo psicotico?Penso na maneira - muito excepcional, nao duvidem - como Socratesdesenvolve implacavelmente seus argumentos, que nao 0 sao, mas tam-hem formula para seus discipulos, no proprio dia de sua morte, estaafirmayao, a mais afirmativa, talvez, que ja se escutou, referente ao fatode que ele, Socrates, deixa serenamente esta vida por uma vida maisverdadeira, por uma vida imortal. Ele nao duvida de que vai se reunir aoque, nao nos esqueyamos, existe ainda para ele, os Imortais. A nOyao dosImortais nao e eliminavel, redutivel, para seu pensamento. E em funyaoda antinomia entre os Imortais e os mortais, absolutamente fundamentalno pensamento antigo, e nao menos, acreditem-me, no nosso, que assumevalor seu testemunho vivo, vivido.

\ Resumo, entiio. Este infatigavel questionador, que nao e de belas'palavras, que rejeita a retorica, a metrica, a poetica, que reduz a metafora,

\

que vive inteiramente no jogo, nao da carta foryada, mas da questaoforyada, e que ve ai toda a sua subsistencia, engendra diante de nos,desenvolve durante 0 tempo de sua vida 0 que YOUchamar de uma

"formidavel metonimia cujo resultado, igualmente atestado historicamen-te, e esse des~jo que se encarna nurna afirmayao de imortalidade. Imorta-lidade, diria, fixa, triste imortalidade negra e dourada, escreve Valery,este desejo de discursos infinitos.

No alem, com efeito, se esta certo de se reunir aos Imortais, eletambem esta, como diz, quase certo de poder continuar, durante a eterni-dade - com interlocutores dignos de si, aqueles que 0 precederam etodos os outros que irao juntar-se a ele -, seus pequenos exercicios.Admitam que essa conce~ao, por satisfatoria que possa ser para aquelesque gostam de quadro alegorico, e ainda assim urna imaginayao que cheirasingularmente a delirio. Discutir 0 par, 0 impar, 0 justo, 0 injusto, 0 mortal,o imortal, 0 quente e 0 frio, e 0 fato de que 0 quente nao poderia admitirem si 0 frio sem enfraquece-Io, sem se retirar em sua essencia de quentea parte, como nos e longamente explicado no Fidon como principia dasraz6es da imortalidade da alma, discutir isso durante a eternidade e umaconcepyao muito singular da felicidade.

Vamos pOr as coisas em seu relevo. Urn homem viveu assim aquestiio da imortalidade da alma. Direi mais - a alma, tal como ainda amanipulamos e tal como ainda nos sobrecarrega, a nOyao, a figura da almaque tern os, e que nao e aquela que se fomentou durante todas as ondas daheranya tradicional, a alma com que temos aver na tradiyao crista, estaalma tern como aparato, como armadura, como eixo metallco em seuinterior, 0 subproduto desse delirio de imortalidade de SOCrates. Vivemosainda nisso.

Q que quero simplesmente aqui demonstrar para voces e a energiaea afirmayao socratic a referente a alma como imortaI. E PQr que? Eviden-temente que nao e pela importiincia que the possamos atribuir nos temposatuais, pois e bem claro que, depois de alguns seculos de exercicio, emesmo de exercicios espirituais, 0 grau, se assim posso dizer, da crenyana imortalidade da alma e, em todos os que tenho diante de mim, crentesou descrentes, dos mais temperados, como se dizque a escala e temperada.Nao, nao e disso que se trata. Se lhes peyo que se remetam a prom~ao da~ortalldade da alma nes~a ep-;;Ca,sobre certas bases, por urn homem que,~ marcas gue fez, deixou estupefatos seus contemporiineos por seugiscurso, e para que voces se interroguem sobre 0 seguinte, que tern toda!1 sua importiincia. Para que este fenomeno se tenha podido produzir, para

, que urn homem, que tern sobre 0 Zaratustra de Nietzsche a vantagem deter existido, tenha conseguido aceder a esse mesmo Assimfalou ..., comose diz, 'L~e e que precisaria ter sido, para Socrates, 0 seu desej~?

Eis a questiio crucial que acredito poder apontar-Ihes, e tanto maisfacilmente quanto jli descrevi longamente diante de voces a topologia quelhe dli seu sentido. ",•••r-

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Pe/Yo-Ihes que abram qualquer um dos dililogos de Platao numapassagem que se refira diretamente a pessoa de Socrates, para verificar 0born fundamento do que lhes digo quanto a posi/yao decisiva, paradoxal,de sua afirma/yao da imortalidade, e daquilo sobre 0 que ela esti fundada,a saber, a ideia que e a sua, da ciencia, na medida em que a situo como apura e simples promo/yao ao valor absoluto da fun/yao do significante naconsciencia. A que responde a posi/yao que ele introduz? A que atopia?Este termo, referente a Socrates, nao e meu, voces sabem. A que atopiado desejo? --=- -- Atopos, um caso inclassificavel, insituavel. Atopia, nao se podemeter em parte alguma. E disso que se trata. Ai esti 0 que 0 discurso deseus contemporiineos murmurava a respeito de Socrates.

Para mim, para nos, essa atopia do desejo sobre a qual coloco umponto de interroga/yao nao coincide, de certo modo, com 0 que poderiachamar de uma certa pureza topica? - na medida em que ela designa <>ponto central onde, em nossa topologia, 0 espa/yo do entre-duas-mortesesti em estado puro, e esvazia 0 lugar do desejo como tal. 0 desejo aliDao passa de seu lugar, na medida em que nao passa, para Socrates, de~esejo de discurso, de discurso revelado, revelando para sempre. Daitesulta a atopia do sujeito socratico, se e que jamais, antes dele, foiocupado por algum homem tao purificado este lugar do desejo.

A esta pergunta, nao respondo. Exponho-a. Ela e verossirnil, e nosda, ao menos, um primeiro balizamento para situar aquela que e nossaquestao, que nao podemos eliminar a partir do momento em que aintroduzimos pela primeira vez. E, afinal, nao fui eu quem a introduziu,ela ja estava introduzida desde que percebemos que a complexidade daquestao da transferencia nao e absolutamente limitivel aquilo que se passano sujeito dito paciente, no analisado. E em conseqiiencia disso, coloca-sea questao de articular, de uma maneira urn pouco mais avan/Yada do quefoi feito ate agora, 0 que deve ser 0 desejo do analista.

Nao basta falar agora da katharsis, purifica/Yao, se posso dizer, dogrosso do inconsciente no analista. Tudo isso fica muito vago. E precisofazer justi/Ya aos analistas que, hli algum tempo, nao se contentam comisso. Nao para critica-Ios, mas para compreender com que obsticuloestamos lidando, e preciso perceber que nao estamos nem no comecinhodaquilo que, no entanto, se poderia articular ta~ facilmente, sob forma dequestao, com referencia ao que se deve ser obtido em alguem para que elepossa ser um analista. Dizem: e preciso que ele saiba agora um pouquinhomais da dialetica de seu inconsciente. Mas 0 que sabe ele disso exatamen-te, afinal? E, principalmente, ate onde 0 que ele sabe disso precisou ir,

f com rela/Yaoaos proprios efeitos do saber? E formulo para voces, simples-t mente, esta questao: 0 que deve restar de suas fantasias? Sabem que souI capaz de ir mais longe e de dizer sua fantasia, se e que existe uma fantasia

f fundamental. Se a castra/yao e aquilo que se deve aceitar no ultimo termoda analise, qual deve ser, enta~, 0 papel da cicatriz da castra/yao no er6sdo analista?

Estas sao questoes mais faceis de expor do que de resolver. E porisso mesmo que nao se as expoem e, acreditem-me, tambem nao iriaexpo-Ias no vazio, so para fazer cocegas na imagina/yao de voces, se naopensasse que deve existir urn metodo, um metodo enviesado, ate mesmoobliquo, ate mesmo de atalho, para trazer algumas luzes a essas questoesas quais nos e, evidentemente, impossivel no momenta responder plena-mente. Tudo 0 que lhes posso dizer por ora e que nao me parece que aquiloa que se chama a rela/Yaomedico-paciente, com 0 que implica de pressu-.postos, de preconceitos, de mela/yo pululante, com aspecto de bicho dequeijo, nos perrnite avan/yar bastante nesse sentido.

Trata-se, portanto, para nos, de ten tar articular e situar 0 que deveser, 0que e fundamentalmente 0 desejo do analista - e isso, segundo"balizas que podem, a partir de uma topologia ja esbo/Yada, ser designadascomo coordenadas do desejo, pois nao podemos encontrar nossas balizasidoneas referindo-nos as articula/yoes da situa/yao para 0 terapeuta ou parao observador, e em nenhuma das no/yoes de situa/yao tais como nos saoexpostas numa fenomenologia que se elabora.a nossa volta. Pois Sl desejodo analista nao e tal que possa se bastar por uma referencia diadica,JI,!aoe a rela/yao com 0 paciente que pode, por uma serie de elimina/yoes eexclusoes, nos dar a sua chave. Trata-se de algo mais intrapessoal.

Isso tambem nao quer dizer que 0 analista deva ser urn Socrates,nem um puro, nem um santo. Sem duvida, esses exploradores que saoSocrates, ou os puros, ou os santos, podem nos dar algumas indica/yoesrelativas ao campo que esta em questao. Isso nao e dizer bastante -pensando bern, e a este campo que referimos toda a nossa ciencia, entendoexperimental. Mas e justamente devido ao fato de que e por meio delesque a explora/yao e feita que possamos talvez definir, e em termos delongitude e de latitude, !!.S coordenadas que 0 analista deve ser capaz deatingir para, simplesmente, ocupar 0 lugar que e 0 seu, 0 qual se definecomo a<mele que ele deve oferecer vago ao desejo do paciente para quese realize como desejo do Outro.

E nisso que 0 Banquete nos interessa, que nos e util de explorar. E~azao do lugar privilegiado que all ocupam os testemunhos sobreSocrates, na medida em que se supoe que este texto 0 coJoca diante de nosas voJtas com o.l2roblema d~ amor.

Creio ter dito 0 bastante para justificar que abordemos 0 problemada transferencia pelo comentirio do Banquete. Creio ter sido necessarioque recordasse essas coordenadas no momenta em que vamos entrarnaquilo que ocupa 0 lugar central, ou quase central, desses celebresdialogos, a saber, 0 discurso de Agatao.

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esta absolutamente fora de questao que aquele que fala, a saber, Agatao,nao saiba muito bern, ele mesmo, 0 que faz.

As coisas vao a tal ponto que, no auge de seu discurso, Agatao nosdiz: E alem disso, YOUiinprovisar nesse ponto dois pequenos versos deminha lavra.

Ele se exprime nestes termos - Eirenen men en anthr6pois, 0 quequer dizer: 0 amor e 0 fim da bagun~a. Singular con~ep~ao. Epreciso. quese dig a que ate esta modula~ao idi~~ca, ninguem havla d~sco~~do d~sso.

Mas, para por os ping os nos 11,ele acrescenta:. Pelaguel de galen:n,o que significa que tudo entra em pane. Calmana no mar. ~ pre~lsolembrar-se do que quer dizer calmaria no mar para os anugos; .1SSOsignifica que nada mais anda, os navios ficam ~loqueados em .Aulis,_ equando isso acontece em alto-mar, fica-se exceSSlvamente entedl~~o, ta~entediado como quando isso acontece na cama. Evocar, a proposlto doam or, Peteguei de gatenen, e claro que so se pode estar brincando. 0 amore 0 que faz voces entrarem em pane, e 0 que os faz fazer fiasco.

Isso nao e tudo, diz ele em seguida: nao ha mais vento nos ventos.Recome~a-se: 0 amor, nao ha mais amor, nenemian anemon. Isso,

alias, soa como os versos para sempre comicos de uma certa tradi~ao,como esses dois versos de Paul-Jean Toulet:

Sob 0 duplo omamento de urn nome, suave ou sonoro.Niio, ele nada mais e que Nanino e Nonoro.

Sera Aristofanes, sera Agatao quem ocupa 0 lugar central? Pouco importadecidir. Sao os dois, certamente, que ocupam 0 lugar central, ja que tudoo que e antes demonstrado, aparente~ente, se encontr~, ao che~ar a vezdeles, a partir dai recuado a desvalonzado, e 0 que val se segUlr e nadamenos que 0 discurso de Socrates.

Sobre 0 discurso de Agatao, 0 poeta tragico, haveria a se dizer urnmundo de coisas, nao apenas eruditas, que nos arrastariam a detalhes, atemesmo a uma historia da tragedia, a qual, alias, ja dei ha pouco urn certodestaque. 0 importante nao e isso, mas faze-Ios perceber 0 seu lugar naeconomia do Banquete.

Voces leram isso, ha cinco ou seis paginas na tradu~ao francesa deRobin, na cole~ao Guillaume Bude. Vou toma-Io, ate 0 seu climax, e ve.r~oporque. Lembro que estou aqui menos para fazer-Ihes urn comentanoelegante do que para conduzi-Ios aquilo para que 0 Banquete pode, oudeve, nos servir.

o minima que se pode dizer do discurso de Agatao e que e1eimpressionou desde sempre os leitores por sua extraordinaria sofistica, nosentido moderno, comum, pejorativo, do termo. 0 tipo dessa sofistica e 0

de dizer que 0 Amor nem comete injustira, nem a sofre da parte de umdeus, nem contra um deus, nem da parte de um hamem, nem contra umhomem. Por que? Porque nao hd violencia de que ele padera, se padece.de alguma coisa, pois todos sabem que a violencia nao toca no ~mor.Portanto, tambim nao hd violencia alguma no que ele faz, e que seJa seufeito, pois e de bom gradD - dizem-nos - que rodas, em tudo, se poemas ordens do amor. Ora, as caisas sabre as quais a bom grado estd deacordo com 0 bam grado sao aquelas proclamadas justas pelas Leis,soberanas da cidade. Moral: 0 am or e 0 que esta no principio das leis dacidade e assim por diante. Como 0 am or e 0 mais forte de todos os desejos,, . . ,a irresistivel vohipia, ele sera confundldo com a temperan~a, pOlS e atemperan~a que regula os desejos e as vohipias. De direito, 0 amor devepois se identificar com a posi~ao da temperan~a.

Manifestamente, e divertido. Quem se diverte? Seremos apenas nos,os leitores? Estariamos errados se acreditassemos sermos os unicos.Agatao, certamente, nao esta aqui em posi~ao secundaria, quando maisnao fosse porque, ao menos no principio da situa~ao, ele e 0 amado deSocrates. Vamos dar a Platao 0 credito de julgar que ele se divirta,tambem, com 0 que YOUchamar, doravante, e 0 justificarei mais ainda emseguida, de discurso macarr6nico do tragi co. Mas estou certo, e vocestambem ficarao, depois de 0 terem igualmente lido, de que estariamosenganados se nao compreendessemos que nao somos apenas nos, e Platao,a nos divertinnos aqui. Contrariamente ao que disseram os comentadores,

Estamos neste registro. E, alem disso, !witen, 0 que quer dizer nacama, num bercinho, nao ha mais ventos nos ventos, todos os ventos sedeitaram. Depois, Hypnon t 'eni kidei. Coisa singular, 0 amor nos traz 0

sonGem meio as preocuparoes, poderiamos traduzir a primeira vista, masreparem bem no sentido dessas cadencias e dess~ kedos. . ..

o termo grego e sempre rico em subentendldos que nos penruunamrevalorizar singulannente aquilo que urn dia 0 Sr. Benveniste, sem duvidacom grande benevolencia para conosco, mas apesar.disso talvez deixand.ode fora algo de essencial por nao seguir Freud, aruculou sobre as ambl-valencias dos significantes para nosso primeiro numero de La Psychana-lyse. 0 kedos nao e simplesmente a preocupa~ao, e tambem ? parentesco.o hupnon t 'eni kedei'0 esbo~a, para nos, como parente por alian~a de umaperna de elefante, como se encontra em alguma parte, em Levi-Straus?Este hupnos, sono tranqililo, t'eni kedei', nas rela~Oes com a famihaaparentada pelo casamento, parece-me digno de coroar os versos inc0~-testave1mente feitos para nos sacudir, se ainda nao tivermos compreendl-do que Agatao esta de brincadeira. . .

Alias, a partir desse momento, ele se solta, hteralmente, e nos dlZque 0 amor e aquilo que nos libera, nos desembara~a da crenra de quesomos estranllOs uns aos outros. Naturalmente, quando se esta possuido

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pelo amor, percebe-se que fazemos todos parte de uma grande familia, ee realmente a partir dai que se esta aquecido e em casa. E assim por diante,isso continua durante linhas. Deixo-Ihes isso, para 0 prazer de suas noites,para que lambam os bei~os.

Estiio de acordo que 0 amor e, realmente, 0 artesao do humor faci!,que ele bane todo mau humor, que ele e liberal e incapaz de ser mal-intencionado? Ha ali toda uma enumera~ao sobre a qual gostaria de medeter longamente com voces. 0 amor e dito ser 0 pai de Tryphe, deAbrotes, de Khlide, de Kharites, de Himeros e de Potos. Porle-se traduzir,a primeira vista: Bem-estar, Delicadeza, Langor, Grafa, Paixao. Serianecessario mais tempo do que aquele de que dispomos aqui para executaro duplo trabalho que consistiria em encontrar 0 paralelo dos termos gregose confronta-Ios com 0 registro das fa~anhas e da honestidade no amorcortes, tal como havia recordado para voces no ana passado. Seria-Ihes,entiio, facH ver que e totalmente impossivel contentar-se com a aproxima-~ao feita em nota pelo Sr. Leon Robin com 0 Mapa do Paraiso,7 como sepoderia fazer com as virtudes do Cavalheiro na Minne, que ele, alias, naoevoca.

Poderia mostrar-Ihes, com 0 texto na mao, que nao ha um so dessestermos que se preste a um tal parale1o. Truphe, por exemplo, que secontenta em traduzir por bem-estar, e utilizado pela maioria dos autores,e nao somente os autores c6micos, com as conota~oes mais desagradaveis.Em AristOfanes, por exemplo, 0 termo designa aquilo que, numa mulher,numa esposa, e de repente introduzido na paz de urn horn em, suaspretensoes insuportliveis. A mulher dita Truphera e uma insuportavelesnobezinha, aquela que nao cessa, sequer por urn instante, de apregoardiante do marido a superioridade de seu pai e as qualidades de sua familia.E assim por diante. Nao ha urn unico desses term os que nao seja habitual-mente, e na grande maioria dos autores - quer se trate, desta vez, dostragicos, ate mesmo de poetas como Hesiodo - conjugado, justaposto aoemprego de autadia, significando uma das form as mais insuportliveis dahubris e da enfatua~ao.

So quero indicar-Ihes essas coisas de passagem. Continuemos. 0amor e cheio de cuidados para com os bons, em compensafao jamais lheacontece ocupar-se dos maus, na lassidiio e na inquietude, no fogo dapaixao e nojogo de expressao, etc. Essas sao tradu~Oes que nao significamabsolutamente nada, pois voces tern em grego enpono, en phobo, en logo,o que quer dizer, em apuros, no temor, no discurso. Kybnernetes, epibdtese aquele que segura 0 Ierne; e tambem aque1e que esta sempre pronto adirigir. Em outras palavras, e bastante divertido. Pono, phobo, potM, logoestiio na maior desordem. Trata-se sempre de produzir 0 mesmo efeito deironia, ate mesmo de desorienta~ao que, num poeta tragico, nao tern outrosentido senao sublinhar que 0 amor e aquilo que e realmente inclassifica-

vel, 0 que vem se colocar atravessado em todas as situa~oes significativas,o que nunca esta em seu lugar, 0 que esta sempre fora dos eixos.

Nao se'trata de que esta posi~ao seja ou nao defensave1, e certamen-te, com todo 0 rigor, nao e ai que estli 0 ponto maximo do discursoreferente ao amor no Banquete. 0 importante e que seja na perspectiva do

Ij.. , d db" d' bertapoeta traglco que nos sera a 0 so re 0 amor 0 umco lScursO a eI completamente derrisorio. E aUm do mais, para frisar 0 fundamento dessainterpreta~ao, basta dizer a conclusao de Agatao. Que este discurso,minha obra, diz ele, seja, a Fedro, minha oferenda ao deus, uma misturatao perfeitamente dosada quanta sou capaz defazer mais simplesmente,co mpolldo, na medida do que me e possivel, 0 jocoso e 0 serio.

o proprio discurso e afetado, se assim podemos dizer, por suaconota~ao, discurso divertido, discurso de alguem que diverte, e que naoe ninguem menos que Agatiio como tal, isto e, enquanto aquele de quemse esta festejando, nao vamos esquecer, 0 triunfo no concursotragico -estamos no dia seguinte ao seu sucesso - que tern 0 direito de falar doamor.

Nao hli nada ai que deva desorienta-Ios. Em toda tragedia situadaem seu pleno contexto, isto e, no contexto antigo, 0 amorsempre faz figurade incidente a margem e, se podemos dizer, a reboque. Longe de ser aqueleque dirige e que corre a frente, 0 amor ali so faz arrastar-se. E 0 propriotermo que vao encontrar no discurso de Agatiio - 0 am or vem no rastrodaquele ao qual, muito curiosamente, numa passagem, ele 0 compara, eque e Ate.

Expus a voces, no ana passado, a sua fun~ao na tragedia. Ate e 0

infortunio, a coisa que se crucifica e jamais se esgota, a calamidade queestli por tras de toda aventura tragic a e que, como nos diz 0 poeta, pois ea Homero que nesta ocasiao me refiro, so se desloca correndo sobre acabefa dos homens, devido a seus pes tenros demais para tocar 0 solo.Assim passa ele, Ate, rapido, indiferente, abatendo e dominando parasempre, curvando as cabe~as e enlouquecendo os homens. Coisa singular,e nesse discurso que se referem a ele para dizer-nos que 0 amor deve ter,como e1e, a planta dos pes bem fragil para s6 poder se deslocar por sobreas cabe~as dos homens. E nesse ponto, para conflrmar mais uma vez 0

carater fantasista do discurso, fa:?:em-se algumas brincadeiras sobre 0 fatode que, afinal, talvez os cranios nao sejam assim tiio temos.

Toda a nossa experiencia da tragedia nos confirma a analise quefazemos do estilo desse discurso. Devido ao contexto cristiio, produz-seurn vazio na fatalidade fundamental, no fechado, no incompreensivel, noinexprimivel, do comando no nivel dll segunda morte. A medida que estecomando nao mais pode ser sustentado, ja que nos encontramos diante deurn deus que nao poderia dar ordens insensatas nem crueis, 0 amor vempreencher este vazio.

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Ifigenia, de Racine, e a mais bela i1ustrayao disso. Esta mutayao eencarnada de alguma forma. Foi-nos preciso chegar ao contexto cristiiopara que Ifigenia nao bastasse mais como personagem tragica, e fossenecessario duplica-Ia com Erifila. Com justiya, nao simplesmente paraque ela possa ser sacrificada em seu lugar, mas por ser a unica verdadeiraapaixonada. Este amor, apresentam-nos como teniivel, horrivel, male fico,tragico, para restituir uma certa profundidade ao espayO da tragedia. E etambem porque este amor, que ocupa muito espayO, com Aquiles, princi-palmente, a cad a vez que se manifesta como amor puro e simples, e naocomo amor negro, amor de ciumes, e irresistivelmente comico.

(Em suma, eis-nos na encmzilhada onde, como sera lembrado nas ultimas

Iconclus6es do Banquete, nao basta, para falar de amor, ser poeta tragico,

,mas e preciso tambem ser urn poeta comico.E nesse ponto que Socrates recebe 0 discurso de Agatiio. Para

apreciar como ele 0 acolhe, seria necessario, como verao em seguida,articula-Io com tanta enfase como pretendi hoje dever faze-Io.

Do am or ao desejo.Limites do saber socratico.Socrates "diocizado n.

Masculino desejavel, jeminino desejante.Metaxu do amor.

Chegamos, pois, no Banquete, ao momento em que SOCrates vai tomar apalavra no epai'nos, ou no enkOmion. Como Ihes disse, de passagem, essesdois termos nao sac exatamente equivalentes, mas nao quis me deter emsua diferenya, 0 que nos teria arrastado a uma discussao um poucoexcentrica.

No elogio do amor, 0 proprio SOCrates nos aflmla, e sua paIavra naopoderia ser contestada em Platiio, que ele sabe alguma coisa: se existe algoem que nao seja ignorante e nas coisas do arnor. Nao percarnos de vistaesse ponto em tudo 0 que se vai passaro

Sublinhei para voces da ultima vez, de urn modo, creio, bastante convin-cente, 0 carater estranhamente derrisorio do discurso de Agatiio.

Agatiio,o tragico, fala do arnor de uma maneira que da·a sensayaode estar bancando 0 bufiio, num discurso macarronico. A todo instante, aexpressao que nos sugere e a de estar exagerando urn pouco. Sublinhci,ate no conteudo e no corpo dos argumentos, bem como no estilo e detalhcda propria e10cUyaO, 0 carater excessivarnente provocante dos versinhoscom que se exprime num momento, e como e desconcertante ver 0 I '1011

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do Banquete culminar em semelhante discurso. Essa leitura niio e nova,se a fun~iio que the atribuimos no desenvolvimento do Banquete podese-Io. 0 caniter derrisorio do discurso de Agatiio deteve, desde sempre,aqueles que 0 leram e comentaram. A ponto de - para citar este perso-nagem da ciencia alemii do come~o do seculo cujo nome, no dia em queo disse a voces, os fez rir, niio sei por que - Wilamowitz-Moellendorffdizer, acompanhando nisso a tradi~iio de quase todos os que 0 antecede-ram, que 0 discurso de Agatiio se caracteriza por sua Nichtigkeit suanulidade. '

Portanto, e muito estranho que Platiio tenha posto esse discurso naboca daquele que precede imediatamente Socrates, e que e, niio vamosesquecer, 0 amado de SOCrates no momento do banquete.

Antes mesmo que Agatiio tome a palavra, intercala-se uma especiede entreato. SOCrates diz algo como: - Depois de tudo 0 que acaba de seouvir, se agora Agatiio acrescentar seu discurso aos outros, como yOUpoder falar? Agatiio, por seu lado, desculpa-se e anuncia, tambem ele,alguma hesita~iio, temor, intimida~iio, quanto a falar diante de urn pUbli-co, digamos tiio esclarecido, tiio inteligente, emphrones. E neste ponto seesb~a urn debate com SOCrates, que come~a a interroga-Io mais ou menosnesses termos: - Entiio e so diante de nos que voce ficaria ruborizado aose mostrar, eventualmente, inferior? Diante dos outros, diante da multi-diio, da balburdia, iria sentir-se sereno, abordando temas menos certos? Eai - meu deus - niio sahem os muito hem em que estamos envolvidos.A inclina~iio poderia ser escabrosa. Seria uma forma de aristocratismo dodialogo? Ou, como e mais verossimil, pois toda a pratica de Socratestestemunha isso, trata-se de mostrar que mesmo urn ignorante, mesmo urnescravo, e suscetivel, se convenientemente interrogado, de despertar emsi mesmo os germes de urn julgamento seguro e da verdade?

Nesse ponto, Fedro intervem: - Agatiio, niio se deixe levar porSocrates. Ele niio tern outro prazer - diz ele expressamente - seniio 0

de falar com aquele que am a, e se nos envolvessemos nesse dialogo niioacabariamos mais. Nesse ponto, Agatiio inicia seu discurso, depois do queSocrates se encontra em posi~iio de retoma-lo.

Para faze-lo, e ate facH demais. Seu metodo logo vai se mostrarfulgurante de superioridade, e faz surgir com a maior facilidade aquiloque vem brilhar dialeticamente no discurso de Agatiio. 0 preconceito deque so pode haver ali uma refuta~iio, um aniquilamento do discurso deAgatiio, denunciando sua inepcia e nulidade, e tal que os comentadorese especialmente aqueles que evoquei ha pouco, pensam que Socrate~hesita em levar longe demais a humilha~iio de seu interlocutor. Haveriaai um motivo explicando por que Socrates se detem e adota a interpreta~iiodaquela que passara a ser, na continua~iio d~ historia, uma figura deprestigio: Diotima, a estrangeira de Mamineia. Se ele faz com que Diotima

fale em seu lugar, se faz-se ensinar por ela, seria para niio permanecer pormais tempo na postura de magisterio diante daquele em quem deu 0 golpcde misericordia.

Faz-se substituir por um personagem imaginario que ensina a elemesmo Socrates a fun de acomodar 0 desconcerto que impos a Agatiio.

You ser co~tra essa posi~iio. Se examinarmos melhor 0 texto, niiopoderemos dizer que seja este, exatamente, 0 seu sentido. Ali mesmo ondese nos quer mostrar, no discurso de Agatiio, a confissiio de seu equivoco- Receio, SOCrates, niio ter sabido absolutamente nada sobre as coisas

. que estava dizendo - a impressiio que nos fica e antes a de alguem queresponde: - Niio estamos no mesmo plano, eu falei de uma maneira quetinha urn senti do, urn substrato; digamos mesmo, no maximo, que faleipor enigma - niio vamos esquecer ainos e ainittomai, que nos lev amdiretamente a propria etimologia do enigma - 0 que disse, disse-o numcerto tom.

E, da mesma forma, lemos no discurso-resposta de Socrates que hauma certa maneira de conceber 0 elog'io que consiste em envolver 0 objetodo louvor de tudo 0 que pode ser dito de melhor. Essa e uma maneira que,por urn momento, Socrates desvaloriza, mas sera mesmo isso 0 .que fazAgatiio? Pelo contrario, parece que, no proprio excesso de seu dlSCurSO,havia ali alguma coisa que pedia, apenas, para ser ouvida. Para ser claro,ao escutar a resposta de Agatiio de uma maneira que, acredito, e a correta,podemos ter, por urn instante, a impressiio, no maximo, de que Socrates,irrtroduzindo aqui sua critica, sua dialetica, seu modo de interroga~iio,encontra-se em posi~iio pedante.

E claro que, niio importa 0 que Agatiio tenha feito, isso fazia partede uma especie de ironia. E Socrates, - esta na cara com que intenyoes- quem muda as regras do jogo. E na verdade, quando Agatiio recome~a:- Ego phanai, 0 Sokrates, etc ... , niio yOUpar-me a anti logar, a contesta-10, mas estou de acordo, va em frente a seu modo, segundo sua maneirade fazer -, vemos ai alguem que se separa e que diz ao outro: - Passemosagora ao outro registro, a uma outra forma de agir com a palavra. Mas niiopoderiamos dizer, como os comentadores, e ate mesmo aquele cujo textotenho diante dos olhos, Leon Robin, que isso seja, por parte de Agatiio,urn sinal de impaciencia.

Para avaliar se 0 discurso de Agatiio pode ser posta entre as aspasdesse jogo realmente paradoxal, dessa especie de proeza sofistica, niiotemos mais que levar a serio, e essa a melhor maneira, 0 que 0 proprioSocrates diz dele. Para utilizar 0 termo frances que melhor Ihe correspon-de, este e urn discurso que 0 sidera, que 0 medusa (meduse) como e ditoexpressamente, ja que Socrates faz urn jogo de palavras com 0 nome deGorgias e a figura da Gorgona. Semelhante discurso, que fecha a porta ao

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jogo dialetico, medusa Socrates, e 0 transforma, diz ele, em pedra. Estenao e urn efeito a se desdenhar.

E certo que Socrates eleva as coisas ao plano de seu metodosUbm~tida a nos p.or Platiio. Trata-se de seu metodo interrogativo, de su~maneIra de questlOnar, e tambem de articular, de dividir 0 objeto, deoperar s~gundo essa diairesis gra~as Ii qual 0 objeto se apresenta aoexame, sltuado de uma certa maneira, cujo registro podemos observar.

a metodo socflitico sugere, assim, na sua origem, urn desenvolvi-mento do saber, que ira constituir urn progresso. Mas 0 alcance dodiscurso agatonesco, no entanto, nao e por ele aniquilado. Ele pertence aurn outro registro, mas permanece exemplar, e desempenha uma fun~aoessencial no progresso daquilo que nos e demonstrado pela via da suces-sao dos elogios referentes ao amor.

Sem duvida, para nos, e significativo, rico em ensinamentos emsugestoes, em quest6es, 0 fato de ser Agatiio, 0 tragico, quem tenha feitodo amor, se podemos dizer, 0 romanceiro c6mico, e de ser AristOfanes 0

c6mico, quem tenha falado dele no seu sentido de paixao, com urn ace~toquase modemo. A.intervenyao de ~Ocrates intervem Iimaneira de ruptura,mas sem desvalonzar, nem reduzIr a nada 0 que acaba de ser enunciadono discurso de Agatiio. Podemos considerar como nada ou como umasimples antifrase, que Socrates de toda a enfase ao fato de que foi kalonlogon, urn belo discurso? A evocayao do ridiculo, daquilo que podeprovocar 0 riso, foi feita com freqiiencia no texto precedente mas Socra-tes nao parece, absolutamente, dizer-nos que seja disso qu; se trata nomomento dessa mudanya de registro. No momenta em que ele dirige acunha que sua dialetica introduziu no tema para dar a este aquilo que seespera da ilumina~ao socratica, e de uma discordancia que temos asensayao, e nao de uma pesagem que tenha sido feita exclusivamente paraanular 0 que se formulou no discurso de Agatiio.

Com a interroga~ao socratica, com 0 que se articula como sendofalan~o propriamente, 0 metodo de Socrates, pelo qual, se me permitire~este Jogo de palavras em grego, 0 eromenos, 0 amado, vai se tomar 0

erotomenos, 0 interrogado, surge urn tema que desde 0 inicio de meucoment:irio anunciei por diversas vezes, a saber, a fun~ao da falta.

Tudo 0 que Agatiio diz, por exemplo, sobre 0 belo, que ele pertencea~ amor, que e urn de seus atributos, sucumbe diante da interroga~ao deSocrates: - Este amor de que falas, e ou nao e amor de alguma coisa?~mar e desejar alguma coisa e te-la ou nao te-la? Pode-se desejar 0 queJa se tern?

Dispenso os detalhes da articula~ao dessa questiio, Socrates vira-apelo avesso com uma acuidade que, como de costume, faz de seu interlo-cutor alguem que ele maneja e manobra. E justamente nesse ponto quereside a ambigiiidade de seu questionario: Socrates sabe que e sempre 0

mestre, mesmo ali onde, para nos, que lemos, poderia, em muitos casos,parecer uma escapatoria. Pouco importa, alias, saber 0 que, nessa ocasiao,pode ou deve se desenvolver com todo 0 rigor. a que nos importa aqui eo testemunho que constitui a essencia da interroga~ao socratica, e tambemaquilo que SOCrates introduz, quer produzir e sobre 0 que, convencional-mente, nosfala.

E-nos demonstrado que 0 adversario nao poderia recusar a conclu-sao, a saber que neste caso, como em qualquer outro, onde 0 objeto dodesejo, para aquele que experimenta esse desejo, e algo que niio estd dsua disposi(:iio, e que niio estd presente, em suma, alguma coisa que eleniio possui, algo que niio e ele mesmo, algo de que estd desprovido, edesse tipo de objeto que ele tem desejo, tanto quanto amor. a texto est:itraduzido, certamente, de forma muito fraca: epitumei, ele deseja, tou meetoimou, e, falando com propriedade, aquilo que niio e jd pronto tou meparontos 0 que niio estd ali, 0 me ekhei, 0 que ele niio tem; 0 me estinautos, 0 que ele proprio niio e, ou eudees esti, aquilo de que ele efaltoso,o que lhefalta essencialmente ..

Eis 0 que e articulado por Socrates naquilo que ele introduz a essediscurso novo. Trata-se de algurna coisa sobre a qual ele disse que nao sesitua no plano do jogo verbal, pela qual 0 sujeito e capturado, cativado,paralisado, fascinado, e e nisso que seu metodo se distingue do metodosofistico. Esse discurso, que prossegue, nos diz, sem preocupa~6es com aelegancia, com as palavras de todo mundo, de faz com que seu progressoresida na troca, no dialogo, no consentimento obtido daquele a quem se

.• dirige. E este proprio consentimento e apresentado como a emergencia, aevocayao necessaria, naquele a quem se dirige, dos conhecimentos queele ja tem.

Ai est:i, como sabem, 0 ponto de articula~ao essencial sobre 0 qualrepousa toda a teoria plat6nica da alma, da natureza, de sua consistenciae de sua origem. Na alma ja estiio, desde sempre, todos esses conhecimen-tos, que bastam algumas quest6es justas para reevocar e revelar. Issoatesta a antecedencia do conhecimento e portanto so podemos supor quea alma participa de uma anterioridade infinita. Ela e, nao apenas imortal,mas existente desde sempre. Ai est:i 0 que se presta Ii reencarnayao,oferece campo Iimetempsicose. Sem duvida, e no plano do mito, diferentedaquele da dialetica, que se situa aquilo que acompanha Ii margem 0desenvolvimento do pensamento plat6nico.

Vma coisa, ai, tem tudo para nos surpreender. Tendo introduzido hapouco 0 que chamei de cunha da funyao da falta como constitutiva darelayao de amor, Socrates, falando em seu nome, se atem a isso. E e justoperguntar-se por que ele e substituido pel a autoridade de Diotima.

Mas, tambem quanta a esta questiio, e resolve-la com demasiadafacilidade dizer que 0 seu objetivo e preservar 0 amor-proprio de Agatiio.

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Se as coisas sao como nos dizem, Platao so teria que aplicar um golpe,absolutamente elementar, de judo ou jiu-jitsu, de vez que Agatiio diz,expressamente: Rogo-lhe, eu nem mesmo sabia 0 que estava dizendo, meudiscurso estli alhures. Mas nao e tanto Agatao quem estli em apuros, maso proprio SOCrates. Como nao podemos supor, de modo algurn, que Platiioteuba concebido mostrar-nos SOCrates como um pedante pesado, depoisdo discurso, certamente leve, de Agatiio, quando mais nao fosse por seuestilo divertido, devemos realmente pensar que, se Socrates renuncia aseu discurso, e por outra razao que nao a de nao poder continuar eleproprio sem ofender demais Agatiio.

Essa razao, podemos de imediato situa-Ia: deve-se Ii natureza doassunto, da coisa, do to pragma em questiio.

Podemos suspeitar, e a continuayao 0 confirma, que e porque se fala doamor que se deve passar por isso, e que Socrates e levado a proceder assim.

Com efeito, observemos 0 ponto sobre 0 qual incidiu sua questiio.A eficacia que produziu como sendo a funyao da falta e, de modo muitopatente, 0 retorno Ii funyao desejante do amor, a substituiyao pelo epitu-mei, ele deseja, do era, ele ama. Pode-se apontar no texto 0 momenta onde,perguntando a Agatiio se este pensa que 0 amor e, ou nao, am or de algumacoisa, ele substitui pelo termo desejo 0 termo amor.

Como a maneira pela qual 0 amor se articula no desejo nao estli,falando propriamente, articulada aqui, pode-se objetar com legitimidadeem nome do proprio metodo que e 0 do saber socratico. Temos 0 direitode observar que a substituiyao e, aqui, um pouco rapida. 0 que nao querdizer, no en tanto, que haja erro,ja que e realmente em tomo da articulayaodo er6s-amor e do er6s-desejo que vai girar, efetivamente, toda a dialeticaque se desenvolve no conjunto do dialogo. Sob a condiyao de que isso sejaapontado de passagem.

Observemos ainda que nao e Ii toa que encontramos aqui, isolado,aquilo que e, falando propriamente, a intervenyao socratica. Socrates vaiate 0 ponto onde 0 que chamei, da ultima vez, de seu metodo, que e 0 defazer incidjr 0 efeito de seu questionamento sobre aquilo a que chamei acoerencia do significante, toma-se manifesto, visivel, no proprio modo deseu discurso. Vejam a maneira pela qual ele introduz sua pergunta aAgatiio: einai tinos 0 Eros eros, e oudenos, sim ou nao, 0 Amor If amor dealguma coisa ou de nada? Como 0 genitivo grego, Ii semelhanya dogenitivo frances, tem suas ambigilidades, alguma coisa pode ter doissentidos, e esses dois sentidos sao articulados de ,uma forma maciya, quasecaricatural, na distinyao feita por SOCrates - Tinos pode querer dizer ser

de alguem, ser 0 descendente de alguem. 0 que pergunto, diz ele, .nao Ifse isso se refer~ a um tal pai ou uma tal mae. Essa e toda a teogorua quefoi tratada no comeyo do dialogo. Nao se trata de saber de que 0 amordescende, de quem, de que deus, ele e - como se diz, meu reino nao edeste mundo. Nao, trata-se de saber, no plano da interrogayao do signifi-cante, de que, como significante, 0 amor e correlativo.

A primeira forma de entender a questiio, SOCrates op6e urn exemploque nao podemos deixar de observar. Isso e a mesma coisa - diz ele -que perguntar, a proposito de Pai: Quando voces dizem pai, em que e queIsso implica? Nao se trata de urn pai real, a saber, 0 que ele tern comofilho, mas sim de que, quando se fala de urn pai, fala-se obrigatoriamentede urn filho. 0 pai e, por definiyao, pai do filho enquanto pai. Voce diria,sem dUvida alguma, se desejasse cIar llrna boa resposta, traduz LeonRobin, que If precisamente de umfilho ou de umafilha que 0 Pa.i If pai.Estamos, ai, no terreno proprio da dialetica socratica, que conslste eminterrogar 0 significante sobre sua coerencia de significante. Neste ponto,SOCrates e forte. Ai ele e seguro. E e isso 0 que permite a substituiyao urnpouco rapida de que falei, entre 0 er6s e 0 desejo. Isso, a seus olhos, e umprocesso, um progresso que e marcado, diz ele, por seu metodo.

Se ele passa a palavra a Diotima, por que isso nao se deveria ao fatode que, no que se refere ao amor, as coisas nao poderiam ir mais alem como metodo propriamente socratico? Tudo 0 demonstra, inclusive 0 propriodiscurso de Diotima.

Por que deveriamos nos espantar com isso? Se 0 initillm do percursosoc'ratico constitui urn passo Ii frente com relayao aos sofistas, seuscontemporaneos, e que um saber, 0 linico certo, nos diz SOCrates noFlfdon, pode se afrrmar apenas pela coerencia desse discurso que edialogo, e que prossegue em tomo da apreensao, como necessaria, da leido significante. Quando se fala do par e do impar, preciso lembra-Ios deque se trata, ai, de urn dominio inteiramente fechado sobre seu proprioregistro? Penso ter tido bastante trabalho aqui, te-Ios exercitado por temposuficiente para demonstrar-Ihes que 0 par e 0 impar nao devem nada aqualquer outra experiencia alem daquela do proprio jogo dos significan-tes. Nao existe nada de par ou de impar, em outras palavras, de contlivel,aIem do que ja foi transportado Ii funyao de elemento do significante, degrao da cadeia significante. Pode-se contar as palavras ou as silabas, massO se pode contar as coisas a partir disso, de que as palavras e silabas jaestiio contadas.

Estamos, realmente, nesse plano quando Socrates se coloca fora domundo confuso do debate dos fisicos que 0 antecedem, bem como dadiscussao dos sofistas que organizam, em niveis diversos, 0 que poderia-mos chamar, de modo sucinto - e voces sabem que so me resolvo a issocom todas as reservas - 0 poder magico das palavras. Socrates afirma,

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ao contrario, 0 saber interno ao jogo do significante. Fonnula, ao mesmotempo, que esse saber inteiramente transparente a si mesmo e 0 queconstitui a sua verdade.

Ora, niio foi nesse ponto que demos um pas so, pelo qual discorda-mos de SOCrates? Q {lasso, sem duvida essencial, de SOCrates assegura aautonomia da lei do significante, e prepara, para nos, esse campo doverbo~ue_lhe tera permitido criticar todo 0 saber humano enquanto tal. Mas anovi$de illLanalise, se 0 que lhes ensino a respeito da revolu~iio freudiana.estli correto, e justamente isso: alguma coisa pode se sustentar na lei do~!gnificant~, niio apenas sem que isso comporte urn saber, mas excluind9-9 expressamente, constituindo-se como inconsciente, isto e, como neces-~do, no seu nivel, 0 eclipse do sujeito, para subsistir ~omo cadeiainconsciente, como constituindo 0 que hli de irredutivel, em seu fundo, n;!ela~iio do sujeito ao significante. .

}E por essa raziio que somos os primeiros, seniio os linicos, a niio

ficar, for~osamente, espantados de que 0 discurso propriamente socratico,, 0 da episteme, do saber transparente a si mesmo, niio possa prosseguirpara alem de urn certo limite referente a tal objeto, quando este objeto _se se trata daquele sobre 0 qual 0 pensamento freudiano pooe projetar as

l primeira~ luzes - quando este objeto e 0 amor." SeJa como for, que me acompanhem ou niio aqui, e claro que, num

dlalogo como 0 Banquete de Platiio, cujo efeito, atraves das eras, semanteve com a for~a que conhecem, com essa constancia, essa potenciainterrogativa, com essa perplexidade, tambem, que se desenvolveu a seuredor, niio podemos contentar-nos com uma raziio tiio miseravel comoessa; se SOCrates faz falar Diotima, e simplesmente para evitar bulirdemais com 0 amor-proprio de Agatiio.

Se me pennitem uma compara~iio que conserva todo seu valorir6nico, suponham que eu tenha que desenvolver para voces 0 conjuntode minha doutrina sobre a analise, e que, ao faze-Io, num certo ponto passea palavra a Fran~oise Dolto; voces diriam - Ai hli qualquer coisa, porque sera que ele estli fazendo isso? Isso, certamente, supondo-se que seeu the passasse a palavra niio seria para faze-Ia dizer bobagens. Niio seriaeste 0 meu metodo, e alem disso teria dificuldades para coloca-Ias em suaboca.

Isso incomoda muito menos Socrates, como viio ver, pois 0 discursode Diotima se caracteriza pelo seguinte: ele nos deixa, a todo instante,diante de hillncias, que compreendemos bem que niio seja Socrates aassumir. Mais ainda, SOCrates pontua essas hiiincias com toda uma seriede replicas que siio - isso e sensivel, basta ler 0 texto - cad a vez maisdivertidas. As replicas siio inicialmente muito respeitosas, e depois cadavez mais do tipo Voce acha?, e depois, na corltinuaIYiio, Que seja, vamos

ainda ate onde voce me arrasta, e no fmal, vai ficar, claramente; Divir-ta-se, minhafilha, estou escutando, wifalando.

Aqui, nlio posso deixar de fazer uma observa~iio que niio parece terchamado a atenIYiiodos comentadores. AristOfanes, a propOsito do amor,introduziu um tenno que e transcrito, simplesmente, em frances sob 0

nome de direcisme, e que qualifica a Spaltung, a divisiio do ser primitivotodo redondo, a esfera derrisoria da imagem aristofanesca, de cujo valorlhes faleL Ele emprega essa palavra por comparaIYiio a uma praticacorrente no contexto das relaIYoescomunitarias, relaIYOesda cidade, recur-

. so com que jogava toda a polftica na sociedade grega. 0 direcismeconsistia, quando se queria exterminar uma cidade inimiga - e isso aindase faz em nossos dias - em dispersar seus habitantes e colocli-Ios noschamados campos de refugiados. Isso tinha sido feito pouco antes domomento em que 0 Banql!:etefoi publicado, e e mesmo um dos marcosque permite datli-Io, pois existe ali, ao que parece, um certo anacronismo:o acontecimento a que Platiio estaria aludindo, a saber, uma iniciativa deEsparta, passou-se posterionnente ao encontro, presumido, narrado peloBanquete.

Este direcisme e, para nos, bastante evocador. Niio e a toa queempreguei hli pouco 0 tenno Spaltung, evocador da refenda subjetiva. Niioe na medida em que alguma coisa, quando se trata do discurso do amor,escapa ao saber de Socrates, que este se apaga, se "diociza", e faz, em seulugar, falar uma mulher? Por que niio, a mulher que estli nele?

Seja como for, ninguem contesta - e alguns, Wilamowitz-Moel-18ndorff em particular, 0 frisaram - que haja uma diferenIYa de registroentre 0 que Socrates desenvolve no plano de seu metodo dialetico e aquiloque ele nos apresenta a titulo de mito, atraves do que nos restitui 0

testemunho plat6nico. Niio e este 0 caso somente aqui, isto e sempre, notexto, c1aramente destacado. Quando se chega, e em muitos outros camposalem daquele do amor, a um certo tenno que niio pode ser obtido no planoda episteme, do saber, para ir mais alem, e necessario 0 mito.

E muito concebivel para nos que haja urn limite ao plano do saber,se este e unicamente aquilo que e acessivel fazendo-se jogar, pura esimplesmente, a lei do significante. Na ausencia de conquistas experimen-tais bastante avanIYadas, e claro que em muitos dominios, e em dominiosdos quais niio temos necessidade, sera urgente passar a palavra ao mito.

o notlivel e justamente 0 rigor deste enganchamento. A conexiio sefaz no plano do mito. Platiio sempre sabe perfeitamente 0 que faz, ou fazSocrates fazer. Sabe-se que se esta no mito, muthos. Niio falo do mito noemprego comum da palavra, pois muthos legein niio quer dizer isso, massim 0 que se diz. E atraves de toda a obra plat6nica, no Fedon, no Timeu,na Republica, vemos surgir mitos no momento necessario para suprir ahiiincia daquilo que pode ser assegurado dialeticamente.

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Veremos melhor, a partir dai, 0 que se pode chamar de 0 progressodo discurso de Diotima.

Alguem que esta aqui escreveu urn dia urn artigo intitulado, se bemme lembro, Un disir d'enfant. Esse artigo era inteiramente construidosobre a ambigiiidade da expressiio desejo de crian(:a - e a crianya quemdeseja, ou deseja-se ter uma crianya. Niio e simples acidente do signifi-cante se as coisas se diio assim, e a prova disso e que e em tomo dessaambigiiidade que vem, justamente, girar 0 ataque do problema por Socra-tes. Comefeito, 0 que nos dizia Agatiio, afinal? Que 0 Eros era 0 eros, 0

desejo, do belo - no senti do, diria, em que e 0 deus Belo quem deseja. Eo que foi que Socrates Ihe retorquiu? Que urn desejo de belo implica queo belo niio se possui.

Poderiamos ficar tentados a nos desviar dessas argucias verbais, maselas niio tern urn caniter de vaidade, de ponta de agulha e de confusiio. Eo que nos demonstra isso e que e em tomo desses dois termos que se vaidesenvolver todo 0 discurso de Diotima. .

Para bem marcar a continuidade entre Diotima e ele, Socrates nos diz quefoi no mesmo plano, e com os mesmos argumentos de que se serviu comrelayiio a Agatiio, que Diotima introduziu seu dialogo com ele.

A Estrangeira de Mantineia nos e apresentada como urn personagemde sacerdotisa, de maga. Niio nos esqueyamos de que, nesse ponto doBanquete, falam-nos muito das artes da adivinhayiio, da maneira de operara fim de se fazer atender pelos deuses e deslocar as foryas naturais.Diotima e uma sabia nessas materias de feitiyaria, de miintica, como diriao conde de Cabanis, de toda goeteia. a termo e grego e esta no texto.Igualmente, dizem-nos sobre ela alguma coisa Ii qual acho espantoso niiodarem grande importiincia: teria conseguido, por meio de seus artificios,afastar a peste durante dez anos, e em Atenas, ainda por cima. E precisoconfessar que esta familiaridade com os poderes da peste e de natureza anos fazer refletir, e a situar a estatura e 0 percurso da figura de uma pessoaque nos vai falar de amor.

Logo, e neste plano que as coisas siio introduzidas, e Diotimaprossegue respondendo a Socrates, que nesse momenta se faz de ingenuo,ou finge perder seu grego. Ele Ihe formula a questiio: - Entiio, se 0 amorniio e belo, e porque ele e feio? Eis, com efeito, aonde vai chegar aseqiiencia do metodo conhecido por mais ou menos, sim ou nao, presenyaou ausencia. Este e 0 proprio da lei do significante: 0 que nao e belo efeio. Pelo menos, e nisso que implica, com t~do 0 rigor, 0 prosseguimentodo modo comum de interrogayiio de Socrates. Ao que a sacerdotisa esta

em posiyiio de Ihe responder: - Meu filho, niio blasfeme. E por que tudoo que niio e belo seria feio? Diotima nos introduz, entiio, 0 mito donascimento do Arnor, no qual bem vale a pena que nos detenhamos.

Esse mito s6 existe em Platiio. Dentre os inumeraveis relatos miticosdo nascimento do Amor contados pela literatura antiga, e dei-me aotrabalho de recolher uma parte deles, niio ha urn vestigio de nada que separeya com 0 que nos vai ser enunciado aiL No entanto, foi este 0 mitoque ficou sendo 0 mais popular. Parece, portanto, que urn personagem quenada deve Ii tradiyiio no assunto, em suma, urn escritor da epoca daAufkldrung como Platiio, e perfeitamente suscetivel de forjar urn mito, eurn mito que se veicula atraves dos seculos de maneira viva para funcionarcomo tal. Quem desconhece, desde que Platiio 0 disse, que 0 Amor e filhode Poros e Penia 7

Poros, 0 autor cuja traduyiio tenho Iiminha frente, simplesmente porestar diante do texto, 0 traduz, nao sem pertinencia, por Expediente. Seisso significa Recurso, certamente e uma traduyiio valida. Astticia tam-bem,ja que Poros e filho de Metis, que e mais a invenyao que a sabedoria.Diante dele, temos a personagem feminina que vai ser a miie do amor,Penia, a saber, Pobreza, ou mesmo Miseria. Ela e caracterizada no textocomo aporia, a saber, sem recursos. E isso 0 que ela sabe sobre si mesma:recursos, niio os tern. a termo aporia, voces 0 reconhecem, e aquele quenos serve com referencia ao processo filosofico. E urn impasse, aquilofrente a que entregamos os pontos, ficamos sem recursos. Eis, portanto, aAporia femea diante do Poros, 0 Expediente, 0 que parece bastantetsclarecedor.

a que e muito bonito nesse mito e a maneira pela qual a Aporiaengendra Arnor com Poros. No momento em que isso se deu, era a Aporiaquem velava, quem tinha os olhos bem abertos. Contam-nos que ela vierapara os festejos do nascimento de Afrodite, e como qualquer Aporia quese preze, nessa epoca hierarquica, permaneceu nos degraus, pr6ximo daporta. Por ser Aporia, isto e, por nada ter a oferecer, niio entrou na sala dofestim. Mas a felicidade das festas e que, justamente, acontecem coisasali que invertem a ordem comum. Poros adormece. Adormece porqueesta embriagado, e e isso 0 que permite Ii Aporia fazer-se emprenharpor ele, e ter este filhote que se chama 0 Arnor, cuja data de concepyaovai coincidir, portanto, com a data de nascimento de Afrodite. E porisso mesmo, nos explicam, que 0 am or ted sempre alguma relayiioobscura com 0 belo, aquilo de que se vai tratar, com efeito, no desen-volvimento de Diotima. Isso esta ligado ao fato de que Afrodite e umadeusa bela.

jAi estiio as coisas ditas claramente: e 0 masculino que e desejavel,

e 0 feminino que e ativo. Pelo menos, e assim que as coisas se passam no~momenta do nascimento do Arnor.

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Se lhes trago, nesse sentido, a formula de que 0 amor e dar 0 quenae se tem, nada existe ai de foryado, de lhes mostrar urna das minhasinvencionfces. Eevident~ 9.!!.~~e!rataJ!isso me~-!2,ja qu~_ap~b~poria,por <!efif?iya2e por estrutura, nao tem nada a dar, senao sua falta,~Qria>~onstitutiva. A expressao dar 0 que niio se tem en~ontra-se, escrita com

\tOdaS as letras, no indice 202 a do texto do Banquete, aneu tou ekhim logoudounai. E esta, exatamente, a formula, calcada a proposito do discurso.Trata-se ali de dar urn discurso, uma explicayao valida, sem te-Io.

Isso e dito no momento em que Diotima vai ser levada a dizer a que

Ipertence 0 amor. Pois bem, 0 amor pertence a uma zona, a urna forma de

Inegocio, de coisa, de pragma, de praxis, que e do mesmo nivel e da mesmaIqualidade que a doxa, a saber, que existem discursos, comportamentos,

I opini6es - esta e a traduyao que damos ao termo doxa - que saoU Jverdadeiros sem que 0 sujeito possa sabe-Io. A doxa pode ser ate verda-

deira, mas ela nao e episteme - este e um dos enganos da doutrinaplatonica, distinguir seu campo. 0 amor enquanto tal faz parte de umcampo. Ele esta entre a episteme e a amathia, assim como esta entre 0 beloe 0 verdadeiro. Nao e nem urn nem outro. Isso e feito precisamente pararecordar a objeyao de Socrates, objeyao fingida, sem dlivida, ingenua, deque, se ao amor falta 0 belo, entiio ele seria feio. Ele nao e feio. Todo 0

dominio exemplificado pel a doxa, it qual nos reportamos sem cessar nodiscurso de Platiio, pode mostrar que 0 amor, segundo 0 termo platonico,esta metaxi, entre os dois.

Isso nao e tudo. Nao poderiamos nos contentar com urna definiyaotiio abstrata, ate mesmo negativa, do intermediario. E aqui que nossalocutora faz intervir a nOyao do demoniaco, como intermediario entre osimortais e os mortais, entre os deuses e os homens. NOyao, aqui, essencialde se evocar, na medida em que confirma 0 que Ihes disse que deviamospensar sobre 0 que sao os deuses, a saber, que eles pertencem ao campodo real. Os deuses existem, sua existencia nao e absolutamente contestadaaqui. 0 demoniaco, 0 demonio, 0 dai"monion - e existem muitos outrosdeles alem do amor - e aquilo por que os deuses dao a escutar suasmensagens aos mortais, quer estejam adormecidos ou acordados.

Coisa estranha que tambem parece nao ter chamado muito a atenyaoeste estejam adormecidos ou acordados, a quem isso se refere? Aosdeuses ou aos homens? Asseguro-Ihes que, no texto grego, isso e duvido-so. Todo mundo traduz, segundo 0 bom senso, que isso se refere aoshomens, mas esta no dativo, que e precisamente 0 caso onde estiio os theoi"na frase, de sorte que este e urn pequeno enigma a mais, no qual nao vamosnos deter por muito tempo. Digamos simplesmente que 0 mito situa aordem do demoniaco no ponto em que nossa pstcologia fala do mundo doanimismo.

Isso C feito realmente para nos incitar tambem a corrigir 0 que hade surnario na id,iia que fazemos da nOyao de que 0 primitivo teria de ummundo animista. 0 que nos e dito na passagem e que esse C 0 mundo das

\mensagens que diremos enigmatic as, 0 que quer dizer, mas apenas para, os, mensagens onde 0 sujeito nao reconhece a sua propria. Se a de~D..-

erta do inc.onsci.tmt~encial, Lq!te ela no~ permitiu estender 0 ~mR9das mlmsagens que Rodel!!.os aut~Q!i~arpo_ linic9 s~~tido_~o~o. destetermo, na medida em que ele esta fundado no domlll1o do slmbOlico ..~saber, que muitaSdessas l!!ensag~f?s, que a<:reditav~mos se.rem .mens~ge~opacas do real, ~ a nas as noss~ propri~. E isso que C" conqUlstadopornosao mundo dos deuses. Isso, no ponto em que estamos no Banquete,ainda nao foi conquistado.

Da proxima vez, continuarernos, de ponta a ponta, 0 mito de Diotima, etendo-lhe dado a volta verernos porque ele esta condenado a deixar opacoaquilo que e objeto dos louvores que constituern a continuayao do Ban-quete. 0 campo onde se pode desenvolver a elucidayao de sua verdade eapenas 0 que se seguira a partir da entrada de Alcibiades.

Longe de ser urn prolongarnento, uma parte caduca, atc mesmo a serrejeitada, a entrada de Alcibiades c essencial. E somente na ayao que sedesenvolve em seguida entre Alcibiades, Agatao e Socrates que_pode serdada de uma maneira eficaz, a relayao estrutural onde poderelJlos reco-!ilie£.~r aquilo que a descoberta do inconsciente .e a experienc.ia d:t.psi~a-nalise, especialmente a experiencia transferenclal, nos p.enmtem, a nos,

I ~nfim, poder exprimir de urna maneira dialetica;

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ofasdnio pela beleza.A identijicafiio ao supremo amavel.o "ele niio sabia" de Socrates.Ii preciso ser tres para amar.o objeto de cobifa unica.

Chegamos, da uItima vez, ao ponto em que Socrates, falando do amor, fazfalar em seu lugar Diotima.

Marquei com um ponto de interrogaerao essa espantosa substituieraono apogeu, no ponto de interesse maximo do dililogo. ~~rates tr~~ aele a virada decisiva, produzindo a falta no coraerao da questilo sobre 0

amor. a amor, com efeito, so pode ser articulado em tome dessa-falta,pelo fato de que, daquilo que deseja, so pode ter sua falta. Mostrei a voces

\

que essa interrogaerao, em estilo sempre triunfante e magistral, na medidaem que Socrates a faz incidir sobre a coerencia do significante, era 0

essencial de sua diaIetica. E no ponto onde distingue de qualquer outraespecie de conhecimento a episteme, a ciencia que, singularmente, elepassa a palavra, de forma ambigua, liquela que, em seu lugar, vai seexprimir pelo mito. Assinalei-Ihes, naquela ocasiao, que esse termo naoe tilo especificado quanta pode se-Io em nossa lingua, com a distancia quetomamos daquilo que distingue 0 mito da ciencia. Muthos legein e, aomesmo tempo, uma historia predsa e 0 discurso, aquilo que se diz. Eis emque Socrates se fia deixando falar Diotima.

Acentuei por um traero 0 parentesco dessa substituicrao com 0 dice-cisme do qual AristOfanes ja indicara a forma, a essencia, como estandono coraerao do problema do amor. Por uma singular divisao, e a mulher, a

mulher que esta nele, disse eu, talvez, que a partir de um certo momentaSOCrates deixa falar.

Esse c~njunto ou sucessao de formas, essa serie de transformaeroes- no sentido que assume este termo na combinatoria - se ex prime numademonstraerao geometrica. E e nessa transformaerao de figuras, Ii medidaque 0 texto avanera, que tentamos encontrar as balizas de estrutura que,para nos e para Platao que ali nos guia, darao as coordenadas do objetodo dialogo, ou seja, 0 amor.

Voltando ao discurso de Diotima, vemos nele desenvolver-se algumacoisa que nos faz deslizar para cada vez mais longe desse traero originalque Socrates introduziu em sua dialetica, formulando 0 termo "faIta".

Aquilo sobre 0 que Diotima nos vai interrogar, aquilo em direerao aque ela nos conduz, ja se an uncia a partir da questiio que ela traz, no pontoem que retoma 0 discurso de Socrates - 0 que falta liquele que ama?Encontramo-nos ai, imediatamente, transportados para a diaIetica dosbens, sobre a qual pecro que se remetam ao nosso discurso do ana passadosobre a etica. Esses bens, porque os ama, aquele que am a? E, continua ela,para gozar deles. E aqui que se faz uma parada e uma volta atras.

, Sera, pois, de todos os bens que vai surgir a dimensao do amor?

IiDiotima faz aqui uma referencia digna de nota ao que frisamos ser afuncrao original da criaerao como tal, da poresis. Quando falamos de

, poresis, diz ela, falamos de criaerao, mas voce nao percebe que 0 use quefazemos dela e mais limitado, quando e Ii poesia e Ii mlisica que nos

I referimos? A denominaerao do todo serve para designar a parte. Da mesmaforma, toda aspiraerao em direerao aos bens e amor, mas, para que falemosde amor propriamente dito, existe alguma coisa que se especifica. E assimque ela introduz a temlitica do amor do belo. a belO especifica a direcraona qual se exerce a atraerao pela posse, ao gozo de possuir, Ii constituicraode um kterna. Eis 0 ponto onde Diotima nos leva para definir 0 amor.

No desvio do discurso, um traero de surpresa, um saIto nos e muitosuficientemente sublinhado. Este bem, em que se relaciona ao belo, em

: que se especifica, especialmente, como 0 belo? E entao que Socrates, testemunha, numa de suas replicas, seu deslumbramento, essa mesma

sideraerao que ja foi evocada a proposito do discurso sofistico. Diotima,aqui, dli prova da mesma impagavel autoridade com a qual os sofistasexercem sua fascinaerao, e Platiio nos adverte que, neste nivel, ela seexprime exatamente como eles.

a que ela introduz eo seguinte - 0 belo nao tem relaerao com 0 ter,com 0 que quer que possa ser possuido, mas sim com 0 ser, e, falandopropriamente, com 0 ser mortal. .

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\ a proprio do que vem a ser 0 ser mortal e que ele se perpetua pelageraryao. Geraryao e destruiryao, tal e a altemiincia que rege 0 dominio dopereeivel, tal e igualmente a marca que faz disso mna ordem de realidade

. inferior - pelo menos, e assim que isso se ordena segundo a perspectiva'da linhagem socnitica, tanto em Socrates como em Plamo. E e precisa-mente porque 0 dominio do humane e afetado por essa altemiincia da"geraryao e da corrupryao, que ele encontra sua regra eminente noutra parte,mais elevada, no dominio das essencias, que nem a geraryao nem acorrupryao afetam 0 das formas etemas, cuja participaryao e a unica aassegurar aquilo que existe no seu fundamento de ser.

Eo belo? Precisamente, nesse movimento da geraryao que e 0 modosob 0 qual 0 mortal se reproduz, 0 modo pelo qual ele se aproxima dopermanente e do etemo, seu modo de participaryao, fragil, no etemo, nessapassagem, nessa participaryao afastada - pois bern, 0 belo e aquilo que 0

ajuda, se podemos dizer, a franquear as passagens dificeis. a belo e 0

modo de uma especie de parturiryao, nao sem dor, mas com 0 minimo dedor possivel, da penosa conduryao de tudo 0 que e mortal em direryao aoque ele aspira, isto e, a imortalidade . .Todo 0 discurso <!t:.l?iotima articu.la!l funryao da beleza como sendo inicialmente uma ilusao, wna miragemfundamental, pela qual 0 ser pereeivel e fragil e sustentado em sua buscada perenidade, que e sua aspiraryao essencial.

Existe, ali, quase sem pudor, ocasiao para toda uma serie de desli-zamentos que sac outras tantas escamotearyOes. Diotima introduz emprimeiro lugar, como sendo da mesma ordem, a constiincia onde 0 sujeitose reconhece como sendo em sua vida, sua curta vida de individuo, sempreo mesmo, em bora nao haja urn detalhe de sua realidade carnal, desde seuscabelos ate seus ossos, que nao seja lugar de uma perpetua renovaryao. atema subjacente e que nada e jamais 0 mesmo, simplesmenle, tudo corre,tudo muda, e no entanto algo se reconhece, se afirma, se diz ser sempreele mesmo. Eis ao que Diotima se refere, significativamente, para nosdizer que a renovaryao dos seres pela via da geraryao e analoga, e, no fimdas contas, da mesma natureza. Que os seres se sucedam uns apOs osoutros, reproduzindo seu mesmo tipo, 0 misterio da morfogenese, e 0

mesmo que sustenta a forma em sua constiincia.Ha, ai, referencia primeira a morte, e funryao acusada da miragem

do belo como sendo aquilo que guia 0 sujeito em sua relaryao com a morte,na medida em que ele e, ao mesmo tempo, distanciado e dirigido peloimortal. E impossivel, nesse sentido, que voces nao faryam uma aproxima-ryao com aquilo que tentei relacionar, no ana passado, referente a funryaodo belo no efeito de defesa no qual ele intervem, como barreira ao extremodessa zona que defini como do entre-duas-mortes. Se ha dois desejos nohomem, que 0 capturam, por urn lade, na relaryao com a eterniqade-, e poigutro lade, na relaryao de geraryao, com a corrupryao e destruiryao por ela

comportada, e 0 desejo de morte, enquanto inabordavel, que 0 belo I

destinado Jl dissimular. A coisa e clara no proprio comeryo do discurso dlDiotima .

Encontramos aqui 0 fen6meno ambiguo que fizemos surgir a proposito da tragedia. A tragedia e, ao mesmo tempo, a evocaryao, a abordagem do desejo de morte que, como tal, se esconde por tras da evocarya<do Ate, da calamidade fundamental em tome da qual gira 0 destino d<heroi tragico, e e tambem para nos, enquanto convocados a dela participaresse momenta maximo onde aparece a miragem da beleza tragica.

Eis a ambigiiidade em tome da qual disse-Ihes que se operava {deslizamento de todo 0 discurso de Diotima. Deixo que sigam, voce~mesmos, seu desenvolvimento. a desejo de belo, desejo na medida errque se apega a essa miragem, que e aprisionado poi ela, e 0 ~ue respondta presenrya oculta do desejo de morte. a desejo do belo e aquele que:invertendo ~sa fun ao f~z_o sujeito escolher a marca, os -apelos, daquileque lhe_?t:erece 0_ obje~o-,ou alguns dentre os objetos. E aqui que vemos:

"no discurso de Diotima, operar-se 0 deslizamento que, esse belo que allII estava, nao como meio, fa lando propriamente, mas como transiryao, mode/ de passagem, faz com que ele se tome 0 proprio objetivo a ser buscado.De tanto, se 0 podemos dizer, permanecer 0 guia, e 0 guia quem se tomaobjeto, ou melhor, que substitui os objetos que podem ser seus suportes,e nao sem que a sua transiryao seja expressamente marcada no discurso.

Mas a transiryao e falsificada. Diotima foi tao longe quanto possivelno desenvolvimento do belo funcional, do belo na sua relaryao com 0 fimda imortalidade; foi ate 0 paradoxo, ja que ela evoca precisamente arealidade tragica a qual nos referimos no ana passado, ate dizer esteenunciado, que nao deixa de provocar algum sorriso derrisorio: Acreditamesmo que aqueles que se mostraram capazes das mais belas aryoes, comoAlceste - de quem falei no ana passado a proposito do entre-duas-mortesda tragedia - na medida que, em lugar de Admeto, ela aceitou morrer,nao 0 tenham feito para que se falasse disso, para que, para sempre, 0

discurso a tizesse imortal? E e nesse ponto que Diotima se detem, dizendo:- Se p6de chegar ate aqui, nao sei se podera chegar ate a epoptie -,evocando ai a dimensao dos misterios.

Ela retoma, enmo, seu discurso num outro registro, onde 0 que eraapenas lransiryao se loma finalidade. Desenvolvendo a lematica do quepoderiamos chamar de urn donjuanismo plat6nico, ela nos moslra a escalaque se propoe a essa nova fase que se desenvolve sob 0 modo de iniciaryao- vemos os objelos se assimilarem, numa ascensao progressiva, aquiloque e 0 puro belo, 0 belo em si, 0 belo sem mistura. Diolima pass abruscamente a uma tematica que bem parece nada ter a ver com aquela dageraryao, e que vai do amor, nao apenas 0 de urn belo rapaz, mas dessabeleza que h:i em lodos os jovens, a essencia -dabeleza, depois da essencia

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da beleza a beleza etema. Ela toma, assim, as coisas de muito alto, ateapreender 0 jogo, na ordem do mundo, dessa realidade que gira no planofIxo dos astros, que e - ja 0 indicamos - aquilo pelo qual, na perspectivaplatonica, 0 conhecimento alcan~a 0 dos Imortais.

Pe!!so te-Ios feito sufIcientemente sentir a escamotea~iioJ)~la ~l,por uIDlado, afielo-;- iniCialmente definido, ~encontrado, como primordialllQ.£l!minho do ser, se toma a finalidade da peregrinl!~iio, enquanto, por£!!!:fo lado, ~ objeto,_ de inicio apresentado como 0 suporte do belo, ~etoma a transi~iio em dire~iio ao belo.

~ vol tar ~qui aos noss~s proprios termos, pode-se dizet que ll.gefini~iio dialetica do amor, tal como e desenvolvida por Diotima,_ ve1ll~o encontro do que tentamos definir como a fun~ao metonimica no deseJo.J1.gissQque se trata em seu discursQ - de alguma coisa que est~ para_alem~QS.2S objetos, que esta nl!passagem de_um cerJo objetiv~e __<;le~certa rela~ao, a saber, do desejo, atraves de todos os objetos, e ru~mo.J!J!!1la

ersQe~!J.va sem ljmite.Segundo numerosos indicios, poderiamos acreditar que ai esta a

realidade ultima do discurso do Banquete. Isso e, um pouco, 0 que estamoshabituados a considerar desde sempre como a perspectiva do Eros nadoutrina pia tonica.

a erastes, 0 iron, 0 amante, e conduzido rumo a um longinquoiromenos, por todos os iromenoi", tudo 0 que e amavel, digno de seramado, distante, eromenos - ou iromenon, pois este e tambem umafinalidade neutra. a problema, entao, e 0 que significa, 0 que podecontinuar a significar, para alem dessa passagem, desse saIto marcado, 0

que se apresentava, no inicio da dialetica, como ktema, como finalidadede posse.

~ Sem duvida, 0 passo dado por nos marca bem que 0 termo da visadal nao esta mais no nivel do ter, mas no nivel do ser, e igualmente que, nesseprogresso, nessa ascese, trata-se de uma transformaryiio, de um devir do

'sujeito, de uma identifica~ao ultima com esse supremo amavel. Em suma,quanto mais longe 0 sujeito vise, mais tem 0 direito de se amar, se assimse pode dizer, em seu eu ideal. Quanto mais deseja, mais se toma eleImesmo desejavel.

E ai que a articula~ao teologica aponta com 0 dedo para nos dizerque 0 Eros platonico e irredutivel ao que nos foi revelado pelo Agapecristao, na medida em que, no Eros platonico, 0 amador, 0 amor, so visaa sua propria perfei~ao.

Ora, 0 comentario que estamos fazendo do Banquete parece-me denatureza a demonstrar que nao e nada disso.

Platao nao fica nisso, desde que queiramos ver alCm desse destaquee nos perguntar 0 que significa, em primeiro lugar, que Socrates tenha

feito falar Diotima em seu lugar, e, em seguida, 0 que se passa a partir daentrada de Alcibiades no assunto.

Nao nos esque~amos de que Diotima, em primeiro lugar, introduziu 0

amor como nao sendo, absolutamente, da natureza dos deuses, mas simda dos demonios, na medida em que esta ultima e intermediaria entre osImortais e os mortais.

Niio nos esque~amos que, para ilustra-Io e faze-Io sentir, ela se

\

serviu de nada menos que uma compararyiio com aquilo que e, no discursoplatonico, intermediario entre a episteme, a ciencia no sentido soceatico,e a amathia, a ignonlncia, ou seja, a doxa, a opiniao verdadeira, na medida,sem duvida, em que verdadeira, mas tal que 0 sujeito e incapaz de se darconta disso, que ele nao sabe em que e verdadeira.

Sublinhei, com esse fim, duas formulas muito surpreendentes. Aprimeira, aneu tou ekhein logon dounai, caracteriza a doxa - dar aformula sem te-Ia - e faz eco a formula que damos aqui mesmo comosendo a do amor, que e justamente dar 0 que nao se tem. A outra formula,que esta defronte da primeira, e nao menos digna de ser sublinhada, esta,se posso dizer, olhando para a amathia no lade de teas. A doxa, com efeito,tambem niio e ignodincia, pois aquilo que, por sorte, atinge 0 real, aquiloque encontra aquilo que e, To gar tou ontos tunkhanon, como seria isso,absolutamente uma ignoriincia?

E exatamente isso que precisamos sentir, no que poderia chamar demise en scene plat6nica do dialogo. Mesmo se e formulado, de saida, que~s coisas que Socrates conhece bem sao as coisas do amor, ele nii~pode, justamente, falar delas a nao ser permanecendo na zona do ele miosabia. Mesmo sabe.Qdo, ele nao pode falar, ele mesmo, daquilo que sab~,e deve fazer falar alguem que fala sem saber.

E isso 0 que nos permite, por exemplo, colocar no seu devido lugara intangibilidade da resposta de Agatao, quando este escapa a dialetica de

.Socrates, dizendo-Ihe com toda a simplicidade: - Digamos que eu naoI sabia 0 que queria dizer. E justamente por isso. E justamente ai, sob 0

modo tao extraordinariamente derrisorio cujo tom sublinhamos,que estao que constitui a importiincia do discurso de Agatao, sua importiinciaespecial por ter sido posta na boca dopoeta tragico. a poeta tragico, eulhes mostrei, so pode falar de amor de modo bufao, da mesma maneiracomo foi dado a AristOfanes, 0 poeta comico, acentuar seus traryospassio-nais, que confundimos com 0 relevo tragico.

§le naosabia._AqJlLtomUJ~J1Syntid9o_mito introduzido_por 1?i.s>!i-ma do nascimento do Amor. a Amor e concebido durante 0 sono de Poros,

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o filho de Metis, a Inven~ao, 0 todo-sabedor e todo-poderoso, 0 recursopor excelencia. E enquanto ele dorme, no momento em que nao sabe de,mais nada, que se produz 0 encontro do qual se engendra 0 Amor. Aquelaque se insinua por seu desejo para produzir esse nascimento, a Aporia, afeminina Aporia, e 0 irastes, a desejante original na sua posi~ao verda-deiramente feminina que frisei diversas vezes. Ela e defmida, muitoprecisamente, em sua essencia, em sua natureza, vamos acentua-Io, desdeantes do nascimento do Amor, pelo seguinte - que the falta - ela naotern nada de erominon. No mito, a Aporia, a pobreza absoluta, esta a portado banquete dos deuses que se realiza no dia do nascimento de Afrodite,ela nao e reconhecida em nada, ela nao tern em si mesma nenhum dos bensque the dariam direito a mesa dos entes. E justamente nisso que ela estliantes do Amor. A metlifora onde lhes disse que reconhecemos sempre quede amor se trata, mesmo na sombra, a metlifora que restitui 0 eron, 0

irastes ao erominon, falta aqui, por falta do iromino1l no principio.Portanto, e 0 tempo logico de antes do nascimento do Amor que e assimdescrito.

Por outro lado, 0 ele llIiosabia e absolutamente essenciaI. E deixem-me relatar aqui 0 que me veio a cabe~a enquanto tentava, ontem a noite,escandir para voces esse tempo articular da estrutura.

Trata-se do eco deste poem a admicivel no qual escolhi, intencional-mente, 0 exemplo no qual tentei demonstrar a natureza fundamental dametafora. 0 poema, 0 Booz endormi bastaria por si so, apesar de todas asobje~6es que nosso esnobismo pode ter contra ele, para fazer de VictorHugo urn poeta digno de Homero. Voces nao vao se espantar com 0 seueco, que me ocorreu de subito, por te-Io comigo desde sempre, 0 dessesdois versos

Booz nao sabia que uma mulher estava hiE Ruth nao sabia 0 que Deus queria dela.8

Releiam 0 paema para perceber que nenhum dos dados que confe-rem ao drama fundamental do Edipo seu senti do e seu peso eternos faltaa ele, e ate 0 entre-duas-mortes e evocado algumas estrofes mais acima,a prop6sito da idade e da viuvez de Booz.

Hli muito tempo que aquela com quem dormi,Oh, Senhor! deixou meu leito pelo vosso;E estamos ainda, misturados um ao outro,Ela viva pela metade, e eu metade morto.9

o entre-duas-mortes, sua rela~ao com a dimensao tragica evocadaaqui na medida em que constitutiva da transmissao paterna, nada falla aele, e e por isso que este poema e 0 proprio lugar onde encontrarao semcessar a presen~a da fun~ao metaforica. Tudo ai e levado ao extremo, ate

as abeITa~6es, se se pode dizer, do paeta, ja que ele chega a dizer 0 quetern a dizer for~ando os temas de que se serve - Como dormia Jacob,como dormia Judith. Ora, Judith nunca dormiu, foi Holofernes. Poucoimporta, assim mesmo ele e quem tern razao. 0 que se perfil a, com efeito,no fim do paema, e aquilo que exprime a formidavel imagem com a qualele se conclui:

e Ruth se perguntava,Imovel, entreabrindo 0 olho sob seus veus,Que Deus, que ceifador do etemo veriioHavia, ao partir, lan~ado com desleixoEssa foice de DurOno campo dos ceus.IO

A foice com que Cronos foi castrado nao podia faltar, ao final dessaconstela~ao completa que comp6e 0 complexo da paternidade.

Essa digressao, pela qual pe~o-lhes desculpas, sobre 0 ele nao sabia,parece-me essencial para faze-Ios compreender 0 que esta em jogo nodiscurso de Diotima. Socrates, aqui, so pode se colocar em seu saber~emonstrando que,..§obre 0 amor, so existe discurso do ponto onde ele naosabia. Ai estli 0 motivo do que significa a escolha de SOCrates, nessemomento preciso, desse modo de ensinar.

Mas, ao mesmo tempo, isso prova que tambem nao estli ali 0 que{ permite apreender aquilo que se passa com referencia a rela~ao do amor.o que 0 permite e precisamente 0 que vai se seguir, a saber, a entrada deAlcibiades.

o maravilhoso, esplendido desenvolvimento oceamco do discurso deDiotima termina sem que, em suma, SOCrates tenha parecido resistir a ele.

Significativamente, na continua~ao, AristOfanes levanta 0 indicadorpara dizer: - Mesmo assim, deixem-me dizer uma palavra. Acaba-se defazer alusao a uma certa teoria, e com efeito e a sua, que a boa DiotimaempUITOUnegligentemente, com 0 pe. Anacronismo absolutamente signi-ficativo, pois se Socrates diz que Diotima Ihe contou tudo isso outrora,isso nao 0 impede de faze-Ia falar sobre 0 discurso que AristOfanes acabade fazer. Este, e com raziio, tern algo a dizer. Platiio coloca ali urnindicador levantado, mostra que existe alguem que nao estli contente.Vamos ver, por nosso metodo, que eo de nos atermos ao texto, se 0 quese desenvolve em seguida nao temalguma rela~ao com esse dedo, mesmoque esse indicador levantado, em suma, tenha a palavra cortada. E porquem? Pela entrada de Alcibiades.

Aqui, mudan~a a vista.

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E preciso, realmente, apontar de saida em que mundo ele nos fazmergulhar de novo, de repente, depois da grande miragem fascinante.Digo mergulhar de novo, pois esse mundo niio e 0 ultra-mundo, e 0

mundo, simplesmente, onde sabemos, afinal, como se vive 0 amor. Todasessas belas historias, por faseinantes que pare9am, basta urn tumulto, umaentrada de bebados, para nos devolver a ele, como ao real.

Essa transcendeneia onde vimos atuar como um fantasma a substi-tui9iio de urn pelo outro, vamos ve-Ia agora encarnada. Ese, como Ihesensino, e preciso ser tres para amar, e niio apenas dois, vamos constata-Ioaqui.

.Aleibiades entra, e niio e mau que 0 vejam surgir do jeito que esm,ou seJa, com 0 aspecto causado niio so pelo seu estado oficial de embria-guez, mas 0 monte de guirlandas que carrega, manifestamente, tern umasignifica9iio exibicionista, eminente no estado divino em que e1e semantem, de chefe humano.

Nunca se esque9am do que perdemos por niio termos mais perucas.Imaginem 0 que deviam ser os doutos e tambem as frivolas agita90es daconversa9iio no seculo XVII, quando cada urn desses personagens sacu-dia, a cada palavra sua, esses atavios Ieoninos, que eram aIem disso urnrecepmculo para sujeira e piolhos. Imaginem: a peruca do Grande Seculo.Do ponto de vista do efeito miintico, isso nos falta.

Isso niio falta a Aleibiades, que vai direto ao unico personagem cujaidentidade, em seu estado, e capaz de discernir. Gra9as a Deus e 0 donada casa, Agatiio. Ele vai se recostar perto deste, sem saber onde isso 0

coloca, a saber, na posi9iio metaxu, entre os dois, entre Socrates e Agatiio,isto e, precisamente no ponto onde estamos, no ponto onde balan9a 0

debate entre 0 jogo daque1e que sabe e, sabendo, mostra que deve falarsem saber, e aque1e que, niio sabendo, falou, sem duvida, como urnestominho, mas nem por isso deixou de falar muito bern, como frisouSOCrates: Voce disse coisas muito belas. E ai que vem se situar Alcibiades,niio sem dar urn pulo para tras ao perceber que aquele danado do Socratesainda esm la.

Niio e por razOes pessoais que niio yOUlevar ate 0 fim, hoje, a analisedo que e trazido por toda a cena que come9a a passar a partir da entradade Alcibiades. Vou inieia-los, ainda assim, nos primeiros destaques queela introduz.

Pois bem, dig amos, ha uma atmosfera de cena. Niio you acentuar 0

lado caricatural das coisas. Falei, incidentalmente, a prop6sito dessebanquete, de urna assembIeia de bichas velhas, dado que nem todos estiiono frescor da idade, mas assim mesmo eles niio deixam de ter urn certoformato. Alcebiades e alguem importante. E quando SOCrates pede que 0

protejam contra este personagem que niio the permite olhar para maisninguem, niio e porque 0 comenmrio desse Banquete se fez, no decorrer

dos seculos, em catedras respeimveis, no nivel das universidades, comtudo 0 que )sso comporta ao mesmo tempo de nobreza e de embroma9iiouniversal - niio e, mesmo assim, por isso que niio vamos perceber queo que se passa ali e, falando propriamente, ja 0 frisei, de estilo escan-daloso.

A dimensiio do am or esm se mostrando diante de nos sob um modono qual nos e, realmente, preciso reconhecer que deve se desenhar umade suas caracteristicas. Logo de inieio, e claro que ali onde ela se mani-festa no real ela niio tende Ii harmonia. Esse belo em dire9iio ao qualpareeia ascender 0 cortejo das almas desejantes niio parece, decerto,estruturar tudo numa forma de convergeneia.

Cbisa singular, niio e dado, nas manifesta90es de amor, que seconvoque todos os demais a amar 0 que se ama, a se fundir consigo naescalada rumo ao er6menon. Socrates, esse homem eminentemente ama-vel, ja que nos e produzido desde as primeiras palavras como urn perso-nagem divino, a primeira coisa em questiio e que Alcibiades quer guarda-10 para si.

Diriio que niio creem nisso, apoiando-se em todos os tipos de coisasque 0 demonstram. A questiio niio e essa. Acompanhamos 0 texto, e e dissoque se trata. E niio apenas e disso que se trata, mas, falando propriamente,essa dimensiio e que e introduzida aqui.

Trata-se de concorrencia? Se 0 termo for tornado com 0 sentido e afun9iio que Ihes dei na articula9iio desses transitivismos onde se constituio objeto, na medida em que ele instaura entre os sujeitos a comunica9iio,niio. Algo, de outra ordem, se introduz ai. No cora9iio do ato de amor,introduz-se 0 objeto de cobi9a tinica, se podemos dizer, que se constituicomo tal. Trata-se de urn objeto do qual se quer, preeisamente, afastar aconcorreneia, urn objeto que repugna, mesmo, a se mostrar.

Lembrem-se eJe que foi assim que 0 introduzi em meu discurso,fazem agora tres anos. Lembrem-se de que, para Ihes definir 0 objeto ada fantasia, tomei 0 exemplo, em La Regie du jeu de Renoir, de Daliomostrando seu pequeno au tomato, e desse rubor feminino com 0 qual elese afasta, apos ter dirigido seu fenomeno. E na mesma dimensiio que sedesenrola essa confissiio publica, conotada por niio-sei-que vergonhada qual 0 proprio Aleibiades tern tanta consciencia que a desenvolve aofalar.

Sem duvida, estamos na verdade do vinho - isso esm articulado -in vino veritas. Kierkegaard vai retoma-lo, quando relatar, tambem e1e, 0

seu Banquete. Mas e preciso realmente ter franqueado todos os !imites dopudor para falar do amor como fala Aleibiades quando exibe 0 que lheaconteceu com Socrates.

o que ha, ali por tras, como objeto, que introduz no proprio sujeitouma tal vacila9iio?

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Eaqui, na funyao do objeto, na medida em que e indicada adequadamenteem todo este texto, que os deixo hoje, para a ela introduzi-Ios na proximavez.

, Farei girar 0 que lhes you dizer em tome de um termo que esUl noItexto, e cujo uso em grego nos deixa entrever a hist6ria e a funyao queacredito ter reencontrado, do objeto de que se trata. Este termo e a palavraagalma, que nos dizem ser 0 que e oculto por esse sHeno hirsuto que eSocrates ..

Por este termo deixo-os, hoje, no proprio discurso, encerrado 0

enigma.

o agalma e 0 mestre.A fun9iio fetiche.A cilada para as deuses.Do objeto parcial ao outro.Um sujeito e um outro.

Deixei-os, da ultima vez, como uma etapa em nossa fala, as voltas comurn termo sobre 0 qual lhes dizia, ao mesmo tempo, que 0 deixaria ate avez seguinte com todo 0 seu valor de enigma: 0 termo agcilmal

Nao acreditava dizer ta~ bem. Para muitos, 0 enigma era ta~ abso-luto que perguntavam: 0 que? 0 que /oi que ele disse? Sera que vocessabem? Enfim, aqueles que manifestaram essa inquietude, alguem deminha casa pOde dar a seguinte resposta, que prova que, pelo menos emminha casa, a instruyao secundaria serve para alguma coisa: que isso querdizer Q!namento,'en/eite.

Seja como for, essa resposta nao passava de uma resposta a primeiravista, aquilo que todo mundo deve saber. Agallo e en/eitar, ornamen-tar, e agalma significa, com efeilo, a primeira vista, ornamento, en/ei-te. Mas nao e tao simples assim, a nOyao de ornamento, e ve-se logoque isso pode levar longe. De que nos enfeitamos? Para que enfeitar-se? E com que?

Se temos aqui urn ponto central, muitas avenidas devem nos condu-zir a ele. Mas enfim, guardei-o para fazer dele 0 pivo de minha explicayao,esse termo, agalma. Nao vejam nisso uma preocupayao com a raridade,mas antes 0 seguinte, que num texto ao qual atribuimos 0 mais extremorigor, 0 do Banquete, algo nos conduz nesse ponto crucial.

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Este termo foi formalmente indicado no momenta em que Ihes disse quemuda completamente a cena. Apos os jogos de elogio, tais como foramate entiio regrados pelo tema do amor, entra em cena este ator, Alcibiades,que vai fazer tudo mudar.

Nao preciso de outra prova alem da seguinte: ele mesmo muda asregras do jogo, atribuindo-se comautoridade a presidencia. A partir deagora, diz-nos ele, nao e mais ao amor que se vai fazer 0 elogio, mas aooutro, e especificamente, cada urn ao seu vizinho da direita. Isso ja e dizermuito. Se vai-se tratar de amor, e em ato, e e a relayao entre urn e outroque vai ter que se manifestar aqui.

Ja fiz com que observassem urn fato notavel, que se manifesta desdeque as coisas enveredam por este terreno, conduzidas pelo diretor expe-riente que supomos estar no principio deste dialogo. Devo dizer que estasuposiyao nos e confirmada pela incrivel genealogia mental que decorredesse Banquete, da qual apontei da ultima vez 0 penultimo eco, 0 Ban-quete de Kierkegaard, e 0 ultimo,ja 0 nomeei para voces, e 0 Eros eAgape,de Anders Nygren, sempre suspenso a armayao, a estrutura do Banquete.Pois bern, esse diretor experimentado so pode fazer, desde que se trata defazer entrar em jogo 0 outro, com que nao haja apenas urn - hi doisoutros. Em outras palavras, no minimo eles silo tres. Este fato notavel,SOCrates nao deixa escapar em sua resposta a Alcibiades, quando, depoisdaquela extraordinaria confissao, aquela confissao publica, aquela tiradaque esta entre a declarayao de amor e quase, poderiamos dizer, a difama-yao de SOCrates, este the responde: Nao foi para mim que voce falou, maspara Agatiio.

Isso nos faz sentir que passamos a urn outro registro que nao aqueleque indicamos no discurso de Diotima. Tratava-se, ali, de urna relayaodual. Aquele que empreende a escalada em direyao ao amor procede poruma via de identificayao e igualmente, se quiserem, de produyao, sendonisso ajudado pelo prodigio do belo. Ele chega a ter nesse belo seu propriotermo, e identifica-o a perfeiyao da obra do amor. Existe ali uma relayaobiunivoca, que tern por fun a identificayao com este soberano bem quepus em causa no ana passado. Aqui, urna outra coisa substitui, de repente,a tematica do Bern supremo: a complexidade e, precisamente, a triplici-dade que se oferece para nos entregar aquilo em que fayo consistir 0

Iessencial da descoberta analitica, a saber, essa topologia de que resulta,em seu fundo, a relayao do sujeito com 0 simb6lico, na medida em queele e essencialmente distinto do imaginario e de sua captura.

E este 0 nosso termo, e que articularemos, da proxima vez, paraencerrar 0 que teremos tido a dizer sobre 0 Banquete, 0 que me permitiradestacar antigos modelos que lhes dei da topologia intra-subjetiva, na

medida em que e assim que a segunda topica de Freud deve ser compreen-'\ dida. a qU,eapontamos hoje e essencial para alcanyarmos essa topologia,, na medida em que tcmos que alcanya-la sobre 0 tema do amor. E a

il natureza do amor que esta em questiio, e por urna posiyao, por uma: articulayao essencial mas esquecida, elidida, e sobre a qual nos, analistas,j trouxemos, no entanto, a cavilha que permite acusar sua problematica. EI nesse ponto que se concentrara 0 que tenho hoje a Ihes dizer a propositoI do agalma.

E tanto mais extraordinario, e quase escandaloso, que isso nao tenhasido ate hoje valorizado que e de uma n~ao propriamente analitica quese trata. Espero tomar isso palpavel, dentro em pouco, e obter, nesseponto, 0 consentimento de voces.

Agalma, eis como ele se apresenta no texto. Alcibiades fala deSOCrates, e diz que vai desmascara-Io. Voces sabem que Alcibiades entranos menores detalhes de sua aventura com SOCrates. Ele tentou 0 que?Que Socrates, diremos nos, Ihe manifestasse seu desejo. Ele sabe queSOCrates tern desejo por ele, mas 0 que quis foi urn sinal.

Deixemos isso em suspenso. E cedo demais para perguntar porque.Estamos apenas no comeyo do percurso de Alcibfades, e, a primeiraabordagem, ele nao parece se distinguir, essencialmente, do que se disseate entao. Tratava-se, inicialmente, no discurso de Pausiinias, daquilo quese vai buscar no amor, e era dito que 0 que cada urn buscava no outro,troca de boas ayoes, era 0 que ele continha de eromenon, de desejavel. Eexatamente da mesma coisa que parece se tratar agora.

Alcibiades nos diz, a maneira de preiimbulo, que Socrates e alguemcujas disposiyoes amorosas se voltam para os belos rapazes. Sua ignoriin-cia e geral, ele nao sabe nada, ao men os aparentemente. Nesse ponto,Alcibiades retoma a celebre comparayao com 0 sileno, que evocou aocomeyar seu elogio, e que e dupla em seu alcance. Em primeiro lugar, eesta a aparencia de Socrates, que e nada menos que bela. Mas, por outrolado, esse sHeno nao e'simplesmente a imagem que se designa por estenome, e tambem uma embalagem que tern 0 aspecto usual de urn sileno,urn continente, uma maneira de apresentar alguma coisa. Isso devia sereferir a pequenos instrumentos da industria da epoca, pequenos sile-nos que serviam de caixinhas de joias, ou embalagens para oferta depresentes .

.E justamente disso que se trata. Essa indicayao topologica e esse~-cia!. a importante e 0 que esta no interior. Agalma bem pode guere~ dlz.~r,0_~I!!ento _ouenfeite, mas aqui, antes de mais nada, joia, objeto precioso- algo gue esta..!!.o inJeriQr. E e de sse modo que Alcibiades nos arraiicaa dialetica do belo, que era ate aqui a via, 0 guia, 0 modo de captura, acaminho do desejavel. Ele nos tira do engano e a proposito do proprioSocrates.

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Saibam - diz ele - que em aparencia SOCrates e apaixonado porbelos rapazes, oute ei tis Kalos esti. Mas 0 fato de que urn ou outro sejabelo, melei auto ouden, isso nao 0 altera em nada, nao lhe da a menorimportancia, ao contrario, despreza-o, kataphronei, a urn ponto tal quevoces nem fazem ideia, tosouton oson an eis oietein, voces nao podemnem imaginar. E, a bem da verdade, 0 objetivo que ele persegue - qualsera, justamente? Sublinho-o porque ele esta bem ali no texto - estaexpressamente articulado neste ponto, em que nao apenas nao sao os bensexteriores que ele procura, a riqueza por exemplo, a que cada urn ate ali- somos delicados - dissera que nao era 0 que se buscava nos outros,mas tampouco era qualquer dessas outras vantagens que de alguma formapodem parecer proporcionar a makaria, uma felicidade, upo pletons, aquem quer que seja. E inteiramente errado interpretar isso aqui como setratasse de desdenhar os bens que sao bens para a multidiio. 0 que erejeitado e justamente aquilo de que se falava ate enta~, os bens em geral.

Por outro lade, diz-nos Alcibiades, seu aspecto estranho nao deveimpressiona-los, ele se faz de ingenuo, eironevomenos, interroga, bancao bobo para conseguir 0 que quer, comporta-se realmente como umacrianrya, passa 0 tempo dizendo gracinhas. Mas, spouddsantos de autou- nao, como se traduz, quando ele se pi5eserio, mas sim sejam serios,prestem bem atenr;iio- abram 0 sileno. Anoikhthentos, entreaberto, naosei se alguem jamais viu os agalmata que estao no interior.

Portanto, Alcibiades logo vai duvidar muito de que alguem jamaistenha podido ver de que se trata. Sabemos que nao apenas e esse 0 discursoda paixao, mas e 0 discurso da paixao em seu ponto mais estremecedor,a saber, aquele que esta contido por inteiro na origem, antes mesmo quese explique. Ele esta ali, e vai partir com os passos pesados, devido a tudoo que tem para nos contar. Eessa, pois, real mente a linguagem da paixao.

Ja ha esta relaryao unica, pessoal - Ninguem jamais viu 0 que estaem questao como me aconteceu ver. E eu 0 vi. Encontrei-os esses agal-mata, a tal ponto divinos - khrysa, preciosos, de DurO - totalmentebelos, tao extraordinarios que nao havia senao urna coisa a fazer, enbrakhei e 0 mais depressa possivel, pelos caminhos mais curtos, fazer tudoo que SOCrates pudesse ordenar, Poeiteon, 0 que deve ser feito, 0 que setoma dever, e tudo 0 que agrada a Socrates comandar.

Nao penso ser inutil articular semelhante texto passe a passo. Naose Ie isso como se Ie France-Soir ou 0 International Journal of Psychoa-nalysis.

fTrata-se de algo cujos efeitos sao surpreendentes. Por urn lado, esses

agalmata, no plural, nao nos e dito, ate segunda ordem, 0 que sao. PorIoutro lado, isso acarreta de subito uma subversao, uma submissao aslordens daquele que os possui. Nao encontram ai alguma coisa de magia,'que ja Ihes apontei em tome do Che vuoi? E realmente esta chave, este

,/corte essencial da topologia do sujeito que comerya em 0 que quer voce?IEm outras palavras: Existe um desejo que seja realmente a sua vontade?Ora, continua Alcibiades, como eu acreditava que era a serio,

quando ele falava de te eme hora - traduz-se, a flor da minha beleza -e comerya toda a cena de seduryao.

Nao iremos mais longe por hoje. Tentaremos fazer sentir aquilo quetoma necessaria a passagem do primeiro tempo para urn outro, a saber,porque e preciso a todo custo que Socrates se desmascare. Vamos apenasnos deter nesses agalmata.

Deem-me 0 credito de reconhecer que nao e a este texto que remonta, paramim, a problematica do agalma. Nao ,que isso tivesse 0 menor inconve-niente, pois 0 texto basta para justifica-Io, mas YOU contar-Ihes a historiatal como ela e.

Sem que eu possa propriamente data-Io, meu primeiro encontro comagalma foi urn encontro, como todos os encontros, imprevisto. Foi numverso da Hecuba de Euripedes que este termo me chamou a atenryao, haalguns anos, e compreenderao facilmente porque. Foi urn pouco antes doperiodo em que fiz entrar aqui a funryao do falo, no lugar essencial que aexperiencia analitica e a doutrina de Freud nos mostram que ele ocupa naarticularyao entre a demanda e 0 desejo, de sorte que nao deixei de mesurpreender, de passagem, com 0 emprego do termo na boca de Hecuba.

Hecuba diz: Para oode vao me levar, para oode vao me deportar? Atragedia de Hecuba se situa, com efeito, no momenta da tomada de Troia,e, dentre todos os lug ares que ela considera em seu discurso, esta Delos.Sera este lugar ao mesmo tempo sagrado e pestilento? Como sabem, lanao se tinha 0 direito nem de parir, nem de morrer. E ali, na descriryao deDelos, ela faz alusao a urn objeto famoso no local. A maneira pela qualfala dele sugere que fosse uma palmeira. Essa palmeira, diz ela, eodinos agalma dias, listo e, odinos, a dor, agalma dias, este ultimotermo designa Latona. Trata-se do parte de Apolo, e e 0 agalma da dorda divindade.

Reencontramos a tematica do parte, mas assim mesmo bastantemudada, pois ha ali aquele tronco, aquela arvore, aquela coisa magicaerigida, conservada como urn objeto de referencia atraves das eras. Issonao pode deixar - pelo menos para nos, analistas - de despertar 0

registro da tematica do falo, na medida em que sua fantasia esta all, noso sabemos, no horizonte situado por esse objeto infantil. E 0 fetiche queele permanece nao pode deixar de ser tambem para nos 0 eco dessasignificaryao.

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E claro que agalma nao pode ser traduzido ali, de fonnaalguma,por omamento ou enfeite, nem mesmo, como se ve freqiientemente nostextos, por esmtua. Muitas vezes, Theon agalmata, quando e traduzidorapidamente, acredita-se que isso cole, e que se trata, no texto, de esmtuasdos deuses.

Estiio vendo por que acredito que este seja um tenno a se apontarnessa significa~iio, com 0 acento oculto que preside ao que e preeiso quese fa~a para se manter na via dessa banaliza~ao que tende sempre a apagaro sentido verdadeiro dos textos. Cada vez que encontrarem agalma,tomem muito cuidado. Mesmo que pare~a tratar-se de esmtuas dos deuses,olhem hem de perto e vao perceber que se trata sempre de outra coisa.

Nao estamos brincando aqui de adivinha~6es. Dou-}hes ~ chave daquestiio, dize~do-lheLq,1!..e_e ll~ao f~tiche <!9 objeto que_ese.mpr.e~g<ntua<!a.

Nao estou dando aqui um curso de etnologia, nem mesmo delingiiistica, e nao yOU, nesse senti do, enveredar pela fun~ao fetiche daspedras redondas no centro de um templo, do templo de Apolo, porexemplo, pois isso e coisa muito conheeida. Voces veem, com muitafreqiieneia, 0 proprio deus representado. 0 que eo fetiche de certa tribo,por exemplo, da curva do Niger? E algo de inominavel, de infonne, noqual pod em se derramar ocasionalmente, enormes quantidades de liquidosde diversas origens,mais ou menos viscosos e imundos, cuja supersti~aoacumulada, indo do sangue Ii merda, constitui 0 sinal de que ali esmalguma coisa em tomo da qual todas as espeeies de efeitos se concentram.o fetiche e, em si mesmo, algo bem diferente de uma imagem ou um icone,na medida em que estes seriam reprodu~ao.

Este poder especial do objeto pennanece na base do uso, cuja tonica,mesmo para nos, ainda e conservada nos termos "idolo" ou "lcone". 0termo "idolo", no emprego que dele faz Polieuto, por exemplo, quer dizer,isso nao vale nada, se pode jogar no chao. Mas, mesmo assim, se disserem,a respeito de Fulano ou Fulana, E meu {dolo, isso nao quer dizer simples-mente que fazem disso uma reprodu~ao, deles ou de voces, mas sim quefazem com isso algo diverso, em tomo do qual alguma coisa se da.

Tampouco se trata para mim de procurar aqui a fenomenologia dofetiche, mas sim de mostrar-Ihes a fun~ao que este ocupa, em seu lugar.Para faze-Io, posso lhes indicar que tentei, com todas as minhas for~as,percorrer rapidamente as passagens que nos restam da literatura gregaonde e empregado 0 termo agalma. Se nao as leio todas para voces, e sopara ir mais depressa. Saibam, simplesmente, que e da multiplicidade dodesenrolar de significa~6es que lhes des taco a fun~ao central, que se devever no limite dos empregos. Pois, naturalmente, na linha do ensinamentoque lhes fa~o, nao temos a ideia de que a etimologia consista em encontraro sentido na raiz.

\ A raiz de agalma nao e faeil. Os autores a aproximam de agavos,'1 deste termo(ambiguo que e agamai, eu admiro, mas tambem eu invejo,

tenho citimes de, que vai dar agazo, suportar com dificuldade, que vai emdire~ao a agaiomai, que quer dizer estar indignado. Os autores que estiio

\ com careneia de raizes, quero dizer, de raizes que tragam com elas umsentido, 0 que e absolutamente contrario ao principio da lingiiistica,destacam daigal ougel, ogel degelao, ogal que e 0 mesmo que emglene,a pupila, e em galenen, que outro dia lhes eiteide passagem, 0 mar quebrilha por estar perfeitamente liso. Em suma, uma ideia de brilho esmescondida ali na raiz. Aglaos, Aglae, a brilhante, ai esm para nos dar umeco familiar. Isso nao vai contra 0 que temos a dizer. So 0 coloco, aqui,

.~entre parenteses, porque nao e mais que uma oportunidade de lhes mostraril as ambigiiidades desta ideia, que a etimologia nos leva, nao em dire~ao a\ urn significante, mas em dire~ao a uma significa~ao central. Pois podemosnos interessar tambem, nao pelo gal, mas pela primeira parte da articula-~ao fonemlitica, a saber, aga, que e, propriamente, aquilo em que 0 agalmanos interessa em sua rela~ao ao agathos.

No genero, sabem que nao fa~o cara feia diante do alcance dodiscurso de Agatiio, mas prefiro ir, direto, Ii grande fantasia do Cratilo.Verao, ai, que a etimologia de Agatiio e agastos, admiravel. Deus sabeporque ir buscar agaston, 0 admiravel, que existe em toon, 0 rapido. Tale, alias, a maneira pela qual tudo e interpretado no Cratilo. Encontram-secoisas muito bonitas na etimologia de Anthropos, onde hli a linguagemarticulada. Platiio era realmente um grande sujeito.

Agalma, na verdade, nao e para este lado que nos devemos voltara fim de the dar seu valor. Agalma tem sempre rela~ao com as imagens,§.ob a condi~ao _d~ que vejam bem que, como 'em tOdo contexto,.~,sempre_a urn tipo de imagens bem especial. Devo escolher entre asreferencias. Elas'existem em Empedocles, em Heraclito, em Democri-to. Vou ado tar as mais vulgares, as mais poeticas, aquelas que todossabiam de cor na Antiguidade. Vou busca-Ias numa edi~ao justalinearda ]Uada e da Odisseia. Existem, por exemplo, duas ocorrencias naOdisseia.

Em primeiro lugar, no livro III, na Telemaquia. Trata-se dos sacri-ficios feitos para a chegada de Telemaco. Os pretendentes, como decostume, tem um trabalhao, e sacrifica -se ao deus um Bous, 0 que se traduzpor uma vitela, um exemplar da especie bovina. E convoca-S6, especial-mente para isso, um tal de Laerque que e ourives, como Hefafstos,encarregando-o de fazer um omamento, agalma, para os chifres do bicho.Poupo-Ihes os detalhes praticos relativos Ii cerimonia. 0 importante naoe 0 que acontece depois, que se trate de urn sacrificio do tipo vodu, massim 0 que e dito que eles esperam do agalma. Agalma, com efeito, ternuma participa~ao. Isso nos e dito expressamente. 0 agalma e, justamente,

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esse omamento de ouro, e e Ii fome da deusa Atena que e sacrificada. Poisbem, a questao e que, tendo-o visto, Kekharoito, ela se sinta gratificada- vamos utilizar este tenno, ja que e um tenno da nossa Iinguagem. Emoutras palavras, 0 agalma surge como uma especie de cHada para .QS

deuses. Aos deuses, esses seres reais, existem truques que Ihes enchem o.solhos.

Outro exemplo, no Iivro VIII da mesma Odisseia. E a narrayaO datomada de Troia, a famosa historia do grande cavalo que continha em seuventre os inimigos e todos os inforttinios futuros, 0 cavalo prenhe da ruinada cidade. Os troianos, que 0 puxaram para dentro, interrogam-se, per-guntam-se 0 que se vai fazer. Hesitam. E preciso, real mente, erer que essahesitayao foi mesmo mortal para eles, pois so havia duas coisas a fazer.Ou bem, sendo a madeira oca, abrir-Ihe 0 ventre para ver 0 que haviadentro. Ou enta~, tendo-o arrastado ao cume da cidade, deixa-Io ali paraser 0 que? mega agalma. E a mesma ideia de hi poueo, e 0 encanto. Etambem alguma coisa que:ali, e tao embarayosa- para os troiano'S quantapara os gregos. E um objeto insolito. Em suma, e este famoso objetoextraordinario, que ainda esta tao no centro de toda uma serie depreocupayoes contemporaneas - nao preciso evocar aqui 0 horizontesurrealista.

.l?ara os antigos, agalma e tambem algo em tomo do qual pode-se,em suma, atrair a atePyaO divina. Poderia dar-Ihes mil exemplos disso.

Na Hecuba de Euripedes, numa outra passagem, conta-se 0 saerifi-cio de Polixena aos manes de Aquiles. E muito bonito, e temos ali aeXCeyaO que nos da a oportunidade de despertar em nos as miragenseroticas. E 0 momenta em que a heroina ofereee, ela propria, um peitosemelhante, dizem-nos, ao agalma. Nada indica que devamos nos cOnten-tar cOm 0 que isso evoca, a saber, a perfeiyao dos orgaos mamarios naestatuaria grega. Dado que na epoca eles nao eram artigos de museu, creioque se trata, antes, daquilo euja indicayao vemos por toda parte, noemprego que se faz do termo quando se diz que nos santuarios, nostemplos, durante as cerimonias, penduram-se anapto, agalmata. 0 valormagico dos objetos aqui evocados esm muito mais Iigado a evocayao dissoque conhecemos bem, e que chamamos de ex-votos. Para ser claro, parapessoas muito mais proximas do que nos da diferenciayao dos objetos naorigem, os seios de Polixena SaDbelos como santos de ex-votos. E, comefeito, os santos de ex-votos SaDfeitos no-tomo, em moldes, SaD sempreperfeitos.

Nao faltam outros exemplos, mas podemos ficar por aqui. Isso bastaara nos indicar que 0 importante {o sentido brilhante, 0 senti do galante,

pois este tenno vem de gal, brilho no frances antigo. Em suma; de que setrata? - senao daquilo do qual nos, analistas, deseobrimos a[unyaO soho nome do objeto parcial.

A funyao d~ objeto parcial e uma das maiores descobertas da investigayaOanalitica. E 0 que nos, analistas,temQs mais eom que nos espantar nesse~so e que, tendo descoberto coisas tao nomveis, todo nosso esforyo sej~sempre no sentido de apagar sua originalidade.

Diz-se, em algum lugar, em Pausanias, que os agalmata que serelacionavam, em detenninado santuario, com as feiticeiras, e que esta-yam Iii propositalmente para impedir que se desse 0 parto de Alcmena,estavam amudrotera, urn pouco apagados. Pois bern, e isso, nos tambemapagamos 0 mais que pudemos aquilo que quer dizer objeto parcial. Haviaali uma deseoberta, a do lado fundamental mente Q.arcial do objeto namedida em que ele e pivo, centro, chave do ~t~sejo human..Q. Isso bemvaleria que nos detivessemos um instante. Mas nao, qual nada, nossoprimeiro esforyo foi interprem-Io apontando para uma diaIetica da totali-zayao, transfonna-Io no objeto chato, 0 objeto redondo, 0 objeto total, 0

tinico digno de nos, 0 objeto esferico sem pes nem patas, 0 todo do outro,onde, como todos sabem, irresistivelmente nosso amor acaba, encontraseu termino.

Mesmo tomando as eoisas dessa maneira, nao dissemos que esseoutro, enquanto objeto de desejo, talvez sela_a...soma de UIll punhado_deobjetos parciais, 0 que !!-aoe de modo algum sem!<.lbante a urn objeto total.Nao dissemos que aquilo que elaboramos, aquilo que temos que manejardesse fundo que se chama 0 isso, ~Ivez nao passe de urn vasto trofeu detodos esses objetqs. Nao _no horizon.!e de nossa propria ascese, de nossomodelo do amor~ pusemgs outro. No que nao estamos de todo errados.Mas deste outro fizemos 0 outro a quem se dirige essa funyiio bizarraque 'chamamos de- oblatividade. Amamos 0 outro por ele mesmo. Pelomenos, quando se chega ao objetivo e Ii perfeiyao. 0 esmgio genitalabenyoa isso tudo.

Certamente, ganhamos alguma eoisa ao abrir uma certa topologiada relayao com 0 outro, da qual, tambem, nao temos 0 privilegio, ja quetoda uma espeeulayao contemporanea diversamente personalista gira emtomo disso. Mas assim mesmo e muito estranho que haja alguma coisa

\ que tenhamos deixado completa.mente de lado nesse assunto. E somosrealmente foryados a deixa-Ia de lado quando consideramos as coisasdeste ponto de vista particulannente simplificado que sup6e, com a ideiade uma hannonia preestabelecida, 0 problema resolvido, ou seja, que, emsuma basta amar genitalmente para amar 0 outro por si mesmo.

'Nao trouxe comigo, porque Ihe dei outro destino, num artigo queem breve verao publicado, a passagem incrivel sobre a caraeteriologia dogenital que figura no volume intitulado La Psychanalyse d'aujourd'hui.A especie de pregayaO que se desenvolve em tomo dessa idealizayao

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terminal, ja ha muito tempo fiz com que sentissem 0 seu ridiculo. Niiotemos que nos deter nisso hoje mas, para voltar as origens, existe ao menps'uma questiio a se colocar sobre 0 tema. Se 0 amor dito oblativo e apenaso homologo, 0 desenvolvimento, a expansiio do ato genital em si mesmo,que bastaria, direi, para Ihe dar 0 tom, 0 diapasiio, a medida, nem por issodeixa de persistir uma ambigilidade quanta a saber se este outro - a quemdedicamos nossa oblatividade nesse amor todo amor, todo para 0 outro-se buscamos 0 seu gozo, como parece evidente pe!o fato de se tratar dauniiio genital, ou bem sua perfei~iio.

Quando um autor com urn minima de preocupa~iio em escrever numestilo permeavel a audiencia contemporiinea quer evocar ideias tiio alta-

I mente morais, e questoes tiio antigas quanto a da oblatividade, 0 minimoa ser dito para despertli-Ias, ainda assim, e expor sua duplicidade latente,pois afinal termos semelhantes niio se sustentam sob uma forma assim tiiosimplificada, ate mesmo desgastada, a niio ser pelo que lhes e subjacente,a saber, a oposi~iio, inteiramente modema, entre 0 sujeito e 0 objeto.Assim, sera em tomo dessa no~iio que ele com en tara essa tematicaanalitica - tomamos 0 outro por urn sujeito e niio, pura e simplesmente,por nosso objeto.

o objeto de que se trata aqui estli situado no contexto de urn valorde prazer, de frui~iio, de gozo. Ele e considerado por reduzir a urna fun~iioonivalente 0 unico do outro, na medida em que deve ser para nos urnsujeito. Se thermos dele apenas urn objeto, ele sera urn objeto qualquer,urn objeto como os outros, urn objeto que pode ser rejeitado, trocado, emsurna, ele vai ser profunda mente desvalorizado. Eis a tematica subjacentea ideia de oblatividade, tal como articulada quando se nos faz dela 0

correlativo etico obrigatorio ao acesso a urn am or verdadeiro, que seriasuficientemente conotado por ser genital.

Observem que, hoje, estou criticando menos essa ingenuidadeanalitica, e e por isso que me poupo de recordar os textos que a

, testemunham, para em vez disso por em causa aquilo sobre 0 qual elase fundamenta, a saber, que haveria uma superioridade qualquer emfavor do amado, do parceiro no amor, no fato de que este fosse, comodizemos em nos so vocabulario existencial-analitico, consideradocomo urn sujeito.

Que eu saiba, depois de ter dado uma conota~iio tiio pejorativa aofato de considerar 0 outro como urn objeto, ninguem jamais observou queconsidera-Io um sujeito niio e melhor. Vamos admitir que urn objeto valhapor urn outro, sob a condi~iio de darmos ao termo objeto seu sentidooriginal, que visa os objetos na medida em que os distinguimos e podemos

I comunica-Ios. Se e, pois, deploravel que 0 amado jamais venha a se tomarum objeto, sera melhor que ele seja umsujeito? Para responder a isto,basta observar que, se um objeto vale um outro, para 0 sujeito isso ainda

e pior. Pois niio e simplesmente urn outro sujeito que ele vale - urnsujeito, estritamente, e urn outro. ,

o sujeito estrito e alguem a quem podemos imputar 0 que? Nadaalem de ser, como nos, este ser que e enartron ekhein eros, que se exprimeem Iinguagem articulada, que possui a combinatoria, e que pode, a nossacombinatoria, responder por suas pr6prias combina~Oes, que podemos,entiio, fazer entrar em nosso calculo como alguem que combina como nos.

Penso que aqueles que se formaram pelo metodo que inauguramosaqui niio viio me contradizer neste ponto. Esta e a unica defini~iio sadia

I do sujeito e, ao menos, a linica sadia para nos, aquela que permiteintroduzir como urn sujeito entra obrigatoriamente na Spaltung determi-nada pela sua submissiio a Iinguagem.I A partir desses tennos, podemos ver como e estritamente necessarioacontecer que, no sujeito, haja uma parte onde isso fale inteiramente so,'no que, todavia, 0 sujeito permanece suspenso. E trata-se justa!!!..ente desaber - como se poderia chegar a esquecer esta questiio - gual e, nessa"re!a~iiojustamente e!etiva, privilegiada, que e a re!a~iio de amor, a fun~iiodesse fato de que 0 sujeito com 0 qual, dentre todos, temos 0 la~o do amor,seja tambCm 0 objeto do nosso desejo? Se colocarmos em evidencia a

,re!a~iio de amor, suspendendo aquilo que e sua amarra, seu ponto devirada, seu centro de gravidade, seu enganchamento, e impossive! dizerdisso 0 que quer que seja que niio seja uma escamotea~iio.

Ha necessidade de se acentuar 0 correlativo objeto do desejo, poise este'(; objeto, e niio 0 objeto da equivalencia, do transitivismo dos bens,da transa~iio sobre as cobi~as. ~ esta algurna coisa que e visada pelo desejocomo tal, que acentua urn objeto entre todos, por niio ter compara~iio comos outros. E a essa acentua~iio do objeto que responde a introdu~iio, emanalise, da fun~iio do objeto parcial.

'\ P~o-Ihes que observem, nesse sentido, que tudo 0 que da 0 peso, 0ressoar, a tonica do discurso metafisico repousa sobre alguma ambigili-dade. Em outras palavras, se todos os tennos dos quais voces se servemIquando fazem metafisica estivessem estritamente definidos, tivessemapenas, cada urn deles, uma significa~iio univoca, se 0 vocabulario dafilosofia triunfasse, objetivo etemo dos professores, voces niio teriammais nenhuma metafisica a fazer, pois nada mais teriam a dizer. Percebe-riam, entiio, que as matematicas siio muito melhores - ali, podem-seagitar sinais que tem urn sentido univoco, porque niio tern sentido nenhurn.

I Isso quer dizer que, quando voces falam, de uma maneira mais ou menosI apaixon~d~, sobre as. rela~Oes entre 0 .s~jeito e.o objeto, e porque pOem:i sob 0 sUJelto, algo diferente desse sUJelto estnto do qual lhes falava hapouco - e sob 0 objeto tambCm, colocam algo diferente do que acabo dedefinir como algurna coisa que, no maximo, faz limite com a estrita

,equivalencia de urna comunica~iio sem equivoco de um tema cientfflco.

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~e este objeto os apaixona e porque ali dentro, escondido nele, ha 0 objetodo desejo, agalma. E isso que da 0 peso, a coisa pela qual e interessante

, saber onde estli ele, este famoso objeto, qual e sua fun~ao, onde ele operatanto na inter como na intra-subjetividade. Este objeto privilegiado dodesejo culmina, para cada urn, nessa fronteira: nesse ponto limite que lhesensinei a considerar como a metonimia do discurso inconsciente. Esteobjeto desempenha ai urn papel que tentei formalizar na fantasia, e ao qualvoltarei da proxima vez. '- Esse objeto, qualquer que seja 0 modo pelo qual falem dele naexperiencia analitica, quer 0 chamem de seio, falo ou merda, e sempre urnobjeto parcial. E ai que estli a questao, na medida em que a analise e urnmetodo, urna tecnica, que avan~ou nesse campo abandonado, esse campodesacreditado, esse campo excluido pela filosofia por nao ser manejavel,nao ser acessivel a sua diaIetica e que se chama 0 desejo.

Se nao sabemos apontar, numa topologia estrita, a fun~ao do quesignifica este objeto, ao mesmo tempo tao limitado e tao fugaz em suafigura, que se chama 0 objeto parcial, se nao veem 0 interesse do queintroduzo hoje sob 0 nome de agalma, e que e 0 ponto principal daexperiencia analitica - pois bern, e uma pena. Nao posso acreditar nissonem por urn instante, quando constato que, seja qual for 0 mal-entendidoem que isso se baseia, a for~a das coisas faz com que tudo 0 que se diz demais moderno na dialetica analitica gira em torno da fun~ao fundamentaldo objeto.

Nao preciso de outra prova senao desta: a referencia radical aoobjeto enquanto born ou mau e considerada, realmente, na dialeticakleiniana, como urn dado primordial. Pe~o-lhes que detenham seus espi-ritos por urn momento nesse ponto.

Fazemos girar, em nossa elabora~ao urn monte de coisas, e especial-mente urn monte de fun~Oes de identifica~ao. Identifica~ao aquele ao qualdemandamos alguma coisa no apelo do arnor. Se este apelo e rejeitado,Identifica~ao aquele mesmo a quem nos dirigiamos como ao objeto denosso amor, com essa passagem tiio sensivel do amor a identifica~ao.Ierceira especie de identifica~ao, a propOsito da qual e preciso ler urnpouquinho de Freud, seus Ensaios de Psicaruilise, onde verno a fun~aoterceira que assume urn certo objeto caracteristico, 0 objeto na medida emgue ele pode ser 0 objeto do desejo do oUtro a quem nos identificarno~.Em surna, nossa subjetividade, fazemos com que ela se construa intei!!:"mente na pluralidade, no pluralismo desses niveis de identifica~ao a qQechamaremos 0 ideal do eu, 0 eu ideal, que charnaremos, tambem identifi-;;ao, 0 eu desejante .. -- -,

k1as e preciso ainda assim saber onde, nessa articula~ao, se situa efunciona 0 objeto parcial. Observem simplesmente que no atual desenvOI-vimento do discurso analitico, este objeto, agalma, a, objeto do desejo,

quando 0 procuramos segundo 0 metodo kleiniano, ele estli ali de saidaantes de todo 0 desenvolvimento da diaIetica, ele ja estli ali como objetodo desejo. Este peso, este micleo interno, central, do born e do mau objetolfigura em toda psicologia que tende a se explicar e se desenvolver emtermos freudianos. E este born objeto, ou este mau objeto que Melanie'Klein situa na origem, nesse come~o dos come~os que se coloca antesI mesmo do periodo depressivo. Nao estaria af em nossa experiencia,,alguma coisa pOr si so ja suficientemente sinaIetica?

Penso ter feito 0 bastante por hoje dizendo-Ihes que e em tomo dissoque, concretamente, na analise ou fora da analise, pode e deve se fazer adivisao entre as duas perspectivas sobre 0 amor.

,- Uma delas afoga, deriva, mascara, elide, sublima todo 0 concretoda experiencia nessa famosa escalada em dire~ao a urn bem supremo doqual e espantoso que ainda possamos, nos, em analise, guardar vagosreflexos de tres vintens, sob 0 nome de oblatividade, essa especie deamar-em-Deus, se posso dizer, que estaria no fundo de toda rela~aoamorosa. Nurna outra perspectiva, e a experiencia 0 demonstra, tudo giraem torno desse priviIegio, desse ponto tinico, que e constituido em algumaparte por isso que so encontramos nurn ser quando amamos verdadeira-mente. Mas, 0 que e isso? Justamente, agalma, este objeto que aprende-mos a demarcar na experiencia analitica.

Tentaremos, da proxima vez, situar esse objeto na topologia tripla dosujeito, do pequenooutro e do grande Outro, e reconstruir 0 ponto ondeele vem atuar.

E veremos como e apenas pelo outro e para 0 outro que AIcibiades,como todo mundo, quer fazer saber a SOCrates do seu amor.

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o estado de perverstio.Por que Socrates ntio ama.•Eu ntio sou nada ".

A interpretar;tio de Socrates.A revelar;tio que e a nossa.

(

0 importante da mudanya e 0 seguinte: 0 que vai estar em causa e fazero. ~logio, ep(,li"no~,do outro, e e precisamente neste ponto, .quanto aodlalogo, que resIde a passagem da metafora. 0 elogio do outro naosubstitui 0 elogio do amor, mas 0 proprio amor, e isso desde logo.

o amor deste homem, Alcibiades, nao e para mim coisa sem impor-ffincia, diz, dirigindo-se a Agatiio, SOCrates, de quem todos sabem queAlcibiades foi 0 grande amor. Desde que me enamorei dele - veremos 0

sentido que convem dar a esses termos, ele foi 0 seu hastes - nao me emais permitido lanyar um olhar sobre um belo rapaz, nem conversar com

. ninguem sem que ele fique enciumado e invejoso de mim, entregando-sea incriveis excessos. Por pouco nao me cai em cima da forma maisviolenta. Tome cuidado, portanto, e proteja-me, diz ele a Agatiio, pois,deste, igualmeIite, a mania e a furia de amar sao 0 que me atemoriza.

E na continuayao disso que se situa 0 dWogo de Alcibiades comEriximaco, de que vai resultar a nova ordem das coisas. A saber, conven-cionou-se que se farll 0 elogio, cada um por sua vez, daquele que estivera sua direita. 0 epai"nos, 0 elogio de que se vai tratar entao, tem, comolhes disse, !lma funyao simb6lica e, precisamente, metaforica. 0 que eleex rime t~m, com efeito, daquele que fala aquele de quem se fala, umacerta funyao de metafora do amor. Louvar, epai"nein, tern aqui uma funyaoritual, que pode se traduzir nesses termos: falar bem de alguem.

Embora nao se pudesse utilizar este texto no momento do Banquete,j~ q~e ele e bem posterior, Aristoteles na sua Ret6rica, livro I, capitulo 9,1Isungue 0 epai"nos do enk6mion. Disse-Ihes, ate agora, que nao queriaentrar na diferenya entre os dois. Chegaremos ai, no entanto, arrastadospela forya das coisas.

o que distingue 0 epai"nos se ve, muito precisamente, na maneirapela qual Agatao introduziu seu discurso. Ele parte da natureza do objetopara desenvolver, em seguida, suas qualidades. Euma exposiyao do objetoem sua essencia. 0 enk6mion, que temos dificuldade para traduzi-Io emnossa lingu.a, e 0 te~o k?mos, nele implicado, esta ai, sem duvida, poralgum moUvo. Se e precIso encontrar-Ihe algum equivalente em nossalingua, sera algo como paneg(rico. Se acompanharmos Aristoteles, trata-se d~ te.cer a guirl~nd.a dos altos feitos do objeto. Ponto de vista que superao obJeuvo da essenCIa que e a do epai"nos, que the e excentrico.

Mas 0 epai"nos nao e algo que se apresente desde 0 inicio semam~i~ilidade. No momento em que e decidido que se vai tratar de epai"nos,AlcIblades retorque que a observayao feita por Socrates referindo-se aoseu ciume feroz nao comporta uma sO palavra de verda de. E exatamenteo contrario, e ele, este homem, quem, se me ocorre louvar alguem em suapresenya, seja urn deus, seja urn homem, a partir do momento em que sejaoutro, e nao ele, cai sobre mim - e retoma a mesma metafora de ha pouco- to kheire, com grande violencia. .

XI

ENTRE S6CRATES E ALCIBiADES

Ha, pois, agalmata em SOCrates, e foi isso 0 que provocou 0 amor deAlcibiades.

Vamos voltar agora a cena que apresenta Alcibiades em seu discursodirigido a SOCrates, ao que SOCrates responde, dando-Ihe, para falarpropriamente, urna interpretayao. Veremos em que essa apreciayao podeser retocada, mas pode-se dizer que, estruturalmente, a primeira vista, aintervenyao de SOCrates tem todas as caracteristicas de uma interpretayao.

A saber - Tudo 0 que voce acaba de dizer de tiio extraordinario,de tao enorme em sua impudencia, tudo 0 que acaba de revelar, falandode minI, foi para Agatao que 0 disse.

Para compreender 0 senti do da cena que se desenrola entre urn eoutro desses termos, do elogio de Socrates por Alcibiades a interpretayaode SOCrates, e ao que se vai seguir, convem retomar as coisas num nivelum pouco mais acima e em detalhe. Qual e 0 sentido do que se passa apartir da entrada de Alcibiades, entre este e SOCrates?

Disse a voces: a partir da entrada de Alcibiades, nao e mais do amor quese vai tratar de fazer 0 elogio, mas sim de urn outro, designado pela ordem.

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Existe ai um tom, urn estilo, um mal-estar, uma confusao, umaresposta envergonhada de "cale-se", quase em panico, de SOCrates. Cale-se, sera que nao vai segurar sua [(ngua? - traduz-se, com bastanteprecisao. Por Poseidon, responde Alcibiades - 0 que nao e pouco - vocen~o pode protestar, eu 0 proibo. Bem sabe que eu nao faria 0 elogio dequalquer outro na sua presen9a. .

Pois bem, diz Eriximaco, comece, pronuncie 0 elogio de Socrates.Devo infligir-Ihe diante de voces, pergunta Alcibiades, 0 castigo publicoque the prometi? Fazendo seu e1ogio, devo desmascara-Io? E justamenteassim, em seguida, que vai se dar 0 seu desenvolvimento. E, com efeito,tampouco e sem inquieta9ao, como se houvesse ali, ao mesmo tempo, umanecessidade da situa9ao e tambem uma implica9ao do genero que 0 e1ogiopossa ir tiio longe em seus termos a ponto de ridicularizar aquele de quemse fala.

Igualmente, Alcibiades prop6e um gentleman's agreement. Devodizer a verdade? Ao que, Socrates nao se recusa: Convido-o a dize-Ia. Poisbem, diz Alcibiades, deixo-Ihe a liberdade, se eu ultrapassar os limites daverdade, de dizer que minto. Certamente, se acontecer que eu divague,que me perca em meu discurso, nao deve se espantar, tendo em vista 0

personagem inclassificavel - reencontramos ai a atopia -, tiio pertur-bador que voce e. Como nao se confundir no momenta de ordenar ascoisas, kataritmesai, de enumera-Ias e contli-Ias? E eis que come9a 0

e1ogio.o e1ogio, indiquei-Ihes da ultima vez sua estrutura e seu tema.

Alcibiades entra, seguramente, no gelos geloios, 0 risivel, come9ando aapresentar as coisas pela compara9ao que ja frisei. Ela vol tara a aparecerpor tres vezes em seu discurso, a cada vez com uma insistencia quaserepetitiva. SOCrates e, pois, comparado a esse involucro rude e derrisorioconstituido pelo satiro. Deve-se, realmente, de alguma maneira, abri-Iopara ver no interior aquilo que Alcibiades chama, da primeira vez, dea almata theo ~as estlituas dos deuses. Ele ~ontinua, em seguida, cha-mando-as, ainda uma vez, de divinas, admiraveis. Na tercei[a vez, empre-ga 0 termo pgalma aretes, a maravilha da virtude, aC1!!-aravilha das-maravilhas.

De passagem, encontramos essa compara9ao com 0 satiro Marsiasque, no momenta em que se instaura, e levada muito longe. Apesar dosprotestos de SOCrates, e, certamente -.:. e1e nao e flautista - Alcibiadesvolta e refor9a. Nao e simples mente a uma caixa em forma de satiro quecompara Socrates, a urn objeto mais ou menos derrisorio, mas ao slitiroMlirsias especificamente, na medida em que, quando este entra em a9ao,todos sabem, pela lenda, 0 feiti90 que de seu canto se desprende. Esteencanto e tamanho que incorreu nos ciumes de Apolo, que 0 fez esfolarpor ter ousado rivalizar com a musica suprema, divina. A Unica diferen9a

- diz ele - entre Socrates e ele e que, com efeito, SOCrates nao e tlautista.Nao e atraves da music a que ele opera, e no entanto 0 resultado eexatamente da mesma ordem.

Convem aqui nos referirmos ao que Platiio explica no Fedro, arespeito dos estados superiores, se podemos dizer, da inspira9ao, taiscomo sao produzidos para alem do franqueamento da beleza. Existemdiversas formas desse franqueamento, que nao yOU retomar aqui. Dentreos meios utilizados por aqueles que sao deomenous, que tem necessidadedos deuses e das inicia90es, hli a embriaguez engendrada por uma certamusica, que produz um estado a que se chama possessao. E, nem maisnem menos, a esse estado que Alcibiades se refere, quando diz que e issoo que SOCrates produz mediante palavras. Ainda que suas palavras sejamsem acompanhamento, sem instrumento, ele produz exatamente 0 mesmoefeito.

Quando nos acontece ouvir um orador, diz ele, mesmo que seja umorad or de primeira ordem, isso somente nos causa urn certo efeito. Aocontrario, quando e voce que se ouve, ou mesmo suas palavras relatadaspor um outro, ainda que quem as relate seja Pamu phaulos, justamente,

\

um homenzinho de nada, 0 ouvinte, seja ele mulher, homem ou adoles-cente, fica perturbado, como que atingido por um golpe, e, para falarpropriamente katekhometa - somos possuidos por isso.

I Ai esta situ ado 0 ponto de experiencia que faz com que AlcibiadesI considere que em SOCrates estli esse tesouro, esse objeto indefinivel eI precioso que vai fixar sua determina9ao, depois de ter desencadeado seu

Jdesejo. Esse objeto esta no principio do que sera desenvolvido em seguida,com referencia a sua resolu9ao, e depois a suas manobras junto a Socrates.Vamos nos deter nesse ponto.

Aconteceu-Ihe, com Socrates, urna aventura que nao e banal. Tendoassumido essa determina9ao, ele sabia caminhar sobre urn terreno razoa-velmente seguro, pois estava ciente da aten9ao que, ha muito, Socratesdirigia aquilo a que e1e chama seu ora, - traduz-se como se pode -enfim, seu sex-appeal. Parecia-Ihe suficiente que Socrates se declarassepara que ele, Alcibiades, pudesse dele obter,justamente, tudo 0 que estavaem causa, isto e, 0 que e1e define, e1e proprio, como tudo aquilo queSOCrates sabe, pant akousai osapes ontos edei. E este e, entiio, 0 relato desuas diligencias. Mas ja nao podemos nos deter aqui?

Visto que Alcibiades ja sabe que, de Socrates, capturou 0 desejo, 0que faz com que nao esteja certo da complacencia deste? Ja que sabe queele, Alcibiades, e para SOCrates urn amado, um eromenos, porque precisareceber de Socrates 0 sinal de um desejo? Deste desejo, SOCrates nuncafez misterios em momentos passados. Este desejo e re-conhecido, eportanto conhecido, e logo, poderiamos pensar, ja confessado. Entiio, 0que querem dizer essas manobras de sedu9ao? Alcibiades desenvolve sua

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narrativa com uma arte, um detalhe, e ao mesmo tempo uma impudencia,um desafio aos ouvintes, tao claramente sentido como excedendo oslimites, que ele introduz nada menos que a frase que serve a origem dosmisterios: Voces que estao ai, tapem os ouvidos. Trata-se apenas daquelesque niio tem 0 direito de ouvir, e menos ainda de repetir 0 que vai ser dito,e como isso vai ser dito, e melhor que aqueles, os criados, niio escutemnada.

A esse misterio da exigencia de Alcibiades corresponde, afinal, aconduta de Socrates. Se este, com efeito, mostrou-se desde sempre 0hastes de Alcibiades, pode parecer, num outro registro, numa perspectivapos-socnitica, que seja um grande merito 0 que ele demonstra, e que 0

tradutor do Banquete aponta, a margem, como sua temperan~a. Mas, nocontexto, esta temperan~a niio e indicada como necessaria. Socratesmostra ai, talvez, sua virtude, mas qual a rela~iio com 0 assunto que estaem causa - se e verdade que aquilo que nos e mostrado nesse nivel serefere ao misterio do amor?

\' Em outras palavras, estao vendo que tento circundar a situa~iio quese desenvolve diante de nos na atualidade do Banquete, para apreender a

I estrutura desse jogo. Digamos logo que tudo em sua conduta indica que, 0 fato de Socrates recusar-se a entrar, ele pr6prio, no jogo do amor, esta

estreitamente relacionado com 0 seguinte, situado na origem como 0

ponto de partida, e que ele sabe.Ele sabe 0 que esta em questao nas coisas do amor, isto e mesmo,

diz ele, a unica coisa que sabe. E diremos que e porque Socrates sabe quede niio ama.

Com essa chave, vamosdar pleno sentido as palavras com que Socratesacolhe 0 convite de Alcibiades, depois de tres ou quatro cenas nas quaisa escalada dos ataques deste ultimo nos e apresentada num ritmo ascen-dente.

A ambigiiidade da situa~iio beira sempre aquilo que e 0 geloios, 0risivel, 0 comico. E, com efeito, uma cena bufa, esses convites para jantarque terminam com um senhor que vai embora cedo demais, com muitapolidez, depois de se ter feito esperar, que volta uma segunda vez, e queescapa ainda, e com .quem, sob os len~ois, se produz 0 dialogo: -Socrates, estd dormindo? - De modo algum. Deve-se dizer que, parachegar a seu ultimo termo, 0 que esta em questao nos faz passar porencaminhamentos feitos exatamente para nos colocar num certo nivel.

Depois que Alcibiades se explicou sinceramente, e chegou ate adizer-Ihe - eis 0 que desejo, e eu ficaria certamente envergonhado diante

de pessoas que niio 0 compreendessem, estou explicando a voce 0 quequero -, S9crates the responde: Em suma, voce niio e 0 ultimo dosidiotas, se e verdade que quer, justamente, aquilo que possuo, se emmim existe esse poder gra~as ao qual voce se tornaria melhor. Sim, eisso, deve ter percebido em mim algo diferente, uma beleza de umaoutra qualidade, uma beleza que difere de todas as outras e, tendo-adescoberto, poe-se a partir dai na posi~iio de dividi-Ia comigo, ou, maisexatamente, de fazer uma troca, beleza contra beleza, e ao mesmo

11tempo quer trocar aquilo que e, na perspectiva socratica da ciencia, ailusiio, a falacia, a doxa que niio sabe a sua fun~iio, 0 logro da belezapela verdade. E de fato - meu Deus - isso nada mais significa quetrocar cobre por ouro.

IMas, diz Socrates - e ai, convem tomar as coisas tal como siio ditas

- desiluda-se, examine as coisas com mais cuidado, ameinon skopei, deI modo a niio se enganar, pois este eu ouden on, falando propriamente, nada

e. Evidentemente, diz ele, 0 olho do pensamento vai se abrindo a medidaque 0 alcance da vista do olho real vai decrescendo. Voce, com certeza,niio esta nesse ponto. Mas, aten~iio: aqui onde voce ve alguma coisa, euniio sou nada.

o que Socrates recusa nesse momento? 0 que recusa, quando ele ja. \ se mostrou 0 que se mostrou ser, direi quase que oficialmente, em todas

as tiradas de Alcibiades, a ponto de todos saberem que Alcibiades foi seuprimeiro amor? 0 que Socrates recusa mostrar a Alcibiades e algo que

\ assume um outro sentido. Isso seria, se for definivel nos termos que lhes~ei, a metafora do amor.

\ Essa seria a metafora do amor, na medida em que Socrates seadmitirla ;;-mo amado e, direi mais, se admitir~oVJ.o a.!llado, incons-cientemen~. Mas e j~stam_ente porque Socrates sabe que ele~e recus~ ate..r sido, sob ql!alque~ titulo, justificado ou justificavel, homenos, 0

desejavel, aquele que e digno de ser amado.Q.- ue faz com-illle eJe niiQ ame? 0 que faz com que a metaforl!...do

~or niio ~ssa roduzir? Que niio haja substitui~iio do ho!!!eno.Lpelohastes? Que ele niio se manifeste como erastes, no lugar onde havja..o&6menos? E que Socrates so pode recusar a isso porque, para ele, naqaha que seja amavel nele. Sua essencia e este ouden, esse vazio, esseJ1GQ,.e par~ empregar um termO"""quefoi utilizado posteriormente na medita~iioneoplatonica e agostiniana, essa kinosis, que representa a posi~ao centralde Socrates.

Isso e tao verdadeiro que esse termo kinosis, vazio - oposto aoIpleno, de quem? ora, de Agatao, justamente - esta presente logo na

/origem do dialogo, quando Socrates, depois de sua longa medita~iio novestibulo da casa vizinha, chega enfun ao banquete, senta-se junto aAgatiio, e come~a a falar. Acredita-se que ele brinca, que graceja, mas,

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num dialogo tao rigoroso e tao austero, ao mesmo tempo, em seu desen-volvimento, podemos acreditar que nao haja nada ali, que seja so parapreencher? Ele diz: Agatao, e voce quem esta cheio, e como se faz passarde urn vasa cheio para urn vasa vazio urn liquido, com a ajuda de urn fioao longo do qual ele escorre, da mesma fonna irei me encher. Ironia, semduvida, mas que quer exprimir aquilo que e precisamente 0 que Socratesapresenta como constitutivo de sua posi~ao, e que lhes repeti diversasvezes, e isso, na boca de Alcibiades. A saber que, com exce~ao do que dizrespeito as coisas do amor, ele nada sabe. Amathia, inscientia, traduzCicero, for~ando urn pouco a lingua latina. lnscitia e a ignorancia bruta,ao passo que inscientia e 0 nao-saber constituido como tal, como vazio,como apelo do vazio no centro do saber.

Penso que entendem bem 0 que pretendo dizer aqui, ja que lhesexpus a estrutura da substitui~ao, da metafora realizada, que constituiaquilo a que chamei 0 milagre do aparecimento do irastes no proprio lugar

~ em que estava 0 eromenos. Esta l!ill!i, precisamente, aquil~'a falta faz£om que Socra.!.es nao possa senao recusar dar, se assim podemos dizer,_oseu simu acro. Se ele se coloca dianfe -de Alcibiades como incapaz demostrar-Ihe os sinais de seu desejo, e na medida em que recusa ter sidoele mesmo, de ~lguma fonna, uIll.-objeto digno do desejQ de Alcibiades- nem do desejo de qualquer outro.

Observem dessa maneira que a mensa gem socratica, se comportaalgo que diz respeito ao am or, nlio parte, certamente, em si mesmo,fundamentalmente, de urn centro de amor. SOCrates nos e representadocomo urn irastes, urn desejante, mas nada esta mais longe de sua imagemque 0 clarao de amor que parte, por exemplo, da mensagem crista. Nemefusao, nem dom, nem mistica, nem extase, nem simplesmente manda-mento, dela decorrem. Nada se afasta mais da mensagem de Socrates doque amaras teu proximo como a ti mesmo, fonnula que esta notavelmenteausente, em sua dimensao, de tudo 0 que ele diz.

Isso e justamente 0 que, desde sempre, surpreendeu os exegetas,que, em suas obje~6es a ascese do eros, dizem que 0 que e ordenado nessamensagem e 0 amaras, antes de tudo em tua alma, aquilo que te e maisessencial. Existe ali somente uma aparencia, e a mensagem socratica, talcomo nos e transmitida por Platao, nao comete um erro nesse ponto, jaque, como vao ver, a estrutura e mantida. E e exatamente por ser mantidaque ela nos pennite tambem entrever de fonna mais justa 0 misterioescondido sob 0 mandamento cristao.

E tambem por isso que se pode fonnular uma teoria geral do amor,sob qualquer manifesta~ao que seja manifesta~ao de amor. Isso pode, aprimeira vista, parecer surpreendente para voces, mas digam a si mesmosque, uma vez que detenham a sua chave - falo daquilo a que chama ametafora do amor - vao encontra-Ia por tOda"parte.

Falei-Ihes atraves de Victor Hugo, mas h:i tambem 0 livro originalda historia de Ruth e de Booz. Se essa historia se mantem diante de nosde uma fonna que nos inspira - salvo os espiritos maliciosos que so veemali urn caso sordido entre urn velhote e uma empregadinha - e porque,igualmente, supomos essa insciencia - BOOl niio sabia que uma mulherestava la - e que ja, inconscientemente, Ruth e para Booz 0 objeto queele ama. E supomos tambem, ali de urn modo formal - E Ruth nQOsabiao que Deus que ria dela - que 0 terceiro, este lugar divino do Outro namedida em que e ai que se inscreve a fatalidade do desejo de Ruth, e 0

que da seu carMer sagrado a sua vigilancia noturna aos pes de Booz.A subjacencia da insciencia, onde ja se situa, numa anterioridade

velada, a dignidade do iromenos para cada urn dos parceiros, e ai que estatodo 0 misterio da significa~ao de amor que assume a revela~ao de seudesejo.

Voltemos ao Banquete para ver como as coisas se passam:Alcibiades nao compreende. Depois de ter ouvido Socrates, ele the diz -Escute, eu disse tudo 0 que tinha a dizer, agora e a sua vez de saber 0 quedeve fazer. Ele 0 pOe, como se diz, diante de suas responsabilidades. Aoque SOCrates the responde - Vamos falar de tudo isso, ate amanha, temosainda muitas coisas a dizer. Em suma, ele coloca as coisas no plano dacOhtinua~ao de urn dialogo, engaja-o nas suas proprias vias, dele,Socrates. Faz-se, assim, ausente no ponto onde se observa a cobi~a deAlcibiades.

fI Essa cobi~a, podemos dizer que seja a cobi~a do melhor? 0 impor-, tante e que ela seja expressa em tennos de objeto. Alcibiades niio diz: E; para 0 meu bern, ou para 0 meu mal, que quero isso, que e incomparavelI e que esta em voce, QgalmQ. Ele diz: - Eu quero isto porque quero, seja, para meu bem ou para meu mal. E e justamente nisso que Alcibiadesrevela a fun~ao central na articula~ao da rela~ao de amor. E e ai tambem

: que Socrates se recusa a responder-Ihe, ele proprio, nesse plano.U-mandamento de SOCrates e: Ocupe-se de sua alma, busque sua

perfei~ao. Por sua atitude de recusa, por sua severidade, por sua austeri-dade, por seu noli me tangere, Socrates implica Alcibiades no caminh.odeseu bem. Mas sera mesmo certo que nao devessemos, quanto a esse seube,n,-deixar alguma ambigiiidade? 0 que e posto em causa, desde que estedialogo de Platao ressoou no mundo, nao e a identidade do objeto dodesejo com este seu bem? E nao devemos traduzi-Io pelo bem, tal comoaquele de que SOCrates tra~a 0 caminho para os que 0 seguem, a ele quetraz ao mundo um discurso novo?

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Observemos que na atitude de Alcibiades existe algo, eu diria, desublime, pelo menos de absoluto e de apaixonado, que beira uma outranatureza e uma outra mensagem, a do Evangelho, onde nos e dito queaquele que sabe existir urn tesouro num campo, e nao se diz 0 que e este

\ tesouro, aquele e capaz de vender tudo 0 que tern para comprar esse campoe para gozar desse tesouro. E esta a margem que distingue a posi~ao de

I Socrates daquela de Alcibiades. Alcibiades e 0 homem do desejo.Mas voces, entao, vao me'dizer: Por que ele quer seramado? Na

verdade, ele ja 0 e, e sabe disso. 0 milagre do l!!!!o.r~realizado !Lele_Qa_I' medidaj<m que ~le se t0t:.na0 ~esejarM. E quando Alcibiades se manifesta

}como amoroso, nao e, como diria, como uma mulherzinha. Porque ele eAlcibiades, aquele cujos desejos nao conhecem limites; quando se engaja

Ino campo referencial, que e para ele 0 campo do amor, demonstra ai urncaso notlivel de ausencia de temor da castra~ao, em outras palavras, defalta total desta famosa Ablehnung der Weiblichkeit. Todos sabem, comefeito, que nos modelos antigos os tipos mais extremos de virilidade siiosempre acompanhados de urn perfeito desdem pelo risco eventual de sefazer tratar de mulher, mesmo que por seus soldados, como aconteceu,voces sabem, com Cesar.

1Alcibiades faz, aqui, a Socrates, uma cena feminina. Nem por isso

deixa de ser Alcibiades, em seu nivel. E e por isso que devemos, ainda,antes de terminar com 0 discurso de Alcibiades, dar toda a sua importiincia

, ao complemento que ele da a seu elQgio, a saber, 0 espantoso retratodestinado a completar a figura dmpassivetde Socrates. Impassibilidadesignifica que ele nao porle sequ~r suportar ser tornado de modo pa..ss~'y0'amado, homenos. A atitude de Socrates, aquilo que Alcibiades desenvol-

, ve perante nos como a sua coragem, e feita de uma profunda indiferen~aa tudo 0 que se passa em tomo dele, ainda que seja 0 mais dramatico.

Vma vez ingressados no final desse desenvolvimento, que culmi-nam com a demonstra~ao de Socrates como ser sem igual, eis comoSocrates responde a Alcibiades: Voce me dli a impressiio de estar perfei-tamente lucido. Ora, foi protegido por urn mio sei 0 que estou dizendo queAlcibiades se exprimiu. Se Socrates, que sabe, the diz que ele dli aimpressao de estar perfeitamente lucido, nephein moi dokeis, isto e: Ainda .que esteja embriagado, leio em voce alguma coisa. E 0 que? E Socratesquem sabe, e nao Alcibiades.

Socrates indica 0 que esta em causa ao falar de Agatiio.Ao final de seu discurso, com efeito, Alcibiades voltou-se para

Agatiio para dizer-lhe: Estli vendo, nao se deixe enganar por este ai. Vejacomo ele foi capaz de me tratar, nao caia nessa. Ele the diz isso acesso-riamente. E, na verdade, a interven~ao de Socrates nao teria sentido senao incidisse sobre este carater acess6rio, na-medida em que a chamei deinterpreta~ao. Foi acessoriamente, diz ele, que voce the deu urn lugar no

fim de todo 0 discurso. 0 que nos diz Socrates e que a visada de Agatiioestava, de fato, presente em todos os circunloquios de Alcibiades, que eraem tomo dele' que se tra~ava todo 0 seu discurso. Como se seu discurso- assim se deve traduzir, e nao por linguagem - tivesse apenas esteobjetivo - qual? enunciar que sou obrigado a ama-Io, a voce e a ninguemmais, e que, por sua vez, Agatiio e obrigado a deixar-se amar por voce epor nenhum outro.

Isso diz ele, e absolutamente transparente, katadelon, em seu dis-curso. Socrates diz bem que 0 Ie atraves do discurso manifesto. E, de modomuito preciso, este drama de sua inven~ao, como 0 chama, esse satyrikonsou drama, e ai que esta perfeitamente transparente essa metlifora desilenos, e ai que se veem as coisas.

I Tentemos, com efeito, reconhecer sua estrutura. Socrates diz a)1 Alcibiades: 0 que voce quer, afinal, e ser amado por mim, e que Agatiio,seja 0 seu objeto. Nao hli outro sentido a ser dado a este discurso, a nao\ ser os sentidos psicologicos mais superficiais, 0 va go despertar de umcitime no outro, e nao se trata disso.·Isso e, efetivamente, 0 que esta emquestiio, e Socrates 0 admite, manifestando seu desejo a Agatiio, e pedin-do-Ihe, em smna, aquilo que inicialmente Alcibiades pediu a ele. A provadisso e que, se considerarmos todas as partes do dialogo do Banquetecomo um longo epitaliimio, e se aquilo em que culmina toda essa dialeticatern um sentido, 0 que\acontece no fmal e que Socrates faz 0 elogio deAgatiio. .Qi'. ,.. o. ,<' f. ~ ~c ,

, Que Socrates fa~a 0 elogio de Agatao, esta e a res posta Ii demanda,I nab passada, mas presente, de Alcibiades. Quando Socrates faz 0 elogio

de Agatiio, dli satisfa~ao a Alcibiades. Da satisfa~ao a ele por seu ato atualI de declara~ao publica, de coloca~ao no plano do Outro universal daquiloj que se passou entre eles por tras dos veus do pudor. ~ resposta de Socrates

¢ a seguinte: Voce R04e amar aquele que YOU elogiar porque, ao elogia-Io,saberei fazer passar, eu, Socrates, a imagem de voce como aman~e,enquanto imagem de amante; e desse modo que voce vai entrar na via d.a:;identifica~6es superiores tra~adas pelo caminho da beleza.

Mas convem nao desconhecer que, aqui, Socrates, justamente por-que sahe,_substitui...algumJ! coisa por outra coisa. Nao e a beleza, nem a!lS<:ese,Q.!<t!l a identifica~ao ;Deus que deseja AlciDiades; masesse objct9unico, esse algo que ele viu em Socrates e do qual Socrates 0 desvia,porque Socrates sabe que nao 0 te-m:-- ..¥as Alcibiades deseja sempre a mesma coisa. 0 que ele busca em

Ag~tiio, nao duvidem, e este m~mo ponto supremo onde 0 sujeito eabolido na fan~ia, seus aga~:/

Socrates, aqui, substitui por seu logro aquilo que YOU chamar 0 logroIdos deuses. Ele 0 faz com toda a autenticidade, na medida em que sabe 0I que e 0 amor. E e justamente porque 0 sabe que esta destinado a enganar-se

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, neste ponto - ou seja, a desconhecer a fuolYaoessencial do objeto visadoconstituido pelo agalma.

Falaram-nos, ontem a noite, de modelos teol'icos. Nlio e possiveldeixar de evocar nesse sentido, nem que seja como suporte de nossopensamento, a dialetica intra-subjetiva do ideal do eu, do eu ideal e,justamente, do objeto parcial, e nlio recordar 0 pequeno esquema que lhesdei, outrora, do espelho esferico.

Diante desse espelho cria-se, surge a fantasia da imagem real dovaso escondido no aparelho. Se essa imagem ilus6ria pode ser sustentadae percebida como real e na medida em que 0 olho se acomoda com relalYlioaquilo em tomo de que ela vem se realizar, a saber, a flor que colocamos.

\ Ensinei-os a sustentar, por essas tres notalYOes,0 ideal do eu, 0 eu ideal,e a, 0 agalma do objeto parcial, as relalYoes reciprocas dos tres termos emquestiio a cada vez que se constitui 0 que? - precisamente, 0 que esta emjogo ao termo da dialetica socratica.

Trata-se do que Freud nos enunciou como sendo 0 essencial doenamoramento, e que, com 0 flm de the dar consistencia, introduzi esseesquema. au seja, 0 reconhecimento do fundamento da imagem narcisica,na medida em que e esta que constitui a substancia do eu ideal.

A encamalYlio imaginaria do sujeito, eis 0 que esta em questiio nessareferencia triplice. E voces me permitirlio chegar, aflnal, ao que querodizer: 0 dem6nio de SOCrates e Alcibiades.

E Alcibiades, exatamente, no sentido em que nos e dito no discursode Diotima que 0 amor nlio e um deus, mas um dem6nio, ou seja, quemenvia aos mortais a mensagem que os deuses tem a the dar.

E e por isso que nlio pudemos deixar, a prop6sito desse dialogo, deevocar a natureza dos deuses.

You deixa-Ios por quinze dias, e you lhes dar urna leitura: 0 De Naturadeorum, de Cicero.

E urna leitura que me deixou mal numa epoca muito remota, diantede um celebre pedante que, ao me ver mergulhado nela, emitiu pessimosaugurios quanto ao centramento de minhas preocupalYoes proflssionais.

Leiam isso para poderem se reformular. Vlio constatar que estesenhor Cicero nlio e 0 babaca que se tenta descrever para voces, dizendo-lhes que os romanos eram pessoas que, simplesmente, vinham atras. Estee um sujeito que articula coisas que lhes vlio direto ao coralYao.

Verlio ai, tamMm, todos os tipos de coisas engralYadissimas, comopor exemplo que, no seu tempo, ia-se procurar em Atenas a sombra dasgrandes pin-up da epoca de Socrates. Ia-se para la dizendo-se: yOU

encontrar Carmides em todas as esquinas. Verlio que nossa BrigitteBardot, diante dos efeitos das Carmi des, e um pareo duro. Ficavam quenem moleques, com cada olho assim!

Em Cicero, veem-se casos estranhos. Existe, em especial, umapassagem que nlio posso lhes dar, mas que e deste tipo: Deve-se realmentedizer, os belos rapazes, aqueles que os filosofos nos ensinaram que estamuito certo amar, pode-se procura-Ios, sempre ha algum aqui e all, e soisso. a que quer dizer isso? Sera que a perda da independencia politicatem por efeito irremediavel alguma decadencia racial, ou simplesmente 0

desaparecimento desse brilho misterioso, desse imeros enarges, essaluminosidade do desejo de que Platiio nos fala no Fedro? Jamais sabere-mos nada disso.

Voces aprenderlio ai muitas outras coisas mais. Vlio aprender ai quee uma questiio seria saber onde os deuses se situam. Esta e uma questiioque nlio perdeu sua importancia para nos. Se 0 que lhes digo aqui podeservir para alguma coisa, num dia de um sensivel desllzamento dascertezas, quando se encontrarem entre duas cadeiras, pois bem, umadessas coisas tera sido lembni-Ios da existencia real dos deuses.

Entiio, por que nlio nos determos tambem nesse objeto de escandaloque eram os de uses da mitologia antiga? Sem procurar reduzi-Ios apacotes de fichas nem a agrupamentos de temas, vamos nos perguntar 0

que poderia realmente signiflcar que esses deuses se comportassem daforma que voces sabem, e cujo modo mais caracteristico era 0 roubo, aescroqueria, 0 adulterio - nlio falo de impiedade, isso era problema deles.

Em outras palavras, a questiio do que vem a ser urn amor de deus efradcamente atualizada pelo carater escandaloso da mitologia antiga. Seuauge esta ali na origem, em Homero. Nlio ha como se conduzir de maneiramais arbitraria, mais injustificavel, mais incoerente, mais derrisoria queesses deuses. Leiam a [[{ada, eles estiio 0 tempo todo se metendo nosassuntos dos homens, neles interferindo sem parar. E nem se pode pensarque essas historias sejam extravagantes. Essa perspectiva, nlio a adotamose ninguem pode adota-Ia, mesmo 0 Homaisll mais obtuso. Nlio, eles estiioali, bem alL a que pode, realmente, significar 0 fato de que os deuses semanifestem aos homens apenas dessa maneira?

E de ver-se 0 que acontece quando lhes ocotte amar uma mortal, porexemplo. Nlio ha nada que adiante, nem que a mortal, em desespero, setransforme em loureiro ou em rli, nlio ha meio de dete-Ios. Nada mais longedos estremecimentos do ser diante do amor que urn desejo de deus, ou dedeusa, alias - nao vejo por quenlio inclui-Ias nisso.

Foi necessario Giraudoux para nos restituir as dimensoes, a resso-nancia deste prodigioso mito de Anfttrilio. Esse grande poeta so pade fazeresbOlYar, no proprio Jupiter, alguma coisa que pudesse se assemelhar auma especie de respeito pelos sentimentos de Alcmena, mas isso foi

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apenas para tomar a coisa possivel para nos. Para quem sabe compreender,esse mito permanece 0 cUmulo da bias femia, poderiamos dizer, e noentanto nao era assim, em absoluto, que 0 escutavam os antigos.

Pois ali as coisas van aIem de tudo. E0 estupro divino que se disfaflyana human a virtude. Em outras palavras, quando digo que nada os detem,eles chegam a fazer embustes ate com 0 que e 0 melhor. E exatamente aique esm toda a chave do negocio, e que os melhores, os de uses reais, levama impassibilidade, ate 0 ponto em que eu lhes falava h:i pouco, de naosuportar sequer a qualifica9aO passiva.

Ser amado e entrar, necessariamente, nessa escala do desejavel, daqual sabe-se 0 trabalho que tiveram os teologos do cristianismo para sedesprender. Pois se Deus e desejavel, pode se-Io mais ou menos. Existe,a partir dai, toda uma escala do desejo. Eo que e que desejarnos em Deussenao 0 desejavel? Mas entao, nao h:i mais Deus? De modo que, nomomenta em que se tentava dar a Deus seu valor mais absoluto ficava-sepreso numa vertigem, de onde se saia dificilmente para preservar adignidade do supremo objeto.

Os deuses da Antiguidade nao faziam rodeios. Sabiam que sopodiarn se revelar aos homens na pedra do escandalo, no agalma dealguma coisa que viola todas as regras, como pura manifesta9ao de umaessencia que, quanta a ela, permanecia completamente oculta, cujo enig-ma estava inteiramente por tras. Dai a encarna9ao demoniaca de suasempresas escandalosas. E e nesse sentido que digo que Alcibiades e 0

demonio de Socrates.Alcibiades dli a representa9ao verdadeira, sem 0 saber, daquilo em

que implica a ascese socratica. Ele mostra 0 que esm ali que nao esmausente, acreditem, da dialetica do amor, tal como foi ulteriormenteelaborada no cristianismo. Pois e justamente em torno disso que vemesbarrar essa crise que, no seculo XVI, faz bascular toda a longa sintese,e direi, 0 longo equivoco referente it natureza do amor, que foi sustentadae se desenvolveu durante toda a Idade Media numa perspectiva taopos-socratica.

Quero dizer que, por exemplo, 0 deus de Scotus Erigena nao diferedo deus de Aristoteles, na medida em que atua como er6menon. Eles saocoerentes - e por sua beleza que Deus faz girar 0 mundo. Que distanciaentre esta perspectiva e aquela que se the op5e - mas que nao esm opostaa ela, ai esm 0 sentido do que tento articular.

Articula-se, em contrapartida a perspectiva do agape, na medida emque esta nos ensina expressarnente que Deus nos ama enquanto pecadores,arna-nos igualmente por nosso mal e por nosso bem. Ai esta, com efeito,o sentido da bascula que se fez na historia dos sentimentos de arnor e,curiosarnente, no momento preciso em que reaparece, em seus textosautenticos, a mensagem platonica. 0 agape divino, enquanto dirigido ao

pecador como tal, eis 0 centro e 0 cerne da posi9ao luterana. Mas naocreiam que haja aqui alguma coisa que fosse reservada a uma heresia, auma insurrei¢ao local na catolicidade. Basta lan9ar urn olhar, mesmosuperficial, ao que se seguiu, a Contra-Reforma, ou seja, a eruP9aodaquilo a que se chamou a arte do Barroco, para perceber que isso naosignifica outra coisa senao a coloca9ao em evidencia, a ere9ao como taldo poder da imagem no que esta tern de sedutor.

Depois do longo mal-entendido que havia sustentado a rela9aotrinimria na divindade do conhecedor ao conhecido, e remontando ao.conhecido no conhe~~dor pelo conhecimento, vemos ai a abordagemdessa revela9ao que e a nossa, que as coisas vao do inconsciente para 0

sujeito que se constitui na sua dependencia, e remontam ate este objetomideo que chamamos aqui de agalma.

Tal e a estrutura que rege a dan9a entre Alcibiades e Socrates.Alcibiades mostra a presen9a do amor, mas mostra-a apenas na

medida em que Socrates, que sabe, pode enganar-se ali, e so a acompanhaenganando-se. 0 logro e reciproco. Ele e tao verdadeiro para S6crates, seeste e urn logro e se e verdade que ele e logrado, quanta e verdadeiro paraAlcibiades que ele e tornado por este logro.

Mas, qual 0 logrado mais autentico? - senao aquele que prosseguefirme, e sem se deixar ir a deriva, 0 que the tra9a um amor que chamareide impressionante.. }

Nao acreditem que aquela que esm colocada na origem desse discurso,Afrodite, seja uma deusa que sorri.

Urn pre-socrlitico que e, creio, Dem6crito, diz que ela estava la,inteiramente so, na origem. E e mesmo nesse sentido que, pela primeiravez, aparece nos textos gregos 0 termo agalma. Venus, para chama-Ia porseu nome, nasce todos os dias.

Todos os dias nasce Afrodite, e para retomar no proprio Platao umequivoco que e, acredito, uma verdadeira etimologia, YOUconduir essediscurso com as palavras - kalemera, bom-dia, kalimeros, bom-dia ebelo desejo - da reflexao sobre 0 que lhes trouxe aqui quanto a rela9aodo amor com alguma coisa que, desde sempre, chamou-se eterno amor.Que nao lhes seja pesado demais pensar, se recordarem que este termo,eterno arnor, e colocado por Dante, expressamente, nas portas do Inferno.

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Queda do Dutro.Dignidade do sujeito.Transferencia niio e apenas repeti~iio.A verdadeira mola do amor.A interpreta~iio de Socrates.

Penso que a maioria de voces ainda tern a coisa na memoria: chegamos,entiio, ao final do nosso comentJirio do Banquete.

Como, se nao Ihes expliquei, ao menos indiquei por divers as vezes,esse dhilogo de Platiio se situa, historicamente, na origem, nao somentedo que se pode chamar de uma explicayao do amor em nossa era cultural,mas de urn desenvolvimento dessal funyii~ que e, em suma, a maisprofunda, a mais radical, a mais misteriosa das relayoes entre os sujeitos.

No horizonte do comentJirio que prossegui diante de voces, dese-nhava-se todo 0 desenvolvimento da filosofia antiga, ate 0 cristianismo.

A filosofia antiga, voces sabem, nao promoveu simplesmente umaposiyiio especulativa. Segmentos inteiros da sociedade foram orientadosem sua ayao pnitica pel a especulayiio proveniente de Socrates. Niio foi,absolutamente, de urna forma artificial ou fictfcia que urn Hegel fez deposic,;oes como as posturas est6icas ou epicuristas os antecedentes docristianismo. Essas posic,;oes foram, efetivamente, vividas por urn conjun-to muito amplo de sujeitos, como algurna coisa que guiou suas vidas deuma maneira equivalente, antecedente, preparatoria, com relayiio ao quelhes trouxe, posteriormente, a posic,;ao crista, que comporta igualmenteuma dimensiio que supera a especulayiio, e que 0 proprio texto do Ban-quete continuou a marcar profundamente.

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Niio se pode dizer, com efeito, que as posi96es teol6gicas funda-mentais ensinadas pelo cristianismo tenham sido sem ressoniincia, seminfluenciar profundamente a problematica de cada urn, e em especialdaqueles que se encontraram, no desenvolvimento historico, na vanguar-da, pela posi9iio de exemplo que assumiam por diversos motivos, fossepor suas declara96es, fosse por sua a9iio diretiva. Trata-se daquilo a quese chama a santidade. Isso sO pOde, aqui, ser indica do no horizonte, e nosbasta.

Isso nos basta, pois se, de saida, quisessemos, aqui, ativar 0 quetemos a dizer, teriamos tornado as coisas num nivel ulterior. Mas, se, emvez disso, escolhemos esse ponto inicial que eO Banquete, se fizemos seucomentlirio, foi na medida em que ele oculta em si algo de absolutamenteradical quanto a essa mola do amor cujo titulo carrega, e do qual se indicacomo sendo oobjetivo.

Niio acredito exagerar dizendo que isso com que concluimos, da ultimavez, foi ate agora negligenciado por todos os comentadores do Banquetee que, nesse senti do, na seqiiencia da hist6ria do desenvolvimento dasvirtualidades que este dialogo oculta, nosso comentlirio constitui ummarco.

Acreditamos ter captado na propria encena9iio daquilo que se passaentre AIcibiades e Socrates, a ultima palavra do que Platiio quer nos dizercom referencia Iinatureza do amor. Isso supOe que na apresenta9iio do quese pode chamar de seu pensamento, Platiio tratou com reservas 0 lugar doenigma - em outras palavras, que seu pensamento niio estli inteiramentepatente, livre, desenvolvido nesse dialogo.

Ora, niio ha nada demais em pedir a voces que admitam isso, pelasimples raziio de que, na opiniiio de todos os comentadores antigos eespecialmente modernos de Platiio - 0 caso niio e unico - um exameatento dos dialogos mostra, de modo muito evidente, que existe ali urnelemento exoterico e ao mesmo tempo urn elemento fechado. Os modosmais singulares desse fechamento, todos eles, ate - e inclusive _ asarmadilhas mais caracterizadas confinando com 0 logro, a dificuldadeapresentada como tal, tern por objetivo que aqueles que niio tern quecompreender niio compreendam. Isso e realmente estruturante, fundamen-tal, em tudo 0 que nos foi deixado das narrativas de Platiio.

Admitir isso e admitir igualmente 0 que sempre pode haver deescabroso se avan9armos, form os mais alem, lentarmos perfurar, adivi-nhar, em ultima instiincia, 0 que Platiio nos indica. Mas, quanto Ii tematicado amor tal como se apresenta no Banquete, Ii qual eslamos limitados, e

dificil para nos, analistas, niio reconhecer a ponte que e lan9ada, a miioque nos e estendida, na articula9iio da ultima cena do Banquete, a saber,a cena que se desenrola entre AIcibiades e S6crates. .

Articulei para voces, e os fiz sentir isso em dois tempos. Mostrel-Ihes a importiincia, na declara9iio de Alcibiades, do tern a ~o aga!ma, d~objeto escondido no interior do sujeito Socrates. E ?1ostr:1 a voces q~e emuito diffcil niio leva-Ia a serio. Na forma, e na arucula9ao, em que lSSOnos e apresentado, 0 que estli ali, niio siio .a~rma96es metaf?ricas, ~elasimagens, para dizer que, grosso modo, Alelblades espera mUlto de. Socra-

I' tes. Revela-se ali uma estrutura na qual podemos encontrar aquIlo. q4eI' somos capazes, quanto a nos, de articular como fundamental naqUllo aI ~e chamarei a posi9iio do desejo.

Ao -mesmo tempo em que pe90 desculpas aos recen;t-chegados,posso supor conhecidas por meu auditorio, ~~ sua cara~t~ristlca geral, ~selabora90es que ja formulei quanto Ii pos19ao do ~uJelto, e .que estaoindicadas no resumo topol6gico a que chamamos aqUl, convenclonalmen-te, 0 grafo.

1 Sua forma geral e dada pelo splitti ng, 0.de~dobr~~ento funda~entaldas duas cadeias significantes onde se consUtUl 0 sUJetto. Isso supoe queadmitamos, como demonstrado a partir de agora, que esse desdo?r~mentoe por si s6 requerido pela rela'Yiio logica inicial, inaugural, ~o s~Je~to como significante como ml, que a exiSlencia de uma cadel~ .slgOlficanteinconsciente decorre unicamente da posi9ao do termo do sUJelto enquantodetenninado como sujeito pelo fato de ser 0 supo.rte do si~nificante.. _

Que aqueles para quem isso niio passa de lOforma9ao, propoSI'Yaoainda niio demonstrada, se tranqiiilizem. Teremos que voltar a este ponto.Mas e preciso recordarmos, esm manhii, que isso ja foi anteriormentearticulado aqui. .. .

Com rela'Yao Ii cadeia significante inconsclente como co~s~tuuva\ do sujeito que fala, 0 desejo se apresenm como ml numa ~sl'Yao queI somente se pode conceber com base na me.tonimia dete~ada pela

existencia da cadeia significante. A metonimia e esse fenomeno q~e .seI. produz no sujeito como supo~te ~ c~deia sig~ificante. Pelo fato d~ sUJ.ett?I submeter-se Ii marca da cadela slgmficante, efu~damental~ne?te InsUt~l-

da nele alguma coisa a que chamamos metommla, e que nao e nada alemda possibilidade do deslizamento indefInido dos significantes sob ~ con:tinuidade da cadeia significante. Tudo 0 que se acha uma vez ass?C~ado acadeia significante - 0 elemento circunsmncial, 0 .el~mento de atlVldade,o e1emento do mais-alem do termo no qual essa attvldade desemboca -,tados esses elementos, em condi'YOesadequadas, siio capazes. de poder ~rtornados como equivalentes uns aos outros. Urn elemento CIrcullSta.ncl_alpode asswnir 0 valor represenmtivo d~q~ilo que. ~ 0 termo. da enunclac;:ao

, subjetiva, do objeto para 0 qual 0 sUJetto se dmge, ou, 19ualmenle, dapr6pria a'Yaodo sujeito.

)

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Ora, e na propria medida em que algo se apresenta como revalori-zando 0 ti~o de deslizamento infInito, 0 elemento dissolutivo trazido ao,sujeito, por si mesma, pela fragmenta~ao significante, queele assumevalocde objeto privilegiado, que estanca esse deslizamento infiilito. uni8bjeto I>2<iea~sumir tambem, com rela~ao ao sujeito, esse valoressencialque constitui a fantasia fundamental. 0 proprio sujeito se reconhece ~licomo detido, ou, para lembrar-Ihes lima n~ao mais familiar, fixad~.Nessa fun~ao privilegiada nos 0 chamamos a. E e na medida em que 0

sujeit~ se identifica Ii fantasia fundamental que 0 desejo-como-tal a;s-';me

I~onsistenc!a, ~ pode ser designado, que 0 desejo, tambem, de que se tratapa:~ nos esta enrai~do, po~ sua propria posi~ao, na Horigkeit; isto e, parautilizar a nossa tenrunologla, que ~Ie se £o!.<?cano sujeito como desejo doDutro, grande A. - --

A e defmido para nos como 0 lugar da fala, esse lugar sempreevoc~do desde que ha fala, esse ll.!.gar terceiro que existe semRr:.e nas

.~ela~oes com 0 outro, a, desde que ha articula~ao significa'!t~. Esse A naoe u~o absoluto, um outro que seria 0 que charnamos, em nossaverbigera~ao moral,..!>outr.9 respeitado enquanto sujeito, enquanto moral-mente n.oss.Qigual. Nao, esse Outro, tal como lhes ensino aqui a articular,g~ ~ simulta~eamente necessidade e necessario como luga~, mas ao"m~sglO tempo lDcessantemente submetido Ii questao daquilo que 0 garan-.te, ele proprio, e urn Dutro perpetuanlente evanescente e quspor issomesmo, nos coloca numa posi~ao perpetuamente evanescente.

Ora,.e Ii questao formulada ao Outro, quanto ao que ele po.dc_nos, dar e ao g~e. teAm~ara nos responder, que se Iiga 0 amor como tal. Nao queo amor seja ldentico a cada uma das demandas com as quais 0 assediamos

IImas ele se situa no mais-alem dessa demanda, na medida em que 0 Outr~possa ou nao nos responder como ultima presen~a.

Todo ~ . roblema consiste em ~rcebe!.2 rela~ao que Iiga 0 Dutroao qual se dinge a d~manda de amor Ii !p~riyao do desejo~ Outro naoe, en~o, de modo algum, nosso igual, 0 Outro ao qual aspuamos, 0 Dutroque nao 0 amor, mas ~lguma coisa que representa, falando propriamente,um~ueda - quero dizer, algo que e da natureza do objeto. --- ., 0 ue esta!..m ~estao no desejo e Ul!lobjeto, nao urn.§.ujeito. E nestepont~!le resil!e aquilo que se pode chamar de 0 mandamenu;es -ant~do deus do.amor. Esse m~nda~_en~o e j.!!S!am~n~, de fazer dO-Qbjeto gu~de nos deslg?a alg.o que, em pnmeuo luga~, seja um objeto, e, em segundolugar, ~ ?bjeto .dlante do qual desfalecemos, vacilamos, desapa"recemoscomo su eIto. :POlSesta queda, essa deprecia~ao, nos, como sujeito, e ~a sofremos. - .

o ue a:on~ece c_~m.0 objeto e justam~.9 contrario. Emprego aitermos q~e.nao sac os malS apropriados, mas nao importa, basta que sepossa acelta-Ios e que eu me fa~a en tender bem: ~ste objeto, q~anto a ele,

Como se da que cheguemos tao tarde a essa transferencia? - vao me dizerenta~.

Certamente. Eproprio das verdades nunca se mostrarem por inteiro.Em suma as verdades sao solidos de uma opacidade bastante perfida. Elassequer te:n, ao que parece, essa propriedade que somos capazes de realizarnos solidos, a transparencia; elas nao nos mostram ao mesmo tempo s~sarestas anteriores e posteriores. E preciso que se Ihes de a volta, e dmamesmo, e preciso 0 passe de magica.

No que diz respeito Ii transferencia, tal como a abordamos este ana- e voces viram sobque encanto pude conseguir conduzi-Ios por algumtempo fazendo-os, junto comigo, ocupar-se do arnor - devem ter perce-bido que eu a abordava com uma tendencia, por um vies, que nao apenasnao e 0 vies classico, mas, alem disso, que nao e 0 vies pelo qual eu tinhaate ali abordado diante de voces essa questao.

Ate 0 presente, sempre reservei 0 que havia fonnulado sobre essetema, dizendo-Ihes que era terrivelmente necessario desconfiar daquiloque e sua aparencia, a saber, 0 fen6meno conotado, mais habitualmente,sob as tennos transferencia positiva ou negativa. Esses termos sao daordem da cole~ao, e do nivel de sse discurso quotidiano no qual naosomente um publico mais ou menos informado, mas nos mesmos, evoca-mos a transferencia.

_Sempre chamei a ~ten~a~ de v~e~ <@ese d~ve [>art}!do f~t~ de uea transferencia em ultima instiincia, e 0 automatismo <!erepetiyao. Ora,

I se desde 0 inidio do ana nao fa~o cutr; ~oisa se~ao faze-Io~ prOS'seguirnos detalhes do movimento do Banquete de Platao, onde so se trata de

e s~alorizado. E e enquanto su rvalorizado que ele tern a fun ao de~alvar nossa.rlignirlade de sujeito isto e, fa~r de nos al 0 distinto de ~sujeito submisso ao deslizamento. infInito do sigJ!jficant~. §Ie faz de nosalgo di~tinto do_~~jeit9 <!a fala~lg.<Ld~ unico, ddna12reciavel, deinsubstituivel, afmal, que e 0 verdadeiro_ponto onde podemQs designaraquilo a que chamei a dignida4e do_suirit~

o equivoco do termo individualidade nao e de que sejarnos algounico como este corpo, que e este aqui e nao um outro. A individualidadeconsiste inteiramente na rela~ao privilegiada em que culminamos comosujeito no desejo.

So fa~o, nesse ponto, trazer uma vez mais esse carrossel de verdadeem tome do qual giramos desde 0 inicio deste seminlirio.

Trata-se este ana, com a transferencia, de mostrar quais sao as suasconseqiiencias no lIUlis intimo de nossa prlitica.

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a( i - t~1Irt

o OBJETO DO DESFJO E A DIALETICA DA CASTRAl;:.AO

\1 amor, e, bem eVidente~ente,. para introduzi-los a transferencia por urn~ outro lado. ~ra.ta-se, polS, de Juntar essas duas vias de abordagem.

~sa distm~~o e tiio legitima que se pode encontra-la nos autores.Leem~se COISassingulares nos autores, e percebe-se que, por niio

te~em os gwas, as linhas que siio aquelas que Ihes fome~o, eles chegam aCOlsas absolutamente espantosas. Niio me incomodaria se alguem umpou~o esperto nos tize~se a~ui urn breve relato nesse senti do, e quepUdessemo~ realmente dlscUti-Io. Posso mesmo dizer que gostaria dissones~ d_esvlOde nosso seminario, por raz6es precisas e locais sobre ~quaIs nao quero me estender, mas voltarei a isso. Certamente e necessarioq~e alguns possam fazer a media~iio entre a assembIeia bastante hetero-ge~ea composta por voces e aquilo que estou tentando articular-lhesEVldent~~ente, e ~uito dificil que, sem essa media~iio, eu avance mUit~num o~Jet1vo que e nada menos que colocar, no ponto maximo daquiloque ar~culamos este ano, a fun~iio do desejo niio apenas no analisado, masessenclalmente no analista.

Pergunta-se para quem isso comporta 0 maior risco. Sera paraaqueles que, por uma raziio ou por outra, sabem algo sobre isso? Oua~ueles q.ue amda n.iio podem saber de nada? Seja como for, deve havera~nda aSSlffi urn melO de abordar este tema diante de um auditorio sufi-clentem.ent~ preparado, mesmo que niio tenha a experiencia da analise.

Dlto lst~, chamo a aten~iio de voces para um artigo de HermanNunberg, pubbcado em 1951 no International Journal 0/ Psychoanalysise que se chama "'Transference o/reality", transferencia da realidade. Ess~texto, como, alias, tudo aquilo que foi escrito sobre a transferencia eexemplar quanta as dificulda~es e escamoteamentos que se produze~ afalta de u~a abordagem su~cle~temente metodiea, demarcada, esclareci-da, do f~~omeno da transferencla. Nesse curto artigo, que tem exatamentenove pa?lOaS, 0 autor chega, com efeito, a distinguir a transferencia doa~tomat1smo de repeti~iio. Essas siio, diz ele, duas coisas essencialmentedlferentes. pe qualquer ~odo, e ir longe demais, e niio e isso, decerto, 0

que lhes dlgO. Vou pedlr, portanto, a alguem que fa~a para a proximavez urn relato em ~ez minutos daquilo que Ihe parece destacar-se daest~t~ra do enunclado desse artigo e da maneira pela qual se podecorngl-lo.

Por ora, v~mos marcar bem 0 que esta em questiio.Na sua ongem, a transferencia e descoberta por Freud como urn

processo, eu 0 sU~linho, espontineo - e como estamos na historia nocome?o d? apareclmento desse fenomeno, urn processo espontineo bas-ta~te lOqU1et~nte ~ara afastar da primeira investiga~iio analitica urn pio-nelro dos malS emmentes, Breuer.. Rapidamente a transferenda e observada, e ligada ao mais essen-

clal da presen~a do passado, na medida em que ela e descoberta pel a

analise. Esses termos siio todos muito pesados, e pe~o-lhes que gravem 0

que estou diz~ndo para fixar os pontos principais da dialetica que esta emcausa.

Rapidamente, tambem, admite-se, a titulo de uma tentativa que seraconfirmada pela experiencia, que esse fenomeno e manejavel pela inter-preta~iio.

A interpreta~iio ja existe nesse momenta, na medida em que semanifestou como urn dos recursos necessarios a realiza~iio da rememora-~iio no sujeito. Percebe-se que existe outra coisa aIem da tendencia arememora~iio. Niio se sabe bem ainda 0 que. Seja como for, da no mesmo.E essa transferencia e admitida imediatamente como manejavel pelainterpreta~iio e portanto, se quiserem, permelivel a a~iio da fala.

Isso introduz desde logo a questiio que ainda permanece em abertopara nos, e que e a seguinte.

o fenomeno de transferencia e ele proprio colocado em posi~iio dt?sustenticulo da a~iio da fala. Com efeito, ao mesmo tempo em que sedescobre a transferencia, descobre-se que se a fala se mantem, como se

. manteve ate que percebessem isso, e porque existe a transferencia. Demodo que, ate 0 presente e em ultima inStllncia, a questiio permaneceusempre na ordem do dia, e a ambigiiidade continua - no estado atual,nada pode reduzir isso: que a transf~tl!c!it..? llor .!ll~!s)~t~fP-~e~9a gue seja,gu~rda em si m~!p~ ..£2.I:!l~~.~a especie de li.JEj~ irredut~~l.-- -0 ass unto foi longamente tratado e retratado pelos autores maisqualificados na analise. Assinalo para voces, particularmente, 0 artigo deErnest Jones em seus Papers on Psychoanalysis. '"A Fun~iio da sugestiio";mas existem inumeros deles.

"/ Qual e de fato a questiio? Nas condi~6es centrais, normais, daanalise, nas neuroses, a transferencia e interpretada sobre a base, e com 0

instrumento da propria transferencia. Niio podera, entiio, ocorrer que naoseja da posi~ao que Ihe e dada pela transferencia que 0 analista analise,interprete e intervenha sobre a propria transferencia. Em suma, resta umamargem irredutivel de sugestiio, urn elemento sempre suspeito, que naoesta ligado ao que se passa Ia fora - niio se pode sabe-lo - mas sim aoque a propria teoria e capaz de produzir.

De fato, niio siio essas dificuldades que impedem que se avance.Nem por isso deixa de ser necessario fixar seus limites, a aporia teorica.Talvez seja iS80 0 que nos vai induzir, ulteriormente, a uma certa possi-bilidade de ir mais alem. Observemos bem 0 que ha, e talvez possamosdes de ja ver porque vias ir mais alem.

A pres~ns~ ,do passado, pois, tal e a realidad~ da transferencia.Nao iX1Sie' ja alguma coisa que se impoe, e que nos permite umaformula~ao mais completa? E uma presen~a urn pouco mais que pre,

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o OBJETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRA~Ao

sen~a - e uma presen~a em ato, e como os tennos alemaes e franceses 0indicam, uma reprodu~ao. .--- _.o Que nao e evidenciado 0 bastante naquilo que se diz comumente~~~ que essa reprodu~ao se distingue de urna simples apassiva~ao do§..uj~ito. Se a reprodu~ao e uma reprodu~ao em ato, entiio 'existe namanifesta~ao da transferencia algo de criador. Este elemento me pareceessencial articular. E, como sempre, se 0 valorizo, nao e porque suaobserva~ao ja nao seja encontnivel, de maneira mais ou menos obscura,naquilo que os autores articularam.

Se voces consultarem 0 relatorio que constitui um marco, de DanielLag ache, verao que ali esta 0 ponto nevralgico da distin~ao que eleintroduziu entre repeti~ao da necessidade e necessidade de repeti~ao eque, a meu ver, fica um pouco vacilante e problematica por nao ter esteultimo apontamento. Por didatica que seja essa oposi~ao, na realidade, elanao esta incluida, nao esta nem mesmo por um so instante realmente emquestiio naquilo que experimentamos da transferencia.

. Vamos tomar inicialmente a necessidade de repeti~ao. Nao haduvida, nao podemos fonnular de outra maneira os fenomenos da trans-ferencia a nao ser sob a fonna enigmatica seguinte: por que e preciso queo sujeito repita, perpetuamente, uma significayao? - no sentido positivodo tenno, quero dizer, aquilo que ele nos significa por sua conduta.Chamar a isso uma necessidade ja e torcer 0 que esta em jogo. Nessesentido a referencia a urn dado psicologico opaco como aquele que DanielLagache conota, pura e simplesmente, em seu reJatorio, a saber, 0 efeitoZeigarnik, respeita mais, afinal, 0 que se deve preservar na estrita origi-nalidade daquilo que esta em causa na transferencia.

Se, por outro lado, a transferencia e a repeti~ao de uma necessidadede uma necessidade que pode se manifestar, em certo momento, com~transferencia, e num outro como necessidade, e claro que chegamos a urnimpasse, ja que, alias, estamos 0 tempo todo dizendo que essa e umasombra de necessidade, uma necessidade ja ha muito superada, e que epor esta razao que seu desaparecimento e possiveI.

I Igualmente, chegamos aqui ao ponto onde a transferencia aparececo~.o, falan.do propria~ente, uma ~onte de fic~ao. Na transferencia, 0

sUJetto fabnca, constrol alguma COlsa. E a partir dai, nao e possivel,parece-me, nao integrar imediatamente Ii funyao da transferel1cia 0 termofic~ao. Em primeiro lugar, qual e a natureza dessa ficyao? Por outro lado,

I qual 0 seu objeto? E, tratando-se de ficyao, 0 que e que se finge? E, ja que' se trata de fingir, para quem?. Se ~ao se responde de imediato par~ a pessoa a quem se dirige, eporque nao se pode acrescentar sabendo dISSO. E porque estamos, daquipor diante, muito distanciados, pelo fenomeno, de toda hipotese daquiloque se pode chamar maci~amel1te pelo nome de simula~ao.

Portanto, nao e para a pessoa a quem se dirige,. na medida em ~uese sabe dis;;o. Mas nao porque seja 0 contrario, ou seJa, que e ~~ medidaem que nao se 0 sabe que se deve crer que a pessoa a quem se dmge e por

I isso volatilizada subitamente, desvanecida. Tudo 0 que sabemos sobre 0

inconsciente, desde 0 inicio a partir do sonho, nos indica que existemfenomenos psiquicos que se produzem, se desenvolvem, se consu:oe~para serem ouvidos, portanto, justamen_te para. este Outro qu~ es~ ali,mesmo que nao se 0 saiba. Mesmo que nao se ~a1ba que eles estao all ~araserem ouvidos, e1es estiio ali para serem ouvldos, e para serem ouvldospor urn Outro.

Em outras palavras, arece-me imp_oss{vel«liminar:. do fenomeno datransferencia 0 fa to de gue ela se manifesta na relayao com alguem a_que,!D;~ fal~.fute fato e c~n~titutivo. Ele constitui uma fronteira, e nos instrui,-ao- mesmo tempo, para nao engolfar 0 fenomeno da transferenci.a napossibilidade geral de repetiyao que a propria existencia do inconsclenteconstitui.• Ora na analise existem com certeza repetif;6es Iigadas Ii constanter, ~ , , •

'da cadeia significante no sujeito. Essas repeti~6es ~ev~m ser estntamentedistintas daquilo que podemos chamar de transferencla, mes~o que pos-sam em certos casos ter efeitos homologos. E nesse sentldo que se

I justifica a distin9ao n~ qual se deixa deslizar, por uma via i~teiram~ntediferente, por uma via de erro, 0 personagem, no entanto mUlto notavel,que e Hennan Nunberg.. .

Agora, YOUvoltar a deshzar por urn lnstante, p~ra mostrar-Ihes 0

carater vivificante de urn segmento de nos sa explorayao do Banquete~

I Lembrem-se da cena extraordinaria constituida pela confissao publica deI Alcibiades e tentem situa-Ia em nossos tennos.

Vocis devem sentir, realmente, 0 peso, absolutamente notavel,Iigado a essa a9ao, e que existe ali algo que vai muito alem_de.um puro esimples relato do que se passou entre ele e Socrates, Isso nao e neutro. Aprova disso e que, antes mesmo de comeyar, 0 propri.? A~cibi.ades se paeao abrigo de nao-sei -que invoca~ao do segredo, que n:o VI~ srmplesmen-te protege-lo a si mesmo. Ele diz: Que aqueles que na~ sao ca~aze~ nemdignos de ouvir, os escravos que estiio ai, tapem os ouvldos, pOlSeXIstemcoisas que mais vale nao escutar quando nao se e capaz de entender.

Ele se confessa diante de quem? Dos outros, todos os outros,.aquelesque, em seu conjunto, seu corpo, seu concili.o, parecem dar 0 malOr pes~possivel aquilo que se pode chamar de 0 tnpu~al do Outro. E 0 que davalor a confissao de Alcibiades diante deste tnbunal? E que ele relata,

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)justamente, ter tentado fazer de Socrates algo completamente submisso esubordinado a urn outro valor que nao 0 da relacrao entre sujeito e sujeito.

IFrente a frente com SOCrates, ele manifestou uma tentativa de seducrao,

)quis fazer dele, e da maneira mais explicita, alguem instrumental, subor-dinado a que? ao objeto de seu desejo, dele, Alcibiades, que e agalma, 0born objeto.I Direi mais. Como nao reconhecermos, nos analistas, 0 que esta emlquestiio? Isso e dito claramente: e 0 born objeto que Socrates tern no'ventre. SOCrates, ali, nao e mais que um involucro daquilo que e oobjeto·.do desejo.

E mesmo para marcar que ele nao passa desse involucro que Alci-biades quis manifestar que Socrates e, em relacrao a ele, 0 servo do desejo,que SOCrates the esta assujeitado pelo desejo. 0 desejo de Socrates, ainda

. que 0 conhecesse, ele quis ve-Io manifestar-se em seu sinal, para saber

. que 0 outro, objeto, agalma, estava a sua merce.\ Ora, e justamente 0 ter fracassado nessa tentativa que, para Alcibia-des, 0 cobre de vergonha e faz de sua confissao algo de tiio pesado. 0demonio do Aidos, do pudor, que relatei diante de voces a seu tempo, nessesentido, e 0 que intervem aqui. E isso 0 que e violado. E que, diante detodos, e desvelado em seu tracro 0 segredo mais chocante, a ultima molado desejo, que sempre obriga, no amor, a dissimula-Io urn pouco: ~

.' .£!?jetivo e a queda do Outro, A, em outro, a. E ainda por cima, revela-senessa ocasiao que Alcibiades fracassou em sua empresa, na medida emque esta consistia em fazer com que Socrates decaisse daquele escalao.

o que e possivel ver de aparentemente mais proximo daquilo quese pode chamar de uma busca da verdade? Poderiamos acreditar que estejaai 0 ultimo termo de uma tal busca, nao em sua funcrao de epura, deabstracrao, de neutralizacrao de tooos os elementos, mas, bem ao contrario,naquilo que ela traz de valor de resolucrao, ate mesmo de absolvicrao. Issoe bem diferente, como veem, do simples fenomeno de uma tarefa inaca-bada, como se diz.

Vma confissao publica, feita ate seu termo ultimo, com toda a cargareligiosa que a ela atribufmos, certa ou erradamente, eis 0 que parece estarem questiio. Mas, nao parece igualmente que e com esse testemunhofulgurante prestado Ii superioridade de Socrates que deveria se encerrar ahomenagem rendida ao mestre? Nao e isso 0 que acentuaria 0 que algunsdesignaram como 0 valor apologetico do Banquete?

Voces conhecem, com efeito, as acusa~6es de que SOCrates, mesmodepois de sua morte, continuava a ser imputado, particularmente nopanfleto de um tal de Policrates. Todos sabem que 0 Banquete foi feito,em parte, com referenda a este libelo - temos algumas dta~oes de outrosautores - que 0 acusa, ainda, nessa epoca, de ter desviado Aldbiades e

muitos outros, por lhes haver indicado que 0 caminho estava livre para asatisfa~ao de todos os seus desejos.

Ora 0 que vemos? Urn paradoxo. Ali e revelada uma verdade queIparece, d; alguma forma, bastar por si mesma, mas tod~s. sentem. q~e aIquestiio permanece: por que tudo aquilo? A quem se dmge_ aq?do: ~quem se trata de instruir, no momento em que a confiss~o e felta.Certamente que nao aos acusadores de SOCrates. Qual 0 deseJo que leva

. Alcibiades a despir-se, assim em publico? Nao existe ~f urn parad?xo q~e -'merece ser destacado? Como vao ver, ao examinar malS de perto, lSSOnaoe tao simples.

o que todos percebem como uma interpretacrao de Soc~ates, com,\ efeito 0 e. Socrates retorque a Alcibfades - Tud~ 0 que ;oce acaba _de

fazer aqui e Deus sabe que isso nao e evidente, polS bern, e para Agatao ..: Seu desej~ e mais secreta que toda a revela~ao a que voce ac~ba de se f.entre gar. Ele visa agora a um outro, ainda. E este outro, eu 0 deslgno para ~voce, e Agatao.

Paradoxalmente, 0 que revela a interpreta~ao de Socrat~s, .0 qu~ ela

]coloca no lugar daquilo que se manifesta nao e algo de fantasls~co vtnd~do fundo do passado e nao tendo mais existencia. Es~u~do Socrates, erealmente a realidade que exerceria a funcrao daqudo a que podemos~hainar-de uma transferencja, no processo da busca da ve~dadt<..Em o~traslp;J~~~,para que me entendam bern, e como se alguem Vlesse dlZl:r,'durante 0 processo de Edipo - Edipo sO prossegue de uma forma ta~exaltada sua busca da verdade, que deve leva-Io a sua perda, porque eleso tern urn fim, que e fugir com Antigona. Tal e a situa~ao de paradoxodiante da qual nos coloca a interpretacrao de Socrates. ,

Certamente, ha toda uma variacrao de detalhes. Ve-se bem por q~evies isso pode servir para deslumbrar os tolos, fazen~o-se ~m ~to ta~brilhante, mostrando-se de que se e capaz. Mas de tudo lSSO,diz Socrates,no fim das contas nada se sustenta.

Trata-se sem duvida alguma, de um ato sobre 0 qual nos pergunta-mos ate que ~nto SOCrates sabe 0 que esta fazen~o ..Pois, quando re~pon-de a Alcibfades, ele nao parece merecer ser aungldo pela acusa~ao de

Polfcrates? . . .j Ele, Socrates, sabio nos assuntos do amor, .des!gna.a Alclbl~des10nde esta 0 desejo deste, e faz muito mais que deslg~a-Io, Ja qu~ val, dej alguma forma, fazer 0 jogo deste desejo por ~rocuracrao: Com efelto,l?godepois SOCrates se apressa em fazer 0 eloglo de Agatao. E em segmda,de re~nte por uma parada da camera, ele e escamoteado, fi~amosofuscados ~elo efeito de uma nova entrada de folioes ..~ra~as ~ lSSO,aquestiio permanece enigmatica. 0 dialogo pode se repetrr mdefmtdamen-te, nao saberemos mais 0 que S6crates sabe do que faz.

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Ou sera que e Platao quem 0 substitui agora? Sem duvida,ja que foiele quem escreveu 0 dililogo, sabendo urn pouco mais sobre ele, e permi-tindo aos seculos equivocarem-se quanta ao que ele, Platao, nos designacomo a verdadeira raziio do amor, acreditando que esta consiste em levaro sujeito as escaladas que the permitam a ascensao rumo a urn belo cad avez mais confundido com 0 supremo belo. Isto dito, nao e a nada disso,em absoluto, que, seguindo 0 texto, nos sentimos obrigados.

No maximo, como analistas, poderiamos dizer 0 seguinte:Se 0 desejo de SOCrates, como parece ser indicado em suas afirma-

~6es, nao e senao levar seus interlocutores ao gnoti seauton, 0 que etraduzido ao extremo, num outro registro, por ocupe-se de sua alma, enta~podemos pensar que isso deva ser levado a serio. Por urn lado, com efeito,e YOU explicar a voces atraves de que mecanismo, Socrates e urn daquelesa quem devemos 0 ter uma alma - quero dizer, 0 ter dado consistencia aurn certo ponto design ado pela interroga~ao socratica, com aquilo que elaengendra de transferencia. Mas, se e verdade que aquilo que Socratesdesigna assim e, sem 0 saber, 0 desejo do sujeito tal como eu 0 de fino esobre 0 qual SOCrates se manifesta, efetivamente, diante de nos, comosendo 0 que se deve chamar de cumplice - se e isso, e se ele 0 faz semsabe-Io, eis enta~ SOCrates num lugar que podemos compreender perfei-tamente, e podemos compreender ao mesmo tempo como, afinal, eleexaltou Alcibiades.

Pois 0 desejoLem sua raiz e sua essencia, e 0 desejo do O\ltrq, e ~aqui, fa lando propriamente, ue esta a mola do nascimento do amor, se 0

!!!!!or e aquilo que se passa nesse objeto em dire~ao ao qual estend~mosa~aQ p'e)o nosso propQ.o.desejo.£_que, I!Q_momento em que no~so des~ofaz eclodli---:<;euincendio, nos deixa aparecer, por urn instante, essa !esQgs-ta, essa outra mao que se estende para nos, bem co~o seu desejo.

~se desejo se manifesta sempre na medida em que nao sabemo,s. ERuth nao sabia 0 que Deus queria dela. Mas por nao saber 0 que Deusqueria dela, era preciso, assim mesmo, que estivesse em causa que Deusquisesse dela algurna coisa. E se ela nada sabe disso, nao e porque nao sesaiba 0 que Deus queria dela, mas porque, devido a esse misterio, Deus eeclipsado - mas ele esta sempre alL

I' Ena medida em que nao sabe 0 que SOCrates deseja, e que e 0 desejoI. do Dutro, e nessa medida que Alcibiades e possuido, pelo que? - por urn

( arnor do qual se pode dizer que 0 unico merito de SOCrates e designa-Ioj como amor de transferencia, e remete-Io ao seu verdadeiro desejo.

Sao esses os pontos que eu queria, hoje, ruar de novo para prosseguir daproxima vez quanta ao que penso poder demonstrar com evidencias, asaber, 0 quanto a articula~ao ultima do Banquete, este apologo, esta cena

A TRANSFER£.NCIA NO PRESENTE

que confina com 0 mito, nos permite estruturar ~m t~~~t~a posi~ao de

dois desejos a situac;a,? do an~li~aldorneaaIPmr:~~:c;:o~e~ verdadeiro senti doPod mos entao restltUl- a, ,

ere " .' _0 a dois real poderemos, ao mesmo tempo,de situac;ao a dOlS, de slt~ac;a dr' as vezes ultraprecoces, que ali:~~:~:;~~:d:!~~F~~:~;;~~~:~~a::n~:a:~:~~::~~~e;nos - e epo .' a todo 0 conteudo do que semedida que se ,faze~ t.D~lStardlOs, ~:~u~e ~ desenvolvimento modemopassa no plano Imagmano. Enestep 5 m fundamento toda a teoria

, . d' d er constrUlr e nao se ,da anahse acre Itou ev '. - la' hem longe. b' a da proJec;ao termo que esda relac;ao ~e obJeto, fieta~ t::: a teoria daquilo que e, durante a analise,de ser sufiClente, e, a ma , a

o analista p~ra ~~:~;~~~~ebido sem que se situe corre?m~nte a po~i9ao~sso n.ao p . I .- ao desejo constll\!!lVO da anahse,

~~~ ~~~~o ca:~I~~.~~:~~gCaj: ~.~:j~~O,a saber: 0que ele quer?.. ' 12DE MARyO DE 1961

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XUI

CRfTICA DA CONTRA- TRANSFERENCIA

o inco~sciente primeiro ido Outro.o dese;o no analista.A partida de bridge analitica.Paul~ Heimann e Money-Kyrle.o efelto latente, ligado d insciencia.

I Terminei, da ultima vez - par ti f - d A

I ponto daquilo que consti tui a sa ~ a~ao e voces, ao que parece - numfundamental da posI'C'a-od u',O. os elementos, e talvez 0 elemento

, y 0 sUJelto na an T Erecorta para nos a defini~ao do dese' a Ise. ~a a questao onde seem sum a, marginal, mas que se indi~~:O: 0 ~eseJo do.Omro, questiio,na posi~ao do analisado com referencia ao a:a~:~ manerra como ba~icafonnule: 0 que ele quer? ' mesmo que ele nao a

Hoje, depois de ter destacado isso, vamos voltar u .como haviamos anunciado no com d m passo atras,avan~ar no exame dos mod e~o. e nossa fala da ultima vez, emesmos, atraves das evideonscpel'aslodsqUaIS os ~u~os teoricos, aIem de nos

. e suas praXIs maniC, tatOpologla que estou tentando fundamentar ' A es ~ a mesmaela toma possiveJ a transferen . para voces, na medida em queCIa.

Para testemunhar isso Ii m . d I -que a formulem como nos Isso a~~ra e es, n.ao e for~oso, com efeito,algum lugar, nao e preciso ~ue se teJ:~c~ eVI~nte. Como escrevi embater com a cabe~a nas paredes D" P anta ~ urn apartamento paranonnalmente a planta e bastante' di~~~=esf~ malS: para e,ssa opera~ao,ca nao e verdadeira. Contrariamente a ve. m con~a~a~da, a recipro-realidade, nao basta bater com beurn esquema prJm1tIvo da prova da

a ca ~a nas paredes para reconstituir a

planta de urn apartamento, principalmente se essa experiencia for feita noescuro. P exemplo que me e caro, de Theodore cherche des allumettes,esta ai para ilustra-Ios.

Esta e uma metlifora talvez urn pouco for~ada - talvez nem tiioforyada quanto Ihes possa parecer. E isso 0 que vamos ver posta a prova,a prova do que acontece, em nossos dias, quando os analistas falam datransferencia.

Quando os analistas, atualmente, falam da transferencia, de que falameles? Vamos direto ao mais atual dessa questiio, tal como ela se prop6epara eles. Ela se propOe ai mesmo onde voces estao sentindo que eu a situoeste ano, a saber, do lado do analista. E, para ser explicito, 0 que osteoricos, e os mais adiantados, mais lucidos deles, articulam melhorquando a abordam e a questiio dita da contra-transferencia.

Poderia recordar para voces, neste ponto, verdades primordiais. Niioe por serem primordiais que elas sao sempre expressas, e, se e escusadodize-Ias, e melhor ainda que se as diga.

Sobre a questiio da contra-transferencia, existe, em primeiro lugar,a opiniiio comum. EaqueJa de qualquer um que tenha abordado urn poucoo problema. E a primeira ideia que se faz dela, primeira no sentido de sera ideia mais comum que se Ihe e dada, mas tambem a mais antigaabordagem da questiio, pois a n~ao da contra-transferencia sempre foiapresentada na analise. Muito cedo, desde 0 comeyO da elabora~ao daideia da nOyao de transferencia, tudo aquilo que, no analista, representaseu inconsciente enquanto, digamos, niio analisado, foi considerado comonocivo para sua funyao e sua operayao de analista.

Na opiniiio que disso se faz, e na medida em que alguma coisa alipermaneceu Ii sombra que eJa se torna a fonte de respostas nao controladase, sobretudo, de respostas cegas. E isso que faz com que se insista nanecessidade de urna analise didatica levada muito longe - adotamostermos vagos para comeyar - porque, como esta escrito em algum lugar,se negligenciassemos determinado canto do inconsciente do analista, dairesultariam verdadeiros pontos cegos, de onde decorreriam eventualmen-te, na pratica, certos fatos mais ou menos graves ou deploraveis -niio-reconhecimento, uma interven~iio frustrada, OUtra inoportuna, atemesmo erro. Este e urn discurso efetivamente sustentado, que coloco nocondicional, entre aspas, sob reServa, que niio subscrevo de saida, mas quee admitido.

Mas por outro Iado, niio se pode deixar de aproximar dessasafirma~oes 0 seguinte: que e na comunicayiio dos inconscientes que,

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184 0 OBJETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRA~AO

afinal, nos deveriamos fiar para que se produzissem melhor, no ana-lista, as apercep~6es decisivas.

Assim, niio seria tanto de uma longa experiencia do analista, de urnconhecimento extenso daquilo que ele pode encontrar na estrutura, quedeveriamos esperar a maior pertinencia, 0 saIto do leiio de que nos falaFreud, que sO se da uma vez em suas melhores realiza~6es _ niio, e dacomunica~iio dos inconscientes. E dai que sairia aquilo que, na analiseexistente, concreta, iria mais longe, ao mais profundo, ate 0 maior efeilo.Niio have ria mais analise onde devesse faltar algum desses momentos quedariam testemunho disso. E de maneira direta, em suma, que 0 analistaseria inforinado do que se passa no inconsciente de seu paciente. Esta viade transmissiio permanece, no entanto, bastante problematica na tradi~iio.Como devemos conceber essa comunica~iio de inconscientes?

Mesmo de um ponto de vista heuristico, ate mesmo critico, niio estouaqui para agu~ar as antinomias e fabricar impasses artificiais. Niio digoque haja, ai, algo de impensavel, e que fosse antinomico definir 0 analistaideal ao mesmo tempo como aquele em quem, no limite, niio restaria maisnada de inconsciente, mas que, ao mesmo tempo, conservaria dele aindauma boa parte. Isso seria criar, ai, uma oposi~iio infundada.

Levando as coisas ao extremo, pode-se conceber urn inconsciente-reserva. E preciso realmente admitir que niio existe em ninguem qualquerelucida~iio exaustiva do inconsciente, por mais longe que seja levada umaanalise. Admitida essa reserva de inconsciente, pode-se conceber muitobem que 0 sujeito advertido, precisamente, pela experiencia da analisedidatica, saiba, de alguma maneira, toear nela como num instrumento,como a caixa do violino do qual, alias, ele possui as cordas. Assim mesmo,niio e de urn inconsciente bruto que se trata nele, mas de urn inconscientemitigado, urn inconsciente mais a experiencia desse inconsciente.

(Feitas essas reservas, resta, no entamo, sentir a necessidade legitima

de elucidar 0 ponto de passagem onde essa qualifica~iio e adquirida, eonde pode ser atingido aquilo que e afmnado pela doutrina como sendo,

I em seu fundo, inacessivel a consciencia. Com efeito, e como tal quedevemos sempre colocar 0 fundamento do inconsciente. Niio que ele sejaacessivel aos homens de boa vontade - ele niio 0 e. E em condi~6esestritamente limitadas que se pode alcan~a-lo, por um desvio, 0 desvio doOutro, que toma necessaria a analise, e reduz de maneira infrangivel aspossibilidades da auto-analise. Como situar 0 ponto de passagem ondeaquilo que e assim defmido pode, todavia, ser utilizado como fonte deinfortna~iio incIuida numa praxis diretiva?

Formular essa questiio niio e criar uma antinomia intitil. 0 que nos!diz que e assim que 0 problema se coloea de uma forma valida, querodizer, que ele e soltivel, e que as coisas se apresentam realmente dessemodo.

A CRtrICA DA CONTRA-TRANSFER~NCIA

" h alguma coisa Ihes toma 0Ao menos para voces, que tern as caves,. . .dadeI •• onhecive1' e que eXlste uma pnon

acesso a e,Ie Imedlatamente brec , . l:cialmente como insconscienteI' . escutam - a sa er que e, In , . .oglca no que ~" . do inconsciente. Foi, em pnmeuo

'do Outro que se fa~ toda au:x:;:~~n~~~ontrou 0 inconsciente. E para cadalugar, em seus paclentes ~ rd' deem primeiro lugar como inconscien-urn de nos, mesmo que seJa e 1 '~~' d ue semelhante tro~o possa existir.te do Outro que surge sempre ~ 1 .ela. ~~ciente se apresenta como urnToda descoberta _de seu proJno l?nconsciente que e no inicio, incons-estagio da tradu~ao em curso e ~ , tiio espantoso qu~ se possa admitirciente do Outro. De mo?o qU:e~:~~u muito longe esse estagio da. tradu-que, mesmo para 0 anahsta q nivel do Outro _ 0 que, eVldente-- t ssa sempre reaparecer no h'~ao, es a po ." . . ntinomia que eu evocava a poucomente, tira muito de su~ Importancla a ~ mpo indicando logo que ela socomo podendo ser fe~ta, ao ~esmo e

poderia se-I~hde :.aneIraa:~:I;~~~iiO com 0 Outro e feito realmente parao que es Ig0 qu e odemos sentir de niio saber 0 bastante

exorcizar, em parte, este temor qu.p pois niio pre tendo incita-Ios a sesobre nos mesmos. Voltaremos a ISS0, a iio nesse sentido: issoconsiderarem desobrigados de qualquer preoeup ~ dmitida a fun~iio

d nsamento Apenas, uma vez aesta bem longe e meu pe : 0 obstaculo que encontramosdo Outro, continuamos a encon~r~r al 0 m:~~ se trata do inconsciente. Ouconosco mesmos em nossa anahs~; qU:sencial para niio dizer historica-seja, aquilo que e 0 eleme~to mm to e 0 pod~r positivo de desconheci-mente Origina.I'tdenomsepUr::t~lg~~:~~~u~o sentido mais amplo, na capturamento que eXISe

imaginaria. . t dominio que esta inteiramenteImporta obs~rvar aqUl qu~ es :Sciente e~ nossa experiencia de

misturado ao declframento ?O_InCOese deve realmente dizer diferente,analise pessoal, tern uma pos~ao qu Outro Aqui surge 0 que chamareiquando se trata de nossa rela~ao :~m 0 .

de ideEalest~ico .qu~:ge::zi;:n~~~~I:~_se os sentimentos, digamos, por\ m pnm~Iro '. . 0 analista ode ter diante de seui atacado, negativos ~u POSl~IV~;J~:niio-compl~ta redu~iio da tematicapaciente, co~ o.s efelto~, ne eMas se isso e verdadeiro por si mesmo emde seu pr6pno lDconscl~nt~. a rela iio com 0 pequeno outro nosua rela~iio ?e a~or-propr~o, dem :1 ele s~ ve como outro que niio eleinterior de SI, aqmlo atrav~s °dq berto bem antes da analise _ estamesmo - 0 que foi entrevlsto, esco, Iii do que se passaco~~dera~iio niio esdgota'i d~i:o~~mal;~~, ;:u~:o~utro, 0 outro doleglt1mamente quan 0 e e

imaginario, de fora. . Ii itos 0 caminho da apatia est6ica demandaVamos ser malS ex~ c i.el as sedu~s como as sevicias even-que 0 sujeito permane~a msens v ,

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tuais, desse pequeno outro de fora, na medida em que esse pequeno outrode fora sempre teve sobre ele algum poder pequeno ou grande, pelo menoso poder de 0 estorvar com sua presen~a. Se 0 analista se afasta desse~a~?, ~de-se dizer que isso seja, por si so, impuuivel a algumamsufiClenCla da prepara~iio do analista enquanto tal? Absolutamente niioem principio. '

A~eite~ e~te esuigio de meu percurso. Isso niio quer dizer quealcancel 0 obJettvo. Proponbo a voces, simplesmente, essa observa~iio:quanta ao reconhecimento do inconsciente, niio temos como formular queele. c~loq~e, por si mesmo, 0 analista fora do alcance das paixoes. Issosena !mpltcar que e sempre, e por essencia, do inconsciente que provemo efelto ~otal, global, toda a eficiencia de urn objeto sexual, ou de algumoutro obJeto capaz de produzir uma aversiio qualquer, fisica.

I Em que isso seria uma necessidade, eu pergunto? - se niio paraaqueles que fazem a con~us~o grosseira de id~ntifica~ 0 inconsciente comotal ~om a soma das potenclas das Lebenstrlebe. E ISS0 0 que diferencia

!radicalment~ 0 ~lcance da doutrina que tento articular diante de voces. Haentr~ os dOlS, e claro, uma rela~iio. Esta rela~iio, trata-se mesmo de

Ielucldar por que ela pode se estabelecer, por que sao as tendencias doinstinto de vida que siio assim oferecidas a essa rela~iio ao inconsciente.Reparem bem que estas niio siio quaisquer dentre elas, mas especialmente

I aquel~ qu~ Freud sempre, e tenazmente, demarcou como as tendencias\ sexuaIS. EXlste com certeza uma raziio se estas silo privilegiadas, cativa-

das, captadas pela mola da cadeia significante, na medida em que e ela\ que constitui 0 sujeito do inconsciente.

D~to isto, nesse esuigi~ de nosso questionamento vale a pena expora questao: por que urn anahsta, a pretexto de ser hem analisado seriainsensivel a determinada ere~iio de urn pensamento bostil que p~desseperceber numa presen~a que esui ali? - e que se deve, certamente, supor,para que alguma coisa dessa ordem se produza, niio estar ali enquantopresen~a d.e urn doente, m~ como presen~a de urn ser que ocupa lugar. Equant? mats 0 supu~rmos Importante, pleno, normal, mais legitimamentepod<:,rao se produZlr em sua presen~a todas as especies possiveis derea~a.o. E da ~esma forma, no plano intra-sexual, por exemplo, por que,em SI, ~ mO:IIDento ~o amor ou do 6dio seria excluido? Por que issodesqualificana 0 analista em sua fun~iio?

. Para essa m~eira de expor a questiio, niio bli outra resposta alem dasegumte: com efelto, por que nao? Eu diria, mesmo, melbor: quantomelbor 0 analista for analisado, mais sera possivel que ele seja franca-mente amoroso, ou francamente tornado por urn estado de aversiio derepuIsa, dos modos mais elementares da rela~iio de corpos entre si ~omreferencia ao seu parceiro. '

. 0 que digo aqui e urn pouco forte, no senti do em que isso nosincomoda. Ese considerarmos que deve mesmo baver, ainda assim, algode justiricado na exigencia da apatia analitica, devera ser realmentenecessario que esta se enraize em outra parte. Mas, entiio, e precisodize-Io.

E, quanto a nos, somos capazes de dize-Io.

\

Se eu Ibes pudesse dizer imediatamente, se 0 caminho ja percorrido mepermitisse faze-l os entender, naturalmente que eu lbes diria. Mas aindatenho urn caminho a faze-Ios percorrer antes de Ihes poder dar a suaformula, e a formula estrita, precisa.

Ainda assim, algo sobre isso pode ser dito des de ja, algo que poderiasatisfazer ate certo ponto. A unica coisa que Ihes pe~o e justamente quenao fiquem satisfeitos demais com isso.

E 0 seguinte: se 0 analista realiza como que a imagem popular, ouigualmente, a imagem deontologica da apatia e na medida em que epossuido por urn desejo mais forte que os desejos que poderiam estar emcausa, a saber, de chegar as vias de fato com seu paciente, de toma-Io nosbra~os ou atira-Io pela janela.

Isso acontece. Eu teria mesmo maus augurios, ouso dize-Io, paraalguem que jamais bouvesse sentido isso. Mas, enfim, com exce~ao dessapequena possibilidade da coisa, isso niio deve acontecer de maneiracomum.

Por quJ<.W niio deve acontecer? Sera pela raziio, negativa, de quee prec1S()evitar uma especie de descarga imaginaria total da analise? -da qual niio temos que prosseguir mais longe na hipotese, embora estafosse interessante. Nao, e em raziio do seguinte, que e 0 que ponho emquestiio aqui, este ano, que 0 aiiiiista diz: ,§o~_~ssuido or urn dese'9mais forte. Ele esui autorizado para dize-Io enquanto analista, enqu@toproduziu-se,para eie, urn; muta~ao na economia de seu desejo. E e aquique os "teXtos de Platiio podem ser evocados.

Acontece-me, de vez em quando, algo de encorajador. Fiz paravoces, este ano, esse longo discurso, esse comentario sobre 0 Banquete,com 0 qual niio estou descontente, devo dize-Io, e ocorre que alguem deminhas rela~5es me fez a surpresa - entendam bem essa surpresa nosentido que este termo tern em analise, como algo que tern mais ou menosrela~iio com 0 inconsciente - de me apontar, numa nota de pC de pagina,a cita~iio feita por Freud de uma parte do discurso de Alcibiades aSocrates.

Freud teria podido procurar mil outros exemplos para ilustrar aquiloque 0 ocupava naquele momento, a saber, 0 desejo de morte misturado ao

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amor. Nao e preciso mais que abaixar-se, quanto aos exemplos, e colhe-Ios~om uma. pa. AIguem, como um grito do cora~ao, lan~ou-me um dia estajaculatona: Oh. como eu queria que 0 senhor ficasse morto por dois anos!Semelhante testemunho, nao e preciso ir busca-Io no Banquete. Portanloconsidero que nao e indiferente que, num momento essencial de su~descoberta da ambivalencia amorosa, seja ao Banquete de Platao queFreud se lenha referido. Este nao e urn mau sinal. Certamenle, nao e sinalde que estejamos errados em ir procurar ali, nos mesmos as nossasreferencias. '

. Pois bem, em Platiio, no F,ilebo. Socrates emite em algum lugar 0segumte pensamento: que 0 desejo, de lodos os desejos 0 mais forte devemesmo ser 0 desejo da morte, pois que as almas que estiio no Ereho alipermanecem. a argumento pOOe ate nao ser muito va lido, mas aqui eleassume 0 valor ilustrativo da dire~ao na qual ja Ihes indiquei que pOOeriase conceber a reorganiza~ao, a reestrutura~ao do desejo no analista. Istoe, ao menos, um dos pontos de amarra, de fixa~ao, de ancoramento daquestiio. Certamente nao nos contentamos com ele.. Ai~da as~im, podemos dizer mais adiante, na mesma veia, a propo-

Slto do dlstanclamento do analista no que diz respeito ao automatismo derepeti~ao, que c~nstituiria uma boa analise pessoal. Existe algo af quedeve superar aqmlo a que vou chamar a partieularidade de seu desvio irurn pouco mais alem, atacar 0 desvio especifico, aquilo que Freud artie~laquando formula que e concebfvel que a repeti~ao fundamental do desen-volv~ento da vida nao seja mais que a deriva~ao de uma pulsao compac-ta, ~blssal, que ele chama, nesse nivel, de pulsao de morte, e onde nadamats resta senao essa ananke, a necessidade do retorno ao zero doinanimado.

Met:ifora, _sem. duvida. E met:ifora que somente e expressa poruma extrapola~ao, dlante da qual alguns recuam, daquilo que e trazidoP?r nossa expe~iencia, a saber, da a~ao da cadeia significanle, incons-clenle, na medlda em que esta imp<>e sua marca a todas as manifesta-~Oes ~ vida no sUje~to que fala. Mas, enfim, met:ifora ou extrapola~aoque nao. e, atinal, fe1t~ a toa. Ela nos permite, ao menos, conceber quealgo _seja poss~vel dlSS0, e que possa efetivamente existir algumarela~ao do anahsta com 0 Hades, a morte, como escreveu, no primeiro

.mimero de nossa revista, uma de minhas alunas, com a mais bela altivezde tom.

I Ele joga. ou niio com a ~orte 1Eu mesmo escrevi, em outra parte,qu~ nesta partIda que e a analise, e que niio e, certamente, estruturavel

J umcamente em termos de partida a dois, 0 analista joga com um morto.Encontramos af esse tra~ da exigencia comum, que deve haver nessepequeno outro que est:i nele alguma coisa que seja capaz de jogar comomono.

I Na posi~ao da partida ~e bridge, ~ S, que e!e e, te~ dianle de si seuI proprio ,Pequeno outro, aq~J1o em que ~Ie es~ C?nslgo mesmo nessa

Irela~ao especular, na medlda em que e conslllUido enquanlo eu. Sesituarmos aqui 0 lugar designado desse outro que fal.a~ que ele vai esc~~r,o pacienle, na medida em que e representado pelo sUJelto barrado, 0 sUJeltoenquanto desconhecido de si mesmo, esle ultimo vai se encontrar tendoaqui, em i(a), 0 lugar da imagem de seu proprio pequen~ a 2- vamo~

I chamar 0 conjunto de imagem do pequeno a ao quadrado, I(a) - e teraI aqui a imagem, 0U antes, a posi~ao do grande outro, na medida em que eo analista quem a ocupa.

Isso significa que 0 analisado tem urn parceiro. E voces nao devem

)se espantar de encontrar reunido no mesmo lugar 0 seu pr6pri? eu, dele,do analisado. E ele deve encontrar a verda de desse outro que e 0 grandeoutro do analista.

a paradoxo da partida de bridge analitica e essa abnegayao que fazcom que, contrariamente ao que ocorre numa partida de bridge nonnal, 0

analista deva ajudar 0 sujeito a encontrar 0 que existe no jogo de seuparceiro. E por essa rauo que e dito que 0 i(a) do analista deve secomportar como um morto. Isso quer dizer que 0 analista deve sempresaber 0 que h:i na distribui~ao das cartas.

Penso que iraQ apreciar a relativa simplicidade desta solu~ao doproblema. Euma explica~ao comum, exolerica, para 0 exterior, e simples-mente uma maneira de falar daquilo em que tOOos acreditam, e alguemque aparecesse aqui pela primeira vez encontraria nela todas as esp6ciesde razOes de satisfayao, e pOOeria dormir 0 sono dos justos, reconfortadopelo que sempre ouviu dizer; por exemplo, que 0 analista e um sersuperior.

Infelizmenle, isso nao cola.Nao cola, e 0 leslemunho disso nos e dado pelos pr6prios analistas.

Nao apenas sob a forma de urna deplorayao, lagrimas nos olhos, d~ estilo- jamais somos iguais Ii nossa funyao. Gr~~as a Deus eSl~ Up? dededamayao, embora exista, nos e poupado ha algum tempo, ISSOe urnfato. Um falo pelo qual nao sou, eu aqui, 0 responsavel, e que s6 devoregistrar.

Ha algum tempo, admite-se efetivamenle na pratica analitiea que 0

analista deve levar em conta, em sua informa~ao e suas manobras, ossentlmentos, nao que ele inspira, mas que experimenta na analise, a saber,aquilo a que se chama sua contra-transferencia.

E aos melhores circulos analitieos que estoualudindo, e, precisamente,ao circulo kleiniano.

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o OBJETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRA<;Ao

Voces VaGencontrar facilmente 0 que Melanie Klein escreveu sobreeste tema, ou ainda Paula Heimann num artigo intitulado On Counter-Tra~erence. Mas nao e num dado artigo preciso que tern que buscar essaconce~ao, que todos consideram atualmente como adquirida. Articula-seisso mais ou menos francamente, e sobretudo compreende-se mais oumenos bem 0 que se articula, mas e1a esta adquirida. De que se trata?

A contra-transferencia nao e mais considerada, em nossos dias,como sendo essencialmente uma imperfeiyao. 0 que nao quer dizer, alias,que nao possa se-Io. Se nao e mais considerada como uma imperfeiyao,nem por isso e menos certo que alguma coisa faz com que ela mereya 0nome de contra-transferencia, como vao ver.

Aparentemente a contra-transferencia e exatamente da mesma na-tureza dessa outra fase da transferencia sobre a qual pretendi, da ultimavez, centrar a questiio, opondo-a Ii transferencia concebida como automa-tismo de repetiyao, a saber, a transferencia enquanto se a diz positiva ounegativa, e que todos entendem como os sentimentos experimentados peloanalisado com relayao ao analista. Pois bern, a contra-transferencia de quese trata - e que se admite termos de levar em conta, se permanece emdiscussao 0 que devemos fazer com ela, e voces vao ver em que nivel _e feita de sentimentos experimentados pelo analista na analise, e que saodeterminados a cada instante por suas relayoes com 0 analisado.

Dentre todos os artigos que Ii, escolhi urn quase ao acaso, mas nuncae completamente ao acaso que se escolhe algurna coisa, e existe, prova-veImente, urna razao para que eu tenha vontade de comunicar-lhes 0 titulodeste aqui. E urn born artigo, que tern justamente por titulo 0 tema de que,em suma, tratamos hoje, Normal counter-transference and some devia-tions, publicado no International Journal em 1956.0 autor, Roger Mo-ney-Kyrle, pertence manifestamente ao circulo k1einiano, e esta ligado aMelanie Klein por intennedio de Paula Heimann.

Antes dechegar la, dieei uma palavra sobre 0 artigo de PaulaHeimann, que nos relata certos estados de insatisfayao ou de preocupayaoexperimentados por e1a. Sob sua pena, trata-se mesmo de um estado depressentimento. Ela se encontrou, pois, numa situayao da qual nao epreciso ser um velho analista para se ter a experiencia, pois nada maisfreqiiente que confrontar-se com ela nos primeiros tempos de uma analise.Que urn paciente se precipite, de uma maneira manifestamente determi-nada pela propria analise, se nao se der conta disso, em decisOes prema-turas, numa ligayao de tango alcance, ate mesmo um casamento _ elasabe que isso e coisa para se analisar, se interpretar, e, numa certa medida,se opor. Mas, neste caso especifico, relata um sentimento absolutamenteembarayoso que experimenta e que, por si s6, sinaliza que ela tern ratiode se inquietar com isso mais especialmente. Ela mostra em seu artigocomo e que este sentimento e 0 que Ihe permite compreender melhor e irmais longe.

A CRITICA DA CONTRA-TRANSFER~NCIA

Muitos outros sentimentos pod em surgir. 0 artigo de Mon~y-Kyrlenarra por exemplo, sentimentos de depressao, de queda geral do .Interessepelas' coisa~, de desafeiyao, de desafetayao mesmo, que 0 anah~ta podeexperimentar com relayao a tudo aquilo que ele toca. 0 anahsta nosdescreve, por exemplo, 0 que resulta de deter:n~nada, ses:sao onde Iheparece nao ter conseguido responder de modo suflclente aqUllo que chamaa demanding Super-Ego. Nao e por escutarem ai 0 eco da deman?a q~evoces precisam apegar-se a ela para compreender se~ so.taqu~ Ingles.Demanding e mais, e uma exigencia premente. Se 0 artigo ~ bo~to de ~eler e porque 0 autor nao se contenta em descrever, mas, alem disso, poeen: causa, nesse sentido, 0 pape1 do Super-ego analitico. Ele 0 faz de um~maneira que Ihes parecera apresentar algum gap, e que r~a!men~ soencontrara sua importiincia se voces se remeterem ao graflco. nomais-alem do lugar do Dutro que a Iinha de baix? ~es represen~ 0

supereu - linha pontilhada, na medida em que voces lDtroduzemali ospontilhados. . b

Ponho no quadro, para voces, 0 resto do graflc?, para que perce am,nesse sentido em que ele Ihes pode servir, e em partIcular para compreen-der que nem ;udo deve ser sempre lanyado Ii conta desse elemento,. aflnal,opaco, que e a severidade do Super-ego. Tal deman~ pode produZlr e~esefeitos depressivos, e ate mais. Isto se produz, precIsamente, no anahsta,na medida em que ha continuidade entre a demanda do Outro e a .estrutw:adita do Super-ego. Entendam que encontramos, de fato, os efeltos malSfortes daquilo a que se chama a severidade do Super-ego qu~ndo ademanda do sujeito vem se introjetar, passar como demanda articuladanaque1e que e 0 seu recipiendario, de tal modo que cIa representa suapr6pria demanda sob uma forma invertida - por exemplo, quando uma.demanda de amor proveniente da mae vem ao encontro, na?uel~ q~e t~mque responder a ela, de sua propria deman~a d<:amor.em _dtreyao a mae.

Mas, aqui, so fayo Ihes dar uma ind~cayao, polS nao e por ai queassa nosso caminho. Esta e uma pbservayao parale1a. .

p Vamos falar de Money-Kyrle, analista, que parece parucularmenteagil e dotado para reconhecer sua pr6pria experiencia. Ele relata algo quefuncionou em sua pratica e 0 prop6e an6s como exemplo. Is:so Ih~ parecemerecer ser comunicado, nao a titulo de impericia, ~e efelt? aCld~ntal:mais ou menos hem corrigido, mas enquanto pro~edlmento l.ntegravel adoutrina das operayOes anaHticas. Ele relata, P01~';urn sentlIDento queobservou em si mesmo como relacionado com as diflculdades apresenta-das pela analise de um de seus pacientes. _ ..

Isso se passa durante esta pitoresca escansao da VIda mglesa que eo week-end eo que ele p6de fazer com seu paciente durante ~ semana Iheparece problematico e 0 deixa insatisfeito. E eis que ele p~6pno sofre, semque a principio veja, de modo algum, a ligayao, urn sublto esgotamento,

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vamos chamar as coisas pelo nome. Durante a segunda metade de seuweek-end, encontra-se num estado que so reconhece formulando-o eleproprio, nos mesmos termos de seu paciente, urn estado de inapeten~ia Iibeira da despersonalizayiio.

o paciente era, por vezes, sujeito a fases no limite da depressiio ede ~quenos efe.itos paranoide~ - e, nem para 0 paciente, nem para 0anahsta, era novldade perceber lSS0. Fora de urn desses estados que haviapart~do toda a dialetica da semana, acompanhado de um sonho no qual 0anahsta se baseara para responder-Ihe, e ele tivera 0 sentimento de niioter dado a boa resposta, certa ou erradamente, mas sentimento fund ado,em todo caso, no seguinte: que sua resposta encolerizara loucamente 0paciente, e a partir dai este se tomara excessivamente hostil para com ele.E eis que a ele, ao analista, acontece reconhecer naquilo que experimentaexatamente 0 que, inicialmente, 0 paciente Ihe havia descrito quanto a seuestado.

o analista em questiio, e aqui, ainda, com todo 0 seu circulo, quechamo, no caso, de circulo kIeiniano, concebe de saida 0 que esta em causacomo representando 0 efeito da projeyiio do objeto mau na medida emque 0 sujeito, em analise ou niio, e suscetivel de projeta-I~ no outro. Niiopare~e c~nstituir problema, num certo campo da analise, dar este tipo deeXp~lCayaO,apes~r do grau de crenya quase magica que isso pode supor.Asslm mesmo, nao deve ser sem raziio que se escorrega ai tiio facilmente.Este objeto mau projetado deve ser compreendido como tendo, natural-ment~, ~ua eficacia, pelo menos quando se trata daquele que estli acopladoao sUJetto numa relayiio tiio estreita e coerente quanto aquela criada poruma analise comeyada ja hli algum tempo.

Como tendo toda sua eficacia, em que medida? 0 artigo 0 diz parav?Ces, tambem~ na med!da em que esse efeito procede aqui de umanao-compreensao do paclente por parte do analista. Ha, entiio, desvio daNc:~mal_Count~r-transference, e 0 que esta em jogo nesse artigo e autthzaryao posslvel desses desvios.

Como 0 comeryo do artigo nos articula, a Normal Counter-tramffe-renc7 se produz atra~es do ritmo de vaivem entre a introjeyiio pelo analistado dlSCurSOdo anahsado e a projeryiio sobre 0 analisado daquilo que seprod.uz co~o efeito im~ginario de resposta a essa introjeryiio. 0 autoradmtte, veJam como val longe, a normalidade desse efeito. 0 efeito decontra-transferencia e dito normal, na medida em que a demanda introje-tada e perfeitamente compreendida. 0 analista niio tem entiio qualquerdificuldade em se observar, naquilo que se produz cI~ramenie em suapropria introjeyiio. Ele so ve sua conseqiiencia, e nem mesmo tem que~azer usa dela. 0 que se produz aIi, e que esta realmente no nivel de i(a),e absolutament~ control~do. E 0 que se produz do lado do paciente, asaber, que 0 paclente proJeta sobre ele, 0 analista niio tem que se surpreen-der com isso, e nem e por ele afetado.

E so mente se 0 analista niio compreende, que eIe e afetado e que seproduz um desvio da contra-transferencia normal. E as coisas podem irate um pontO' em que 0 analista se tome, efetivamente, 0 paciente dessemau objeto projetado nele por seu parceiro. E 0 que ocorreu nesse caso-'ele sente em si 0 efeito de alguma coisa de absolutamente inesperado,e apenas uma reflexiio feita Ii parte Ihe permite - e ainda assim, talvezsomente porque a ocasiao e favoravel - reconhecer ali 0 mesmo estadoque Ihe descreveu seu paciente.

Repito a voces, niio tomo ao meu cargo a explicaryiio. Tambem naoa rejeito. Deixo-a, provisoriamente, em suspenso para ir passo a passo, eleva-Ios ao vies preciso aonde tenho de leva-Ios para articular algumacoisa.

Entiio, se 0 analista niio compreende, nem por is so deixa de tomar-se, no dizer desse analista experimentado, 0 receptaculo da projeryiio emcausa. Ele sente em si mesmo essas projeryOes como um objeto estranho,o que 0 coloca numa singular posiryiio de Iixeira. .

Se isso ocorre com muitos pacientes assim, estiio vendo aonde lSS0nos pode levar. Quando niio se e capaz de situar a propOsito de que seproduzem esses fatos, que se apresentam como desconectados na descri-ryiiode Money-Kyrle, isso pode causar alguns problemas.

Essa direryao da analise niio data de ontem. Ferenczi ja havia formu-lado a questiio de saber ate que ponto 0 analista devia relatar a seu pacienteaquilo que ele, 0 analista, experimentava na realidade. Este seria, segundoele, em certos casos, um meio de dar ao paciente 0 acesso a essa realidade.Ninguem ousa atualmente ir tao longe, e especificamente na escola queestou citando. Paula Heimann dira, por exemplo, que 0 analista deve sermuito severo em seu diario de bordo, sua higiene quotidiana, estar sempreanalisando aquilo que pode experimentar, ele mesmo, desta ordem, masenfim este e um assunto dele com ele mesmo, e cujo designio e tentarcorrer contra 0 relogio, isto e, recuperar 0 atraso em que tera podido assimincorrer na compreensiio, 0 Understanding, de seu paciente.

Seja como for, dou 0 passo seguinte com nosso autor, Money-Kyrleque, sem ser Ferenczi, tambem nao e tiio reservado quanto Paula Heimann.A partir deste ponto local, a identidade do estado sentida por ele com 0que seu paciente Ihe havia trazido no comeryo da seman~, ele chega .aoponto de comunicar ao seu paciente. E nota 0 seu efelto - 0 efeItoimediato, pois ele nada nos diz quanta ao efeito a longo prazo - que eum jtibilo evidente do paciente, que nao deduz nada alem de: - Ah, 0senhor esta me dizendo isso! Pois bem, fico muito contente com i~o, poisquando 0 senhor me deu, outro dia, a interpretaryiio desse estado - e, co~efeito, ele Ihe havia dado uma, um pouco nebulosa e obscura, reconhecla- eu, disse 0 paciente, pensei que 0 que estava dizendo aIi, aquilo falavado senhor, e niio de mim.

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Estamos, pois, ai, em pleno mal-entendido e nos contentamos comisso. En~~, 0 autor se contenta, pois deixa as c'oisas ai; depois, nos dizele, a analIse recomeya, e Ihe oferece, temos que acreditar nisso todas aspossibilidades de interpretayao ulteriores. Eis, precisamente, 0 ~bjeto dac0t.Dun~cayao que ele fez em 1955 ao Congresso de Genebra, do qual seuartlgo e a reproduyao.

a que nos e apresentado como desvio da contra-transferencia e aquicolocado ao mesmo tempo como meio instrumental, que se pode codificar.~m c~sos_ semelhantes, vamos nos esforyar ao menos para recuperar asttuayao tao depressa quanto possivel pelo reconhecimento de seus efei tossobr~_0 analist~, e por meio de comunicayoes mitigadas, propondo nessaocaSlao ao paclente alguma coisa que tern, certamente, 0 carater de urncerto desvelamento da situayao analitica em seu conjunto. Espera-se dissouma n.ova partida, desatando aquilo que se apresentou, aparentemente,como Impasse na situayao analitica.

Nao. estou ratificando a propriedade dessa maneira de proceder.~bservo slmplesmente que, se alguma coisa dessa ordem pode ser produ-Z1~~ d~ algum modo, isso nao esta, certamente, ligado a urn pontopnvtleg~~do: a que posso dizer e que, em toda a medida em que haveriauma legttlmldade desta maneira de proceder, sao, em todo caso, as nossascategorias que nos permitem compreende-Ia.

I Parece-t.De que nao e possivel compreende-Ia fora do registro daqui-10 que ~pontel c0t.D0 0 lugar de a, 0 o?jeto parcial, 0 agalma, na relayaode deseJo, na medlda em que ela propna e determinada no interior de uma

I relayao mais vasta, a da exigencia de amor. E somente nessa topologia, que podet.D0s compree~der semelhante modo de proceder. Essa topologia\I nos permlt~, _de f~to~ dlz~r 9ue, me~mo que 0 sujeito nao 0 saiba, apenas

I pela Suposlyao, duel, obJetlva da sttuayao analitica, ja e no outro que 0pequeno a,.~ agalma, funciona. Segue-se que aquilo que se nos apresentanessa ocaSlao como contra-transferencia, normal ou nao, nao tern, real-mente, qualquer razao de ser especialmente qualificada como tal. Trata-seai apenas de urn efeito irredutivel da situayao de transferencia simples-

Imente, por si mesma. '

II. !elo simples fato de haver transferencia, estamos implicados na

pos19ao de se~ ~quele q~e.colltem 0 ~galma, 0 objeto fundamental de quese tra~ na_anahse ?? sUJetto, como IIgado, condicionado por essa relayaode vactlayao do sUJetto que ~aracterizamos como 0 que constitui a fantasiafundamen~l, como 0 que mstaura 0 lugar onde 0 sujeito pode se fixar

. como deseJo.\ \ . ~ste ~ urn efeito legiti~o .da transferencia. Nao e preciso fazer

Imt~rvlr, polS, a.co~tra-transfer~nc.la, como se tratasse de alguma coisa que

\sena a parte pr,?pna: e be,? malS amda, a parte faltosa do analista. Apenas,para reconhece-Ia, e preclso que 0 analista saiba certas coisas. E preciso

que ele saiba, em particular, que 0 criterio de sua posiyao correta nao cque ele compreenda ou nao compreenda. . .

Nao e, em absoluto, essencial que ele compreenda. Duel mesmoque, ate certo ponto, 0 fato de que ele nao compreenda pode ser preferivela uma confian9a grande demais em sua compreensao. Em outras palavras,de deve sempre por em duvida aquilo que compreellde, e dizer-se queaquilo que procura alcan9ar e justamente aquilo que, em principio, n,aocompreende. §...§.q!Jlentena medida em que, decerto, ele sabe 0 qu~ e 0des~j9-,-!.llasnao ~abe ~..9.u~esse s!1jeito, com quem emb~rcou na ave~tur~analitica, deseja, que ele esta em posi9ao de ter el1l SI, deste d~seJo,_ 0objeto. Esta e a unica coisa que pode explicar alguns desses efeltos taosingularmente assustadores ainda, ao que parece.

Li um artigo que Ihes you indicar mais precisamente da proximavez no qual urn senhor, no entanto cheio de experiencia, se interrogaqua~to ao que se deve fazer quando, a partir dos primeiros son~os, e asvezes desde antes que a analise se inicie, 0 analisado produz em Sl mesmoo analista, como urn objeto de amor caracterizado. A resposta do autor emquestiio e urn pouco mais reservada que a de urn out~o, 0, ~u~~ ~ssu~eabertamente a posi9ao de dizer que, quando come9a aSSlm, e muttl u malSlonge, porque h:i urn excesso de rela90es de reaiidade. .

Sera assim que devemos dizer as coisas? Para nos, se nos delxarmosguiar pelas categorias que produzimos, e no proprio principio da situa9aoque 0 sujeito e introduzido como digno de interesse e de a~or, er6,~ellos.B para ele que se esta ali. Este e 0 efeito - se podemos dlzer mamfesto.Mas existe urn efeito latente, que esta ligado a sua nao-ciencia, a suainsciencia. Insciencia de que? - daquilo que e, justamente, 0 objeto deseu desejo de urn modo latente, quero dizer, objetivo, ou estruturaI. Esteobjeto ja esta no autro, e e na medida em que e assim que ele e, quer 0saiba, quer nao, virtualmente constituido como ~rastes. Simpl~s~c:nte poresse fato ele preenche eSSa condi9ao de metafora, a subStttUl9ao peloerastes do er6menos, que constitui em si mesma 0 fenomeno do amor.Nao e de surpreender que vejamos seus efeitos ardentes desde 0 come90da analise no amor de transferencia.

Nao h:i meio, no entanto, de ver ai uma contra-indica9ao. E ai quese coloca a questiio do desejo do analista, e, ate certo ponto, de suaresponsabilidade. .

. Para dizer a verdade, para que a situa9ao seja, como se expru~emos notarios a respeito de contratos, perfeita, basta supor que 0 analIsta,mesmo a sua revelia, coloque por urn instante seu proprio objeto parcial,seu agalma, no paciente com quem esta lidando. Ai, com efeito, se pod.efalar de uma contra-indica9ao, mas como veem, nada menos que locah-zlivel - ao menos enquanto a situa9ao do desejo do analista nao eexplicitada.

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196 0 OBJETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRA<;Ao

Sera suficiente que leiam 0 autor que Ihes indico para ver que, aquestiio do que conceme ao analista, ele e obrigado a coloca-Ia pelanecessidade de seu discurso. E 0 que nos diz ele? Que duas coisasconcemem ao analista quando ele faz uma analise, dois drives. E muitoestranho ver-se qualificar de pulsoes passivas as duas que Ihes yOUdizer:o drive reparador que, nos diz ele texmalmente, vai contra a destrutividadelatente em cada urn dos nos e, por outro lado, 0 drive parental.

Eis, portanto, como urn analista de uma escola tiio elaborada quantoa escola kleiniana chega a formular a posi~ao que deve adotar urn analistacomo tal. Nao yOU cobrir 0 rosto, nem lan~ar altos gritos. Penso queaqueles que estiio familiarizados com meu seminario ja veem nele escan-dalo bastante. Mas, afinal, e urn esciindalo do qual participamos mais oumenos, pois falamos sem cessar como se isso fosse 0 que esta em questiio,mesmo que sai bamos hem que nao devemos ser os pais do analisado. Bastaver 0 que dizemos quando falamos do campo das psicoses.

E 0 drive reparador, 0 que quer dizer isso? Isso quer dizer ummimero enorme de coisas. Isso tern uma quantidade de implica~Oes emtoda nossa experiencia. Mas, enfim, nao valeria a pena articular, nessesenti do, em que este reparador deve se distinguir dos abusos da ambi~aoterapeutica, por exemplo?

Em suma, 0 que ponho em causa nao e 0 absurdo de tal tematica,mas, ao contrario, aquilo que a justifica. Dou 0 credito ao autor, e a todaa escola que ele representa, de visar alguma coisa que tern, efetivamente,lugar na topologia. Mas e preciso articula-Ia, situa-Ia de uma vez, eexplica-Ia de outra forma. Por que um autor experimentado pode falar depulsoes parental e reparadora a propOsito da analise, e dizer ao mesmotempo algo que, por urn lado, deve ter sua justificativa, mas que, por outrolado, requer imperiosamente uma que seja verdadeira?

Eis porque, da proxima vez, vouresumir rapidamente aquilo que, de umaforma apologetica, me aconteceu apresentar, no intervalo desses doisseminarios, a urn grupo de filosofia sobre a posi~ao de desejo.

DEMANDA E DESEJONAS FASES ORAL E ANAL

o psicanalista e a pulsiio.A goela aberta da vida.Do polo ao parceiro.Bout-de-Zan.A contra-demanda.

Para aqueles que cairam do mundo da lua hoje entre nos, dou uma rapidaindica~ao .. do

Em' rimeiro lugar tentei recolocar, em termos malS ~gorososque ja se ~avia feito ate agora, 0 que se ~d~ c?am~ ta ~eor~::~I~~~~Icndo por fundamento 0 Banquete, ~e Platao. e no ::~~; a posi~ao daconseguimos situar nesse comentano que come~o a ? . eiI.ransferencia, no sentido em que anunciei este ano, lsto e, no que cham

de sU~~t:~~d:~~ ~,::~e:;:'a posi~ao dos dois sujeitos em presefn~la nad-0

. ., nao se pode a ar ec de modo algum eqmvalente. E e por l~SOq~esitua ao analitica mas apenas de pseudo-sltua~ao. _ A •

. ~ d'· da d ultimas vezes a questao da transferencla,Abordan 0, polS, s uas . . u de. 0 fiz pelo lado do analista. 0 que nao slgmfica, no entanto, que e .~~ termo contra-transferencia 0 sentid.o em 9ue este elicomumen

lteaa;~~~

• . d' rfei ao da punfica'Yao do ana sta na re a'Y~ea~~I~s:d:c~uiet:~o c~ntrario, entendo por contra-?,a~sfere~c.ia a. . - ., do analista na situa'Yiio de transferencla, e e 1880,~~~If::~~~;~~:com q~e devamos desconfiar ~:~i:::::~rid~T ta se na verdade pura e srmplesmente, de conseqI p;~prio fen6meno da transferencia, se 0 analisarmos corretamente.

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a OBJETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRAc;Ao

Introduzi 0 problema pelo fato deatualmente apreendida na pra'tl' I" qdue a contra-transferencia e

. ca ana Wca e um mod b;;~~r~e~a~s:fe~~sm n:f%t~did~e aquilo que P?dere~os ~haa~~;~:~~~~analise, constitui' um modo s:~- que 0 anths~ seJa tocado por eles na

~~~~~~~n~~a~~s~t~~~~t~n~~~~~~ ~~~~:U~~t~ ~~n~~mnea:;:~~vi~fir~

que ele ,pode faze; ~isso, ~ventualm:n~~~ :Zt:::~i~~~~~ pel a comunicayaoNao subscrevI a legltimidade deste ' d

ser introduzido e promovido na pr:itica me~o .o. C~~stato que ele podecampo mu~to vasto da comunidade an~l~t;;::' Ol rece ldo e admitido num

. Isto e, por si so, bastante indicativo. E nosso caminh .anahsar como os teoricos que en tend . 0 sera, por ora,cia olegitimam. em aSSlm 0 usa da contra-transferen-

~:~:~~~c:~;;~~:~~;o~s;a~~ ~oon:~~~~::~~er;~~ia, ligando-a a momen-mcompreensao fosse em si 0 crit' . d'" 0 se passa como se suao que obr~garia 0 analista a passa:~o~~ ;~:~%~;~~ente ond~ se ~efineum outro Illstrumento em sua maneira d . e C?~urucayao, e a

E em tomo d t ~--...sesltuar na anahse do sujeito.o ermo compreensao' "mostrar hoje a voces a fim d;;!h . ~ue val ~lrar 0 que pre tendoque se pode chamar 'segundo no:s ~rmJtlr aproxlm~r-se mais daquilosujeito com seu deseJo. Lembro sos t:nos, a relayao da demanda doplano, e no principio aquilo cu?oc~~o~eJto, que colocamos em primeiroa saber, que 0 que est:i em quesJo 'I~ mostramo~ ~ue era necessario,da manifestaya? do desejo do sUje~~o~nalse nada mms e que a emergencia

Qnde~sta a compreensao quando co dtamos compreender? Digo qu •. mpreen. emos, quando acredi-•. e, na sua lorma malS certa d" _.-lorma primaria a compreensao d .' e lfJa, na suaQ.iante de nos p~de ser definida n 0 ~uel ~uer que .seJa que 0 sujeito e.~a!LOSsabemos responder aquilo' 0 ruve °dconsclentS'cpelo s.eg~~acredita' . que 0 outro emanda . .tl na medida em- mos poder responder a sua demanda q 't- .__. 'l.U~~decomereender. ue C;Samos.no selltJtrr~J)!9

Sobre a demand a, no entanto sabe .abordagem imediata. Sabemos '. mos u~ pouco malS do que estarxplicita. Ela e mesmo mUl't prec~samen~e dl~t?; que 11 demanda nao e

. . ' , 0 malS que lmphclta el' I - -_.'§.!J~t~~7ela e como algo que deve ser interpretad ' ~ e ,ocu Ja p~ra 0gmblgUJdade. 0.. e al que resIde a

~Qm..J~fdtQ,. nos que a interpretamos d .i.!!9q,ns~jente no.pl;no de um d' ' ,respon emos a demanda

. ISCUrso que e, para nos, um disCllfSO

concreto. E ai, exatamente,_ql!f _esm 0 vies, ,a armadilha. E da mesmamaneira fendemos des de sempre a deslizar para essa suposiyao que noscaptura, de que 0 sujeito deveria, de alguma forma, contentar-se com 0

que revelamos por nossa resposta - que ele deveria se satisfazer comnossa resposta.

Bem sabemos, no en tanto, que e neste ponto que se produz semprealguma resistencia. E foi da situayao dessa resistencia, da maneira pelaqual podemos qualifica-Ia, e das insllincias as quais a referimos, quedecorreram todas as etapas da teoria analitica do sujeito, a saber, a teoriadas divers as instiincias com as quais, nele, temos de lidar. Todavia, semnegar a parte que tem, na resistencia, essas diversas instiincias do sujeito,nao sera possivel chegar a um ponto mais radical?

A dificuldade das relayoes da demanda do sujeito com a respostaque Ihe e dada se situa mais adiante, num ponto absolutamente original,aonde tentei leva-Ios mostrando a voces 0 que resulta, no sujeito que fala,do fato - eu 0 exprimia assim - de que suas necessidades devam passarpelos desfiladeiros da demanda. Nesse ponto original, dai resulta que tudoaquilo que e, no sujeito que fala, tendencia natural, tem que se situar nummais-aIem e num aquem da demanda.

Num mais-alem que e a demanda de amor. Num aquem que e 0 quechamamos 0 desejo, com aquilo que 0 caracteriza como condiyao, e quechamamos de sua condiyao absoluta na especificidade do objeto a que elese refere, a, objeto parcial. Tentei mostra-Io a voces como incluido desdea origem nesse texto fundamental da teoria do amor que e 0 Banquete,como agalma, na medida em que 0 identifiquei tambem ao objeto parcialda teoria analitica.

Pre tendo hoje faze-I os tocar nisso, novamente, por um breve re-per-curso do que ha de mais original na teoria analitica, a saber, as Triebe, aspulsoes e seu destino. Poderemos, em seguida, deduzir 0 que dai decorrequanta ao que nos importa, a saber, 0 drive interessado na posiyao doanalista.

Voces se record am de que foi neste ponto problematico que eu osdeixei, da ultima vez, na medida em que um autor, aquele, precisamente,que se exprime sobre 0 objeto da contra-transferencia, 0 designa naquiloa que chama 0 drive parental, necessidade de ter prole, e no drivereparador, necessidade de ir contra a destrutividade natural suposta emtodo sujeito enquanto analisavel.

Voces captaram imediatamente a ousadia e a audacia que ha emformular afirmayoes como estas. Basta deter-se ai por um instante paraperceber 0 seu paradoxo. Se 0 drive parental deve estar presente nasituayao analitica, como ousar mesmo falar da situayao de transferencia,ja que e, realmente, uma figura parental que 0 sujeito em analise terndiante de si? a que ha de mais legitimo do que ele recair, relativamentc

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a este, na mesma posiryao que manteve durante toda a sua formaryao comreferencia aos sujeitos em torno dos quais se construiram as situaryoesfundamentais que constituem para ele a cadeia significante, os automatis-mos de repetiryao?

Em outras palavras, como nao se aperceber que rumamos direto aoescolho que nos permitini repousar? Que temos, ai, uma contradiryaodireta, ja que dizemos ao mesmo tempo que a situaryao de transferencia,tal como se estabelece na analise, esta em discordancia com a realidadeda situaryao analitica? - que alguns exprimem, imprudentemente, comouma situaryao tao simples, ligada ao hie et nunc da relaryao com 0 medico.Se este medico esta, aqui, armado do drive parental, como nao ver, pormais elaborado que 0 supusessemos pelo lade de uma posiryao educativa,que nao existe absolutamente nada que distancie a resposta normal dosujeito a situaryao de tudo 0 que podera ser enunciado como a repetiryaode uma situaryao passada?

Nem ha meio de articular a situaryao analitica sem colocar, ao menosem alguma parte, a exigencia contraria. Vejam, por exemplo, 0 terceirocapitulo do Alim do Principio do Prazer. Freud, retomando a articularyaodo que esta em causa na analise, faz efetivamente a separaryao entre arememoraryao, a reproduryao e 0 automatismo de repetiryao, Wiederlzo-lungszwang, na medida em que considera este ultimo como urn semifra-casso da visada rememorativa da analise, urn fracasso necessario. Elechega mesmo a lanryar na conta da estrutura do eu - na medida em queexperimenta, nessa fase de sua elaboraryao, fundar sua instancia como emgrande parte inconsciente - a funryao da repetiryao, certamente que nao 0

todo dessa funryao, ja que todo 0 artigo e feito para demonstrar que existeuma margem, mas sua parte mais importante. A repetiryao e lanryada naconta da defesa do eu, enquanto a rememoraryao recalcada e consideradacomo 0 verdadeiro termo, 0 termo ultimo da operaryao analitica, talvezainda considerada, naquele momento, como inacessivel.

A visada ultima da rememoraryao encontra uma resistencia, que esituada na funryao inconsciente do eu. Seguindo essa via de elaboraryao,Freud nos diz que devemos passar por isso e que, na regra, 0 medico naopode poupar ao analisado esta fase, mas deve deixa-Io reviver de novo urnpedaryo de sua vida esquecida. Ele tern que tomar conta disso, porque umacerta medida de Oberlegenheit, de superioridade, permanece conservada,graryas ao que a realidade aparente, die anscheinliche Realitiit, podera noentanto sempre ser novamente reconhecida pelo sujeito como urn reflexo,urn efeito especular de urn passado esquecido.

Deus sabe a que abusos de interpretaryao se prestou essa indicaryaodo Oberlegenlzeit. Ai esta aquilo em torno do que se pooe edificar toda ateoria da alianrya com a soi-disant parte sadia do eu. Nao hli, entretanto,nada de semelhante nessas paginas. Posso sublinhar aquilo que, de passa-

DEMANDA E DESEJO NAS FASES ORAL E ANAL

• A saber 0 carater de certo modo neutro,[!,cm,deve ter surgIdo para voces, ad 'Oberlegenheit Onde esta esta

I d m de outro esta '. .ncm de urn a 0 ne . ' ndida do lado do medIcO que,slIperioridade? Devera ela ser lco~dPre~Oll estara do lado do doente?

rva toda a sua UCI ez. . bcsperemos, co~e . tao ma quanto as que foram fe1tas soNa traduryao francesa, que ~ .' t traduzida - e deve

.' a COlsa e cunosamen ediversos outros patrocllllos,do rYe urn certo grau de serena

1 ue 0 ente conse .,apenas ze ar para q d lh te no texto - que the permlta

. 'd de N- ha na a seme an .superIOr! a . ao [,dade daquilo que ele reproduz eco nstatar, apesar de tudo, que a rea I

apenas apa~ente. " . I duvida deve ser situada de umaEsta Oberlegenhelt, ~xIglve. semd que ;odas as elaboraryoes que. . f' .ta nte ma1S precIsa 0manelfa ill 1m me _ I daquilo que se repete no tratamen-

pretendam com~arar_a ab-rearya~ at~~~ erfeitamente conhecida.lO, como uma slt~aryao que se ~~~ do e~ame das fases, e das demandas,

Vamos, pOlS, v?l.tar a.p 0 as abordamos em nossas interpreta-das exigencias do SUjeIto talS comd' . dl'ta das fases da libido, pela

uindo a lacromaryoes. E comecemos seg I os referimos tao freqiientemente, ademanda mais simples, aque a a que ndemanda oral.

? E demanda de ser alimentado. Que se dirigeo que e uma ~emanda OJ;~I:~ -: este Outro que espera e que, neste nivela quem, a que? EI.a s~ d~n~ - d pode realmente ser designado comoprimario da enunclaryao a em~n~, tr 0 Outro impessoal, 0 Outron -aquilo que chamamo~ de lugar 0d ~ o~. 6es com aquelas que sac fami-eu diria, p~r~ faze~ nr~ar no~~u:~~g:b;trato, dirigida pelo sujeito, maisliares na F1SIca. A1.es~, a est. demanda de ser alimentado.ou menos a sua propna reveha, a da elo fato de ser fala, tende a se

I;>issemos qu.e toda dema~e ' ~e ela atrai do outro sua respostaestruturar no segumte: no fatod q trutura sua propria forma trans-. 'd EI oca por forrya e sua es, .'lllverU a. . a ev ". _ P fors:a da estrutura sigmficante, aposta segundo u~a certa lllversaod o~im e de uma maneira que se podedemanda de ser ahmentado re~pon e, a ta d:manda no lugar do Outro, nodizer logicamente contemporanea a ~s . '

d da de se delXar ahmentar.nivel do Outron, l!..__e~an - -. A • Niio esta ai a elaboraryiio refina-

Bern sabemos.di~s? na expenenc1a. trata cada vez que explode 0

da de um dialogo f1CHClO.E d1SSOqu~ se a e a mae que parece ser feitamenor conflito nesta rel.aryaoe~tre :~~a:~m lemen~r. 0 que existe quepara se fechar de manelfa estnta~ d an~ de ser alimentado do que aresponda melhor, aparentemente, a em t to que e no proprio modo dede deixar-se alimentar? Sabemos, no en an ,

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o OB]ETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRAc;:Ao

1confrontamento entre as duas demandas que jaz este infimo gap, esta,hiiincia, este rasgao, onde se insinua de uma maneira normal a discor-diincia, 0 fracasso pre-formado do encontro. Este fracasso consiste,

'justamente, em nao ser encontro de tendencias, mas encontro de de-\mandas.

No primeiro contlito que explode na rela~ao de alimenta~ao, ,no~Q~ontro da demanda de ser alimentado com a demanda de ~_ deixaralimentar, manifesta-se que esta demanda e transbordada por urn deseJo- que ela nao poderia ser satisfeita sem que esse desejo se saciasse ali- que e para que esse desejo que transborda a demanda nao se sacie que~!!.o_qu~ t~m fome, pelo fato de que Ii sua demanda de ser alimencido,responde Ii demanda de se deixar alimentar, nao se deixa alimentat:, effi<d!~. de l!.lgl!11la(Qrmlldesaparecer como desejo pelQ fato de_ser...satis.:feito como demanda - que a extin~ao ou 0 esmagamento da demanda ~.asatisfa ao nao se poderia produzir sem matar 0 desejo. E dai que saemtodas essas discordiincias, das quais a mais imajada e aquela da recusade se deixar alimentar na anorexia dita, com maior ou menor justi~a,nervosa.

Encontramos ai essa situa~ao que eu nao poderia traduzir melhorsenao jogando com os equivocos autorizados pelas sonoridades da fone-matica francesa. Nao se poderia confessar ao outro aquilo que e 0 maisprimordial, a saber, tu is 0 desejo (tu is Ie disir), sem ao mesmo tempodizer-Ihe matado 0 desejo (tui Ie disir), isto e, sem lhe conceder que elemate 0 desejo, sem the abandonar 0 desejo como tal. A ambivalenciaprimeira, propria a toda demanda, e que, em toda demanda, e ig~lmenteimplicado que 0 sujeito nao quer que ela seja satisfeita. 0 sujeito visa em.si a salvaguarda do desejo, e testemunha a presen~a do desejo inominad.oe cego.

Esse p!:~jo, 0 que e.? Nos 0 sabemos, e podemos responder damaneira mais classica e mais original. A~manda oral te.!ll UI!Loutro~entid0y.J~!!!.<!a satisfa~ao da fome. ~la e.demanda seX!!l!.l.Ela e, em seufundo, nos diz Freud desde os Tres ensaios sobre a teoria da sexualidade,canibalismo, e 0 canibalismo tern urn senti do sexual. Ele nos recorda, 0

que estli mascarado na primeira formula~ao freudiana, que alimentar-seestli para 0 horn em, ligado Ii boa vontade do Outro - estli ligado a estefato por uma rela~ao polar.

Existe tambem este termo, que nao e apenas do pao da boa vontadedo Outro que 0 sujeito primitivo tern que se alimentar, mas simplesmentedo corpo daquele que 0 alimenta. Pois e preciso chamar as coisas por sellSnomes - a rela~~exuaLe..J!<Lt!!!o_~lo qual ~ rela~iio com 0 potro~mb(tca numa uniao de corpos. E a uniao mais radical'e a da abso~~original, onde desponta, na mira, 0 horizonte do canibalismo, que carac-teriza a fase oral como aquilo que ela e na teoria analitica.

Vamos observar bem aqui 0 que esta em questiio. Tomei as cois,aspclo lado mais dificil, ao come~ar pela origem, q~ando e sempre para tras,rctroativamente, que devemos achar como as COlsas se montam no des en-volvimento real. _

Existe uma teoria da libido, contra a qual voces sab~m que meinsurjo, ainda que tenha sido promov~d~ por urn de nossos amIg~s, FranzAlexander. Este, com efeito, faz da lIbIdo 0 excedente de energla ~ue semanifesta no vivente, uma vez obtida a satisfa~ao das ~e~essIdadesligadas Ii conserva~ao. E bastante comodo, mas e falso. A hbldo sexualnao e isso. A libido sexual e realmente, com efeito, u~ exced~nte, masurn excedente que torna imitil toda satisfa~ao da necessIdade aII on de elase c~loca. E Ii necessidade, e mesmo 0 caso de dizer-se, ela recusa essasatisfa~ao para preservar a funyao do desejo.

Tudo isso nao passa de evidencia, que se confirma por toda a parte,como vao ver se voltarem atras e recome~arem na de.manda de .seralimentado. Voces vao sentir isso imediatamente no segmn~e: pelo SIm-ples fato de que a tendencia da hoca que tern fome se expn~~ .por estamesma boca numa cadeia significante; entra nela esta pos~IbIlId.ade dedesignar 0 alimento, que e 0 desejo. 9ue aliment,?? A pnmeI~a COlsa queresulta disso e que esta boca pode dIzer: Esse nao. A ~e~~yao, 0 afa~ta-mento 0 eu gosto disso e nao de outra coisa do d~seJo, Ja entra aqm, eaqui e~plode a especificidade da dimensao do deseJo. _

Dai a extrema prudencia que devemos ter com relayao a nossasinterpretayoes no nivel do registro oral. Pois, eu 0, di~se, esta deman.da seforma no mesmo ponto, no nivel do mesmo orga~ onde se ~nge atendencia. E e ai mesmo que reside 0 problema. E posslvel produZlr todasas especies de equivocos ao responde~ a essa deman~. Certamente,

, daquilo que the e respondido resulta, afmal, a preservayao do campo ~afala e portanto a possibilidade de reencontrar sempre ai 0 lugar d? deseJo,mas' e tambem a possibilidade de todas as sujeiyOes - tenta-se rmpor aosujeito que, uma vez sua necessidade satisfeita, ele. so pode ~e cont~~tar.Dai se fazer da frustrayao compensada 0 termo da mtervenya~ anahuca.

Quero ir mais alem, e tenho h~j~ minhas raz?es, co~o vao ver, .pa~afaze-Io. Quero passar Ii fase dita da lIbIdo anal. E a~que crew poder atm¥lfe refutar urn certo mimero de confusoes que se mtroduzem da maneuamais corrente na interpretayao analitica.

o que e a demand a na fase anal? _ .Todos voces tern, penso, experiencia bastante para que eu nao preCIseilustrar ainda mais aquilo que YOU chamar de demanda de reter 0 excre-

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men~o, na medida em que ela fund a, sem duvida, alguma coisa que e urn?eseJo ?e ex~u.Isar. Mas isso nao e assim tao simples, pois essa expulsaoe tambem eXIgIda, mesmo, numa certa hora, pelos pais que educam. Ai edemandado ao sujeito dar alguma coisa que satisfa~a, chegado 0 momen-to, a expectativa do educador materno.

! A elabora~ao que resulta da complexidade dessa demanda mereceque. no_sdetenhamos .neste ponto, pois eIa e esseneial. Observemos que,aqUl nao se trata maIS da rela~ao simples entre uma necessidade e suaforma demandada, ligada ao excedente sexual. E outra coisa. E de umaIdiseiplina da necessidade que se trata, e a sexualiza~ao so se produz nol~ovImen.t~ de retorno a necessidade. E este movimento que, se posso,dIz.er, legltIma a necessidade como dom a mae, a qual espera que a crian~afatIsfa~~ suas fun~Oes, e fa~a emergir, aparecer alguma coisa digna dajaprova~ao geral.

Igualmente, 0 carater de presente que assume 0 excremento e bemconheeido e observado desde a origem da experiencia analitica. E de talforma neste registro que, aqui, urn objeto e vivido, que a crian~a, noexcesso de seus transbordamentos ocasionais, 0 emprega naturalmentepode-se dizer, como meio de expressao. a presente excrementicio fa~parte da tematica mais antiga da analise.

Quero, neste sentido, levar a seu termo ultimo esse exterminio aoque me esfor~o desde sempre, da mitica da oblatividade mostrando avoces aqui a que ela se reladona realmente. a camp-Vda ellaletica anal eo _ver.dade~o ca~PQda bla,tividade, e uma vez que 0~ j;rcebido,nao poderao maIS reconhece-Io de outra maneira.

Ha muito tempo que, sob formas diversas, ten to introduzi-Ios a estaobse~~~ao. ~, em espeei~l, fiz co~ que observassem que,o proprio J~'1!!2

' ~'?~a~tIvIdadee uma fantasIa obsesslVa. Tud0p!!r:!l o.outro, diz 0 obsessivo,~. e IS~!!l_esmo 0 que ele faz,_,pojs,_estando na perpetua vertigem da.sIestrUl~ao do outro, ele nunca faz 0 bastante para que 0 outro se mantenha,na existeneia. Vemos aqui a raiz disso. - -

A fas~ anal se caracteriza pe!o seguinte, que 9 sujeito so satisfazYlI!a necessIdade para a satisfa~ao de urn outro. Essa necessidade ele

''foi ensinado a rete-Ia para que ela "Se funde, se institua unicam~ntecomo a ocasiao da satisfatyao do outro, que e 0 educador. A satisfa~aoda maternagem, da qual faz parte a higiene anal e inicialmente a dooutro. E e na ~edida em que e urn dom que e d~mandado ao sujeitoque se pode dlZer que a oblatividade esta ligada a esfera de relaty6es,lda fase anal.

. . .Rep~rem Sua conseqiiencia - iLJ!l.l!rgem do lugar que re~ta p.arlLos~JeI!Q, e~ ()utra~J~~I~vras, 0 desejo, vem nessa situa~ao ser simbolizadapor aquilo que e suprimido na operatyao. 0 desejo, literalmente ~;;}'1~. A simboliza~ao do sujeito como aquilo que vai embora no' urinol

ou no buraco, nos a reencontramos na experieneia como ligada, 0 maisprofundamente, a posityao do desejo anal.

E isso, realmente, 0 que constitui ao mesmo tempo. sua atratyao eigualm~nte _,~m.muitos cas os, SUAevitatyao. Nem sempre e a est~ te~oque conseguimos levar 0 insight do paeiente. Voces podem, todavIa, dIzera si mesmos que, na medida em que a fase anal esta implicada nisso,estariam errados em nao desconfiar da pertinencia de sua analise, se ainda!lao encontraram a cad a vez este termo. Enquanto nao observ~relI!, Q.~~s~ponto, a relatyao basica, fund~mental, do'sujeito como desejo com oobjetomais desagraday_el, asseguro-Ihes que nao terao dado urn grande passo naanalise das condi~6es do desejo.

-Este ponto preeiso e urn ponto nevralgico, que bem vale, pelaimpormneia que tern na experiencia, por todos esses primitivos objetosorais, bons ou maus, sobre os quais se fazem tantos comentarios, Naopod em negar que este lembrete nao seja feito a todo instante na tradityaoanalitica. Se ficaram tanto tempo surdos e na medida em que as coisas naosao indicadas, ali, em sua topologia fundamental, como me esfortyo, aqui,em faze-Io para voces.

Mas enta~, vao me dizer, 0 que ha aqui de sexual, e da famosa pulsiiosadica que se conjuga, gra~as a urn travessao, ao termo anal, como se issofosse evidente por si mesmo?

Aqui e necessario urn certo esfor~o, urn esforyo daquilo que naopodemos chamar de compreensao, senao na medida em que s~ trata deuma compreensao no limite do sexual, que so pode entrar aqUl de umaforma violenta. E isso mesmo que se passa aqui, com efeito, ja que damesma maneira e da violeneia sadica que se trata. Embora isso aindaguarde em si mais que urn enigma, convem que nos detenhamos neIe.

E nlLtell!~i!.~ anal que 0 oU,t1;o~omo tal_ a§s,!!1l!eplenameI).te qdominio. E e isso, justatp.ente, que faz com que ..9~~xual se..!!lani!~ste noregistro pt6~-; essa fase. Podemos entreve-Io, recordando seu antece-den'te:quallficado de slidico-oral. .

Falar da fase sadico-oral, com efeito, e recordar em suma que a VIdae no fundo assimila~ao devoradora como tal. Na fase oral, e 0 tema dod~voramen;o que esta situado a margem do desejo, e a presenya da goelaaberta da vida.

Ha, na fase anal, como que urn reflexo dessa fantasia. Q outro,.send.ocolocado como 0 segundo termo, deve aparecer como existeneia of~reeid~a esta maneia. Chegaremos a dizer que 0 sofrimento esta implicado ai? Eurn sofrimento bem particular. Para evocar uma espeeie de esquemafunruUiiental que Ihes dara, no melhor dos casos, a estrutura da fantasiasadomasoquista, direi que se trata de ~ sofrimentQ_~~rado elo outro.A suspens~o .d<L~utro imaginario sobre 0 abismo do sofrimento e 0 queforma a po~ta e 0 eixo da erotiza~ao sadomasoquista. Enessa reIa~ao que

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\ se insti~ui, no nivel ~nal, aquilo que niio e mais somente 0 polo sexual,I mas, ~al ser 0 parceuo sexual. Podemos, pois, dizer que ja ha ali umaespecle de reaparecimento do sexual.

I! 0 que ~onstitui a fase anal como estrutura sadica ou sadomasoquista;marca a p~rt:u de urn ponto de eclipse maximo do sexual, de urn ponto de,pura oblatiV~dade anal ~ a nova escalada em direyao ao que se vai realizarma fase gemtal. 0 gemtal, 0 eros humane, 0 desejo e~ SUJlpl«nitudeno~al, que se sit~a, nao cOl?o tendencia ou necessidade, nao comQ..p-lli'a.e sllDpl.es copulayao, mas como desejo, tem seu inicio, encontra ~e.!LPQnt2de partida, tem seu ponto de re-emergencia na relayiio com ooutro como'sUbmetendo~se Ii.expectativa dess~ llmeaya suspensa, esse ataqu~ ~jrtu_alQue caractenza e funda para nos aquilo a que se chama a teoria sadica dasex~lidade, da qual conhecemos 0 carater primitivo na enorme maioriados casos individuail'.

~uito ~ais que isso, e nesse trayo situacional que se funda este fa to,que esta na ongem da sexualizayiio do outro - no primeiro modo de suaapree?S~o, 0 outro deve ser, como tal, entregue a um terceiro para seCOnstitlll~~o~o se~u.al. Ai esta a origem da ambigilidade que faz com que,

I na expenencla ongmal, da qual os teoricos mais recentes da analise. fizeram a descoberta, 0 sexual permaneya indeterminado entre este tercei-

ro e este outro. Na primeira forma de apreensiio libidinal do outro, no nivelI do ponto de re-~s.cala~ a partir de um certo eclipse puntiforme da libidoI como tal, 0 sUJelto nao sabe 0 que deseja mais, de sse outro ou desseterceiro interveniente.", Iss? e essencial para .toda a estrutura das fantasias sadomasoquistas.Com ~f~Ito, se demos aqUl, da fase anal, uma analise correta, aquele queCOnstitUlessa fantasia, niio vamos esquecer, 0 sJljeito - testemunha nesteponto-chave da fase anal, e mesmo a ui~o que ele e: acabo de dize-lo elee a miie. E, alem disso, ele e urna demanda. " '-.

~te._e __<L-verdadeir.ojlmdamen!o .<!et9da uma estrutura que. v..ao~contr;l.r, radical! na fantasia fundamental do obsessivo, especialrnm-!~.Este se d_e~valonza, coloca fora de si tpdo 0 jogo da dialetica ero.i:!E,fmge, como di~o outro, ser ~u_org!lni~<lo.r. Esobre 0 fundamento da suapropria eliminayao que ele funda toda essa f;;Qtasia. . -. --

.As coisas, a~ui, estiio enraizad;'-s em algo q'ue, uma vez reconhecido,perIDlte-lhes elucldar pontos absolutamente banais. Com efeito se ascoisas estiio realmente fixadas no ponto de identificayiio do sUjei~o como pequeno ? ex~rementicio, 0 que iremos ver? Niio vamos nos esquecerde qu~. aqUl, afmal ~e contas, niio e mais a quem esta implicado no nodramatico da necessldade com a demanda que e confiado ao menos emprincipio, 0 cui dad,? ~e articular essa demanda. Em outras ~alavras, salvonos quadros de JeronImo Bosch, nao falamos com 0 proprio traseiro. E noentanto temos esses curiosos fenomenos de cortes seguidos por explosOes,

que nos fazem entrever a funyiio simbOlica da fita excrementicia napropria articulayao da fala.

Outrora, ha muito tempo, e pense que nao ha ninguem aqui que selcmbre disso, havia um pequeno personagem querido pelas crianyas,como sempre houve, pequenos personagens significativos nessa mitologiainfantil que e, na realidade, de origem parental. Em nossos dias, fala-semuito em Pinoquio, mas num tempo que sou velho 0 bastante para melembrar existia Bout-de-Zan. A fenomenologia da crianya como objetoprecioso excrementicio esta por inteiro nessa designayao, onde a crianyac identificada ao elemento adocicado do alcayuz, glukurriza, a doce raiz,como e, ao que parece, sua raiz grega.

Nao e em viio, sem duvida, que seja a prop6sito desta palavra,alcayuz, que possamos encontrar um exemplo dos mais a9ucarados, e 0

caso de dize-Io, da perfeita ambigiiidade das transcriyoes significantes.Permitam-me estes pequenos parenteses. Esta perola, eneontrei-a

para uso de voces em meu pereurso - nao 0 de ontem, alias, reservei-Ihesisso ha muito tempo, mas ja que 0 reencontro a proposito de Bout-de-Zan,vou <Ia-Io a voces. Alcayuz (reglisse) e, na origem, glukurriza. Certamen-te, isso nao vem diretamente do grego, mas quando os latinos ouviramisso, fizeram dele liquiriria, servindo-se de lieor. Dai, no frances antigo,licorice, depois rico lice por metastase. Ricolice encontrou regie, regula(regra) e isso deu rygalisse. Confessem que este encontro do alcayuz coma regra e soberbo.

Mas isso nao e tudo, pois segundo a etimologia consciente em quetudo isso resulta, e na qual confiaram, enfim, as tiltimas gerayOes, reglissedeveria se escrever rai de Galice, porque 0 alca9uz e feito com uma raizdoce que so se encontra na Galicia. 0 raio de Galicia, eis para ondevoltamos depois de partir, e 0 caso de dize-Io, da raiz grega.

Penso que essa pequena demonstra9ao das ambigiiidades significan-tes os tera convencido de que estamos num terre.,nosolido, dando-Ihe todaa sua importiincia.

Afinal, como vimos, no Divel anal ainda mais que em qualquer outrolugar, devemos ser reservados quanto Ii compreensiio do outro. Todacompreensao da demanda, com efeito, 0 implica tiio profundamente quedevemos pensar duas vezes antes de irmos ao seu encontro. 0 que estouquerendo dizer com isso? - senao aquilo que vem ao encontro do quevoces todos sabem, pelo menos aqueles que fizeram urn pouquinho detrabalho terapeutico. A saber, que ao obsessiv.9._Eii~s~ c!ey~ dar .!!~!l4m;ncncorajamynto, gesculpabilizayao, ate mesmo comentarig int.eq>retativ.oque _a.Y.l!!l~eurn pouco demais. Se 0 fizerem, entiio deverao ir muito maislonge, e vao se ver aeedendo, e cedendo para maior dano de voces, a estemecanismo precisamente pelo qual ele quer faze-los comer, se possodizer, seu proprio ser - uma merda.

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Voces estao instruidos pela experiencia de que este nao e umprocesso pelo quallhe prestarao servi90, muito pelo contnlrio.

E noutra P..~.lUl~se dev!:.§ituar a introje9ao sim~ljclb na medidaem que ell!. ~eJI1nele que restituir 0 lugar_do desejo. Ja que, par~te~ip;ra fase segumte, 0 que 0 neurotico quer ser 0 mais comumente e 0 falocertamente e produzir um curto-circuito, indevidamente, nas satisfa96e~a Ihe dar, oferecer-Ihe essa comunhao falica contra a qual jli formulei emmeu ~eminar~o 0 Desejo e sua Interpreta~iio, as obje90es mais precisas.9 obJ~2- fahc~"~omo objeto imaginario nao poderia em ..£.a~o algum~ta~-se a r<,?velarde maneira completa a fantasia fundamental. Eit:" soJ2odena, de fa.!Q,~.Q.emanda do obsess!vo, responder poCa.9Qil9 a ~e~od~mos chamar, .grosso modo, uma oblitera9ao. ~m [email protected] J2alavras, umaVIa e, dessa maneua, aberta ao sujeito, por esquecer urn certo ntimero de.!!1ecatJ!smos mais essenciais que d~s~mpenharam urn papel nQS;Cid.rntes<:Ieseu acesso ao campo do desejo. ".

Para mar~ar ~m ponto ~e parada em nosso percurso sobre 0 queformulamos hOJe, duemos aqul que, ~e 0 neurotico e desejo inconscienleisto e, recalcado, isso ~, antes de mais nada, na medida em que se~;ej~sobre 0 eclipse de uma contra-demanda - que 0 lugar da contra-de~cia

fe, faland? propriamente, 0 mesmo que aquelC onde se situa e se edificaem segu~da tudo 0 que 0 exterior possa acrescentar de suplemento a

,constru9ao do supereu, uma certa maneira. de satisfazer essa contra-de-man?a - gue todo modo prematuro da mterpreta9ao e criticavel, na!Uedld~ em q~e ~sta compreende depressa demais, e nao percebe que. 0que ha de malS Importante a compreender na demanda do analisado eaqui~o que estli para aIem dessa demanda. E a margem "<!l!ll!9Q!!lpreens~o,.que e a mesma do desejo. E na medida em que isso nao e percebldo queuma analise se fecha prematuramente, e, em suma, fracassa.

A ar;madilha, dece~o, e que, ao interpretar, voces dao ao sujeitoalguma ~01sa de que se ahmenta a fala, ate mesmo 0 proprio livro que estlipor ?etras: A fala permane~e, mesmo assim, 0 lugar de desejo, mesmo quev?Ces a deem de tal maneua que esse lugar nao seja reconhecivel, quero

I ?lZe~, ,mesmo que ele permane9a, este lugar, para 0 desejo do sujeito,mabltavel.

I Responder a demanda de alimento a demanda frustrada num, signifi~ante alimenticio, deixa elidido 0' seguinte: que para alt~m de

todo .ah~~nto da fa~a,.o que 0 sujeito realmente necessita e aquilo queele slgmflca metommlcamente, e que nao esta em ponto algum des sa

/ fala. E portanto, a cada vez que voces introduzem - sem dtivida saoobri~a~os .a isso. - a metlifora, permanecem na mesma via qu~ daconsls.tencl~ ao sIn.toma. Sem dtivida, e urn sintoma mais simplificado,mas ~Inda e urn sIntoma, pelo menos com rela9ao ao desejo que setratana de destacar.

Se 0 sujeito estli nessa rela9ao singular com 0 objeto d~ desejo ¢por~ue::.ete_fQ,i jnicialmente, ele proprio, urn objeto de des_eJo que Sycncarna. A fala como lugar do desejo e este Poros onde estao todos osrecu~~s. E 0 desejo, como Socrates nos ensinou originalmente a artic~lar,c antes de tudo falta de recursos, aporia. Essa aporia absoluta se aproxlmada fala adormecida e se faz emprenhar de seu objeto. 0 que quer dizerisso? - senao que 0 objeto estava ali, e que era ele quem pedia paracmergir. .

A metlifora plat6nica da metempsicose da alma errante, que hesltaantes de saber onde vira habitar, encontra seu suporte, sua verda de e suasubstancia no objeto do desejo, que estli ali des de antes de seu nascimento.

E Socrates, sem 0 saber, quando faz 0 elogio, ipai'nef, de Agatao,faz 0 que quer fazer, a saber, reconduzir A1cib.iades Ii sua alma, fazendovir a luz este objeto que e 0 objeto de seu deseJo.

Este objeto, objetivo e fim de cada urn, Iimitado s~m d~vida P?rqueo todo esta mais aIem, so pode ser concebido como malS alem do flm decada urn.

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D gozo do louva-a-deus.D Dutro, lixeira do desejo.D desejo na dependencia da demanda.Privilegio do objeto falo.

~a~os ~in~ errar, tenho vontade de dizer, atraves do labirinto da posi9iioo ~seJo. m certo retorno, urn certo esgotamento do tema urn certo

workzng thro~gh, como se diz, parecem-me necessarios a u~a osi-exata ?a fun9ao da transferencia. Ja indiquei isso da ultima vez Pd' 9aoporque. ,e lsse 0

I : por isso que voltarei hoje a frisar 0 sentido daquilo que Ihes disseevan 0 ao exame as fases ditas da migral'iio da libl'd b '. E . .,. 0 so re as zonas

::~~~:Sfini l~portan~e vIer em que medida a visiio naturalista implicada

d 9ao se a~1CUa e se resolve em nossa maneira de enuncia-Iacentran o-a na rela9ao entre a demanda e 0 desejo. '

Des~e 0 i~icio deste encaminhamento, apontei que 0 desejo mantemseu ugar a marge~ ~a demanda como tal - que e esta mar em dademand a que constItUl seu lugar - que e num mal's I' g. d -a em e num paraaqu~m ~o ~o 0 que passa a se articular 0 vazio que ja se esb09a desdeo gr~to I' a dome - que, na outra extremidade, 0 objeto que se chamaem mg es e nipple, 0 bico do seio, 0 mamilo, assume no erotismohumano seu valor de agalma de maravilha de obiet .do S d ' 'J 0 precloso toman-

- e 0 suporte 0 prazer, da volupia do mordiscar, onde se ~erpetua

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o que bem podemos chamar de uma voracidade sublime, na medida emque ela gan,ha este Lust, este prazer.

E da mesma maneira, esses [Uste, esses desejos - voces con he cerno equivoco que conserva em si 0 termo alemiio, 0 deslizamento designifica~iio produzido pela passagem do singular ao plural - seu prazere sua concupiscencia, esse objeto oral os assume em outra parte. E porisso que, por uma inversiio do emprego do termo sublima9iio, tenho 0direito de dizer que vemos aqui 0 desvio quanto ao objetivo se fazer nosentido inverso do objeto de uma necessidade.

Com efeito, niio e da fome primitiva que 0 valor erotico desse objetoprivilegiado ganha aqui sua substancia. a er6s que 0 habita vem nachtriicglich, por retroa9iio, e niio apenas s6-depois. E foi na demanda oral quese cavou 0 lugar deste desejo. Se niio houvesse a demanda, com 0

mais-alem de amor que ela projeta, niio haveria este lugar para aquem, dedesejo, que se constitui em torno de urn objeto privilegiado. A fase oralda libido sexual exige esse lugar cavado pela demanda.

E importante examinar se esta apresenta~iio das coisas niio compor-taria, de minha parte, alguma especifica~iio que se pudesse rotular deexcessivamente parcial. Niio devemos tomar ao pe da letra 0 que Freudnos apresenta em urn dos seus enunciados como a migra9iio pura e simplesde uma erogeneidade organica, mucosa, diria eu? Niio se pode dizer quenegligencio fatos naturais? A saber, por exemplo, essas mo~6es devora-doras instintuais que encontramos, na natureza, ligadas ao ciclo sexual.

E urn fato que as gatas comem seus filhotes, e se a grande figurafantasistica da femea do louva-a-deus assombra 0 anfiteatro analitico eporque, realmente, ela se apresenta como uma imagem miie, uma matrizda fun9iio atribuida aquilo que se chama ousadamente, e talvez tiioimpropriamente, a miie castradora. Sim, e claro, eu mesmo, em minhainicia9iio analitica, de born grado tomei por base esta imagem tiio rica paraecoar, a partir do dominio natural, sobre 0 que se apresenta no fen6menoinconsciente. E, encontrando esta obje9iio, voces podem me sugerir anecessidade de alguma corre9iio da linha teorica com a qual acredito podersatisfaze-Ios comigo.

Detive-me~por urn instante nesta imagem e no que ela representa.Urn simples olhar lan9ado sobre a diversidade da etologia animal nosmostra, com efeito, uma riqueza luxuriante de pervers6es. Nosso amigoHenri Ey fixou ali seu olhar, e fez mesmo, em L 'Evolution psychiatrique,urn ntimero sobre 0 tema das pervers6es animais, que vilo alem de tudo 0que a imagina~iio humana foi capaz de inventar. Considerados nesseregistro, niio seremos remetidos ao ponto de vista aristotelico, que situa 0

fundamento do desejo perverso num campo externo ao campo humano?Pe90-lhes que considerem 0 que fazemos quando nos detemos na

fantasia da perversiio natural. Pedindo a voces que me acompanhem neste

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te~en~, nao desconhe~o 0 que semelhante reflexao pode parecer ter deteImosI~ e espec~layoes, mas acredito que ela seja necessaria para decan-tar a~Ul~o que ha de fundado e de infundado, ao mesmo tempo, nessareferencIa. E da mesma maneira, iremos com isso, voces logo verao, aoencontro do que designo como fundamental na subjetiva~ao, enquantomomento essencial de toda instaurayao da diaIetica do desejo.

Subjetivar a femea do louva-a-deus nessa ocasiao e supor nela 0

que nada tern de excessivo, urn gozo sexual. Certamente, nada sabem'osdele. a louva-a-deus femea talvez seja, como Descartes nao hesitaria em~izer, uma pura e simples maquina, no sentido que a maquina assume nahnguagem dele, que sup6e justamente a eliminayao de toda subjetividade.Mas nao temos necessidade alguma, quanto a nos, de nos atennos a essasposiyoes minimas. Concedemos a ela este gozo.

. Este gozo - e 0 passo seguinte - e gozo de alguma coisa, na?Ie?Ida e~ que ela 0 destroi? Pois e somcnte a partir dai que ele pode nosmdIcar as mteny6es da natureza.

, Para apontar de imediato 0 que e essencial, e para que ele seja paranos. u~ modelo qualquer do que esta em questiio, a saber, de nossocambahs?Io .?ral, deve~os imaginar aqui que este gozo seja correlativoda decapItayao do parcerro, que ele e suposto conhecer, em algum grau,como tal.

. I~o nao ~e r~pugna. Pois, na verda de, a etologia animal e para nosa pnncIpal referencIa par~ se manter essa dimensao do conhecer que todosos progressos do conhecImento tomam para nos, no mundo humano taovacilante, por se identificar com a dimensao do desconhecer da Verken-nung, como diz Freud. E 0 campo do vivo que pennite' observar aErkennufl8. ~maginaria, e este privilegio do semelhante que chega, emce~s especIes, a se revelar em esforyos organogenos. Nao yOUvoltar ao~~go exemplo em tomo do qual fazia girar minha explora~ao do imagi-nano, no temJ?Oem ~ue co~eyava a articular algo sobre isso que chega,com os anos, a matundade dIante de voces, minha doutrina da analise _~ saber, a pomba, que nao amadurece como pomba ate que veja umal1llagem de pombo, para 0 que pode bastar urn espelhinho na gaiola etambem. urn grito. Ela so atravessa essa fase por haver encontrado ~Dutro gnto.

Nao ha duvida de que, naquilo que fascina, nao somente nosmesmos, mas tambem 0 louva-a-deus macho, ha a ere~ao de sua formaessa exibiyao, essa atitude ~ue se nos apresenta como aquela da ora~ao:e da q?a! 0 louv~-a-d.eus tIra para nos seu nome, nao sem se prestar,sem duvIda, a nao-seI-que volta vacilante. Constatamos que e diantedessa fantasia, essa fantasia encarnada, que 0 macho cede, que ele ecapturado, atraido, aspirado, cativado no abra~o que sera, para ele,mortal.

Eclaro que a imagem do outro imaginario ~omo tal esta aIi, pre~enteno fenomeno. e nao e demais supor que algo ah se revele, mas sera queisso equivale a dizer que seja alguma prefigurayao, ja aIi, urn de,c~lqueinvertido daquilo que se apresentaria no horn em como ?m~ espec~e deresto e de seqiiela de uma possibilidade definida, das vanayocs, do Jogo,das tendencias naturais?

Se atribuimos urn valor a este exemplo monstruoso, nao podemosainda assim deixar de observar a diferenya do que se apresenta na fanta-sistica humana, aquela onde podemos partir com certeza do sujeito, al~somente onde nos estamos certos disso, a saber, na medida em que ele eo suporte da cadeia significante. Nao pode~os, portanto, deix~r de obser-var que, naquilo que nos e apresentado aqm pela natureza, eXIste, do atoao seu excesso, ao que 0 transborda, ao que 0 conduz a urn excedentedevorador, 0 sinal, para nos, de que uma outra estrutu~a, u~a ~strut~rainstintual esta ai exemplificada. Este sinal e de que eXIste ah SIncroma.E no mo~ento do ato que se exerce esse complemento, que exempli ficapara nos a fonna paradoxa I do instinto. .. .

E a partir de entao, nao se ve desenhar-se aqm urn hmIte, que nospennite definir estritamente para que 0 que esta ali e~emplificado nosserve? Esse exemplo so nos serve para dar a fonna daquIlo que queremosdizer quando falamos de urn desejo.

Se falamos do gozo deste outro que e 0 louva-a-deus femea, se nosinteressa no momenta, e que ou bem ela goza ali onde esta 0 orgao domacho, ou bem ela goza tambem em outra parte. ~as, onde quer que elagoze - is so de que jamais saberemos nada, poueo Importa - que _elagozenoutra parte so tern sentido pelo fato de que ela go~e - ?U nao g?ze,pouco importa - la. Que ela goze onde Ihe aprouver, ISSOso tern se~tIdo,no valor assumido por essa imagem, pela relayao ao lei de urn gozar vrrtual.Na sincronia, seja do que for que se trate, isso jamais passara, mesmodesviado de urn gozo eopulatorio.

Na'infinita diversidade natural dos mecanismos instintuais, pode-mos facilmente descobrir fonnas evocativas, inclusive, por exemplo,aquelas em que 0 orgao da copulayao e perdido in loco, na propriaconsumayao. Podemos igualmente eonsidera~ que 0 ~ato de 9ue. 0 ~e~ora-mento e uma das nurnerosas fonnas do premIO dado a parcerra mdIvIdualda copulayao, enquanto ordenada a seu fim especifico, 'para rete-Ia no at~que se trata de pennitir. a carMer exemplificador ~ rmagem_ que nos eproposta nao comeya, portanto, senao no ponto precIso onde nao temos 0

direito de ir.Explico-me. a louva-a-deus, a parceira fCmea, executa com suas

mandibulas 0 devoramento da extremidade cefalica do parceiro macho.Ora, essa parte de sua anatomia partie~pa como, ~l das propriedadeseonstituidas na natureza viva pela extremIdade eefahca, a saber, urn certo

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ag~pamento da tendencia individual e a possibilidade, em qualquerreglstro que se exerrya, de urn discernimento e de uma escolha. Em outraspalavras, isso faz pe~ar que a femea do louva-a-deus gosta mais disso,da caberya de seu parcetro, que de qualquer outra coisa. Que existe ali umapreferencia absoluta. Que e isso que ela ama.. E na medida em que ela ama isso - 0 que se mostra para nos, nalmagem, como gozo a expensas do outro - que comeryamos a colocar nasfunryOes naturais 0 que esta em questiio, a saber, 0 senso moral - emoutras palavras, que entramos na dialetica sadiana.

A preferencia dada ao gozo com relaryiio a toda referencia ao outros~ descobre como a dimensiio essencial da natureza - mas e por demaisvIsivel que este senso moral somos nos quem 0 trazemos. So 0 trazemosna ~edida em que descobrimos 0 sentido do desejo como relaryao comaqwlo qu~, no outro, e objeto parcial, e como escolha desse objeto.

AqUl, v~~os pres tar u~ pouco mais de atenryiio. Seria este exemploplena~ente valtd? par~ nos tlustrar a preferencia da parte com relaryao aotodo,Julgamento Ilustravel pelo valor erotico dado a extremidade mamilarde que eu fa lava ha pouco? Nao estou tiio certo disso. Na imagem dolouva-a-deus, e menos a parte que seria preferida ao todo - da maneiramais horrivel, e de urn modo tal que ja nos permitiria fazer um curto-cir-cuito na_funryiio da m~t~nimia - mas 0 todo que e preferido a parte.

Nao vamos omlttr, com efeito, que mesmo numa estrutura animaltiio distanciada de nos, aparentemente, quanto a do inseto, funcionacertamente 0 valor de concentraryao, de reflexiio, de totalidade da extre-midade cefalica enquanto representada em alguma parte. Em todo casona fantasia, na imagem que nos captura, esta acefalizaryao do parceiro atu~com sua acentuayiio particular. Niio vamos omitir em suma 0 valorfabulat~rio d~ louva-a-~e~s femea, subjacenteao que'ela represe~ta numacerta mlt~log.Ia, ou mals slmplesmente num folcIore, em tudo aquilo queR~ger. Catllols acentuou, sob 0 registro do Mito e 0 Sagrado. Esta e suapnmelra o~ra, e nao. parece ~ue ele tenha indicado suficientemente queestamos, alt, na poesla. Esta lmagem nao tira sua enfase apenas de uma~eferen~ia a relaryao com 0 objeto oral, tal como se esboya na. kOine doInCOnScIente, a lingua comum. Trata-se de uma caracteristica mais acen-mada, que nos design a uma certa ligayao da acefalia com a transmissaoda vida co~o tal, ~o~ a passagem da chama de urn individuo para outro,numa etemldade sIgmficada da especie, a saber, que 0 Geliist nao passapela caberya.

Ai esta 0 que da a imagem do louva-a-deus seu sentido tragico, eque n~da tern a v~r c~m a pref~rencia por urn objeto dito oral, que, nafantasIa hum~na, Jama~s se relaclona, em ocasiiio alguma, com a caberya.

E de COlsa bem dIferente, que se trata na ligaryiio do desejo humanocom a fase oral.

o que se pereila pela identificaryiio reciproca entre 0 sujeito e 0 objeto dodesejo oral vai, a experiencia nos mostra de imediato, na direryiio de urndespedaryamento constitutivo.

Foram evocadas recentemente, por ocasiiio de nossas Jomadas pro-vinciais, essas imagens de espedaryamento como ligadas a niio-sei-queterror primitivo que parecia, niio sei por que, assumir para os autores u~certo valor de designaryiio inquietadora, quando e, realmente, a fantasIamais fundamental, a mais difundida, nas origens de todas as relaryOes dohomem com sua somatica. Os pedaryos de pavilhiio de anatomia quepovoam a imagem celebre do Sao Jorge de Carpaccio na pequena igrejade Santa Maria dos Anjos em Veneza niio deixam de ser apresentados nonive! do sonho a toda experiencia individual, com ou sem analise. Eigualmente, no mesmo registro, a caberya que passeia sozinha continuamuito bern, como em Cazotte, a contar suas historietas.

o importante niio esta ai.A descoberta da analise e que 0 sujeito, no campo do Outro, niio

encontra so mente as imagens de seu proprio despedaryamento, mas dai pordiante, desde a origem, os objetos do desejo do Outro - lLsaber, os damiie, niio· apenas em seu estado de despedayamento, mas com os privil~-gios que the siio atribuidos pelo desejo desta. Em particular, diz-nosMelanie Klein, urn desses objetos, 0 falo patemo, e encontrado desde asprimeiras fantasias do sujeito, e esta na origem do fantasm~ do ele va;Jalar, ele deve jalar. No imperio interior do corpo da mae onde seprojetam as primeiras formaryoes imaginarias algo que s~ distin~uecomo mais especialmente acentuado, ate mesmo nOCIVO,e percebldono falo patemo.

No campo do desejo do Outro, 0 objeto subjetivo ja encontraocupantes identificaveis, na medida dos quais, se posso dizer, ou ao preyodos quais ele ja tern de se avaliar e pesar. Penso nesses peq~enos pesos,diversamente modelados, em uso nas tribos primitivas da Africa, ondevoces veem urn animalzinho a maneira de uma rodilha, ate mesmo algumobjeto faliforme como tal.

No nivel fantasistico, 0 privilegio da imagem da femea do louva-a-deus esta ligado ao seguinte: que niio e, afinal, tiio certo que a louva-a-deusseja suposta comer seus machos em serie. A passagem ao plural e adimensiio essencial onde ela assume para nos urn valor fantasistico.

Ai esta, pois, definida a fase oral. ~ somente no interiol.da demandaque 0 Outro se constitui como reflexo da fome do sujeit9' 0 Outro,portanto, nao e de modo algum apenas fome, mas fome arti<:"l!g._da,f?meque demanda. Eo sujeito esta, dessa maneira, aberto para se tomar obJeto,mas, se posso dizer, de U1Jlafome que ele e.sgol1!~.

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A transiyao se faz da fome ao erotismo pela via daquilo a que euchamava ha pouco uma preferencia. Ela ama alguma coisa, isso, emespecial - por uma gulodice, se podemos dizer. Eis-nos reintroduzidosao ~egi~tro dos pecados originais. 0 sujeito vem se situar no cardapio docambalIsmo, que, todos sabem, nunca esta ausente de qualquer fantasiade comunhao.

Leiam, a respeito, um tratado daquele autor de que Ihes falo ao longodos anos, numa especie de retorno periodico, Balthasar Gracian. E evi-dente que so aqueles de voces que sacam espanhol podem encontrar neleplena satisfayao a menos que 0 fayam traduzir - pois, se Gracian foitraduzido muito cedo, como se traduzia na epoca, quase instantaneamenteem toda a Europa, varias de suas obras permaneceram nao traduzidas.Trata-se aqui de seu tratado sobre a comunhao, El Comulgatorio, que eum bom texto, no sentido em que nele se revela algo raramente confessado- as delicias do consumo do corpo do Cristo sao ali detalhadas, epedem-n~s. que n?s detenhamos naquela bochecha excelente, naquele~rayo dehclOso, dISpenso-os da continuayao onde a concupiscencia espi-~Itua! se prolong a, revelando-nos assim aquilo que permanece sempreImphcado nas formas, mesmo as mais elaboradas, da identificayao oral.Nessa tematica, voces veem a tendencia mais original se desenvolver pelavirtude do significante, em todo urn campo criado dai por diante para sersecundariamente habitado.

Em oposiyao, quis mostrar-Ihes, da ultima vez, um sentido habitual-mente pouco ou mal articulado da demanda anal.

A. d.emanda a~se c~!~cteriza por uma completa reversao, embenefici~do Qutro,_da i.!!i~iati~l!..E ai, isto e, numa fase que, em' noss~ideologia normativa, nao e muito avanyada, nem madura, que jaz a fonteda disciplina - nem digo 0 dever, mas a disciplina - da Iimpeza _,palavra da qual a lingua francesa marca tao lindamente a oscilayao coma propriedade - com aquilo que pertence como proprio _,12 a educayao,as boas maneiras. Aqui, a demanda e exterior, esta no nivel do Outro, ecoloca-se enquanto articulada como tal.

. . 0 estranho e que devemos ver nisso - e reconhecer, no que semprefOJdltO, e ~o qual, parece, ninguem captou a importiincia - 0 ponto onde

,Inasce 0 ob]eto de dom enquanto tal. Nessa metafora, 0 que 0 sujeito podeIt da~ esta exatamente Iigado aquilo que ele pode reter, a saber, seu proprio~ ?eJ~to, se~ excremento. E impossivel nao se ver ai algo de exemplar,ilmdIspensavel de se designar como 0 ponto radical onde se decide af projeyao do desejo do sujeito no Outro.

Ha um ponto da fase em que 0 desejo se articula e se constitui, emque 0 Outro. e, f~lando propriamente, sua lixeira. E nao e de se espantarver que os IdealIstas da tematica de uma hominizayao do cosmos oucomo sao foryados a se exprimir em nossos dias, do planeta, esqu~ce~

que uma das fases manifestas desde sempre da hominizayao do planet:a.eque 0 animal-homem faz dele um depOsito de _Iixo. 0 teste~~~o matsantigo que temos de aglomerayOes hurnanas sao enormes pIramldes derestos de conchas, que levam um nome escandinavo.

Nao e a toa que as coisas sao assim. Mais, ainda, se for necessario,algum dia, reconstituir 0 modo pelo qual 0 homem se introd~~u n~ ca~podo significante, sera nesses primeiros amontoados que conVlfa deslgna-Io.

Aqui, 0 sujeito se designa no objeto evacuado. Aq~i e~ta, se possodizer, 0 ponto zero de uma [...] do desejo. ~Ie rep~usa Illtelramente_noefeito da demanda do Outro - 0 Outro decide isso. E ali mesmo q~eencontramos a raiz da dependencia do neurotico. La esta a nota sensivelpela qual 0 desejo do neurotico se caracteriza como pre-genital. Eledepende tanto da demanda do Outro que 0 que 0 neur6tico demand~ aoOutro em sua demanda de amor de neur6tico, e que se 0 deixe fazer,alguma coisa ..

-9 lugar do desejo permanece manifestamente, ate certo ponto, nadepend~ncia_da demanda do Outro.

Que sentido podemos dar, com efeito, a fase genital? 0 unico sentido quelhe podemos dar e 0 seguinte.

o desejo deveria, realmente, ressurgir um dia, como algo quemerecesse ser chamado de um desejo natural, ainda que, tendo em vistaseus nobres antecedentes, jamais pudesse se-Io. Em outras palavras, 0

desejo deveria aparecer como aquilo que nao se demanda, como visaraquilo que nao se demanda.

Nao se precipitem em dizer, por exemplo, que 0 desejo e aquil~ quese toma. Tudo 0 que disserem nao fara jamais senao faze-Ios recatr napequena mecanica da demanda. . . _ .

o desejo natural tem essa caractenstlca de nao poder se dlzer demaneira nenhuma, e e por isso mesmo que voces nunca terao nenhumdesejo natural. 0 Outro ja esta instalado no lugar, 0 Outro com 0mailisculo, como aquele onde repousa 0 signo. Eo signo e bastante parainstaurar a questao Che vuoi?, a qual, inicialmente, 0 sujeito nada poderesponder.

Um signo representa alguma coisa para alguem, e a falta de saber 0

que representa 0 signo, 0 sujeito, diante dessa questao, quando aparece 0

desejo sexual, perde 0 alguem a quem 0 desejo se dirige, isto e, ele mesmo.E nasce a anglistia do pequeno Hans.

Aqui se desenha 0 que, preparado pela fratura do sujeito atravcs (iii

demanda se instaura na relayao entre a crianya e a mae que, por urninstante, ~amos manter, como e1a se mantem freqiientemente, isolada.

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A mae do pequeno Hans, e tambem todas as maes - apelo a todasas maes, como dizia 0 outro - distingue sua posi9ao porque profere, apropOsito do que come9a a aparecer em Hans como uma pequena agita9ao,urn pequeno estremecimento nada duvidoso quando do primeiro despertarde uma sexualidade genital- E umagrande porcaria. Isso e repugnante,

, 0 desejo, este desejo do qual ele nao pode dizer 0 que e. Mas isso eestritamente correlativo de urn interesse nao menos duvidoso pelo objetoao qual aprendemos a dar toda a sua importancia, a saber, 0 falo.

De uma maneira sem duvida alusiva, mas nao ambigua, quantasmaes, todas as maes, diante da torneirinha do pequeno Hans ou de algumoutro, seja como for que se 0 chame, farao reflex6es como - Ele i muitobem-dotado, 0 meufilho. Ou entao: Voce vai ter Inuitosfilhos. Em suma,a aprecia9ao que incide aqui sobre 0 objeto, este ainda bem parcial,contrasta com a recusa do desejo, no proprio momenta do encontro comaquilo que solicita 0 sujeito no misterio do desejo. A divislio se instauraentre, por urn lado, este objeto que se torna a marca de urn interesseprivilegiado, que se torna agalma, a perola no seio do individuo queestremece, aqui, em torno do ponto piv6 de seu advento it plenitude viva

, e, por outro lado, uma deprecia9lio do sujeito. Ele e apreciado comoobjeto, ele e depreciado como desejo.

E e em torno disso que vao operar as contas e vai girar a instaura9liodo registro do ter. Vale a pena nos determos aqui. Vou entrar em maisdetalhes.

\ . A tematica do ter, eu a anuncio para voces hli muito tempo atravesde formulas do tipo - 0 amor e dar 0 que nlio se tern. Decerto, quando a

, crian9a da 0 que tern, e na fase anterior. 0 que e que ela nlio tern, e em:que sentido? Pode-se, certamente, fazer girar a dialetica do ser e do ter

. ,em torno do falo. Mas nlio e para esse lado que voces devem olhar parabem compreender.

Qual e a dimensao nova introduzida pela entrada no drama fali£o?o que ele nlio tern, aquilo que nlio esta it sua disposi9lio naquele ~onto de9ascimento e de revela9lio do desejo.genital, nada mais e que seu ato. Elenlio tern mais nada a nao ser uma promissoria para 0 futuro. Ele institui 0

~to no cam~ do pr()j~Q: -- --Pe90-lhes que observem aqui a for9a das determina90es lingiiisticas.

Assim como 0 desejo assumiu, na conjun9ao das linguas romanas, aconota9lio de desiderium, de luto e de pesar, nao e it toa que as formasprimitivas do futuro sejam abandonadas por uma referencia it voz. Eucantarei, e exatamente 0 que voces veem escrito: Eu cantar-ei. Isso vem,efetivamente, de cantare habeum. A lingua romana decadente achou 0

caminho mais seguro de reencontrar 0 verdadeiro sentido do futuro - Eutransarei mais tarde, Eu transei como uma promiss6ria contra 0 futuro,Eu desejarei. E da mesma forma este habeo e a introdu9ao da divida

simbolica a um habeo destitufdo. E e no futuro que se conjuga esta divida,quando ela a~sume a forma de mandamento - Honrards teu pai e tuamae, etc.

Quero, hoje, dete-Ios num ultimo ponto, as portas, apenas, daquiloque resulta desta articula9ao, lenta, sem duvida, mas feitajustamente paraque voces nao precipitem ai excessivamente a marcha.

o objeto de que se trata, disjunto do desejo, 0 objeto falo, nao e a.simples especifica9ao, 0 homologo, a homonimia, do a imaginario ondedecai a plenitude do Outro, do grande A. N~o e ul!l~especifica~ao, enfi~surgi~, <!!lql;lilog':!~t~i~sido anteri0nnente 0 o~jeto oral, dep~i.s 0 objetoanal. Como lhes indiquei desde 0 infcio do dlscurso de hOJe, quandomarquei para voces 0 primeiro encontro do sujeito com 0 falo - 0 falo eurn objeto privilegiado no campo do Outro, urn objeto que vern emdedu9ao do estatuto do Outro como tal.

Em outras palavras, !l0 nivel do desejo gen~tal_da fase, d!!5lil'Jra/ylio,da qual tudo isso e feito para Ihes introduzir a articula9ao precisa,,9 a e 0

A menos phi (cp). E e por este vies que 0 phi vem simbolizar aquilo quefalta ao Outro eara ser 0 A noetico, 0 A de pleno exercfcio, 0 Outroenquanto se pod~ confiar na sua resposta it demanda. Deste Outro noetico,o desejo e um~nigma._E este enigma esta enla9ado com o. fundamentoestrutural da sua castra9ao.

E aqui que se inaugura toda a dialetica da castra9lio.Prestem aten9ao, agora, para oao confundir tambem este objeto

falico com aquilo que seria 0 signo, no nivel do Outro, de sua falta deresposta. A falta de que se trata aqui e a falta do desejo do Outro. A fun9aoassumida pelo falo, enquanto reencontrado no campo do imaginario, na~e a de ser identico ao Outro como designado pela falta de urn significan~;e de ser a raiz desta falta. Pois e 0 Outro que se constitui numa rela9a<?com esse ~bjeto phi, rela9ao privilegiada, certamente, porem complexa.

E aqui que vamos encontrar a ponta do que constitui 0 impasse e 0problema do arnor, a saber, que 0 sujeito nao pode satisfazer a dernandado Outro senao rebaixando-o - fazendo deste Outro 0 objeto de seudesejo.

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XVI

PSIQUE E 0 COMPLEXO DE CASTRA~Ao

felicidade que poderia ser perfeita se nao the viesse a curiosidade de verde quem se trata. Nao que nao fosse advertida pelo seu proprio amante denunca procurar 1an~ar luz sobre ele, sem que este pudesse lbe dizer quesan~ao resultaria disso, mas sua insistencia em pennanecer invisivel eraextrema. Entretanto, Psique nao pOde agir de outra fonna senao chegar aisso, e naquele momenta seus dissabores come~aram.

Nao posso conta-Ios a todos voces. Quero em primeirolugar mos-trar-Ihes de que se trata, ja que, igualmente, e ai que esta 0 importante deminha descoberta. Arranjei duas reprodu~oes desse quadro, e you faze-Iascircular. Dupliquei-as por urn esbo~o feito por urn pintor do qual mesmoaqueles que nao conhecem minhas rela~Oes familiares reconhecerao,espero, 0 tra~o. Ele quis, de born grado, esta manha mesma, tendo em vistao desejo que tinha de me agradar, fazer para voces este pequeno esb~o,que me permitira apontar 0 que estli em causa na minha demonstra~ao.

Voces estiio venda que 0 esbo~o de Andre Masson corresponde, emsuas linhas significativas, ao menos, ao que estou fazendo circular.

Indico que 0 tom de minha voz hoje se explica pelo fato de queacreditei dever ir ao lugar, no Palatino, que 0 comendador Boni, ha unscinqiienta an ,,' acreditou poder identificar com aquilo que os autoreslatinos denominam 0 mundus. Fui capaz de descer ate la, mas receio quese trate apenas de uma cisterna, e consegui apanhar ali urna dor degarganta.

Zucchi e Apuleio.As desventuras da alma.Paradoxo do complexo de castrarlio.A signijicdncia do falo.o desejo do analista.

Nao e porque nos desviamos, aparentemente, c;laquilo que e 0 centro dapreocupa~ao de voces, que nao se 0 reencontra na extrema peri feria. Foio que me aconteceu em Roma, quase sem que eu percebesse na GaleriaBorghese, no Iugar mais inesperado. '

Minha experiencia ensinou-me a sempre oIhar para 0 que esta pertodo elevador, que e freqiientemente significativo e para onde nunca se olba.A experiencia em questiio e absolutamente aplicavel a urn museu etransferida par~ 0 museu da Galeria Borghese, me fez voltar a cabe~; n~momento de salr do elevador, gra~as ao que vi alguma coisa na qual nuncanos detemos, e de que eu jamais tinha ouvido falar por ninguem _ urnquadro de urn tal de Zucchi.

Nao e urn pintor muito conhecido, embora nao tenha escapadocompletamente as malhas da critica. E aquilo a que se chama urn manei-rista, do primeiro periodo do maneirismo, e suas datas sao mais ou menos1547-1590. "

Trata-se de urn quadro que se chama Psiche sorprende Amore istae, Eros. E~~~na.classica de Psique elevando sua pequena liimpada ;obreEros, que e, Ja ha algum tempo, seu amante noturno, nunc a visto.

V?ces tern, sem dlivi?a: ~ma pequena ideia desse drama. Psique,favoreclda por urn extraordmano amor, 0 do proprio Eros, goza de uma

Nao sei se voces ja viram 0 tema de Eros e Psique ser tratado destamaneira, embora ele tenha sido tratado de maneiras inumeraveis, tanto nacscultura quanto na pintura. Por mim, jamais vi Psique aparecer em obrade arte armada, como estli neste quadro, com algo que e representado aimuito vivamente como urn pequeno trinchante, e que e, precisamente,uma cimitarra.

Por outro lado, vao observar 0 que e, aqui, significativamente,projetado sob a forma de urna flor, do buque do qual ela faz parte, e dovasa em que ela se insere. Verao que, de urna forma muito intensa, muitomarcante, esta flor e, propriamente falando, 0 centro mental visual doquadro. 0 buque e esta flor vem, com efeito, em primeiro plano, e saovistos contra a luz, 0 que quer dizer que isso faz uma massa negra, que elratada de tal modo que da ao quadro este carater chamado de maneirista.o conjunto e desenhado de uma maneira extremamente refinada.

Haveria, certamente, coisas a dizer sobre as flores que foram esco-Ihidas no buque. Mas, em tarno desse buque, vindo por tras dele, brilhalima luz intensa que incide sobre as coxas alongadas e 0 ventre do

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XVI

PSIQUE E 0 COMPLEXO DE CASTRA«;AO

felicidade que poderia ser perfeita se nao the viesse a curiosidade de verde quem se trata. Nao que nao fosse advertida pelo seu proprio amante denunc a procurar Hmcrarluz sabre ele, sem que este pudesse lhe dizer quesancrao resultaria disso, mas sua insistencia em permanecer invisivel eraextrema. Entretanto, Psique nao pOde agir de outra forma senao chegar aisso, e naquele momenta seus dissabores comecraram.

Nao posso conta-Ios a todos voces. Quero em primeirolugar mos-trar-Ihes de que se trata, ja que, igualmente, e ai que esta 0 importabte deminha descoberta. Arranjei duas reproducroes desse quadro, e you faze-Iascircular. Dupliquei-as por urn esbocro feito por urn pintor do qual mesmoaqueles que nao conhecem minhas relacr6es familiares reconhecerao,espero,o tracro. Ele quis, de born grado, esta manha mesma, tendo em vistao desejo que tinha de me agradar, fazer para voces este pequeno esbocro,que me permitira apontar 0 que esta em causa na minha demonstracrao.

Voces estiio venda que 0 esbocro de Andre Masson corresponde, emsuas linhas significativas, ao menos, ao que estou fazendo circular.

Indico que 0 tom de minha voz hoje se explica pelo fato de queacreditei dever ir ao lugar, no Palatino, que 0 comendador Boni, ha uoscinqiienta anos. acreditou poder identificar com aquilo que os autoreslatinos denominam 0 mundus. Fui capaz de descer ate la, mas receio quese trate apenas de uma cisterna, e consegui apanhar ali urna dor degarganta.

Zucchi e Apuleio.As desventuras da alma.Paradoxo do complexo de castra<;iio.A signijiciincia do Jalo.o desejo do analista.

Nao e porque nos desviamos, aparentemente, c;laquilo que e 0 centro dapreocupacrao de voces, que nao se 0 reencontra na extrema periferia. Foio que me aconteceu em Roma, quase sem que eu percebesse, na GaleriaBorghese, no lugar mais inesperado.

Minha experiencia ensinou-me a sempre olhar para 0 que esta pertodo eleva~or, que e freqiientemente significativo e para on de nunca se olha.A expenencia em questiio e absolutamente aplicavel a urn museu etransferida par~ 0 museu da Galeria Borghese, me fez voltar a cabecr; n~momento de san do elevador, gracras ao que vi alguma coisa na qual nuncanos detemos, e de que eu jamais tinha ouvido falar por ninguem _ urnquadro de urn tal de Zucchi.

Nao e urn pintor muito conhecido, embora nao tenha escapadocompletamente as malhas da cntica. E aquilo a que se chama urn manei-rista, do primeiro periodo do maneirismo, e suas datas sao mais ou menos1547-1590. "

Trata-se de urn quadro que se chama Psiche sorprende Amore istae, Eros. E a cena classica de Psique elevando sua pequena lampada ;obreEros, que e, ja ha algum tempo, seu amante noturno, nunca visto.

V?ces tern, sem dlivi~a: ~ma pequena ideia desse drama. Psi que,favoreclda por urn extraordmano amor, 0 do proprio Eros, goza de uma

Nao sei se voces ja viram 0 tema de Eros e Psique ser tratado destamaneira, embora ele tenha sido tratado de maneiras inumeraveis, tanto naescultura quanta na pintura. Por mim, jamais vi Psique aparecer em obrade arte armada, como esta neste quadra, com algo que e representado aimuito vivamente como urn pequeno trinchante, e que e, precisamente,uma cimitarra.

Por outro lado, vao observar 0 que e, aqui, significativamente,projetado sob a forma de urna flor, do buque do qual ela faz parte, e dovasa em que ela se insere. Verao que, de urna forma muito intensa, muitomarcante, esta flor e, propriamente falando, 0 centro mental visual doquadro. 0 buque e esta flor vem, com efeito, em primeiro plano, e saovistos contra a luz, 0 que quer dizer que isso faz uma massa negra, que etratada de tal modo que da ao quadro este carater chamado de maneirista.o conjunto e desenhado de uma maneira extremamente refinada.

Haveria, certamente, coisas a dizer sobre as flores que foram esco-lhidas no buque. Mas, em torno desse buque, vindo por tras dele, brilhauma luz intensa que incide sobre as coxas alongadas e 0 ventre do

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pe~onagem que simboliza Eros. E realmente impossivel nao ver aqui,deslgnado da forma mais precisa, e como pelo indicador mais firme, 0

orgao que deve anatomicamente se dissimular por tnis desta massa deflores, a saber, muito precisamente, 0 falo de Eros.

Isso e visto na propria maneira do quadro, acentuado de forma talque nao se trata de modo algum, no que lhes digo, de uma interpretayaoanalitica. Nao pode deixar de se apresentar a representayao 0 fio que unea ameaya do trinchante aquilo que nos e aqui designado.

Isso vale a pena ser sublinhado, pois nao e freqiiente em arte. la nosrepresentaram muito Judith e Holofernes, mas nao e disso que se trataaqui,ja que e cortayao de cabeya. Todavia, 0 proprio gesto, tenso, do outrobrayo que carrega a Ilimpada e feito realmente para nos evocar todas asressoniincias desse outro tipo de quadro a que fayo alusao, pois aquelaliimpada ali esti suspensa sobre a cabeya de Eros.

Voces sabem que, na historia, e uma gota de oleo, entornada nummovimento urn pouco brusco de Psique, muito emocionada, que vemdespertar Eros, causando-Ihe, alias, a historia nos indica, urn ferimento doqual ele sofreu pormuito tempo. Vamos observar, para sermos minucio-sos, que, na reproduyao que voces tern sob os olhos, ha, com efeito, algocomo urn trayo luminoso que parte da liimpada indo em direyao a espaduade Eros. No entanto, a obliqiiidade desse trayo nao deixa pensar que setrate desta lag rima de oleo, mas sim de urn raio de luz.

Alguns pensarao que existe ai alguma coisa muito notivel, e querepresenta por parte do artista uma inovayao, e portanto uma intenyao queIhe poderiamos atribuir sem ambigiiidade - a de representar a ameaya dacastrayao, aplicada na conjuntura amorosa. Se avanyassemos nesse senti-do, creio que logo teriamos que vol tar atras.

Logo teriamos que voltar atras porque - ainda nao Ihes apontei estefato, mas espero que ele ja tenha vindo a mente de alguem - esta historia,apesar da fulgurayao que teve na historia da arte, so nos e conhecidaatraves de urn unico texto, que esti no Asno de Ouro de Apuleio.

Espero, para seu prazer, que tenham lido 0 Asno de Ouro. E urntexto, devo dizer, muito estimulante. Se algumas verdades estiio, comosempre se disse, incluidas nesse Iivro, sob uma forma mitica e imajada,verdadeiros segredos esotericos, e uma verdade embrulhada nos aspectos~ais ca~biantes, para nao dizer excitantes e titilantes. A primeira vista,e, para d~zer a verdade, alguma coisa que ainda nao foi superada, nempelas malS recentes produyOes que nesses ultimos anos, na Franya, nosregalaram no genero erotico mais caracterizado, com toda a nuance desadomasoquismo que constitui 0 destaque mais comum do romanceerotico.

oAsno de Duro conta uma horrivel historia do rapto de uma jovem,acompanhado das ameayas mais aterrorizantes a que esta se encontra

exposta em companhia do asno, aquele que fala na primeira pessoa nesseromance, e e num entreato incluido nessa aventura de urn gosto bemrefinado, que urria velha, para distrair por urn instante a mOya em questiio,a seqiiestrada, conta-Ihe longamente a historia de Eros e Psique.

Ora, e em conseqiiencia da ayao perfida de suas irmas, que naodescansam ate faze-Ia cair na cilada, violar as promessas que fez a seuamante divino, que Psique sucumbe. 0 ultimo artificio de suas irmase sugerir-Ihe que ele e urn monstro horrendo, uma serpente do aspectomais odioso, e que certamerite ela nao deixa de correr algum perigocom ele. Depois do que, 0 curto-circuito mental se produz, ou seja,lembrando-se dos interditos extremamente insistentes que Ihe impoeseu interlocutor noturno, recomendando-Ihe nao violar em caso algumsua interdiyao muito severa de nao ten tar ve-Io, ela ve coincidir demaisesse discurso com 0 que Ihe sugerem suas irmas. E e ai que da 0 passofatal.

Para da-Io, em vista do que Ihe foi sugerido, isto e, aquilo queacredita dever encontrar, ela se arma. E e por isso, apesar de a historia daarte nao nos dar nenhum outro testemunho de que eu tenha conhecimento- seria grato a alguem, incitado por minhas observayoes, que me trou-xesse agora a pr va em contrario - que Psi que foi representada, naquelemomenta significativo, como armada. Foi realmente do texto de Apuleioque 0 maneirista em questao, Zucchi, tomou emprestado 0 que faz aoriginalidade da cena.

o que quer dizer isso? Na epoca em que Zucchi nos representa essacena, sua historia estava muito difundida, e por todos os tipos de razOes.Se disso temos urn unico testemunho literario, temos muitos deles naordem das representayoes plasticas e figuradas. Dizem, por exemplo, queo grupo que esti no Museu dos Oficios de Florenya representa urn Eroscom uma Psique, desta vez ambos alados. Podem observar que aqui, seEros tern asas, Psi que nao.

Psi que nasceu das asas da borboleta. Possuo objetos alexandrinosonde a Psique e representada sob diversos aspectos, e freqiientementemunida de asas de borboleta, que eram, naquela ocasiao, 0 signo daimortalidade da alma. Voces conhecem as fases da metamorfose que aborboleta sofre, a saber, que ela nasce inicialmente em estado de lagarta,de larva, depois envolve-se numa especie de ttimulo, de sarcOfago, de umamaneira que lembra uma mumia, e ali fica ate ressurgir sob uma formaglorificada. A tematica da borboleta como significativa da imortalidadeda alma apareceu desde a Antiguidade, e nao apenas nas religiOes diver-samente perifericas. Ela foi mesmo utilizada na religiao cristii comosimbolica da imortalidade da alma, e ainda 0 e. E e muito dificil negar quese trate, nessa historia, daquilo que se pode chamar de dissabores edesventuras da alma.

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Temos apenas urn texto mitologico como fundamento de sua trans-missao na Antiguidade, 0 de Apuleio. as autores acentuam diversamenteas significa~6es religiosas e espirituais da coisa, e achariam, de borngrado, que so temos em Apuleio uma forma depreciada, romanesca, quenao nos permite alcan~ar a importfulcia original do mito. Apesar de suasalega~Oes, acredito, ao contrario, que 0 texto de Apuleio e extremamente rico.

a que e representado, aqui, pelo pintor, e somente 0 come~o dahistoria. Na fase anterior, temos 0 que se pode chamar a felicidade dePsique, mas tambem uma primeira prova, a saber, que esta e consideradainicialmente ta~ bela quanto Venus, e ja e por efeito de uma primeirapersegui~ao dos deuses que se acha exposta no alto de urn rochedo _outra forma do mito de Andromeda - a urn monstro que a deve capturar.Este, de fato, ocorre ser Eros, a quem Venus deu 0 encargo de entregarPsique aquele de quem ela deve ser a vitima. Seduzido por aquela contraquem ele deve ser 0 delegado das ordens crueis de sua mae, ele a seqiiestrae instala num esconderijo, onde ela goza, em suma, da felicidade dos deuses.

A historia, pois, quer dizer que a pobre Psique participa de uma outranatureza que nao a natureza divina, e mostra as fraquezas mais deplora-veis, entre os quais sentimentos de familia - ela nao sossega enquanto?aO obtem de Eros, seu esposo desconhecido, a pennissao para rever suasIrmaS, e aqui a historia se encadeia. Ha, portanto, antes do momentarepresentado nesta pequena obra-prima, urn curto momento anterior, mastoda a his tori a se estende depois. Nao yOUcont:i-la a voces por inteiropois isso foge ao nosso tema. '

Essa historia se espalha, alias, pelo teto e pelas muralhas do encan-tador palacio da Famesina, e nem mais nem menos que pelo pincel doproprio Rafael. Sao cenas amaveis, quase que arnaveis em excesso. Naosomos mais capazes de suportar essa especie de bonitezas. Parece ter-sedegradado para nos 0 que apareceu, da primeirll vez que seu tipo surgiado pincel genial de Rafael, como uma beleza surpreendente. Na verdade,deve-se sempre levar em conta, que urn certo prototipo, urna certa forma,d~ve causar no momento de sua apari~ao, uma impressao completamentedlferente daquela que causa depois de ter sido, nao somente milhares devezes reproduzida, mas milhares de vezes imitada. Em suma, as pinturasde Rafael em Famesina nos dao urn tratamento escrupulosamente caIcadono texto de ApuIeio, das desventuras de Psi que.

Para que nao duvidem de que Psique nao e uma mulher, e sim aalma, que me seja bastante dizer a voces, por exemplo, que ela vai recorrera Demeter, presentificada com todos os instrumentos, todas as armas deseus misterios, pois e, realmente, da inicia~ao aos misterios de Eleusis quese trata. Ela e rejeitada, porque a tal de Demeter deseja, antes de tudo naose indispor com sua cunhada Venus. Trata-se apenas disso: por haverdecaido, e dado inicialmente urn mau passo de que ela nem mesmo e

culpada, pois 0 chime de Venus so provem de considera-Ia Ulna rival, ainfeliz alma se ve como urn joguete, repelida por todos os socorros, atemesmo os soc~rros religiosos. Assim se poderia fazer toda uma pequenafenomenologia da alma desventurada, comparada aquela da conscienciaqualificada pelo mesmo nome.

Nao nos enganemos nesse ponto. A tematica desta linda historia dePsique nao e a do casal. Nao se trata das rela~6es entre hom~m e mulher.Basta saber ler para ver aquilo que so est:i realmente escondIdo por estarem primeiro plano e evidente demais, como na Carta Roubada - nadaalem das relayOes entre a alma e 0 desejo.

E neste ponto que podemos dizer, sem foryar as coisas, que, paranos, a composi~ao extremamente minuciosa desse quadro d:i, de modoexemplar, pela intensidade da imagem aqui produzida isoladamente, urncarater sensivel ao que poderia ser uma analise estrutural do mito deApuleio que resta a se fazer.

J:i disse a voces 0 bastante sabre 0 que vem a ser a analise estruturalde urn mito para que saibam, ao menos, que isso existe. J:i que se faz, e~Claude Levi-Strauss a analise de urn certo mimero de mitos norte-amen-canos, nao vejo por ~ue nao nos entregariamos.a esta ~esma analise comreferencia a fabula de Apuleio. Estamos - COlsa cunosa - menos bemservidos nas coisas mais proximas de nos que em outras que nos parecemmais distanciadas quanto as fontes.

Temos somente uma versao deste mito, a de Apuleio. Mas naoparece impossive! operar nurn sentido que permita colocar em evidencia,ai urn certo mimero de pares de oposi~6es significativas. Apenas, sem 0

r~urso do pintor, talvez nos arriscassemos a deixar passa.r d~perceb~do ~carater realmente primordial e original daquele tempo da histona de PslqUe.

Este e, no entanto, 0 seu tempo mais conhecido, e todos sabem queEros foge e desaparece porque a pequena Psique fo! curiosa demai~, ealem disso desobediente. E isso que, na memoria coleuva, resta do senudodesse mito. Mas alguma coisa est:i oculta atras, e, se acreditarmos no quenos reve!a aqui a intui~ao do pintor, isso seria simplesmente este momentadecisivo que ele pintou.

Esta nao e, decerto, a primeira vez que vemos aparecer este ~omen-to num mito antigo. Mas seu valor de enfase, seu carater crucIal, suafun~ao pivo, tiveram que esperar durante longos seculos antes de serempostos por Freud no centro da tematica psiquica.

Se nao me pareceu imitil, tendo feito este achado, conta-Io para voces, eque ocorre que a pequena imagem que ficara, pelo proprio ~ato do tempoque the consagro esta manha, impressa em seus espintos, dustra aqmlo

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que hoj e nao posso fazer mais que designar como 0 ponto de convergenciade toda a diniimica instintual, na medida em que lhes ensinei a considerarseu registro como marcado pelos fatos do significante.

E isso que me permite acentuar como se deve articular nesse nive!o complexo de castra9ao. Ele so pode se articular plenament~ consideran~do-se a diniimica instintual como estruturada pela marca do significante.Ao mesmo tempo, 0 valor da imagem e mostrar-nos que existe, portanto,uma superposi9ao, ou uma sobreimposi9ao, urn centro com urn, no sentidovertical, entre a alma e esse ponto de produ9ao do complexo de castra9ao,onde os deixei da ultima vez. Vamos, agora, prosseguir.

Tor,nei a tematica do desejo e da demanda na ordem cronologica,mas subhnhando-lhes, a todo instante, a divergencia, 0 splitting, a dife-ren9a, entre 0 desejo e a demanda, que marca com seu tra90 todas asprimeiras etapas da evolu9ao libidinal. Mostrei-a a voces determinadapela a9ao nachtriiglich, retroativa, vinda de um certo ponto onde 0

paradoxa do desejo e da demanda aparece com urn minima de fulgor, eque e a fase genital - na medida em que, ali pelo menos, desejo edemanda, ao que parece, deveriam poder se distinguir.

Demanda e desejo sao marcados, ai, por este tra~o de divisao e dedispers~o, que ainda e para as analistas, se voces lerem os autores, urnproblema, uma questilo, urn enigma mais evitado do que resolvido, e a <I!!..ese chama 0 comglexo de castras:ao.

E preciso que vejam, gra9as a esta imagem, que 0 complexo de

\

castra9ao, em sua estrutura e em sua diniimica instintual, esta centrado deum modo tal que recorta exatamente aquilo a que podemos chamar 0 pontode nascimento da alma.

Se 0 mito tern urn sentido, e com efeito 0 de que Psi que s6 come aa viver como Psique, isto e, nao simplesmente como provida de urn dominicial ex traordinario que a faz igual a Venus, nem tampouco por urn favormascarado e desconhecido que the oferece uma felicidade infinita einsondavel, mas W..9!!!!nt<?-sujeito_de urn j)a.!hos qu~ _e, p~riamentefalando, a~uele da alma, no momento em que 0 desejo que a cumulou se

.esquiva e foge dela. E a partir desse momento que come9am as aventurasde Psi~e. .

13.disse a voces urn dia, todo dia e 0 nascimento de Venus, e comonos diz 0 mito plat6nico, devido a isso e tambCm todo dia a concep9ao deEros. Mas 0 nascimento da alma, no universal e no particular, e, para todose cada um, urn momento historico. E e a partir deste momento-quesedesenvolve a historia dramatica com que temos a ver em todas as silasconseqiiencias. - --I' Pode-se dizer, afinal, que a analise, com Freud, foi direto a esteI ponto. A mensagem freudiana terminou nessa articula9ao, a saber, queexiste urn termo ultimo - a coisa e articulada em Analise Terminavel

PSIQufi E 0 COMPLEXO DE CASTRA<;Ao

{' lnterminavel - a que se chega quando se consegu~ red~zir.no sujeitolodas as avenidas de sua ressurgencia, de sua revlvesc~ncla, d~ .suarcpeti9ao inconsciente, quando se consegue fazer convergtr esta u!umapara 0 rochedo - 0 termo esta no texto - do complexo de castra9ao.

Trata-se do complexo de castra9ao no homem, hem como na mulher_ 0 termo Penisneid e, no texto, urn dos marcadores do complex? decastra9ao, E em tome desse complexo de c~str,a9ao e, se posso dlzer,voltando a partir desse ponto, que devemos por a prova novament~ t~doo que pade, de alguma forma, ser descohe.rt? a pa~r des:e ponto ,hmlte,Quer se trate da valoriza9ao do efeito decIslvO e pnmordlal daqml~ quecompete as instiincias do saber, quer se trate da entrada em ~unclO~a-mento daquilo a que se chama a agressividade do sadismo pn~ordlal,ou ainda daquilo que se articulou, nos diferentes desenv~lv!mentospossiveis, em tomo da n09ao de objeto, de sua deCOmP?SI9aO ~ seuaprofundamento, ate valorizar a n09ao dos bons e ~aus obJetos p~lmor-diais _ tudo isso so pode ser ressituado numa, Just~ perspecuva serecapturarmos a partir do que isso efetivamente dlverg~u - este ponto,ate urn certo grau insustentavel por seu paradoxo, que e 0 do complexode castra9ao. '.

A imagem qu~ tenho 0 cuidado de mostrar a voces hOJe tern 0 valorde encamar 0 que quero dizer quando falo do paradoxo .do complexo decastra/yao. Com efeito, ate agora, na~ diferentes .ra~es_que estud~mos,

Icstava presente uma divergencia mottvada pela dlsttn9ao. e pela dlscor-diincia entre 0 que constitui 0 objeto da demanda - que seJa, na fase or~l,I a demanda do sujeito, ou, na fase anal, a demanda do ?utr~ - e aqmIoque, no Outro, esta no Iugar do desejo. Ai esta 0 que sena, ate certo po~tono caso de Psique, mascarado e velado, ainda ?ue secreta~ente percebldope!o sujeito arcaico, infantil. Ora, nao parecena que, naqmlo que se pode,maci9amente, chamar a-terceira fase, e .que e 0 que se chama corre~temen-Ie de fase genital, a conjun9ao do deseJo, ~~quanto podendo estar mteres-sado em alguma demanda qualquer do sUJelto, deve encontrar seu corres-pondente, seu identico, no desejo do Outro? . .

Se existe urn ponto onde 0 desejo se apresen.ta ~omo de~eJ? ejustamente ai, onde, a primeira acentua/yao de Freud fot felta para ~lt~a-~opara nos, isto e, no nivel do desejo sexua~, revelado na sua conslstenclareal e nao mais de uma maneira contammada, desiocada, condensa~a,met~forica. Nao se trata mais da sexualiza/yao de alguma outra fun/yao,mas da pr6pria fun/yao sexual. _. -

Para faze-Ios medir 0 paradoxo em questao, procurel esta man~a urncxemplo a destacar que encamasse 0 emb~ra/yo em que ?cam os pSI~ana-listas no que diz respeito a fenomenologla da fase gem tal, e fm c~lr noInternational Journal de 1952, num artigo de Rene de Monchy dedlcadoao Castration Complex,

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A que ponto urn analista que volta a se interessar, em nossos dias,pelo complexo de castra9ao - e nao ha muitos deles - e levado paraexplica-Io? Duvido que voces adivinhem. Vou lhes resumir muito rapida-mente.

Ha urn paradoxo, que nao pode deixar de surpreende-los, no fato deque a revela9ao da pulsao genital e obrigatoriamente marcada por essesplitting que consiste no complexo de castra9ao.

a autor, que nao deixa de ter certa bagagem, evoca no come90 deseu artigo aquilo que se chama os Releaser-mechanisms. Eo fato de que,nos passarinhos que nunca foram submetidos a experiencia alguma, bastaque se projete uma sombra identica a de urn homem ou de urn falciio paraprovocar todos os reflexos do terror. Em suma, a imajaria do leurre(logro), como se exprime em frances 0 autor deste artigo escrito em ingles,o captura.

Para ele as coisas sao muito simples. a engodo primitivo no homemdeve ser buscado na fase oral. E 0 reflexo da mordida, correlativo dessasfamosas fantasias sadicas que a crian9a pode tet, e que vao dar noseccionamento do objeto precioso dentre todos, 0 mamilo de sua mae. Estae a origem daquilo que numa fase ulterior, genital, ira se manifestar, poruma transferencia de fantasia, como a possibilidade de privar, ferir,mutilar 0 parceiro do desejo sexual sob a forma de seu orgao. E e por isso,nao que sua filha e muda, mas que a fase genital e marcada pelo signopossivel da castra9ao.

a carater de semelhante explica9ao e significativo da orienta9aoatual do pensamento psicanalitico, e da inversiio que ai se operou, fazendoprogressivamente colocar, sob 0 registro das pulsoes primarias, puls6esque se tornam cada vez mais hipoteticas, a medida que se as fazem recuarno fundamento inicial. Isso resulta em acentuar a tematica constitucionalnao-sei-que de inato na agressividade primordial. '

Estaremos soletrando' corretamente as coisas detendo-nos, ao con-trario, naquilo que, de fato, a experiencia, quero dizer, os problemas queela levanta para nos, nos prop6e comumente? Ja relatei a voces a n~aoque ocorreu a Ernest Jones, animado por uma certa necessidade deexplicar 0 complexo de castra9ao. Trata-se da aphanisis, termo gregocomum, mas colocado na ordem do dia na articula9ao do discurso anali-tico por Freud, e que quer dizer desaparecimento. Segundo Jones, 0 queestaria em causa no complexo de castra9ao seria 0 temor suscitado nosujeito pelo desaparecimento do desejo.

Aqueles que seguem meu ensinamento ja ha bastante tempo naopodem, espero, deixar de se lembrar - e aqueles que nao se lembramdisso podem se reportar aos excelentes resumos feitos por Lefevre-Pon-talis - que eu ja levei adiante este tema em meu seminano, dizendo que,se existe ai uma perspectiva na articula9ao do problema, existe tambem

uma singular inversao que os fatos clinicos nos permitem apontar. E porl'sta razao que tjz longamente, diante de voces, a c~ti~~ do famos~ sonhode Ella Sharpe, que e precisamente 0 que meu semm~no. 0 I!eseJo e sualllterpretafiio analisou em sua ultima sessao, e que gua mteuamente em(OIDO da tematica do falo. Pe90-lhes que se reportem a este resumo, porquenao podemos nos repetir, e as coisas ditas entao.~ao ~ssencia~s. "

a sentido do que esta em causa, na ocaSlao, e 0 segumte,. que Jaindiquei - longe do temor da ap~an!sis se proJe.tar, se pod~mos dlzer, naimagem do complexo de castra9ao,.!< ao contrano a necesslda.de. a det~J-mina ao do mecanismo signif!_~~~ que, n9., cgmplell.Q d~ ~~tra9.!!o,cmpurra na maioria dos ~os o.~.Y.i~i!Q,.naoa teme~ a apha!J:!!:SlsJ}J!.a~,~contdr' 0 a refug!l!.~-» a uardar seu deseJQ...no bo~o-,-;a ue. acXI?t'riencia ;m@ticvU~~...r~{:la ~!1$f.,..!Jlais.~iQS.Q~ ue Ql)r..Qpp..oJkseJ,9,\ guardar 0 seu simbolo, gue e 0 falo. Eis oJlliMema que nos e ID"..Q~:

Espero que tenham notado bern, no quadro, as flores que estao alidiante do sexo de Eros. Elas sao, justamente, marcadas por uma talabundancia apenas para que nao se possa ver que, p~r detras, ~ao ~a n~da:Nao ha lugar, literalmente, para 0 menor sexo. Aqmlo que PSlque esta aliIIponto de cortar ja desapareceu diante dela. _ .

E alem disso, se alguma coisa chama a aten9ao como oposta a boa,hcIa forma humana des sa mulher efetivamente divina, e realmente 0carater extraordinariamente comp6sito da imagem de Eros. A figura e decrian9a, mas 0 corpo tern algo de miguela?gesco. E urn corpo musculoso,que comes:a, quase, a se marcar, para nao dizer afrouxar, sem falar nas asas.

Todos sabem que se discutiu por muito tempo sobre. 0 sexo d~slInjos. Se isso foi discutido por tanto tempo, provavelm~nte fm por~ue naose sabia muito bem onde parar. Seja como for, 0 apostolo nos dlZ que,quaisquer que sejam as alegrias da ressurrei9ao dos corpos, uma -:ezchcgado 0 festim celeste, nao havera mais na ordem sexual nem atlvo,nem passivo.

De modo que 0 que esta em jogo, e que esta concentrado nessaimagem, e realmente 0 centro do paradoxo do complexo de castra9ao. 1:qillU> des~j. 0 autro n.ll!l~dida ew que ~_abordad_o.J.!Q.J¥.viliJLf~sgenital, DllDClLPQde_s!<racelill,,.gc falo, nagydo ques!!..a.!Jl..Jrr,eute.JieJl.ntQ,que e, ao mesmo....te.rop,Q,S!1.Jlfyg;lsjdade. . _

Isso diz respeito, em primeiro lugar, aos p~rad~xos d~ s.ltu~~ao dacrian9a, a saber, que se trata nela de um deseJo amda fragd, mcerto,prematuro, antecipado. Mas essa observa9ao no~ mascara~ afinal, ~e qu~sc trata - e, simplesmente, a~~2~~1~ ~l a, ~W!tnf\..9es~IIdap,!a.9l!~se~po.dmos diz~, ~ or ani.za a~ ~i u.l~a na ~edl~.m-que.....eps~sso em gualqu.!<rmyel. emfiO org~g..§o e t!!!zldo.e.a~ordado sc:transform!!~!!1 si nificao~,.!<..p~~~.f~~~~_~~ slgI!lficao!e ~l~c £2rtado.

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o OSJETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRA<;AO

Releiam tudo 0 que lhes ensinei I 'Verao que so se trata disso ele e ta a er. nOdmyel do pequeno Hans.Hans se arranja _ ele e desatarra ,s I ;~a1za o? e amovivel? No fim,outros no lugar Portanto e'd' xave . e-se desatarraxa-Io, e colocar

.' , lSS0 que se trata

(0 que nos e demonstrado aqui' . " .

nada mais ha, aqui, senao 0 ro rio '. e esta propna el.1sao gra~as a qualausencia. Pois 0 que Ihes ~nsi~ . ~lgno qu~ estou d1Ze?do, 0 signo da~@'ica..T!.~,!em ~m lugar, e mUit~l ;e; segumte: se phi"0 .falQ....CQlnoondeJ)o Outro desaanaarrf"ei'c'e''~<. -';f~~--~~!lte, 0 d~ sUJ2lenC1ano p?nto-- -'--'=--.= a slgm lCanC1" - dO' -;-- .Qor haver emall ,._- .-_:--_~>t- Q!L~Q.._yyo e consUtuido-;-_. __ .>- ~;''' g!JIl! ugar, urn slgruficante que falta D ,--------;-.--

g!ad_Q..dkste.slgnificante ~q'"u";'s· ""d"···' -, .•.. -- . -~Q..Y.al01'..prlY.11e-d ,. 8 .. e k'-~.e escrever sem dti .rlo ,.Q9 e escrevet: entr,tparenteses dizend~JiQ~ -cl~i-·-.!Y.l~~egnde 0 sigQilk1illl<USll~---- -,-~-~~ 0 SI n ante..do..l2.Q!ili>

E e por essa razao que ele pode se t .d' .no ponto em que podemos escreve I omar 1 ~n~co ao proprio sujeito,tinico ponto em que nos analistas ~ como sUJelto barrado, isto e, noDigo nos, analistas, na'medida e;: emos coloc~r urn sujeito como tal.resuItam da coerencia do Sl' 'fi que estamos bgados aos efeitos que

gm 1cante quando urn . l'agente e suporte Se adm1'U'rm d ' ser VIVO se laz seu- . os essa etermina - b .~ao como a chamamos 0 sujeit _ . ~ao, e~sa so redetermma-possivel se nao pelo significan~ nao tern mals, a p~rur dai, outra eficaciasujeito e inconsciente. e que 0 escamotela. E e por isso que 0

)

. S.e e possivel falar, mesmo ali onde - , .slmbobza~ao e no sentido em nao se e anabsta, de duplaregistros dela' decorrem necessa~~~~~ttureza do simbolo e tal que dois

Isimbolica e aquele ligado Ii d d ~, aquele que esta ligado Ii cadeiade trazer para ali, pois e ali qu:s~~~~, :1bagUJ.1~aque 0 suj.eito f~i capaz

Em outras palavras 0 sUj~ito so ~fi~se s~~uada ~aneJra ma1S certa.I original no momento em 'que se serve d .a a'filmensao da verdade como

o slgm lcante para mentir.

cia, 0 artista antecipou em tres seculos e meio, e Ii minha revelia, assegu-ro lhes, ate estes uItimos dias, a propria imagem de que me servi parallrticular a dialetica das rela~Oes entre 0$U ideal eo ideal do !<\)?

Eu disse isso ha muito tempo, mas retomei inteiramente a coisa numllrtigo que logo devera ser publicado. A rela~ao com 0 objeto como objetodo desejo, como objeto parcial com toda a acomoda~ao necessaria, tenteillrlicular suas diferentes pe~as em sistema, numa experiencia de fisica paraprincipiantes a que chamei a ilusao do vasa invertido.

I 0 importante e projetar em seus espiritos a ideia de que 0 problemada castra~ao, centro de toda a economia do desejo tal como a analise adcsenvolveu, esta estreitamente Iigado a este outro problema, que e 0scguinte: 0 Outro, que e 0 lugar da fala, que e 0 sujeito de pleno direito,que e aquele com quem man tern os as rela~6es da boa e da ma fe - comosc da que ele possa e deva tomar-se alguma coisa de exatamenteanalogo aquilo que se pode encontrar no objeto mais inerte, a saber, 0

!objeto do desejo, a? E esta tensao, este desnivelamento, esta queda denfvel fundamental que se torn a a regula~ao essencial de tudo 0 que, nohomem, e problematica do desejo. Eis 0 que se trala de analisar, e quepenso poder, da proxima vez, articular para voces da maneira maisnftida.

Terminei 0 que Ihes ensinei a proposito do sonho de Ella Sharpecom estas palavras: Esse falo, dizia eu, fa lando de urn sujeito tornado nasitua~ao neurotica mais exemplar para nos, na medida em que era a daaphanisis determinada pelo complexo de castra~ao, esse falo, ele 0 e enao 0 e. Este intervalo, 0 ser e 0 nao ser, a Ifngua permite percebe-Io numaformula onde desliza 0 verbo ser - ele nao e sem te-Io. E em tomo dessaassun~ao subjetiva entre 0 ser e 0 ter que atua a realidade da castra~ao. E() falo, escrevia eu entiio, tern uma fun~ao de equivalente na rela~ao como objeto. E na ro or jo d_O!!!W~_«l~t:t<nunciaaq [ala gue 0 sujeito e!*lJ.na posse da lugi!9l!Qe dos o!>letos_que caracterizam.-o mundo humano.Numa formula analoga, poderiamos dizer que a mulher e sem te-Io. 0 quepode ser vivido muito penosamente sob a forma do Pellislleid, mas que- acrescento aqui ao texto - e tambcm uma grande for~a. E isso que 0

paciente de Ella Sharpe nao consente em perceber. Ele protege 0 signifi-Jcante falo. E, concluia eu, sem duvida, existe algo mais neurotizante quelperder 0 falo, e nao querer que 0 Outro seja eastrado. '

Mas hoje, depois que percorremos a dialetica da transferencia noBanqlJete, YOU ihes propor uma outra formula. Se 0 desejo do Outro estaessencialmente separado de nos pela marca do significante, nao com-preendem agora por que Alcibiades, tendo pereebido que ha, em Socrates,o segredo do desejo, demanda de maneira quase impulsiva, por urnimpulso que esta na origem de todas as falsas vias da neurose ou daperversao, por que Alcibiades demand a esse desejo de Socrates, que ele

Eu queria, esta manha, chamar a aten - d 'com 0 efeito do significante e para i~ode voces para a reIa~ao do falo- e isso quer dizer, como tr~ns st~ a:

0e que_~.~~~~

de sua fun~ao organica _ e 0 :a t d ma fun~ao Int~Jramente diferentede que se trata W' n~mp -d.en W : toda apr~eQ.§ao_<;oerentedanuilo

'""-'-U 0 e castras:ao. --=Mas quero ainda inaugurar n"-- d '.

racional, mas de uma maneira fi ' dao e .maneJra aInda articulada evez. gura a, aqUIlo que traremos da proxima

Isso esta, se posso dizer genialmtnaneirismo do artista Na-o Ih' " ente representado gra~as ao pr6prio

. . es vew a mente qu Iflores d1ante do fala como faIt e ao co ocar esse vaso deoso, e como tal elevado Ii maior significan-

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232 0 OBJETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRA<;AO

sabe, alias, existir, ja que e neste ponto que ele se funda, por que eledemanda ve-Io, quer ve-Io como signo?

E e tambem por isso que Socrates recusa. Pois niio ha ali mais queurn curto-circuito. Ver 0 desejo como signo niio e, por este fato, aceder aoencaminhamento por onde 0 desejo e tom ado numa certa dependencia,que e 0 que se trata de saber.

Voces veem, aqui, iniciar-se 0 caminho que ten to for~ar em dire~iioao ue dev desejo dp anliJista. Para ue 0 analista RQ.~~~rJl9.!!ilo@e falta ao ql,!tro, e p,reci~o q~eIe)!:!!~a..!!lesciencia en uanto nescien-cia. E reciso que ele esteja sob 0 modo do ter que ele niio sti~ ele~~..!!l ~<E.!~u~Jo, ueDro ~(~J~nada para que ele seja tiio nesci~

uan t s!aI..S..Yj.«l!Q.De fato, ele tambCm niio e sem ter urn inconsciente. Sem duvida, ele

esta sempre para alem de tudo aquilo que 0 sujeito sabe, sem poder dizerisso a ele. ~6 pode Ihe fazer !!!!!..s1_g_l!.9'Ser_amJil9~qm<J~p'resenta al umaco!sa earlU!gueQ),. es~ ~ a d~fi.gi£~Q..Q9,.,.§!gng.Niio tellQo e1JlsyIl1a., nMg~~is qU~~~~~~r~~~ de~t?j2_d.Q.J'J1jeiW,.~niio 'ustamente P-Q!~ ~.Iista 0 esta condenaQQ..~J.~!.§.!U!!.rpresa.Ma.uJiglUIUl.Si.mesmes<J.!le§9 ga eficacia se nos oferecerm9s~averdadeira, que e)ntransmjssh:el,e da q~~ cle _s6 po.~<;:.gar_out!}sig~.o.

.Rc res en tar alo8.~ coisa P~2!g.!!!,!!, e justaments isso .Jl~~sc_rom er. Pois ao ggno u~:i-p'am. ..~r". (a11a signiQ.~.@g:, Este e, comosabem, 0 unico signo que niio e sustentado, porque e aquele que provocaa mais indizivel angustia. No en tanto e 0 unico que pode fazer aceder 0

outro aquilo que e da natureza do insconsciente - a ciencia sem cons-ciencia sobre a qual talvez voces compreendam hoje, diante desta ima-gem, em que sentido, niio negativo, mas positivo, Rabelais disse que elae a ruina da alma.

Arcimboldo e a persona.A lalta de signijicante e a questiio.o signijicante sempre velado. _olalo na histeria e na obsessao.

Retomo, diante de voces, meu discurso dificil - cada vez mais dificil por

sua vi~~:~ no entanto que os conduzo hoje por urn terreno desc~nhecido. . d 'uado Se c;me<'o hoie a conduzi-Ios porum terreno, e porque,sena ma eq. Y J ,

for osamente desde 0 inicio ja comecel. d~ Falar p~r outro lado, de terreno desconhecido quando se, trata '10

osso ue ~e chama 0 inconsciente, e ainda mais inadequado, polS aqm 0

dn , qse trata e que faz a dificuldade deste discurso, e que nada Ihese que, . _ d'osso dizer cujo peso niio provenha daquIio que nao 19~. ,

P Niio que niio seja necessario dizer tudo, e que para dlz~r ~omJustezaniio ossamos dizer tudo aquilo que poderiamos ~o~mular: Ja h~ ~I~o nessaf6rr:ula que captamos isso a todo instante, preClplta no lmagl~anodo queesta em caus'a, e que e essencialmente aquilo ,que se passa pelo ato e que() sujeito humano e, enquanto tal, presa do slmbol°do ' bolo devemos

Aten iio' no ponto em que chegamos, este Slm, ,

]

COloca.IO ~o singular ou no plural? No singular, certament~, na medldaem que aquele que introduzi a ultima vez e, ~alando, propnar:a~~;p~~sfmbolo inominavel vamos ver por que e em que - 0 SImboio g. Eneste ponto 'que devo retomar hoje meu discurso, para Ih~s ~~str~rem que ~te simboIQ..no.s_~indis~!1save!Jlarac.9!¥p'r~.ender a mc) enstado comp 0 de castn!~iiQ.JlQque tan e a tra_l).§f~ren~la~

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o OBIETO DO DESEJO E A DlALETICA DA CASTRAc;AO

Ha~ c~m efeito, uma ambigiiidade fundamental entre <I>e cp, entre 0 grandePhI, sunbolo, e 0 pequeno phi.

Q pequeno phi designa 0 falo imaginario enquanto interessadoconcretamente na economia psiquiea, no Divel do complexq de ~astra ao~m<!e0 encontramos em primeiro lugar, ali onde 0 neurotico 0 vivenciade uma maneira que representa seu modo particular de operar e manobrar~m ~sta difi~uldade radie~l q~ esto_u tentando artic1!.lacp-ara_ yoce~atraves do uso que dou ao simbolo Phi.

§ste simbolo, <I>da ultima v~z e ja muitas vezes anteriormente euo. designei brevemente, quero dizer, de maneira rapida e resumida, c~moslmbolo no lugar onde se pro<;iuza falta de signifieante.

. Nova~e~te revelei, desde 0 inicio desta sessao, a imagem que nosservlU, da ultIma vez, de suporte para introduzir as antinomias e osparadoxos ligados a deslizamentos divers os, tao sutis e tao dificeis dereter, em seus div~rsos tempos, e que sao, no entanto, indispensaveis dese susten~r, se _quIsermOs c~mpreender 0 que esta em causa no complexode castra~ao. Sao, em especIal, os deslocamentos, as ausencias os niveise a~ substitui~oes ?And~intervem 0 falo, em suas formas multip'las, quaseublquas. Na expenencla analitica, VOces 0 veem ressurgir a todo instante- e, ao menos nos escritos te6ricos, isso e inegavel - ser reinvocado sobas. f~~as mais diversas, ate 0 termo ultimo das investiga~Oes maispnm1tIvas sobre asprimeiras pulsa~oes da alma. Veem-no identificadopor ~xem~lo, c~m a fon;:a da agressividade primitiva, na medida em qu:~le e 0 ptor obj~to encontrado ao termo no seio da mae, e enquanto,Igualmente, 0 objeto mais nocivo. Por que esta ubiqilidade?

Nao sou eu quem a sugere, pois esta manifesta em toda tentativa dese formular ~ tecniea analitiea num plano tanto antigo quanta novo, ou~enovad~. ~OISbern, ~a~os tentar colocar ordem nisso, e vejamos por quee ~ecessano que eu. InSISta nesta ambigiiidade, ou nesta polaridade, sequ~serem. Esta polandade, referente a fun~iio do signifieante fala, esta em_dOIStermos extremos, 0 simb<slico e 0 im.Jlginario. ---

I Pig~significante, na medida em qu~ ele e utilizado como tal. Masq~ndo o.i~trod.uzi. ~a pouco, disse 0 sfmbolo falo, e este talvez sej~ cQ.m~feIto, 0 umco slgruflCante a merecer, ~m nosso registrp, e de uma maneiraabsoluta, 0 titulo de simbolo. -- -- -

_ . P~rtanto, re-desv<:.lei para ~~ces a imagem do quadro de Zucchi, quenao e sImples reprodu~ao do ongInal de que parti como de uma imagemexemplar, carre~ada em sua composi~ao de todas as riquezas que umacerta .~rte da pmtura pode reproduzir, e da qual examinei 0 caratermanelnsta. Vou tomar a mostrar a imagem, ao menos para os que nao apuderam ver. Quero simplesmente, a titulo de complemento marcar bem, ,

IIl1raaqueles que talvez nao tenham podido ouvi-Io de maneira precisa, 0

que pretendo sublinhar aqui da impolti.ncia daquilo a que YOU chamar alIplica~ao maneirista. Este termo, aplica~ao, deve se empregar tanto nocntido proprio quanto no sentido figurado.

Vejam aquele buque de flores, all ~o primeiro plano. ~ua presen5~a'crve para recobrir 0 que e para se recobnr, e que, como eu dIsse a voces,('ra menos 0 falo amea~ado de Eros - aqui, surpreso e descoberto poriniciativa da questao da Psique, Dele, 0 que fo~ fe~to? - q~e 0 pontopreciso de uma presen~a ausente, de um~ .ausen~Ia presentIficad~. Ahistoria tecnica da pintura da epoca nos sohcIta aqUl, por lima aprox~a-'tao - e nao pela minha via, mas pela dos cri.ticos que p.artem ~e premtssasinteiramente diferentes daquelas que podenam me gUlar aqUl.

Temos COInefeito, algumas indica~oes de que as flores nao foram,provavelme~te, pintadas pelo mesmo artista, mas por u~ .irmao ~u .umprimo, Francesco, e nao Iacopo, que, em raziio de sua habIltdade tecmca,foi solicitado a vir fazer 0 mais dificil, as flores em seu vaso, no lugarconveniente. Devido ao proprio fato desse colaborador provavel, oscriticos sublinharam 0 parentesco da tecnica empregada com aquela d~alguem que espero que urn certo ntim~ro de voces conh~~a, e que fOItrazida, ja ha alguns meses, ao conhecImento dos que se Inform~~ urnpouco quanto as diversas voltas a atualldade de fases por vezes ehdIdas,veladas, esquecidas da historia ,4~ arte - a saber, ArcImboldo.

Este Arcimboldo, que trabalhava em parte na corte do famosoRodolfo II da Boemia, que deixou outras marcas na tradi~ao do objetoraro, se distingue por uma tecnica singul~r, que ~eu seu ultimo broto naobra de meu velho amigo Salvador Dalt, naqUIlo que ele chamou dedesenho paranoieo. Por exemplo, tendo de representar a fig~r~ do bibli~-tecario de Rodolfo II Arcimboldo 0 faz por meio de uma sabIa composI-~iio dos utensilios prlmordiais da fun~ao do bibliotecario, a saber~ livro~,dispostas sobre 0 quadro de maneira que.a imagem de u~ ro~t? seja, maISque sugerida realmente imposta. Ou amda, 0 tema sImb6ltco de umacsta~iio, enca~nada sob a forma de urn rosto human~, sera materializadopelos frutos des sa esta~ao, cuja montagem sera reahzada de tal.sorte quea sugestao de urn rosto vai se impor, igualmente, na forma .reahz~da.

Em suma, 0 procedimento maneirista consiste em realtzar a Imagemhumana em sua figura essencial pela coalescencia, a combina~iio, aacumula~iio de urn monte de objetos, cujo total sera encarregado derepresentar aquilo que, a partir dai, se manifesta ao mesmo tempo ~omosubstancia e como ilusao. Ao mesmo tempo em que a aparencla daimagem humana e mantida, alguma coisa e sugerida, que se imagina nodesagrupamento dos objetos. Estes objetos, que tern, de algu~.a forma,uma fun~ao de mascara, mostram ao mesmo tempo a problematIca dessamascara.

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a oBJETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRA<;Ao

E co~ isso, em suma, que sempre temos aver cada vez que vemosentrar.em.Jogo a fun~iio, tiio essencial, da persona, que esta 0 tempo todoem pfl~elfo plano na economia da presen~a humana, a saber que, se hanecessldade de persona 6 porque, por tras, talvez, toda forma se esquivae se desvanece.

E, certamente, 6 de urn agrupamento complexo que a personaresu~ta~ E. ai, com efeito, que reside 0 logro, e a fragilidade de suaSubslstenc,la ..Por detras, nada sabemos do que pode se sustentar, pois 6uma ,ap~rencla r~dobrada que se sugere a nos, urn redobramento deaparencla, que delxa a interroga~iio de urn vazio - a questiio 6 saber 0que ha no ultimo termo.

E justamente neste registIo mesmo que se afirma, na composi~iio doquadro, ~ modo sob 0 qual se ~ustenta a questiio daquilo de que se trata,no que ha para nos ocupar aqUl, 0 ato de Psique.. Psique, satisfeita, se interroga sobre com que esta Iidando e 6 estemsta?te preciso, privilegiado, que 0 artista reteve, talvez muito al6m?aqUlI.o que ele proprio poderia articular quanto a isso num discurso. Ha,mclu~1Ve, urn disc,urso desse personagem sobre os deuses antigos, fizqu~stao de .conhece-Io, sem grandes i1us6es e, com efeito, niio ha grandeCOlsa a se t.uar dele ~ mas a obra fala 0 suficiente por si mesma.

I, a arUsta, nessa Imagem, captou aquilo a que chamei da ultima vez

o momento de apari~iio, de nascimento, da Psique, essa e~pecie de troc;

I,de poderes que faz com que ela ganhe corpo. Vai se suceder todo 0 cortejode desgra~as que serao as suas antes que ela feche 0 seu circuito e

I ~eencontre e~tiio aquilo que, naquele instante, vai desaparecer para ela ~o, mstante segumte, 0 que eIa quis desvelar e capturar, a figura do desejo.

cia~unica~~9 6 possivj!1. ]'oda bateria significante pode Ihes dizer gueaquil~ que eI~ nao pode dizer nada significara no lugar do OutIo. Ora,ludo 0 que significa para nos se_passa sempre no lugar do Outro.

.rara que algurna coisa signifique, 6 preciso que ela seja traduzivelno lugar do outIo. Suponham uma lingua que nao tenha determinadafigura, pois bern, ai esta, ela nao vai exprimi-Ia. Mas vai significa-Iamesmo assim, por exemplo, pelo processo do deve ou do haver. E 0 quese passa, de fato. Ja os fiz observar que e assim em frances e em ingles,cxprime-se 0 futuro: Tu cantards, 6 perfeitamente atestado que 6, origi-nalmente, 0 verbo haver que se declina. He shall sing exprime tambem,de maneira indireta, 0 futuro que 0 ingles nao tern.

Niio ha signifi.£ante que falta. Em ql1e momento come~~ a aparecer,possivelmente, aJalta de signific~? ~esta dimensao ~e ~ subjetiva, eque se chama a pergunta. .

Tratei, a seu tempo, do carMer fundamental do surglmento, nacriancra, da pergunta como tal. E urn fato ja bem conhecido, e destacadona observayao mais frequente. Trata-se de urn momenta particularmenteembarayoso, por causa do carMer dessas perguntas. A criancra, a partir domomenta em que sabe lidar e se virar com 0 significante, introduz-senaquela dimensiio que a faz formular a seus pais as perguntas maisimportunas, que todos sabem causar 0 maior desconcerto e, na verdade,respostas quase necessarianl'ente deficientes.

o que i correr? 0 que i bater com 0 pi? 0 que i urn imbedl? -o que nos toma tiio inadequados para responder a essas perguntas? Algonos forya a responde-Ias de uma maneira tiio especial mente inabil, comose nao soub6ssemos que dizer correr i andar muito depressa, 6 realmenteestragar 0 trabalho - que dizer bater com 0 pi i ficar com raiva, 6realmente proferir urn absurdo - e nao insisto na definiyiio que possamosdar do imbecil. De que se trata, no momenta da pergunta? - senao dorecuo do sujeito com relayao ao uso do proprio significante, e de suaincapacidade de captar 0 que quer dizer que haja palavras, que se fale, eque se designe determinada coisa tao proxima por este algo enigmatico aque se chama uma palavra ou urn fonema.

A incapacidade sentida nesse momenta pela crianya 6 formulada napergunta, que ataca 0 significante como tal, no momenta em que sua a9aoja esta marcada em tudo, 6 indel6vel. Tudo 0 que se apresentaracomopergunta na sequencia historica da meditayao pseudofilosofica, afinal, sovai decair. Quando 0 sujeito atingir 0 que sou eu?, ele estara muito menoslonge dessa decadencia - a nao ser, claro, se for analisado. Mas se naoo for - e nao esta em seu poder se-Io ha tanto tempo assim -, colocan-do-se em questiio sob a forma quem sou eu?, ele esconde 0 fa to de que seperguntar 0 que se 6 nao quer dizer nada al6m da etapa da duvida sobre 0ser, pois ao simplesmente formular assim sua questiio, ele cai em cheio

IIA introduyao do simbolo ~, 0 que a justifica, ja que 0 dou como aquiloq.ue .v.em no lugar do significante falloso? a que quer dizer que urnslgruflcante falta?

. . 9uantas vezes eu ja nao Ihes disse que, uma vez dada a bateria doslgruflc~nte - para al6m de um certo minimo, que resta a determinar,mas, a ~lgor, quatro devem poder bastar para todas as significayoes, comon~s ensma Jakob~on -, na~a falla. Nao ha lingua, por mais primitiva queseJa, ~m?e tudo n~.? possa, fmalmente, se exprimir, salvo que, como diz 0proverblO da regl~o de Vaud, tudo 6 possivel ao homem, 0 que ele naopode f~zer, ele delx~ - o_que nao puder se exprimir na dita lingua, poisbern, slmplesmente ISS0nao sera sentido nem subjetivado.

Se~ ~ub~etiv~do 6 to_m~ar.JugaLnum sujeito como v.ali.do para urnoutro su ello, IstO e, passar aqut<lq20nto mais radicat onde .!!.Q.rQP!:~eia

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a aBJETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRAc;Ao

na metafora, so que niio se da conta disso. Para nos, analistas e urn minimonos lembra~os ~isso: a ~im de the evitar renovar este erro ;ntigo, sempreamea~ador a sua mocenCla sob todas as formas, e impedi-Io de responderpor exemplo,. mesmo com nossa autoridade, eu sou uma crianra. '

Ai, esta, certamente, a nova resposta que the e dada pela doutrina~iiode forma renovada da repressiio psicologizante. E com isso no mesmoem?rulho, ela vai criar nele, sem que ele perceba, 0 mito do ~dulto, que,sena, supostamente, alguem que niio e mais crian~a - fazendo, assimab~dar novamente essa especie de moral que sustenta uma pretens~reahdade ?nde, na verdade, el~ ~e deixa levar sem questionamento portodos os upos de trapa~as SOCIalS.Da mesma maneira 0 eu sou umacrian~a, niio es~ramos ?em pela analise nem pelo freu'dismo para quesua formula se mtroduzlsse como urn espartilho destinado a fazer semanter eret? aquilo que por algum motivo se encontrasse numa posi~iiourn pouco blzarra.

. . Chega-~e a dizer que, sob 0 artista, ha uma crian~a, e que siio osdIr~ltos da cnan~a que ele representa junto as pessoas consideradas comoserms, que. niio siio ~rian.~~s. Eu Ihes disse, no ano pass ado, nas li~Oessobr~ a. Etlca cia PSlcana~lse, esta concep~iio data do inicio do periodoromanuc?; ~la come~a malS ou menos na epoca de Coleridge na Inglater-ra, para sltua-la numa tradi~iio, e niio vejo porque iriamos nos encarregarde substitui-Io.

._Quero, aqui, faze-Ios compreender, a respeito, aquilo a que, porocaSlao daS Jornadas provinciais, fiz alusiio.

a nivel inferior do grafo, da maneira como e construido 0 duplorecorte ~e suas ~uas fle~ha.s, serve para atrair nossa aten~iio para 0 fatode que Slmultanel?ade nao e, de modo algum, sincronia. Suponhamos quese ~esenv.?lvam slmultaneamente os dois tensores ou vetores em jogo, 0da mten~a~ e 0 d~ cade~a significante. Voces veem que aquilo que seproduz aqUl como mcoa~ao dessa sucessiio, por exemplo, ados diferenteselementos fonematicos do significante, se desenvolve muito antes deencontrar a Iinha na qual toma seu lugar aquilo que e chamado a se-Io ainten~iio d~ significa~ao, podemos mesmo dizer a necessidade, se qui;e-rem, que ah se oculta. Da mesma maneira, esse cruzamento vai se refazer~ma segunda v~z, si.multa?ea~ente. Se 0 nachtraglich, com efeito, signi-fIca .alguma cOlsa, e que e no mstante em que a frase e terminada que 0sen~do s~ destaca. Sem duvida, a escolha ja se fez na passagem, mas 0sentl~o so se apreende quando os significantes sucessivamente empilha-dos vem toma~ seus .lugares, cad a urn por sua vez, e se desenvolvem aquis?b .a. forma mveruda - eu sou uma crianra aparece sobre a linhaslgruflcante na ordem em que siio articulados seus elementos.

a que aco~t~ce quando 0 sentido se completa? Acontece 0 que hade sempre metaforIco em toda atribui~iio. Nada mais sou alem de eu que

falo, e atualmenle sou uma crian~a. Dize-Io, afirma-Io, realiza esta cap-lura, csta qu~!ifica9ao do sentido, gra9as a q.ual me conc~bo numa certarcla9ao com objelos que sao os objetos infantls. Fa90-me dlferente do quefino pude, de forma alguma, m~ apreender no ~om~~o. Encarno-me,'ristalizo-me, t'a90-me eu ideal, e lSSO,de modo mUlto dlreto, no processo

da simples incoa9iio significante, no fato de ter produzido s~gnos c~pazesde se referirem Ii atualidade da minha fala. a ponto de partIda esla no euUe), e 0 lermo esta na crian9a. . _ .

a que permanece aqui como sequela, I,'Osso ve-Io.ou nao - e 0enigma da propria pergunta. E isso 0 que eXlge ser aqUI retomado, emseguida, no nivel de A. A sequela do que s~u aparece sob a .forma em quefica como pergunla. Esla sequela e, para mlm, 0 ponlo ?e vlsada' 0 pontocorrelalivo onde me fundo como ideal do eu. E a partIr deste ponto quea pergunla'tem, para mim, impottincia, e ai que a pergunla se ~e imp<>ena dimensiio etica, e da a forma, que e a mesma que Freud conJuga com() supereu.

Mas 0 que aeonlece com esle nome que se Iiga dire~~ente, t~~toquanta eu saiba, Ii minha incoa9ao significante, e que quahfl~a 0 sUJeltode uma maneira diversamenle Iegitima, como sendo uma cnan~a? Estaresposla e precipilada, prematura. Ela faz com que~ e~ suma, eu e1id~ todaa opera9iio cenlral que e feila. a que me faz preclpllar-me como :rIan9aC 0 evilamento da verdadeird resposla, que deve come9ar bem mats cedo

? - •que qualquer outro lermo da frase. A res posta ao que sou eu. na.o enenhuma outra coisa de articulavel, da mesma forma em que Ihes disseque nenhuma demanda e suporlada. Ao que sou eu? ~ii? ha_outra respostano nivel do autro que 0 deixa-te ser. E toda preclplla9ao dad a a eslaresposta, qualquer que seja ela na ordem da dignidade, crian9a ou adulto,niio passa de eU/lljo ao sentido deste deixa-te ser.

a que quer dizer esta aventura, no ponto degradado em que aapreendemos, e que 0 que esta em questao em toda pergunta formuladanao esta no nivel do que sou ell?, mas no nivel do autro, e sob a formaque a experiencia analitica nos permite r~velar, do que que res ? Trata-se,

\ neste ponto preciso, de saber 0 que deseJamos formulando a pergu.nta: :E

Iai que ela deve ser compreendida. E e ai que intervem a falla de slgrufi-cante de que se trala no ¢ do falo. . . .

A analise obriu, como sabemos, que aqutlo c0!!l que 0 su eltotern aver e 0 ol:>jetoda fanlasia:ni medida em que est~ se aQ!"ese~taco~oo unico c~a£de_ fixar urn jJonto privilegiado naqUIlo a que -.!...~recls!Jc~mar com 0 principio do prazer, uma economia regulada pelo mvel ~ggozo. A analise nos ensina tambem que, ao referir a questiio ao nivel doque quer ele?, do que i que isso quer leidentro?, encontr~mos urn mundode signos al ucinados, e ela nos representa. a prova da re~hdade co~o umamaneira de experimentar, 0 que? - a reahdade desses slgnos surgldos em

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nos segundo uma seqiiencia necessaria, em que consiste, precisamente, adominancia, sobre 0 inconsciente, do principio do prazer.

o que esta em questiio, pois, na prova da realidade, vamos observarbern, e certamente controlar urna presen~a real, mas uma presen~a designos, Freud enfatiza isso com extrema energia. Niio se trata em absolutona prova de realidade, de verificar se nossas representa~oes corresponde~mesmo a urn real - sabemos ha muito tempo que niio nos sairemos melhorniss? qu~ os filosofos - e sim de verificar que nossas representa~OesesteJam simpiesmente representadas, no sentido do Vorstellungsrepriisen-tanz. Trata-se de saber se os signos estiio real mente ali, mas enquanto ossignos, ja que siio signos, de uma rela~iio com outra coisa. E isto 0 quequer dizer a articula~iio freudiana, que a gravita~iio de nosso inconscientediz respeito a urn objeto perdido, que jamais e seniio reencontrado isto ejamais realmente reencontrado. ' ,

I' 0 objeto jamais e seniio significado, e isso em raziio mesmo dacadeia do principio do prazer. 0 objeto verdadeiro, autentico, de que se

,trata quando falamos de objeto, niio e de modo algum apreendido, trans-miss~vel, cambiavel. Ele estli no horizonte daquilo em tomo do quegravitam nossas fantasias. E, no entanto, e com isso que devemos fazerobjetos que, por seu lado, sejam cambiaveis.

o neg6cio estli muito longe de se arranjar. Ja lhes sublinhei 0

suficiente, no ana passado, 0 que estli em causa na moral utilitliria. Elatern urn papel fundamental no reconhecimerito dos objetos constituidosnaquilo a que se pOOe chamar 0 mercado dos objetos. Siio objetos quepOOem servir a todos, e nesse sentido a moral dita utilitliria e mais quef~ndada, niio existe outra. E e realmente porque niio existe outra que asdificuldades que ela supostamente apresentaria siio, na verdade perfeita-mente resolvidas. '

Os utilitaristas tern inteira raziio quando dizem que cada vez quelidamos com algo que pode ser trocado com nossos semelhantes aregra e a sua utilidade - niio para nos, mas a sua possibilidade de u~oa. ?til~dade para todos e para 0 maior mimero. E isso ate que faz ~hiancia entre a constitui~iio do objeto privilegiado que surge na fanta-sia e toda especie de objeto do mundo dito socializado do mundo daconformidade. '

Com efeito, 0 mundo da conformidade ja e coerente com umaorganiza~iio universal do discurso. Nao ha utilitarismo sem uma teoria dasfic~oes, e pretender que urn recurso seja possivel a urn objeto natural,pretender reduzir mesmo as distancias em que se mantem os objetos doacordo comum, e introduzir na problematic a da realidade uma confusiiourn mito a mais. Em contrapartida, 0 objeto de que se trata na rela~iio d~objeto analitica deve ser localizado no ponto mais radical onde se colocaa questao do sujeito quanta a sua rela~ao com 0 significante.

Qual a rela~ao do sujeito com 0 significante? Lid~os a~enas, nonivel da cadeia inconsciente, com signos. E urna cadeia de signos. Aconseqiiencia 'e que niio ha nenhum estancamento. no reenvio ~e ca~a urndestes signos aquele que 0 sucede. Pois 0 propno da comumca~ao porsignos e, deste outro mesmo a quem me dirijo para incitli-l? a vis~r da ,mesma maneira que eu, 0 objeto ao qual se relaciona determmado signo,fazer dele urn signo.

A imposi~iio do significante ao sujeito fixa:o na posi~iio propriado significante. Trata-se de encontrar a garantla desta cadela que,transferindo 0 sentido de signo em signo, deve parar em alguma parte- encontrar aquilo que nos da 0 signa de que temos 0 direito de operarcom signos. . .

I E ai que surge 0 privilegio de <I>entre tOOosos slgmficantes. E talvezIhes pare~a simples demais, quase infantil, sublinhar 0 que esta em causa,cntiio, nesse significante .

.§..ssesig_nificante e sempre escondido,. sempre velado. A tal ~on-to, meu Deus, que nos espantamos, que destacamos como uma partIcu-laridade e quase urn empreendimento exorbitante ve~ sua forma emdeterminado canto da representa~iio ou da arte. E maiS r~ro,. embo.r~,naturalmente, isso exista, ve-Io posta em jogo numa ca.dela hierogh~l-ca, numa pintura rupestre pre-historica. Niio podemos dlzer que ele naodesempenhe papel algum na Imagina~iio humana, mesmo antes de t~daexplora~iio analitica, e no entanto ele e, de noss~s. representa~oesfabricadas, significantes, 0 mais freqiientemente ehdIdo, ou eludldo.o que quer dizer isso? .

De too os os signos possiveis, niio e aquel~ Cl!!..e!.elin~ em SI mesmoo signO"eo meio de-atrao e a propria presen~a do desejo como tal? ~reme~gJr 0 falo emliua presen~a real, ~iio e de nat.ure~a a estancar todo 0

reenvio que_tem..lugar na cadeia de slgnos, e, ma~s a101a, fale~ com q~eos signos voltem a nao-sei-que sombra do deseJo? Nao ha slgll.0 malScerto, sob a condi~iio de que nada mais haja alem do. de~ej~.

Entre este significante do desejo e toda a cadela slgOlficante, esta-belece-se uma rela~iio de ou ... ou. A Psique estava muito feliz numarela~iio com aquilo que niio era, absolutamente, urn significante, mas arealidade de seu amor por Eros. Mas, como e Psique, ela quer saber. ~lase coloca a questiio, porque a linguagem ja existe, e nao se passa a VIdaapenas fazendo amor, ma~ tambem ~~peando c?m as ~rm~s. ~apean~o co_mas irmiis, ela quer possUlr sua fehcldade, e lSSO.nao e COlsa assl~ taosimples. Vma vez que se entrou na ordem da hnguagem, POSS~I~suafelicidade e poder mostra-Ia, dar conta dela, arrumar suas flores, e Ig~-lar-se a suas irmiis mostrando que tern coisa melhor que elas, e naosomente que tern outra coisa. E e por isso que Psique surge na noite ce'O::sua luz, e tambem com seu pequeno trinchante.

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o OBlETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRA<;Ao

Ela nao teni absolutamente nada t' h . . .ja foi feito. Ela nao teca nada a cortar : n_nc ar,Ja ~hes ~lsse, porque issoligeiro a corrente. Ela nada mais .' ~?ao Jue lena fello bem em cortarseguido, bem conlra sua vontade v~ea em e urn grande. clarao de luz,iniciativa deveria ter sido sua ante~ que ~~: :~o~ta voltad as trevas,. ~ujamente. Eros fica doente com isso e du e ? se per esse defiruuva-reencontrar depois de uma longa ' d . rdante mU1t~ tempo. Ele so vai seca ela e provayoesmuitoNO quadro, e Psiq~e ~ue.m esta iluminada, e c~mo Ihes ensino ha

tempo, com referencla a forma gracil da femiru'll'd d I"entre 0 puher . 'b' a e, no 11ll1teao ~e~mo ~e~; ~:~~~n:e~:~o eq~~e:Oe6 ~a;:u~~:; ::::g:m falica. Eem uluma lllstiincia sao 0 suporte da _ omem que,imagem, na medida ~m que e retletida ~Y:~tl~~~radobra, mcas esta pr~p:iado corpo. a so re a lorma narCISlca

1A relayao inominada po . "jeito com 0 significante pu;o d~q~e l~o~lllav~l, porque indizivel .do su-

vel, preciso situavel em alguma eselo se proJ~ta sobre 0 orgao localiza-Dai esle con'tlito propriamente im:~r ? ?O conJunt~ do edificio corporal.

,como privado, ou nao privado, de;:::;~~d~:~onslste em ver a si mesmo

Ij E em tomo deste ponto ima . .,I sintomaticos do complexo de castra;~~~no que se elaboram os efeitos

Quanto aos efeitos sintomaticos do com Ie -iniciar sua analise. Mas quero lemb p xo de castra~ao, so posso aquipara voces de maneira hem mais d rar, e~ ~:umo, aqudo que ja abordeique constituiu muitas vezes nosso ~~~~~o ~:10.quando lhes falei daquiloo ue' " . ~, e, as neuroses.

En~ine~_lqhueesahiste~lca faz? 0 ~ue faz Dora, em ultima instiincia?a segmr os encamlllham t d'

das identificayoes complexas onde D en ~s e os esvlOS do labirintoAqui, 0 proprio Freud tropey; e se er~;a ~e v.

econfrontada com 0 que?

quanto ao objeto de desejo del . p ta . oces sahem que ele se enganade Dora enquanto histerica e a, J~ ~enlte porque procura a referenciaescolha de seu objeto, de u~ :J'~~::~:d~g~dae antes de mais nada, na

E b da ' UVI, a.em ver de que, de mna certa man . S ' .que na verdade e' Ii em,o r. K. e 0 obJeto a ea mesmo que esta a fantas' . '

fantasia e 0 suporte do deseJ'o M D _ l~, na medlda em que a. as ora nao sena mn hi "fantasia a contentasse. Ela visa tr . I' a stenca se essao A. Visa 0 Dutro absoluto. ou a cOIsa, e a VIsa algo melhor, eta visa

Expliquei-Ihes, ha muito tempo S 'yao desta questao, 0 que e uma lh q~eEa ra. K. e pa.ra ela a encama-mu er. por causa dISSO,no nive! da

fantasia, nao se produz a relayao defading entre 0 sujeito e a, e sim umaOlltra coisa, porque ela e histerica.

E urn A como tal, em que ela cre, contrariamente a uma paranoica.o que sou eu? tern para ela urn senlido, que nao e aquele de ha pouco, dosdcscaminhos morais nem filosoficos, mas urn senti do pleno e absoluto. Eda nao pode deixar de encontrar, sem sabe-Io, 0 signo <Pque responde ade, perfeitamente fechado, sempre velado. E e por isso que ela recorre atodas as formas de substituto, as formas mais proximas, reparem bern, quecia pode dar deste signo <P. Se acompanharem as operayOes de Dora, oude qualquer outra histerica, verao que nao se trata jamais para ela senaode urn jogo complicado, pelo qual ela pode, se posso dizer, sutillzar asituayao colocando, all onde e preciso, 0 cp, 0 pequeno phi do falo

imaginario.Seu pai e impotente com a Sra. K.? Pois bern, que importiincia ternisso, e ela quem fara a copula. Ela pagara com sua pessoa. E ela quem vaisustentar essa relayao. E ja que isso ainda nao e bastante, farli intervir asua imagem substituta, como ha muito tempo ja lhes mostrei e demonstrei,do Sr. K. _ que ela precipitara nos abismos, que lanyara nas trevascxteriores, no momento em que este animallhe disser a unica coisa quenao !he devia dizer, minha mulher nada e para mim. A saber, ela nao mefaz ficar de pau duro. Se ela nao 0 faz ficar de pau duro, enta~, para que

e que voce serve?Pois tudo 0 que esta em questao para Dora, como para toda

~ histerica, e ser fornecedora deste signo sob a forma imaginaria. 0devotamento da histerica, sua paixao por se identificar com todos osdramas sentimentais, de estar ali, de sustentar nos bastidores tudo 0que possa acontecer de apaixonante e que, no entanto, nao e da suaconta, e at que esta a mola, 0 recurso em tomo do que vegeta e proliferatodo 0 seu comportamento.

:IDa troca ~empre seu desejo por este sigpo, nao vejam noutra partea razao para aquilo a que se chama sua mitomania. E que ha uma coisaque ela prefere ao seu desejo - ela prefere que seu desejo seja insatisf~itoa que 0 Dutro guarde a chave de seu misterio.

Esta e a unica coisa que The importa, e e por isso que, identifican-do-se com 0 drama do amor, ela se esforya, quanto a este Dutro, emreanima-Io, reassegura-Io, recompleta-Io, repara-Io. E realmente dissoque devemos desconfiar, de toda etiologia reparadora de nossa iniciativade terapeuta, de nossa vocayao anal.itica. Mas nao e ai que a advertenciapode ter 0 maximo de importancia, pois a via que nos e mais facilmenteaberta nao e, certamente, a da histerica.

Existe urna outra, a do obsessivo, que e, como todos sabem, muitomais intellgente em sua maneira de operar.

Se a formula da fantasia histerica pode se escrever assim:

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a-- OA(- <p)

a, 0 objeto substituto ou metaforico, sobre alguma coisa que esUi escon-dida, a saber, menos phi, sua propria castra9ao imaginaria, em sua rela9aocom 0 Outro, eu nao faria hoje mais que introduzir a formula diferente dafantasia do obsessivo. Mas, antes de escreve-Ia, e preciso que Ihes de urncerto nmnero de toques e de pontos de indica9ao que os ponham nocaminho.

Sabemos qual e a dificuldade do manejo do simbolo <Pna sua formadesvelada. Disse-o hit pouco a voces, 0 que ele tern de insuporUivel e qu-enao e simplesmente signo e significante, mas presen9a do desejo. ~..apresen9a real.

Pe9o-lhes que agarrem 0 fio que Ihes dou e que, tendo em vista ahora so poderei deixar aqui a titulo de indica9ao para retoma-lo da

Iproxima vez. No fundo das fantasias, dos sintomas, desses pontos de, emergencia onde vemos 0 labirinto deixar, de alguma forma, escorregarIsua mascara, encontramos alguma coisa que chama rei de insulto a presen-9a real. E 0 obsessivo, ele tambem, se confronta com 0 misterio <Pdo\significante falico, e tambem para ele trata-se de torna-lo manejavel.

Urn autor de quem deverei falar da proxima vez abordou, de umamaneira certamente instrutiva e frutifera para nos, se soubermos critica-la,a fun9ao do falo na neurose obsessiva. Ele entrou nisso pcla primeira veznum relato a proposito de uma neurose obsessiva feminina, onde sublinhaalgumas fantasias sacrilegas nas quais a figura do Cristo, ate mesmo 0 seuproprio falo, sao pisoteados, de onde surge para a paciente uma auraerotica percebida e confessada. E 0 autor logo se precipita na tematica daagressividade, da inveja do penis, e isso apesar dos protestos da paciente.

Mil outros fatos, que eu poderia fornecer em profusao, nao nosmostram que convem nos determos muito mais na fenomenologia dessefantasiamento chamado, muito sumariamente, de sacrilegio? Lembramosaqui a fantasia do homem dos ratos imaginando que, no meio da noite,seu pai morto ressuscitado vem bater a porta, mostrando-se a ele enquantose masturba. Insulto, tambem, a presen9a real.

Aquilo que, na obsessao, chamamos de agressividade, se apresentasempre como uma agressao contra essa forma de apari9ao do Outro quechamei, em outros tempos, de falofania, 0 Outro enquanto pode seapresentar como falo. Golpear 0 falo no Outro para curar a castras:ao

)simbolica, golpea-lo no plano imaginario, e a via escolhida pelo obsessivo'para tentar abolir a dificuldade que designo sob 0 nome de parasitismo do

llsignificante no sujeito, e restituir ao desejo sua primazia, ao pre90 de umaIdegradas:ao do Outro, que 0 faz essencialmente funs:ao de elisao imagina-,ria do falo.

o 51MBOLO <P

d 1 ta em estado de duvida, deN~ste ponto ~:ec~:o a~b~:~~n~a,e :e ea~bigiiidade funda~ental, .a

suspe~ao, de ,pe~, b' eto _ urn objeto sempre metonimlco, pOlSrelas:ao do obsessl~o com 0.0

1J te intercambiavel _ e essencialmente

para ele 0 Outro e essenc~a m: tern rela ao com a castra9ao, a qualgovernada ~~r alg~~:~~=:t~ agressiva _9 ausencia, deprecia9ao, r~j~-a~sume aqUl d~~agno do desejo do Outro. Nao aboli9ao, nem des.tru19ao9ao, recusa, . E' que determma estado desejo do Outro, mas rejei9ao dos seus slgnos. IS~ anifesta aoimpossibilidade tao particular que marca, no obsesslvo, a m 9

de seu proprio desejo. -lhe e com insistencia, como faria 0 analista aCertame~te, ~ops:::o s~a rela9ao com 0 falo imagin~rio para~ se

quem os reme a , . - odemos dlzer que lstop~sso di~er, famili~~a-Z Cs~%~~~l:~a~~;'~:~~~es do obsessivo. Mas

~~~~s~i:::ar~~ de ;assagem, esta ~b~~rva9ao: ~ue ~epois ~e ~: :~~do working through da cast~as:iio imagm:~~~ ~u~~~t~n:~l::~g:da?algum livre de suas ob.sessoes'Am~s somUi J'ulgada ~li. Ao que isso nos

Decerto Esta VIa terapeuuca es . .introduz? A f~lIWiio<Pdo significante falo, como significante na propna

transferencia.

.' . . om rela9ao a esse significante? Se aCom~ 0 prop?O an:~:~ :~~t~~scser, desde ja, ilustrada pelas f~rmas equestao e aqUl esse , ta terapeAutica orientada neste senudo nospelos impasses que uma cerdemonstra. Ada" vezE isso que YOUtentar abordar para voces proXlma .

19 DE ABRIL DE 1961

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AJarsa contemporanea.oJalicism0 do obsessivo.o signijicante excluido do significante.Fobia e perverstio.

rcportar para neles encontrarem muito de uma materia que se relacionahem de perto, tiio perto quanta possivel, tao perto quanta e possivel nasobras litenirias, da tematica de que estou, neste in stante, mais proximo.

Nas Viagens de Gulliver, que eu olhava numa encantadora ediyiio-zinha do meio do seculo passado, ilustrada por Granville, encontrei apassagem seguinte, na terceira parte, a Viagem a Laputa, que tern acaracteristica de niio se limitar a via gem a Laputa.

Portanto e em Laputa, formidavel antecipayiio das estayOes cosmo-nauticas, que Gulliver vai passear, e onde percorre diversos reinos sobreos quais nos relata urn certo mimero de vis6es significantes que conser-vam, para nos, toda a sua riqueza. E, em especial, conversa com urnacademico, dizendo-Ihe que, no reino de Tribnia, chama do Langdenpelos nativos, onde ele havia residido, a massa do povo compunha-sede delatores, caluniadores, informantes, acusadores, perseguidores,testemunhas compradas, blasfemadores acompanhados de todos osseus instrumentos auxiliares e subordinados, todos sob a bandeira, asordens, e a soldo dos ministros e seus acDlitos. Passemos sobre estatematica.

Gulliver nos explica como ope ram os denunciadores. Eles se apo-deram das carras epapiis dessas pessoas e asfazem prender. Seus papiissao postos em maos de especialistas hdbeis em decifrar 0 sentido ocultodas palavras, das silabas e das letras. E aqui que comeya 0 ponto em queSwift se solta. E, como viio ver, e hem bonito na medula substantifica.

Por exemplo, eles vao descobrir que uma cadeira furada signijica umconselho privado, um bando de gansos, um senado; um cachorro manco,uma invasao; a peste, umaforr;a-tarefa; um besouro, um primeiro-minis-tro; a gota, um alto sacerdote; umaJorca, um secretario de Estado; umurino~ um comite de grandes senhores; um crivo, uma dama da corte; umavassoura, uma revolur;ao; uma ratoeira, um emprego publico; um por;operdido, 0 Tesouro publico; um esgoto, um tribunal; um gorro de guizos,umfavorito; um canir;oquebrado, uma corte de justir;a; um toneI vazio, umgeneral; uma chaga aberta, os negocios publicos.

Quanda este meio !lao da em nada, eles tem outros mais eficazes, queseus sabios chamam de acrosticos e anagramas. Diio a todas as letrasiniciais um sentido politico: assim, N poderia signijicar uma conspirafao,Bum regimento de cavalaria, L uma esquadra no mar. Ou entao transpoemas letras de um papel suspeito de maneira a por a descoberto os designiosmais secretos de um partido descontente. Por exemplo, voces liem numacarta: "Nosso irmiio Tom esta com hemorroidas"; 0 habit transcritorencontrara, no conjunto dessas palavras indiferentes, umafrase que daraa entender que tudo esta pronto para um levante.

Ocorreu-me, ~o sabado e no domingo, abrir pel a primeira vez as notastomadas em d~fer~ntes pontos de meu seminario dos ultimos anos, paraver se ~s referen~Ias que lhes dei ali, sob a rubrica A Relarao de Ob;eto,e depols 0 De~eJo: sua Interpretarao, convergiam sem flutuar exc~ssi-vamente, em dlreyaO ao que tento este ana articular diante de voces sobo termo Transferencia.

Percebi que, com efeito, em tudo 0 que lhes trouxe, e que esta aoque pare~e, em a~gum lugar, nos armarios da Sociedade, ha muitas coisasqu~ ;oces poderao encontrar, nu~ !empo em que se tiver tempo pararetira-Ia:> - num tempo em que dirao que, em 1961, havia alguem quelhes enSlDava alguma coisa.

Niio ser~ dito qu~ nesse ensinamento nenhurna alusilo sera feita aoc~ntext~ daqutlo que Vlvemos nesta epoca. Haveria nissoalgo de exces-SIVO.E Igualme~te, para acompanha-Io, YOUler para voces urn pequenotrecho d~ que ~Olmeu encontro, neste mesmo domingo passado, na obradeste Deao SW!ft, sobre 0 qual so tive muito pouco tempo para lhes falarq~ndo abordel a funyiio simb6lica do falo, quando a questiio e de tal modoompre~nte em sua obra que se pode dizer que, tomando-se esta obra noseu conJunto, ela esta ali articulada.

Swift e Lewis CaroB silo dois autores aos quais, sem que eu tenhatempo de fazer deles urn comentario efetivo, voces fariam bem em se

Acho muito bom restituir, com a ajuda deste texto, que niio e tiioantigo, ,as coisas contemporaneas a sua base paradoxa I, tiio manifesta em

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todas as especies de marcas. Pois, na verdade, por ter sido intempestiva-mente acordado, esta noite, por alguem que me comunicou aquilo quevoces todos, mais ou menos, souberam, uma falsa noticia, meu sono foi,por urn instante, perturbado pela questiio seguinte - perguntei-me se eunao estaria desconhecendo, a proposito dos acontecimentos contempo-raneos, a dimensao da tragedia. Isso, para mim, criava problema depoisdo que Ihes expliquei no ana passado com referencia a tragedia, poisnao via em parte alguma aparecer aquilo que chamei de 0 reflexo dabeleza.

Isso efetivamente me impediu de vol tar a dormir por algum tempo.Em seguida toroei a adormecer, deixando a questao em suspenso. Estamanha, ao acordar, a questao tinha perdido urn tanto de sua pregnancia.Parecia que estiveramos sempre no plano da farsa. E 0 problema que eume colocava se desvanecia ao mesmo tempo.

Dito isso, vamos retomar as coisas no ponto em que as deixamos daultima vez.

III1Hlogiassuperficiais e de facilita~ao menta!. Esse nao e, falando propria-IIH'nte 0 objetivo de urn ensinamento.

Trata-se de ver 0 que representam esses dois simb~los e~ n?ssaIlIlcn~ao, e voces podem, daqui por d.iante, pr~ver sua Importancla e('~Iimar sua utilidade por todas as eSpCcles de mdlces.. ..

Por exemplo, 0 ana come~ou com uma conferencla mUlto mter?s-IInte de nosso amigo Georges Favez que, falando-Ihes s.obre 0 que .e 0

IIl1alista e sua fun~ao para 0 analisado, concluia que, afmal, 0 analtstaIISSluuepara 0 paciente fun~ao de fetiche. Tal e a formula -:- num certoIIspecto, em tome do qual ele havia agrupado todo 0 Upo d~ fato~'OllVergentes - em que sua conferencia resulta~a. E c~rto que eXIste altlima visao das mais subjetivas. Certamente, cIa nao 0 delxa compl?~men-Ie isolado, pois a sua formula9ao e preparada por todas as especI,es ?eolltras coisas que se encontram em diversos artigos sobre a transferencla,Illas nao se pode, mesmo assim, dizer que cIa nao se apresente s.ob umaforma algo surpreendente e paradoxa!. Eu disse ao autor que as COlsas q.ue(amos articular este ana nao deixariam de responder de alguma maneIra1\ questao ali formulada. _ .

Vamos agora a urn autor que tentou articular a fun9a~ especIal daIransferencia na neurose obsessiva. Ele nos lega uma obra, hOJeencerrada,que partiu da considera9ao das incidencias te~apeutic.a~ da tomada de'onsciencia da inveja do penis na neurose obsesslva femmma, para c~egar

a uma teoria generalizada da fun9ao da distancia-do-objeto no.,?a~eJo dalransferencia, especialmente elaborada a partir de urna ex~r~encla ~un-dada nos progressos das analises de o~~essivos. a .fator p~nclpal, aUvo,cficaz na retomada de posse, pelo sUJetto, do sentldo do smtoma, es~-cialm~nte quando obsessivo, seria a introje9ao imaginaria do falo e, maISprecisamente, enquanto encarnado na fantasia imaginaria do falo dounalista. .

Existe ai urna questiio sobre a qual ja comecei a abordar, dlante devoces, a posi~ao e a critica, a propOsito das obras deste autor, ~ouvet, ecspecialmente sobre sua tecnica. Hoje, tendo abo~dado d~ malS per~o aquestiio da transferencia, vamos poder esclarecer amda mats essa c:iuca.Isso exige que entremos numa articula~ao precisa do que e a ~m~ao dofalo especialmente na transferencia. .

' Esta fun~ao, tentamos articula-Ia com a ajuda dos te~os aq~llsimbolizados, <1> e cpo Entendemos hem que ja",lais se t~ta, na a~ICula~aoda teoria analitica, de proceder de urna maneIra d~duuva, d.e Clma parahaixo, se posso dizer. Nao ha nada que pana mats do parucular q,u~ acxperiencia analitica. E isso 0 que faz com que algo perm~n~a v~Iidonuma articula9ao como aqucIa do autor a que eu estava. aludmdo., ~ ISSO,tambem, 0 que faz com que sua teoria da fun9ao da nnag~m falica natransfereI,l.cia pana de urna experiencia absolutamente localizada, 0 que

\' Dei a voces, da ultima vez, no quadro, a formula seguinte como sendo aida fantasi!.d.9 o!?sessi"o:

A 0 <p (a, a', a". a·•.•...)

E claro que, aprese-;;-tada assi~ ~;bforma algebrica, ela so pode seropaca para aqueles que nao acompanharam nossa elabora~ao precedente,e YOUten tar, fa lando sobre ela, restituir-Ihe suas dimensoes.

Voces sabem que cIa se opae a da histerica, que Ihes escrevi daultima vez assim - a sobre menos phi, em sua rela9ao com 0 A. Pode-seler essa rela9ao de diversas maneiras - desejo de, e uma maneira dedize-Io, A.

a--0 A(- cp)

/I, Trata-se, pois, para nos de precisar quais sao as fun~oes respectiva-Imente atribuidas em nossa simboliza9ao ao grande Phi e ao pequeno phi,I <1> e cpo

I Incito-os, vivamente, a fazerem urn esfor~o para nao se precipitaremem tendencias analogas as quais e sempre facil, tentador, ceder,' e dizerempor exemplo, que <1> e 0 falo simbOIico, e cp 0 falo imaginario. Talvez istoseja verdade, num certo sentido, mas apegando-se a isso voces se expaema desconhecer 0 interesse dessas simboliza~Oes, que nao nos compraze-I mos de forma alguma, acreditem, em multiplicar em vao pelo prazer das

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pode, sob alguns aspectos, Iimitar seu alcance, mas exatamente na mesmamedida em que Ihe dli seu peso.

Devido ao autor ter partido, de maneira sutil e marcante, da expe-riencia dos obsessivos, temos que reter e discutir 0 que ele concluiu disso.Vamos partir igualmente, hoje, do obsessivo, e e par isso que apresentei,a frente do que tenho a Ihes dizer, a formula com que tento articular suafantasia.

Ja disse a voces muitas coisas sobre 0 obsessivo, e nao se lrata derepeti-Ias. Nao se trata, simplesmente, de repetir 0 que ha de basicamenle,1v

Isubstitutivo, de perpetuamenle eludido na especie de prestidigita~ao quecaracteriza a maneira pela qual 0 obsessivo procede em sua forma de se

I siluar com rela~ao ao outro, mais exatamente, de jamais estar naquele\ lugar, naquele instante, em que parece se designar.

AJormula~ao do segundo termo .da fantasia do obsessiY.Q..lg,precisamente, alusao ao fato de que os objetos sao para eIe, enCll!.anto.QQj~to~de desejQ, colocad<!s em fun~ao de certas equivalencias eroticas- aquilo que temos 0 habito de assinalar, ao falar da erotiza~ao de seu!D!!ndo, e em especial de seu mundo intelectuaI. Esta coloca~ao em fun fo£.<?deser no~ada_I>or cp. Basta, com efeilo, re;brir urn relalO de casoanalitico, quando e bem-feito, para percebermos que 0 cp e justamenteaquilo que e subjacente a equivalencia instaurada entre os objetos noplano erotico. a cp e, de alguma maneira, a unidade de medida, on de 0

sujeito acomodii" a fun~ao a, ou seja, a fun~ao dos objetos de seu desejo.Para i1ustrli-lo, basta que eu me debruce sobre 0 principal caso

c1inico da neurose obsessiva. Mas voces tambem vao encontrli-Io emtodos os outros, bastando para isso que sejam vlilidos.

Por que ele e chamado por Freud de Rattenmann, 0 homem dos ratos,no plural? - quando, na fantasia em que Freud aborda pela primeira vezuma especie de visao interna da estrutura de seu desejo, naquele horror,captado em seu rosto, de um gOlo ignorado, nao existem ratos, so existeurn, aquele que figura no famoso suplicio turco a que YOUvol tar daqui apouco. Se falamos no horn em dos ralos, no plural, e realmente parque 0

rato prossegue sua corrida de forma multiplicada, em loda a economiadessas trocas singulares, dessas substitui~6es, daquela melonimia perma-nente da qual a sintomatica do obsessivo e 0 exemplo encamado.

A formula que e a sua, a proposilO do pagamento dos honorarios naanalise, tantos ratos, tantosflorins, nao passa de uma i1ustra~ao particularda equivalencia permanente de todos os objetos naquilo que e uma especiede mercado, do metabolismo dos objetos nos sintomas. Ela se inscreve,de maneira mais ou menos latente, numa cspecie de unidade comum depadrao-ouro.O rato simboliza, ocupa propriamen.te 0 lugar daquilo a que~~ll!!!0_cp, na .tnedida em que ele e uma certa forma de red~~ao-d.~ <l>,~mesmo a degrada~o deste significante. Vamos ver 0 que nos permite dize-\o;

Com efeito, 0 que representa <1>1A fun~ao do falo em sua generali-dlldc, para tooos os sujeitos que falam, e trata-se de per~eber seu es~tutono inconsciente, a partir do ponto que nos e dado na slOtomatologla dan\'urose obsessiva, onde esta fun~ao emerge sob form as que chamo d~Ikgradadas. .'

Ela emerge, observem bern, no nivcI do conSClente. E aqmlo que aj'xlJCriencia nos mostra, de modd muito manifesto, na es~utu~a do obses-lvo. A coloca~ao em fun~ao flilica nao e, ai, recaka,da, .lsto e, pr?f~da-

llll'nte escondida como na histerica. a cp que esta all em pasl~ao depostura em fun~io .de todos os objetos, como o! minusculo de. umal't'lrITIulamatematica, e perceptivcI, confessado no smtoma ~ cons~l~nte,rill verdade perfeitamente visivel. Consciente, conscius, deslgna ongmal-lllcnte a possibilidade de cumpliddade do sujeito consigo mesmo, logo,Inmbem de uma cumplicidade com 0 outro que 0 observa. a observa~orl(uase nio tern trabalho para ser seu cu~plice'5) sign~ da fun~ao flilica('merge de todas as partes no nivel da arucula~ao dos smto.mas. .

E mesmo nesse senti do que se pode formular a questao daq"!lo queFreud tenta nao sem dificuldades, imajar para nos quando arucula aItlll~ao da Verneinung. Como e passivel que as coisas sejam ao mesmoIl'mpa tao ditas e tao desconhecidas? Se 0 sujeito nao pa~sa~se do que deleIn/. urn certo psicologismo, que mantem sempre seus dlfeltos mes~o no/>l'io de nossas Sociedades analiticas, se 0 sujeito fosse vcr 0 outro ve-I.os,\. fosse so isso, como se poderia dizer que a fun~ao do falo no obsesslvo

losse capaz de ser conhecida? Pois cIa e perfeitamente patente. ~ .no('nlanto pode-se dizer que, mesmo sob esta forma patente, cIa partlclpa

\dllquilo que chamamos de recalque. Por mais c~nfessada q~e seja, cI~ naoo c pelo sujeito, sem a ajuda do analista. Sem a aJuda do reglstro freudlano,j'(11nao e reconhecida nem mesmo reconhecivel. E ai mesmo que pode-1lI0Scomprovar que s~r sujeito e algo difer~nte de. ser u~ olhar diante deOlltrOolhar, segundo a formula que charnel de pSl.cologlSta, e q~e chegan incluir igualmente em suas caracteristicas a teona sartreana eX1sten~e.

Ser sujeito e ter seu lugar no grande A, no lugar da fala. Ora, eXlsteIIqui urn acidente possivel, designado pela barra posta sobre 0 gra~de A.A saber, que ocorra a falta de fala do outro. E no mo~ento precl~ emque 0 sujeito, manifestando-se como a fun~ao de phi com rcIa?ao aoohjeto, se desvanece, nao se reconhece m~s, e neste ponto preclso~ nafllilta do reconhecimento, que 0 desconheclmento se produz autom~tlca-mcnte. Neste ponto de falha onde se encontra encoberta a ~n~ao deflllicismo a que 0 sujeito se dedica, produz-se, no lugar, essa IDlragem deIInrcisismo que chamarei de real mente frenetica no sujeito obsessivo.

Esta especie de aliena~ao do falicismo se manifesta de maneirav isfvel no obsessivo, par exemplo, naquilo a que se chama s.uas difi~ul-dudes do pensamento. Estas podem se exprimir de uma manelra perfelta-

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o OBJETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRA<;Ao

mente clara, ~rticulada, ~d~itida pelo .sujeito, sentidas como tais. 0 queeu pens~ - dI~-!hes 0 sUJeIto em seu dISCUrsO,de uma maneira implicita,mas mUlto sUfIcIente~ente articulada para que se possa passar urn trayoe efetua~ a.so~a a partIr de sua declarayao - nao e tanto por ser culpadoq?~ me e difi~t1 sustentar-me e progredir, mas por ser absolutamente neces-sano que aqwlo que penso seja de mim, e nunca do vizinho, de urn outro.

Qua?-tas vezes esculamos isso? - nao apenas nas situayoes tipicasdo ObS~SSIVO,~~s .no que YOUchamar de rela~6es obsessivizadas quepro~uZ1mos arttfIcIalmente numa relayao tilo especifica quanto a doensmamento analitico.

Evoco sempre, em contraponto, aquilo de que, justamente, nilo nostletlpamos em absoluto, mas que me espanta que nao se pergunte 0 porquedl' nao nos ocuparmos. Nao nos ocupamos, com efeito, da organizayao de11nlcstraspara a uniao sexual, nem de fazer viver 0 corpo na dimensiio dalIudcz e da captura pelo ventre. A parte algumas exce~Oes - voces bemnhcm 0 quanta uma delas foi condenada, a de Reich, especialmente -

t(IICeu saiba este niio e urn campo a que jamais se tenha estendido aIIlrn~ao do analista.

o obsessivo pode se entender, mais ou menos, com este manejo doI'll desejo. E, em suma, uma questilo de costumes, num assunto em que

'IS coisas, com ou sem analise, se mantem no dominio do c1andestino, eIIndc, por conseguinte, as varia~oes culturais niio tern muito aver. O_quet'SIll.em jogo se situ~ noutra parte, a saber, ~<!.a di~~?rd~n.cia entre11111 fanta..sJ!l,na medida. em que ela esta, justamente, ligada Ii fun~.!o 90I'lIlicismo, e 0 at.o ond.e ele aspira encama-Ia e que., com relayiiQ Ii fantasi~,I'mpre f!ca a~em da ~~pecJativa. E nl!turalmente, e.Qel,9laQ.odo~ efeitos

tin fantasia, ~ssa fantasia que e toda falicismo, que se desenvolvem toda!'III' conse~cias sintomaticas. que sao feitas para .se presta.r a !ss~ ..EleII '(ui ai tudo 0 que se presta a ISSO,nessa forma de Isolamento tao tlplCa,

tno caracteristica, cujo mecanismo foi posto em evidencia no nascimentotlo sintoma.

Se existe, pois, no obsessive, este temor da aphanisis que JonesIIhlinha, e na medida, e unicamente na medida em que ela e a coloca~iio

I prova, que sempre resulta em derrota, da fun~ao <I> do falo. 0 resultado.1isso e que 0 obsessivo nada teme, afinal, lanto quanto aquilo a que eleIlIIlIgina aspirar, a liberdade de seus atos e de seus gestos, e 0 estado deIInlureza, se posso exprimir-me assim. As tarefas da natureza nao sao seukilO, nem tampouco 0 que quer que seja que Ihe permila ficar Ii vontade,t' posso me expressar assim, com Deus, a saber, as fun~oes extremas da

Ii'sponsabilidade, a responsabilidade pura, aquela que se tern diante deste()lIlro onde se inscreve aquilo que articulamos.

Em nenhum lugar 0 ponto que designo esta mais bem ilustrado,digo de passagem, que na funyiio do analista, e, muito propriamente,110 momenta em que este articula a interpreta~iio. Estao venda quedurante minha fala de hoje nao paro de inscrever, correlativamente ao('nmpo da experiencia do neur6tico, aquele que nos e descoberto pelan~'iio analitica. Este e, for~osamente, 0 mesmo, ja que e para la que sedt'V c ir.

Na base da experiencia do obsessivo, existe sempre 0 que chamareidl' urn certo receio de desinflar, relacionado com a inflayao f:ilica. DetTrlo modo, a funyiio <I> do falo nao poderia ser rnais bem ilustrada neledo que pela fabula da ra que quer se fazer tilo grande quanta urn boi. 0/II;serdvel animal, como sa bern, inchou tanto que estourou.

Falei e~ al~um lugar, especialmente em meu relat6rio de Roma, daquiloque desIgneI como 0 muro da linguagem. Pois bern, nada mais dificil doque leva~ 0 obsessivo a ficar contra 0 muro de seu desejo.

Ex!ste algo que ~iio sei se ja foi realmente destacado, e que noen~to e urn pon~~ mwto claro. Vou adotar, para situa-Io, urn terrno quevoces sabem que Ja empreguei mais de uma vez, a aphaflisis, introduzidapor.Jones, de uma m~neira da qual marquei todas as ambigiiidades, paradesI~nar 0 desaparecunento - este e 0 sentido da palavra em grego _ dodeseJo.

. Jamais, ~a~e~e-me, apontou-se para esta coisa tilo simples e tilo, tangl\:el nas ,histonas do obsessivo. Quando este estli numa cerla via de, pes~Ulsa autonoma, de auto-analise, se quiserem, quando ele avanya no

I' cam~o ~o 9ue se chama, qualquer que seja a sua forma, realizar suaIi !antasza, e al mesmo que convem empregar 0 termo aphanisis. Esta ef mesmo uma fun~ao impossivel de se descartar nesse ponto.l " Se empregamos este termo, e para designar inicialmente uma apha.

mSIS natural e com,.um, que s~ refere ao poder limitado que 0 sujeito ternpara manter a ere~ao. 0 deseJo tern, com efeito, urn ritrno natural. Antesme~~o de. evocar os extremos de incapacidade de sustenta~ilo, as fonnasmaIS mquI~tantes da brevidade do ato, pode-se observar que 0 sujeito sedefronla,_ ai, com algo com? urn obstliculo, urn escolho que e basico nasua rela~a? com a sua fantaSIa. :rhta-se daquilo que nele a linha de ereyao,e em segUlda de queda, do deseJo, tern de sempre terminado. Existe, muitoexa~mente, urn momento em que a ereyao se esquiva. Entrelanto noconJunto, meu Deus, 0 obsessive nao e provido de mais nem de meno~ doque chama~os de uma genitalidade bastante com urn, ou ate mesmobastante .delicada, pude observar, e, para ser explicito, se fosse neste nivelq~e .se ~I~asse 0 que estli em questao nos avatares e tormentos que Ihesac InfligIdos pelas molas ocultas de seu desejo, nilo seria ai que conviriaconcentrar nOS50 esfor~o.

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o OBJETO DO DESEJO E A DIALETICA DA CASTRAyAO

[,\, Este e urn momento de experiencia incessantemente renovada noIlllDpas~e real que 0 obsessivo atinge nos confins de seu desejo, Parece\haver mteresse em sublinha-lo, nao somente no sentido de acentuar umafenomenologia derris6ria, mas tambem para permitir-lhes articular 0 queesta em questiio na fun~ao <I> do falo, enquanto ocuha por tras de suanegocia~ao no Divel da fun~ao do cpo

A fu?~ao 11>, comecei a articuIa-la da ultima vez, formulando urn termoque e 0 da presen~a real. Penso que tenham 0 ouvido sensivel 0 bastante~ara ter~m. perceb.ido .entre que aspas eu 0 colocava. Tampouco 0

IOtroduzl so, e falel do lnsulto Ii presen~a real, de modo a que ninguemse enganasse nesse ponto. Nao estamos, aqui, diante de uma realidadeneutra.

_A pres.en~a real, s~ria bem estranho que, se ela vem preencher afun~ao .que e aquela, radical, que tento aqui faze-I os abordar, ainda naotenha sldo observ~~ em al,gum !ugar. E pen so que too os voces ja perce-beram sua homoOlmla, sua ldentldade com aquilo que e chamado por estenome no dogma religioso, aquele ao qual, em nos so contexto cultural,temos acesso, se posso .dizer, desde 0 n~scimento. A presen~a real, estepa~ ~e palavra~ na medlda em que faz sIgnificante, estamos habituados,proxImos ou dlstantes, a escuUi-lo ha muito tempo murmurado em nossooU;ido a prop6sito do dogma cat6lico, apost6lico e romano, da eucaristia.POlS bern, asseg~ro-Ihes. que nao e preciso ir buscar mais longe parapercebe~os que ISSOesta absolutamente a flor da peIc na fenomenologiado obsessIvo.

Ja.que falei, ha pouco, da obra de alguem que se dedicou a focalizara ~esqU1sa da estrutura obsessiva no falo, YOUtomar seu artigo principalcUJOtitulo dei a voc~~ a~da a~ora~ faland: ?as ~Incidencias Terapeuticasd~ t~mada de consclencla da lOveJa do peDIS na neurose obsessiva femi-ntna ... C:0me~o a ler e, desde as primeiras paginas, erguem -se todas' aspossIbIlIdades de comentario critico.

(...) Como 0 obsessivo masculino, a mulher tern necessidade de identificar-se de.urn.m~o_ re~ressivo ao homem, para poder se libertar das angustias~a pr!meua mfancla; mas, enquanto 0 primeiro vai se apoiar nessa identi-flca9ao para transformar 0 objeto de amor infantil em objeto de amorgemtal, ela, a mulher, base~nd~-se ini~ialmente nessa mesma identifica9ao,t~nde_a abandonar este pnmelro obJeto e orientar-se em dire9ao a umafIxa9a.oheterossexual, como se pudesse proceder a uma nova identifica9aofemmma, desta vez com a pessoa do analista.

(...) Poueo depois que 0 desejo de possessao fMica, e eorrelativamente decastra9ao do analista e revelado, e que, portanto, os efeitos precitados detranqiiiliz'a9ao sao obtidos, esta personalidade do analista maseulino eassimilada aquela de uma mae benevolente.

Tres linhas mais adiante, vamos recair naquela famosa pulsao des-IIlitiva inicial da qual a mae e 0 objeto, isto e, nas coordenadas principaistill IIna!ise do imaginario no tratamento ora conduzido.

Nao pontuei esta tematica senao para faze-los entender, de passa-I ('Ill, as dificuldades que supoe superadas esta interpreta~ao geral, resu-IIlida, aqui, em exordio, e que toda a continua~ao vai, supostamente,IlIslrar. Mas so preciso atravessar meia pagina para entrar na fenomeno-

Illgin do que esta em causa, e naquilo que 0 autor, que era um clinieo, edo qual este e 0 primeiro escrito, decide nos contar das fantasias de suaI'lIdcnte, situada como obsessiva.

A primeira coisa que salta aos olhos e a seguinte - eLa representavaIII/ s/la imagina{:iio 6rgiios genitais masculinos no Lugar da h6stia.

B-nos explicado - sem que se trate de jen6menos alucinat6rios.NIIO duvidamos disso. Tudo 0 que vemos e elaboramos nos habitua a saber1IIIIilObem que se trata de coisa inteiramente diversa. Ela superimpoe osI'lf'giiosmasculinos em forma significante. E ao que - senao aquilo que eI'lli'llnos, da maneira simbolica mais identificavel, a presen~a real? 0 queI 1:\ em causa quanta a esta presen~a real e reduzi-Ia, quebra-Ia, tritura-la1111Il1ccanismo do desejo. As fantasias sacrilegas que tomei emprestadas,dll IULima vez, ao mesmo caso, urn pouco mais adiante 0 sublinhamIt"stante.

Niio imaginem que este caso seja tinieo. Vou citar para voces, entred•.l.enas de outros, porque a experiencia de urn analista nunca chega, numdlllllinio, a superar a centena, a fantasia seguinte, ocorrida a um obsessivo1111111dado ponto de sua experiencia.

As tentaLivas de encama~iio desejante podem chegar, nos obsessi-vos, a urn extrema de acuidade erotica, em conjunturas onde eles encon-1111111,no parceiro, alguma com placencia, deliberada ou fortuita, para com"l1l1i1oque e comportado pela tematica da degrada~iio do grande OutroI III pequeno Olltro, em cujo campo se situa 0 desenvolvimento de seuIlt-srjo. No proprio momenta em que 0 sujeito em questiio acreditava poder,I' :tier a urn tipo de rela~iio que e sempre acompanhada, nos obsessivos,lie lodos OS correlativos de uma culpa extremamente ameayadora, quep<ldc ser equilibrada, de alguma maneira, pela intensidade do desejo, ele/II illlcntava a fantasia seguinte com uma parceira que representava paraI Ie, momentaneamente, ao menos, aquele complemento tao satisfatorio:11I/.cr, no coito, com que urn papel fosse desempenhado pela hostia santa,1111meclicla em que, inserida na vagina da mulher, ela iria envolver 0 penisdo sujeito no momenta da penetra~iio.

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Nao creiam que isso seja um daqueles refinamentos que s6 seencontram numa literatura especial. Isso e, realmente, moeda corrente noregistro da fantasistica, especial mente a do obsessivo.

Como niio deixar de precipitar tudo isso no registro de uma banali-za~iio tal como a de uma pretensa distiincia do objeto, na medida em queo objeto de que se trata seria definido na objetividade? No entanto, e issoo que se nos descreve - a objetividade do mundo, tal como e registradapela enumera~ao e pela combina~ao mais ou menos harmoniosa dasrela~oes imaginarias comuns - a objetividade da forma, tal como eespecificada pelas dimensoes humanas - as fronteiras da apreensiiodo mundo exterior, amea~adas por um disturbio que seria aquele dadelimita~ao do eu com os objetos da comunica~iio comum. Como niioperceber que, ao contrario, existe af uma outra coisa, de uma outradimensao?

Esta presen~a real, trata-se no entanto de situa-la em alguma parte,e num outro registro que niio 0 do imaginario. Digamos que seja na medida

I em que lhes ensino a situar 0 lugar do desejo com rela~ao a fun~iio do\ homem enquanto sujeito que fala, que podemos entrever que 0 desejo vem: habitar 0 lugar da presen~a real e povoa-lo com sellS fantasmas.

IMas entao, 0 que quer dizer 0 <fl?Sera que 0 limite a designar 0 lugar

da presen~a real na medida em que esta sO pode aparecer nos intervalosdo que e encoberto pelo significante? Sera por esses intervalos que a

I presen~a real amea~a todo 0 sistema significante? E verdade. Ha verdadenisso. 0 obsessivo 0 demonstra para voces em todos os pontos daquilo aque cham am seus mecanismos de proje~ao ou de defesa, ou, mais preci-samente, fenomenologicamente, de conjura~ao. A maneira que ele tem de

I preencher tudo 0 que se pode apresentar de entre-dois no significante -aquela, por exemplo, pela qual 0 Rattenmann de Freud se obriga a contarate tanto entre 0 clarao do relampago e 0 seu ruido - se designa, aqui,em sua estrutura verdadeira. Por que esta necessidade de preencher 0

intervalo significante? Porque all pode se introduzir aquilo que iriadissolver toda a fantasmagoria.

Apliquem esta chave a vinte e cinco ou trinta dos sintomas quepululam, llteralmente, no Rattenmann e em todos os casos de obsessivose palparao a verdade que esta em questiio. Mais, ainda, estarao situandoao mesmo tempo a fun~ao do objeto f6bico, que nao e senao a forma maissimples deste preenchimento.

Aquilo que denominei para voces, da outra vez, a prop6sito dopequeno Hans, 0 significante universal realizado pelo objeto f6bico, eisso, e nao outra coisa. Aqui e na vanguarda, bem a frente do furo, dahiancia reallzada no intervalo onde amea~a a presen~a real, que um signounico impede 0 sujeito de se aproximar. E por isso que 0 motor e a raziioda fobia niio siio, como acreditam aqueles que s6 tem a palavra medo na

IIIK'II,um perigo genital nem mesmo. n~rci~ico. Muito pr~cisame~~e - aolI!lor de certos desenvolvimentos pnvtleglados da poSl~ao do SUjelto com

II'llIyao ao grande Outro, como eo caso na rela~ao do ~~ueno HiJ.~Scom1111mae - 0 que 0 sujeito teme encontrar e uma especle de desejo.' q~enia de natureza a fazer vol tar, antecipadamente, ao nada toda cna~ao~tlificante, todo 0 sistema significante. . .

Mas entiio, por que 0 falo, neste lugar e neste papel? E. aqUl quequera, ainda, avan~ar hoje para faze-l os sentir 0 que eu pod:na c~a~artit' eonveniencia dessa e1abora~ao. Nao falo de sua dedu~ao, pOlS e a, x pcriencia, a descoberta empirica, que a assegura para n6s, mas. ~xi~teIll, taml>em, alguma coisa que nos faz perceber que, como expenenc~a,

I so nao e irracional. 0 falo, pois, e a experiencia que 0 mostra para nos.MilS a conveniencia que desejo apontar e determinada pelo fato de que 0

1'1110, enquanto nos e revelado pela experie~cia, nao e simplesmente 0

,'lrgao da copula~ao, mas e tomado no mecamsmo perverso.Entendam-me bem. Acentuo agora que, do ponto que, enq~anto

,'slrutural, representa a falta do significante, 0 falo, <fl, pode funClonarcomo 0 significante. 0 que quer dizer isso? 0 q~e e que defin~ ~omoj~nificante alguma coisa da qual acabamos d~ dlzer ~ue~ par hipotes~,

IlOr definit'iio de saida e 0 significante exclUldo do slgmflcante? Sera,Y' , d d-?('tllaO, que e1e s6 pode vol tar por artificio, contr~bando e egra ~~ao, -

" c por isso mesmo que nunca 0 ve~os a nao ser ~m fun~ao de cpllllaginario. Mas entao, 0 que nos perml~e falar dele, aSSlm mesmo, ~omo, 1~luficante, e isolar <fl como tal? E ISso a que chamo 0 mecamsmopnverso.

Fa9amos do falo 0 esquema seguinte, q~e, e, de a~g~ma_fo~ma,Illlturai. 0 que e 0 falo? 0 falo, sob a fun~ao orgaruca do pems,.nao e, non'ino animal, um 6rgao universal. Os insetos tem outras ma~elfas_de ~elIeoplar entre e1es, e, sem ir tao longe, as rela~oes entre os pelxes nao saoI'dayOes falicas. 0 falo §e apresenla .no nivel hu~ano,_e_~tre o~rr.9s, CQ!!10

o signo do desejo. E tambem 0 s~u Instrumen~o, e tambem ~ua presen~a,IllaS retenho a sua qualidade de slgno para dete-Ios, por um mstante, numclcmento de articula~ao essencial de se guardar -:- ~Ql~smente p~loralO de Sl<Lmnsign.9 que ele e Uill significante? Sena at~avessar. urn poucodt'pressa demais urn limite, dizer que tudo se resume a ISSO,pOlS~xlstem?IIfinal, O\ltros signos do desejo, . _ ..,

Constatamos, na fenomenologia, a proje~ao malS facti do falo, e~1'1I/,aOde sua forma pregnante, sobre 0 objeto feminino, por ~xemplo, e fOIisso 0 que nos fez muitas vezes articular, na fenome~ol~gla perversa, afalTlosa equivafencia, Girl = Phallus em sua forma malS sImples, a formaI'reta do falo. Mas isso nao basta, ainda que concebamos esta es~~lhaprofunda cujas conseqiiencias encontramos por toda parte como suflclen-t('lllente motivada.

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Urn significante, simplesmente representa alguma coisa para al-guem? Nao esta ai a defini~ao do signo? E isso, mas nao simplesmente

I isso. Acrescentei uma outra coisa da tHtima vez que recordei para vocesa fun~ao do significante, e que 0 significante nao consiste simplesmente

I em fazer signo para alguem, mas, no mesmo momenta da mola signifi-cante, da instiincia significante, fazer signo de alguem - fazer com que

\ 0 alguem para quem 0 signa designa alguma coisa, este signa 0 assimile,, que 0 alguem se tome, ele tambem, este significante.

E nesse momenta que designo expressamente como perverso quenos aproximamos da instaricia do falo. 0 fato de que 0 falo que se mostratenha por efeito produzir tambem no sujeilo a quem de e mostrado aere~ao do falo nao e uma condi~ao que satisfa~a, no que quer que seja,alguma exigencia natural.

E aqui que aparece aquilo a que chamamos, de maneira mais oumenos confusa, a instiincia homossexual. E nao e Ii loa que, nesle niveletiologico, seja sempre no nivel do sexo masculino que 0 apontamos. Ena medida em que 0 resultado, em suma, e que 0 falo como signo do desejose manifesta como objelo do desejo, como objeto de atra~ao para 0 desejo.

\ E nessa base que reside sua fun~ao significanle, e e assim que ele e capazde operar nesle nivel, nesta zona, nesle selor, onde devemos ao mesmoI tempo identifica-lo como significante e compreender aquilo que de e,

, assim, levado a designar.i 0 que ele designa nao e nada que seja significavel diretamenle. Ei aquilo que esta para alem de loda significa~ao possivel, e, especialmenleI a presen~a real, para a qual eu quis, hoje, alrair seus pensamentos, para~fazer dela a sequencia de nossa articula~ao.

o mito de Edipo hoje

Um comentacio da trilogiados CoUfontaine, de Paul Claudel

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...onde nos somos supostos saber.A tragidia contemporanea.o esgar da vida.Umapassagem para alim da fi.

Jl.SIOU tentando, este ano, recolocar a questiio fundamental que se levantapunt nos em nossa experiencia pela transfer~ncia, orientando 0 pensamen-In de voces rumo ao que deve ser, para responder a esse fen6meno, apllsi~ao do analista.

Esfor~o-me, neste assunto, para apontar, no nivel mais essencial, 0

que deve ser essa posi~ao diante do apelo do ser, 0 mais profundo, quej'llIerge no momenta em que 0 paciente vem nos demandar nossa ajuda enosso socorro. Isto e 0 que, para ser rigoroso, correto, imparcial, para ser1110 aberto quanto e indicado pela natureza da questiio que nos e colocada,formulo, interrogando 0 que deve ser 0 desejo do analista.

Certamente, nao e adequado contentarmo-nos em pensar que 0

IIl1alista, por sua experH~ncia e sua ciencia, seja 0 equivalente modemo, 0

Jl"prcsentante, autorizado pela for~a de uma pesquisa, de urna doutrina edl" uma comunidade, daquilo a que se poderia chamar 0 direito da nature-IJI, e que ele teria que nos designar, novamente, a via de urna harmoniaIIl1t ural, que seria acessivel atraves dos desvios de urna experiencia renovada'

Se voltei a partir, diante de voces, da experiencia socnitica,' foi('ssencialmente para situa-Ios em tomo do seguinte, que e dado desde 0

lnlcio do estabelecimento da experiencia analitica - somos interrogados('()(no qpem sabe, e mesmo como portadores de urn segredo, mas que nao(I 0 segredo de todos, urn segredo timco.

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.Por mais obscuramente que' Isabem - e se nilo 0 sabem sSJa, a~udees que vem Ii nossa procura ja

, , serao rapl amente ori tnd _por nossa experiencl'a' d enl.<l os para esta n~ao. - que 0 segre 0 que som d"preclosO do que tudo aquilo' os supostos eter e malS

::b:.edida em que esle segreJ~::~ r~;~d:r~I:~~~c~~~~:~: ~~g;::~

E verdade? Nilo e verdade? Nilo tenh ..digo apenas que e assim que a e;periencia ~n~~~ deCldtr so~re este ponto,que e assim que ela e abordada e . ca se propoe, se oferece,aspecto, definir 0 que ela introduiu~e aSSlm que s~ pode, sob urn certoque eNaqufeleque nos somos, com nosso:o;~n~~m~o~:~:~:.de urn homem

o undo de cada urn dentr .qual for 0 lado por que a aborde:o~os qu~ tenta essa e~perien~ia, sejasuposi~ilo. Ao menos num nivel hnanalisado ou analista, eXlste essanossa conduta, existe essa SUPOSi~:~aEq:nte dce:tral, mais ess~ncial paraate deixa-Ia marcada por urn tom d~ duv~n 0 I?o~ssasuposlriio,possoque essa experiencia pode ser tomada e . da, pOlS e com? u~a tentativapor aqueles que vem a nos. ' e tomada, na malOna das vezes,

Qual e essa suposi~ilo? E a suposi il d . .nossa ignorancia talvez sejam determin~d 0 e que os Impasses devldos aenganamos quanto ao que se pOOe h os apena~ pelo fato de que nossaber - que em suma coloc c,. almar as rela~oes de for~a de nosso

, , amos la sos problem E . -essa esperan~a, diria eu, com tudo 0 as. .es~a SUposl~ao,recida por algo que se tomou en' ~ue. comporta de OtImlsmo, e favo-apresenta com 0 rosto descobe~toSClencla cfmu~: qu~ 0 desejo nao seexperiencia secular da filosofia p;r: cb~~~ _~ nao esta no lugar 9ue apara conte-Io e, de uma certa m~neira a. a por s~u .nome, deslgnouMuito longe disso os desejos til ' exclUl-lo do dlrelto de nos reger.nossos esforl'os p~ra nos tomes 0 por tOOaparte, e no proprio centro de

y armos seus senhore M' I .mesmo ao combate-Ios pouco m . f s. utto onge dISSO,eles e nilo os, pois dizer satis al~ azem~s que s~tisfaz~r a eles. Digo aapreensiveis, poder dizer ond[:~:;os ~en~ de.mals, sena consideni-Ioscomo se diz no sentido 0 . es o. atlsjazer a eles se diz aquimedida me;ma de urn i:;:;~~l%a;:d:e deles, ~u niio se livrar d.e1es,nadeles. mental, Justamente, de hvrar-se

Pois bern, nilo se Uvra deles tanto . - b . .de nos sentirmos mais ou men ' I dqucnao asta eVlta-los para deixar

os cu pa os Em too .de que possamos dar testemunho t' 0 ~aso, seJa 0 que forriencia analitica nos ensina em p . qu~n ~ a no~o proJeto, 0 que a expe-e perturbado por tudo aquilo nmetr°hugar e.que 0 homem e marcado,

. a que se c ama smtoma d'dque 0 smtoma e aquilo que 0 Uga aos seus desejos. - na me I a em

Nao podemos definir-Ihe 0 limite nem 0 lugar - par satisfazer issoI Illpre, de alguma maneira, e, 0 que e mais, sem prazer.

Parece que uma doutrina tilo amarga implicaria em que 0 analista11I,~se0 detentor, em algum nivel, da mais eslranha medida. Com efcilo,ill se ai tanta enfase a uma exlensao tilo grande do desconhecimenlollllldamental - nao, como foi feito ate aqui, numa forma especular deIllIde cia surgiria, de certa forma, com a questao, mas sob uma forma queIIl1llcreio poder fazer mais que chamar, ao menos por ora, do jeilo que meVI'III,de textual, no senti do em que e urn desconhecimento tecido pelaI'1IIISlru~ilopessoal no sentido mais amplo - que, se esta suposi9ao e feita,II IIl1alista deveria, e para muitos e considerado como, senao tendo supe-Ilido, pelo menos como devendo superar a mola deste desconhecimento.I(k deveria ter em si 0 ponto de parada que Ihes designo como 0 do CheI'I/oj?, aU onde viria esbarrar 0 limite de todo conhecimento de si. Ou, ao11I("110S,0 caminho daquilo a que chamarei 0 bem proprio, na medida em'III' ele e conformidade de si consigo mesmo no plano do autentico,tlt'veria estar aberto ao analista para ele mesmo. Ao menos nesle ponto daj'xpcriencia particular, algo pOOeria ser apreendido desla natureza, deste1I/11uralque se sustentaria por sua propria ingenuidade.

Voces sabem, que, fora da experiencia analitica, urn certo ceticismo,pllra nao dizer urn certo asco, urn certo niilismo, para empregar 0 termo('om que os moralistas de nossa epoca 0 rOlularam, capturou 0 conjuntotit: nossa cultura a propOsito daquilo que se pode designar como a medidatIo homem.

Nada mais distanciado do pensamento modemo e, precisamente,'onlemporiineo, que esta ideia natural, tao familiar durante tantos seculos,

tll~ lender a se dirigir para uma justa medida da conduta, 0 que quer queSI' lenha enlendido por isso, e sem que parecesse, sequer, que sua n~iloplldesse ser discutida.

o que se sUpOe, assim, sobre 0 analista nem deveria se Iimitar aol'nmpo de sua a9ao, com uma importancia apenas local na medida em quede exerce a analise e esta ali hie et nunc, como se diz, mas ser-Ihe/liribuido como habitual. Deem a este ultimo termo seu sentido pleno,/lquele que se refere mais ao habitus, no senti do escolastico, a integra9ilode si mesmo, Ii constiincia de ato e de forma em sua propria vida, ao queconstitui 0 fundamento de toda virtude, do que no sentido onde a palavraHe orienta para a simples n~ilo de cunho e passividade.

Este ideal, preciso discuti-Io antes de 0 riscarmos com uma cruz?Nao, decerto, que nao se possam evocar no analista exemplos do estilo do'ora9ao puro, mas e pensavel que este ideal seja requerido, de saida, no

IInalista? Poderia ser ele de alguma maneira esbo~ado, se fosse compro-vudo? Digamos que nilo seja isso 0 comum nem a reputa9ilo do analista.Podcriamos tambem dar facilmcnte nossas raz6es de decep~ao quanto a

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a Mrro DE EDIPO HOJE

era fonnu~a debil. C~d.avez que tentamos fonnular em nosso magisterio~ guma COlsa que atlnJa 0 valor de uma etica, isso nos escapa a todomstante,

. ~.uando tento deslindar, para voces, os esfor~os recentes e sem re~entonos, que ~oram fehos para balizar os ideais de nossa do~trina, :aoe P?r prazer, crelam, que me detenho em certa formula de uma caractero-~ogla pretens~ente analitica para mostrar suas falhas a natureza de falsJa~e~a, de puenl op~si?ao. Eis que se fonnula 0 canit;r genital do fim d:analise, _que se. asslmIlam os nossos objetivos com a pura e simplessusp~nsao dos Impasses identificados com 0 pre-genital 0 que seriasuflclente para resolver too as as suas antinomias Pel'o-Ihes'qu 'c ..•. 'y eveJamasonsequenclas comportadas por semelhante exibi~ao de impotencia para

pensar a verdade de nossa experiencia,. E num relativismo inteiramente outro que se situa 0 problema do

deseJo humano ..Ese devemos ser algo mais que simples companheiros daprocura do. paclent~,. qU? ao menos nao percamos de vista esta medidaque 0 deseJo do s~J"eItoe essencialmente, como Ihes ensino, 0 desejo d~autro, com a mamsculo. a desejo nao pode se situar se colmesmo tem d ' ocar, e ao

_ "' po se compreen er senao nesta aliena~ao fundamental quenao <:sta slmpl?smente ligada a luta do homem com 0 homem ~a .rela~ao com a Imguagem, ' s a

. .a desejo. do Outro - este genitivo e ao mesmo tempo sub 'etivo eobJetlvo. Dese~o no lugar onde esta 0 autro, desejo para poder es~r nesselugar.- e deseJo de alguma alteridade. Para satisfazer a busca do objetivoou seJa, do que d~seja esse outro que nos vem ao encontro e preciso u~nos prestemos, alt, a fun~ao do subjetivo, que de alguma ~aneira po~a-mo~, durante algum tempo, representar, nao, como se acredita e comosen~, meu Deus, derrisorio, confessem, e quaD simplorio tambem queP.ud~~semos se-Io, nao 0 objeto que e visado pelo desejo m~s 0Slg?J lca~te. a que e, ao mesme tempo, muho menos mas 'tambemmUlto malS. '

. . E preciso q?e mantenhamos 0 lugar vazio onde e convocado estes1grnfica?te que so pode s~r ~nulando todos os outros, este cI> do qual ten to,para voces, mosr:ar a pos1~ao, a condi~ao, central em nossa experiencia,

Nossa fun~ao, nossa for~a, nosso dever, e certo e tOOas as dificul-dades se resumem ao se uint . " . b '. , g e. e p!eC1SOsa er ocupar seu lugar, na medidaem que 0 su~eIto ?eve pOOer localtzar ai 0 significante faltoso. E portantoror uma antinoffi1a, por um paradoxo que e 0 de nossa fun~ao e no propri~ugar em que somos supostos saber que somos convocados ~ ser

nada mais nad ' e a ser,I -" " a menos, que a presen~a real,justamente na medida em quee a (; mconsc1ente,

"Ii No ultimo t~rmo, n? horizonte daquilo que e nossa fun~ao naana se, estamos ali como 1SS0- isso, justamente, que se cala, e que se

Iitlil llO sentido em que falta a ser. Estamos no ultimo termo, em nossapl! ,I'II(,;a, no~so proprio sujeito, no ponto em que este se desvanece, emlilli' II harrado. E por essa razao que pOOemos ocupar 0 mesmo lugar ondeI' Pl'l)prio paeiente, como sujeito, se apaga e se subordina a tOOos os

lIificantes de sua propria demanda.Isso nao se produz somente no nive! da regressao, dos tesouros

f\lIificantes do inconseiente, do vocabullirio do Wunsch, na medida emlillI' 0 deeiframos no decorrer da experiencia analitica, mas, no ultimo" lillO, no nivel da fantasia. Digo no ultimo termo na medida em que a1IIIIIasiae 0 tinico equivalente da descoberta pessoal pel a qual e possive!till!' 0 sujeito designe 0 lugar da resposta, 0 S(~) que ele espera da1I11l1sferencia,e que fa~a sentido S(J{).

Na fantasia, 0 sujeito se apreende como faltoso diante de urn objeto"dvilcgiado, que e degrada~ao imagiDliria do autro neste ponto de falha.1'1I1'l1que, na transferencia, entremos nos mesmos, para 0 sujeito passivo1111fantasia no nivel de ~, e preciso que, de uma certa maneira, sejamosIClIlmcnte este f" que sejamos, no ultimo termo, aque!e que ve a, oobjetotill fantasia, que sejamos capazes, em qualquer experiencia que seja, e ate1I11l"Xperienciamais estranha a nos mesmos, de ser, afinal, aquele vidente,"'1I1c1eque pOOever 0 objeto do desejo do Outro, a qualquer distancia queII ()lIlro esteja de si mesmo.

E realmente por ser assim que voces me veem, ao longo de tOOoestet IIsinamento, e sob tOOos os aspectos em que nao apenas a experiencia,Ili1ISa tradiyao podem nos servir, girar em tomo do que e 0 desejo dohOll1em.Ao longo do caminho que percorremos juntos, vimos a alteman-l'ill cia defmiyao cientifica, no sentido mais amplo, aquele que tern sidoIt'nlado desde Socrales, e algo de inteiramente oposto, que e, na medidaI III que seja apreensivel nos monumentos da memoria humana, a expe-Ih'ncia tragica. Sera necessario que eu Ihes recorde que hli dois anos fi-lospl'I"(;orrer 0 drama original do homem modemo, Hamlet? Que no anaplIssado eu tentei Ihes dar uma visiio do que quer dizer aqui a tragedia1I111iga?

Se YOU,agora, retomar este caminho, e em raziio de urn encontroqlle Live, e 0 caso de dize-lo, por acaso, com uma das formulayOes nemIlldhor nem pior do que aquelas que vemos atualmente em nosso circulo,do que vem a ser a fantasia. Com efeito, encontrei no ulLimo Bulletin de/Isvchologie uma articulayao da funyao da fantasia, sobre a qual possodi",er, mais uma vez, que me causou sobressalto por sua mediocridade,Mas 0 autor nao vai se ofender em excesso, com esta apreciayao, ja queI It' C aquele mesmo que desejava, hli tempos, formar um grande numerolhopsicanalistas mediocres.

Foi exatamente isso 0 que voltou a me clar, nao posso dizer al'orugem, e preeiso, ai, um pouco mais, mas uma especie de furor, para

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,Ills devem nos levar a algum lugar. Este e 0 lado operacional dasII'IItnulas, e e verdadeiro tambem para as minhas. Ora, nao pretendo serIIpaacional so para os outros. .

Eu estava lendo a correspondencia entre Andre Glde e Paul Claudel,'lite, ca para nos, nao e nada ma, recomendo a voces. Mas 0 ~ue.lhes yOUII I, 'r nao tern rela~iio alguma com 0 objeto dessa correspondencla, d~ que'Illudel nao sai engrandecido, 0 que niio impede que eu 0 ponha aqut, e~

p' meiro plano, 0 que ele merece, como urn dos maiores poetas que Jat xlstiram.

Acontece que nesta correspondencia onde Andre Gide desempenha"II papel de direto; de La Nouvelle Revue fran~aise - na~ somente da

II'vista, mas dos livros editados por ela naquela epoca antenor a 191~ -1llIla-se da edi~ao de L'Otage e, pres tern aten~ao, nao quanto ao cont~udo,lIIas ao papel e a fun~ao que dei a letra, pois e esta mesma a caus~ eficlentetlo rato de que voces ouviriio falar, durante uma ou duas sessoes, dessaII lIogia sem igual. ,

Com efeito urn dos problemas em questiio durante duas ou tresI'llrtas e que, para'imprimir L 'Otage, sera preciso fu~dir urn tipo que naoI xIste niio so na impressora da Nouve lle Revue fram;alse mas em nenhumaIl\ltra _ 0 u mailisculo com acento circunflexo. Nunca, em ponto algum1\11lingua francesa se teve necessidade de um u com acento circunflexo., C '4' • 141'\ Paul Claudel quem, chamando a sua heroina Sygne de OUlontame,I'om _ em nome de seu poder poetico discrecionario - um acento no ulit- CoUfontaine, prop6e essa pequena dificuldade aos tip6~rafos. 0 ~~e"no causa ria problema no nivel da mimiscula, cria um no myel da mams-1"tllI,e os nomes dos personagens de teatro que diio as replicas sao, numaI'di<;aocorreta, escritos em letras maiusculas.. .

Diante deste signo do significante faltoso, disse a mlm. mesmo q~enil devia haver alguma coisa, e que reler L'Otage me levana bem malSlouge. Eis 0 que me fez retomar uma parte consideravel do teatro de('Illudel e como podem preyer, fui recompensado.

L 'Grage para come~ar com esta pe~a, e uma obra que Clau.delrscreveu na e~ca em que era funcionario do Min!sterio do Extenor,Il'prcsentante da Fran~a em na~ sei que car~o, dlgam~s, algo co.moI'ollselheiro, provavelmente malS que um adldo - enflm, ~ouco. lm-porta, ele era funcionario da Republica no tempo em qU,e I~SO am~aIlllha urn sentido. Ora, 0 pr6prio Claud~l escreve. a ~~dre Gld.e: ser!aIlIrlhor, tendo em vista 0 aspecto demaslado reaClOnano da COIsa, naolI' assinar Claudel. . .

Nao vamos sorrir desta prudencia. A prudencia sempre f01 conslde-Illda como uma virtude moral. E, creiam-me, estariamos enganados seII('f'ediuissemos, por nao estar mais em moda, que devessemos desprezarIlS ,·tltimos que deram provas dela.

tomar a passar, mais uma vez, por um desses desvios de que espero quetenham a paciencia de seguir 0 circuito.

Procurei ver se nao havia em nossa experiencia contemporanea algoonde pudesse se ligar 0 que tento lhes demonstrar, que deve, realmente,estar sempre ali, e, direi, mais que nunca no tempo da experienciaanalitica, que nao e concebivel como tendo sido apenas um milagre,surgido de nao se sabe que acidente individual chamado 0 pequeno-bur-gues vienense Freud.

Certamente, e sensivel em toda parte, existem em nossa epoca todosos elementos de uma dramaturgia, que deve nos permitir colocar em seunivel 0 drama daquilo com que temos de lidar quando se trata do desejo.Trata-se de niio se contentar com uma verdadeira historia de estudantetal como se pode colhe-la de passagem, e tal como se en contra, po;exemplo, identificada com a fantasia, no trecho que eu lhes citava hapouco. 0 fato e certamente mentiroso, ainda por cima, porque, como bemse ve no texto, nem mesmo e um caso que tenha sido analisado. Ea historiade um feirante que, de subito, a partir do dia em que Ihe disseram que naotinha mais que doze meses de vida, teria sido libertado daquilo que sechama, no texto, de sua fantasia, a saber, 0 temor de doen~as venereas eque, a partir dai - como se exprime 0 autor, sobre 0 qual e de se perguntaronde foi recolher este vocabullirio, pois mal se 0 imagina na boca dosujeito citado - teria tirado 0 atraso.

, Tal eo nivel incriticado, a urn grau que basta para torna-Io mais quesuspeito para voces, a que se leva a abordagem do desejo humano e deseus obsuiculos.

Sera outra coisa que me decide a lhes oferecer novamente urnpasseio pelo lado da tragedia, na medida em que ela nos toca?

Vou dizer-lhes imediatamente de que tragedia se trata, e por que acaso ea ela que me cefiro.

Trata-se da tragedia modema, quero dizer, contemporanea'. Destavez, nao existe somente urn exemplar umco dela. No en tanto, niio e muitodivulgada. E, se tenho a inten~iio de faze-Ios percorrer uma trilogia deClaudel, YOUlhes dizer igualmente 0 que me decidiu a isso.

~a muito tempo que eu niio relia a trilogia composta por l'Otage,Le Pain dur e Le Pere lzumi/ii.13 Fui remetido a ela, ha algumas semanas,por urn acaso do qual vou-lhes contar 0 lado acidental, porque e divertido,pelo uso, ao menos pessoal, que fa~o dos meus proprios criterios.

Disse a voces numa f6rmula - 0 interesse das f6rmulas e que sepode toma-las ao pe da letra, a saber, tiio burramente quanta possivel, e

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Os val ores que sao agitados em L 'Otage sao aqueles a que vamoschamar os valores da fe. Trata-se de uma hist6ria sombria, supostapassar-se no tempo de Napoleao I, a hist6ria de urna dama que, nao vamosesq~ecer, come~a a se tomar urna solteirona desde 0 tempo em que sededi~a a uma obra her6ica que ja dura uns dez anos, ja que a historia econslderada ocorrer no auge do poderio napole6nico.

~ que est:i em jogo, e que e naturalmente transformado pelasnecessldades do drama, e 0 constrangimento exercido pelo Imperadorsobre a pessoa do Papa. Isso, portanto, nos situa a um pouco mais deunsAdez ~nos da epoca de on de partem as prova~6es de Sygne deCoufontame.

Voce,s ja perceberam, pela ressoniincia de seu nome, que ela fazparte dos cl-devant, aqueles que, entre outras coisas, foram destituidos deseus p:iviIe~ios e de seus bens pela Revolu~ao. Desde essa epoca, Sygnede Coufontame, que permaneceu na Fran~a enquanto seu primo emigroudedicou-se a tare fa paciente de reunir os elementos do dominio do~CoUfontaine. Isso nao se deve apenas a uma tenacidade, mas nos eapresentado como consubstancial, co-dimensional a este pacto com a terra~~e~pa.ra d?is dos Ape~sonagens, e igualmente para 0 autor que os faz falar,e ldentico a constancla, ao valor da propria nobreza.

. Voces ~ao ver no texto os termos, alias admiraveis, nos quais see~pnme 0 vmculo com a terra como tal, que nao e simplesmente umvmculo de fato, mas tambem urn vinculo mistico, E igualmente em tomodeste .vinculo que se define toda uma ordem de lealdade que e a ordem,propnamente falando, feudal, unindo num so feixe 0 vinculo do parentes-co com urn vinculo local em tomo do qual se ordena tudo 0 que defmesenhores e vassalos, direitos de nascimento. So posso Ihes indicar, emalgumas palavras, todos esses temas. Nao e ai que est:i 0 objeto propriode nossa busca. Penso, aUm disso, que vao encontra-Ios a vontaderemetendo-se ao texto. '

.~ no de~o.rrer deste empreendimento, fundado, pois, na exalta~aodramatica, poetica, recriada diante de nos, de certos valores, que saovalo~es orde~a~~s segundo urna certa forma da fala, que vem interferir asegumte penpecla:

. 0 primo emigrado, ausente, que, alias, fez nos anos anterioresdlversas vezes, apari~6es clandestinas junto a Sygne de CoUfontaine'reapar~ce mais uma vez, acompanhado por urn personagem cuja identi~dade nao nos e revel ada, e que nao e outro senao 0 Padre supremo, 0 Papa,de quem toda a presen~a no drama sera definida, literalmente, comoaquela do representante na terra do Pai celeste. 0 drama vai se desenrolare~ tomo desta perso~agem. fugitiva, evadida - pois e com a ajuda dopnmo de Sygne de Coufontame que ele se encontra ali, subtraido ao poderdo opressor.

Aqui surge urn terceiro personagem, 0 assim chamado ~ara? Ture-IIlrl~,Toussaint Turelure, IS cuja imagem vai dominar toda a tnlogla.

Sua figura e desenhada de modo a nos fazer sentir horror por ele.( 'omo se ja nao fosse suficientemente malvado e vilao vir atormentar u~a1Illliher mo encantadora, ele vem, alem disso, chantagea-Ia - Senhonta:hll muito tempo que a desejo e amo, mas hoje, quando tern este ve1~o papalIinno em sua casa, YOU encurrala-Io e torcer-Ihe 0 pesco~o se nao cederI minha demanda.

Nao e sem inten~ao que conoto de uma sombra de Guignol esteIIllcleo do drama. 0 velho Turelure nos e apresentado com todos osnlfibutos, nao apenas do cinismo, mas da feitira. Nao basta que ele. sejaIIlnlvado, mostram-no, alem disso, manco, um pouco corcunda, odioso.Mnis, ainda, foi ele quem fez com que cortassem as cabe~as de todas asJlI'SSOasda familia de Sygne de CoUfontaine nos bons tempos de 93, e da1II11neiramais ostensiva, de modo que ele ainda faz com que a dam a tenhaqlle passar por isso. E mais, ele e 0 filho de urn feiliceiro e.de um.a mulhertillC foi a ama-de-Ieile, e portanto criada, ~e Sygne de Coufon~me - de1II11neiraque, quando 0 desposar, ela estara se casando com 0 ftlho de sual'mpregada e do feiliceiro. .

Nao dirao que existe alguma coisa ai urn pouco fo~e .d~mals pa~alocar 0 cora~ao de urn audit6rio, para quem essas velhas histonas assutnl-mm, afinal, um aspecto urn pouco diferente? Isto e, a Re~olu~ao f~anccsalkmonstrou, em sua sequencia, algo que nao pode ser UnIcamente JulgadoI luz dos martirios sofridos pela aristocracia. E claro que nao e por esteIl\do que a pe~a pode, de algurna forma, ser recebida como e. Nao que ~ste11lldit6rio se estenda muilo em nossa na~ao, mas nao se pode dlzer11Impoucoque 0 audilorio dos que assistiram a representa~ao, ali~ tardia111\hist6ria da pe~a, tenha sido unicamente composto, nao posso dlze~ d~1'1Irtidarios do conde de Paris, pois como todos sabe~ 0 conde de Pans eIllllito progressista, mas de pessoas saudosas da. epoca do conde deChambord. Antes e um auditorio avan/yado, cultIvado, formado, que,

, . , • 0-

lllnnte de L 'Otage sente 0 cboque, digamos, do tragI co, para a ocaslao,t'omportado pela continua~ao das coisas. _.

Trata-se de compreender 0 que quer dizer essa emo~ao, ou seJAa,q~eIII0 somente 0 publico aceita, mas igualmente, prometo-Ihes, voces naolano dtivida algurna, a leitura, que se trata, ai, de uma obra que tern, naIrndi~ao do teatro, todos os direitos e todos os meritos aferentes ao queIhes e apresentado de melhor. Onde pode estar, realmente, 0 segredoIllIquilo que nos comove atraves de urna hist6ria que se apresenta com esse1I1lpectode farsa, levada ao ponto de urna especie de caricatura?

Vamos mais longe. Nao se detenham no pensamento de que ~e.trata,nl, daquilo que e sempre evocado em n6s pela sugesmo ~os valores rehglosos.

E este ponto, precisamente, que vamos agora mterrogar.

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nos limites da vida, pois sabemos que e uma mulher que faria de bornllrlldo 0 seu ~acrificio, como 0 demonstrou no passado, m~s sim aoncriffcio daquilo que, para ela, como para todo ser, vale maIS que sua

vida - nao somente suas razOes de viver, mas aquilo em que ela reconhe-('(: seu proprio ser.

Eis-nos, portanto, atraves daquilo que chama provisoriamente essaImgedia contemporiinea, levados aos limites que sao os da segun~ morte,qtlC lhes ensinei a abordar no ano passado com Antigona, com a diferen~atk que, aqui, pede-se Ii heroina que os atravesse.

Se demonstrei a voces, no ana passado, 0 que significa 0 destinoInlgico - se pude conseguir faze-Ios observar numa topologia que cha-ItlllmOSde sadiana, a saber, nesse lugar que foi batizado aqui, como escutopor meus ouvintes, de 0 entre-duas-mortes - se mostrei que este jogopllSSOU,nao, como se diz, numa especie de refrao, para ale.m do. bem e doIIlUI,0 que e uma bela formula para obscurecer 0 que esta e~ J~go, maspllra aIem do bern, falando propriamente - se 0 segundo hmIte dessetlominio, 0 limite da segunda morte, e designado por aquilo a que chamao fcnomeno da beleza, aquele que explode no texto sofocleano no mo-Itlcnto em que, tendo Antigona atravessado 0 limite de sua condena~ao,Illio apenas aceita mas provocada por Creonte, 0 coro irrom~e no ~antoliros anikate ndxam, (Eros invencfvel no combate), - aqUl, depots devinte seculos de era crista, e para alem desse limite que nos conduz 0

drama de Sygne de Coiifontaine. .Ali onde a heroina antiga e identica a seu destino, Ate, a esta leI,

pllra ela divina, que a conduz Iiprova~ao - e contra a sua vontade, contraIlldo aquilo que a determina, nao em sua vida, mas em seu ser, que, por11111 ato de liberdade, a outra heroina vai contra tudo 0 que se liga a seu serIlle suas mais intimas raizes.

A vida ali e deixada, de longe, para wis. Pois, nao se esqueyam disso,111\ algo diverso que e acentuado pelo dramaturgo com toda a sua fory~: eqtlC, dado 0 que ela e, sua rela~ao de fe com as coisas hu~anas, .a~eItarI'llsar-se com Turelure niio poderia ser apenas ceder a uma ImposI~ao. 0I'llsamento, mesmo 0 mais execnivel, e casamento indissohivel. Mas isso"i nda nao e nada. 0 casamento com porta a adesiio ao dever do casamento('0100 dever de amor.

Quando digo que a vida e deixada de longe para tnis, temos a provad isso no ponto de desenlace para onde nos conduz a peya. .

Sygne, entao, cedeu, tomou-se a baronesa Turelure. E no dla. donllseimento do pequeno Turelure, cujo destino nos ocupara da prox~aVI''/.,que vai se passar a peripecia maxima, e termino do drama. E~ ~~nsnilleada, 0 bariio Turelure, que vem ali ocupar 0 centro, a figura histoncadl' loda esta grande farsa de marechais, dos quais sabemos, pela historia,qtlais foram as oscilayoes, fieis e infieis, em tomo do grande desastre,

Qual e 0 motor, a cena principal, 0 centro acentuado do drama?o veiculo da solicitayiio a que vai ceder Sygne de Coiifontaine nao eo h?rrivel personagem - e voces vao ver, niio apenas horrivel masca~ltal para toda a seqiiencia da trilogia - que e Toussaint Tur;lure,e SI~ 0 confessor de Sygne, a saber, uma especie de santo, 0 padreBadtlon.

. Sygne de Cofifontaine, que niio estll simplesmente ali como suapnma, mas a titulo de ter levado, atraves de ventos e mares sua obra demanutenyiio, esta ali no momento em que seu primo vem pro~ura-Ia e ficasabendo por este que ele acaba de experimentar em sua propria vida emsua pessoa, a,~ais amarga traiyiio. Com efeito, ele percebeu que a m~lherque amava so tmha feito engana-Io durante longos anos sendo ele 0 unicoa nada saber, is~o e, era a am ante daquele que se cham~, no texto de PaulCI~udel, 0 De!fIm. Nun~a ~ouve urn delfim emigrado, mas niio importa,POI~0 qu~ esta em qu~stao e mostrar os persona gens principais, Sygne deCoufontatne e seu pnmo em sua decepyiio, seu isolamento verdadeira-mente tragico.

, . As coisas niio ficam ai. Alguma rubeola ou coqueluche varreu, niioso a tnteressante persona gem da mulher do primo, mas tambem as crian-yas, . sua descendencia. Ele chega ali, portanto, privado de tudo pelo~estino, com exceyiio de sua constancia Ii causa real. E num dialogo quee, em ~uma, 0 ponto de partida tragico daquilo que vai se passar, Sygne eseu pnmo compromelem-se urn com 0 outro e diante de Deus. Nada, nemno prese~te e nem no futuro, Ihes permite fazer passar ao ato esteco~promIsso. ~as comprometem-se para alem de tudo 0 que e possivele Impossivel, sao votados urn ao outro. 0 padre Badilon vem entaorequ~rer de Sygne de CoUfontaine, niio uma coisa qualquer, mas que elaconsIdere que, recusando 0 que 0 viliio Turelure Ihe propos, ela se tomaa chave deste momento historico, quando 0 Pai de todos os fieis seraentregue ou niio a seus inimigos.

Certamente 0 santo Badilon niio Ihe imp6e, propriamente falandon~nhum dever. Ele vai mais longe. Nem mesmo e Iisua forya que ele apela:dJZ ele, e ~screve Claudel, mas Ii sua fraqueza. Mostra-Ihe aberto diante~ela, 0 ~bIsmo. dessa aceitayiio pela qual ela se fara agente de urn ato dehbertaya.o subhme. Mas, rep~rem be~, tudo e feito para nos mostrar que,ao fazer ISSO,_eladeve renunCIar em SImesma a alguma coisa que vai aMmde tod~ atrayao, de todo prazer possivel, de todo dever mesmo. Ela deverenuncIa~ liquilo q~e e seu proprio ser - ao pacto que a liga, desdesempre, a sua. fidehdade Ii sua propria familia, ja que se trata de casar-secom 0 ex~ermmador dessa familia -, ao compromisso sagrado que acabade assumtr para com aquele que ama. Ai estll algo que nos conduz, niio

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Turelure, naquele dia, deve, sob certas condiyoes devolver as chaves dacidade ao rei Luis XVllI. '

o embaixador dessa negociayao nao sera outro, como voces espe-ram, e como e necessario para a beleza do drama, senao 0 primo de Sygneem pessoa. Tudo 0 que pode haver de mais odioso nas circunStancias doenco?~o nao deixa de .ser _ai acrescentado. E, a saber, que dentre ascondlyoes que Turelure lmpoe para sua boa e lucrativa traiyao _ a coisana~ nos e. apr~sen~da ,d~ outra m~neira -, imp6e-se que 0 apanagio deCoufontame, lsto e, 0 ultimo daqUllo que resta, a sombra das coisas mastambem 0 essencial, a saber, 0 nome do Coufontaine devera passar ; essadescendencia malcasada. '

Levadas as coisas a este ponto, nao se surpreendam que elas termi-nen,t por um. pequeno atentado a pistola. A saber, uma vez as condiyOesace!tas, 0 pn?I? que, quanto a ele, esta alias longe de nao ter regateado,esta bem decldldo a acertar suas contas como se diz, ao tal de Turelure _o qual, sendo provido, naturalmente, de todos os caracteres da astucia eda malicia, previu 0 golpe e tem, ele tambem, seu revolverzinho no bolso.No tempo em qu~ 0 rendulo da tres batidas, os dois revolveres disparam,e naturalmente nao e 0 malvado a ficar estendido no chao. 0 essencial eque .Sygne de Coufontaine se joga no caminho da bala que vai atingir seumando ~, r~r ter~lhe evitado a morte, vai morrer nos instantes seguintes.

~UlCldlO, dlremos, e nao sem justiya, ja que, igualmente, tudo emsua alItude nos mostra que ela bebeu 0 calice sem nada encontrar nele dediferente do que era, a perdiyao absoluta, 0 proprio abandono, experimen-tado, das potencias_ divinas, a de.liberayao de levar a termo aquilo que,nesse grau, quase nao merece malS 0 nome de sacrificio.

Em s~ma, na ultima cena, ~ntes do gesto em que colhe a morte,Sy~ne nos e apresentada como agltada por um tique facial, assinalandoasslm, de alg~m modo, 0 destino do belo. E isso que nos mostra que seencontra, aqUl, superado esse termo que Ihes designava no ano passadocomo respei~d.o pelo proprio Sade - a beleza insensivel aos ultrajes.

Sem duvlda, esse esgar da vida que sofre e mais atentatorio aoestatuto da beleza que 0 esgar da morte e da lingua estendida que podemosevocar no rosto de Antigona enforcada quando Creonte a descobre.

Ora, 0 que se passa bem no final? Com 0 que 0 poeta nos deixaao~ermo de sua tragedia em suspenso? Ha dois fins, peyo-Ihes que guardemISSO.

t:m desses fins consist~ na entrada do rei. Entrada grotesca, na qualToussamt Turelure recebe a Justa recompensa por seus servi<;os, e onde aordem restaurada assume os aspectos dessa especie de feira caricaturalq~e ,e.excessiva~ente facil atribuir ao publico frances, depois do que a?lstona nos e~mou sobr? as seqiielas da Restaura<;ao. Em suma, almagem de Epmal verdadelramente derrisoria, que nao nos deixa, alias,

lh\vida alguma quanto ao julgamento que 0 poeta pode fazer de todoIl'lomo aqui~o a que se chama 0 Antig~ Regime. .. . A •

o interessante e 0 segundo fmal, ligado por uma mtIma eqmvalencla'\lJuilo com que 0 poeta e capaz de nos deixar quanta a imagem de Syg~elit' Coufontaine. Trata-se, ai, de sua morte - nao, certamente, que ela seJa1'llIdida no primeiro fmal.

Logo antes da figura do rei, Badilon reaparece para exortar Sygne,I' s6 consegue, ate 0 fim, obter dela um "nao", urna rec~a absoluta da paz,do abandono da oferenda de si mesma a Deus, que Val recolher sua alma.'I'odas as ex~rtayOes do santo, ele mesmo dilacerado ~la ~l~ma conse-qllcncia de que ele foi 0 obreiro, esbarram numa negatIva ultIm~ ..Sygnelul0 pode encontrar, por vies algum, seja 0 que for que a reconclhe comlima fatalidade sobre a qual peyo-lhes que observem que supera tudo 0

que se pode encontrar na tragedia antiga como indicio. daquilo que 0

Sr. Ricoeur,. que percebi que estudava as mesmas COlsas _que eu naAntigona mais ou menos no mesmo momento, chama a funyao do DeusIllllivado. . .

o deus malvado da tragedia antiga ainda e alguma COlsaque se reune'10 homem por intermedio da Ate, esta aberrayao nomeada,. articu!ada, daqllal ele e 0 ordenador. Reune-se a Ate do outro, como dlZ AntIgona, ecomo diz Creonte, na tragedia sofocleana, sem que nem u~ nem outroII'nham vindo ao seminario. Esta Ate do outro tem um sentldo, onde 0

dcstino de Antigona se inscreve. . ...Aqui, estamoS para alem de todo sentIdo. 0 sacnflclo de Sygne de

CoUfontaine so atinge a derrisao absoluta de seus fins. 0 velh~te que seIl'atava de furtar as garras de Turelure nos sera representado ~t~ 0 fim dall'ilogia, por mais Pai supremo dos fieis que seja, como um Pal 1mpo ten_tequc, com relayao aos ideais que ascendem, nada tem a Ihes ofere~~r ~enaoII inutil repeti<;ao de palavras tradicionais, mas sem f~rya. A. legltImldadequc se diz restaurada nao passa de um lo~ro, fic<;ao, cancatura, e, nal'calidade, prolongamento da ordem subvertIda.

o que 0 poeta acrescenta ali no segundo final e este achado em quesc necrosa 0 seu desafio, 0 de fazer exortar Sygne de <?o.ufontain~ por'I'urelure com as proprias palavras de suas armas, de sua dlvIsa,.que ~ pararIa a significayao de sua vida - Cot1fontaine adsum, Coufontmne, ezs-meWilli.

Diante de sua mulher incapaz de falar, ou recusando-se a falar, ele1l'11Iaao menos obter urn sinal, qualquer que seja, quando mais nao fosse() consentimento a vinda do novo ser, 0 reconhecimento do fato de que 0

gcsto que ela fez era para protege-Io, a ele, Turelure. A tudo isso a martirIIpcnas responde, ate se extinguir, par um nao. .

o que significa que 0 poeta nos conduza.a este extremo da falta.' adarisao do proprio significante? 0 que quer dizer que semelhante COlsa

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nos seja apresentada? Parece-me que ja os fiz percorrer bastante os grausdaquilo a que chamarei esta enormidade para que isso lhes seja aparente.

Voces me diriio que somos duros de roer, que ja os fizeram ver todoo tipo de coisas para que nada mais os espante - mas, assim mesmo ...Bem sei que existe alguma coisa em comum entre a poesia de Claudel eados surrealistas. 0 que nao podemos duvidar, em todo caso, e queClaudel, ao menos, imaginava saber 0 que escrevia. E seja como for, estliescrito. Semelhante coisa pOde emergir da imaginayiio humana.

Quanto a nos, espectadores, sabemos bem que se se tratasse, ali,apenas de nos representar, de forma imajada, uma tematica com a qualnos encheram os ouvidos sobre os conflitos sentimentais do Seculo XIX,isso niio nos alteraria em nada. Bem sabemos que se trata de outra coisa,que niio e isso 0 que nos toca, que nos retem, que nos suspende, que nosatrai, que nos projeta de L 'Otage para a sequencia ulterior da trilogia. Haalgo diferente nessa imagem, onde os termos nos faltam. Voces se recor-dam dos termos de Aristoteles que Ihes citei no ana passado, di eliou /wif6bou pera{nousa, isto e, niio pelo terror e pela piedade, mas atrawis detodo terror e toda piedade atravessados. 0 que nos e aqui apresentadonos leva ainda mais adiante. E a imagem de urn desejo diante unicamentedo que, parece, ainda vale a referencia sadiana.

A substituiyiio, pela imagem da mulher, do signo da cruz crista, niioIhes parece que ela estli ali, niio apenas designada, mas expressamentesituada no texto? A imagem do crucifixo esta no horizonte desde 0 inicioda peya, e nos a reencontraremos na peya seguinte, mas, ainda assim,voces niio se surpreendem com isso? - a coincidencia deste tema,enquanto propriamente heroico com aquilo que e aqui, nomeadamente -e sem que haja urn outro fio, urn outro ponto de referencia, que nos permitatransfixar toda a intriga, 0 enredo - 0 tema da superayiio, da passagemfeita para alem de todo 0 valor da fe.

Esta pe~a, aparentemente crente, e da qual os crentes, e os maisilustres,o proprio Bemanos, se afastam como de uma blasfemia, niio serapara nos 0 indicio de urn sentido novo dado ao tragico humano?

E isso que vou tentar lhes mostrar da proxima vez com os dois outrostermos da trilogia.

XX

A ABJE«;AO DE TURELURE

Hist6ria do pai.o pai jogado nos dados.Como operava Freud.o objeto do desejo e seu instrumento.Tres gera~i5esbastam.

be t. d pel'O aqueles unidos pelaY;o desculpar-me, neste lugar a rto a .0 os, T

11I~smaamizade que dirijam por urn momento ~us pensamentos a urnC' • de voces meu amigo, Maunce Merleau-Ponty, que

!lomem que 101 affilgo , . 'I . seminario' numIIOS foi levado quarta-feira ultima, na nOlte de meu u ll~~ I' ~ntelnstante, e cuja morte foi sabida ~lgumas horas depols aque e ms .N6s a recebemos em pleno corayao. . . sua

Maurice Merleau-Ponty seguia seu cammho, pross~gUla em. uisa ue niio era it mesma que a nossa. Tinhamos partIdo de pontos

PI~II~e~ente;tinhamos alvos diferentes, e diria mesmo que. e~a ddepers~ec-(, 'b s em pOSlyao e ensmar.tivas diferentes que nos encontrava~os, am ,0 , 'nh vontadeI~Icsempre quisera ensinar, e posso dlZer que e bem contra ml a

qlle o~u=:s:z~;t::bem que nos tera faltado tempo, em raziio dessa

1'1I1alidademortal, para aproxima: ai?da.~ais n~:;:se::Ul::r; s~~~s~:I"nunciados Seu lugar, com relayao aqm 0 que , ..' tia E' acreditem durante estes oito dias, 0 luto profundo que senll:-innpa . , a areci~ento fez com que eu me interrogasse quanto ao';(::I~~e~U~e;o~so preencher este lugar, e de uma maneira tal que possa

.' uestao. Ao menos, parece-me que:;~~~:n:~rd~~:t;e~~~~~p~re::o~t~~d~, por suas declarayOes amigaveis a

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cada vezq . .que tfnh~e velO aqm, recolho uma. ajuda, e conforta a ideia que acreditom' . os em co~um, do enslOamemo, uma ideia que afasta ao

axlmyo_toddaent:latuacrao de principio e, numa palavra, todo pedantismoao escu par-me porta t h' '

desvio do qual Ihes dei' da ul~ 0, se 0Je, qua~do c~ntava terminar este

aUm ~o ,que conseguir [azer. y~ap:;~~::_~~z=, r::~ol~:arei a~ coisassubtrau a preparacriio que Ihes consagro habitualmente. que tIve que

Estranho, disse eu sobre essa tragedia, da qual certamente niio pude,dillnte de voces, ~sgotar em meu comenmrio todos os recursos. Estranho,posso repetir diante desta contradicriio suplementar na qual niio nos deti-vemos, que e 0 fato de niio ser posto em duvida que sejam as chamas doIIferno, da danacriio eterna, que aquele pai testemunha. Ainda assim, e

('omo cetico, como discipulo de Montaigne, como se disse, que Hamlet sellllerroga, to be or not to be, dormir, sonhar, talvez. Este aUm da vida noslivra desta vida maldita, deste oceano de humilhacriio e servidiio que e avida?

E tampouco podemos deixar de tracrar a gradacriio que se estabelecepor esta escala que, da tragedia antiga ao drama claudeliano, poderia seformular assim.

No nivel do Edipo, 0 pai e morto sem mesmo que 0 her6i 0 saiba.Elc niio sabia, niio apenas que fora por ele que 0 pai morrera, mas nemmesmo que 0 tivesse sido. A trama da tragedia implica, no entando, quedeja 0 esm.

No nivel do Hamlet, 0 pai e condenado. 0 que pode querer dizerisso, para alem da fantasia da danacrao eterna? Esta danacrao nao esmIigada a emergencia disto, que 0 pai comecra aqui a saber? Decerto ele naosabe todo 0 mecanismo, mas sabe dele mais do que se ere. Sabe, em todoClISO,quem 0 matou, e como foi morto, Deixei em aberto em meucomenmrio 0 misterio deixado pelo dramaturgo, daquilo que significalIquele orchard onde a morte 0 surpreendeu, diz-nos 0 texto, na flor deseus pecados - e esse outro enigma, que foi pelo ouvido que 0 venenoIhe foi ministrado. 0 que e que entta pelo ouvido, senao uma palavra, equal e, por tras dessa palavra, esse misterio de vohipia?

Sera que, respondendo a estranha iniqilidade do gozo materna, umacerra hubris nao responde aqui, traida pela forma que assume aos olhosde Hamlet 0 ideal do pai? Esse pai a prop6sito do qual niio se diz outracoisa senao que ele era aquilo que poderiamos chamar de 0 ideal docavaleiro do amor cortes. Esse homem atapetava de flores 0 caminho aser percorrido pela rainha. Esse homem afastava de seu rosto, diz-nos 0texto, 0 minima sopro de vento. Tal e a estranha dimensao onde perma-nece, e unicamente para Hamlet, a eminente dignidade de seu pai e a fontescmpre fervilhante de indignacrao em seu coracrao. Em parte alguma essepai e evocado como rei, em parte alguma ele e discutido, diria eu, comolIutoridade. 0 pai e ali uma especie de ideal de homem, e isso niio merecemenos permanecer para nos em estado de questao, pois, a cada uma dessasetapas, so podemos esperar a verdade de uma revela~ao ulterior.

E da mesma maneira, a luz do que nos parece natural, a nos analistas,projetar atraves da historia, como a' questao repetida de idade em idadesobre 0 pai, parem urn instante para observar em que ponto, antes de nOs,nunca, em seu cerne, esta fun~ao do pai foi interrogada.

Na .ultima vez, deixamos as coisas ao final de L 'Ora .1alIDagem de Sygne de Cot1fontaine que diz nao, E;~ ::~ ~:g1lI~en~0

e~;:~:?~;:~;o':nr:~ l~~~~~:~~~ed~~:::r:~p~~~~~~a~~~~~ ~~;:~~a el- es 0 bastante da tragedia para que voces saiba .

~~~g' :~ra~edia Cri~lt.ii,,!ua~do ele Hasitua na Fenomenologia ~o t~lt:oaa a reconclla~ao a Versohnun a d -' ,

resolve 0 impasse fundame~tal d tr 'd' g, re en~ao que, a seus olhos,lhe permite instit . a age la grega, e conseqiientemente nao

~i~el do que se p~~s~hea::;~~I~~oa P~~~~'c~~~~~~ur~~~o c:aximo, 0

~::::~ te~;;;. os fdhos sa,o todos sustentados por AqU~le no qu~~~~~u 0, aID, .que para alem de nosso reconhecimento se r 'Ii

Sem duvlda . A. • , econcl a.vem b ' a expenencla val contra essa apreensao noetica na qual

es arrar numa certa parcialidade a . .igualmente renasce depois del a esta voz h~::~ectl~a ~~ge~lana, ja que

~;: ~:aih:~vamente, uma contradi~iio. Tambema~ate:te~e:n~~~~'1;~~, e,speare, no qual nos detivemos por muiro tempo h' d .

:~~:is~:t: ~lapara nos m.ostr~r outra coisa, que uma outra dim:ns~~da tragedia. 0 nos permlte dlzer que a era-crista encerra a dimensiio

Sera u~am:::g~~~acn~astga_e?'~?Detacerto,e acredito te-Io mostrado a voces..r. exa mente ai que a . t -

nos reencontraria, pois, na verdade nesse H I 10 ~rrogacrao de Hegeltra~o de uma reconcilia - ' am et nao aparece 0 menorda fe crista nao ha no Jao'

lApesar da presen~a no horizonte do dogma

de urna red~n~ao qualqu:c~~t~:~;:::~:~:t~~gum,recurso a media~aopora tragedia. 0 permanece, no Hamlet,

N Ainda assim, nao podemos absolutamente eIiminar 0 .nao esm menos presente nesta estraiilia tragedia e I . segumte, ~uea que eu chamei ha pouco a dimensao do d ' que ne a ,lns~re_veaqmlo

que 0 ghost, aquele que, para aUm da morte, ~~~a °a~~~~ ~~::;i ::::re como, e por quem, e urn pai condenado. 0,

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A ABJE<;AO DE TURELURE

d d' 0 in les onde catolicidade e catoli-IlIlIlente mais em tado urn an rsm g , nta agora a mais ou menosl'ISII10slio, a J?artir de uma certa a~ ~ue_remo, ,IIIISduzentos anos, 0 cumulo da dlstm~~o. roblema 0 pai humilhado,

E real mente noutra parte que reSl e 0 p. . d' So. . P Existem mUltos outros ecos e pals.

Il~O acredlto que seJa esse ap~. d E tambem 0 pai que mais se ve,(' trata disso ao longo desses tres ramas. . . de obscenidade 0 pai

fina com uma especle ,11pai numa estatura ~ue c~~ falando impudente, 0 pai a proposito do qualII11111a estatura, propnamen .' te alguns ecos da forma pela11Iio podemos deixar de notar, preclsamen , nos 0 pai e

. °t de Freud 0 faz aparecer para, .qlllll, no honzonte, o.ml; I cujo drama e cujo assassinato, val1'\'1I1mente,ali, Toussamt ~reAme ~ 0 obieto pr~priamente falando, da'onstituir nlio somente 0 plVO, ma J'

11I:<;ac~~~~'aZ:u:;~~~~ do pai que nos e mostrada so~ es~ figura,.qu~

""0 e simples~ente impu~siv~, _ou~~:~::~~;~eq~:p:~~~~:,:::::~~:II forma da m~ls.extrema eITlsa~, os es erar de um autor que professa() abjeto? Sena lSSO0 ~ue podenam / nte de voces os valores tradi-SIT catolico e fazer reVlver, ree~camatrnhlaa reagl'do com mais escandalo

° .? N- . tranho que nao se e·lonalS. ao e es I quando e lan~ada isoladamente tres ou quatrocliante dessa pe~a - a qua, d nder cativar nossa aten~lio por urnIIIIOSdepois de L 'Otage: ~re~n ~r~~:~ de ~cos balzaquianos, se destaca('pisodio onde uma especle e s , _ tambem ali de todos osIIpcnas de um paroxismo, de uma supera~ao, ,

lill1itesN

·_ . devo pedir que levantem 0 dedo aqueles que nli~ le~am,ao sel se. -0 basta que eu lhes mdlque

c1esdea ultima vez, Le Pam dur~ pelnso q~ep~~cipitem em dire~lio a ela.lima pista para que tados voces ogo sCrcio-me entiio obrigado a resumir sucintamente de que se trata.

A propria figura do pai antigo, na medida em que a convocamos emnossas imagens, e uma figura de rei. A figura do pai divino, atraves dostextos biblicos, coloca a questiio de toda uma pesquisa. A partir de quandoo Deus dos judeus se toma um pai? A partir de quando, na hist6ria? Apartir de quando, na elabora~lio profetica? Todas essas coisas agitamquest6es tematicas, historicas, exegeticas, tiio profundas que nem mesmoslio colocadas, ao se evoca-las assim. Simplesmente, observa-se que erealmente necessario que em algum momenta a tematica do pai, 0 que eum pai ? de Freud se tenha singularmente reduzido para ter assumido paranos a forma obscura do no, nlio apenas mortal, mas assassino, sob a qualesta fixada para nos na forma do complexo de Edipo.

Deus criador, Deus providencia, nlio e isso 0 que esta em jogo paranOs na questiio do pai, ainda que todas essas harmonicas the formem urnfundo. E este fundo, poderia ocorrer que, pelo fato de termos articuladoesta questiio, ele seja esclarecido so-depois. A partir daf, quaisquer quepossam ser nossos gostos, nossas preferencias, seja 0 que for que a obrade Claudel possa representar ou niio para cada urn, nlio sera oportuno,necessario, nlio nos sera imposto perguntar-nos 0 que pode ser, numatragedia, a tematica do pai? - quando se trata aqui de uma tragedia quefoi lan~ada na epoca em que, atraves de Freud, a questiio do pai mudouprofundamente.

E tampouco podemos aceitar que seja urn acaso se, na tragediaclaudeliana, e somente do pai que se trata. A ultima parte dessa trilogia,completando nossa serie, chama-se Le Pere humilii. Ha pouco, 0 pai jamorlo, 0 pai na dana~lio de sua morte, agora 0 pai humilhado. 0 que querdizer isso? 0 que quer dizer Claudel com este termo, pai humilhado? Epara com~ar, na tematica claudeliana, este pai humilhado, onde esta?Procurem 0 pai humilhado - como se diz, nos quebra-cabe~as ilustrados,procurem 0 ladriio, ou mesmo 0 policial.

Quem e 0 pai humilhado? sera 0 Papa? Mesmo sendo sempre Pio,existem dois deles no espa~ da trilogia. 0 primeiro, fugitivo, menos quefugitivo, seqUestrado, a ponto de - a ambigilidade incidindo sempresobre os termos dos titulos - podermos nos perguntar se niio e ele 0Refem. 0 outra, 0 Pio do final, do terceiro drama, 0 Pio que se confessa,numa cena eminentemente tocante e feita para explorar toda a tematicade um certo sentimento propriamente cristiio e cat6lico, 0 do servidor doservidor, aquele que se faz menor do que os pequenos. Vou ler para vocesessa cena de Le Pere humi/ie, onde ele vai se confessar a urn pequenomonge que e apenas urn guardador de gansos ou porcos, pouco importa,e que, naturalmente, porta em si 0 ministc5rio da mais profunda e maissimples sabedoria.

Niio vamos nos deter em demasia nessas imagens excessivamentebelas onde parece que Claudel sacrifica, antes, ao que e explorado infini-

te Pain dur co~e~a c~m 0 dililogo entre d~a~:~~h:':t~rte de Sygne, noCertamente malS de vmte anos se passara uec1iado batiz~~o do. m?O que ela ::l~: ~~s~~~~~~:;~~e~~:o~~~:~~teill nao era mals mUlto Jovem naq. d' .p I 'do nos bastidores mas 0 que° ° N- ele esta lSSlmu a ,SlIllstrO. ao 0 vemos, . . mante

vemos silo duas mu~h~res, u~a ddas q~~l~: :::::;:eq~: ~~~~u~ desdetic ~eu mho. Esta ulu~a desta A: ve~ia onde ela deixou Louis de CoUfon-("nlao, urna certa atuahda e, a. dg , honea ao soberano reslaurado.

. . I se chama Lows ecerto, emtllll1e QuPOenlsli~~e perea a ocasili~ de Ihes dirigir aqui ~a obdserva~lioL'umm.a

s. . .. f A ongem 0 nome 0c1ivcrsliozinha, que nlio sei se alguem aqulJa ez.

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e Ludovicus, Ludovic, Lodovic, Cfodovic dos merovingios, e nada mais e- uma vez escrito pode-se ve-Io melhor - do que Clovis, com 0 csuspenso. a que faz de Clovis 0 primeiro Luis. E podemos nos perguntarse tudo niio seria diferente se Luis XIV soubesse que era Luis XV.Talvez seu reinado tivesse mudado de estilo, e indefinidamente assimpor diante. Enfim, passemos adiante dessa pequena diversiio destinadaa descontrai~los.

Enquanto Louis de Cofifontaine ainda esta, ou pelo menos se acre-dita, em terras da Argelia, a pessoa que chega a casa de Toussaint, seupai, vem reclamar seus direitos. Esta historia fez, tiio lindamente, com quese esbaldassem os autores de do is livros de pastiches celebres, que e acena df! reclama~iio junto ao velho Toussaint que lhes serviu de tern a emseus A fa maniere de. Foi por isso que se lan~ou, por urna serie degera~Oes, a famosa replica bem digna de Claudel, mais verdadeira que anatureza, que e imputada ao personagem da parodia, quando exigem desteque devolva uma certa soma da qual teria espoliado urna infeliz _ Naoexistem pequenas economias.

As economias de que se trata niio siio, de modo algum, as economiasda mo~a que as vem reclamar ao Toussaint Turelure; siio nada menos queo fruto dos sacrificios dos emigrados poloneses. A soma de dez milfrancos, ate mais, que foi emprestada pela jovem, da qual veriio emseguida 0 papel e a fun~ao que Ihe convem dar, constitui 0 objeto de suasolicita~iio. Ela vem reclama-Ia ao velho Toussaint, nao que tenha sido aele que cedeu ou emprestou esta soma, mas a seu filho. a filho esta, agora,insolvente, nao apenas quanto a esses dez mil francos, mas quanto a outrosdez mil. Trata-se de obter do pai a soma de vinte mil daqueles francos domeio do seculo passado, isto e, do tempo em que urn franco era urn franco,pe~o-lhes que me acreditem, e isso nao se ganhava num instante.

A jovem que esta ali encontra uma outra, Sichel. Sichel e a amanteoficial do velho Toussaint. E a amante oficial do velho Toussaint naodeixa de apresentar alguns espinhos. E uma posi~iio que apresenta certarudeza. Mas a pessoa que a ocupa e de peso.

Em suma, 0 que entra em jogo muito depressa entre essas duasmulheres e saber como tirar apele do velho. Se niio se tratasse, antes detirar sua pele, de tirar outra coisa, parece que a questiio seria resolvidamais depressa ainda. Quer dizer, em suma, que 0 estilo niio e, absoluta-mente, 0 da ternura, nem do mais alto idealismo. Essas duas mulherescada uma a sua maneira, como vao ver, voltarei a isso, bem podem se;qualificadas de ideais. Para nos, espectadores, elas nao deixam de imajarformas singulares da sedu~iio.

E preciso, realmente, que eu indique a voces tudo 0 que se tramade c:i1culos, e de c:ilculos extremos, na posi~iio dessas duas mulheresdiante da avareza de Turelure, essa avareza que so se iguala a su~

A ABJE<;Ao DE TuRELURE

desordem, a qual e superada apenas por sua improbidade, :omo se exp?-me textual mente a tal de Sichel. A pessoa da polonesa L~1f - Loum-Ylr,como Claudel nos diz expressamente que se deve pronunClar s~u nome ~esta pronta a ir ate 0 fim para reconquistar aquilo que ela consl.dera comourn bem urn leg ado sagrado pelo qual e responsavel, que.ela alienou, .masque dev~ de qualquer maneira restituir aqueies aos quaIS se sente flel epara com os quais tern seu unico compromisso, tod?s os emigrados~ todosos m:irtires, mesmo os mortos por aquela causa e~l1~en~e~~nte apalx~n~-da, passional, apaixonante que e a causa da Poloma dlvldlda, a P~lom~rcpartida. A jovem esta decidida a ir tiio longe quanto se possa If, ateoferecer-se ate ceder ao que conhece do desejo do velho Turelure.

a veiho Turelure sabe de antemao 0 que se po de espe~~r del~.Basta que uma mulher seja a mUI.her de seu ~Iho. para ~ue ela Ja esteJacerta de nao ser para ele, longe dlSSO, urn obJeto mter~ltado. Ree?con-lramos, aqui, urn tra~o que so foi introduzido a partl~ .de uma epocahastante recente, no que eu poderia chamar da tematlca comum decertas fun~6es do paL . .,

A outra a parceira do dialogo, SIchel, chamel-a ha pouco, espe~ta-Ihona, nao deixa de conhecer os componentes da situa~~o. Tambe~ eXIsteIIi uma novidade - quero dizer, algo que, com rela~ao a esse smgularjogo que chamamos de complexo de ~ipo, acr:scen~-se a esteem·Claudel. Sichel nao e a mae, observem lS80. A mae est~ mor,ta, fo~a decena, e sem duvida: essa disposi~ao do drama claudehan~ e,. aqm, denatureza a fazer com que apare~am os elementos ~uscettvels de nosinteressar nessa trama, essa topologia, essa dramaturgla fundament.al" namedida em que algurna coisa de comum a uma mesma epoca v~m hga-Ianovamente, de urn criador a outro, de urn pensamento reflettdo a urnpensamento criador. . , .

Ela nao e a mae. Nem mesmo e a mulher do pal. Ela ~ 0 obJeto de11m desejo tininico, ambiguo. E bastante acentuado ~r SIchel q?e, se('xiste algurna coisa que ligue 0 pai a ela, e urn deseJo que esta bemproximo do desejo de destrui-la, ja que igualrnente, ele fez dela sual'scrava e e capaz de falar da atra~ao que tern por ela como tendo co~e~adoII partir de urn certo encanto que se destacava do ~eu talento ~e plamsta,(' de urn dedinho que ia tiio bem tocar a tecla do plano. Est~ pla~o, desdeque controla as contas do velho Turelure, ela nao p6de mal~ abnr ..

Essa Sichel tern, entiio, sua ideia. Essa ideia,.vamo~ ve-Ia flonr sobforma da chegada brusca do tal de Louis de Coufontame no ponto em

II da - d' d ar noque vai se nodular 0 drama. Pois essa chega . nao ~lxa e provocvdho pai urn verdadeiro no nas tripas, urn verdadelfo ata~ue de.medoIIhjeto - Efe vem ai? grita ele, de subito, abandonando a belayngua-~c'm" de que acaba de se servir urn minuto antes para d~screver a Jove~lllulher de que falei os sentimentos poeticos que 0 unem a SIchel, ele vem at.

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Ele vem sim, com efeito, e vem trazido por uma opera~ao debastidores, por uma cartinha de advertencia da tal de Sichel. Chega aocentro, e a pe?a vai cUI~inar com uma especie de singular jogo a quatro,poderiamos dIzer, se nao se acrescentasse a ele 0 personagem do pai deSichel, 0 velho Ali Habenichts - haben nichts, que nao tern nada, e urnjogo de palavras - 0 velho usunirio, especie de duplo de ToussaintTurelure, atraves de quem este ultimo trafica essa opera~ao complicadaque consiste em retomar pe~a por pe~a, e peda~o por peda~o, a seu propriofilho, os tx:ns dos Cotifontaine, que esse filho cometeu 0 erro de Ihe exigirem papel tJmbrado como heran~a, a partir de sua maioridade.

Voces veem como tudo se liga. Nao foi Ii toa que evoquei a tematicabalzaquiana. A circula~ao, 0 metabolismo, 0 contlito no plano do dinheiroe duplicado pela rivalidade afetiva. a velho Toussaint Turelure ve preci-samente em seu filho aquilo para 0 que a experiencia freudiana chamoua nossa aten~ao, urn outro ele mesmo, urna repeti~ao dele mesmo umafigura nascida dele mesmo em quem so pode ver urn rival. E quando seufilho, temamente, tenta, num momento, dizer-lhe: Sera que nao sou umverdadeiro Turelure?, ele responde asperamente - Sim, sem duvida masja existe um, e eo bastante. Em mareria de Turelure. ja basta eu 'para1~sempen~r 0 papel. Outra tematica em que podemos reconhecer 0 quee tntroduZldo pela descoberta freudiana .

.Tampouco isso e tudo. E chegamos ao que vem cuI minar, depois deurn dlalogo onde foi necessario que Lumir, a amante de Louis de Cotifon-taine, instigasse este ultimo com todas as chicotadas da i~jUria diretamen-te lan~adas ao seu amor-proprio, a sua imagem narcisica, como dizemos,e revelasse ao filho de que propostas ela havia sido objeto por parte dopai, daquele pai que, por suas tramas, quer empurni-Ia a esse termo defal.encia n~ qual ele se a~ha encurralado quando come~a 0 drama, aquelepal que, nao somente Val se apropriar de sua terra, que comprara baratogra~as a seus intermediarios da usura, mas tambem lhe vai roubar amulher. Em suma, Lurnir arma a mao de Louis de Cofifontaine contra seupai. E assistimos em cena esse assassinato tiio bem preparado pela esti-mUla~ao da mulher, que e, aqui, nao somente a tentadora, mas aquela quecombma, que faz lodo 0 artiffcio do crime em tome do qual se vai fazero advento do proprio Louis de Cotifontaine a fun~o de pai.

Para esse assassinato que vemos se desenrolar em cena a outra cenado assassinato do pai, as duas mulheres, em suma, colaborara'm. Como dizLumir, em algurn lugar, foi Sichel quem me deu essa ideia. E com efeitofoi na primeira conversa entre elas que Sichel fez surgir, na' imagina~a~de Lumi~, essa dimensiio - a saber, que 0 velho que ali estli, animado poru~ deseJo, persona gem que Claudel erige diante de n6s, e urn pai ridicu-lanzado, e, se posso dizer,urn pai jogado. a pai jog ado e, decerto, 0 temafundamental da comedia c1assica, mas aqui e precise entender jogado num

sentido que vai ainda mais longe que 0 logro e a derrlslio: ele e, se podemosdizer, jogadq nos dados, e jogado porque, afinal, ele e urn ~Iementopassivo na partida, como e expressamente evocado nas repbcas quecncerram 0 dialogo entre- as duas mulheres.

Depois de se terem aberto mutuamente e ate 0 fundo seus pensa-mentos uma diz Ii outra - Fa~a seu logo, eu fa~o 0 meu, tenho meusrrwifos'tamMm, toclas duas contra 0 moTto. Eprecisamente neste momen-to que Toussaint Turelure faz sua entrada. - E entao! Quem estafalandoem marta? - &tamos discutindo as prindpios do whist eo logo de ontemd noite: as fracas e osfortes do marta. E neste ponto 0 velho Toussaint,que nlio desconfia do que se trata, replica fazendo algumas brincadeirassobre 0 quelhe deixaram naquela partida, a saber, naturalme_nte, ashonras. Elegancia bem francesa, Ii qual se faz, 0 tempo todo, alusao - t11mverdadeiro frances! disse Sichel a Lumir. E conseguird tUM dele, paisama as mulheres, ah! e um verdadeiro frances! Com exce~ao de dinheiro,() dinheiro, ugh.

Nao e surpreendente verressurgir a imagem da partida a quatro, aquiIIdo whist, que muitas vezes evoquei, num outro sentido, para designar acstrutura da posi~lio analitica?

a pai, antes que a cena do drama se passe, ja estli morto, ou quase;Nao e preciso mais que urn sopro. E e isso me~mo 0 que v~mos ver. ~allii urn dialogo cuja dimensao conjunta do tragI co e do bufao merecenaque fizessemos juntos sua leitura, pois na verdade e uma cena que merece,na literatura universal, ser guardada como bastante unica, nesse genero,() maximo do maximo, e as peripecias mereceriam tambem que nosdctivessemos, se somente tivessemos que fazer aqui uma analise Iiteraria.Infelizmente e precise que eu ande urn pouco mais depressa do quedcsejaria se devesse faze-Ios saborear todos os meandros.

Seja como for, e muito bonito ver, num desses desvios, 0 filhoIIdjurar 0 pai a dar-Ihe esses famosos vinte mil francos, que ele sabe - e'om razao,ja que todo 0 neg6cio foi tram ado por Turelure ha m.uito tempopor intermedio de Sichel - que este tem no bolso, que os deIXe, que osccda para permitir-Ihe nlio apenas cumprir seus compromissos, nlio apenas"agar uma divida sagrada, nlio apenas evitar perder 0 que possui - ele,o filho - mas tambem nlio se ver reduzido a nao ser mais que urn servolIiIpropria terra onde investiu toda a sua paixlio, pois essa terra, proxima1\ Argelia, queestli em questiio, e ali que Louis de CoUfontaine foi buscaro rebento - no sentido de algo que germinou e estli brotando, no sentidodo broto - 0 broto de seu ser, de sua solidao, desse abandono em ques(~mpre se sentiu, ele que sabe que sua mae nao 0 quis, que seu paijamais,diz ele, 0 observou crescer senao com inquieta~lio.

E da paixao por uma terra, e do retorno para 0 lugar de onde se sente("xpulso, a saber, de todo recurso Ii natureza, e disso-que se trata. E, na

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v~rd,a~e, ai es~a urn tema que valeria bem ser considerado na genesehls~onca daqUllo a que se chama 0 colonialismo, e que e 0 de umaemlgra~ao que nao somente invadiu os paises colonizados mas tambemdesbravou terras virgens. a recurso dado a todos os filhos perdidos dacultura crista bem valeria ser isolado como urn recurso etico, que estar{a-mos errados em negligenciar no momenta em que se medem suas conse-qiiencias.

E, pois, no momenta em que esse Louis se ve no ponto culminanteda prova de for~a entre seu pai e ele, que ele sac a as pistolas, com as quaissua mao foi armada por Lurnir.. Essas pistolas sao duas. Pe~o a voces que se detenham ai por urnl~stante. Esse e 0 artiffcio dramaturgico, propriamente fa lando, e a astu-c~a,.o refiname~to. Ele foi armado com duas pistolas - duas pistolas,duel logo a voces, que nao vao disparar, embora estejam carregadas.

E 0 contrario do que acontece numa passagem celebre do SapeurCamembert. Dli-se ao sol dado Bidou urna carta para 0 general. Olhe dizele, esta carta nao est:i carregada,I6 nao que 0 general nao tenha os m;iosmas nao est:i carregada. Pois bern, isso nao vai impedi-Io de partir ass~m~smo. Ali e 0 contrario. Apesar de estarem carregadas, as duas, peloscUldados de Lurnir, as pistolas nao disparam. E isso nao impede 0 pai demorrer. Ele morre de medo, 0 pobre homem, e e isso, exatamente, 0 quese esperav.a desde sempre, }a que foi expressamente dessa maneira queL~m1f havla entregue a ~ws de CoUfontaine uma das pistolas, a pequena,d!zendo-Ihe - Esta aqw est:i carregada, mas de festim, farli barulho,slmplesmente, e e possivel que isso baste para que 0 outro pife. Se issonao bas tar, enta~ voce se servini da grande, que tem uma bala.

Louis foi criado no contexto de uma terra que se desbrava mas naose adquire, isso e muito bem indicado no texto, sem algumas ma~obras dedespossessao urn pouco rudes, e certamente, no segundo tiro, nao se devete~er. que a mao ~quele que vai apertar 0 gatilho trema mais que nopn.melro. Como dua mais tarde Louis de Coufontaine, ele nao gosta deadlamentos. Nao e de boa vontade que chegara a fazer isso, mas, ja quese chegou a este ponto, diz ete, as duas pistolas serao disparadas ao mesmotempo.

Ora, como Ihes disse, carregadas ou nao, tanto uma como a outranenhuma ~ispara. So h:i barulho, mas esse barulho e bastante, e, com~descreve hndamente a indica~ao do cenario no texto, 0 velho fica com osolhos arregalados, 0 maxilar caido. Falamos, da ultima vez de urn certoesgar da vida, aqui 0 esgar da morte nao e elegante. E pode~ crer 0 casoest:i liquid ado. "

Eu Ihes disse, e voces estao vendo, todos os requintes quanto adimensiio imaginaria do pai sao aqui muito bem articulados. Mesmo naordem da eficacia 0 imaginano pode bas tar, isso nos e demonstrado pela

"W""'!""'lun':'f!~ .• "\ ., I.

A ABJE<;AO DE TURELURE

imagem. Mas para que as coisas fiquem ainda melhores a tal de Lurnirfaz, neste mO]Dento preciso, sua nova entrada. _

Decerto, 0 rapaz nao est:i absolutamente calmo. Ele nao te~ qu~l-quer especie de duvida quanto a ser mesmo parricida, porque, em pnmeuolugar, quis perfeitamente matar seu pai, e, em suma: 0 fez. as termos e 0

cstilo das declara~Oes conclusivas trocadas nesse Dlvel valem a pena quenos detenhamos, e pe~o-lhes que se remetam a des. Nao lhes falta .umacerta rudeza, de urn grande sabor. Pude observar qu~, para certos oU~ldos,c nao dos menores, e que nao deixam de ter ment?, tanto 1£ Pam durcomo i'Otage podem parecer pe~as urn pouco tedlOsas. Confe~so que,quanto a mim, nao acho de modo algum tediosos todos e~ses rodelOs. Issoe muito sombrio. a que nos desanima e que esse sombno e representadocxatamente ao mesmo tempo que urna especie de comico, sobre 0 qualdeve-se dizer que a qualidade pode parecer urn pouco acida. Mas nem porisso sao meritos menores.

A questao, ainda assim, e - Para onde querem. n.,?slevar? 0 que eque nos apaixona ali? Sei, e claro, que afinal a demoh~ao des~ fantoc~ede pai, massacrado no genero bufiio, nao e de natur~z~ a ~uscltar em nossentimentos bem nitidamente localizados nem locahzavels.

a que e mesmo assim muito bonito ever como termina esta cena,a saber, que Louis de CoUfa'ntaine diz - Stop, pare. Uma .vez ris~ado 0

ato, enquanto a m~a escamoteia a carteira do bo~so do pal, ele dlZ: Urnminuto urn detalhe permita-me verificar urna cOisa. Ele abre a pequenapistol a: remexe de;tro dela com as cois~s que se usavam ~a epoca paracarregar as armas, e ve que a pequena pIstola estava tamM"! carre gada,o que observa para a apaixonante pessoa q~e armo~ sua mao. Ela olhapara ele e nao tern outra resposta senao urn nso gentll.

Isso tamMm nao e de natureza a levantar para nos algum problema?a que quer dizer 0 poeta? Vamos sabe-Io, com certeza, no terceiro ato,quando veremos confessar-se a verdadeira natureza. desta Lu~ir. a fatode que esse desejo possa leva-la, a ela que se consldera destlna~, e demaneira certa, ao supremo sacriffcio, ao enforcamento, no qual val acabarcertamente e no qual a continua~ao da historia nos indica que ela acaba,com efeito' nao exclui que sua paixao pdo amante, aqude que e verda-deirament~ para ela seu amante, Louis de CoUfontaine, nao va a ponto dequerer para ele 0 rIm tragico, por exemplo, do cadaf~lso.

Essa temai.ica do amor ligado a morte, e, propnamente falando, doamante sacrificado, nos e Iiterariamente i1ustrada pelo que se encontra emo Vermelho e 0 Negro, no horizonte da historia dos dois La Mole, 0 LaMole decapitado, cuja cabe~a teria sido recolhida por ~ma .m?~her, ~Julien Sorel, do qual uma Senhorita de La Mole, esta lmagmana, Valigualmente reunir OS despojos e beijar a cabe~a cortada. A naturezaextrema do desejode Lumir e af exatamente 0 que convem guardar. E na

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via desse desejo, desse amor que nao visa mais nada senao consumar-senum. instante. extre~o, e em direr;ao a esse horizonte que Lumir convocaLows de CoufontalOe. Mas este, 0 parricida, reinvestido em sua heranr;apelo assassinato de seu pai, mas tambem entrado numa outra dimensaodiversa daquela que ate entao conhecia, vai se tomar a partir dai um outr~Turelure, um outro personagem sinistro, do qual Claudel nao nos poupanitampouco, na continuar;ao, a caricatura.

Prestem bem aten~ao ao fato de que ele se toma embaixador.Es~riam errados se acreditassem que todos esses refIexos fossem prodi-galizados por Claudel sem que se pudesse dize-Io interessado no fundode si mesmo~ em nao-se~-que ambivalencia. Louis recusa, porta~to, acom-panhar Lumlr, e, por nao acompanhar Lumir e que ele se casara com aamante de seu pai, Sichel.

Dispenso-~hes 0 final da per;a, como opera essa especie de reprise,essa transmutar;ao que 0 conduz nao apenas a esvaziar os bolsos do mortomas tambem a ocupar a sua cama. Trata-se de sombrias hist6rias dereconhe~imento de dividas, de ~oda uma transar;ao, de toda uma precaur;aoque 0 pat, sempre esperto, havla tomado antes de morrer para fazer comque aqueles que se ligassem a ele, e em especial se fosse Lumir naotiv.essem muito interesse em seu desaparecimento. Ele havia arranjado asCOlsas de modo a que seus bens fossem inscritos no livro de dividas deseu associado obscuro, Ali Habenichts, e parecessem ser devidos a este.Na medida em que Sichel transmite a Louis de CoUfontaine esse creditoe que ela adquire junto a ele um titulo verdadeiramente de abnegar;ao. Eleabnega, como dizia Paul Valery, seu titulo, ao casar-se com ela, e e nesteponto que termina a per;a - 0 noivado de Louis de Coftfontaine e de SichelHabenichts~ a filha do companheiro de usura de seu pal.

DepOls desse final, podemos nos interrogar ainda mais quanto aoque quer dizer 0 poeta e, precisamente, quanta ao ponto em que estli elemesmo, seu pensamento, quando fOlja 0 que se pode realmente chamarpropriamente falando, agora que a contei para voces como estou contando'esta .e~tranha comedia. Assim como existe, no comer;o da trilogia, um~o:age.dia que p~rfura ~ tela, que supera tudo em possibilidades, em exigen-Clas l~postas a heroma, no lugar ocupado, ao final, por sua imagem--tambem no final da segunda pe~a, no corar;ao da trilogia claude liana, s6podehaver a obscuridade total de uma derrisao radical.. Isso che~a a um ponto cujos ecos podem nos parecer muito antipa-

ucos, na medlda em que, por exemplo, a posi~ao judia, nao se saberealmente porque, encontra-se ali implicada. Pois acentuam-se ali ossentimentos de Sichel. Esta articula qual a sua posi~ao na vida. E precisoque avancemos sem mais relumncia neste elemento da tematica claude-lian~, e que eu saiba ninguem jamais, neste ponto, imputou a Claudelsentlmentos que pudessemos qualificar, sob qualquer titulo, de suspeitos.

Quero dizer que a grandeza, por ele mais que respeitad~, exaltada, daIInliga Lei, jama~s cessou de habitar em sua dramaturgla, os. menore~pcrsonagens que pudessem estar ligados a ela. E, para ele, todo Judeu estaligado a ela por essencia, mesmo que seja urn judeu a quem aconte.~a,quanto a esta antiga Lei, rejeitli-Ia, e dizer que e ao seu fim que ele aspua;/\ dire~ao tomada pelo judeu e a da partilha, por todos, deste algo que e() onico real, e que e 0 gozo. .

E mesmo esta, com efeito, a linguagem de Sichel, e e assim que elasc apresenta a nos antes do assassinato. Mais ainda depois, quando of~recen Louis de CoUfontaine 0 amor, do qual se revel a que ela sempre fOl por

dc animada.Nao sera este ainda um problema a mais a nos ser proposto nesse

l'stranho arranjo? Bern vejo que, tendo-me deixado levar a contar-Ihe ahist6ria central do Pain dur, e era realmente preciso que 0 fizesse, nadamais posso fazer hoje senao lhes propor 0 seguinte. Esta per;a ~ue talvezvolte a ser encenada, que foi encenada algumas vezes, da qual nao se podedizer que seja mal construida nem que nao nos atraia -; n~~ lhes p~receque, vendo-a encerrar-se depois daquela estranh~ penpecla, voces s~('ncontrariam ali diante de uma figura, como se dlZ uma figura de bale,diante de uma cifra que se prop5e essencialmente a voces sob uma fo~arcalmente inedita por sua opacidade? Eis urn cenario que somente atral 0

inleresse de voces no plano do mais total enigma.o tempo nao me permite de forma alguma nem mesmo abordar

nquilo que nos permitira resolve-Io. Mas compreendam que, se 0 propo-nho a voces ou se observo simplesmente que nao e possivel deixar derdatar uma ~onstru~ao semelhante, publicada em, nao vou dizer 0 sec~lo,mas no decenio da apari~ao de nosso pensamento do complexo de EdlPO,Icnho minhas razOes.

Compreendam por que eu 0 trago aqui, e aquilo que, com a solur;aoque penso trazer a esse enigma, justifica que eu 0 sustente por tanto tempo,dc uma maneira tao detalhada, diante da atenr;ao de voces.

Opal.o pai veio, no comer;o do pensamento analitico, sob uma forma da qualII comedia e feita exatamente para nos fazer realr;ar todos os caracteres('scandalosos, e essepensamento teve que articular, como na origem daki, urn drama, do qual basta que 0 vejam transportado para u.m .palco'ontemporaneo para medir, nao simplesmente 0 seu carater ~nmlOoso,llIas a possibilidade de decomposi~ao caricatural, ate mesmo abJe~, com~('u disse ha pouco. Se e assim, 0 problema e saber em que ISso fot

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?ec?s~itado P?r nosso objeto, que e realmente a unica coisa que nos~ustlflca, a nos, em nossa pesquisa. 0 que torn a necessario que estaImagem apare~a no horizonte da humanidade, senao a sua consubstan-cialidade com a valoriza~ao, a coloca~ao em obra da dimensao dodesejo?

Em ou~as palavras, designo para voces isso que tendemos a rejeitarde nosso hO~lzonte, cada vez mais, ate mesmo, paradoxalmente, a negarcada vez ,mal~ em nossa experiencia de analista - a saber, 0 lugar do paLE por que? Slmplesmente porque ela se apaga, na medida em que perde-mos 0 sentI?o e a d!re~ao d? desejo, em que nossa a~ao diante daquelesque se conflam a nos tendena a aplicar a este desejo urn suave cabrestoa minist~ar-Ihe nao-sei-que soporifero, a fazer uso de nao-sei-que maneir;de sugenr que 0 remetesse a necessidade. E e por isso mesmo que vemossempre mais, e cada vez mais, no fundo deste Outro que evocamos emnossos pacientes, a mae.

Ha alguma coisa que resiste, infelizmente, e que a esta mae chama-mos de castradora. E por que? Gra~as a que ela 0 e?

Nos 0 sahemos hem na experiencia, e e este, realmente, 0 cordaoque nos ~antem em contato com essa dimensao que nao se deve perder.E 0 s.egulllte - do ponto em que estamos, do ponto da perspectiva,reduZlda ao mesmo tempo, que e a nossa, a mae e tanto mais castradoraquanto nao esta ocupada em castrar 0 paL. Pe~o-Ihes que se remetam a sua experiencia c1inica. A mae ocupadallltegralmente em castrar 0 pai, isso existe, mas nao seria preciso fazeren~ar em fu~~ao a mae como castradora se nao houvesse 0 pai, quer 0veJamos ou nao, ou mesmo que nao tenha nada a castrar, se nao houvesseao menos a titulo de possibilidade, ainda que negligenciada ou ausente ;manuten~ao da dimensiio do pai, do drama do pai, desta fun~ao do pai :m~omo de que voces hem veem que se agita, por ora, aquilo que noslllteressa na posi~ao da transferencia.

S?bemos hem que nao podemos tampouco operar em nossa posi~aode .a~absta como operava Freud, que assumia na analise a posi~ao do pai.E e lSS0 que .nos espanta na sua maneira de intervir. E e por isso que naosab~mos malS onde nos meter - porque nao aprendemos a rearticular, apartIr dai, qua~ deve ser nossa posi~ao. 0 resultado e que passamosnosso tempo dlzendo a nossos pacientes - Voces estao nos tomandopor uma mae ma - 0 que nao e, tampouco, a posi~ao que devemosado tar.

o caminho no qual tento coloca-Ios, com a ajuda do drama claude-liano, ~ o. ~e _re~it~r, .no cora~ao do problema, a castra~ao. Pois acastr.a~ao e IdentIca aqudo a que chamarei a constitui~ao do sujeito dodeseJo como tal - nao do sujeito da necessidade, nao do sujeito frustradomas do sujeito do desejo. Como ja adiantei bastante a n~ao para voces:

/1 'astra~ao e identica aquele fen6meno que faz. com que 0 objeto ~e s~aI'II)(a,do desejo - ja que 0 desejo e falta - seJa, em nossa expenenCla,t1(~nticoao proprio instrumento do desejo, 0 falo.

o objeto de sua faha, do desejo - seja qual for, e mesmo num planoo\ltro que nao 0 genital - deve, para ser caracterizado como objeto dockscjo, e nao dessa ou daquela necessidade frustrada, advir ao mesmolllgar simb6lico que vem preencher 0 proprio instrumento do desejo, 0

1'1110 isto e este instrumento na medida em que e portado a fun~ao do, ,Hignificante.

E isso que lhes mostrarei, da proxima vez, ter sido articulado pelopoeta, por Claude!, seja 0 que for que ele tivesse, e ainda que e!e naoHlispeitasse absolutamente em que formula~ao sua criac;ao poderia urn diav ir a ser inscrita. Ela so se toma mais convincente, assim como e absolu-Inlllente convincente ver Freud enunciar antecipadamente em A Interpre-(luJio dos Sonhos as leis da metafora e da metonimia.

E por que esse instrumento e portado a fun~ao de significante?Justamente para preencher esse lugar de que acabo de falar, que e simbo-lieo. Que lugar e esse? Pois bern, e justamente 0 lugar do ponto mortoocupado pelo pai na medida em que ja morto. Quero dizer que, unicamentepdo fato de que 0 pai e aquele que articula a lei, a voz so pode enfraquecerIItras. Da mesma maneira, ou ele falta como presenc;a, ou, como presen~a,csta presente demais. Este e 0 ponto onde tudo 0 que se enuncia toma apassar por zero, entre 0 sim e 0 nao. Nao fui eu quem a inventou, essaIImbivalencia radical nem hem nem mal, para nao falar chines, ou entre 0IImor e 0 odio, entre a cumplicidade e a aliena~ao. Numa palavra, a lei,para se instaurar como lei, necessita como antecedente a morte daqueleque Ihe serve de suporte.

o fato de que se produza nesse nivel 0 fen6meno do desejo, naohasta simplesmente dize-Io. Devemos ainda representar essa hiancia ra-dical, e e por essa raziio que me esf?r~o ~or fomentar ?iante de ~_oc~sosesquemas topologicos que nos permItem lSS0. Com efelto, essa hiancla.sedcsenvolve, e 0 desejo acabado nao e simplesmente esse ponto, mas aqUlloque se pode chamar de urn conjunto no sujeito, do qual tento nao somenteilustrar a topologia num sentido para-espacial, mas tambem marcar oslempos. A explosiio ao fim da qual se realiza a configura~ao do desejo sedccomp6e em tres tempos, e voces podem ver isso marcado em gera~6es.E por essa raziio que nao ha necessidade, para situar a composi~ao dodcsejo num sujeito, de remontar, numa recorrencia perpetua, ate 0 paiAdiio. Tres gera~oes bastam.

Na primeira, a marca do significante. E aquilo que, na composic;aoc1audeliana e i1ustrado ao extremo, e tragicamente, pela imagem deSygne de Coufontaine, levada ate a destruic;ao de seu ser, por ter sidototalmente arrancada de todas as suas Iiga~6es de palavrae de fe.

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Segundo tempo. Mesmo no plano poetico, as coisas nao param napoesia. Mesmo nos personagens criados pela imagina~ao de Claudel, issoresulta no aparecimento de urn filho. Aqueles que falam e que siiomarcados pela fala engendram. futroduz-se, no intervalo, algo que einicialmente injans e este e Louis de CoUfontaine. Na segunda gera~ao, 0

objeto totalmente rejeitado, 0 objeto nao desejado, 0 objeto enquanto naodesejado.

Como se configura a nossos olhos, nesta cria~ao poitica, 0 que vairesultar disso na terceira gera~ao? - isto e, na unica verdadeira. Certa-mente, ela esta no nivel de todas as outras, mas quero dizer que as outrassao suas decomposi~6es artificiais, sao os antecedentes da tinica de quese trata.

Como 0 desejo se comp6e entre a marca do significante e a paixaodo objeto parcial?

Ai esta 0 que espero articular para voces da proxima vez.

XXI

o DESEJO DE PENSEE

o dizer-niio.o tragieo renasee ...... 0 desejo. 0 mito e a inoeeneia ...o Outro encarnado Nessa mulher.

Coi'ifontaine sou tua! Toma e faz de minI 0 que quiseres. _Que eu seja ~ma esposa, ou, ja para alem da vida, la onde 0 corpo nao serve

mais, . 117

Nossas ahnas, uma a outra, soldem-se sem qualquer mlstura.

Gostaria de indicae a voces 0 reaparecimento, ao I~ngo de todo 0

It'xlo da trilogia, de urn termo que e aquele em que s.e artI~ula 0 amor. An;sas palavras de Sygne, em [,Otage, logo Cofrfontallle val responder.

Sygne, encontrada por ultimo, nao me engane como 0 resto. Havera, entao,afinal, para mim,Algo meu de sOlido, fora de minha propria vontade?'8

Tudo esta ali com efeito. Este homem a quem tudo traiu, tudoIIhandonou, que lev~, como diz, esta vida de ~nimal acuado, ~e~ um es-I'IIIlderijo que seja segura, lembra-se do que dizem os monges llldlanos -

Que toda esta vida ma .E uma va aparencia, e so permanece conosco porque nos mOVlIDentamoscom elaEnos bastaria apenas sentarmos e assim ficarPara que ela passasse de nos.Mas essas sao tenta90es vis; eu, ao menos, nessa queda de tudo

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Continuo 0 mesmo, a honra e 0 dever 0 mesmo.Mas tu, S~g~e, pensa no que dizes. Nao vas falhar como 0 resto nesta horaem que atmJo 0 meu fim. 'Nao me enganes (...)19

Acessiveis, ao final, ate esse misterio que encerramos.Ha meio de sacar a alma do corpo, como uma espada, leal, cheia de honra,ha meio de se romper a parede.Ha meio de fazer um juramento e dar-se por inteiro a este outro, unico, queexiste.Apesar da horrivel noite e da chuva, apesar disso que e, em tome de n6s,o nada.Como bravos!De dar-se a si mesmo e de crer no outro, inteiramente!De se dar e de crer, num unico reliimpago!- Cada um de n6s pelo outro, e apenas iSSO!21

Tal e 0 inicio que da seu peso a tragedia. Sygne acaba traindo aquelemesmo ~om .quem ela se comprometeu de toda a sua alma. Reencontrare-mos ~als adlante 0 tema da troca de almas, concentrado num instante emLe Pam dur n? d~correr do dialogo entre Louis e Lumir - Loum-yir comoClaudeI nos mdlca express~mente que se deve pronunciar 0 nome dapolonesa -: quando,_ cometldo 0 parricidio, esta Ihe diz que nao vaiacompanha-Io, que nao voltara a Argelia com ele, mas convida-o a virconsumar com ela a aventura mortal que a aguarda. Louis acaba justa-mente, de sofrer. a metamorfose que nele se consuma no parric'idio erecusa. ~I~ tern al.nda, no entanto, urn movimento de oscilayao, durant~ 0

~ual se d~nge apal~~nadamente a Lumir, dizendo-Ihe que a ama como elae, que eXlste uma umca mulher para ele. Ao que a propria Lumir cativadapor este apelo da motte que da a significayao de seu desejo, Ihe re~ponde _

E verdade que existe uma sO para ti?A~, e.usei qu~ e verdade! Ah, dize 0 que quiseres!~a, amda asslm, em ti .al?o que me compreende e que e meu irmao!

ma_ru~tura,.uma lasSH:fao,um vazio que nao pode ser preenchidoTu nao es mals 0 mesmo que algum outro. Tu es unico .Para se - od . .. 'd~pre, nao p es mals cessar de ter feito 0 que fizeste (docemente)parrlci 10! ,Estamos s6s, os dois, neste horrivel deserto.Duas al~as humanas no nada, que sao capazes de se dar uma a outra.~' numb~ ~egundo, sem~lhante ao detonar de todo 0 tempo que se aniquila: su stltun todas as cotsas, um pelo outro! '

~a~ ~ bom estar sem.perspectiva alguma? Ah, se a vida fosse longa.adaenaa pena ser felIZ.Mas, ela e curta e existe meio de toma-Ia mai~curtaam .

Tao curta que a eternidade ai caiba!LOUIS: - Nada tenho que fazer da eternidade!LU~tR: - T~o curta que a eternidade ai caiba! Tao curta que ai caiba este~un 0 que nao queremos e esta felicidade que as pessoas acham tao1mportante!Ta? p~qu~na, tao estreita, tao estrita, tao reduzida que nada I' d .dots at calba!20 ' a em e nos

Tal e 0 desejo expresso por aquela que, depois do parricidio, e porI,ouis afastada de si, para casar-se, como e dito, com a amante de seu pai.AI cstli 0 ponto de virada da transformayao de Louis, e 0 que vai nosl'Onduzir, hoje, a nos interrogar quanta ao sentido do que vai nascer dele,II saber, esta figura feminina que, no inicio do terceiro termo da trilogia,responde a figura de Sygne-Pensee de Coufontaine.22

E em tome deIa que iremos nos interrogar quanto ao que quis dizerIIIClaudei.

E ela retoma, mais adiante _

~ euuserei a.patria entre teus bra~os, a Do~ura outrora abandonada a terrae r, a antlga. Consola~ao! '

EXlfi'steapenas tu comigo no mundo, existe apenas este momento unicoen 1m,em que nos veremos face a face! ' ,

St' C facil e habitual desembaracrar-se de toda fala que se articule fora dasvias da rotina, dizendo, Isto e do Fulano - e voces sabem que e comumdizc-Io a proposito de alguem que neste instante Ihes fala - parecequc ninguem chega mesmo a sonhar espantar-se a proposito do poeta.Contentam-se em aceitar sua singularidade. E, diante das estranhezaslit: urn teatro como 0 de Claudel, ninguem pensa mais em interrogar-sesobre as inverossimilhanyas e os caracteres de esciindalo aonde eIe nosIInasta, e sobre 0 que, afinal, poderia ser realmente sua vida e seudcsignio.

Pensee de CoUfontaine, na terceira peya, Le Pere humilie, 0 que querrIa dizer? Vamos nos interrogar sobre a significayao de Pensee de Cou-fontaine como sobre a de um personagem vivo. Trata-se do desejo dePcnsee de CoUfontaine, do desejo de Pensamento. E 0 desejo dePcnsamento, vamos encontrar nele, certamente, 0 proprio pensamentodo desejo.

Nao vao acreditar que isso seja interpretayao aleg6rica. Esses per-sonagens sao simbolos apenas na medida em que atuam no ceme daillcidencia do simbolico sobre uma pessoa. E a ambigilidade dos nomes,quc lhes sao peIo poeta conferidos, esta ai para nos indicar que e legitimointcrpretli-Ios como momentos da incidencia do simbolico sobre a propria·ame.

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Seria facH nos divertirmos lendo a propria ortografia dada porClaude! a ~ste nome tiio singular, Sygne. A palavra come~a por urn S, eel~ e~ta ah, realmente, c~mo urn convite a nele reconhecer urn signo.23~a, amda, essa mudan~a Imperceptivel, a substitui~ao do i pelo y, pode-rtamos reconhecer ilessa superimposi~ao da marca, por alguma coisa quev,e~ encontrar, por na?-sei-que convergencia, por uma geomancia caba-l~stl:a., nosso $ atraves do qual eu lhes mostrava que a imposi~ao doslgruflcante sobre 0 homem e ao mesmo tempo aquilo que 0 marca e queo desfigura.

Na outra extremidade, Pensee. Aqui, a palavra e deixada intacta epara ver 0 que significa dizer este Pensamento do desejo e realme~tenec~ssario que tornemos a partir do que significa, em l'Otage, a paixaosofnda por Sygne. .

~ ~rimeira pe~a d~ trilogia deixou-nos emocionados com esta figurada sacnf1Cada que faz smal de Niio, com a marca do significante levadaao s~u grau supremo, a recusa levada a uma posi~ao radical. E isso queprecIsamos sondar.

, Ao sondar essa posi~ao, se soubermos interroga-Ia, encontraremosal urn termo _que nos pertence, gra~as a nossa experiencia, no mais altog~a~. Se voces se .lembram do que lhes ensinei, em seu devido tempo, porvanas vezes, aqur e alhures, no semmario e na Sociedade, pedi a vocespar~ rever 0 uso que e feito hoje, em analise, do termo frustra~ao. Era paramcltar urn retorno ao que significa, no texto de Freud onde jamais este~ermo e empregado, a palavra original Versagung, na medida em que suaenfase pode ser colocada bem para aMm, e bem mais profundamente doque toda frustra~ao concebivel. '

Versa~~ng implic~ a fal~ a promessa, e a falta a uma promessa pelaqual a tudo Ja se renunclOu, al esta 0 valor exemplar do personagem e dodra~a de Sygne. a que the e demandado renunciar e aquilo a que eladedicou todas as suas for~as, a que ela ligou toda a sua vida, e que ja estavamarcado pelo signo do sacrificio. Essa dimensao no segundo grau, no maisprof undo da recusa pela opera~ao do verba, pode ser aberta a umar~alidade abissal. Eis 0 que esta colocado na origem da tragedia claude-liana, e nao podemos permanecer indiferentes a isso, nem considera-Ioco~~ 0 e~t,remo, 0 e~cessivo, 0 paradoxo, de uma especie de loucurareliglosa, Ja que, mUlto pelo contrario como YOUIhes mostrar e ali. " ,Jus~mente, onde nos situamos, nos, homens de nosso tempo, na propriamedIda em que essa loucura religiosa nos falta.

Observemos bem 0 que esta em questiio para Sygne de Coiifontaine.o q~e Ihe e imposto nao esi~plesmente da ordem da for~a e da obriga~ao.Impoe-se a ela que se engaJe, e livre mente, na lei do casamento, comaquele qu~ ela chama de filho de sua criada e do feiticeiro Quiriace. Aoque the e Impasto, nada pade estar llgado que nao seja maldito para ela.

,~im a Versagung, a recusa de que ela nao pode se de sligar, torna-seuqllilo que a estrptura do termo implica, versagen, a recusa referen~e aoII 10 c, se eu quisesse equivocar para encontrar a melhor tradu~ao, al'('I'diyao. Tudo aquilo que e condi~ao torna-se perdiyao. E e por isso que,III nao dizer torna-se 0 dizer-nao.

, Jli encontramos esse ponto extremo, mas 0 que eu quero mostrar avo 'cs e que, aqui, ele e ultrapassado. Nos 0 encontramos ao final ~a111I~Cdiaedipiana, no mefiinai do Edipo em Colona, esse pudesse eu nao

I'r, que quer dizer nao ser nascido. Le~b.ro isso a v?ces de passage~,I II 'ontramos ai 0 verdadeiro lugar do sUJetto na medIda em que ele e 0

IIjcito do inconsciente, a saber, 0 me, ou 0 nao muito particular do qualIIIll'nas apreendemos na linguagem os vestigios, no momenta de suaIIpllriyao paradoxal em termos como 0 receio que ele venha, ou antes que,'11' aparec;a,24onde ele parece, aos gramaticos, se~ urn ex~letivo, .q~ando(I !IIi, justamente, que se mostra aponta do deseJo - nao .0.sUJetto doI lIunciado, que e 0 eu, aquele que fala atualmente, mas 0 sUJeIto onde semigina a enuncia~ao. .

Me Junai, este nao seja eu, ou esse nao Josse eu para ficar malspr6ximo, esse nao estar alj25 que equivoca tiio curiosame?te em france~I'om 0 verbo do nascimento, eis onde ficamos com 0 EdIpO. Eo que edl'signado all, senao 0 fato de que, .mediante a imposiyao ao ~omem de11111 destino mediante a troca prescrtta pelas estruturas parentals, algumaI'oisa ali e ;ncoberta, que faz de sua entrada no mundo a entrada no jogoIIIplacavel da divida? Afinal de contas, e simplesmente pela cobranya que

1'(''cbe da divida do Ate que 0 precede, que ele e culpado.Aconteceu des de entiio, algo de diferente. a Verbo foi para nos

I'llcarnado. Ele ~eio ao mundo e, contra a palavra do Evangelho, nao evndade que nao 0 tenhamos reconhecido. Nos 0 reconhecemos, e vivemosdlls seqiiencias desse reconhecimento. Estamos num~ das. fases das coru:e-qiicncias desse reconhecimento. Ai esta 0 que que ~uena aruc~lar p~ra voces.

a Verbo nao e simplesmente para nos a leI onde nos InsertmOS paraportar, cada urn de nos, a carga da divida que, faz n?sso destino. ~Ie abrepllra nos a possibilidade, a tentayao de onde e posslvel nos maldIze~o.s,1Ii10 somente como destino particular, como vida, mas como 0 propnol'lIminho onde 0 Verbo nos conduz, e como encontro com a verdade, comohora da verdade. Nao estamos mais, apenas, passiveis de ser culpados peladlvida simbolica. E ter a divida ao nosso encargo que nos pode ser, noscntido mais proximo que essa palavra indica, censurado. Em ~uma, e ~pr6pria divida onde tinhamos nosso Iugar que nos ~de ser reurad~, ~ eIIIique podemos nos sentir nos mesmos tota~ente ahenados. Se~ duvIdao Ate antigo nos tomava culpados dessa dlvlda, mas ao renunclar a ela,\'OITIO podemos fazer agora, somos tornados por uma infelicidade aindalIIaior, a de que esse destino niio seja mais nada.

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, Em resumo, 0 que sabemos, por nossa experiencia de todos os dias,e que. a culpa que nos resta, aquela que palpamos no neurotico, deve serpaga Justamente pelo seguinte, que 0 Deus do destino esta morto. a fa tode que este Deus esteja morto esta no coras:ao daquilo que nos e apresen-tado em Claude!.

, a -?eus morto e aqui representado por esse padre proscrito, que naonos e malS apresentado senao sob a forma daquilo a que se chama 0 Refemqu~ da ~eu titu.lo a p~meira pes:a da trilogia. A figura daquilo que foi a ftantlga e, daqu~ ~o~ dlante, o.Refem nas maos da politica, presa daquelesque querem utlhza-Io para fms de restauras:ao.

Mas 0 aV,esso dt;ssa r~dus:ao do ~eus morto e que a alma fiel e quese toma 0 ~efem - 0 Refem dessa SltUas:ao, onde mais aJem do fim daverd?de cnstii, re~as~e propriamente 0 tragi co, a saber, que tudo seesqUlva a ela se 0 slgntficante pode ser cativo.

So pode ser refem, ce~tamente, aquela que cre, Sygne, e que, por~rer, deve te.stemunhar ~qutlo em que cre. E justamente por isso que elae presa, catlva. ~essa, sltuas:ao que basta forjar para que exista _ serchamada a sacnftcar a negas:ao daquilo em que cre.

Ela e mantida como refem na propria negas:ao, sofrida, daquilo que~la t.e~ de melhor. Algo nos e propos to que vai mais longe que a~fel~c~dade de Jo e s~a resignas:ao. A Jo esta reservado todo 0 peso dam~el.lcldade q~e ele nao mereceu, mas a heroina da tragedia modema eeXlgldo as~unur c?mo urn gozo a propria injustis:a que lhe causa horror.

Tal e 0 que maugura como possibilidade, diante do ser que fala, 0

fato de ser 0 suporte do Verbo no momento em que Ihe e pedido, quantoa este Verbo, que;:ele 0 garanta.

a ho~em se to~ou 0 Refem do Verbo porque disse a si, ou tambemP?!a ~ue dissesse a Sl, que Deus esta morto. Neste momento abre-se essahi~nc~a onde nada mais pode ser articulado senao 0 que e somente 0

propr~o comes:? do niio /osse eu, que niio poderia ser mais que uma recusa,u~ nao, e~s~ ttque, esse esgar, em suma, essa curvatura do corpo, essap.SIC?SSomattca, que e 0 termo onde temos que encontrar a marca doslgntficante.

a drama, tal como prossegue atraves dos tres tempos da tragedia esaber como~ dessa posis:ao radical, pode renascer urn desejo, e qua!. '

• E a9Ul que somos levados ao outro extremo da trilogia, a Pensee deCoufontame.

Basta ler Le Pere humilie - 0 que ha de mais repulsivo que essaII ~11()ria?Que pao, mais duro poderia nos ser oferecido alem daquele? -" ll'nma desse pai promovido como uma figura de velhot~ ?~sceno, e doqlllli so 0 assassinato, diante d~ nos fig~rado, a~re a ~osslblhdad~ de verl't1111inuar aquilo que se transmlte a LoUls d~ Coufontame, e que n~o passadt' lima figura, a mais degradada' a malS degenerada, do ~al. B.as_ta(1I1cnder aquilo que a cada urn de nos pOde ser sensivel, a mgratldiio,\'pl'csentada pelo aparecimento, numa festa notuma em Roma, no comes:odo Pere humilie, da figura de Pensee de Cofifontaine, para compreenderqlle cia nos e apresentada all como urn objeto de sedus:iio.

E por que? E como? a que equilibra ela? a que ela compensa?Igllma coisa recaira sobre ela do sacrificio de Syg~e? Numa palavra,

II I:m nome do sacrificio de sua avo que ela val merecer algumat'onsideras:iio? . ,

Faz-se alusiio a isso em urn momento, no dlalogo entre 0 Papa e osdois homens que viio representar para ela a abordagem ~o a~or: ~az-se"llIsao aquela velha tradis:iio.de famili~,.c?mo a uma a.ntlga hl~tona ~ue~l' eonta. E na boca do propno Papa, dmgmdo-se a Onan que e 0 obJetodl'sse amor, que aparece ness~ s~ntido 0 termo superstis:ao - Ter:>;ne~o,{('stapobre mOfa? Viisuperstlfao! Ergue osolhos! Eleva 0 corafao. ValS'l'dcr meu filho a essa superstis:iio? Pensee ira representar algo comolima flgura exem~lar, urn recOIihecimento da fe por um instante ecllpsada?Muito longe disso. .. .

Pensee e livre pensadora, se podemos expnnur asslm, por urn termoque nao e aqui 0 termo claudeliano. ~~s e disso re~lmente que s~ tr~ta.I'cnsee e animada apenas por uma palXao, aquela, dlZ ela, de uma Justlyaq lie vai alem de todas as exigencia~ da. propri.a beleza. a que ela qu~r ~ ajmitis:a, e nao uma qualquer, nao a Justls:a a~tl~a~ aquela .de ~Igum dueltolIaLural a uma distribuis:iio, nem a uma retrlbUls:aO - a J~tls:a de qu~ seIraLae uma justis:a absoluta. E a justis:a que anima 0 movlmento, 0 rul~O,o andamento daquela Revolus:iio que faz 0 ruido de fundo do terce~rodrama. Essa justis:a e 0 avesso de tudo aquilo que, do re~I,. de ~udo aq~t1oque, da vida, e, gras:as ao Verbo, ~ent~do como ofens a a Justlya, sentldo'omo horror da justis:a. E de uma Justls:a absoluta em todo seu poder de

abalar 0 mundo que se trata no discurso de Pensee ~e Cou~on~ine.Voces estiio venda isso e exatamente a COlsa malS dlstante da

pregas:ao que poderiamos ~sperar de Clau~e1, homem de fe. E e justamenteisso 0 que vai nos permitir dar sentido a flgura para a qual converge todo() drama do Pere humilie.

Para compreende-Io, e preciso que nos detenhamos por urn instante110 que Claude! faz de Pensee de CoUfontaine, representada como frut? docasamento de Louis de Cofifontaine com aquela que, em.~uma, seu pallhedeu por mulher, pelo simples fato de que aquela mulher Ja era sua mulher.

~ense~ de CoUfontaine e uma figura incontestavelmente sedutora, que nose mamfestame.nt.e proposta, a nos, espectadores - que espectadores,vamos tentar dlze-Io - como 0 objeto do desejo, falando propriamente.

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Ponto extremo, paradoxa I, carlcatural do complexo de Edipo. Tal e 0ponto limite do mito freudiano que nos e propos to - 0 velhote obscenoforrya seus fiIhos a se casarem com suas mulheres e isso na proprla medidaem que quer roubar as deles. Outra maneira mais exagerada, e aqui maisexpressiva, de acentuar 0 que aparece no mito freudiano. Isso nao da umpai de melhor qualidade, isso da um outro canalha.

E exatamente assim que Louis de CoUfontaine nos e representadoao longo de todo 0 drama. Ele se casa com aquela que 0 quer, a ele, comoobjeto de seu gozo. Casa-se com aquela figura singular da mulher,Sichel, que rejeita todos os encargos da lei e principalmente da sua, daantiga Lei, 0 estatuto da esposa santa figura da mulher, na medida emque e a da paciencia. Ela e, enfim, quem revela sua vontade de estreitaro mundo.

o que vai nascer dai? 0 que vai nascer dai e, singularmente, 0

renascimento daquilo mesmo que 0 drama do Pain dur nos mostrou queestava afastado, a saber, esse mesmo desejo, em seu absoluto, que erarepresentado pel a figura de Lumir.

Lumir, nome singular. Precisamos nos deter no fato de que Claudelnos indica, numa pequena nota, que se deve pronuncia-Io Loum-yir.Deve-se referi-Io ao que Claude I nos diz das fantasias do velho Turelure,de dar sempre a cada nome uma pequena modificaryao derrisorla, que elechame Rachel de Sichel, 0 que significa em alemao, diz-nos 0 texto, afoice, e em especial aquela que e figurada, no ceu, pelo crescente da lua.Eco singular da figura que termina 0 Baaz enoormi, de Hugo. Claudel fazincessantemente 0 mesmo jogo de aiteraryao de nomes, como se ele mesmoassumisse aqui a funryao do velho Turelure. Lumir e 0 que reencontrare-mos mais tarde no dialogo entre 0 Papa e os dois personagens de Orso eOrlan, como a luz, a cruelluz.

Essa cruel luz nos iIumina quanto ao que representa a figura deOrlan, pois, por mais fie I que ele seja ao Papa, essa cruel luz em sua bocafaz sobressaltar esse Papa. A luz, diz-1he 0 Papa, nao e nada cruel.

Mas nao e absolutamente duvidoso que e Orlan quem tern razaoquando diz isso. 0 poeta esUi com ele. Ora, aquela que vira encamar a luzbuscada obscuramente, sem 0 saber, por sua propria mae, a luz buscadaatraves de uma paciencia, pronta a tudo servir e a tudo aceitar, e Pensee.Pensee, sua fiIha. Pensee que vai se tomar 0 objeto encamado do desejodaquela luz. E este pensamento em came e osso, esse Pensamento vivo,o poeta so pode imagina-Io cego, e represenUi-Io para nos como tal.

Creio dever parar aqui urn instante. 0 que pode querer 0 poeta comesta encamaryao do objeto? - do objeto parcial, do objeto na medida emque e 0 ressurgimento e 0 efeito da constelaryao parental. Vma cega. Essacega vai ser exposta diante de nossos olhos ao longo de toda essa terceiraperya, e da maneira mais comovente.

Ela aparece no baile de mascaras, onde se representa 0 fim de ~Iliomento daqueJa Roma que esta as vesperas de sua tomada pelos gan-I ! (' '" tambem uma espe'cie de fim que se celebra nessa festa, 0 ~e

\11 ( mos. r. I - . d er no d1a\1111 nobre pol ones que, levado ao cabo de sua so venc~a, eve ~' b eq~uinte, os oficiais de justirya entrarem em sua prop;edade. f s~;an~u~

po!ones esUi aqui para nos recordar, sob a forma e uma 19('lImafeu, uma pessoa de quem se ouviu falar tantas vez~s, ; (ue morre.udr modo muito triste. Faryamos uma cruz sobre eIa. Nao a emo~ m~lsdisso Todos os espectadores entendem bem que se trata da tal d~ um~r.JI'I:I~bem esse nobre, todo impregnado da nobreza e do roman~smo .a,;ol'dnia martir, e, ainda assim, aqueIe ~po.de nobre que parece, mexpIi-1'lIvelmente, ter sempre uma villa para hqUldar. , I

E nesse eontexto quevemos desfilar a cega Pensee, com? se e a'. clara~ente. Pois sua surpreendente sensibilidade the permlte, num

~::~:nte de visita preliminar, observar, por sua fina perce~ryao d\ec:~1~IIproximary6es e de movimentos, toda a estrutura de urn ugar, I a~para tal dar alguns passos. Se nos, espectadores, sabemos .~u~ e ad:~~~~~dllrante todo urn ato aqueles que estao com ela, os conV1 a ?S , ,I'rsta, poderao ignorar isso, e em especial aquele sobre 0 qual mC1dm seudl'scjo _

. Esse personagem, Orlan, vale uma palavra de a~res~ntaryao paraII( lIeles ue nao Ieram a perya. Orian, duplicado por seu lrmao Orso, leva

I qdeHomodarmes 26 bem claudeliano, por seu som e essa mesma() nome, . T t('onstruryao Iigeiramente deformada, .acentuada quanto ao slg~ 1can e ,~~rlima bizarrice que reencontramos em tantos persona~e~7 a trage !a·Iaudeliana. Lembrem-se de Sir Thomas Pollock Nageoue. Isz:: ~~: ~~honito quanta 0 que existe no texto sobre as armaduras emr(;alite de Andre Breton. _., born

Esses dois personagens, Orian e Orso, estao em Jogo._Orso eo,ma Pense'e On'an que nao e exatamente urn gemeo, que e 0rapaz que a ., . .. d' P

'. - a1'svelho e aquele sobre quem Pensee fez mC1du seu eseJo. orIImao m ,. . d' rdadeque sobre ele, senao por ser ele inacessiveI? P~lS, 'para 1zer a ve _ lh'para essa cega, 0 texto, 0 mito claudeliano nos md1ca que quase na~s~l( possivel distingui-Ios peia voz. A ponto de que no fi~ do .drama, Ui)odera dar a ela, por urn momento, a ilusa? de que eIe e On~n, que es:lIorto, E justamente porque ela ve outra C01saque a voz de Onan, mesmo( lIando e Orso quem fala, a faz desfalecer.I Mas vamos nos deter por um instante nessa mo?a cega. 0 que.eIa

. d1'zer? E para eonsiderar em primeiro lugar aqUIlo que ela proJetaqllcr ., " d figuradiante de nos nao parece ser eIa protegida por uma espec1e esU~Iime do p;dor? - que se ap6ia ~o.seguinte: por nao poder se ver, servista, ela parece estar ao abrigo do umco olbar que desvela.

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Nao acredito que seja excentrico referir-me aqui a dialetica que fizvoces escutarem, outrora, sobre 0 tema das pervers6es ditas exibicionistae voyeurista. Chamava a aten~ao de voces para 0 fato de que elas naopodiam ser apreendidas pela simples rela~ao entre aquele que ve e que semostra a urn parceiro simplesmente outro, objeto ou sujeito. 0 que est!em questao, tanto na fantasia do exibicionista como na do voyeur, e urnelemento terceiro, que implica que pode surgir no parceiro urna conscien-cia cumplice que recebe 0 que the e dado ver - que aquilo que 0 expandeem sua solidao, aparentemente inocente, se oferece a urn olhar oculto -que, assim, e 0 proprio desejo que sustenta sua fun~ao na fantasia, quevela para 0 sujeito seu papel no ato - que 0 exibicionista e 0 voyeurgozem, de alguma maneira, vendo e mostrando, mas sem saberem 0 queveem e 0 que mostram.

Quanto a Pensee, ei-Ia enta~, ela que nao pode ser surpreendida, seposso dizer, pelo fato de nao ser possivellhe mostrar nada que a submetaao pequeno outro, e tambem por nao se poder espili-Ia scm scr, comoActeon, acometido de cegueira, e come~ar a se dilacerar com as mordidasda matilha de seus proprios desejos.

Misterioso poder do dialogo entre Pensee e Orian - Orian que esimplesmente, com a diferen~a de urna letra apenas, 0 nome de urn dosca~adores que Diana metamorfoseou em constela~aO.28 Para ele, somente,a misteriosa confissao pela qual termina esse dialogo, Eu sou cega, tern afor~a de urn Eu te arno, por evitar toda consciencia no outro de que esteEu te amo seja dito, para ir diretamente se colocar nele como fala. Quempoderia dizer Eu sou cega, senao de onde a fala cria a noite? Quem,ouvindo isso, nao sentiria em si nascer essa profundeza da noite?

E ai que quero levar v'oces - a diferen~a que existe entre a rela~aocom 0 ver-se e a rela~ao com 0 ouvir-se. Ja se observou ha muito tempoque e caracteristico da fona~ao ressoar imediatamente no proprio ouvidodo sujeito a medida de sua emissao, mas nao na medida em que 0 outro aquem essa fala se dirige tenha 0 mesmo lugar nem a mesma estrutura queaquele do desvelamento visual. E justamente porque a fala nao suscita 0

ver,justamente porque ela e,por si mesma, enceguecimento.Verno-nos ser vistos, e por este motivo que nos furtamos a isso. Mas

nao se ouve ser ouvido. Isso quer dizer que nao ouvimos la onde se ouve,isto e, na cabe9a alheia, ou mais exatamente, existem com efeito aqueles.que se ouvem serem ouvidos, e SaD os loucos, os alucinados. Esta e aestrutura da alucina~ao. Eles so poderiam ouvir-se sendo ouvidos no lugardo Outro, la onde se escuta 0 Outro reenviar a sua propria mensagem sobsua forma invertida., 0 que quer dizer Claudel com Pensee cega e que basta que a alma,Ja que e daalma que se trata, feche os olhos ao mundo - e isso e indicadoatraves de todo 0 dialogo da terceira pe~a - para poder ser aquilo que

1/11ta ao mundo, e 0 objeto mais desejavel do mundo. Pensee, que nao podellIais acender a)ampada, atrai, se posso dizer, aspira para si 0 ser de Erosqllc e falta. 0 mito de Poros e Penia renasce aqui sob a forma da cegueiraI'~piritual, pois nos e dito que Pensee encama aqui a figura da propriaSinagoga, tal como e representada no pOrtico da catedral de Reims, deIllhos vendados.

Por outro lado, Orian, que est! diante dela, e justamente aquele cujot10m pode ser recebido, justamente porque ele e superabundiincia. OrianIt uma outra forma de recusa. Se ele nao da a Pensee seu amor e, diz ele,porque seus dons, ele os deve em outra parte, a todos, a obra divina. 0qlle ele desconhece e justamente que aquilo que the e demandado no amor,lIao e 0 seu poros, seu recurso, sua riqueza espiritual, sua superabundan-'ill, nem mesmo, como ele se exprime, sua alegria, mas e justamente 0

qllc ele nao tern. Ele e urn santo, decerto, mas e bastante surpreendentequc Claude I nos mostre aqui os limites da santidade.

E urn fato que 0 desejo e aqui mais forte que a propria santidade. E11m fato que Orian, 0 santo, curva-se e cede no dililogo com Pensee, perde/I partida, e, para chamar as coisas por seu nome, fode lindamente apcquena Pensee. _

E e isso 0 que ela quer. E ao longo de todo 0 drama, ela nao perdeuIllcio segundo, urn quarto de linha, para operar nesse sentido pelas viasque nao chamaremos as mais curtas, mas certamente as mais retas, as mais~cguras. Pensee de CoUfontaine e realmente 0 re~ascimento de t?das/lquelas fatalidades que come~am pelo estupro, contmuam com 0 traficokito com a honra, 0 casamento desigual, a abjura~ao, 0 luis-felipismo que

. 29 dal'lliio-sei-quem chamava de 0 segundo tempo-plOr, para renascer 1

'omo antes do pecado, como a inocencia, mas nao, no entanto, a natureza.E por isso que e importante ver com que cena culmina 0 drama.

E~ta cena e a ultima.Pcnsee se isola com sua mae, que estende sobre ela sua asa protetora,porque ficou gravida por obra do tal de Orian. E eis que ela recebe a visitado irmao, Orso, que vem aqui trazer a ultima mensagem daquele que1lI0rreu. A logica da pe~a, e a situa~ao anteriormente criada, preparam esta'cna, ja que todo esfor~o de Orian foi para fazer aceitar por Pensee, bem'Olno por Orso, uma enormidade - que eles se casem.

Orian 0 santo nao ve obstaculo a que seu born e bravo irmaozinhot'llcontre su~ felici~de. Isso esta no seu nivel. E urn bravo e urn corajoso.I( IIlem disso a declara~ao do rapaz nao deixa duvida alguma, ele e capazde assegurar 0 casamento com uma mulher que nao 0 ama. Sempre se dara

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urn jeito. Ele e urn corajoso, faz 0 que deve. Inicialmente, combatia naesquerda; disseram-lhe que estava enganado, combate a direta. Estavacom os garibaldinos, juntou-se aos zuavos do Papa. Ele est! sempre ali,pes firmes, bons olhos, e urn rapaz seguro.

Nao riam demais desse babaca, isso e uma armadilha. E vamos verdaqui a pouco por que, pois na verdade, em seu dialogo com Pensee, naopensaremos mais em rir.

o que e Pensee nessa cena? 0 objeto sublime, certamente. Oobjetosublime, na medida em que ja indicamos sua posi~ao no ana passado comosubstituto da Coisa. Voces ouviram, de pas sag em, que a natureza da Coisanao est! tao longe daquela da mulher - se nao fosse verdade que, comrela~ao a todas as maneiras que temos de nos aproximar dessa Coisa, amulher se veri fica ser ainda uma outra coisa. Digo qualquer mulher, e naverdade Claudel, como todos os outros, nao nos mostra que tenha de1auma ideia conclusiva, longe disso.

Essa heroina de Claudel, essa mulher que ele promove para nos, ea mulher de urn certo desejo.Assim mesmo, fa~amos-Ihe justi~a, em outraparte, em Partage de midi, Claude I nos fez uma mulher, Yse, que naoficou mal. Aquela ali se parece muito com 0 que e, a mulher.

Aqui, estamos em presen~a do objeto de urn desejo. E 0 que queromostrar a voces, e que est! inscrito em sua imagem, e que e urn desejoque nao tern mais, neste nivel de despojamento, que a castra~ao parasepara-Io, mas sepani-Io radicalmente, de qualquer desejo natural.

Na verdade, se voces olharem para 0 que acontece na cena, isso ebastante bonito, mas, para situa-Io exatamente, you pedir-Ihes que recor-dem 0 cilindro anamorfico que lhes apresentei aqui, 0 tubo colocado sobrea me~a, sobre 0 qual vinha se projetar uma figura de Rubens, a daCrucificafiio, pelo artificio de uma esptScie de desenho informe astucio-samente inscrito na base. Eu imagei assim, para voces, 0 mecanismo doreflexo da figura fascinante, da beleza erigida, tal como se projeta nolimite para nos impedir de ir mais longe no cora~ao da Coisa.

Se e verdade que aqui a figura de Pensee, e toda a linha desse drama,e feita para nos levar aquele limite urn pouco mais recuado, 0 que vemosnos, senao uma figura de mulher divinizada para ser ainda aqui a mulhercrucificada?

o gesto e indicado no texto, e volta com insistencia em outrostantos pontos da obra claudeliana, des de a princesa de Tete d'or ate apropria Sygne, ate Yse, ate a figura de Dona Prouheze. Essa figuracarrega em si 0 que? - uma crian~a, sem duvida, mas nao nosesque~amos do que nos e dito, e que pela primeira vez essa crian~aacaba, nela, de se animar, de se mexer, e esse momento e 0 momentoem que ela vem tomar em si a alma, como e1a diz, daquele que estamorto.

Como essa captura da alma nos e figurada? Pensee se fecha, se possodizer, com as abas de seu casaco sobre a corbelha de flores que havia sidol"nviada pelo i~ao Orso, aquelas flores que crescem nurn terreno do qual() dialogo vem nos revelar, detalhe macabro, que contem 0 cora~aocviscerado de seu amante, Orian. Ai est! aquilo cuja essencia simbolica,lIO se levantar, considera-se que ela tenha feito repassar para si. E estaalma que ela imp6e com a sua propria, diz ela, sobre os labios desse irmaoque acaba de comprometer-se com ela a fim de dar urn pai a urna crian~a,dizendo-Ihe ao mesmo tempo que jamais sera seu esposo.

Essatransmissao, essa realiza~ao singular da fusao das almas eaquela que as duas primeiras cita~6es que fiz para voces, no come~o dessediscurso, de l'Otage, por urn lado, do Pain dur, por outro, nos indicamcomo sendo a aspira~ao suprema do amor. E dessa fusao de almas que,em surna, Orso, de quem se sabe que irli juntar-se ao irmao na morte, e ali() portador design ado, 0 veiculo, 0 mensageiro.

o que quer dizer isso? Disse a voces ha pouco, esse pobre Orso quenos faz sorrir ate nessa fun~ao em que e1e se finda, de marido posti~o, nao1I0S enganemos, nao nos deixemos tomar por seu ridiculo. 0 lugar que eleocupa e 0 proprio lugar, afinal, em que nos mesmos somos chamados aser aqui cativados. E ao nosso desejo, e como a revela~ao de sua estrutura,que e proposta essa fantasia, que nos revela qual e 0 poder magnetico que1I0S atrai na mulher, e nao for~osamente, como diz 0 poeta, para cima -que essa potencia e terceira e que nao poderia ser nossa, senao represen-lando nossa perda.

Existe sempre no desejo algurna delicia da morte, mas de urna morteque nao podemos nos mesmos nos infligir. Reencontramos aqui os quatrotcrmos que sao representados, se posso dizer, em nos - os dois irmaos,{/e a' - nos, 0 suj eito, na medida em que nao compreendemos nada disso- e a figura do Outro encamada nessa mulher. Entre esses quatroelementos, todas as especies de variedades sao possiveis, da morte infli-gida, dentre as quais e possivel enumerar as formas mais perversas dodesejo.

Aqui est!, apenas, 0 caso mais etico que e realizado, na medida emque e 0 homem verdadeiro, 0 homem realizado, que se afirma e se mantemem sua virilidade, Orian, que paga por isso 0 pre~o de sua morte. Isso nosrecorda que e verdade. Esse pre~o, ele 0 paga sempre, e em todos os casos- mesmo se, de maneira mais custosa para sua humanidade do ponto devista moral, ele rebaixa esse pre~o no nivel do prazer.

Assim termina 0 projeto do poeta. Ele nos mostra, depois do dramados sujeitos como puras vitimas do logos, da linguagem, 0 que se toma 0

desejo. E para isso, 0 desejo nos e tornado visivel por ele na figura daIllulher, desse terrivel sujeito que e Pensee de CoUfontaine.

Ela merece seu nome, Pensamento, e1a e pensamento sobre 0 desejo.

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a amor do outro, esse amor que ela exprime, esta all mesmo onde,fixando-se, ela se toma 0 objeto do desejo.

Tal e a topologia onde se conclui 0 longo encaminhamento datragedia.

Como todo processo, como todo progresso da articula~ao humana,e so depois, apenas, que se percebe aquilo que, por llnhas tra~adas nopassado tradicional, 0 anuncia, converge com, e urn dia aparece. Ao tangode toda a tragedia de Euripides encontramos, como uma espicie de pontofraco, como uma ferida que 0 exaspera, a rela~ao com 0 desejo, e maisespecialmente, com 0 desejo da mulher. Aquilo a que se chama a misogi-nia de Euripides, e que e uma espicie de aberrayao, de loucura, que pareceatingir toda a sua poesia, sO podemos capta-Ia a partir daquilo que ela setomou, por se ter elaborado atraves da sublima~ao da tradi~ao crista.

Esses pontos de esquartejamento de termos cujo cruzamento tomanecessarios os efeitos com os quais nos, analistas, nos defrontamos,aqueles da neurose na medida em que, no pensamento freudiano, eles seafirmam como mais originais que aque!es da justa medida, que os danonnal, - e necessario que 0 toquemos, que os exploremos, que conhe-~amos seus extremos, se quisennos que nossa a~ao se situe e se oriente,que ela nao seja cativa da miragem, sempre ao nosso alcance, do hem daajuda mutua, mas responda ao que pode existir all, mesmo sob as fonnasmais obscuras, e que exige ser revelado, no outro que acompanhamos natransferencia.

Os extremos me tocam,· dizia nao-sei-mais quem. E preciso, aomenos por um instante, que os toquemos, para poder - e e este 0 meufrm - observar exatamente qual deve ser nosso lugar no momenta emque 0 sujeito esta no unico caminho a que deviamos conduzi-lo, aqueleonde ele deve articular seu desejo.

xxnDECOMPOSI(;AO ESTRUTURAL

o analista, objeto ou sujeito.A analise estruturalista do mito.A Versagung original. .o sujeito trocado por seu deseJo.

a que vamos, entao, fazer com Claude!, num ano em que 0 ~mpo j~:ea~nos e mais amplo 0 bastante para fonnular 0 que temos a zer so

transferencia? - d ta ayaoSob alguns aspectos, nossas declarayoes pode.m ar es se?S1 .

, . do que voces Tudo aqul 0 queAo menos para alguem menos aVlsa '. I d 0. ' entanto um eixo comum, que penso ter arucu a 0

dlssemos tern, no A' b' d e este e 0 essencial de meubastante para que voces tenharn perce 1 0 qu Ii 'ta 10 para vocesobjetivo este ano. Para designa-Io, vou tentar exp Cl -assim.

Falou-se muito da transferencia desde que a analise e~~~~:a~~~~I~i::ainda ho' e Isso nao e simplesmente uma esperanya eo .

::'!~:n=~~=:::~:c=:;,~ca~'::::;~~oaa':'.7q~:~"::=:o que ve~ a ser. a que ddes~~:~I:C~:i:te ~::;;: a~:e:o:s::,;~~:s~tern um elXO que se po e~' A'

d implicados na transferencla? .erar comlo . questa-o na-0 significa que consideremos resolvldo

Des ocar asslm a . d 1o problema de saber 0 que e a transferencia. Mas consldero este es oca-

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mento necessario, se quisennos apreender em fun~ao do que se produzi-ram as divergencias muito sensiveis, e mesmo as diferen~as muito pro-fundas de pontos de vista que se manifestam a este respeito na comunidadeanalitica, nao somente hoje, mas ao Ion go das etapas hist6ricas da analise.POOeremos igualmente conceher dessa maneira em que cada urn dessespontos de vista sobre a transferencia tem a sua verdade, e utilizavel - 0

que temos como certo., ~ que_stii? que co loco, portanto, e a da nossa participa~ao na trans-

ferencla. Nao e a da contra-transferencia. Fez-se dessa rubrica um vastodepOsito de experiencias~ comportando, ao que parece, quase tudo 0 quesomos capazes de expenmentar em nosso oficio. Fez-se, assim, entrartodas as esptScies de impurezas na situa~ao, pois esta bem claro que somoshomem, e como tal afetado de mil maneiras pela presen~a do doente, etomou-se realmente esta n~ao doravante inutilizavel. Se colocassemossob 0 regis,tro .assim .d~finido da contra-transferencia nossa participa~aona transferencla, se flzessemos tambtSm entrar ali a casuistica, 0 problemado que se trata de fazer em cada caso definido por suas coordenadasparticulares, isso seria realmente tomar impossivel tOOoquestionamento.

A <?oloco, portanto, a questiio da participa~ao que e a nossa na trans-f~rencla, ~ pergunto - como concel,e-la? Esta e a via que nos permitesltuar aqUllo que estli no cora~ao do fenomeno da transferencia no sujeitoa saber, 0 analista. '

Ja existe alguma coisa, sem dlivida, que e sugerida por essa aborda-g~m. da questiio. A necessidade em que estamos de responder a trans fe-renCla concerne ao nosso ser, ou trata-se simplesmente de deftnir umaconduta a ser mantida, UlDhandling de alguma coisa que nos e exterior,um .MW to, urn com? fazer? Se voces me ouvem hli anos, nao podemduvldar da resposta Implicada por aquilo em, cuja dire~ao os conduzo- 0 que esta em questiio na nossa implica~ao na transferencia e daordem daquiloque acabo de designar dizendo que isso concerne aonosso ser.

Isso e, aflOal, tiio evidente que mesmo 0 que me pOOe ser 0 maisoposto na anali~e, quero dizer 0 que e menos articulado daquilo que serevela das manelfas de se abordar a situa~ao analitica, tanto em seu inicioquanta no seu nm, e aquilo peIo qual posso ter 0 maximo de aversiio -pois hem., e a~da assim por c:ste.aspecto que se tern ouvido urn dia proferira propOsllo, DaOda ~nsferencla, mas da a~ao do analista, que 0 analistaage me~os peIo que diz e peIo que faz do que peIo que e.

~ao se ~nganem, esta especie de observa~ao maci~a me parece 0

9ue ha de mats ch~ante, na medida, precisamente, em que diz algo dejusto, e em que 0 dlZ de uma fonna que fecha imediatamente a porta. Elae bem apropriada precisamente para me encolerizar. a que e 0 analistaessa e realmente, desde 0 inicio, tOOaa questiio. '

Quando se define objetivamente a situa~ao analitica, existe um da?oque e 0 seguil)te - 0 analista desempenha seu pape! transfe~en~lalprecisamente na medida em que ele e, para 0 doente, aqUllo que .na? e noplano do que se pode chamar de a realidade. Isso e 0 que nos perrntte julgar()grande desvio da transferencia, fazer perceber ao d~~te a que ~nto eleestli longe do real, devido ao que ele produz de fictlClO com a ajuda da

Iransferencia.E no entanto, e certo que existe algo de verdade na id6ia de ~ue 0

analista intervem por alguma coisa que 6 da ordem de seu ser. Isso.: tU?Oo que hli de mais provavel. E, em primeiro lugar, urn fato de expen:ncla.Por que haveria necessidade de uma reg~lagem, de uma cor:e~ao, daposi~ao subjetiva do analista, de urn ngor na sua forma~ao, ~n~elentamos faze-Io descer ou subir, se nao para que algo na sua pOSl~aoseja convocado a funcionar de maneira eficaz, numa r~la~ao_ que .naopode de modo algum se esgotar inteiramente numa maDlpula~ao, alOda

que reciproca?Da mesma forma tudo 0 que se desenvolveu depois de Freud com

referencia a impottinci~ da transferencia p6e emjogo 0 analista como umexistente. Podem-se mesmo dividir as articula~Oes propostas ~a trans fe-rcncia de uma maneira bastante clara, que, sem esgotar ~ questao? rec?~rebem 0 panorama. Essas duas tendencias, como se ?iz, da pSl~anahsemoderna, ja dei sellS eponimos, sem pr~tender exaun-Ios, mas slmples-mente para demarca-los - Melanie KlelO, por urn lado, Anna Freud por

outro. l'A tendcncia Melanie Klein acentua a fun~~o de obje~o do ana.lsta

na rela~ao transferencial. Voces podem mesmo dizer, se qUlserem, alO~aque este nao fosse, certamente, 0 principio da sua po~i~ao, que e ~elaDleKlein a mais neI ao pensamento e a tradi~ao freudlanos, e q~e e nessamedida que ela foi levada a articular a rela~ao transferenclal nesses

terrnos. . liExplico-me. Se Melanie Klein foi levada a fazer !unclOnar 0 ana s-

ta, a presen~a analitica no analista, a inten~ao do anahsta, co~o b0n,t .oumau objeto para 0 sujeito, e na medida em que ela pe~sa ~ rela~ao anahucacomo dominada desde as primeiras palavras, os pnmelfos passos, pelasfantasias inconscientes. Temos a yer com isso de imediato, e podemos,nao digo que devemos, interpretli-las desde ~Aini~io. , . .

Nao digo que seja essa uma consequencl.a necessana. Acr:dlto,mesmo, que esta seja uma conseqiiencia n~cessana apenas ~m fun~ao ~sfalhas do pensamento kleiniano, e na medlda em qu~ a fun~a~ da fan,tasla,ainda que percebida de forma muito pregnante, fOl.por e~a lOsuficlente-mente articulada, 0 que e a grande falha de sua arucula~a~. Mesmo emseus melhores ac6litos ou discipulos, que certament~ por mats de u~a vezesfor~aram-se para isso, a teoria da fantasia nunca fOlrealmente reahzada.

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Existem ai, entretanto, muitos elementos extremamente utilizaveis.Por exemplo, a fun~ao primordial da simboliza~ao foi ali articulada eacentuada de urna maneira que, sob certos aspectos, chega a ser muitosatisfat6ria. De fato, a chave da corre~ao necessitada pela teoria kleinianada fantasia esta por inteiro no simbolo que dou a voces da fantasia, ($ 0 a),que se pode ler S barrado desejo de a.

0$, trata-se de saber 0 que e isso. Nao e simplesmente 0 correlativonoetico do objeto. 0 '$ esta na fantasia. A nao ser dando a volta e que osfa~o refazer de mil maneiras diferentes, nao e facH abordar a experienciada fantasia. IInos meandros exigidos pela abordagem dessa experienciaque voces compreenderao melhor, se ja acreditaram eritrever algo, ousimplesmente compreenderao, se Ihes pareceu, ate aqui, obscuro, aquiloque tento promover com essa formaliza~ao.

Mas prossigamos. A outra vertente da teoria da transferencia acen-tua 0 seguinte, que nao e menos irredutivel, e tambem mais evidentementeverdadeiro: que 0 analista esta implicado na transferencia como sujeito.Nessa vertente, que isolei com 0 nome de Anna Freud, que nao a design amal, com efeito, mas nao e a Iinica, a enfase e dada Ii alian~a terapeutica.Existe urna verdadeira coerencia intema entre esta enfase e aquela que esua correlata, a saber, a enfase nos poderes do ego.

Esses poderes, nao se trata simplesmente de reconhece-los objeti-vamente, trata-se de saber qual e 0 lugar a lhes dar na terapeutica. E ai, 0que dizem a voces? Que em toda a primeira parte do tratamento nao setrata de pOr em jogo 0 plano do inconsciente, que voces s6 tern, no inicio,a defesa, e isso durante um born tempo. II 0 minimo que poderao Ihesdizer. Certamente, isso e nuanyado na pratica, mais do que naquilo que sedoutrina, e deve se adivinhar atraves da teoria.

Nao e a mesma coisa colocar em primeiro plano, 0 que e legitimo,a importfulcia das defesas, e teorizar as coisas ate fazer do pr6prio egouma especie de massa de inercia. A caracteristica da escola de Hartmanne dos outros e, ate mesmo, de conceber'0 ego como comportando elemen-tos irredutiveis, ininterpretaveis, no fIm das contas. E a isso que eleschegam, as coisas estiio claras. Nao os fayo dizer 0 que eles<nao dizem,eles 0 dizem.

o passo seguinte e dizer que, aflnal, tudo esta muito bem assim eque deveriamos mesmo tomar ainda mais irredutivel esse ego.

Este e urn modo concebivel de conduzir a analise. Nao estou abso-lutamente, nesse momento, dando a isso urna conotayao de julgamento derejeiyao. II assim. Mas 0 que se pode, no entanto, observar, e que,comparada Ii outra vertente, nao parece que seja este lado 0 mais freudia-no, e 0 minimo que se pode dizer.

Mas n6s temos outra coisa a fazer, nao e mesmo?, em nossa discus-san deste ano, ao inves de voltar a essa conota~ao de excentricidade Ii qual

DECOMPOSI<;AO ESTRUTURAL

. " rimeiros anos de nosso ensinamento. P6de-demos tanta unpor~cla ~os PI" quando eu lhes asseguro que issose ver ali algU1l}amtenyao po eml~a, 0 que esta em questiio e mudar 0csta bem longe de meu pensamen o.

nivel ~s ~c~:~:i:~a~o~:;:~~~~~ente iguais hoje em dia. Nalepoc:,. . unidade analitica, urn valor rea men e

csses desvlos assurnlam, na co~ entimento que existia das quest6es.fascinante~ que ~hegava a :vazw.r 0 ~ perspectiva resgatada urna certaDes~e e~tao, fOl restaura .urna c~:n sim lesme~te, a restaurayao dainsplrayao, grayas ao que e tamb , P da uilo ue serviu paralingua analitica, quero dizer, da sua estr~tura~ h~'e e ~ferente. 0 fatofaze-la surgir inicialmente em Freud. A s~tuaya.o J perdidos

I dem aqm senttr-se urn poucode que mesmo aque es que po . .rio iamos a todo vapor paradevido a que num ce.rto ponto de meu se~: qu~ isso tern a mais estreitaClaude! tenham aSSlm mesmo a sensay . . ue al umarelayao ~om a que~t~o da iransferenc~a 1:oJ.:a::i~~~~:s~i~~d~ de i:Sistircoisa mudou 0 suflclente para que nao "quanto ao lado negativo de tal ~u qual ~n:~:~~~eressam mas os lados

Nao sao os lad os negauvos qu ' depositivos, aqueles que_podem nos servir, no ponto em que estamos,elementos de construyao.

Gostaria, agora, de chamar a atenyao de voces para a funyao do mho na

analise. d enta-o nos servir aquilo a que chamarei, com urnPara que po e, , .

termo conciso, a m~tol~g~:~I~~:~li;n::grayadO, relendo esses dias urn

ne~6c7: q:ee;;:ai~~:a re~~~ eiU;u~~a~ ~;~~~~~i~~~~~~ aC~~~~:~~FOI no tempo em que eu ferenda sobre a neuroseCollege philosophiqu.e, e tratava-dse de u1'SmOa~~~o 0 mira do neur6tico,

b . da qual nao me recor 0 ma, - Eo seSSlva, _ _ . . tamos no corayao da questao. ucreio. Voces est~~ vendo que Jdaes t a funl'ao das estruturas miticasmostrava, a proposlto do homem os ra os, y

no det~=~i~~~a ~~ :~~~~~a~'texto, considerei a coisa como imposs~vel.tr nhamente eu 0 reli sem grande descontentam~n 0; e

Com 0 tempo, es a 'rtassem a cabel'a eu nao 0 tena dlto. rpresa de ver - se me co y , •

lIve a su . d P . humilhado. Devia haver razoes para lSSO.- que eu falava ah 0 al acento circunflexo queNao e, portanto, por ter encontrado 0 u comlhes falo dele.

Retomemos.

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DECOMPOSI<;t\O ESTRUTURAL

Este e urn jogo no qual se trata de detectar as regras que the diiorigor. E repar,em que nao hli outro rigor con~ebivel ale~ daquele que seinstaura justamente no jogo. Na fun~ao do mlto, em seu Jogo,.as tr~nsfor-ma~Oes se operam segundo certas re~ras, que .por esse mottvo tem. urnvalor revelador, criador de configura~oes supenores ou d~ ~asos paruc~-lares iluminadores. Em suma, demons tram a mesma ~spe~le de fe~undi-dade que as matematicas. E disso que se trata na eluclda~ao dos mIlos. Eisso nos interessa da maneira mais direta, ja que nao nos e ~ossivel.abordaro tema com que lidamos na analise sem encontrar a fun~ao do nnto.

Isso e urn fato comprovado pela experiencia. Em todos os ~asos,desde os primeiros passos da analis.e, a Tra~mdeutu~g, Freud ,se ~p.Olaemuma referencia ao mito, e em especIal ao mlto do Edll?o ..Isso e ehdldo pornos, colocamo-Io entre parenteses, tentamos exprurur tudo de nos~aexperiencia sob 0 modo econ6mico, c.o~o se,diz -l?or ex.e~plo, a fun~aodo conflito entre tendencias primordlals, ate as malS radIcals, as defesascontra as pulsocs, a articula~ao, cono~da topica~ent~o na tese sob~e 0

narcisismo, do ego e do ego ideal, e depols um cer~o lSSO. Ir neste se~ttd?,perder a outra borda de referenci.a, deve. s~ apreclar em nossa expene?Clacomo urn esquecimento, no senttdo pOSlttvO que .0 termo tern para nos.

Isso nao impede a experiencia, que conttnua a ser sempre umaexperiencia analitica. Mas e uma experiencia analitica que esquece seusproprios term os.

Voces estiio vendo que vol to, como fa~o freqUenteme~te, como fa~oquase sempre, a articular coisas alfabeticas. Isso na~ ~ umcamente p~loprazer da soletra~ao, embora ele exista, ~as porqu: e lSSO0 que permIlecolocar, em seu carater denso, as verdadelfas questoes. . .

Mas quais sao elas? A analise e uma introdu~ao do s~JeIlo ao s~udestino? Sera esta a verdadeira questao? Certamente que nao. I~so senacolocarmo-nos numa posi~ao demiurgica, que jamais foi a da anah~e. ~aspara pennanecer num nivel maci~o, absolutamente de comeyo, e al~daassim uma formula que assume seu valor por se ~estacar das maneuasconvencionais de colocar a questiio, que valem mUltas outras: .

Foi antes que nos acreditlissemos espertos e fortes 0 sUflclent~ parafalar de nao-sei-que, que nao seria uma neurose, mas uma nonnahdad_e.Nos, de fato, jamais nos acreditamos tiio fortes, tiio espertos, para naosentir uma certa vacilayao de nossa pena a cad a vez qu~ atacamos .0 temado que e uma normalidade. Mas N* escreve.u urn arh,go sobre lSS_O.Epreciso dizer que ele foi audaci(~so. De~e:se dlzer tambem que ele nao sesaiu muito mal. Mas tambem, ve-se a dlflculdade.

Seja como for, e realmente apenas por urn escamoteamento.que_sepode fazer entrar em jogo na analise uma nOyao qualquer de normahzayao.E uma parcializayao teorica, como quando nos pomos a fal.ar, por exem-plo, de maturayao instintiva, como se se tratasse apenas dISSO.Entrega-

o que 0 analisado vem buscar na analise? Ele vem buscar 0 que hlipara ser encontrado, ou, mais exatamente, se ele procura, e porque existealgo a se encontrar. E a unica coisa que ha para ele encontrar falandopropriamente, e 0 tropo por excelencia, 0 tropo dos tropos, aquilo a quese chama 0 seu destino.

Se esquec~rmos a rela~ao que existe entre a analise e aquilo a quese c?ama 0 desttno, essa especie de coisa que e da ordem da figura, nosenttdo em que essa palavra se emprega para dizerjigura do destino comos~ diz, igualmente, jigura de ret6rica, isso quer dizer que esque~emosslmplesmente as origens da analise, pois ela nem mesmo poderia ter dadou~ rasso sem. essa rela~ao .. Paralelamente, produz-se na evoluyao daanalise urn deslizamento em dlfeyao a uma pratica sempre mais insistentemais pregnante, mais exigente quanto aos resultados a fomecer. Se~duvida, sob certos aspectos- isso e urna sorte, mas isso arrisca fazer-nosesquecer 0 que e 0 peso do mito. Felizmente continuou-se a se interessarmuito por isso noutros lugares.

Este e urn desvio. Existe ai algo que nos diz respeito mais legitima-mente do que talvez acreditamos. Talvez tenhamos algo a ver com issocom esse interesse pela funyao do mito. '

Fiz alusao a is so ha muito tempo, e mais que alusao - articulei issodesde este primeiro trabalho. Meu seminario sobre 0 homem dos ratosh~via come~ado, e as pessoas vinham fazer esse trabalho comigo, emmmha casa. Eu colocava em jogo ali, a articulayao estrutural do mito talc~~o ela foi depois ~p!i~ada de maneira sistematica e desenvolvida 'porLeVI-Strauss no semtnano dele. Tentei mostrar a voces 0 seu valor paraexplicar a historia do homem dos ratos.

~ara aqueles que deixaram passar as coisas, ou que nao 0 sabem,YOUdlzer 0 que e a articulayao estruturalista do mito. Tomando urn mito~m seu conjunto, quero dizer 0 epos, a historia, a maneira pela qual issoe contado do comeyo ao tim, constroi-se urn modelo unicamente consti-tuido por uma s.erie de c~notayoes opostas de fun~oes interessadas _ porexemplo, no. mHo do EdlPO, a relayao pai-filho, 0 incesto, etc. Decerto,e~ esq~ema,ttzo, ~eduzo, p.ara lhes dizer de que se trata. Percebe-se que 0

mIlo nao para alt, que eXIstem as gerayoes seguintes. Se e urn mito asgerayOes nao sao simplesmente a seqUencia da entrada dos atores, 0 [atode que, quando os velhos caem, ha jovens que vem para que isso recome-ce: O. que nos interessa e a coerencia significante que existe entre apnmelra c~nstelayao e aquela que se segue. Acontece, por exemplo,~l~u,?a COlsa ~ue voces conotatiio como quiserem, digamos, irmaostnlmlgos, d.epOls apar~ce a funyao de urn amor transcendente que vaicontra a leI, como 0 mcesto, que e manifestamente situado no outroextremo na sua funyao, 0 que da lugar a relayOes detiniveis por urn certonumero de termos em oposiyao. Em suma, estou no nivel de Antigona.

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mo-n~s, enta~, .a extraordinarios vaticinios nos limites de uma prega~aomorahzante, f~ltOS realmente para inspirar recuo e desconfian~a. Fazeren?"~, sem malS aquela, uma no~ao normal do que quer que seja em nossaprax~s, quando nela descobrimos justamente ate que ponto 0 sujeito ditocO~lder?do norm~l ~ao 0 e - isso e de molde a nos inspirar a suspeiU:malS radical e m:u~ ~lrme quanto a seus resultados. Seria preciso, assimmes~o, colocar lruclalm~nte a questao de saber se podemos empregar an~~o de normal para seJa 0 que for que esteja no horizonte de nossapratlca .

.Limitemo-~o~, por ora, Ii questao seguinte - podemos dizer que ames~na que adqull:mos desse deciframento onde se observa a figura dodestI?o nos permIte obter, 0 que? - digamos, 0 minimo de dramaposslve!.

, Inversa? ~o sinal._ Se a configura~ao humana Ii qual nos aferramose 0 drama, traglco ou nao, podemos nos con ten tar em visar 0 minimo dedrama passivel, pensando que um sujeito precavido - um precavido valepor dOlS - se arranjara para se sair bem da situa~ao? Afinal de contas

-?Pr - d 'por que nao. " etensao mo esta. Mas isso tampouco jamais correspondeuem nada, voces bem sabem, a nossa experiencia. Nao e isso.

Pretendo que a porta por onde s~ entra para dizer coisas que tenham,s.omente, algum born s.enso, e que nos tenhamos a sensa~ao de estar nahnha do que temos a dlzer, esta ai onde vousitua-la.

Como sempre, 0 que se trata de ver esta mais pr6ximo de n6s que 0ponto onde s~ captura a pretensa evidencia, aquilo a que se chama 0 sensocom~. As.slm 0 entronca~ento que, n~ caso presente, se esbo~a damaneua malS ~ba entre. destmo au normahdade, nao leva a parte alguma.~m contrap~rtIda, se eXlste algo que a descoberta freudiana nos ensinoue a ver nos slDtomas uma figura que tern rela~ao com a figura do destinon?s nao 0 sabiamos antes, mas agora 0 sabemos. Sabe-lo, isso faz um~~lferen~a. Isso nao ~os permi.te colocar-nos no exterior, nem ao sujeitoflc~r de lado, e que ISS0 contInue a caminhar no mesmo sentido, 0 quesena u?I esquema grosseiro, absurdo. 0 fato de saber ou nao saber e poisessenclal Ii.figura do destino. Eis a boa porta. E 0 mho 0 confirma.' ,

OS ~1~OSs~o fi~uras desen~o~vidas que sao referiveis, nao Ii lingua-gem, ~as a Impl.1Ca~ao d~ urn sUJeIto capturado na linguagem _ e, paraC?mp~1Car as cOlsas, no Jogo da fala. Das rela~OeS do sujeito com urnslgrufl~a?te qualqu~r desenvolvem-se figuras onde se constatam pontosnecessan_os, pontos medutiveis, pontos principais, pontos de recruzamen-to, que s:o, .por exemplo, aqueles que tentei figurar no grafo. Tentativada q~l nao lDteressa s.aber se se.ria falha, se nao seria incompleta, se naopodena ser, talvez, mal~ harmonlOsamente construida ou reconstruida poralgum outro - quero slmplesmente evocar aqui sua visada. A visada deuma estrutura minima desses oito pontos de recruzamento parece ser

cxigida unicamente pelo confrontamento entre 0 sujeito e o. significante.E ja e muho pod,er sustentar, apenas por esse fato, a necessldade de umaSpaltung do sujeho. . _

Esta figura, este grafo, esses pontos observados, e tambem.~ at~n~aoaos fatos, nos pennitem reconciliarmo-nos com nossa expenencla dodesenvolvimento a fun~ao verdadeira daquilo que e trauma. Nao e trauma,simplesmente, aquilo que fez irru~ao num momento, e abriu uma fenda,em algum lugar, numa estrutura que se imagina total, ja que e para issoque serviu para alguns a no~ao do narcisismo. 0 trauma e que algunsacontecimentos venham se shuar num certo lugar nessa estrutura. E,ocupando-o, assumem ai 0 valor significante que a ele esta ligad~ numdeterminado sujeito. Eis 0 que faz 0 valor traumatico de urn aconteclmen-to. Dai 0 interesse de fazer urn retorno Ii experiencia do mho.

Admitam voces mesmos que para os mitos gregos nao estamos taobem situados. Temos muitas variantes deles, mas nem sempre, se possodizer sao as boas. Nao podemos garantir sua origem. Nao sao variantescont;mporiineas, nem mesmo locais, sao rearranjos mais ou men.os aleg6-ricos e romanceados, que nao sao utilizliveis da mesma manelra que 0

pode ser tal variante recolhida ao mesmo tempo, como oferece a :oletade urn mho numa popula~ao americana do norte ou do suI. Isso nao nospermite tratar esse material como aquele trazido por urn Boas ou alg~outro. Igualmente, quando eu quis apresentar a voces 0 model? daqmloque advem do conflito edipiano quando 0 saber como tal entra, Justamen-te num dado ponto no interior do mito, fui busca-lo noutro lugar, nain~en~ao shakespeariana do Hamlet, que estudei pa!a voces ha dois ~nos.E eu tinha, alias, toda a permissao para faze-Io, pOlS que desde a ongemFreud havia tornado as coisas assim.

N6s acreditamos poder conotar ai algo que, de uma maneira parti-culamente apaixonante, se modifica num ponto da estrutura. E, c~mefeito, urn ponto absolutamente particular, ap6rico, da rela~ao do sujeItocom 0 desejo, que Hamlet promoveu Ii retlexao, a medita~ao, Ii interpre-tayao, a pesquisa, ao quebra-cabeyas estruturado que ele representa.Conseguimos, com sucesso, fazer sentir a especificidade. desse cas~,sublinhando a diferen~a seguinte - contrariamente ao pal do assaSSl-nato edipiano, 0 pai morto no Hamlet, nao e ele mio sabia que se devedizer dele, mas ele sabia. Niio somente ele sabia, mas este fatorintervem na incidencia subjetiva que nos interessa, a do persona gemcentral, Hamlet.

Este e, para dizer a verdade, 0 unico persona gem. Trata-se de urndrama inteiramente incluido no sujeito Hamlet. Fizeram-no saber que 0

pai foi morto, e fizeram-no saber 0 bastante para que ele soubesse muitosobre isso, ate saber por quem. Dizendo isso, s6 fayOrepetir 0 que Freuddisse desde a origem.

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Eis a indicayao de um metodo pelo qual nos e demandado medir,sobre a propria estrutura, 0 efeito do que e introduzido pelo nosso saber.Para dizer as coisas maciyamente, e de uma maneira que pennita observarem sua raiz 0 que esta em jogo - na origem de toda neurose, Freud dizisso desde os seus primeiros escritos, existe, nao aquilo que se interpretoudesde entlio como uma frustrayao, urn atrasado deixado em aberto noinforme, mas uma Versagung, isto e, alguma coisa que esta muito maisproxima da recusa do que da frustrayao, que e tanto intema quanta extema,que e realmente colocada por Freud numa posiyao - vamos conota-la poresse termo que tern, ao menos, ressonancias, vulgarizadas por nossalinguagem contemporanea - existencial. Posiyao que nao ordena emseqUencia a normalidade, a possibilidade da Versagung, depois a neurose,mas situa uma Versagung original, para alem da qual havera a via, ou daneurose, ou da normalidade, nenhuma delas valendo mais ou menos quea outra em relayao aquilo que e, de saida, a possibilidade da Versagung.

Salta aos olhos que esta Versagung intraduzivel somente e possivelno registro do sagen, na medida em que 0 sagen nao e simplesmente aoperayao da comunicayao, mas 0 dito, a emergencia como tal do signifi-cante na medida em que pennite ao sujeito recusar-se.

Esta recusa original, primordial, este poder de recusa no que ele ternde prejudicial com relayao a toda nossa experiencia, pois bern, nao epossivel sair-se dele. Em outras palavras, nos analistas operamos apenas- e quem nao sabe disso? - no registro da Versagung. E isso 0 tempotodo. E e na medida em que nos esquivamos a ele - quem nao sabe disso?- que toda a nossa tecnica e estruturada em tomo de uma ideia que seexprime de maneira balbuciante no termo nao-gratificayao, que nao est:!em parte alguma em Freud.

Trata-se de aprofundar 0 que e essa Versagung especificada, poisela implica numa direyao progressiva, que e aquela mesma que pomos emjogo na experiencia analitica.

Acredito que os term os que acabo de introduzir sejam utilizaveis no mitoclaudeliano, e YOUretoma-lo para voces para mostrar-lhes ali uma maneiraespetacular de imajar os veiculos da Versagung.

a fato de que 0 que acontece em Le Pain dur seja 0 mito de Edipo,creio que voces agora nao duvidam mais disso. Voces reencontram, quase,'meus jogos de palavras no momenta, precisamente, em que Louis deCoUfontaine e Turelure estlio face a face.

Eo momento em que se formula uma especie de demanda de temura.E a primeira vez que isso acontece. E verdade que e dez minutos antesque ele 0 alveje. Louis Ihe diz - Seja como for, tu es 0 paL E essa replica

DECOMPOSI<;:AO ESTRUTURAL

I~realmente duplicada por esse matar 0 pai~1 que 0 desejo da mulher, ~eLumir, Ihe sugeriu, e que se superpOe ai, hteralmente: de uma m~netraque, asseguro-lhes, nao e simplesmente 0 fato de.um fehz acaso d~ h~gua.

a que significa 0 que nos e representado ah em cena? Isso slgntfica,c c enunciado, que e naquele momento, e por isso,_que 0,p~queno se toma11m homem. Louis de Coiifontaine, diz-se a ele, nao .tera Vida que cheguepara carre gar este parricidio, mas igualmente, a partIr desse ~omento elenao e mais urn joao-ninguem que faz tudo errado, e que delx~ sua terrascr roubada por urn bando de malvados e espertinhos._ Ele ~al se tomarum belo embaixador capaz de todas as crapulices. Isso nao delxa de evocaralguma correlac;ao. .

Ele se toma 0 paL Nao somente se toma 0 P~l" mas quando falardisso mais tarde, em Le Pere humilie, em. Roma: dtra - Somente eu 0conheci bem, ele nunca quis ouvir falar ntSSO,nao era 0 h?~~m que sepensa, dando a entender, sem duvida, que tesouros de senslblhd~de e deexperiencia se haviam acumulado na cachol,a ~aquele velho bandldo. Masele tomou-se 0 pai. Mais ainda, era a sua umca chance de se.o tomar: epor razoes que estlio ligadas ao nivel anterior da dramaturgla. A cOlsaestava muito mal arranjada. ,

Mas a construyao da intriga toma bem senslvel a? mesmo t~mpoque, por esse motivo, ele e castrado. A saber, que 0 deseJo do rap~Zl~o,esse desejo sustentado de uma maneira tlio ambigua,_co~~.el<: 0 ~lZ a talde Lumir, pois bern, nao tera uma saida, no en tanto tao f~cll, tao sl,mples.

Essa saida ele a tern ao alcance da mao, basta leva-la, Lumtr, comele a Mitidja e ;udo ir:i bern, eles terao mesmo muit~s filho_s. Mas algoacontece. Em primeiro lugar, nao se sabe se el~ 0 deseJa ou nao,.mas u~acoisa e certa, a mulher ele nao quer. Ela Ihe dl~e mate 0 papal: DepOls,ela parte em direyao ao seu destino, que e.o destIno de urn deseJo, de urnverdadeiro desejo de persona gem claudehano. , .

Que este teatro tenha para alguns, segundo suas te~den:las: urn odorde sacristia que pode agradar ou desagradar, a questao nao e e~s~. ainteresse que ele tern para voces e de ser, apesar de tud~, ~ma trage~la._Ebem estranho que isso tenha levado aquele senhor a pOSlyOeSq~e nao saoapropriadas para nos agradar, mas e preciso acomodar-se a lSSO, e senecessario procurar compreende-lo. E, assim mes~o, de ponta a ponta, daTete d'Or ao Soulier de satin, a tragedia do deseJo.

Entlio, 0 personagem que e, naquela gerayao, 0 s~u suport,e, a ta~deLumir deixa cair seu precedente conjuge, 0 tal de Lows de Coufontame,e part; em direc;ao ao seu desejo, que nos e dito, de modo absolutamenteclaro, ser um desejo de morte. Mas, dessa maneira, e el~ ~ e aqui que lh~~peyo que se detenham na variante do mito_- ~uem Ihe d:i, J~tame~te, 0 que.

Nao a mae evidentemente. A mae e Sygne de Coufontame, e elaesta num lugar q~e nao e, evidentemente, 0 da mae quando esta se chama

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Jocasta. Mas existe uma outra, que e a mulher do pai, ja que 0 pai estasempre no horizonte dessa historia de uma maneira bem marcada. E nossomho excluido, nosso filho nao desejado, nosso objeto parcial Ii deriva -pois bern, essa mulher, ela mesma reabilitada pela incidencia do desejo,o reabilita, 0 reinstaura, recria com ele 0 pai em ruinas. 0 resultado dao~ra~ao e, pois, dar-Ihe a mulher do paL

Vejam bem 0 que lhes mostro. Da fun~ao ao que e conjugado nomito freudiano, sob a forma dessa especie de vazio, de centro de aspira~ao,de ponto vertiginoso da libido, representado pela mae, aqui existe, aocontrario, uma exemplar decomposi~ao estrutural.

E tarde, 0 tempo nos for~a a cor tar, aqui onde estamos, mas naogostaria, assim mesmo, de deixa -los sem lhes indicar para onde estou indo.

Afinal de contas, esta nao e uma historia que possa nos espantartanto, nos que ja estamos urn pouco endurecidos pela experiencia - acastra~ao e, em suma, fabricada assim - retira-se a alguem seu desejo e,em troca, e ele que se da a algum outro - ocasionalmente, Iiordem social.

E Sichel quem tern a fortuna, e natural que seja ela quem 0 despose.Alem disso a tal de Lumir viu muito bem as coisas: so tens uma coisa afazer agora, e te casares com a amante de teu paL

o importante e essa estrutura. Isso parece nao ser nada, porque 0

conhecemos de modo corrente, mas raramente isso e expresso assim.Voces entenderam bern, penso, 0 que eu disse - retira-se ao sujeito

o seu desejo e, em troca, enviam-no ao mercado, onde ele entra no leilaogeral. Mas nao e isso, justamente, 0 que acontece no inicio, no andar decima, e ilustrado, entiio, de uma maneira bem diferente, feita, desta vez,para despertar nossasensibilidade adormecida? Quero dizer - nao e issoo que acontece no nivel de Sygne?

A ela, retira-se tudo, nao digo que seja par nada, deixemos isso, mase absolutamente claro, tambCm, que e para ill-la, a ela, em troca daquiloque se the retira, ao que ela pode mais abominar.

Sou obrigado a terminar quase com uma so frase, mas ainda assimha alguma coisa que e preciso que eu coloque, antes de deixa-los.

Os efeitos sobre 0 homem do fato dele tornar-se sujeito da lei naose resumem ao seguinte: que tudo que e do cora~ao the seja retirado, e queele mesmo seja dado em troca ao tecer da tram a que nodula, entre elas, asgera~Oes. Para que, justamente, esta seja uma trama que nodula entre elasas gera~6es, uma vez encerrada esta opera~ao onde voces veem a curiosaconjuga~ao de urn menos que nao se redobra par urn mais, pois bern, 0

homem ainda deve alguma coisa.E dai que retomaremos a questao no proximo encontro.

o grande I e 0 pequeno a

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DESLIZAMENTOS DE SENTIDODO IDEAL

Ejeitos da massa analitica.A a~ao. resposta ao inconsciente.Nao existe metalinguagem.Amor e culpa.Extroje~ao.

omo situar 0 que deve ser 0 lugar do analista na transferencia? - nod~plo sentido em que lhes disse, da ultima vez, que se deve situar esseIngar - onde 0 analisado situa 0 analista? - onde 0 analista deve estar,pura responder a ele adequadamente?

Essa rela~ao - que se chama, freqiientemente, de uma situa~iio,{'omo se a situa~iio inicial fosse constitutiva - esta rela~iio, ou estallua~iio, so pode se engajar com base no mal-entendido. Niio existe'oincidencia entre 0 que e 0 analista para 0 analisado no inicio da analise," IIquilo que a analise da transferencia nos pennitira desvelar quanto ao((IIC esta implicado, niio imediatamente, mas implicado verdadeiramente,110 fato de que um sujeito se engaje nessa aventura, que ele niio conhece,cluanalise.

Naquilo que articulei da ultima vez, voces puderam entender que eII dimensiio do verdadeiramente implicado pela abertura, a possibilidade,II riqueza, todo 0 desenvolvimento futuro da analise que coloca umaqncstiio do lado do analista. Niio e ao menos provavel, niio e sensivel, qucd,' deva, ele mesmo, ja se colocar no nivel desse verdadeiramente, eslarvt'rdadeiramente no lugar aonde devera chegar ao termo da analise, qu .I lllstamente a analise da transferencia?

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necessidade, que gravita~iio ativa faz convergir - e, quase imediatamen-te, intuitivamente sensivel, compreensivel - a fun~iio do analista com aimagem que'ele possa fazer dela. Essa imagem se situa muito precisamen-te no ponto que Freud nos ensina a destacar, onde ele leva a seu termo afun~iio no momenta da segunda t6pica, e que e aquele do Ich-ldeal - atradu~iio, ideal do eu., Ambigiiidade desses termos. Por exemplo, num artigo, para n6s

muito importante, ao qual yOU me referir daqui a pouco, Transferencia eAmor, que foi lido na Sociedade Psicanalitica de Viena em 1933, que foipublicado em Imago em 1934, que e mais facil de se obter no Psychoa-nalytic Quarterly de 1949, onde foi traduzido para 0 ingles sob 0 tituloTransference and Love, Ich-ldeal e traduzido em ingles como Ego ideal.Este jogo na ordem da determina~iio tern um papel que niio e nada casual.

Alguem que niio soubesse alemiio poderia crer que Ich-ldeal querdizer eu ideal. Observei que no artigo inaugural que fala do Ich-Ideal, ZurEinfiihrung des Narzissmus, aparece de vez em quando ideal Ich. E Deussabe que isso e para todos n6s urn objeto de debate - alguns dizendo, eeu mesmo, que niio se poderia por um instante sequer negligenciar, sob apena de Freud, tiio precisa no que se refere ao significante, semelhantearticula~iio - outros dizendo que e impossivel, ao exame do contexto,deter-se ai de maneira alguma. .

Vma coisa, no entanto, e certa, e que mesmo aqueles que estiio nessasegunda posi~iio seriio os primeiros, como voces veriio no pr6ximo mime-ro a ser publicado de La Psychanalyse, a distinguir, no plano psicol6gico,o ideal do eu e 0 eu ideal. Estou falando do meu amigo Lagache. Em seuartigo sobre A estrutura da personalidade, ele faz uma distin~iio da qualposso dizer, sem no entanto diminui-Ia em absoluto, que e descritiva,extremamente fina, elegante e clara. No fenomeno, isso niio tern, absolu-tamente, a mesma fun~iio.

Numa resposta que elaborei expressamente para esse nlimero refe-rente a tematica que ele nos da, fiz simplesmente algumas observa~6es,das quais a primeira e que se Ihe poderia objetar que, propondo-se a daruma formula~iio que esteja, como ele se exprime, distante da experiencia,ele mesmo abandona 0 metodo que nos havia anunciado propor-se a seguirem materia metapsicol6gica, em materia de elabora~iio da estrutura. Comefeito, a djferen~a clinic a e descritiva entre os dois termos, ideal do eu eeu ideal, niio esta suficientemente inserida no registro do metodo que elepropOs a si mesmo. Voces logo veriio tudo isso em seu lugar. .

Talvez hoje eu va antecipar a maneira metapsicol6gica absoluta-mente concreta pel a qual se pode precisar a fun~iio de urn e outro nointerior da grande tematica economica introduzida por Freud em tomo dan~iio do narcisismo. Ainda niio cheguei la, mas designo para voces,simplesmente, 0 termo Ich-ldeal, ou ideal do eu, na pr6pria medida em

Coloco, portanto, a questiio - 0 analista pode ser indiferente aquilo quee a sua posi~iio verdadeira?

Esclareceremos as coisas mais adiante, pois isso pode lhes parecerquase niio levantar alguma questiio - a ciencia do analista, diriio voces,niio supre isso? No entanto, 0 fato de que 0 analista saiba algo das vias edos caminhos da analise niio e suficiente, queira ele ou niio, para coloca-lonesse lugar, seja qual for a maneira pela qual 0 formule para si. Asdivergencias quanta a fun~iio tecnica do analista, uma vez que esta foiteorizada, 0 fazem realmente surgir.

o analista niio e 0 linico analista. Ele faz parte de urn grupo, de umamassa, no sentido pr6prio que tern este termo no artigo de Freud, Mas-senpsychologie und Ich-Analyse.

Niio e pura coincidencia que este tema seja abordado por Freud nomom en to em que ja existe uma sociedade de analistas. E em fun~iiodaquilo que acontece no nivel da rela~iio do analista com sua pr6priafun~iio que siio articulados numerosos problemas com que tern a ver asegunda t6pica freudiana. Essa e uma fase que, niio sendo evidente, nempor isso deixa de merecer, especialmente para n6s analistas, ser observa-da. Fiz, em meus escritos, referencia a ela diversas vezes. Seja qual for 0

grau de necessidade intema que demos a emergencia da segunda t6pica,niio podemos, em todo caso, desconhecer 0 seu momenta hist6rico. Issoesta provado - basta abrir 0 Jones na pagina certa para perceber que, noexato momento em que Freud fazia surgir essa tematica - que figura, emparticular, na Massenpsychologie und Iell-Analyse, ele pensava, entiio, naorganiza~iio da sociedade analitica.

Aludi hli pouco aos meus escritos. Indiquei, ali, de uma maneiramais precisa, talvez, do que fa~o neste momento, tudo 0 que aquelaproblematica suscitou, para ele, de dramatico, principalmente aquilo 'fuese destaca, de modo bastante claro, de certas passagens citadas por Jones,a concep~iio romantica de uma esp6cie de Komintern, de urn comitesecreta funcionando, como tal, no interior da analise. Freud, c1aramente,entregou-se a esse pensamento em algumas Ide suas cartas, e, de fato, eraassim mesmo que encarava 0 funcionamento do gmpo dos sete em querealmente confiava.

A partir do momenta em que hli uma multidiio, ou uma massSlorganizada, daqueles que estiio na fun~iio de analista, todos os problemasque Freud exp6e nesse artigo se colocam efetivamente. Siio, apenas, comoesclareci ha tempos, os problemas de organiza~iio da massa na sua rela~iiocom a existencia de urn certo discurso.

Seria preciso retomar esse artigo, aplicando-o a evolu~iio da teorillque os analistas promoveram sobre a fun~iio analitica, para ver qu'

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que ele vem a ser traduzido em ingles por Ego ideal. Em ingles, os lugaresrespectivos do determinativoe do determinante sao muito mais ambiguosnum grupo de dois termos, e ja encontramos nesse Ego ideal 0 tra~semiintico da evolUlrao, ou do deslizamento, da fun~ao dada a esse termoquando se quis emprega-Io para marcar aquilo que se tomava 0 analistapara 0 analisado.

Foi dito, e desde muito cedo - 0 analista assume para 0 analisadoo lugar de seu ideal do eu. Isso e verdadeiro e falso. E verdadeiro nosenti do em que isso acontece. Isso acontece facilmente. Diria, mesmo,mais, e darei a voces daqui a pouco um exemplo disso - e comum queum sujeito instale ali posi~Oes ao mesmo tempo fortes e conformveis quesao, realmente, da natureza daquilo a que chamamos resistencia. Longede tratar-se apenas de uma posi~ao aparente ou ocasional talvez isto sejaainda mais verdadeiro no emperramento de certas analises.

Isso nao quer dizer de modo algum que a questiio esteja esgotada,nem que 0 analista possa, de maneira alguma, satisfazer-se com isso -em outras palavras, que possa levar a analise ate seu termo sem desalojaro sujeito da posi~ao assumida por este, na medida em que da ao analistaa:posi~ao de ideal do eu. E portanto isso coloca, realmente, a questiio doque essa verdade se revela dever ser no futuro. A saber, se, no fmal, depoisda analise da transferencia, 0 analista nao deve (...) aquilo que naosomente esta em jogo. E isso 0 que nunca foi dito. Pois, aflnal decontas,o artigo de que Ihes falava ha pouco nao se reveste, no momentaem que e publicado, de um carater de pesquisa - em 1933, em rela~aoaos anos vinte, quando se da a virada da tecnica analitica, como todosse exprimem, eles ja tiveram ao menos tempo de refletir e de ver comc1areza.

Nao posso percorrer com voces esse artigo em todos os sellS deta-Ihes, mas pe~o-lhes que se remetam a ele, e voltaremos a falar disso. Naovamos nos deter ai, tanto mais que 0 que quero Ihes dizer se refere ao textoingles. Por isso e que e este que tenho aqui comigo, ao passo que 0 textoalemao e mais vivo, mas nao estamos nas arestas do original, estamos nodeslizamento semiintico que exprime aquilo que se produziu, com efeito,na critica interna a analise.

o analista, na medida em que e analista, inteiramente so, soberanoa bordo, e colocado face a face com sua a~ao. Trata-se, para ele, doaprofundamento, do exorcismo, da extra~ao de si mesmo, indispensavelpara que haja uma justa percep~ao de sua rela~ao, dele proprio, com afun~ao de ideal do eu, na medida em que para ele, como analista, cconseqiientemente de uma maneira particularmente necessaria, essa fun-~ao e sllStentada no interior daquilo que chamei de a massa analitica. St'ele nao fizer isso, 0 que se produz e 0 que efetivamente se produziu, II

saber, um deslizamento de senti do, que hao pode de modo algum ser

concebido nesse nivel como semi-exterior ao sujeito e em suma comoum erro. Esse deslizamento, ao contrario, 0 implic; profunda~ente,subjetivamente.

Em 1933, baseou-se um artigo inteiro sobre Transferencia e Amorem tomo da tematica do ideal do eu. Vinte ou vinte e cinco anos maistarde, os artigos dizem c1aramente, sem qualquer especie de ambigiiidade,de uma maneira teorizada, que as rela~6es entre 0 analisado e 0 analistarepollSam no fato de que 0 analista tem um eu que se pode chamar de ideal.

Em que sentido 0 eu do analista e dito ser um eu ideal? Num sentidobem diferente, tanto do ideal do eu, quanto do sentido concreto do eu ideal,a que eu aludia ha pouco. Vou i1ustrar para voces - e um eu ideal, seposso dizer, realizado, um eu ideal no senti do em que se diz que um carroe um carro ideal. Nao e um ideal de carro, nem 0 sonho do carro quandoele esm sozinho na garagem, e um carro realmente born e solido.

Tal e 0 sentido que acaba assumindo 0 termo. Se fosse apenas isso,uma coisa literaria, uma certa maneira de dizer que 0 analista deve inteivircomo alguem que sabe um pouco qIais que 0 analisado, issa seria unica-mente da ordem da platitude, e talvez nao tivesse tanta importiincia. Mase que 0 proprio deslizamento do sentido desse par de significantes, eu eideal, traduz algo de absolutamente diferente, uma verdadeira implica~aosubjetiva do analista.

Nao temos, de modo algum, por que nos espantar com urn efeitodessa ordem. Isso nao passa de um tamponamento. Este e apenas 0

primeiro termo de uma aventura cujo mecanismo e muito mais essencialque 0 ponto simplesmente local, quase caricatural, onde 0 fixamos 0

tempo todo, como se so estivessemos aqui para isso.De onde vem isso tudo? Da virada de 1920. Em tomo de que gira a

virada de 1920? Em tomo do fato - elas dizem isso, as pessoas daquelaepoca, os herois da primeira gera~ao analitica - da interpreta~ao naofuncionar mais como funcionava. Nao ha mais clima para que isso fun-cione, para que isso tenha bom resultado. E por que? Isso nao espantouFreud. Ele havia dito isso ha muito tempo. Pode-se indicar um de sellStextos onde ele diz, muito cedo, nos Anigos Tecnicos - aproveitemos aabertura do inconsciente, porque muito em breve ele encontrara um novotroque. 0 que significa isso para nos que podemos, feita essa experiencia,e nos mesmos deslizando com ela, encontrar assim mesmo os sellS pontosde referencia?

Digo que e 0 seguinte - 0 efeito de um diseurso, falo daquele daprimeira geta~ao, que, agindo sobre 0 efeito de urn discurso, a saber, 0

inconsciente, nao sabe que e disso que se trata - ainda que aquilocstivesse ali, e desde a Traumdeutung, onde ensino voces a reconhece-Ioc soletra-Io, pois s6 se trata, constantemente, sob 0 termo mecanismos doinconsciente, de efeitos do discurso. E realmente isso - 0 efeito de um

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desde mms de urna decada para todo reinicio da eficacia analitica. E e namedida em que as coisas chegaram a esse ponto que convem interpelarcomo tal a cODJunidade analitica, permitindo a todos lan~ar urn olhar sobreisso, sobre 0 que vem alterar a pureza da posi~ao do analista frente aquelea quem ele responde, seu analisado, na medida em que ele mesmo, 0

analista, se inscreve e se determina atraves dos efeitos que resultam damassa analitica, quero dizer, da massa dos analistas, no estado atual desua constitui~ao e de seu discurso.

Nao estariamos nada enganados apresentando assim aquilo queestou dizendo a voces.

Isso nao e da ordem de um acidente hist6rico, enfatizando-se 0

acidente. Estamos na presen~a de urna dificuldade, de um impasse, queconceme ao que voces me ouviram hli pouco colocar no primeiro planodaquilo que eu exprimia, a saber, a a~ao analitica.

Se existe urn lugar onde 0 termo a~ao, ha algum tempo questionadopelos fil6sofos de nossa epoca modema, pode ser reinterrogado de umamaneira talvez decisiva, ele esta, por paradoxal que pare~a esta afirma~ao,no Divel daquele de quem se pode acreditar que mms se abstem nesseponto, ou seja, 0 analista.

Muitas vezes nesses tiltimos anos, em meu seminario, acentuei 0

relevo original que nossa experiencia muito particular da a~ao comoacting out no tratamento deve nos permitir introduzir em toda reflexaotematica sobre a a~ao. Lembrem-se do que lhes pude dizer sobre 0

obsessivo e seu estilo de desempenhos, ate mesmo de proezas - vocesvao reencontra-Io no escrito em que dei ao meu relat6rio de Royaumontsua forma defrnitiva.

Se existe alguma coisa que 0 analista pode se levantar para dizer,e que a a~ao como tal, a a~ao humana, se quiserem, esta sempreimplicada na tenta~ao de responder ao inconsciente. E proponho aqualquer um que se ocupe, sob qualquer titulo, daquilo que merece 0

nome de a~ao, ao historiador, especialmente, na medida em que ele naorenuncia aquilo cujas muitas formula~5es fazem vacilar nosso espirito,a saber, 0 sentido da hist6ria - proponho-lhe retomar, em fun~ao daarticula~ao dada por mim, a questao que nao podemos, afinal, eliminardo texto dessa hist6ria, a saber, que seu sentido nao nos arrasta, purae simplesmente, como 0 famoso cachorro morto, mas que acontecemai a~5es.

A a~ao com que lidamos e a a~ao analitica. E, quanto a ela, nao sepode contestar que seja tentativa de responder ao inconsciente.

Tampouco e contestavel qlie, quando dizemos de algo que se passacom 0 sujeito em analise, e um acting out, - como a isso nos habituounossa experiencia, este algo que faz um analista - sabemos 0 quedizemos, mesmo que nao saibamos muito bem dize-lo.

discurso que incide sobre 0 efeito de um discurso, que nao sabe disso, eque resulta necessariamente numa cristaliza~ao nova desse efeito deinconsciente que opacifica esse discurso.

Cristaliza~iio nova quer dizer 0 que? as efeitos que constatamos -nao causa mms, nos pacientes, 0 mesmo efeito 0 fato de se Ihes dar certaspercep~5es ou certas chaves, que se maneje diante deles certos signi-ficantes.

Mas, observem bem, as estruturas subjetivas que correspondem aessa cristaliza~ao nova, estas nao tem necessidade de serem novas. Falodesses registros ou graus de aliena~ao, se posso dizer, que podemosespecificar no sujeito, e qualificar, por exemplo, sob os termos eu, supe-reu, ideal do eu. Sao como ondas estaveis. Aconte~a 0 que acontecer,esses efeitos fazem recuar 0 sujeito, imunizam-no, mitridatizam-no comrela~ao a um certo discurso. Impedem de levar 0 sujeito aonde queremosleva-lo, a saber, ao seu desejo. Isso nao altera em nada os pontos nodais,onde ele, como sujeito, vai se reconhecer e se instalar.

E isso que Freud constata nessa virada. Se Freud tenta definir quaissao as necessidades estaveis e as zonas fixas na constitui~ao subjetiva eporque sao elas que Ihe aparecem, muito notavelmente para ele, comoconstantes. Mas nao e para consagra-las gue ele se ocupa delas e asarticula - e com a inten~ao de ergue-las como obstaculos. Mesmo quandoele fala do Ich e 0 coloca em primeiro plano, nao e para instaurar a fun~aopretensamente sintetica do eu como urna especie de inercia irredutivel.No entanto, foi assim que isso foi interpretado em seguida.

Devemos reconsiderar tudo isso como os acting out da auto-insti-tui~ao do sujeito em sua rela9ao com 0 significante, por urn lado, com arealidade, por outro. E assim que iremos abrir um novo capitulo da a9aoanalitica.

Do que tento fazer aqui se poderia dizer, com todas as reservas que issoimplica, que e urn esfor90 de analise no sentido pr6prio do termo, queconceme a comunidade analitica como massa organizada pelo ideal do euanalitico, tal como este se desenvolveu efetivamente sob a forma de urncerto ntimero de mira gens, no primeiro plano das quais a do eu forte, tantasvezes implicada erradamente ali onde se ere reconhece-la. Para invertero par de termos que constituem 0 titulo do artigo de Freud a que me referiaha pouco, uma das faces de meu seminario poderia se chamar Ich-Psycho-Logie und Massenanalyse.

Com efeito, a Ich-Psychologie, que foi promovida ao primeiro planoda teoria analitica, constitui tampao, constitui barragem, constitui inercia

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Qual e a fonnula mais geral que se pode dar a isso? E importantedar a fonnula mais geral, porque se dennos aqui fonnulas particul~res ~sentido das coisas vai se obscurecer. Se dissennos, por exemplo, ISSO euma recaida do sujeito, ou se dissennos, isso e um efeito de nossasbabaquices, vai se velar 0 que esta em questiio. Certamente que pode serisso e claro mas esses sao casos particulares da definilYao que proponhoa v~ces co~ relalYao ao acting out. Ja que a alYaoanalitica e tentativa,tentalYao tambem, a sua maneira, de responder ao inconsciente, 0 actingout e este tipo de alYaopela qual, em dado momenta do tratamento - semduvida na medida em que ele e especialmente solicitado, talvez pelanossa bUrrice, talvez pela sua, mas isso e secundlirio, pouco importa - 0

sujeito exige uma res posta mais justa. . . _ _Toda alYao, acting Ollt ou nao, alYaoanaltuca ou nao, tern ~elalYa~,

tern uma certa relalYao, com a opacidade do recalcado. E a alYaomalSoriginal com 0 recalcado mais original, com 0 Urverdrtingt. .

A nOlYaodo Urverdrtillgt, que esta em Freud, pode aparecer aqUlcomo opaca, e e por isso que tento dar a voces urn senti do para e~a.Trata-se da mesma coisa que tentei da ultima vez articular para voces,dizendo-lhes que nada mais podemos fazer senao engajar a. nos mesmosna Versagllllg mais original. E e a mesma coisa que se expnme no planoteorico na fonnula de que, apesar de todas as aparencias, nao ha metalin-guagem.

Pode haver uma metalinguagem no quadro-negro, quando eu escre-vo pequenos signos, a, b, x, kappa. Isso corre bern, isso funciona, sao asmatematicas. Mas, com referencia aquilo que se chama a fala, a saber, que'.urn sujeito se engaja na linguagem? Pode-se falar da fala, sem duvida, evoces veem que eslou fazendo isso, mas ao faze-lo sao envolvidos todosos efeitos da fala, e e por isso que se diz a voces que, no nivel da fala, naohli metalinguagem. Ou, se quiserem, que nao ha metadiscurso. Ou, paraconduir, que nao ha alYaoque transcenda definitivamente os. efeitos dorecalcado. Talvez se houver uma, no ultimo lenno, e no maximo aquelaonde 0 sujeito como tal se dissolve, se eclipsa, e desaparece ..E uma alYaoa proposito da qual nada ha de dizivel. E, se quiserem, 0 honzonte dessaalYaoque dli sua estrulura a fantasia. _ .

E por essa raziio que minha pequena nota~o da sua estrulura ($ 0 a) ealgebrica, e so pode ser escrita a giz no quadro-neg.ro ..E~iste para n~s umanecessidade essencial de nao esquecer esse lugar mdlZlvel na medlda emque 0 sujeito a{ se dissolve, e que somente a notalYao algebrica podepreservar.

Ha, no artigo Transjerencia e Amor, dos chamados lekels eBergler,feito em 1933 quando eles ainda estavam na Sociedade de Viena, umabrilhante intuilYao clinica que the confere, como e habitual, peso e valor.Este destaque e este tom fazem dele urn artigo ,da primeira geralYao, e ainda

hoje 0 que nos agrada num artigo e quando ele traz algo dessa ordem. EssaintuilYao e de que hli urna relalYao, uma re1alYaoestreita entre 0 amor e aculpa. ,

Contrariamente as pastorais onde 0 amor banha na beatitude, dizem-nos eles, observem urn pouco 0 que veem, nao e simplesmente que 0 amorseja freqiientemente culpado, e que se ama para escapar a culpa. Essas,naturalmente, nao sao coisas que se possam dizer todos os dias. Isso e urnpouquinho mais facit para as pessoas que niio gostam de Claudel - paramim, e da mesma ordem.

Se amamos, em suma, e porque ainda existe em algurn lugar asombra daquele que urna mulher muito divertida com quem viajamos naltalia chamava de It vecchio con ta barba, aquele que se ve em toda parteentre os primitivos.

Pois bern, esta tese e lindamente sustentada no artigo - 0 amor e,no fundo, necessidade de ser amado por quem nos poderia tomar culpa-dos. E, justamente, se se e amado por aquele ou aquela, isso vale muitomais.

Este e urn desses resumos analiticos sobre os quais direi que sao daordem de verdades de boa liga, que tambem sao, naturalmente, mas, porse tratar de uma liga, em outras palavras, uma fusiio, e nao e propriamentedistinto, pelo fato de ser urna verdade clinica. Alem disso, essa e umaverdade, se posso dizer, colabada, que esmaga uma certa articulalYao. Sequero que separemos esses dois metais, 0 amor e a culpa, nao e por gostopela ~berquinada"Y E que 0 interesse de nossas descobertas repousa porinteiro no fato de que lidamos incessantemente com a realidade, como sediz, com os efeitos do achatamento do simbolico no real. E fazendodistinlYOesque progredimos e mostramos os mecanismos eficazes com quelidamos.

Isto dito, se a culpa nao esta selllpre, e imediatamente, envolvida nodeslanchamento de urn amor, no fulgor do enamoramento, no coup defoudre, nao e menos certo que, mesmo em unioes inauguradas sob auspi-cios assim poeticos, acontece, com 0 tempo, que vem centrar-se sobre 0

objeto amado todos os efeitos de uma censura ativa. Nao e simplesmenteque em tomo dele se reagrupe todo 0 sistema de interdi tos, mas igualmentee a ele que se vem - funlYaotiio constitutiva da conduta humana - pedira pennissao. Convem nao negligenciar de modo algum, nas fonnas muitoautenticas, da melhor qualidade, da relalYao amorosa, a incidencia, naodigo do ideal do eu, mas simplesmente do supereu como tal, e na sua fonnamais opaca e mais desconcertante.

Por urn lado, existe no artigo de nossos amigos lekels e Bergler essaintuilYao clinica. Por outro lado, existe a utilizalYao parcial, e realmentebrutal, do tipo rinoceronte, da perceplYao economica que Freud colocousob 0 registro do narcisismo, a saber, a ideia de que a equalYao libidinal

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visa, no ultimo tenno, a restaura9iio de uma integridade primitiva, areintegra9iio de tudo aquilo que constitui 0 objeto do que Freud chama,se bem me lembro, de urna Abtrennung, isto e, de tudo aquilo que aexperiencia levou 0 sujeito a considerar por urn momenta como separadodele. Essa n09ao, teorica, e das mais precarias a ser aplicada em todos osregistros e em todos os niveis, e a fun9iio que ela desempenha no pensa-men to de Freud no momenta da lntrodu~iio ao Narcisismo coloca umaquestiio. Trata-se de saber se podemos confiar nela.

Os autores 0 dizem em termos claros - pois, naquela gera9iio emque niio se era fonnado em serie, sabia-se fazer 0 periplo das aporias deuma posi9iio - 0 investimento dos objetos se deve a urn milagre. E comefeito numa tal perspectiva, isso e urn milagre. Se, no nivel libidinal, 0sujeito e realmente constituido de uma maneira tal que seu fim e sua visadasejam satisfazer-se com urna posi9iio inteiramente narcisica - pois bern,como e que ele nao consegue, de urn modo geral, pennanecer ali? Numapalavra, se alguma coisa pode fazer, por pouco que seja, palpitar essam6nada no senti do de uma rea9iio, pode-se muito bem conceber teorica-mente que seu fim seja a volta Ii sua posi9iio de partida. E dificil de se vero que pode realmente condicionar esse enonne desvio que constitui aestrutura9iio, complexa e rica, com que lidamos nos fatos.

Edisso, exatamente, que se trata, e a que os autores se esfor9am pararesponder ao longo de todo 0 artigo. Eles se engajam com este f1m, demodo bastante servil, devo dizer, nas vias abertas por Freud, relativamenteao que seria a mola da complexifica9iio da estrutura do sujeito, a saber, aentrada em jogo do ideal do eu, tema unico daquilo que desenvolvo hojepara voces. Freud indica, com efeito, na lntrodu~iio ao Narcisismo, quese trata do artificio mediante 0 qual 0 sujeito man tern seu ideal -digamos, para resumir, porque e tarde - de onipotencia. No texto inau-gural de Freud, sobretudo se 0 lennos, isso vem, passa e esclarece, naquelemomenta, urn ntimero ja suficiente de coisas para que nao the pe9amosmais nada. Mas, como 0 pensamento de Freud avan90u urn pouco a partirdali, e complexificou urn pouco seriamente esta primeira diferencia9iio,os autores tern de encarar a defmi9iio distinta de urn ideal do eu queserviria para restituir ao sujeito os beneficios do amor. Freud explica queo ideal do eu e aquilo que, sendo em si mesmo originado nas primeiraslewes do narcisismo, volta a tomar-se aprisionado por ser introjetado.Quanto ao supereu, percebe-se que e preciso admitir que deve existir urnoutro mecanismo, pois, por mais introjetado que seja, nem por isso ele setoma mais benefico.

Paro por aqui. You retomar. Os autores siio necessariamente condu-zidos a recorrer a toda urna dialetica de Eros e Tanatos, 0 que niio e poucacoisa. Isso e urn pouco forte, e e mesmo bastante bonito. Remetam-se aesse artigo, seu dinheiro sera bem empregado.

Antes de deixa-los, queria sugerir a voces algo de vivo e de divertido,destinado a dar-Ihes a ideia daquilo que urna introdu9ao mais justa Iifun9iio do narcisismo pennite articular melhor, a propOsito do eu ideal edo ideal do eu, e de urna maneira que e confirmada por toda a praticaanalitica desde que essas n090es foram introduzidas.

Eu ideal e ideal do eu tern, decerto, a maior rela9iio com certasexigencias de preserva9iio do narcisismo. Mas deve-se levar em conta 0que propus a voces na continua9iio de minha primeira abordagem, umamodifica9iio necessaria Ii teoria analitica tal como esta se engajava na viaonde 0 eu era utilizado como mostrei ha pouco a voces - e isso que lhesensino, ou ensinava, sob 0 nome de estligio do espelho. Quais siio as suasconseqiiencias no que se refere Ii economia do eu ideal e do ideal do eu,e a rela9iio destes com a preserva9iio do narcisismo?

Pois bern, ja que e tarde, YOU ilustrar isso para voces de urna maneiraque, espero, vai lhes parecer divertida. Falei ha pouco do autom6vel,tentemos ver, a partir dai, 0 que e 0 eu ideal.

o eu ideal eo filho de boa familia ao volante de seu carrinho esporte.. Com este, ele vai faze-Ios viajar. Vai se fazer de esperto. Vai exercer seusentido do risco, 0 que niio e de modo algum uma coisa ma, seu gosto peloesporte, como se diz, e tudo vai consistir em saber que sentido ele da aeste tenno, e se 0 esporte niio pode ser tambem 0 desafio Ii regra, niio digoapenas a do c6digo de triinsito, mas tambem da seguran9a.

'Seja como for, e este, exatamente, 0 registro em que ele tera que semostrar, ou niio se mostrar, e saber como convem se mostrar, mais forteque os outros, mesmo que isso consista em fazer com que se diga que eleexagera urn pouco. 0 eu ideal e isso. Abro aqui somente uma porta lateral,pois 0 que tenho a dizer e a rela9iio com 0 ideal do eu. Com efeito, ele niiodeixa s6 e sem objeto 0 eu ideal, porque, afmal, em certas ocasi6es, naoem todas, se 0 rapaz se entrega a esses exercicios escabrosos, e para que?- para conquistar uma garota.

Sera tanto para conquistar urna garota como pela maneira de con-quistar a garota? 0 desejo talvez importe menos aqui do que a maneira desatisfaze-Io. E e exatamente nisso, e por isso, como sabemos, que a garotapode ser absolutamente acess6ria, e ate mesmo faltar.

Em surna, esse e 0 lado onde 0 eu ideal vem assumir seu lugar nafantasia. Vemos aqui, mais facilmente que em outra parte, 0 que regula 0tom dos elementosda fantasia, e que deve existir algo ai, entre os doistennos, que desliza, para que urn dos dois possa tiio facilmente se elidir.Este termo que desliza, nos 0 conhecemos. Nao e preciso aqui apresentli-locom mais comentarios, e 0 pequeno phi, 0 falo imaginario. E 0 que estliem questiio e justamente algo que se pOe Ii prova.

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o que eo ideal do eu? 0 ideal do eu, que tern a mais estreita rela9aocom 0 desempenho e a fun9ao do eu ideal, e simplesmente constituidopelo fato de que, de saida, se ele tern seu carrinho esporte, e porque ele eo filho de boa familia, 0 filhinho de papai, e que, para mudar de registro,se Marie-Chantal, como voces sabem, se inscreve no Partido Comunistae para chatear 0 pai. '

Saber se ela nao desconhece, nessa fun9ao, sua propria identifica9aocom 0 que se trata de conseguir chateando 0 pai e ainda urna porta lateralque vamos nos abster de empurrar. Mas digamos que ambos, Marie-Chan-tal e 0 filho de papai ao volante de seu carrinho, estariam simplesmenteenglobados no mundo organizado pelo pai, se nao houvesse justamente 0significante pai, que permite, se posso dizer, esquivar-se a ele paraimaginar que se vai chatea-Io, e mesmo para alcan9ar isso. E 0 que seexprime, dizendo-se que ele ou ela introjeta na ocasiao a imagempaterna.

Isso nao e tambem dizer que este e 0 instrumento gra9as ao qualos dois personagens, masculino e feminino, podem se extrojetar das.itua9ao objetiva? A introje9ao e isso, em suma - organizar-se subje-tlvamente de modo a que 0 pai, com efeito, sob a forma do ideal do eunem tao mau assim, seja urn significante de on de a pequena pessoa,macho ou femea, venha a se contemplar sem excesso de desvantagemao volante de seu carrinho, ou brandindo sua carteira do PartidoComunista.

Em suma, se por esse significante introjetado 0 sujeito cai soburn julgamento que 0 reprova, ele assume dessa forma a dimensao doreprovado, 0 que, como todos sabem, nada tern de narcisicamente taodesvantajoso. Mas dai resulta, entao, que nao podemos dizer tao sim-plesmente· quanto a fun9ao do Ego ideal que ela realiza de formamaci9a a coalescencia daquilo que e ganho narcisico, como se issofosse, pura e simplesmente, inerente a urn linico efeito no mesmoponto.

E isso que tento articular para voces com meu pequeno esquemada outra vez, da ilusiio do vasa invertido, que niio farei novamenteporque nao tenho tempo, mas que ainda esta presente, imagino, numcerto mimero de memorias. E somente de urn ponto que se pode versurgir em torno das flores do desejo essa imagem - real, vamosobservar - do vasa produzida por intermedio da reflexiio de urnespelho esferico, em outras palavras, da estrutura particular do serhumano na medida em que a hipertrofia de seu ego parece estar ligadaa sua prematura9iio.

A distin9iio necessaria entre 0 lugar onde se produz 0 ganho narci-sico e 0 lugar onde 0 Ego ideal funciona for9a-nos a interrogar diferente-mente a rela9iio de urn e de outro com a fun9iio do amor. Essa rela9iio,

niio se trata de introduzi-la de maneira confusa, e menos ainda no nivelem que estamos da analise da transferencia.

Deixem-I)le ainda, para terminar, falar-lhes do caso de urna paciente.Digamos que ela toma mais que liberdades com os direitos, seniio

com os deveres, do la90 conjugal e que, meu Deus, quando tern umaliga9iio, sabe levar suas conseqiiencias ate 0 ponto mais extremo daquiloque um certo limite social, 0 do respeito oferecido pela honra de seumarido, the ordena respeitar. Digamos que seja alguem que saiba, admi-ravelmente, manter e exibir as posi90es de seu desejo. E prefrro dizer avoces que, com 0 tempo, ela soube, no interior de sua familia, quero dizer,sobre seu marido e seus amaveis rebentos, manter absolutamente intatourn campo de for9a de exigencias estritamente centrado nas necessidadeslibidinais dela.

Quando Freud nos fala, em algurn lugar, se bem me lembro, daKniidelmoral - isso quer dizer a moral do macarriio, concernente amulher, ou seja, as satisfa90es exigidas - nao se deve acreditar que issosempre de errado. Existem mulheres que sao excessivamente bem-suce-didas, so que mesmo assim ela precisa de uma analise.

o que e que, durante todo urn tempo, eu realizava para ela? Osautores daquele artigo nos darao a resposta. Eu era seu ideal do eu, namedida em que eu era 0 ponto ideal onde a ordem se mantem, e de umamaneira tanto mais exigida quanta e a partir dali que toda desordem epossivel. Em suma, niio era possivel naquela epoca que seu analistapassasse por urn imoralista. Se eu tivesse tido a inabilidade de aprovaralgum dos seus excessos, era de ver-se 0 que teria resultado. Mais queisso~aquilo que ela podia entrever de uma certa atipia da minha propriaestrutura familiar, ou dos principios nos quais eu educava aqueles queestiio sob minha dependencia, nao deixava de abrir para ela todas asprofundezas de urn abismo que rapidamente se tornava a fechar.

Nao creiam que seja tiio necessario que 0 analista ofere9a efetiva-mente, gra9as a Deus, todas as imagens ideais que se formam sobre suapessoa. Simplesmente ela me assinalava, a cada ocasiao, tudo aquilo deque, no que se referia a mim, ela nada queria saber. A linica coisarealmente importante era a garantia que ela possuia, podem me acreditarnisso, de que com, rela9iio a sua pessoa, eu nao me abalaria.

o que significa essa exigencia de conformismo moral? Os moralis-tas atuais tern, como imaginam, a resposta - naturalmente que essapessoa, para levar urna vida tiio animada, nao devia ser de urn meiopopular. E portanto 0 moralista politico dira a voces que 0 que se tratavade conservar era principalmente uma tampa sobre as questOes que pode-riam ser colocadas com referencia as legitimidades do privilegio social,e isso tanto mais que, como voces certamente pensam, ela era um tantinhoprogressista.

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Pois bem, considerando a verdadeira dinamica das for~as, e aqui queo analista tem sua palavrinha a dizer. Abertos os abismos, podia-sefecha-Ios para a perfeita conformidade dos ideais e da realidade daanalise. Mas creio que a coisa que devia ser mantida, em todos os casos,ao abrigo de todo tema de contesta~ao, e que ela tinha.os mais bonitosseios da cidade.

o que, como bem podem imaginar, as vendedoras de sutias naocontradizem jamais.

A IDENTIFICA~AOPOR "EIN EINZIGER ZUG"

A m6nada primitiva do gozo.A introjefiio do objeto imperativo.o Outro no estagio do espelho.Os tres modos.Do rico e do santo.

"-Vamos prosseguir nossas afirma~()es, visando atingir nosso objetivo,talvez ousado, deste ano, que e formular aquilo que 0 analista deve serrealmente para responder Ii transferencia - 0 que implica, tambem, emsaber aquilo que ele deve ser, aquilo que ele pode ser, em seu futuro. E epor isso que qualifiquei nosso objetivo de ousado.

Voces viram delinear-se da ultima vez, a prop6sito da referenciaque lhes fiz ao artigo de Iekels e Bergler em Imago, ana 1934, isto e,um ana depois de terem feito essa comunica~ao Ii Sociedade de Viena,que fomos levados a colocar a questao em termos da fun~ao do narci-sismo considerada na sua rela~ao com todo 0 investimento libidinalpossivel.

Voces sabem 0 que nos autoriza a considerar que 0 dominio donarcisismo ja esta aberto e amplamente debatido. Vamos ver de quemodo a posi~ao especifica que e a nossa, ou seja, aquela que lhesensinei aqui, amplia, ou melhor, generaliza a concep~ao habitualmenteaceita. Generalizando-a, ela permite que se percebam algumas arma-dilhas incluidas na particularidade da posi~ao comumente promovidapelos analistas.

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dc ilumina~ao ambicntc, a imagcm de urn buque, na realidadc dissimuladadcbaixo de um'Suporte, sc erige acima deste.

Semelhantcs artificios sao tambem bastantc emprcgados em todasas especies de truques que os ilusionistas apresentam ocasionalmente.Pode-se fazer ver, da mesma maneira, qualquer outra coisa alem de urnbuque.

Aqui, por razoes que sao de apresenta~ao e de utiliza~ao meta fori-cas, e 0 proprio vasa que esta dissimulado sob esse suporte, em came eosso em sua autentica cerami ca. Esse vaso vai aparecer sob a forma deuma imagem real, contanto que 0 olho do observador esteja, por urn lado,suficientemente afastado e, por outro lado, no campo de um cone repre-sentando um campo determinado pela oposi~ao de linhas que reunem oslimites do espelho esferico em seu foeo de luz.

Se 0 olho estiver suficientemente afastado, vai se seguir que seusminimos deslocamentos nao farao vacilar de modo sensivel a propriaimagem, e permitirao aprecia-Ia como algo cujos contomos se sustentamsos, com a possibilidade da proje~ao visual no espa~o. Essa imagem, quenao e plena, dara no entanto a impressao de um certo volume.

Eis 0 que utilizo para construir um aparelho que tem valor metafo-rico. Se supusermos, com efeito, 0 olho do observador ligado por condi-lYoestopologicas, espaciais, a ser incluido no campo espacial em tomo doponto onde a produ~ao dessa Husao e possivel, ele percebera essa ilusaoestando, ao mesmo tempo, num ponto que the toma impossivel percebe-Iadiretamente. Para toma-Io possivel para ele, pode-se ulilizar um artificio,que consiste em coloear, em alguma parte, um espelho plano, que chama-remos de grande A em razao da utiliza~ao metaforica que the daremos emseguida, na qual 0 olho vera se produzir de urna maneira refletida a mesmailusao, sob as especies de urna imagem virtual da imagem real. Em outraspalavras, ele vera se produzir sob a forma refletida de urna imagem virtuala mesma ilusiio que se produziria para ele se se coloeasse no espa~o real,isto e, num ponto simetrico, com rela~ao ao espelho, daquele que ocupa,e se olhasse 0 que acontece no foeo de luz do espelho esferico, ou seja,no ponto onde se produz a ilusao formada pela imagem real do vaso:

Assim como na experiencia classica, 0 buque, 0 vaso tcm aqUl suautilidade, a de permitir ao olho acomodar-se de maneira tal que a imagemreal the apare~a no espa~o. Inversamente, supomos a existencia de urnbuque real que a imagem real do vaso vira circundar em sua base.

Chamamos A a esse espelho, chamamos i(a) a imagem real do vaso,chamamos a as flores. E voces vao ver que isso vai nos servir de suportepara as explica~oes que temos a dar relativamente as implica~6es dafun~ao do narcisismo, na medida em que 0 ideal do eu desempenha af estepapel de mola introduzido pelo texto original de Fr~ud sobre a.Introdl;-r~oao Narcisismo. E a esse papel de mola que se da tamanha unpottancla

Indiquei-lhes, da ultima vez, que podiam ser encontrados, em Obertra-gung und Liebe, se nao todos os impasses a que a teoria do narcisismoarrisca levar aqueles que a articulam, pelo menos alguns deles. A obra deurn Balint, por exemplo, girainteiramente em tomo da questiio do preten-so auto-erotismo primordial, e da maneira pela qual ele e compativel aomesmo tempo com os fatos observados e com 0 desenvolvimento neces-sario da experiencia analftica.

Acabo de por no quadro para voces, como suporte, um pequenoesquema que nao e novo, e que voces encontrarao muito mais capri-chado, perfeito, no proximo numero de La Psychanalyse. Nao quis,aqui, faze-Io para voces em todos os detalhes que recordam sua perti-nencia ao dominio otico, tanto por nao estar especialmente disposto ame cansar, quanto porque isso teria tornado, no total, mais confuso esteesquema a giz.

Lembro a voces aquela velha historia chamada, nas experienciasclassicas de fisica de nivel recreativo, da ilusao do buque invertido, porque se faz aparecer, gra~as a opera~ao do espelho esferico colocado portras de urn certo aparelho, uma imagem, sublinho, real - quero dizer quenao e uma imagem virtual mostrada atraves de um espelho. Sob a condi~aode que se tenha respeitado, com uma precisao suficiente, certas condi~oes

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q~ndo ~os dizem que 0 ideal do eu e tambem 0 ponto axial dessa espiciede Ident1fica~iio cuja incidencia seria fundamental na produ~iio do feno-menD da transferencia.

Niio escolhi, realmente, ao acaso 0 artigo de que Ihes falei da ultimave~. Ao contrario, ele e absolutamente exemplar, significativo e bemaruculado, n~ da.ta em que foi ~scrito, quanta Ii no~iio do ideal do eu, talcomo esta f01 cnada e generahzada no meio analitico. Que ideia tern osautores no ~omento em que come~am a elaborar essa n~iio que e de umagrande novldade ~a conce~iio da analise por sua fun/Yiiotopica? Consul-tern desc?mpro~ussadamente os trabalhos clinicos, os relatos terapeuti-cos, as dlSCUSSoeSde casos, para perceber. a ideia que disso fazem osautores.de enta~, e as dificuldades de aplica/yiio encontradas por e1es.

EIS, ao menos em parte, 0 que eles elaboram. Se forem lidos comaten~iio suficiente, fica evidente que, para apreender a eficacia do idealdo eu na medida em que ele intervem na fun/Yiit>da transferencia e1es viioconsiderar este ideal do eu como urn campo organizado de ;ma certamaneira no interior do sujeito.

. .A n~iio de interior e uma fun/yiio topologica capital no pensamento~nahu~o, Ja que mesmo a introje/Yiio se refere a ela. a campo organizadoe consIderado de forma bastante ingenua, na medida em que niio se fazemde modo al~um distin~6es, nessa epoca, enlre 0 imaginario e 0 real. Nesseestado de Imprecisiio e de indistin/yiio de no/yoes topologicas somosrealmenle for~ados ~ dizer q.ue, grosso modo, devemos represe~tar esse~~m~ de uma maneIra espaclal ou quase espacial, digamos - a coisa niioe mdlCada, mas e implicada pela maneira como nos falam dela - comouma superficie ou como urn volume, em ambos os casos como urna formade alguma coisa que, pelo falo de ser organizada Ii imagem de outra coisaapresenta-se como dando seu suporte e seu fundamento Ii ideia de identi~fica~iio. Em suma, trata-se de uma diferencia~iio produzida no interiorde urn cerlo campo topico pela opera~iio particular que se chamaidentifica/yiio.

Esobre essas formas identificadas que os autores colocam quest6es.? que fazer P?r.a que elas possam preencher a sua fun~iio economica? Niioe nosso proposIt~, .e isso nos levaria demasiado longe, tratar hoje daquiloque torna necessana, para os autores, a solu~iio que e1es adotam, bastantenova no momento em que aparece, ou pelo menos ainda niio de todovulgarizada. Existem em certas afirma~oes do texto de Freud as quais elesse referem, afmna/y6es laterais no contexto, 0 esbo~o da solu~iio aquiproposta ~e modo acen~do. Essa solu~iio consiste em supor que 0 campoem questao tern a ~ropnedade de ~er inves~do de uma energia neutra.. a que quer dizer essa energla neutra Introduzida na diniimica ana-

HUca? N? ponto em que ~tamos de evolu~iio da teoria, isso niio quer dizernada mats que uma energla que se distingue por niio pertencer nem a uma

nem a outra - e isso 0 que significa 0 neutro - das duas vertentes dacnergia pulsional, na medida em que sua segunda topica obrigou Freud aintroduzir a no~iio de uma energia distinta da libido - a da Totentrieb,na fun~iio a partir dai demarcada pelos analistas sob 0 termo de l'anatos,o que niio contribui, decerto, para esclarecer sua no~iio - e a acoplar,num manejamento oposto, os termos Eros e Tanatos.

E nesses termos que a dialetica nova do investimento libidinal emanejada pelos autores em questao. Eros e Tanatos siio agitados ali comoduas fatalidades primordiais por tras de toda a mecanica e dialeticaanaliticas. E, esse campo neutralizado, ai esta a partir do que nos vai serdesenvolvido naquele artigo 0 destino da Trieb, para lembrar 0 termo deque Freud se serve para a pulsiio. Trata··se de conceber este campo e suafun~iio economica de uma maneira que 0 tome utilizavel tanto em suafun~iio propria de ideal do eu quanta no fato de que e no lugar desse idealdo eu que 0 analista sera convocado a funcionar. E ai esta 0 que os autoressiio levados a imaginar.

Estamos na mais elevada, na mais elaborada metapsicologia .Como conceber as origens concretas do ideal do eu? Para esses

autores - como e legitimo, e nada temos a Ihes invejar, se podemos dizer,visto 0 que os desenvolvimentos da teoria kleiniana nos trouxeram desdeenta~ - essas origens niio siio separaveis daquelas do supereu, ao mesmotempo em que siio distintas des las, isto e, estao acopladas a elas. Eles sopodem, a partir dai, conceber essas origens sob a forma de uma cria/yiiodo Tanatos.

Com efeito, se partimos da n~ao do narcisismo original, perfeitoquanto ao investimento libidinal, se concebemos que 0 objeto primordiale primordialmente incluido pelo sujeito na esfera narcisica, monad aprimitiva do gozo, Ii qual e identificado, de uma maneira, alias, absoluta-mente arbitraria, 0 bebe, niio se ve bem 0 que poderia acarretar umasaida subjetiva, e os pr6prios autores niio hesitam em considerar essadedu~iio como impossive!. Ela 0 e, com efeito, a menos que sejatambem incluida nessa monada a potencia devastadora de Tanatos. Porque nao consideni-Ia como a fonte daquilo que obriga 0 sujeito, sepodemos exprimir isso assim brevemente, a sair de seu auto-envolvi-mento narcisico?

Em suma, os autores niio hesitam - nao assumo essa responsabili-dade, estou fazendo um comentario sobre eles, e pe~o a voces que serefiratn ao texto para ver que ele e exatamente como 0 apresento - ematribuir a Tanatos como tal a fun~iio do ·objeto. E ficam, eles proprios,bastante espantados com isso para introduzir nas ultimas paginas umllcerta interroga~iiozinha humoristica - Teriamos chegado a dizer quc, 'msuma, e somente pelo instinto de destrui~iio que alcan/yamos realmcnt . 0contato com qualquer objeto que seja?

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Na verda de, se eles se interrogam assim para dar urn clima, urn toquede humor ao seu proprio desenvolvimento, nada, afinal, vem contradizeressa passagem, com efeito, necessaria, se se for levado a dever seguir 0caminho que e 0 de1es. No momento, alias, nao e essa passagem queconstitui problema para nos. Isso e concebivel, ao menos localmente,numa perspectiva diniimica, a titulo de nota'Yao de um momenta signifi-cativo das primeiras experiencias infantis. Talvez seja, com efeito, nummomento de agressao, que se coloque a diferencia'Yao, senao de todoobjeto, ao menos de um objeto altamente significativo.

Seja como for, desde que 0 conflito tenha eclodido, e 0 fato de queeste objeto possa ser introjetado a semelhante grau que Ihe dara seu pre'Y0e seu valor. E, da mesma forma, reencontramos ai a esquema classico eoriginal de Freud, da introje'Yao de urn objeto imperativo, interditor,essencialmente conflitual.

Freud nos diz, com efeito, que e na medida em que esse objeto - 0pai, por exemplo, numa primeira esquematiza'Yao sumaria e grosseira docomplexo de Edipo - tera sido interiorizado, que e1e Ira constituir 0supereu. Isso representa, no total, urn progresso, uma a'Yao benefica doponto de vista libidinal, ja que, pelo fata de ser introjetado, ele entra -esta e uma primeira tematica freudiana - na esfera que, no minimo porser interior, e, por este fato apenas, investida 0 suficiente narcisicamente,e pode ser objeto de investimento libidinal para 0 sujeito. E e mais facilfazer-se amar pelo ideal do eu do que pelo objeto que foi, por ummomenta, 0 seu original.

Nem por is so deixa de ser verdade que, por mais introjetado queseja, ele continua a constituir uma instiincia inc6moda. E e justamenteessa ambigiiidade que leva os autores a introduzir a tematica de urn campode investimento neutro. Esse campo de trama sera, altemadamente, ocu-pado, depois evacuado, para ser reocupado por cada urn dos dois termos,Eros e Tanatos, cujo maniquelsmo nos incomoda um pouco, e preciso quese diga.

Num segundo tempo introduz-se - ou mais exatamente, e aoexperimentar a necessidade de escandi-Io como urn segundo tempo queos autores percebem que Freud 0 introduzira desde 0 inicio - a fun'Yaopossivel do ideal do eu na Verliebtheit, bem como na hipnose.

Hypnose und Verliebtheit eo titulo de um dos capitulos da Massen-psychologie.

o ideal do eu, doravante constituido, introjetado, pode ser projetadosobre urn objeto. Para dizer a verdade, 0 fato de que a teoria cllissica naofa<,:adistin'Yao entre os tres registros do simb6lico, do imaginario e do real,faz com que as fases da introje'Yao e da proje'Yao pare'Yam, nao obscuras,mas arbitrlirias, suspensas, gratuitas, entregues a uma necessidade quesomente se explica pela contingencia mais absoluta. E e na medida em

que 0 ideal do eu pode ser reprojetado sobre um objeto que esse o?jeto,se chegar a ser fayorave1 a voces, se os olhar ~o~ bons ?lh?s, sera pa~avoces objeto de investimento amoroso da malOr 1mporta.nc1a. A descn-<,:aoda fenomenologia da Verliebtheit e aqui introduzida por Freud ~umnivel que toma possivel uma ambigiiidade quase total com os efe1tosda hipnose.

Em seguida a essa segunda posi'Yao, nada impede nossos autores deimplicar uma segunda retroinje'Yao. Em certos estados mais ou m~nosextremos nos quais e1es nao hesitam em incluir os estados de manta, 0proprio ideal do eu, arrebatado pelo entusiasmo da efu:'~o de amorimplicada na segunda proje'Yao, pode desempenhar p~ra.o sUJe1to~ mes~afun/yao que se estabelece na rela'Yao de total dependenc1a da Verlzebtheu.o ideal do eu pode tomar-se ele mesmo algo de equivalente aquilo ~ue,no amor, pode dar a plena satisfa'Yao do querer ser amado, do gellebtwerden wollen.

Se essas descri/yoes, sobretudo quando sao ilustradas, arrastam atrasde1as certos farrapos de perspectiva cujosjlashes enco~tramos ~a clinic~,nao e dar provas de uma exigencia exagerada em matena conce1t~1 se~urque nao poderiamos, por muitas razOes, ficar completamente SatlSfe1toscom e1as.

Vou imediatamente pontuar 0 que creio poder dizer, e que essa pequenamontagem articula de maneira ma~s elaborada. .' . .

Como qualquer outra descn/yao dessa espec1e, de ordem top1ca,como os esquemas feitos pelo proprio Freud, nao existe espicie algum~,nao apenas de pretensao, mas mesmo de pos~ibilidade ~e representar seJao que for da ordem do orgiinico. Entenda-se bem que nao somos daquel.esque imaginam que com a opera/yao cinirgica adequ~da, u~a lobotomta,retira-se em algum lugar 0 supereu com uma colherinha. Ha pessoas queacreditam nisso, e que escreveram - com a lobotomia, tira-se 0 supereue se 0 coloca de lado, numa bandeja. Nao se trata disso.

Observemos 0 que e articulado pelo funcionamento implicado poresse pequeno aparelho. Nao e sem motivo que ele reintroduz uma meta-fora de natureza otica. Ha para isso uma ratio que nao e de comodidade,mas de estrutura. Se 0 espelho intervem e porque, no que conceme aodominio imaginario, 0 que e da ordem do espelho vai muito mais longeque 0 modelo. .

Mas prestem aten/yao, este esquema e de uma ordem urn pouq~nhomais elaborada que a da experiencia concreta. que se produz para a cnan/yadiante de uma superficie real que desempenha 0 papel de espelho, em geral

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um espelho plano ou uma superficie polida. 0 que e aqui represenmdocomo espelho plano tem um outro emprego. 0 esquema tem, com efeito,o interesse de introduzir a fun~ao do grande Outro, cuja cifra, sob a formada letra A,33 e aqui colocada no nivel do aparelho do espelho plano, namedida em que essa fun~ao deve ser implicada nessas elabora~oes donarcisismo respectivamente conotadas como ideal do eu e como eu ideal.

Para nao lhes fazer desse esquema uma descri~ao seca, e quecorreria ao mesmo tempo 0 risco de parecer arbitniria, 0 que ela nao e,YOUintroduzi-Io, inicialmente, sob a forma do comentario exigido pelosautores a que nos referimos, na medida em que eram impelidos pelanecessidade de enfrentar um problema de pensamento e de observa~ao.Isso nao e, certamente, com 0 fim de acentuar os aspectos negativos daelabora~ao deles, mas antes 0 que esta tem de positivo, 0 que e sempremais interessante.

Observemos portanto que, segundo e1es, 0 objeto e criado, falandopropriamente, pelo instinto de destrui~ao, Destruktionstrieb, Tanatos,como e!es 0 chamam - digamos, por que nao, 0 6dio. Vamos acompa-nha-Ios. Se e assim, permanecera algo do objeto depois do efeito destru-tivo? Isso nao e absolutamente impensavel. Nao apenas nao e impensavel,mas reencontramos ai 0 que n6s mesmos elaboramos de uma oUtramaneira no nivel daquilo a que chamamos 0 campo imaginario e seusefeitos. 0 que resta, 0 que sobrevive do objeto depois do efeito libidinalda Trieb de destrui~ao, depois da implica~ao do efeito tanat6geno, ejustamente aquilo que eterniza 0 objeto sob 0 aspecto de uma forma, e 0

que 0 fixa para sempre como tipo no imaginario.Existe na imagem algo que transcende 0 movimento, 0 mutavel da

vida, no sentido em que a imagem sobrevive ao vivo. Este e urn dosprimeiros passos da arte, para n6s antiga - na estatuaria e etemizado 0

morto. Essa e igualmente, na nossa e1abora~ao do espelho, a fun~aopreenchida de urna certa maneira pela imagem do sujeito. Quando essaimagem chega a ser percebida por e1e, alguma coisa the e subitamenteproposta ali onde the nao se limita lei receber a visao de urna imagem emque se reconhece, essa imagem ja se apresenta como uma Urbild ideal,algo de ao mesmo tempo na frente e atras, algo de sempre, algo quesubsiste por si, algo diante do qual ele ressalta suas pr6prias fissuras, porser prematuro, e experimenta a si mesmo como ainda insuficientementecoordenado para responder a ela em sua totalidade.

A crian~a pequena, as vezes ainda encerrada nesses aparelhinhoscom os quais com~a a fazer suas primeiras tentativas de marcha, e naqual ate 0 gesto de pegada do bra~o ou da mao ainda sao marcados peloestilo da dissimetria e da inapropria~ao, e muito supreendente ve-Io, esteser ainda insuficientemente estabilizado, mesmo no nive! cerebelar, aindaassim agitar-se, inclinar-se, curvar-se, entortar-se com todo urn balbuciar

expressivo diante da sua pr6pria imagem, desde que se lhe, t~nha posto aoalcance, suficientemente baixo, um espelho. Ela mostr~ ass?Jl, de f~rmaviva 0 contraste entre a coisa desenhavel que esta all projetada dlantedela: que a atrai, com a qual obstina-s~ e.m brincar, e aquele algo deincompleto que se manifesta em seus propnos gestos. .

Esta e minha velha tematica do estligio do espelho, o?de vejo u~areferencia exemplar, altamente significativa. Ela nos permtte presenuh-car os pontos-chave, ou os pontos de entroncaI?~nto, e conceber a reno-va~ao dessa possibilidade sempre aberta ao SUjelto, d~ um .auto-queb~a-mento, de urn auto-dilaceramento, de uma auto-mordida, di~te da.9mloque e ao mesmo tempo e1e e um outro. Existe uma certa dimensao. ~econflito que nao tem outra solu~ao alem de um ou ..... , ou ..... E necessanoa ele ou'tolerar 0 outro como uma imagem insuportavel, que 0 arre~a~ d~si mesmo, ou quebra-Io imediatamente: inverter, anular a posl~ao afrente a fim de conservar aquilo que e, naquele momento, centro epUIsa~ de seu ser, evocado pela imagem do outr~,. seja e~ta esre~ul~rou encamada. 0 la~o entre a imagem e a agresslvldade e, aqul, mtel-ramente articulavel.

A partir dai, sera concebivel urn desen~olviroent? do ~ndividuo quealcance uma suficiente consistencia do objeto e a dlversldade da faseobjetal? Pode-se dizer que isso foi tentado. A dialetica ~egeliana doconflito de consciencias nada mais e, afinal, que uma tentaUva de e1a~o-ra~ao do con junto do Mundo do sa?er humano a partir de um puro conflitoradicalmente imaginario e destruUvo em sua ongem.

Voces sabem que ja apontei por diversa~ veze~ os ~us .pontoscriticos as suas hiancias. Sem renovar essa dlscussao hOje, dlga.mosapenas ~ue e impossivel deduzir, a partir desse inic.io radicalmente. una-ginario, tudo aquilo que a dialetica hegeliana acredi~ poder de~uZlr. ~implica~6es desconhecidas dela mesma que the permttem funclonar n~opodem de modo algum se contentar com esse su~rte. Mesm~ que a m.aoque se estende - e esta pode ser a mao de urn sUJel!Od~ uma l~de mUltotema, acreditem-me, como demonstra a observa~ao dtreta malS comut.D_ que a mao que seestende em dire~ao a fig~ra de seu ~e~e1hante estejaarmada com urna pedra - a crian~a nao preclsa ter mUlta l~de para ~er,senao a voca~ao, pelo menos 0 gesto de Caim - e se esta mao for deudapor uma outra mao, a daquele que e amea~ado, e se esta pedra, e1es apousarem juntos e ela constituir. um objeto: ta~vez de acordo, ou dedisputa, pois bem, esta sera, se qUlserem, a pn~~tra pedra de urn Mundoobjetal mas isso nao ira aMm, nada se constrUlra sobre e1a.

D que se evoca em eco, numa harm~nica: e 0 ap6logo .d~quele quedeve atirar a primeira pedra. E, com efelto, e hem necessano q~e, III

primeiro lugar, essa pedra nao tenha sido atira~. E uma vez que nao s . l~

tenha atirado, nao se ira atira-Ia contra nada malS. Mas para que se funel

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alguma coisa que se abra a uma dialetica, e preciso, mais aMm, queintervenha 0 registro do grande Outro.

E isso que exprime 0 esquema. E na medida em que 0 terceiro, 0

grande Ou~ro, intervem na rela~ao do eu com 0 pequeno outro, que algopode funclonar, algo que acarreta a fecundidade da propria rela~aonarcfsica.

Vamos exemplifica-Io num gesto da crian~a diante do espelho, gestoque e hem conhecido e que nao e dificil de se observar. A crian~a que estanos bra~os do adulto e confrontada expressamente com sua imagem. 0adulto, quer 0 compreenda ou nao, se diverte com isso. E preciso dar,entii~, toda a sua importiincia a este gesto da cabe~a da crian~a que, mesmodepols de ter sido cativada pelos primeiros esb~os do jogo que faz diantede sua ~ropria imagem, volta-se para 0 adulto que a carrega, sem que sepossa dlzer sem dtivida 0 que espera disso, se e da ordem de' um acordoou de um testemunho, mas a referencia ao Outro vem desempenhar al umafun~ao essencial. Nao e for~ar essa fun~ao articula-Ia dessa maneira esituar, assim, aquilo que se ligara, respectivamente, ao eu ideal e ao id;aldo eu na continua~ao do desenvolvimento do sujeito.

Desse Outro, na medida em que a crian~a diante do espelho volta-separa ele, 0 que pode vir? Nos dizemos que so pode vir 0 signoimagem dea, e.ssa imagem ~specular~ des~javel e destruidora ao mesmo tempo,efettvamente deseJada ou nao. E lSSOque vem daquele para 0 qual 0 sujeitose volta, no proprio lugar onde ele se identifica nesse mom en to, na medidaem que sustenta sua identifica~ao com a imagem especular.

A partir desse momento original, e sensivel para nos 0 carater quechamarei de antagonista do eu ideal. Ou seja, ja nessa situa~ao especularse desdobra, e desta vez no nivel do Outro, para 0 Outro e pelo Outro 0

eu desejado, entendo desejado por ele, e 0 eu autentico, 0 authent-Ich se.. . ,me penmtem tntroduZIr este termo, que nada tem de tiio novo no contextoem questii~ - com a ressalva de que, nessa situa~ao original, e 0 idealque esta alt, falo do eu ideal e nao do ideal do eu, e que 0 autentico euainda esta por vir.

Sera atraves da evolu~ao, com todas as ambigilidades do termo queo_autentico eu :-ira a luz, e sera desta vez amado apesar de tudo, apes~r denao ~r a perfel~ao. E da mesma forma que funciona, em todo 0 progresso,o eu Ideal. Toda a seqiiencia de seu desenvolvimento com seu carater deprogresso, se faz contra 0 vento, no risco e no desafi~.

o que e, aqui, a fun~ao do ideal do eu? Voces me dirao - e oOutroo grande A. Mas voces bem percebem que 0 Outro, aqui, esta unicament~concernido como 0 lugar de onde se constitui a perpetua referencia do euem su~ osci"a~ao patetic,a, nessa imagem que se oferece a ele e com qu~ele se.ldentlfica. 0 eu so se apresenta e se sustenta, como problematico,a parttr do olhar do grande Outro. 0 fato de que este olhar seja interiori-

zado por sua vez niio quer dizer que ele se confunda com 0 lugar e 0

suporte que ja estiio constituidos como eu ideal. Isso quer dizer outracoisa.

Dizem-nos - e a introje~iio desse Outro. Isso vai longe. Isso e suporuma rela~iio de Einfiihlung tiio global quanta aquela comportada pelareferencia a um ser, este organizado, 0 ser real que serve de suporte acrian~a diante de seu espelho. Ai esta, voces bem perce hem, toda aquestiio.

Ainda que este ponto deva constituir hoje nosso objetivo, YOUdizera voces de imediato em que minha solu~iio difere da solu~iio classicamen-te oferecida.

E extraordinariamente importante guardar que, desde os primeirospassos de Freud na articula~iio da ldentifizierung, aos quais voltarei daquia pouco, pois niio se pode escamotea-Ios, esta implica, antes mesmo doesbo~o da situa~iio do Edipo, uma primeira identifica~iio possivel aopai como tal. 0 pai Ihe andava pela cabe~a? 0 fato e que Freud deixao sujeito fazer uma primeira etapa de identifica~iio ao pai, e quedesenvolve aqui todo urn refinamento terminologico, chamando-o deprojeto viril.

Isso se passa no desenvolvimento, niio duvido. Niio e uma etapa16gica, mas uma etapa do desenvolvimento que se situa antes do enga~a-mento do conflito do Edipo, a ponto de Freud chegar a escrever que e apartir dessa identifica~iio primordial que despontaria 0 ~esejo pe!a miie eque, em troca, 0 pai seria entiio considerado como urn rIval.

Niio estou dizendo que esta etapa seja clinicamente fundamentada.Digo que 0 fato de que ela tenha parecido necessaria a Freud niio deve serconsiderado como uma extravagancia ou urn disparate. Deve, realmente,haver uma raziio para que ele necessite dessa etapa anterior, e e isso quea continua~iio de meu discurso tentara mostrar a voces.

Freud fala em seguida da identifica~iio regressiva, aquela que resul-ta da rela~iio de amor, e na medida em que 0 objeto se recusa ao amor.Voces ja veem indicado ali porque era necessario que houvesse urn estagiode identifica~iio primordial, mas esta niio e a tinica raziio. 0 sujeito e, pois,capaz por um processo regressivo de se identificar com 0 objeto que 0

decepciona no apelo ao amor.Depois de nos ter dado esses dois modos de identifica~iio no capitulo

Die Identifizierung, Freud introduz 0 terceiro, ja antigo, que se conhecedesde sempre, desde 0 caso Dora, a saber, a identifica~iio que prov~m deo sujeito reconhecer no outro a situa~iio total, global em que ele Vl~~ -a identifica~iio histerica. Porque, na sala onde estiio agrupados os sUjeIt.osum pouco neuroticos e birutas, a coleguinha acaba de receber aquela nolleuma carta de seu amante, nossa histerica faz uma crise. E a identificay~o,em nosso vocabulario, no nive! do desejo. Deixemos isso de lado por hOJe.

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. F~eu~ se detem, em ~u te~to, para nos dizer expressamente que, nosdOISpnmerros modos de IdentIfica~iio que siio fundamentais a identifi-ca~iio se faz sempre por ein einziger Zug. '

Ai esta 0 que nos alivia de muitas dificuldades, sob mais de urnaspecto. Em primeiro lugar, 0 aspecto de ser concebivel, 0 que nao e algoque se deva desdenhar. Em segundo lugar, isso converge com uma n~iioque conhecemos bern, a do significante.

Isso niio quer dizer que esse einziger Zug, este tra~o tinico, seja noenta.nto dado ~o~~ significante. De modo algurn. E muito provavel, separtrrmos da dI.aletIca que tento esbo~ar diante de voces, que seja, possi-vel~ente, urn s~g.no.Para se dizer que isso e urn significante, seria precisomaIS. E ~ecessano que ele .sej~ ul~eriormente utilizado em, ou que estejae?I r~la~ao com urna batena sIgruficante. Mas 0 que e definido por esteem eWZlger Zug e 0 carater pontual da referencia original ao Outro narela~iio narcisica.

Ai es~a ? q~e da Aa resp?s.ta a questiio - 0 olhar do Outro, que,

entre os dOIS Irmaos gemeos lrumigos do eu e da imagem do pequenooutro especular, pode fazer a todo instante bascular a preferenciacomo e que 0 sujeito 0 interioriza? Este olhar do Outro devemo~c?n~ebe-lo como sendo interiorizado por urn signo. Isso basta. Einemzzger.Zug ..N~o ha n~cessidade de todo urn campo de organiza~iio ed.e uma IntroJe~~o macI~a. Este ponto, grande I, do tra~o tinico, esteSI~n? do assentlmento do Outro, da escolha de amor sobre a qual 0

sUJ~1tOpode operar, esta ali em algum lugar e se regula na continua~iiodo Jogo do espelho. Basta que 0 sujeito va coincidir ali em sua relas:iiocom? Out.ro_para que este pequeno signo, este einziger Zllg, esteja asua dIsposI~ao.

. ~ode-se distinguir radicalmente 0 ideal do eu e 0 eu ideal. 0pnmerro e uma introje~iio simbolica, ao passo que 0 segundo e a fonte deuma proje~iio imaginaria. A satisfa~iio narcisica que se desenvolve narelas:iio com 0 eu ideal depende da possibilidade de referencia a este termos~m~olico primordial que pode ser mono-fonnal, mono-semantico, einemzzger Zllg.

. Isso e capital para todo 0 desenvolvimento daquilo que temos adlzer.

o registro do amor se desenvolve, se perfila, se inscreve naquilo a que sepode chamar 0 in,condicional da demanda.

Isso e 0 que resulta do proprio fato de demandar, seja 0 que for quese demande - na medida, nao em que se demande alguma coisa, isto ouaquilo, mas que, no registro e na ordem da demanda enquanto pura, estae apenas demanda de ser escutada.

Direi mais - de ser escutada, para que? Pois bern, de ser escutadapara alguma coisa que hem se poderia chamar de para nada. 0 que naosignifica, no entanto, que isso nao nos leve muito longe, pois, implicadonesse para nada, ja esta 0 lugar do desejo.

E justamente porque a demanda e incondicional que nao se trata dedesejo disso ou daquilo, mas de desejo, simplesmente. E e por isso quedesde 0 inicio esta implicada a metafora do desejante, que fiz vocesabordarem por todos os lados no comes:o deste ano.

A metlifora do desejante no amor implica naquilo que ela substituicomo metlifora, isto e, 0 desejado. 0 que e desejado? E 0 desejante nooutro - 0 que s6 se pode fazer se 0 propriQ sujeito for colocado comodesejavel. E isso que ele demanda da demanda de amor.

Niio posso deixar de lembrar a voces neste nivel, antes de vol~r acontinua~ao de nossas afrrma~6es, que 0 amor - como eu lhes dissesempre e voltamos a encontrar sua necessidade por todos os lados - edar 0 que niio se tem - e so se pode amar agindo como quem niio tem,mesmo se se tern. 0 amor como resposta implica no dominio do nao-saher.

Nao fui eu, foi Platiio quem 0 inventou - quem inventou quesomente a miseria, Penia, pode conceber 0 Amor, e a ideia de se fazeremprenhar numa noite de festa. E, com efeito, dar 0 que se tem, isso e afesta, nao e 0 amor.

Dai - conduzo voces um pouquinho depressa, mas verao que naovamos cair - dai resulta que, para 0 rico - isso existe, e ate mesmopensa-se nele - amar necessita sempre de recusar.

Emesmo isso que incomoda. Nao sao so aqueles a quem e recusadoque se incomodam. Os que recusam, os ricos, tambem nao estiio mais avontade. A Versagung do rico esta em toda parte. Ela niio e simplesmenteo tra~o da avareza, e bem mais constitutiva da posi~ao do rico, pense-seo que se quiser, e a tematica do folclore, de Griselidis, com tudo aquiloque tem de sedutor, apesar de que ela e, convenhamos, hem revoltante,esta ai para nos lembrar disso.

Direi mesmo mais, ja que estou falando disso - os ricos nao temboa reputas:ao. Em outras palavras, nos, progressistas, niio gostamosmuito deles. Desconfiemos disso. Talvez esse Odio do rico se deva emparte, por uma via secreta, a uma revolta contra o. amor, sim~lesmentc.Em outras palavras, a uma nega9iio, a uma Verneznung das vIrt~des dapobreza, que bem poderia estar na origem de um certo desconheclmcntodo que seja 0 amor.

Se ainda ~e concederem u.m POuC? de tempo, come9arei a recordar 0 quedevo conslderar como acelto, aqUl, da nossa teoria do amor.

,0 a,mor, ja dissemos, somente se concebe na perspectiva da deman-da. So eXIste amor para um ser que pode falar. A dimensao, a perspectiva.

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a resultado sociol6gico, alias, e bastante curioso. E que, evidente-mente, facilitam-se assim, aos ricos, muitas de suas fun~6es; e-se mode-rado com eles, ou mais exatamente, da-se a eles mil desculpas para seesquivarem a sua fun~ao de festa. Isso nao quer dizer que fiquem maisfelizes por isso.

Em surna, e absolutamente certo para urn analista que ha, no rico,uma grande dificuldade de amar - isso que um certo pregador da Galileiaja havia anotado, de passagem. Talvez seja melhor compadecer-se do ric:.>neste ponto do que odia-Io, a menos que, afinal, odia-Io seja um modo deama-Io, 0 que e bem possivel.

a que ha de certo e que a riqueza tem urna tendencia a tomarimpotente. Vma velha experiencia de analista me permite dizer a vocesque, grosso modo, considero este fato inquestionavel. E e isso que ex plicacertas coisas, afinal. A necessidade, por exemplo, de rodeios. a rico efor~ado a comprar, ja que e rico. E para se recuperar, para ten tar reencon-trar a potencia, ele se esfor~a, comprando, em depreciar. E dele que vemisso, e para sua comodidade. Para isso, 0 modo mais simples, por exemplo,e nao pagar. Assim, as vezes ele espera provocar 0 que jamais podeadquirir diretamente, a saber, 0 desejo do Outro.

Mas chega de ficos. Leon Bloy fez, um dia, La Femme pauvre -estou muito chateado, ha algum tempo que falo 0 tempo todo de autorescat6licos, mas nao e minha culpa se ha muito que observei neles coisasmuito interessantes. Gostaria que alguem, algum dia, percebesse as enor-midades, as coisas prodigiosas, como beneficios analiticos, que estiioescondidas nesse livro que esta no limite do suporuivel, e que apenas urnanalista po de compreender - ainda nao vi nenhum se interessar por ele.Mas ele tambem teria feito bem se escrevesse La Femme riche.

E certo que s6 a mulher pode encamar dignamente a ferocidade dariqueza. Mas, enfim, isso nao basta, e isso levanta para ela, e especial men-te para aquele que postula seu amor, problemas absolutamente particula-res. Mas isso exigiria uma volta a sexualidade feminina, e pe~o desculpaspor indicar isso a voces apenas como urna pequena isca.

Jli que nao poderemos ir mais adiante hoje, e que, quando falamosdo amor, trata-se muito especificamente de descrever 0 campo ondeteremos a dizer qual deve ser nosso lugar na transferencia, eu queria, antesde deixa-Ios, apontar para algo que nao deixa de ter rela~ao com essasafirma~6es s?bre a riqueza, e dizer-Ihes uma palavrinha sobre 0 santo.

Ele nao entra aqui como uma mosca na sopa, pois ainda naoterminamos com nosso Claudet.

Como voces sabem, bem no final, na solu~ao dada ao problema dodesejo em Le Pere humilie, n6s temos um santo. Eo tal de Orian, sobrequem e dito expressamente que, se nada quer dar a pequena Pensee, quefelizmente esui armada 0 suficiente para toma-Io a for~a, e porque ele tem

demasiada alegria, nada mais que isso, a alegria por inteiro, e nao esta. emquestiio desperdi~ar semelhante riqueza com urna pequena aventura, ISS0

e dito no texto, urna dessas coisas que acontecem assim, urn caso de tresnoites de hotel.

Hist6ria esquisita. Ainda assim, e precipitado fazer psicologia apropOsito de cria~ao, e pensar apenas que e um grande recalca~o. !alvezClaudel 0 fosse tambCm, urn grande recalcado. Mas 0 que slgmfica acria~ao poetica, 0 que significa a fun~ao que Orian tem nessa tragedi~,isto e, que isso nos interesse, ai sim, e outra coisa. E e isso que deseJoindicar fazendo com que observem que 0 santo e urn rico. Ele bem quefaz tudo 0 que pode para ter urn ar de pobre, e verdade, ao menos emalguns meios, mas e nisso, justamente, que ele e um rico, e particularmentemiseravel entre os outros, pois a sua nao e uma riqueza de que se possalivrar facilmente.a santo se movimenta inteiramente no dominio do ter. a santorenuncia, talvez, a algumas coisinhas, mas e para possuir tudo. Ese vocesexaminarem bem de perto a vida dos santos, verao que 0 santo s6 podeamar a Deus como urn nome de seu gozo. E seu gozo, em ultima instiincia,e sempre bastante monstmoso.

Falamos aqui, no decorrer de nossas afirma~6es analiticas, de algunstermos hurnanos, entre eles 0 her6i. Essa dificil questao do santo, s6 aintroduzo aqui de uma forma aned6tica, e mais como urn suporte, umdaqueles que acredito necessarios para demarcar nossa posi~ao.

E claro, voces imaginam, que nao nos coloco entre os santos. Epreciso dize-Io. Pois, nao 0 dizendo muitos achariam ainda que este seriao ideal, como se diz.

Ha muitas coisas sobre as quais somos tentados a dizer, a nossorespeito, que ali estaria 0 ideal. A questiio do ideal esta no cora~ao dosproblemas da posi~ao do analista. E isso que voces vao ver ?esenvolver-seem seguida, e 0 que nos convem abandonar dessa categona.

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No que diz respeito ao nosso objetivo, vamos leva-lo desde logo aoponto nevralgico sIe nossos problemas. Ja disse 0 bastante sobre isso paraque voces suspeitem que a formula ($ 0 a) deve ter algo a ver com 0momento dessa orienta~lio em que estamos, e onde a fantasia nlio e apenasformulada, mas evocada, aproximada, acossada de todas as maneiras. Paracompreender a necessidade da formula, e preciso saber que, nesse suportedo desejo, as fun~Oes respectivas dos dois elementos e sua rela~lio fun-cional nlio podem de modo algum ser verbalizadas por nenhum atributoque seja exaustivo, motivo pelo qual devo Ihes dar 0 suporte de doistermos algebricos, e acumular em tomo delas as caracteristicas que estiioemjogo.

$ tem rela~lio com 0 fading do sujeito, ao passo que a, que e 0

pequeno outro, tem a ver com 0 objeto do desejo. Essa simbolizal):lio jatern por efeito mostrar a voces que 0 desejo nao comporta uma relal):liosubjetiva simples com 0 objeto. Nlio basta dizer que, na relal):liodo sujeitocom 0 objeto, 0 desejo implica uma medial):lio ou um intermediarioreflexivo, se apenas esta em questiio, por exemplo, 0 sujeito se pensando,como ele se pensa, na relal):liode conhecimento com 0 objeto. Edificou-se,neste ponto, toda uma teoria do conhecimento, que a teoria do desejo eapropriada, precisamente, para pOr em causa. Isso nos faria estremecer seoutros, antes de nos, ja nlio tivessem posta em causa 0 penso, logo soucartesiano.

Vamos tomar nossa frase de ainda ha pouco e tentar aplica-la.Isso nlio significa que eu os esteja levando desde logo ao ultimo pontode meus resultados, mas leva voces, pela interrogal):lio seguinte, ate 0

meio do caminho. Essa e uma questiio problematica, destinada a orien-ta-los, a dar-lhes a Huslio de que slio voces que estiio buscando - Huslioque sera, alias, prontamente realizada, pois nlio Ihes dou a ultimapalavra, nlio e somente a minha questiio que e heuristica, mas tambemmeu metodo. Logo, 0 que significa 0 desinvestimento do Triebreprii-sentanz, se 0 aplicarmos a nos sa propria formulal):lio? Isso quer dizerque a angustia se produz quando 0 investimento do pequeno a volta aincidir sobre 0 $.

So que, 0 $ nlio e algo de apreensivel, e so pode ser concebido comourn lugar, ja que nem mesmo e 0 ponto de reflexividade do sujeito, que seapreenderia all, por exemplo, como desejante. a sujeito niio se apreendecomo desejante. No entanto, na fantasia, 0 lugar onde 0 sujeito poderia,se ouso dire-lo, apreender-se como tal, como desejante, estli semprereservado. Ele e mesmo de tal maneira reservado que e comumenteocupado por aquilo que se produz de homologo ao estligio inferior dografo, i(a). Nlio e for/yosamente ocupado por ele, mas sim de urn modogeral.

A ANGUSTIANA SUA RELA<;AO COM 0 DESEJO

Lugar do sinal de angustia.a ,;, i(a).o objeto insustentaveL.o Lugar do desejante puro.o desejo, remedio para a angustia.

Vamos transportar-nos imediatamente ao coral):lio do problema evocadopor Freud, que.e 0 do se~tido da anglistia. Vamos, mesmo, mais longe, ja~ue vamos P~lf da questao que se coloca do ponto de vista economico, quee a de saber, dlz-nos Freud, onde e captada a energia do sinal de angustia.

. Na pagina 120 de /nibiriio, Sintoma e Anglistia, segundo capitulo,lelO a frase seguinte - Das Ich zieht die (vorbewllsste) BesetZllng von derzu verdriingenden Triebrepriisentanz ab und verwendet siefiir die Unlust -(Angst)-Entbindung. Tradul):lio - a eu retira 0 investimento pre-cons-ciente do Ttiebrepriisentanz, daquilo que, na pulsiio, e representante. Essecaro representante deve ser recalcado. Ele se transforma, pela ligal):lio, emdesprazer e Angst.

Niio se trata de cair sobre uma frase de Freud e depois comel):ar aelucubrar. Se a col~o ai para voces de safda, e depois de madura reflexlio,po~ uma escolha cUldadosamente deliberada, para incita-los a reler essearttgo sem demora.

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Observem bem que eu nao digo que e a falla da imagem que fazsurgir a angUstia. Digo 0 que disse desde sempre, a saber, que a rela<;:aoespecular, a re1'lH;aooriginaria entre 0 sujeito e a imagem especular seinstala na rea<;:aodita da agressividade.

Jli indiquei, em meu artigo sobre esse tema, que 0 estagio do espelhonao deixa de ter rela<;:aocom a angUstia. Cheguei a indicar, que 0 caminhopara compreender como se corta transversalmente a agressividade eraorientar-se no senti do da rela<;:ao temporal. Com efeito, nao existemapenas rela<;:Oesespaciais que se referendam a imagem especular quandoesta come<;:a a animar-se e torna-se 0 outro encarnado; ha tambem umarela<;:aotemporal - apresso-me em me ver semelhante a ele, senao, ondeirei estar?

Mas se voces se remeterem aos meus textos - a pressologia,aqueles que estao atentos a minhas obras sabem que tratei dela numpequeno sofisma, 0 do problema dos tres prisioneiros - poderao ver queali sou mais prudente e que, se nao vou ate 0 fim da formula e por algumarazao. A fun<;:aoda pressa, a saber, essa maneira por que 0 homem seprecipita em sua semelhan<;:a ao homem, nao e a angustia. Para que aangustia se constitua, e preciso que haja rela<;:aocom 0 nive! do desejo, ee justamente por isso que os conduzo hoje pel a mao no nivel da fantasiapara abordar 0 problema da angustia.

Vou mostrar a voces, com muita I,lntecipa<;:ao, aonde vamos, evoltaremos atras para fazer pequenos rodeios.

Onde estli, pois, 0 analista na rela<;:aodo sujeito com 0 desejo? -com urn objeto do desejo que supomos, na ocasiao, ser urn objeto queporta em si a amea<;:aem questao, e que determina 0 Zuriickgedriingt, 0 arecalcar. Tudo isso, e evidente, nao e definitivo, mas, ja que abordamosassim 0 problema, vamos colocar a questao seguinte - diante de umobjeto perigoso, pois que e disso que se trata, 0 que esperaria 0 sujeito,em condi<;:Oesnormais, de alguem que ousasse ocupar 0 lugar de compa-nheiro? 0 sujeito esperaria de seu companheiro que este the desse 0 sinalde alarme, aquele que, no caso de urn perigo real, faria 0 sujeito fugir.

o que introduzo aqui e aquilo que se lamenta que Freud nao tenhaintroduzido it sua dialetica, pois era real mente 0 que se deveria fazer. Digoque 0 perigo interne e inteiramente comparavel a urn perigo externo, eque 0 sujeito se esfor<;:aem evitli-Io, do mesmo modo como se evita urnperigo externo. Vejam 0 que isso nos oferece como articula<;:ao eficaz parapensar 0 que acontece, realmente, na psicologia animal.

Todos sabem 0 papel desempenhado pelo sinal nos animais sociais,como os animais que andam em bandos. Quando se apresenta 0 inimigodo bando, 0 mais esperto, ou aquele que esta montando guarda entre osanimais do bando, estli ali para senti-Io, fareja-Io, localiza-Io. A gazda,ou 0 antilope, ergue 0 fodnho, emite um pequeno bramido e sem demora

:E isso que exprime a fun~ao da imagem real do vase na Husao dov~o invertido. Essa imagem vem se produzir de malleira a parecercIrcundar a base dos caules flora is que simbolizam elegantemente 0

pequeno a. :E disso que s~ trata, n~ imagem, ou no fantasma narcisico, quevem preencher na fantasIa a fun~ao de $ encaixada no desejo. E podemosconceber que talvez seja justamente a isso a seu apelo que responde aprodu<;:Rodo sinal de angUstia. ' ,

Vou tentar demonstrar este ponto tao importante sobre 0 qual sepode dizer que 0 ultimo artigo de Freud sobre 0 tema n~s da quase todos~s .elementos para resolve-lo, sem the dar, propriamente falando, seuultimo ~uarto de volta. Por ora, 0 parafuso ainda nao estli ajustado.

Digamos com Freud que 0 sinal de angUstia se produz no nivel doeu. Entretant~, gra~as a nossas formaliza<;:Oes, talvez possamos vir a dizerurn pouco malS sobre este no n(vel do eu. Nossas nota~Oes vao nos permitirdeco~por a questao, articuhi-Ia mais precisamente e ultrapassar dessa~anelra alguns dos pontos onde a questao, para Freud, chegou a um1mpasse.

Aqui, vou dar um salto, de imediato.

No m~~ento em <I..ueFre~d no~ fala da economia da transforma~aonecessarIa a produ~ao do smal, dlzendo-nos que nao deve ser necessariauma .qu~ntidade muit? grande de energia para produzir um sinal, ele jaestli mdlcando q,ue eXlste um~ n:la~ao entre a produ~ao do sinal e algo daordem

M

do Verzlcht~ da renuncla, do fato de que 0 sujeito espera. AVe.r~rangung da Tnebrepriisentanz conota igualmente'o desconforto dosUJelto.?saIto consiste em designar aqui para voces aquilo que lhes anuncioha m~to temp~ como 0 lugar em que se mantem, realmente, 0 anaUsta.Isso nao quer dlzer que ele 0 ocupe 0 tempo todo, mas esse e 0 lugar ondeele espera ..A palavra espera assume aqui toda a sua impomncia dado 0

que reencontraremos sobre a fun~ao da espera, a Erwartung, p~a estru-turar 0 lugar do $ na fantasia.

Eu disse que estava dando urn salto, isto e, nao provo, de imediato,para on?e os levo~ Vamos agora dar alguns passos para compreender 0

que esta em questao.Uma coisa nos e dada, e que 0 sinal de angUstia se produz em algum

lugar, algum lugar qu~ pode ser ocupado por i(a), 0 eu enquanto imagemdo outro, 0 eu na medida em que e, basicamente, fun~ao de desconheci-ment~. Ele ocupa esse lug~r, n~o na me~da em que essa imagem 0 ocupa,~as S1m enquanto lugar, Isto e, na medlda em que ocasionalmente essa1magem pode ali ser dissolvida.

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todos partem na mesma dire~iio. a sinal como rea~iio a um perigo numcomplexo social, no nivel biol6gico, e portanto apreensivel numasociedade observavel. Pois bem, 0 mesmo acontece com 0 sinal deangustia - e do alter ego, do outro que constitui seu eu que 0 sujeitopode recebe-Io.

Voces me ouviram, ha muito, adverti-Ios quanta aos perigos doaltruismo. Desconfiem - disse a voces explicitamente - das ciladas doMitleid, da piedade, daquilo que nos impede de fazer mal ao outro, a pobregarota, por isso, casa-se com ela, ficando ambos aborrecidos por muitotempo - estou esquematizando. Apenas, se e por simples humanidadeque os ponho em guarda contra os perigos do altruismo, isso niio querdizer que este seja 0 ultimo recurso, e e nesse ponto, alias, que niio sou,diante do x com quem estou falando na ocasiiio, 0 advogado do diabo, queo traria de volta ao principio de um saudavel egoismo, e que 0 desviariadessa tendencia bastante simpatica que consiste em oiio ser malvado. Eque, de fato, 0 precioso Mitleid, 0 altruismo, niio passa da cobertura deuma outra coisa, e voces viio observar isso sempre, sob a condi~iio,todavia, de estarem no plano da analise.

Aquele que 0 desamparo sufoca e urn obsessivo, e 0 primeiro tempoe a percep~iio disso, com 0 que lhes indico, hem como com aquilo quetoda a tradi~iio moralista permite, no caso, afirmar: 0 que ele respeita, 0que ele niio quer tocar, na imagem do outro, e a sua pr6pria imagem. Sea intatilidade, a intocabilidade dessa imagem nao fosse cuidadosamentepreservada, 0 que surgiria seria simplesmente a angustia.

E a angustia diante do que? - nao diante do outro onde ele se mira,aquela a quem chamei hli pouco a pobre garota, que s6 0 e na imagina~iiodele, pois ela e sempre muito mais dura do que voces possam acreditar.Ele tem angtistia diante da pobre garota enquanto a, nao a imagem de simesmo, mas como 0 objeto de seu desejo.

Ilustro, dessa forma, 0 seguinte ponto, que e muito importante. Semduvida, a angustiase produz topicamente no lugar definido por i(a), istoe, como e articulado pela ultima formula~ao de Freud, no lugar do eu, mass6 hli sinal de angustia na medida em que ele se relaciona com urn objetode desejo, na medida em que este ultimo perturba, precisamente, 0 euideal, i(a), originado na imagem especular.

a sinal de angtistia tem uma liga~iio absolutamente necessaria como objeto do desejo. Sua fun~ao nao se esgota na advertencia de ter quefugir. Ao mesmo tempo em que realiza essa fun~iio, 0 sinal mantem arela~iio com 0 objeto do desejo.

Eis a chave e a mola daquilo que Freud acentua naquele artigo, bemcomo em outros lugares, de maneira repetida e com esse tom, essa escolhade termos, essa incisividade que e, nele, i1uminadora, distinguindo asitua~ao de angustia da do perigo e da do Hilflosigkeit.

No Hilflosigkeit, 0 desamparo, 0 sujeito e pura e simplesmentetranstomado ultrapassado por uma situa~ao eruptiva que nao pode en-, , ffrentar de modo algum. Entre isso e empreender a fuga - ug~ que, pa~anao ser aqui te6rico, 0 pr6prio Napoleao considerava a verdad~1fa s?lu~aocorajosa quando se tratava de amor - existe uma outra solu~ao, e e 0 queFreud nos indica sublinhando na angustia seu carater de Erwartung.

Ai estli a caracteristica central. a fato de que possamos fazer dela,secundariamente, a razao de fugir e uma coisa, mas nao e este 0 seu carMeressencial. Seu carMer essencial e 0 Erwartung, e e isso 0 que designo avoces ao dizer-Ihes que a angustia e 0 modo radical sob 0 qual e mantidaa rela~ao com 0 desejo. .

Quando, por razoes de resistencia, de defesa e de outros mecamsmosde anula~ao do objeto, 0 objeto desaparece, permanece 0 que dele poderes tar, a saber, 0 Erwartung, a dire~ao para 0 seu lugar, lugar de onde ele,a partir de entiio, se ausenta, onde passa a tratar-se apenas de urn unbes-timmte Objekt, ou ainda, eomo diz Freud, de urn objeto com que es~a~o~numa rela~ao de wslichkeit. Quando atingimos este ponto, a angusUa eo ultimo modo, modo radical, sob 0 qual 0 sujeito continua a sustentar,mesmo que de uma maneira insustentlivel, a rela~ao com 0 desejo.

Existem outras maneiras de sustentar ~ relara? com 0 desejo~ que sereferem ao carater insustentlivel do obJeto. E Justamente por lSSOqueexplico a voces que a histeria e a obsessao podem se defini~ a.parti.r de.ssesdois estatutos do desejo que chamei, para voces, de deseJo msaUsfelto edesejo impossivel, instituido na sua impossibilidade. .

Mas basta que voces voltem seu olhar, agora, para a forma matsradical da neurose, a fobia, em tomo da qual gira todo esse discurso deFreud, para ver que ela nao pode se definir de outra ma~eira que nao pelaseguinte: ela serve para sustentar a rela~ao com 0 deseJo sob a forma daangustia. . .

Ha uma coisa, apenas, a acrescentar para defml-Ia plenamen,te,assim como a defini~ao acabada da histeria e da obsessao e preclsoacrescentar a metlifora do outro, no ponto onde 0 sujeito se ve comocastrado confrontado com 0 grande autro. Dora por exemplo, e porintermedio do Sr. K. que ela deseja, mas niio e ele quem ela ama, e sim aSra. K .. "E por intermedio daquele que ela deseja que ela se orienta emdire~ao aquela a quem ama. Epreciso, da mesma maneira, que complete-mos a formula da fobia.

A fobia e realmente a manuten~ao da rela~ao com 0 desejo naangustia, com urn suplemento mais preciso: 0 "lugar do objeto enquanto

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visado pela angtistia e mantido por aquilo que Ihes expliquei longa-mente, a prop6sito do pequeno Hans, ser a fun~ao do objeto f6bico, asaber, <1>,grande Phi. No objeto fobico, trata-se realmente do falo, mase u~ falo que assume 0 valor de todos os significantes, 0 do pai, sepreclso.

~ que e notivel no caso do pequeno Hans e, ao mesmo tempo, aCarenCla e a presen~a do pai - carencia sob a forma do pai real, presen~asob a forma do pai simbolico, invasor. Se tudo isso pode ocorrer no mesmoplano e que 0 objeto da fobia tern a possibilidade infinita de manter umacerta fun~ao em falta ou deficiente, que e justamente diante do que 0

sujeito sucumbiria se nao surgisse, naquele lugar, a angtistia.Vma vez feito este pequeno circuito, voces podem entender como a

fun~ao de sinal da angtistia adverte sobre algo, e algo de muito importantena clinica e na pratica analiticas. A angtistia a qual os seus sujeitos esliioabertos nao e em absoluto, ou nao e unicamente, como se acredita e comovoces procuram sempre, se posso dizer, interna ao sujeito. 0 proprio doneurotico e ser nesse sentido, segundo a expressao do Sr. Andre Breton,urn vasa comunicante. A ahgtistia com que 0 neurotico de voces lida aangtistia como energia, e uma angtistia que ele tern 0 grande habito d: irbuscar aos montes, a torto e a direito, num ou noutro dos grandes A comos quais se defronta. Ela e tao valida e utilizavel para ele quanto aquelade sua propria inven~ao. Se nao levarem isso em conta na economia deuma analise vao se enganar enormemente. Em muitos casos, vao quebrara cabe~a para saber de onde vem, em dada ocasiao, esse pequeno ressur-gimento de angtistia no momenta em que menos esperavam. Nao efor~osamente a dele, aquela sobre a qual voces ja estavam advertidos pelapratica de meses anteriores de analise. Existe tambem ados vizinhos queconta, e depois a de voces. '

Voces pensam, com certeza, que nesse ponto vao saber se orientar.Sabem que ja Ihes deram avisos nesse sentido. Receio que isso nao osaler~e ~uito, tx:is j~stamente, 0 que essa advertencia implica e que aangustIa de voces nao deve entrar em jogo. A analise deve ser assepticano que concerne a angtistia de voces.

o que isso pode querer dizer no plano onde tento mante-Ios este anoo plano sincr6nico, que nao oferece as facilidades da diacronia? Que ~angtistia de voces ja tenha sido amplamente superada na sua analiseanterior nao resolve nada, pois 0 que se trata de saber e em que estatutoa:ual v~es devem estar, voces mesmos, quanta ao seu desejo, para quenao surJa de voces, na analise, nao apenas 0 sinal de angtistia mas apropria angtistia, na medida em que, se ela surge, esta pronta 'para setransportar para a economia do seu sujeito, e isso a medida que ele estimais adiantado na analise, isto e, na medida em que ele vai buscar a viade seu desejo no nivel desse grande Outro que voces sao para de.

Seja como for, para amarrar esseprimeiro no, e preciso f~~e~intervira fun~ao do Outro, do grande A, no ,que se refere a posslblhdade desurgimento da angtistia como sinal.

A referencia ao bando mostra, realmente, que 0 sinal se exerce nointerior de urna fun~ao necessaria de comunica~ao imaginaria, e e por aique quero faze-Ios sentir que, se a ang~stia e urn si~al, isso quer dizer qu~ela pode provir de urn outro. Nem por ISS0,na medlda em que se trata,. ai,de uma rela~ao com 0 desejo, 0 sinal se esgota na metafora do perIgodo inimigo do bando. Com efeito, 0 que distingue 0 bando humano ~obando animal e que, para cad a sujeito, como todos sabem, com exce~aodos empreendedores da psicologia coletiva, 0 inimigo do bando e elemesmo.

Na referencia a realidade do bando, encontramos urna interessantetransposi~ao daquilo que Freud nos articula sob a forma do perigo inte';'Il0'Encontramos, all, precisamente, a confirma~ao daquilo que lhes dlssesempre _ com rela~ao ao univen;;al, 0 in~ividual.e o. c~letivo sao urn. soe mesmo nivel. 0 que e verdadelfo no myel do mdivldual, esse perIgointerno e verdadeiro tambCm no nivel do coletivo. 0 perigo interno aosujeito '6 0 mesmo que 0 perigo intemo ao bando. .

Isso se deve a originalidade da posi~ao do deseJo como tal. Namedida em que 0 desejo vem emergir para preencher a falta de certeza oude garantia, 0 sujeito se acha confrontado com aquilo que the i~por';3' devez que ele nao e apenas urn animal do bando. Talvez ele 0 seJa, so quetoda a~ao elementar de sua parte, que existe certamente, 6 g!avementeperturbada pelo fato de se achar inclui~, .tanto no nfvel coletIvo quantono nivel individual, na rela~ao com 0 slgmficante.

o animal social no momento em que foge ao sinal que lhe 6 dadopelo animal de senti~ela ou outro, e 0 bando. 0 s~r falante,. este 6essencialmente a falta-a-ser surgida de urna certa rela~ao com 0 dlscurso_ surgida de uma poesia, se quiserem. Essa falta-a-ser, 0 sujeito nao podepreenche-Ia, ja lhes indiquei isso, senao por uma a~ao q~e, voces perce-bem isso melhor no contexto deste paralelo, assume facdmente, assumetalvez radicalmente, sempre, urn carater de fuga para adiante." .

Mas justamente, essa a~iio, que nao se d:i no plano da coerenCla nemda defesa coletiva, nao interessa em absoluto ao bando. Em surna, emprincipio, 0 bando nao se acomoda com a a~ao d~ sujeito, pa~a na_odizerque nao a quer. E nao somente 0 bando - a reahdade tambCm nao quersua a~ao, porque a realidade 6 justamente a tinica das certezas acumuladaspela adi~ao de uma serie de a~6es anteriores. A nova a~ao e sempre malrecebida.E isso que nos permite situar corretamente, isto 6, de urna maneiraque recorta a experiencia, 0 fato, ainda assim surpre~ndente, e,n~ entantosempre mais ou menos evidente, da pequena eleva~ao de angustIa que sc

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produz cad a vez que se trata realmente do desejo do sujeito. Estamos aquiao mesmo tempo no cotidiano e no essencial, no ponto vivo, na raiz denossa experiencia.

Se a analise nao conseguiu fazer com que os horn ens compreendes-sem que seus desejos, em primeiro lugar, nao sac a mesma coisa que suasnecessidades, e, em segundo lugar, que 0 desejo apresenta em si mesmourn carater perigoso, amea~ador para 0 indivfduo, que se esclarece pelocarater evidentemente amea~ador que ele com porta para 0 banda -pergunto-me, entiio, para 0 que a analise tera servido.

Trata-se de abrir uma senda e ja que estamos engajados nisso vamoscontinuar, colocando urna questiio insidiosa - oque deve ser a Versagungda analise? Nesse ponto, francamente, eu nao Ihes disse muito, maspergunto a voces - nao sera isso, a fecunda Versagung da analise? -que 0 analista recuse ao sujeito a sua angUstia, a dele analista, e deixe nuo lugar onde ele e convocado como outro a dar 0 sinal de angUstia.

Vejamos aqui perfilar-se aquilo que ja Ihes indiquei da Ultima vez,dizendo-Ihes que 0 lugar puro do analista, na medida em que poderemosdefini-Io na e pela fantasia, seria 0 lugar do desejante puro.

A fun~ao do desejo se produz sempre em algum lugar, quer 0 sujeitovenha no lugar do er6menos ou do er6menon. E por essa raziio que os fizpercorrer, no infcio do ano, aquele longo desbravamento da teoria do amorno Banquete. Seria precise agora chegar a conceber que algum sujeitopudesse ocupar 0 lugar do puro desejante, isto e, abstrair-se, escamoteara si mesmo na rela~iio com 0 outro, de qualquer suposi~ao de ser desejavel.Aquilo que voces leram das afirma~oes, das respostas de Socrates noBanquete deve Ihes dar uma ideia do que Ihes estou dizendo.

Se alguma coisa e encamada e significada pelo episOdio com Alci-bfades, e justamente isso. Por urn lado, SOCrates afirma nada conhecer dascoisas do amor, e tudo 0 que nos e dito dele e que e urn desejante energico,inesgotaveI. Mas, quando se trata de mostrar-se na posi~ao do desejadodiante da agressao publica, escandalosa, desenfreada, ebria de Alcibiades,nao existe ali, literalmente, mais ninguem. Nao digo a voces que issoresolva a questiio, mas e, pelo menos, ilustrativo daquilo de que Ihes falo,isso tern urn sentido que foi ao menos encamado em algum lugar.

Nao e apenas a mim que Socrates parece ser urn enigma humane,urn caso nunca visto, e com 0 qual nao se sabe 0 que fazer, seja qual fora maneira por que se tente apreende-Io. E a todo mundo, cada vez quealguem se coloca, realmente, a questiio - Como e que aquele sujeito roifabricado? E por que ele desarrumava tudo, bastando que aparecesse econtasse historinhas que pareciam ser coisas do dia-a-dia?

Gostaria que nos detivessemos urn pouco no que vem a ser 0 lugardo desejante. Isso faz eco, isso rima com 0 que YOUchamar de lugar dosuplicante na ora~iio, pois, na ora~iio, 0 suplicante se ve rezando. Nao haora~ao sem que 0 suplicante se veja rezando:

A ANGUSTIA NA SUA RELAc;:Ao COM 0 DESEJO

. . h- de Priamo. E 0 tipico suplicante, queLembrel-~e esta ma~ aultimo ou quase, dos seus filhos. Em todo

reclamou a AqUlles 0 corpo ~ ,caso, de Heitor, ele faz questaAo. '1 ? Na-0 Ihe fala muito de Heitor, ema em ele contar a qUi es.

que v _ 'facil falar dele no estado em que seprimeiro lugar porque nao e . ue acontece que a cada vezencontra naquele mom~nto, ~ depols porq ue nlio e docil nem senhorque esta em causa 0 Heltor VIVO,AqUlles~ q ainda que tenha recebidode seus impulsos, come?a a enfure:erT-Se't'I's que veio Ihe dizer - a. - d" s atraves de sua mae, .lDstru~oes lvma . . Pr'amo e veto mechefao quer que voce dev~lva Heltor ao seu pal I ,

visitar expressamente para IS~O.I . Simplesmente pelo fato de estarPriamo nao tern tanta PSICOogla. , . demanda 0

. - de suplicante, ele presentifica em sua propna . dem posl~ao. de Priamo ressoa desde a ongem epersonagem ~o suphcante. A p~;~eao tenham lido a Ilfada, esse episodionossa era, pOlS mesmo que v~ d r intermedio de todos os outrosesta ai, circulando entr~ voc~ :~ ~~a~ra~ao Priamo duplica seu perso-

~aOg~%O~~u:':~u~:;,:i~;descreve e se insere e:; ~:a lr~~::.o~ ~:~

de alguem que ,nao es~ .alt, a s:~e~~:~~u~~s~ por urn ~tro. Ele invoca,q~emora.'masen~~essano~u;';ura de~umPpai que talvez esteja, naquelenao 0 pal de AqUl es, mas .d r ue seus vizinhos 0 atormentam,mesmo instante, m~to abo~eci ~ pOil~S Assim voces reenconttarao emmas sabe 9ue te~ amda UffihftlhO, Iqu r do suplicante no proprio interiortoda ora~ao aqUllo a que c amo 0 ugado discurso daqu~le que _reza. smo e e por essa raziio que fa~o

Com 0 deseJa~te nao aco:~~c~~ =~a pode dizer de si mesmo, a naoeste desvio. a deseJante enqua A' ta 0 que define 0 lugar puro doser abolindo-se como. deseJante. te~::tiva de se articular, neste nivel, e~uj,e~toenquanto ~eseJan~ ~:~gem e impotente para dizer, porque, amuttl, mesmo a smcope d' . 'to nada mais e que mendicante, elePartir do momento em que IZ,O SUJel .

. d d nda e isso e outra COisa.passa ao reglstro a et.Da, do se trata de formular aquilo que,

Isso nao e menos ImpOrt~~~~qupea~aanalise, delineia a forma especi-nessa resposta ao outro consfica do lugar d~ analis~. flfffia~ao que talvez acrescente ainda

Vou termm~r hOJe com m:: auelas ue ate agora Ihes ofereci. Eis a

~:~~~~eu;~a et~~~~::e~~~~gu~ inter:~s~jtfaq~~ a:;~rr~:: ~~~~:::cujo ~rcurso acabo_dedde~~::i~ poi~eoaobj~O falta, invertendo os tennos,rela~ao de sustenta~ao 0 J',.

o desejo e um remedio para a angustta. 'u'ca a mais insignificante dosI se ve constantemente na pra . -'

neurot~~s sabe muito sobre isso, ate mesmo mais que voces. a apolO

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encontrado no desejo, por inc6modo que seja com toda a sua carga deculpa, e ainda assim muito mais facil de sustentar que a posi!j:ao deangustia, de modo que, em suma, para alguem um pouco astucioso eexperimentado - digo isso para 0 analista - convem ter sempre aoalcance um pequeno desejo hem provido, para nao estar exposto a colocarem jogo na analise um quantum de anglistia que nao seria oportuno nembem-vindo.

Sera realmente a este ponto que tenciono leva-Ios? Certamente quenao, nao e facillocalizar com a mao as paredes do corredor. A questiionao e do expediente do desejo, mas de uma certa rela!j:ao com 0 desejo,pela qual seria preciso que ele nao fosse sustentado inteiramente a curtoprazo.

Em nosso proximo encontro, voltaremos a distin!j:ao, inaugurada da ultimavez, entre a rela!j:ao do sujeito com 0 eu ideal e com 0 ideal do eu. Isso vaipermitir que nos orientemos na topica verdadeira do desejo, gra!j:as afun!j:ao do einziger Zug, que diferencia profundamente 0 ideal do eu, epermite dessa maneira definir a fun!j:ao do objeto em suas rela!j:oes com afun!j:ao narcisica.

E isso que espero levar a cabo em nosso proximo encontro, colocan-do-o sob 0 ex ergo da formula de Pindaro - Sonho de uma sombra, 0

homem, escreve ele nos ultimos versos de sua oitava Pitica.

A mosca no campo do Outro.o homem, com 0 analista, desperta.Abraham e 0 amor parcial.Os objetos "emergentes".A raposa e a ponta do seufocinho.

Vamos tentar hoje dizer algumas coisas sobre 0 tema da idcntifica!j:ao, namedida em que - voces ja compreenderam, espero - fomos levados acia como ao ultimo termo da questiio precisa em tomo da qual fizemosgirar, este ano, nossa tentativa de elucida!j:ao da transferencia.

Anunciei a voces que retomaria, sob 0 signa da celebre frase lan!j:adapor Pindaro, na oitava Pitica feita para Atistomenes, lutador de Egino,vencedor do Egito:

Epameroi ti de tis; ti d'ou tis; skias onar anthropos.

Sonho de uma sombra, 0 homem

Nao e por acaso que acentuo a necessidade de distinguir dois niveisconcretos da identifica!j:ao, distinyao evidente, fenomenologicamente aoa1cance de qualquer um - 0 eu ideal nao se confunde com 0 ideal do eu.o psicologo pode descobrir isso sozinho, e nao deixa, alias, de faze-Io. 0fato de que a coisa seja igualmente importante na articulayao da dialeti~afreudiana e 0 que nos confirma, por exemplo, 0 trabalho a que eu fazlaalusao da ultima vez, do Sr. Stein, sobre a identificayao primaria, e quetcrmina com 0 reconhecimento.

Mas 0 que ainda continua obscuro e a diferenya entre as duas seriesque Freud distingue e acentua como as identificayoes do eu e as identifi-cayOes do ideal do eu.

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existe, em definitivo, algum meio de se entender. Mas deixo de lado essedebate, que nao e 0 que nos interessa hoje.

Este sujeito, portanto, que esta ai no nosso esquema, esta em posi~aode aceder somente por artificio Ii apreensao da imagem real que se produzem i(a). Isso porque ele nao esta ali, e e apenas por intermedio do espelhodo Outro que vem se colocar naquele lugar. Como ele nao e nada, naopode ver-se alL Tampouco e a si mesmo enquanto sujeito que ele procuranaquele espelho.

Ha muito tempo, pouco depois da guerra, em Bonneval, no meudiscurso sobre a causalidade psiquica, falei do espelho sem superficie.Essa afmna~ao enigmatica podia entiio prestar-se Ii confusao com algumexercicio de ascese mais ou menos mistico. Reconhe~am hoje que 0 quecu quis dizer, ou mais exatamente, comecem a pressentir que, na fun~aodo analista como espelho, nao e do espelho da assun~ao especular que seLrata. Falo do lugar que ele tem de manter, ele, analista, mesmo que sejano espelho que deva se produzir a imagem especular virtual.

Essa imagem real, que esta aqui em i'(a), e justamente 0 que 0

sujeito ve no Outro, mas ele a ve somente na medida em que esta numlugar que nao se confunde com 0 lugar daquilo que e refletido. Nenhumacondi~ao 0 vincula a estar no lugar de i(a) para ver-se em i'(a).

Certas condi~6es, todavia, obrigam-no a estar num certo campo,aquele designado pelas linhas que limitam certos volumes. Por que, entiio,naquele esquema originario, coloquei S no ponto onde voces 0 encontra-rao na figura que publiquei? Nada implica em que ele esteja ali depreferencia a qualquer outra parte. Ele esta ali em principio porque,relativamente Ii orienta~ao da figura, voces 0 veem aparecer de algumaforma por tras de i(a), e essa posi~ao nao deixa de ter um correspondentefenomenologico, traduzido muito bem pela expressao, que nao existe poracaso, uma idiia atrci.s da cabe{:a. Por que, entao, as ideias que sao emgeral aquelas que nos sustentam seriam qualificadas de ideias atflis dacabe~a? Nao e por nada que 0 analista se mantem por tras do paciente.Tambem vamos reencontrar daqui a pouco a tematica daquilo que esta nafrente e daquilo que esta atras.

Seja como for, a posi~ao de S no campo do Outro, isto e, no campovirtual que 0 Outro desenvolve por sua presen~a como campo de reflexaoso e observavel ali num ponto, grande I, enquanto distinto do lugar ondei'(a) se projeta. Ena medida em que essa distin~ao nao somente e possivel,mas comum, que 0 sujeito pode apreender 0 que existe de basicamenteilusorio na sua identifica~ao narcisica. Existe a sombra, der Schatten, dizFreud em alguma parte, e precisamente a propOsito do verlorenes Objekt,do objeto perdido, no trabalho do luto. Se der Schatten, a sombra, essaopacidade essencial trazida para a relayao com 0 objeto pela estruturanarcisica, e superavel, e na medida em que 0 sujeito pode se identificarnoutra parte.

Tomemos, entiio, 0 pequeno esquema com 0 qual voces come~am a sefamiliarizar e que reencontrarao quando trabalharem com a cabe~a repou-sada no numero seis da revista La Psych analyse a ser publicada.

A ilusao aqui representada, dita do vaso invertido, sO pode seproduzir para 0 olho que se situa em alguma parte no interior do coneassim produzido pelo ponto de jun~ao do limite do espelho esferico como ponto focal onde deve se produzir a Huslio. Voces sabem que essa Huslio,que e uma imagem real, nos serve para metaforizar aquHo que eu chamade i de a, escrito i(a), que e suporte da fun~ao da imagem especular. Emoutras palavras, esta e a imagem especular enquanto tal, carregada do tom,do acento especial, do poder de fascina~ao, do investimento proprio quee 0 seu no registro libidinal, bem destacado por Freud sob 0 termoinvestimento narcisico. A fun~ao i(a) e a fun~ao central do investimentonarcisico.

Estas palavras nao bastam para definir todas as rela~6es e inciden-cias sob as quais veremos aparecer essa fun~ao. 0 que diremos hoje vaiIhes permitir esclarecer de que se trata, pois e igualmente aquilo quechama de a fun~ao do eu ideal, enquanto distinta daquela do ideal do eu,e a ela oposta.

Estou marcando a colocayao em fun~ao do Outro na medida em queele e 0 Outro do sujeito falante, 0 Outro na medida em que, por ele, olugarda fala vem atuar para todo sujeito - para todo sujeito com quem lidamoscomo psicanalistas, deixando de lado a incidencia do cinico. Podemosfixar ai 0 lugar daquilo que vai funcionar como ideal do eu.

No pequeno esquema, tal como vedo publicado na revista, vocesvao no tar que 0 S, que esta ali enquanto figurayao da funyao do sujeito, epuramente virtual. Essa fun~ao e, se posso dizer, uma necessidade dopensamento, aquela mesma que esta no principio da teoria do conheci-mento, a saber, que nao poderiamos conceber nada como objeto que naofosse suportado pelo sujeito. Mas, como analistas, colocamos em questiio,precisamente, a existencia real dessa fun~ao. Revelamos, com efeito, queo sujeito com quem lidamos, devido a ser, essencialmente, um sujeito quefala, nao poderia se confundir com 0 sujeito do conhecimento. E realmen-te, de minha parte, uma verdade de La Palice34 ter lembrado aos analistasque 0 sujeito nao e para nos 0 sujeito do conhecimento, mas 0 sujeito doinconsciente. Nao se trata de especular sobre ele como sobre a puratransparencia a si mesmo do pensamento, ja que e justamente contra issoque nos erguemos. Que 0 pensamento seja transparente e uma pura Husao.

Sei a insurrei~ao que posso provocar com senielhante virada noespirito de urn filosofo. Acreditem-me, ja tive com os defensores daposiyao cartesiana discuss6es bastante puxadas para poder dizer que

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· . 0 Outro, nos 0 imajamos aqui sob a forma em que e legitimo 0

l1llaJarmos - urn espelho. Esta e a forma em que a filosofia existencialistao apreende, e 0 apreende com exclusao de qualquer outra coisa, e e isso~ue constitui sua limita~ao. 0 Outro, diz ela, e aquele que devolve nossal1llagem. Ora, se 0 Outro nada mais e do que aquele que me devolve minhaimagem, eu nao passo, com efeito, daquilo que me vejo ser. Literalmente,eu.sou grande Outro na medida em que ele proprio, se existe, ve a mesmaco~sa que ~u._EI~ tambem se ve em meu lugar. Como saber se 0 que meveJo ser ah nao e em absoluto tudo 0 que esta em questao? E realmentea mais simples das hipoteses, supor 0 Outro urn espelho vivo, de tal mod~que, quando olho para ele, e ele em mim quem se olha e quem se ve emmeu lugar, no lugar que ocupo nele. Se ele nada mais e que seu proprioolhar, e eIe quem funda 0 verdadeiro desse olhar.

Para dissipar esse milagre, e suficiente e necessario acontece todosos dias algo que representei para voces no outro dia c~mo 0 gesto decabe.~a da c~ian~a p~quena que se volta para aquele que a carrega. Nao epreClSO mUlto para lSS0, quase nada. Um reliimpago, mas isso e dizerdemais, pois um reliimpago sempre passou por ser 0 proprio sinal do Paidos deuses, nada menos - e nao e a toa que 0 coloco a frente. Uma moscaque voa, se passar por esse campo, e suficiente para me fazer situar-menoutra parte, para me arrastar para fora do campo de visibilidade do i(a).

Nao creiam que eu esteja me divertindo, se trago para aqui a moscaou a vespa, ou ~ualquer coisa que faz barulho, que nos surpreende - jaque, como voces bem sabem, este e 0 objeto eletivo, suficiente em seucarMer minimo, para constituir aquilo a que chamo 0 significante de umafob.ia: Este tipo de objeto pode ter uma fun~ao operativa absolutamentesuftclente para questionar a realidade e a consistencia da i1usao do eu.Basta que se movimente no campo do Outro seja 0 que for que desempe-nhe 0 papel de ponto de suporte do sujeito para que na ocasiao de um deseus desvarios possa ser dissipada, vacilar, ser posta em causa a consis-tencia do ?utro, ou, mais precisamente, daquilo que esta ali enquantocampo de lOvestimento narcisico.

Com efeito, para seguir com todo 0 rigor 0 ensinamento de Freudse 0 campo do investimento narcisico e central e essencial se e em torn~dele que se decide todo 0 destino do desejo humano, nao ;xiste somente~ste campo. A prova disso e que Freud, no proprio momento em quemtroduz e.sse cam~o no Einfiihrung, distingue um outro, aquele da relayaocom 0 obJeto arcalco, 0 campo nutriticio do objeto materno. Esse outrocampo, que assume na dialetica freudiana seu valor por ser distinto comosen?o .de ur.n~outra ordem e que e, se c<:>mpreendobem, aquilo que 0 Sr.Stem Identtflcou em seu trabalho sob 0 termo identifica~ao prima ria epara nos - isso e <> que introduzo de novo - estruturado de maneiracomum, radical, pela presenya do significante como ta!.

Se introduzo isso nao e somente pelo prazer de trazer uma articula-«ao nova d,aquilo que e, de fato, sempre 0 mesmo campo, mas sim porquca fun~ao do significante e aqui decisiva. Egra~as a ela que aquilo que vemdesse campo abre ao sujeito a possibilidade de sair da pura e simple!>captura no campo narcisico. E e apenas apontando como essencial afun~ao do e1emento significante que podemos introduzir esclarecimentos,possibilidades de distin~ao de que necessitam imperiosamente - YOUmostrar is so a voces -, por quest6es clinicas tao concretas quantopossive!. E somente introduzindo a articula~ao do significante na estrutu-rayao do campo do Outro que se podem resolver quest6es c1inicas ate aquimantidas sem resolu~ao e que se prestam, por esse motivo, a confus6esirredutiveis.

Em outras palavras, skias, onar anthropos, Sonho de uma sombra, 0

home m. Epor meu sonho, e por me deslocar no campo do sonho na medidaem que e1e e 0 campo de erriincia do significante que posso entrever apossibilidade de dissipar os efeitos da sombra, e saber que e1a nao passade uma sombra. Decerto, existe alguma coisa que posso ainda por muitotempo nao saber, e que eu sonho. Mas, ja no nivel e no campo do sonho,se sei hem interroga-Io e articula-Io, nao somente triunfo da sombra, mastenho urn primeiro acesso a ideia de que ha mais real do que a sombra,que ha, em primeiro lugar e no minimo, 0 real do desejo, do qual essasombra me separa.

Voces me dirao que <:>mundo do real nao e 0 mundo dos meusdesejos. Mas a dialetica freudiana que Ihes ensino comporta, tambem, queeu proceda apenas pela via dos obstaculos impostos ao meu desejo. 0objeto eob. 0 objeto se en contra atraves das obje~6es. Se 0 primeiro passoem dire~ao a realidade e dado no nivel do sonho e no sonho, 0 fato de queeu alcance essa realidade sup6e, certamente, que eu desperte. Mas, essedespertar, nao basta defini-Io topologicamente dizendo que 0 que medesperta e quando ha um pouco de excesso de realidade em meu sonho.o despertar se produz, de fato, quando aparece no sonho a satisfa~ao dademanda. Isso nao e freqiiente, mas acontece.

o encaminhamento analitico da verda de sobre 0 homem nos ensinouo que e 0 despertar, e nos entrevemos aonde vai a demanda. 0 analistaarticula aquilo que 0 homem demanda. 0 homem com 0 analista desperta.Ele percebe que, desde 0 milhao de anos em que a especie humana estaai, ele nao cessou de ser necr6fago. Esta e a ultima palavra daquilo queFreud articula, sob 0 nome de identificayao primaria, da primeira especicde identifica~ao - 0 homem nao cessou, em absoluto, de comer sellsmortos, mesmo que tenha sonhado, durante urn curto espa~o de tempo,que repudiava irredutiveImente 0 canibalismo.

Importava, aqui, apontar que e precisamente no caminho onde nose demonstrado que 0 desejo e urn desejo de sonho, que 0 desejo tem II

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mes~a estrutura que 0 sonho - que 0 primeiro passo correto e dadonaquIlo que e 0 caminho em dire~ao a realidade.

E por causa do sonho e no campo do sonho que, em primeiro lugar,verificamo-nos ser mais fortes que a sombra.

na identifica~ao e isso concorrentemente com a pesquisa sobre 0 desen-volvimento e ao abrigo dessa pesquisa, a menos que esta ultima seja adesculpa para isso, ou ainda urna subdivisao.

Com efeito, foi nesse trabalho que Karl Abraham introduziu a n~aodaquilo a que se chama erroneamente a concepyao do objeto parcial, quecirculou desde enta~ em toda a analise, e foi a pedra sobre a qual seedificou uma consideravel teoriza~ao referente as pervecsOes. Vou mos-trar a voces 0 que vem a ser isso, antes de voltar as ilustra~oes brilhantesque disso sao dadas.

Sera suficiente que eu Ihes indique onde ir buscar as coisas, ali ondeelas estao, e voces irao perceber que nao ha nada a se retorquir aquilo queeu aqui formulo, ou seja, que 0 artigo de Abraham s6 tern sentido eimportiincia na medida em que e a ilustrayao, em cada pagina, do quecaracteriza a identifica~ao enquanto identificayao do ideal do eu - e umaidentifica~ao por tra~os isola dos, por tra~os, cada urn deles unico, portra~os que tern a estrutura de significante.

E isso, tambem, que nos obriga a examinar urn pouco mais de pertoaquilo que e preciso distinguir, se quisermos ver claramente. Com efeito,no mesmo contexto, e nao sem ratio, Abraham introduz 0 que e designadocomo a fun~ao do objeto parcial. E isso, precisamente, 0 que estara emquestao no que diz respeito as rela~oes de i(a) com a.

Se voces lerem Abraham, vao encontrar esta expressao, Die Objekt-Panialliebe, 0 amor parcial do objeto. a que e 0 objeto desse amor, 0

objeto mais que exemplar, 0 linico verdadeiro objeto, ainda que outrospossam se inscrever na mesma estrutura, e 0 falo. Eis 0 que Abrahamacentua. Como concebe ele em seu texto a ruptura, a disjun~ao que da seuvalor de objeto privilegiado ao falo? Em todas as paginas, ele vemproduzir para n6s 0 que estli em jogo da forma seguinte:

a amor parcial do objeto, 0 que significa isso para Abraham? Naoe 0 amor daquilo que vem cair da opera~ao sob 0 nome de falo. Fjustamente 0 amor prestes a aceder ao objeto normal, 0 amor do outro.sexo, 0 amor implicado nesse estligio capital, estruturante, estrutural, aque chamamos estagio falico, e justamente 0 amor do outro, tao completoquanto possivel - menos os genitais .

Abraham da como exemplo clinico, na pagina 99 da edi~ao original,dois casos de mulheres histericas que tiveram, com 0 pai, cerlas rela~Oesinteiramente fundadas em varia~oes de relacionamento. No primeiro caso,em seguida a urna rela~ao traurnatica com 0 pai, este nao e mais apreen-dido pela paciente senao por seu valor falico, mas ei-lo que, na continua-~ao do tratamento, aparece nos sonhos com sua imagem completa, s6 queesta e censurada no nivel dos genitais, sob a forma do desaparecimentodos pelos pubiilOOS. Todos os exemplos vao nesse sentido - 0 amorparcial do objeto, amor do objeto menos os genitais, da seu [undamento

Agora que articulei as rela~oes de i(a) com I, de urna maneira pela qualm~ ?esculpo por voces ainda nao poderem ver, desde ja, as implica~Oeschm~as, vamos ~ostr~ as rela~oes desse Eu duplicado com 0 pequeno a,? ob~eto ~o deseJo. E JSSOque nos importa, e meu discurso precedenteunplica russo, na medida em que ele e suficiente para guiar-nos nasrela~Oes com i(a).

Voltarei, mais adiante, a falar daquilo que, fora da experienciamaciya do sonho, justifica a tonica que dei a fun~ao do significante nocampo. A cada vez que as identifica~Oes com 0 ideal do eu sao invocadase, por exemplo, na introjeyao do luto em tomo do qual Freud fez girar u~pas~ esse~cial ~e.sua concep~ao, voces vao ver que, observando de pertoa a!ticula~ao chmca, nunca se trata de uma identifica~ao maciya, quesena, com referencia a identifica~ao narcisica que ela vem contra-atacar,como envolvente de ser a ser.

Para ilustrar 0 que acabo de dizer, a imagem surge dos iconescrista?S - a mae em rela~ao a crian~a que ela carrega a sua frente, sobreseus Joelhos. Essa figura~ao nao e nada casual, acreditem - a maeenvolve a crian~a. Se fosse essa oposiyao que estivesse em causa entre asidentifica~Oes, a identificayao anaclitica deveria ser, com referencia aidentificayao narcisica, como urn vasa con tendo no interior urn mundomais limitado.

Digo a voces desde logo que, entre as leituras mais demonstrativasnesse aspecto, estli a do Versuch einer Entwicklungsgeschichte der Libido,de Karl Abraham, que deve ser feita, 0 Essai sur l'histoire du developpe-ment de la libido, publicado em 1924.

.Nesse artigo, trata-se apenas disso: das conseqiiencias a se ticardaquIlo que Freud acaba de trazer referente ao mecanismo do luto e daidentifica~ao. D~ntre as muito nurnerosas ilustra~oes clinicas dadas porAbraham da realidade desse mecanismo, nao ha urn Unico exemplo ondevoces nao percebam, sem ambigilidade, que se trata sempre da introje~aonao da ~ealida~e de wp. outro naquilo que ela tern de envolvente, de amplo:de ~acJ~o, ,are mesmo de co~f~so, ocasionalmente, mas sempre daquelade em emZlger Zug, de urn umco tra~o. As ilustra~Oes disso oferecidaspor ele vilo muito longe, ja que, na realidade, sob 0 titulo de urn Versuchsobre 0 desenvolvimento da libido, trata-se apenas da [unyao do parcial

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a separac;iio imaginaria do falo, na medida em que este intetvem a partirde entiio como func;iio central e exemplar.

o falo e a func;iio piv6, diria eu, que nos permite situar aquilo quedele se disti?gue, ou seja, a, e no pequeno a enquanto pequeno a, a func;iiogeral do obJ.eto do desejo. No corac;iio da func;iio pequeno a, permitindoagrupar os diferentes modos de objetos possiveis que intetvem na fantasia,existe 0 falo. Este e 0 objeto, como eu disse, que permite situar sua serie,o ponto de origem, para frente e para tras.

E assim que Abraham obsetva, numa pequena nota, que 0 amor doobjeto com exclusiio dos genitais nos parece ser a fase do desenvolvimen-to psicossexual cujo tempo coincide com 0 estagio de desenvolvimentofa~co: ~le. acrescenta que os dois niio estiio apenas ligados por umacomcldencla temporal, mas por relac;6es internas muito mais estreitas, eque os sintomas histericos podem ser compreendidos a partir desse meca-nismo definido como a exclusilo do genital.

E~ niio havia relido esse texto desde ha muito tempo, tendo deixadoess? cUldado a.d~is de voces. Talvez niio seja mau que voces saibam quea formula algebnca que proponho da fantasia histerica se encontra alimanifesta. Por ora, e de outra coisa que quero que se deem conta, quetambem esta no texto, mas ninguem, acredito, ainda se deteve nela.

Abraham se pergunta de onde vem a relutincia e, em suma, 0 furor- termo que introduzo, mas que e justificado pelas linhas precedentes _9ue irrompe, ja no nivel imaginario, de castrar 0 outro no ponto vivo? AISS0 ele responde, dizendo: Wir miissen ausserdem in Betracht ziehendass bei jedem Menschen das eigene Genitale starker als irgendei~anderer Korperteil mit narzisstischer Liebe besetzt ist. Devemos, portan-to, le:~ em c~nsiderac;iio 0 fato de que, em todo homem, aquilo queconstitul, propnamente, os genitais, e investido mais fortemente que todasas o~tr~ partes do corpo no campo narcisico. E para que niio haj a qualquer~blgUldade quanta ao seu pensamento, Abraham esclarece que isso esta,Justamen~e, e~ corre.spondencia com 0 fato de que, no nivel do objeto,deve ser mvestldo seJa 0 que for, mais que os genitais.

Niio sei se voces percebem hem 0 que esta implicado por semelhantemodificac;iio, que niio esta ali isolada como se fosse um lapso da pena, masque tudo demonstra ser a propria subjacencia do pensamento de Abraham.Niio posso atravessar isso por cima, como se fosse uma verdade corrente.Apesar da evidencia e, da necessidade de semelhante articulac;iio, tantoquanta eu saiba ela niio foi indicada ate 0 presente momento por ninguem.

. Te~te.mo~ compreender isso no quadro. Aqui esta 0 campo narci-SICO. 0 UnICO mteresse de ter trazido aqui 0 narcisismo e 0 de nosmostrar que e dos avatares do narcisismo que depende 0 processo doprogresso do investimento do genital. Tentemos representar algo queresponda ao que nos e dito, a saber, que 0 investimento niio e, em parte

alguma, mais forte do que no nivel dos genitais. Se colocamos 0 corpodcste lado, ch~garemos a este grafico, onde isso nos representa 0 perfil doinvestimento narcisico.

A frase de Abraham, se devemos the dar seu valor de raziio, implicaque, contrariamente ao que se poderia pensar inicialmente, niio e a partirdo alto que as energias silo subtraidas para serem transferidas para 0

objeto, niio silo as regi6es mais investidas que se descarregam paracomec;ar a dar um pequeno investimento ao objeto. No pensamento deAbraham, enquanto necessitado por todo 0 seu livro - seniio, este livroniio tem mais sentido algurn - e, ao contrario, nos niveis de investimentomais baixos que se faz a captac;iio de energia do investimento objetal.

Abraham nos explica isso da maneira mais clara - e na medida emque, no sujeito, os genitais permanecem investidos, que no objeto eles niioo siio.

Niio ha, em absoluto, meio de se compreender isso de outra maneira.

Reflitam urn pouco - tudo isso niio nos conduz a urna obsetvac;iio muitomais importante do que se poderia crer?

Com efeito, ha uma coisa que niio parece ser percebida com relac;iioao estagio do espelho e a func;iio da imagem especular. Se e no nivel darelac;iio especular que se regula a comunicac;iio, 0 entornamento, 0 escoa-mento, ou 0 intetvazamento que tem lugar entre 0 objeto narcisico e 0outro objeto, niio devemos dar provas de urn pouco de imaginac;iio e darimportincia ao que resulta disso? Se 0 centro organizador, no imaginlirio,da relac;iio ao outro como sexual, ou como niio sexual, se situa no homemno estagio especular, niio vale a pena deter-se nisso, que nunca se nota?- essa economia tem uma relac;iio intima com a face, a relac;iio face aface.

Nos utilizamos com freqiiencia esse termo dando-lhe urna certaenfase, mas niio parece que esta tenha sido dada justamente sobre 0 queele tem de original - chama-se a relac;iio genital a tergo de relac;iio morecanis. Niio deveria ser assim com os gatos, e hem 0 caso de se dizer.Bastaria que voces pensassem nessas mulheres-gatos para dizer que talvezexista algo de decisivo na estruturac;iio imaginliria de um fato.

Para a grande maioria das especies, a relac;iio com 0 objeto do desejoe por estrutura votada a vir de tras, consiste em cobrir ou em ser coberto.Raras siio as especies para quem essa coisa deve acontecer pel a frente. Nanos sa, 0 momenta sensivel da apreensilo do objeto e decisivo, se vocesacreditam ao mesmo tempo na experiencia e naquilo que lhes convido aencontrar nela. Falo desse objeto que e defmido pelo fato de que, no

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animal ere to, algo de essencial acontece com 0 aparecimento de sua faceventral. Este e urn fato capital.

Parece-me que ainda nao se valorizou suficientemente todas asconseqiiencias disso para 0 que yOU chamar de as diversas posi~Oesfundamentais do erotismo. Nao que nao vejamos seus tra~os aqui e ali, eque os autores nao tenham, ha muito, reparado que quase todas as seitasprimitivas evocam e reproduzem a perspectiva de urn coito a tergo, eapegam-se a isso. Por que? Nao yOUme demorar num certo mimero deanota~6es que poderiam se ordenar nesse senti do, para Ihes assinalar quee bastante notavel que os objetos possuidores de urn valor isolado nacomposi~ao imaginaria do psiquismo humano, e muito especialmentecomo objetos parciais, estejam nao apenas colocados a frente mas seposso dizer, emergentes. ' ,

Se tomarmos como medida uma superficie vertical paralela a super-ficie do espelho, e regularmos de alguma maneira a profundidade emquestiio na imagem especular, poderemos destacar aquilo que vem a frenterelativamente a essa profundidade, como emergindo da imersao libidinal.Nao digo apenas do falo, mas tambem desse objeto essencialmente fanta-sistico chamado seios.

Veio-me a lembran~a, a proposito, urn episOdio de urn Iivro de umaexcelente senhora, que se chama Le Petit Bob, onde se assiste a epica einenarravel observa~ao, pelo Pequeno Bob, a beira-mar, sobre uma mu-Ih~r num~ p~ancha, de dois paezinhos de a~ucar, como ele se ex prime,cUJa aparencla ele descobre maravilhado - e nao se deixa de observaralguma complacencia na autora.

Nao acredito que seja jamais sem proveito ler os autores que seocupam de recolher as declara~6es da crian~a. Esta aqui foi certamenterecolhida ao vivo. 0 fa to de que aquela senhora, que se sabia ser a mae~e urn saudoso neurocirurgiao, que foi sem duvida, ele proprio, 0 proto-tIpo do pequeno Bob, fosse, devo dizer, urn pouco babaca, nao impedeque 0 que dai resultou para nos tivesse algum proveito, pelo contrario.

Talvez vejamos agora, igualmente, a verdadeira fun~ao a ser dada,?a rela~ao objetal, ao nipple. 0 bico do seio tambem estJi em posi~ao delsolamento sobre urn fundo, e, por esse motivo, estJi em posi~ao deexclusao no que se refere a essa rela~ao profunda com a mae que e a dobebe. Se nao fosse assim, nao se teria, talvez, com tanta freqiiencia,tamanha dificuldade para fazer 0 bebe pegar 0 bico em questiio. E talvezos fen6menos das anorexias mentais tivessem tambem urn outro desen-volvimento.

Convem, portanto, que voces tenham em mente urn pequeno esque-ma referente a mola da Iiga~ao reciproca entre 0 investimento narcisico eo investimento do objeto, Iiga~ao que justifica sua denomina~iio, e quepermite que se isole seu mecanismo. Nem todo objeto deve se definir pura

e simplesmente como urn objeto parciallonge da mae. A rela~ao do corpoproprio com oJalo tern urn carater central. Ela condiciona a rela~ao comos objetos mais primitivos. Seu carater de objeto separavel, possivel dese perder, sua coloca~ao em fun~ao de objeto perdido, todas essas carac-teristicas nao se apresentariam da mesma maneira se nao houvesse, nocentro, 0 objeto falico, emergindo como de urn plano a frente da imagemdocorpo.

Pensem nessas ilhas cujo plano veem nos mapas maritimos - 0 queestJi sobre a i1ha nao e de forma alguma representado, mas apenas 0

contorno. Pois bern, 0 mesmo se dli com os objetos do desejo em toda asua generalidade. Penso mostrar isso a voces da proxima vez - 0 genitale como uma i1ha, e nao basta dizer que se fara mais tarde 0 desenho daquiloque ha sobre a i1ha, que as coisas se arranjarao, que entraremos a todovapor no genital. Esse desenho, ninguem jamais 0 fez. Caracterizar 0

objeto como genital nao e suficiente para definir sua rela~ao com 0 corpo.E nao basta qualificar de pOs-ambivalente a entrada no estJigio genital -ninguem jamais entrou nele.

Vou terminar com urna pequena imagem destinada a faze-Ios guar-dar 0 que quis hoje colocar novamente na estamparia mental de voces.

No momenta em que eu me detinha na rela~ao entre 0 homem e osanimais, veio-me a ideia ler 0 seguinte.

E claro que, a tergo, isso deve apresentar algum inconveniente parao ouri~o, mas nao yOUme deter nesse episOdio. 0 ouri~o e uma referenciaIiteraria. Arquiloco se exprime, em alguma parte, em suas Epodas, dessamaneira - a raposa sabe muito, conhece muitos truques, enquanto 0

ouri~o so tern urn, mas celebre. Ora, 0 que esta em questiio concerne,precisamente, a raposa.

Lembrando-se ou nao de Arquiloco, Giraudoux revela 0 estiloi1uminado de urn senhor que tambem tern urn truque famoso, que eleatribui a raposa, e, diz ele - pode ser que a associa~ao de ideias tenhaatuado - talvez 0 ouri~o conhe~a tambem esse truque. Seria, em todocaso, urgente que ele 0 conhecesse, pois trata-se da maneira de se livrardos parasitas que 0 incomodam, opera~ao que e mais que problematica noouri~o.

Quanto a raposa de Giraudoux, vejamos como ela procede. Ela entrabem devagarzinho na agua, come~ando pela cauda. Vai deslizando lentarmente, deixa-se afundar ate que nada permane~a mais de fora alem daponta do focinho. Em seguida, mergulha, a fim de ser radicalmente lavadade tudo aquilo que a atrapalha.

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o pequeno a do desejo.A linha sadeana."Eu desejo".A rela(;iio entre lea.

No momento de fazer, diante de voces, nosso ultimo pronunciamentodeste ano, voltou-me ao espirito a invoca~ao de Platiio no come~o doCr{t;as, onde ele fala do tom como urn elemento essencial na medidadaquilo que se deve dizer. Pudesse eu, com efeito, saber manter este tom.

Para fazer isso, Platiio invoca 0 proprio objeto de que vai falar nessetexto inacabado, que nao e nada menos que 0 nascimento dos deuses. 0recorte nao deixou de me agradar, ja que, lateralmente, sem duvida,estivcmos muito proximos desse tema, a ponto de escutar alguem, quevoces pOOem considerar, sob certos aspectos, que faz profissao de ateis-mo, nos falar dos deuses como aquilo que se encontra no real.

o que Ihes digo aqui, parece que a cada vez sao mais numerosos osque 0 recebem, cada urn, como dirigido a si em particular. Particular, nao,decerto, para quem eu quiser,ja que muitos, se nao todos, 0 recebem. Nemtampouco coletivo, pois constato que aquilo que cada urn recebe da lugar,entre voces, 11 contesta~ao, se nao 11 discordancia. E, pois, urn vasto lugarque e deixado de urn a outro. Talvez seja isso 0 que se chama, no sentidoproprio, damar no deserto.

Decerto, nao e que eu tenha a me queixar, este ano, de algumadeseryao. Como tOOossabem, no deserto, pode haver quase uma multidao.E que 0 deserto nao e constituido pelo vazio. 0 importante e 0 seguinte,que eu ouso esperar - que seja urn pouco no deserto que voces tenham

vindo me encontrar. Nao sejamos demasiado otimistas, nem demasiadoorgulhosos ,de nos mesmos, mas digamos ainda assim que voces live-ram, todos quantos sao, uma pequena preocupayao quanta ao limite dodeserto.

E por isso mesmo que me asseguro de que 0 que Ihes digo, de fato,jamais e embarayoso para 0 papel que devo manter diante de alguns de·voces, que e 0 de analista. Isso esta Iigado, precisamente, ao que visa meudiscurso deste ano, a saber, a posi~ao do analista. Trata-se daquilo queesta no cora~ao da resposta que 0 analista deve dar para dar conta do poderda transferencia. Essa posi~ao, eu a distingo dizendo que no proprio lugarque e 0 seu, 0 analista deve se ausentar de tOOoideal do analista. Creioque 0 respeito a esta condi~ao e proprio para permitir a conciIia~aonecessaria de minhas duas posi~6es diante de alguns, de ser ao mesmotempo seu analista e aquele que Ihes fala da analise.

A titulos diversos, e sob diversas rubricas, pOOe-se, com certeza,formular a proposito do analista algo que seja da ordem do ideal. Existemqualifica~6es do analista, e isso ja e bastante para constituir urn micleodessa ordem. 0 analista nao deve ser totalmente ignorante de urn certonumero de coisas, isso e certo. Mas nao e isso, de modo algurn, que entraem jogo em sua posi~ao essencial.

Decerto, aqui se abre a ambigiiidade da palavra saber. Se, na suainvoca~ao do come~o do Cr{t;as, Platao se refere ao saber como a umcagarantia de que aquilo que ele aborda ficara comedido, e que no seu tempoessa ambigiiidade era muito menor. 0 sentido que tern, nele, a palavrasaber e muito mais proximo daquilo que eu viso no momento em que tentoarticular para voces a posi~ao do analista, e e aqui, exatamente, que sejustifica a escolha que fiz este ano, de partir da imagem exemplar deSOCrates.

Eis-me entao chegado, da ultima vez, ao que acredito ser urn ponto devirada do que teremos a enunciar em seguida - a fun~ao do objetopequeno a em meus esquemas. Esta, com efeito, e a que ate agora foimenos elucidada por mim.

Abordei-a, da ultima vez, a proposito do objeto enquanto parte,parte que se apresenta como separada, objeto parcial como se diz. E,referindo-os a urn texto ao qual peyo-Ihes encarecidamente que se reme-tam em detalhe e com aten~ao durante estas ferias, fiz voces observaremque quem intrOOuz a n09ao de objeto parcial, Karl Abraham, entende porisso, da maneira mais formal, urn amor do objeto do qual uma parle eexcluida. E 0 objeto menos essa parte.

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Tal e 0 fundamento da experiencia em cujo redor gira a entrada emjogo do objeto parcial, do qual voces sabem () interesse que the foi desdeentiio atribuido.

Aqueles que me escutam, se me ouvem, puderam ver ha muito,parece-me, mais que uma suspeita das precisOes formais que podemostrazer Ii parcialidade do objeto, na medida em que ela tem a rela'riio maisestreita com a fun'riio da metonimia. Esta ultima se presta, em gramatica,aos mesmos equivocos. Ali, tambCm, viio-Ihes dizer que e a parte tomadapelo todo, 0 que deixa tudo em aberto, tanto verdade como erro. Verdade,se essa parte tomada pelo todo se transforma na opera'riio para se tomarseu significante. Erro, se nos apegamos somente Ii face de parte, ou, emoutras palavras, se apelamos a uma referencia de realidade para com-preende-Ia. Ja sublinhei isso noutra parte 0 suficiente para niio voltar maisa este ponto.

a importante e que voces se recordem do esquema da ultima vez, ede um outro que you retomar sob uma forma simplificada. Trata-se de quevoces saibam que rela'riio existe entre, por um lado, 0 objeto do desejo -do qual desde sempre sublinhei para voces esse carater essencial naexperiencia analftica, a saber, sua estrutura'rao como objeto parcial e suafun'riio de obtura'riio fundamental - e, por outro lado, aquilo que desta-quei da ultima vez, e que e justamente 0 que permanece mais irredutivel-mente investido no nivel do corpo proprio - 0 fato basico do narcisismoe seu nucleo central. A frase que extra! de Abraham comporta isso - ena medida em que 0 falo real permanece, Ii revelia do sujeito, aquiloem tomo de que 0 investimento maximo e conservado - que 0 objetoparcial se acha elidido, deixado em bran co na imagem do outro enquan-to investida.

a proprio termo investimento assume todo seu sentido pela ambi-gilidade que ele comporta no Besetzung alemiio - Trata-se niio somentede urna carga, mas de alguma coisa que circunda 0 branco central. Se nose preciso, nesse sentido, ligar-nos a alguma evidencia, tomemos entiio aimagem que se pode dizer erigida no auge da fascina'riio do desejo, aquelaque se renova com a mesma forma do tema platonico no pincel deBotticelli - 0 nascimento de Venus, Venus Afrodite, Venus saindo dasondas, corpo erigido acima das vagas do amor amargo. Venus - ou, tantofaz, Lolita. a que nos ensina, a nOs, analistas, essa imagem?

Soubemos identifica-Ia bem na equa'riio simbolica, para empregaro termo de Fenichel, Girl - Phallus. a falo niio se articula aqui de outramaneira, mas, falando propriamente, da mesma. Ali onde vemos simbo-

. llcamente 0 falo, e justamente onde ele niio esta. Ali onde nos 0 supomossob 0 veu, all onde ele esta manifestado na ere'riio do desejo, e, nesteesquema, do lado de ell do espetho. Se ele esta ali diante de nos, no corpofascinante de Venus, e justamente na medida em que ele niio esta ali,

debaixo. Enquanto essa forma e investida, no sentido em que dissemos hapouco, de todos os atrativos, de todos os Triebregungen que a delimitampor fora, 0 'falo esta, com sua carga, do lado de ca do espelho, no interiordo recinto narcisico. E por isso que, ali onde ele esta, e tambCm ali ondeele niio esta.

Aquilo que emerge no estado de forma fascinante acha-se investidode ondas libidinais que vem dali de onde ele foi retirado, a saber, dofundamento, se podemos dizer, narcisico, de onde se tira tudo 0 que vemformar a estrutura objetal - como tal, pode-se dizer, sob a condi'riio dese respeharem suas rela'rOes e seus elementos. a que constitui 0 Triebre-gung em fun'riio no desejo - 0 desejo na sua fun'riio privilegiada, distintoda demanda e da necessidade - tern sua sede no resto, ao qual correspon-de na imagem essa miragem pela qual ela e justamente identificada coma parte que the falta, e cuja presen'ra invisivel da ao que se chama de belezao seu brilho. E isso que significa 0 imeros antigo que muitas vezes abordeiaqui, chegando ate a jogar com seu equivoco com 0 immerable dia.

. Aqui estli 0 ponto central em tomo do qual ocorre aquilo que temospara pensar sobre a fuo'riio do pequeno a.

Convem que se recordem do mito que fabriquei para voces nomomenta do Banquete, da miio que se estende para a acha. Para que 0 mitoseja verdadeiro, e preciso que a miio tenha um alcance real, que eladesprenda urn estranho calor, de tal modo que Ii sua aproxima'riio brote achama do objeto em fogo. Miragem pura, contra a qual se insurgem todasas (... ). Pois, por raro que seja este fenomeno, e preciso ainda, ao mesmotempo, que ele seja considerado como impensavel, e que niio se possa, emqualquer situa'riio, impedi-Io. Com efeito, e 0 milagre completo que, nonivel desse fogo induzido, urna miio apare'ra. Esta e uma imagem todaideal, urn fenomeno sonhado, como 0 do amor. Todos sabem que 0 fogodo amor so queima em surdina, todos sabem que a trave Umida pode pormuito tempo conte-Io sem que nada seja revelado ao exterior e, numapalavra, todos sabem 0 que cabe, no Banquete, ao mais gentilmente boboarticular de maneira quase derrisoria, a saber, que a natureza do amor e anatureza do Umido, 0 que quer dizer, na raiz, exatamente a mesma coisaque estli all no quadro - que 0 reservatorio do amor objetal, na medidaem que ele e amor vivo, e a Schatten, a sombra narcisica.

Anunciei a voces, da ultima vez, a presen'ra desta sombra, e chegareimesmo hoje a chama-Ia de mancha de mof035 - talvez ela seja assim maisbem nomeada do que se acredita, ja que a palavra eu esta nela incluida.Irlamos, aqui, reunir-nos Ii especula'riio sobre 0 eu do temo Fenelon, eletambCm, como se diz, inconstante.36 Ele faz disso 0 sinal de urn certoparentesco com a divindade. Eu seria tiio capaz quanto qualquer outro delevar muito longe essa metlifora, e are a fazer de meu discurso umamensagem para 0 len~ol de voces. No odor de rata morto que exala da

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roupa, por menos que se a deixe ficar na borda de uma banheira, nao sedeveria observar urn sinal hurnano essencial? Se meu estilo de analistaacentua com mais vontade aquilo que se qualifica, ou estigmatiza, pelotermo castra~ao, isso nao e unicamente 0 efeito de uma preferencia, mastalvez simplesmente para poupar a voces urn odor que eu poderia provocartanto quanta urn outro.

Seja como for, voces veem ali atras perfilar-se aquele ponto miticoda evolu~ao libidinal que a analise, sem jamais saber muito bem situa-Iona escala, demarcou como 0 complexo urinario, com sua rela~ao obscuracom a a~ao do fogo. Estes sao term os antinomicos, urn lutando contra 0

outro, pelos quais se anima 0 jogo do ancestral primitivo - como vocessabem, a analise descobriu que seu primeiro reflexo de jogo diante daapari~ao da chama devia ter sido de mijar em cima, feito renovado noGulliver. Essa rela~ao profunda com a urina se inscreve no fundo daexperiencia infantil - a opera~ao de secagem, os sonhos da roupa decama enigmaticamente engomada, ou a erotica da lavadeira, conhecidapor aqueles que puderam ver a esplendida encena~ao, pelo Sr. Visconti,de todos os brancos possiveis, materializando para nos 0 fato de que Pierroestli de branco, e a questao de saber por que.

Em suma, e urn pequeno circulo muito humano que se agrupa emtomo do momento ambiguo entre a enurese e as primeiras em~oes dofalo. E ali que atua em suas raizes mais sensiveis a dialetica do amor e dodesejo.

Como se apresenta 0 objeto central, 0 objeto do desejo? Sem quererlevar mais longe 0 mito placidamente encamado naquilo que se chama 0

pequeno mapa, ou a pequena Corsega que todo analista conhece bern,digamos que 0 objeto do desejo se apresenta, no centro desse fenomeno,como urn objeto salvo das aguas do amor de voces. Seu lugar deve,justamente, ser situado, e e esta a fun~ao do meu mito, no meio da mesmasar~a ardente onde se anunciou urn dia, numa opaca resposta, Eu soua,quele que sou - nesse mesmo ponto onde, a falta de saber quem fala,flcamos sempre ouvindo a interroga~ao do Che vuoi? proferida por umaestranha cabe~a de camelo metamorfico, de onde tambem pode sair apequena cadela fiel do desejo.

Tal e 0 ponto maximo em tomo do qual gira aquilo com que lidamosquanta ao pequeno a do desejo.

Com esse pequeno a lidamos ao longo de toda a estrutura, pois ele nuncae superado quanto a atra~ao libidinal.

Consideremos 0 que 0 antecede no desenvolvimento, a saber, asformas primeiras do objeto enquanto separado.

Os seios so assumem sua fun~ao no desejo na medida em que jadesempenha,ram anteriormente seu papel no mesmo lugar, na diaIetica doam or, aquela que se instaura a partir das demandas primitivas - eigualmente das respostas primitivas, porque a mae fala. No nivel dademanda oral, ha com efeito, apelo ao mais-aIem daquilo que pode sersatisfeito pelo objeto chamado seio. E 0 seio, imediatamente destacadodo plano de fundo, assume logo urn valor instrumental. Ele nao e somenteo que se toma, mas tambem 0 que se rejeita, 0 que se recusa, porque ja sequer outra coisa.

Mostramos a mesma anterioridade em nossa estrutura~ao da rela~aoanal, onde 0 apelo ao ser da mae leva para alem de tudo 0 que ela podedar de suporte anaclitico, fun~ao onde se confundem 0 ser eo ter.

Enfim, e a partir do advento do falo nessa diaIetica que se estabelece,justamente por ter sido reunida nele, a distin~ao do ser e do ter.

Para alem do objeto falico, a questiio relativa ao objeto se abre - emesmo 0 caso de dize-Io - de outra maneha. Considerando essa emer-gencia, essa fantasia, esse reflexo, essa imagem, eu diria quase a maissublime na qual 0 objeto se encama como objeto de desejo, aquela quedestaquei ha pouco, e claro que 0 falo se encarna justamente naquilo quefalta a imagem. E dali que se origina tudo 0 que sera a continua~ao darela~ao do sujeito com 0 objeto do desejo.

o horizonte da rela~ao com 0 objeto nao e, antes de tudo, umarela~ao conservadora. Trata-se, se posso dizer, de interrogar 0 objetosobre 0 que ele tern no ventre. Isso prossegue na linha onde tentamos isolara fun~ao do pequeno a, a linha propria mente sadeana, por onde 0 objetoe interrogado ate as profundezas de seu ser, solicitado a mostrar-se no quetern de mais escondido para vir preencher essa forma vazia na medida emque ela e fascinante.

Ate onde 0 objeto pode suportar a questiio? Talvez ate 0 ponto emque a ultima falta-a-ser e revelada, ate 0 ponto em que a questiio seconfunde com a propria destrui~ao do objeto. Tal e 0 termo - e e por essaraziio que existe a barreira que situei para voces no ana passado, a barreirada beleza, ou da forma. Ali, a exigencia de conservar 0 objeto se refletesobre 0 proprio sujeito.

Rabelais nos mostra Gargantua partindo para a guerra. Guarde isso.que e 0 mais amado, diz-Ihe sua mulher, apontando com 0 dedo aquiloque, na epoca, era muito mais facH de designar sem ambigiiidade que emnossos dias, ja que aquela pe~a de vestuario chamada braguilha tinhaentiio urn carater glorioso. Isso quer dizer em primeiro lugar que ela naopode ser guardada em casa. Mas a segunda significa~ao e tambem cheiadessa sapiencia que nao falta em nenhurna das afirma~oes de Rabelais -empenhe tudo, tudo pode ir na batalha, mas isso aqui, guarde-o irreduti-velmente no centro. Isso nao se pode arriscar.

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Isso nos permite bascular em nossa diaIetica. Tudo isso com efeitoseria muito bonito se fosse assim tao simples pensar 0 desej~ a partir d~sujeito, e se devessemos reencontrar no nivel do desejo 0 milo que sedesenvolveu no nivel do conhecimento, para fazer dele uma especie devasta teia lancyada sobre 0 mundo, inteiramente tirada do ventre da ara-nha-sujeito.

Nao seria mais simples que 0 sujeito dissesse Eu desejo? Mas dizerisso nao e tao simples. E muilo menos simples, voces sabem por suaexperiencia, que dizer Eu amo, oceanicamente, como se exprime Freud,lindamente, em sua critica Iiefusao religiosa. Eu amo eu banho eu molhoeu inundo, e eu babo ainda por cima, tudo isso, alilis, pura b;boseira, e:na maioria das vezes, dando apenas para molhar um lencyo,ainda mais queisso esta se tomando cada vez mais raro.

Os grandes umidos se apagam dessa terra desde os meados doSeculo XIX. Que me mostrem, em nossos dias, alguem do tipo LouiseColet, eu me darei ao trabalho de ir ver. Parece, antes, que isso deixa 0

Eu (je)37 em suspenso. Isso 0 deixa tao bem, em todo caso, na fantasia,que os desafio a encontra-lo, este Eu (je) do desejo, em outro lugar quenao alL

Ja lhes falei sobre 0 Sr. Jean Genet - esse caro Genet - sobre quemfiz, um dia, todo um grande seminario. Voces encontrarao facilmente apassagem onde esm assinalado, no jogo da fantasia, isso que certas mocyasconhecem bem, a saber, que quaisquer que sejam as elucubracyOes dessessenhores sedentos de ver suas fantasias serem encamadas, uma caracte-ristica ecomum a todas - e preciso que, por alguma marca na execucyao,aquilo nao parecya verdadeiro, porque de outra maneira, talvez, se aquilose tomasse inteiramente verdadeiro, nao se saberia mais onde se esm.Talvez nao houvesse mais para 0 sujeito nenhuma chance de vive-la. Eeste 0 lugar do significante barrado, necessario para que se saiba queaquilo e somente um significante. A indicacyao do inautentico e 0 lugar dosujeito enquanto primeira pessoa da fantasia.

. A melhor maneira que encontrei para indicar isso, ja a sugeridlversas vezes - e restituir 0 sujeito Ii sua verdadeira forma. A cedilhade ~a em frances nao e uma cedilha, e uma apOstrofe, e a apostrofe doc'est, a primeira pessoa do inconsciente. Voces podem mesmo barrar 0 tdo fim - c 'es, eis uma maneira deescrever 0 sujeito no myel doinconsciente.38

Nao se deve dizer que isso seja feito justamente para facilitar apassagem do objeto Ii objetabilidade. Como voces sabem, fala-se mesmo,sobre este tema, do deslocamento de algumas raias no espectro. De fato,a defasagem do objeto do desejo com relacyao ao objeto real, na medidaem que possamos aspirar a ele, e basicamente determinada pelo carate!"nagativo ou incluso da aparicyao do falo. Foi apenas isso que visei, ha

pouco, ao fazer para voces aquele breve percurso do objeto desde suasform as arc14cas ate seu horizonte de destruicyao - do objeto artificial, ouanijicial, se ouso expressar-me assim, do passado infantil, ate 0 objeto davisada profundamente ambivalente que permanece ate 0 termo a visadado desejo. Isso e uma pura mentira, ja que, igualmente, isso nao temqualquer necessidade critica, falar, na relacyaocom 0 objeto do desejo, deum soi-disant estagio ambivalente.

Da mesma forma, e apenas ordenando a escala ascendente e descen-dente dos objetos com relacyao ao cume falico que podemos compreendera ligacyao dos diferentes niveis comportados, por exemplo, pelo ataquesadico, na medida em que ele nao e, em absoluto, a pura e simplessatisfacyao de uma agressao pretensamente elementar, mas uma maneirade interrogar 0 objeto em seu ser e de esgotar a clivagem introduzida, apartir do cume falico, entre 0 ser eo ter.

o fato de que nos reencontremos, depois da fase falica, tiioambivalentes como antes nao e a pior das infelicidades. E que, tomandoas coisas nessa perspectiva, nunca iremos muito longe. Ha sempre ummomenta em que abandonamos esse objeto, enquanto objeto do desejo,Ii falla de saber como prosseguir a questao. Perscrutar um ser, pois quee esta a essencia do pequeno a, ou da vida, nao ests. ao alcance de todomundo.

Nao se trata simplesmente de fazer aqui alusao ao fato de queexistem limites natura is Ii coacyao, e ao proprio sofrimento. Ate mesmoforyar um ser ao prazer nao e um problema que resolvamos tao facilmente,e por uma boa racio - somos nos quem dirigimos 0 jogo, e de nos quese trata. A Justine de Sade, todos se maravilham de que ela resistaindefinidamente a todos os maus-tratos, tanto que e preciso que 0proprio Jupiter intervenha e lance um de seus raios para que aquiloacabe. Mas e que, na verdade, Justine nao e mais que uma sombra.Juliette e a unica que existe. E ela quem sonha e, como tal, sonhando,e ela quem deve necessariamente - leiam a historia - oferecer-se atodos os riscos do desejo, que nao sao menores que aqueles corridospela Justine. E evidente que nao nos sentimos muito dignos de seme-Ihante companhia, pois ela vai longe. Nao se deve dar demasiadaimportancia a isso nas conversas mundanas. As pessoas que so seocupam de suas pessoazinhas podem encontrar nisso apenas um inte-resse bem limitado.

Eis-nos, entao, de volta ao sujeito. Como e que pode, a partir dosujeito, ser conduzida toda a diaIetica do desejo, se 0 sujeito nada mais eque uma apOstrofe, inscrita numa relacyao que e, antes de tudo, relacyaocom 0 desejo do Dutro?

E aqui que intervem a fuocyao do grande I, do significante do idealdoeu.

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a que faria eu, diz ele, se estivesse num lugar onde nao quisesse queme descobrissem? Daria urn latido e diriam - E s6 um cachorro. Aassocia~ao vem tambem do cachorro que come~ou urn dia a masturbar-seao longo da perna do paciente. a que encontramos nessa historia exem-plar? Que 0 sujeito, mais que nunca em posi~ao de defesa?o mo~ento deentrar no consultorio analitico, finge ser urn cachorro. Fmge se-lo, massao todos os outros que sao cachorros antes que ele entre, e ele os advertepara que retomem sua aparencia humana antes que entre. Nao imaginemque isso tenha a ver de alguma maneira com urn interesse especial peloscaes. Neste exemplo, como em todos os outros, ser urn cachorro tern urnumco sentido - isso quer dizer que se faz au, au, nada mais. Eu latiria,e os que nao estiio aqui se diriam - e urn cachorro. Este e um cachorrotern 0 valor do einziger Zug.

Tomem 0 esquema da Massenpsychologie pelo qual Freud nosorigina a identifica~ao do ideal do eu. Por que vi~s ele 0 faz? ~elo vies ~apsieologia coletiva. a que se produz, entiio, nos dIZ ele, prefaCIand? ~ssuna grande explosao hitleriana, para que todos entrem nessa ?specle ~efascina~ao que permite a tomada em massa, a toma~a.em gelela daqUll.oa que se chama uma multidao? Para que todos ?S sUJeItos tenh~m coleu-vamente, ao menos por urn instante, 0 mesmo Ideal, que pernute tudo equalquer coisa durante urn tempo bastante curto, e preciso, explica ele,que todos esses objetos exteriores sejam tornados como tendo urn tra~ocomum, einziger Zug.

Em que isso nos interessa? No seguinte, que aquilo que e verdadeirono nivel do coletivo 0 e tambem no Divel do individual. E em torno dafun~ao do ideal que se acomoda a rela~ao do sujeito com os objetosexteriores. No mundo de urn sujeito que fala, que se chama 0 mundohumano, e uma pura e simples questiio de ensaio metaforico dar a todosos objetos urn tra~o comum, pura questiio de decreto fix~r urn tra~ocomum para a diversidade deles. Para toma-lo no mundo ammal, onde atradi~ao analitica mostrou 0 jogo exemplar das identi?ca~~s defen~ivas,o sujeito pode, para subsistir num mundo onde seu z(a) seJa respeltado,decretar que todos, sejam eles ciies, texugos ou cor~as, fazem au, au. Tale a fun~ao do einziger Zug. . "

E essencial mante-la assim estruturada, pOlS fora desse regIstro eimpossivel conceber 0 que quer dizer Freud na psicologia do luto e damelancolia. a que diferencia 0 luto da melancolia?

Quanto ao luto, e absolutamente certo que sua duray~o, suadificuldade estao ligadas a fun~ao metaforica dos trayos confendos aoobjeto do amor na medida em que sao privilegios narcisieos. De umamaneira tanto mais sigmficativa ja que ele diz isso quase se espantan-do Freud insiste muito sobre 0 que esta em questao - 0 luto consistee~ identificar a perda real, pe~a por pe~a, peda~o por peda~o, signo por

A fun~ao do ideal do eu preserva i(a), 0 eu ideal.De que se trata? Nada mais que do seguinte - essa coisa preciosa ondese tenta tomar 0 Umido, essa ceriimica, esse pequeno vaso, simbolo desdesempre do criado, onde todos tentam dar a si mesmos alguma consistencia.Muitas outras form as ou modelos concorrem ali. E necessario urn suportea se construir no Dutro, do qual depende que a capta~ao da flor se fa~a ounao. Por que? Eporque niio ha nenhum outro meio de que 0 sujeito subsista.

A analise nao nos ensina, a esse respeito, que a fun~ao radical daimagem na fobia se esclarece, analogicamente, com aquilo que Freud foidesencavar na formayao etnografica de entao, sob a rubrica do totem? Semduvida, esta ultima esta hoje bem abalada, mas se algo resta dela, e 0

seguinte: queremos, de boa vontade, arriscar tudo pelo desejo, pelotumulto, pelas aparencias, e ate mesmo a vida, mas nao uma certa imagemlimite, mas nao a propria dissolu~ao da margem, das margens. A rela~aodo sujeito com essa imagem - urn peixe, uma arvore - nao e uma fobia,se comporta aparentemente tabus analogieos. a umco fator comurn entrefobia e totem e a propria imagem na sua funyao de demarca~ao e dediscernimento do objeto, a saber, do eu ideal.

A metafora do desejante em quase tudo pode sempre, com efeito,voltar a se tornar urgente num caso individual. Lembrem-se do pequenoHans. E no momenta em que 0 desejo se encontra sem defesa em face dodesejo do autro que amea~a i(a) que 0 artificio se reproduz, que 0 sujeitoo constitui fazendo-o aparecer como encerrado na pele do urso antes deter matado voces. Mas e, na realidade, urna pele de urso pelo avesso, e eno interior que 0 fobico defende - 0 que? - 0 outro lado da imagemespecular.

A imagem especular tern, certamente, urna face de investimento,mas tambem uma face de defesa. E uma barragem contra 0 Pacifico doamor materno. Digamos simplesmente que 0 investimento do autro e, emsurna, defendido pelo eu ideal. a investimento ultimo do falo proprio e,de urna certa maneira, defendido pelo fobieo. Chegarei a dizer que a fobiae 0 sinal luminoso que aparece para avisa-los de que estao guiando nareserva da libido. Pode-se ainda continuar a rodar por algum tempo comisso. Ai esta 0 que a fobia quer dizer, e e por essa raziio, justamente, queseu suporte e 0 falo como sigmficante.

Nao preciso lembrar a voces tudo 0 que, em nossa experienciapassada, ilustra e confirma essa maneira de encarar as coisas. Lembrem-seapenas do sonho narrado por Ella Sharpe, que comentei para voces.Lembrem-se da tossezinha com que 0 sujeito adverte 0 analista antes deentrar em seu consultorio, e de tudo 0 que esta escondido por detras, e quesai com seus devaneios familiares.

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signo, elemento grande I por elemento grande I, ate 0 esgotamento.Quando isso esta feito, acaba.

Mas 0 que dizer se esse objeto era urn pequeno a, urn objeto dedesejo? 0 objeto esta sempre mascarado por tnis de seus atributos, e quaseuma banalidade dizer isso. Como e evidente, a coisa s6 comeya a ficarseria a partir do pato16gico, isto e, da melancolia. 0 objeto esta ali, coisacuriosa, muito menos apreensivel por estar certamente presente, e pordes Ianchar efeitos infinitamente mais catastr6ficos, ja que eles chegamate 0 esgotamento daquilo a que Freud chama 0 sentimento mais funda-mental, 0 que os apega a vida.

E preciso acompanhar esse texto e entender ali 0 que Freud nosindica de urna certa decepyao, que ele nao sabe deftnir, mas esta hi. Quetrayos se deixam ver de urn objeto tiio velado, mascarado, obscuro? 0sujeito nao pode investir contra nenhurn dos tra'Y0sdaquele objeto que naose ve, mas n6s analistas, na medida em que acompanhamos esse sujeito,podemos identificar alguns deles, atraves daqueles que ele visa comosendo suas pr6prias caracteristicas. Nada sou, niio sou mais que um lixo.

Reparem que nao se trata nunca da imagem especular. 0 me1anc6-lico nao diz a voces que ele tem ma aparencia, ou urna cara feia, ou quee corcunda, mas sim que e 0 ultimo dos ultimos, que acarreta catastrofespara toda a sua parentela, etc. Em suas auto-acusa'YOes, ele esta inteira-mente no dominio do simb6lico. Acrescentem ai 0 ter: ele esta arruinado.Isso·nao e capaz de Ihes dar uma pista?

S6 farei indicar hoje a voces, designando-lhes urn ponto especificoque e no meu entender, ao menos por ora, um ponto de concorrencia entreo luto e a melancolia. Trata-se do que you chamar, nao de luto, nem dadepressiio por conta da perda de um objeto, mas urn remorso de urn certotipo, desencadeado por urn desenlace que e da ordem do suicidio doobjeto. Um remorso, portanto, a prop6sito de urn objeto que entrou, dealgum modo, no campo do desejo e que, por sua ayao, ou por qualquerrisco que correu na aventura, desapareceu.

Analisem esses casos. 0 caminho esta tra'Yado para voces porFreud, quando ele Ihes indica que ja no luto normal a pulsao que 0sujeito volta contra si poderia ser uma pulsao agressiva em direyao aoobjeto. Sondem esses remorsos dramaticos quando eles aparecerem.Verao, talvez, que volta aqui contra 0 sujeito uma potencia de insultosque pode ser parente daquela que se encontra na melancolia. Voces vaoencontrar sua fonte no seguinte - esse objeto, se chegou a se destruir,nao se devia, entao, ter-se dado ao trabalho de tomar com ele tantasprecauyoes, nao valia a pena, pois, ter-me desviado, por ele de meuverdadeiro desejo.

Esse exemplo, por extremo que seja, nao e tao raro. A mesmadisposi'Yao se encontra por ocasiao de determinada perda quando sobre-

vem durante esses longos amplexos entre sujeitos desejantes a que sechamam as oscila'YOes do amor.

Somos levados dessa forma ao cora'Yao da relayao entre 0 grande Ie 0 pequeno a, num ponto da fantasia onde a seguranya do limite e sempreposta em questiio, e da qual devemos saber fazer 0 sujeito afastar-se. Issosupc3eno analista urna completa redu'Yao mental da fun'Yaodo significante,da qual ele deve captar por que mola, que vies, que desvio ela esta sempreem causa quando se trata da posi'Yao do ideal do eu.

Mas ainda ha urna outra coisa que, chegando aqui ao termo de meudiscurso, nao posso deixar de indicar e que conceme a funyao do pequeno a.

o que Socrates sabe, e que 0 analista deve ao menos entrever, e que,no Divel do pequeno a, a questiio e inteiramente diferente daquela doacesso a algum ideal. 0 amor somente pode circundar 0 campo do ser. Eo analista, este 56 pode pensar que qualquer objeto pode preenche-Io. Aiesta onde n6s, analistas, somos levados a vacilar, nesse limite onde secoloca a questao do que vale qualquer objeto que entre no campo dodesejo. Nao ha objeto que tenha maior preyo que urn outro - aqui esta 0luto em tomo do qual esta centrado 0 desejo do analista.

Vejam, ao termo do Banquete, sobre quem vai incidir 0 elogio deSocrates - sobre 0 babaca dos babacas, 0 mais babaca de todos, e mesmoo tinico babaca integral. E imaginem que e a ele que se dli a honea de dizer,sob uma forma ridicula, 0 que hli de mais verdadeiro sobre 0 amor. Elenao sabe 0 que diz, ele diz asneiras, mas isso nao tern importiincia alguma,ele nem por isso deixa de ser 0 objeto amado. E Socrates diz a Alcibiades- Tudo 0 que voce diz a mim e para ele.

Ai esta a funyao do analista, com aquilo que ela com porta de urncerto luto. Reunimo-nos ai a uma verdade que 0 pr6prio Freud deixou forado campo daquilo que ele podia compreender.

Coisa singular, e provavelmente devida a essas razOes de conforto,que Ihes. exponho hoje, formulando a necessidade da conservayao dopostiyo, niio se parece ainda haver compreendido que e isso que quer dizer- Tu amards teu proximo como a ti mesmo.

Niio se quer traduzir, porque isso nao seria provavelmente cristiio,no sentido de urn certo ideal - e creiam-me, 0 cristianismo ainda niiodisse sua ultima palavra - mas e urn ideal filos6fico.

Isso quer dizer - a prop6sito de qualquer urn, voces podem colocara questiio da perfeita destrutividade do desejo. A prop6sito de qualquerurn, voces pod em fazer a experiencia de saber ate onde ousariio ir inter-rogando urn ser - ao risco, para voces mesmos, de desaparecerem.

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Dirijo meus agradecimentos ao Professor Jacques Body, que teve agentileza de pesquisar na obra de Giraudoux a raposa evocada a pagina369. Essa raposa nao foi encontrada. 0 leitor que puder localiza-la ted abondade de me comunicar, escrevendo-me para 0 enderecro das Editionsdu Seuil, 0 mesmo se aplica a eventuais correcroes. Assinalo igualmentea atencrao a lontra e a doninha da pagina 17.

As Editions du Seuil confiaram a preparacrao do manuscrito ao Sr.Paul Chemla, que zelou particularmente pelas citacrOes; a Sra. EvelyneCazade-Havas acompanhou este trabalho; obrigado.

o artigo a ser publicado a que se faz referencia na pagina 334 foi retomadonos &critos, sob 0 titulo : "Observas:ao sobre 0 relat6rio de DanielLagache".

Solicitei Ii Sra. Judith Miller que dirija cornigo, daqui por diante, acolecrao fundada por Jacques Lacan sob 0 nome "0 Campo Freudiano".

Assinalei, na pagina 348, que faltava 0 comecro do capitulo XXV.Reproduzo abaixo 0 texto das notas tomadas na epoca por Urn dosparticipantes mais atentos do Serninario, meu saudoso amigo Dr. PaulLemoine, que permitem preencher parcialmente essa lacuna.

"Muito born trabalho de Conrad Stein sobre a identificas:ao prima-ria. 0 que yOU dizer hoje mostrara que seu trabalho era bem orientado.Vamos tentar avancrar. Eu tinha a intencrao de ler Salo para ali encontrarcoisas que pudessem nos esc1arecer. Isso vai nos levar ao coras:ao dafun9ao da identifica9ao. Como se trata sempre de observar a fun9ao doanalista, pensei que nao seria mau retomar as coisas. Freud escreveHemmung, Symptom und Angst em 1926. Este e 0 terceiro tempo deorganizacrao de seu pensamento, os dois primeiros sendo constituidos pelaetapa da Traumdeutung e pela da segunda t6pica."

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12. No original: proprete (limpeza), relacionada apropriete, propriedade. (Ref. itp.216)

13.0 Refem, 0 Piio Duro e 0 Pai Humilhado. (Ref. it p. 266)14. Sygne, na sua homofonia com signe, signo, vai dar oportunidade ao autor para

fazer diversos jogos de palavras, intraduziveis para 0 leitor brasileiro. 0 titulodeste capitulo ja p6e em jogo, igualmente a homofonia entre non, nao, e nom,nome. (Ref. a p. 267)

15. 0 personagem e tratado ironicamente a partir de seu nome: Toussaint e 0nomedado 80 Dia de Todos os Santos. Turelure tem uma certa homofonia comtire lire, que significa cofre, mealheiro. (nota Ref. a p. 269)

16. No original, "lettre chargee", carta de valor reconhecido. 0 trocadilho serafeito com 8 arma carregada, "chargee". (Ref. it p. 284).

17. Este trecho, bem como os que se seguem, foram traduzidos livremente. Nooriginal: Cotlfontaine, je suis a vous! Prends etfais de moi ce que tu veux.!Soit que je sois une epouse, soit que deja plus loin que la vie, la ou le corpsne sert plus, I Nos ames l'une a l'autre se soudent sans aucun alliage!(Ref. it p. 291).

18. No original: Sygne retrouvee Lademiere, ne me trompez pas comme le reste.Y aura-t-il donc a lafin pour moil Quelque chose a moi de solide hors de mapropre volonte? (Ref. Ii p. 291).

19. No original: que toute cette vie mauvaisel Est une vaine apparence, et qu 'ellene reste avec nous que parce que nous bougeons avec elle. I Et qu'il noussuffirait seulement de nous asseoir et de demeurer I Pour qu 'elle passe denous. I Mais ce sont des tentations viees; moi du moins dans cette chute detouti Je reste le meme, l'honneur et le devoir le meme.j Mais toi, Sygne, songea ce que tu dis. Ne va pas faillir comme le reste, a cette heure ou je touche amafin.1 Ne me trompe point (...) (Ref. Ii p. 292).

20. No original: C'est vrai qu 'il n 'yen a qu 'une seule pour toi? I Ah, je sais quec 'est vrai! Ah, dis ce que tu veux! Illy a tout de meme en toi quelque chosequi me comprend et qui est mon frere! I Une rupture, une lassitude, un videqui ne peut pas etre comble. I Tu n 'es plus le meme qu 'aucun autre. Tu esseul. I A jamais tu ne peux plus cesser d' avoir fait ce que tu as fait (douce-men!), parricide! I Nous sommes seuls tous les deux dans cet horrible desert. ID~ux ames humaines dans le neant qui sont capables de se donner ['une a['~utre. I Et en une seule seconde, pareille a la detonation de tout le tempsqui s 'aneantit, de remplacer toutes cJlOses['unpar ['autre!I N'est-ce pas qu 'ilest bon d'etre sans aucune perspective? Ah, si la vie etait longue, I Celavaudrait la peine d'etre heureux. Mais elle est courte et il y a moyen de larendre plus courte encore. I Si courte que l'etemite y tienne!LOUIS: - Je n 'ai quefaire de [,etemite!LUMIR: - Si courte que [,etemite y tienne! Si courte que ce monde y tiennedont nous ne voulons pas et ce bonheur dont les gensfont tant d'affaires! I Sipetite, si serree, si stricte, si raccourcie, que rien autre chose que nous deuxy tienne! (Ref. Ii p. 292).

21. No original: Et moi, je serai laPatrie entre tes bras, la Douceur jadis quittee,la terre de Ur, l'antique Consolation! III n 'y a que toi avec moi au monde, iln 'y a que ce moment seul enfin ou nous nous serons aperrus face a face! I

1. Referencia Iibrincadeira infantil em que duas crian~as se seguram pelo queixo("je te tiens, tu me tiens par la barbichette") para ver quem ri primeiro. (Ref.Ii p. 19)

2. Referencia Ii ordem dos religiosos de Sao loao de Deus, que adotavam, porhumildade, 0 nome de ignorantinhos. (Ref. Ii p. 32).

3. No original, "l'aimant", cujo sentido pode ser "irma", e por extensao, aquiloque atrai, ou ainda "temo, afetuoso", quase coincidente com amante. (Ref. Iip.46).

4. No original: Carte du Tendre. Referencia ao Pays du Tendre, pais aleg6rico,imaginado por Mlle. de Scudery (Clelie, 1656) e outros romancistas do Sec.XVII, onde a tinica ocupa~ao seria 0 amor. 0 Mapa do Temo e 0 mapa destepais, imaginado pelo mesmo escritor. Ai, via-se 0 lago da Indiferenra, 0 rioda Inclinarao, etc. (Larousse Universal). (Ref. Iip. 55).

5. A palavra aqui empregada, accord, significa ao mesmo tempo acordo e acorde,devendo ser entendida com este duplo sentido nas passagens seguintes. (Ref.Ii p. 74).

6. No original, gymnosophiste, jun~ao dos termos ginasta e sofista. (gymmastee sophiste, respectivamente). (Ref. a p. 77).

7. Cf. nota 4. (Ref. Iip. 112).8. Booz ne savait point qu 'une femme etait la, / Et Ruth ne savait point ce que

Dieu voulait d'elle. (Ref. a p. 134).9. Voila longtemps que celle avec quij'ai dormi,! 0 Seigneur! a quitte ma couche

pour la v6tre;!Et nous sommes encor tout meles l'un a 1autre, !Elle a demivivante et moi mort a demi. (Ref. Ii p. 134).

10. et Ruth se demandait,j Immobile, ouvrant ['reil a moitie sous ses voiles,! QuelDieu, quel moissoneur de l'etemel etel Avait, en s'en allant, negligemmentjete I Cette faucille d'or dans le champ des boiles. (Ref. Ii p. 135).

11. Referencia ao sr. Homais, personagem do romance Madame Bovary, deGustave Flaubert. Farmaceuticollivre-pensador, representa 0 burgues pedanteapesar de sua ignorancia. (Ref Ii p. 163)

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Accessibles d lafin jusqu 'd ce mystere que nos renfermons. / II y a moyen dese sortir l'time du corps comme une epee, loya~ plein d'honneur, il y a moyende rompre la paroi. / II Y a moyen de faire un serment et de se donner toutentier d cet autre qui seul existe. / Malgre l'horrible nuit et la pluie, malgrecela qui est autour de nous le neant, / Comme des braves! / De se donnersoi-meme et de croire d l'autre tout entier! / De se donner et de croire en unseul eclair! / - Chacun de nous d l'autre et d cela seul! (Ref. Ii p. 293).

22. Pensee, que significa "pensamento", vai dar origem a uma serie de jogos depalavras (cf. capitulo anterior). Para facilitar a compreensao do leitor, emalguns trechos foi mantido 0 nome original do personagem, e em outros -quando substantivo comum - foi feita a tradu~ao para "pensamento". (Ref.Ii p. 293).

23. Cf. nota no capitulo anterior. (Ref. Iip. 294).24. Referencia feita a uma constru~ao particular da lingua francesa, em que a

particula ne serve de expletivo numa frase de sentido positivo. No original:Je crains qu 'il ne vienne ... avant qu 'il n 'apparaisse. (Ref. Ii p. 295).

25. Jogo de palavras entre n 'y etre, nao estar ali, e naitre, nascer. (Ref. Ii p. 295).26. Referencia a "homme d'armes". (Ref. Ii p. 299).27. Nageoire, nadadeira ou barbatana. (Ref. Ii p. 299).28. Trata-se, no caso, de Orion. (Ref. Ii p. 3(0).29. Joga-se aqui com a homofonia entre le second Empire (0 segundo Imperio) e

le second temps-pire (0 segundo tempo pior). (Ref. Ii p. 301).30. No original: "et puis, un certain ~a." Lacan alude aqui ao id. (Ref. Ii p. 311).31. Trata-se da homofonia entre tu es Ie pere, tu es 0 pai, e tuer le pere, matar 0

paL (Ref. a p. 315)32. No original, "berquinade", obra a maneira de Berquin, literato frances do

seculo xvm que se tomou conhecido por livros destinados Ii juventude,extremamente insipidos. (Ref. a p. 327).

33. No original, I'Autre, 0 Dutro. (Ref. Ii p. 340).34. Referencia ao capitao frances Jacques de Chabannes, senhor de La Palice,

morto na batalha de Pavie em 1525. Em sua homenagem, seus sold adoscompuseram uma can~ao onde se encontravam os versos: "Urn quarto de horaantes de sua morte, ele ainda estava vivo". Isso significava que, ate seusultimos instantes, havia lutado corajosamente. Com 0 tempo, este sentidofoi-se perdendo e permaneceu apenas a ingenuidade dos versos, dai a expres-sao "verdade de La Palice" para designar uma obviedade. (Ref. a p. 360).

35. No original, tache moisi, mancha de mofo, que contem moi, eu. (Ref. a p. 373).36. No original, ondoyant, ondulante ou inconstante. (Ref. a p. 373).37. Je, sujeito do inconsciente, e aqui utilizado em distin~ao ao moi, 0 eu, sujeito

do conhecimento. (Ref. Ii p. 376).38. Trata-se aqui de tado urn jogo de palavras em tomo de ~a,isso, (id), utilizado

em frances para traduzir 0 es alemao. C' est e a forma pela qual se diz "Issoe'. (Ref. a p. 376).