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Segurança energética e cooperação entre os BRICS no final do “Longo Século
XX”: convergências e divergências12
Bruno Hendler3
O presente artigo tem como objetivo verificar a existência de uma política de energias
renováveis convergente entre os países membros do BRICS. Utilizando-se do marco
teórico dos ciclos sistêmicos de acumulação, desenvolvido por Giovanni Arrighi,
pretende-se demonstrar que a atual crise do “Longo Século XX” implica uma mudança
paradigmática acerca das matrizes energéticas dos países emergentes. Nos termos do
autor, a atual reorganização sistêmica entre países ricos e em desenvolvimento coloca
em evidência a “internalização dos custos de renovação” dos fatores energéticos, ao
contrário dos ciclos anteriores, em que os insumos, ainda que distribuídos de forma
desigual pelo globo, não apresentavam o risco de escassez em larga escala e sua
utilização não trazia impactos imediatos na biosfera.
Uma vez que o grupo do BRICS inclui países deveras heterogêneos em termos de
demanda e matrizes energéticas, é possível identificar uma política comum de
cooperação no âmbito de energias renováveis? Ou cada país atua de forma a obter
apenas ganhos individuais de acordo com seus interesses?
A partir da análise empírica dos projetos de energia renovável e seus resultados entre os
membros do grupo, pretende-se verificar a hipótese de formação de um processo de
cooperação de longo prazo que nos permita verificar a transição para um possível
“longo século XXI”, em que a “internalização dos custos de renovação” energética, por
parte dos países emergentes, lhes trará mais condições de moldar o sistema
internacional.
1 Artigo a ser apresentado no “2º Seminário de Relações Internacionais: Graduação e Pós-graduação: os
BRICS e as transformações da Ordem Global”, organizado pela Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) que ocorrerá nos dias 28 e 29 de agosto na Academia da Polícia Militar da Paraíba. 2 Artigo apresentado dentro do painel de trabalho: “Os países BRICS na geopolítica global: como as
diferenças importam?”. 3 Bruno Hendler é Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (IREL-UnB) e
Professor do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).
Introdução
A articulação da mais notória coalizão informal entre países emergentes no
começo do século XXI, o BRICS, reflete mudanças cruciais na dinâmica de um sistema
internacional que já não pode ser caracterizado apenas como o mundo “pós Guerra
Fria”. O debate sobre a transição da unipolaridade dos anos 1990 para uma possível
unimultipolaridade dos anos 2000 é válido, mas retrata apenas a esfera do poder entre os
Estados em uma visão essencialmente realista das relações internacionais. Em
contrapartida, uma visão neoliberal que enfatiza o estreitamento de laços entre povos,
empresas e organizações deixa de lado uma série de estruturas de longa duração que
permeiam o que chamamos de “internacional” e falham em captar mudanças
paradigmáticas que marcam esse começo de século. Nesse contexto, o modelo dos
ciclos sistêmicos de acumulação (CSA) de Giovanni Arrighi (1996) apresenta uma alta
capacidade explicativa da mudança de paradigmas no final do “Longo Século XX” e
pode ser utilizado para compreender como a questão energética tem sido abordada pelos
países emergentes, em especial os BRICS.
Fundamentado em Fernand Braudel, o autor sustenta que o sistema-mundo
moderno resulta da fusão de duas estruturas de longa duração, surgidas no final da Idade
Média e que mantêm uma relação intrínseca de causalidade mútua desde então: o
sistema interestatal, pautado pela incessante competição por poder entre Estados; e o
sistema capitalista, pautado pela incessante acumulação de capital entre agentes
empresariais. Desde essa transição para a Idade Moderna, essas estruturas foram
lideradas por Estados e empresas que deram origem a “complexos de ponta”
hegemônicos, ou seja, sucessivos loci de acumulação de poder e riqueza definidos como
hegemonias mundiais dos chamados “Longos Séculos”. Assim, tem-se o Longo Século
XVI (Ibérico-Genovês), o Longo Século XVII (Holandês), o Longo Século XIX
(Inglês), e o Longo Século XX (Norte-americano).
Essas quatro molduras temporais correspondem a uma série de inovações tanto
na esfera de poder interestatal quanto no mundo da disputa interempresarial. E para fins
deste trabalho, tem-se como objeto de estudo o lugar ocupado pelos BRICS no contexto
do fim do Longo Século XX e, mais especificamente, o papel desempenhado pelos
membros dessa coalizão informal na construção de um novo paradigma energético para
o possível Longo Século XXI.
As inovações qualitativas nos ciclos sistêmicos de acumulação
Ao longo de sua obra, Arrighi trabalha com as inovações estatais e empresariais
na incessante disputa por poder e riqueza no sistema-mundo moderno. A tabela abaixo
(ARRIGHI; SILVER, 2011, p. 61) apresenta o conjunto dessas inovações de acordo
com a internalização de custos de cada modelo. Em poucas palavras, cada novo ciclo
trouxe algum tipo de inovação em relação ao ciclo anterior ao trazer para dentro de sua
jurisdição política e de suas próprias redes de mercadorias os custos de determinados
processos políticos e econômicos.
Fonte; ARRIGHI; SILVER, 2011, p. 61.
O primeiro CSA foi produto de uma aliança entre os financistas genoveses em
busca de rentabilidade para seus capitais “encalhados” após a expansão comercial
italiana no século XV e os governantes expansionistas dos reinos ibéricos em formação,
ávidos por recursos financeiros e carentes de serviços no tráfego de moedas e
mercadorias (ARRIGHI, 1996, p. 125). Logo, a inovação do primeiro CSA refere-se
apenas à fusão da lógica territorialista das coroas ibéricas com a lógica capitalista das
redes comerciais e financeiras de genoveses espalhados pela Europa Ocidental. Assim,
os banqueiros genoveses, que não podiam contar com a proteção de uma Gênova
ameaçada por vizinhos e repleta de problemas internos, precisavam de proteção para
suas rotas comerciais e transações financeiras – e a encontraram no poder político-
militar das coroas ibéricas.
Foi apenas no segundo CSA, baseado nas Províncias Unidas, que a centralidade
econômica de uma região fundiu-se com uma única unidade política capaz de garantir
sua própria proteção, culminando na primeira hegemonia mundial do sistema-mundo
moderno. Enquanto no primeiro CSA a “nação”4 de capitalistas genoveses oferecia
serviços financeiros em troca da proteção dos reinos ibéricos, os holandeses
conquistaram ao final da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), sua soberania em relação
à Espanha dos Habsburgo e tornaram-se o lócus de uma nova expansão material graças
às companhias de comércio e ao comércio de longa distância com a Ásia Oriental
(ARRIGHI, 1996, p. 135). Portanto, no momento em que as redes comerciais e
financeiras das companhias de comércio holandesas não precisam pagar pela proteção
de outro Estado, temos aí uma grande inovação: a internalização dos custos de
proteção, ligada tanto à esfera do capitalismo quanto à esfera do sistema interestatal.
Após o declínio do poderio comercial e bélico da marinha holandesa e um
período de conturbações sistêmicas que culminaram nas Guerras Napoleônicas, a
Inglaterra tornou-se a nova hegemonia mundial. Conforme indica a tabela 1, esse ciclo
trouxe uma inovação na esfera produtiva com a internalização dos custos de produção.
Essa mudança de paradigma, que corresponde à Primeira Revolução Industrial, fez com
que a Inglaterra desse um salto qualitativo e cumulativo em relação à hegemonia
anterior: além de centralizar o poder global e canalizar as redes de mercadorias (tal
como o CSA ibérico-genovês) e internalizar os custos de proteção (tal como o CSA
holandês), a Inglaterra tornou-se o berço de inovações na esfera produtiva do
capitalismo global através do modelo da indústria familiar.
Logo, enquanto os holandeses inovaram na esfera comercial ao conectar
territórios colonizados por outras potências europeias, os ingleses inovaram na esfera
produtiva, trazendo para a soberania do império tanto a produção agropecuária de suas
colônias quanto a produção industrial da metrópole.
4 Arrighi utiliza a expressão “nações” de agentes capitalistas para se referir a grupos expatriados,durante a
Baixa Idade Média, que se identificavam e eram reconhecidos uns em relação aos outros e aos governos
das cidades-mercado em que residiam, sendo os florentinos, genoveses, milaneses, ingleses, alemães e
lucaneses os mais influentes. Tais nações estabeleceram as primeiras redes de mercadorias na economia-
mundo capitalista ainda em formação e, por meio de um instrumento monetário – a letra de cambio –
obtinham lucros no comércio de produtos e, principalmente, no câmbio de moedas (ARRIGHI, 1996, p.
131-132).
Em suma, a hegemonia britânica do século XIX estruturou-se de um modo
totalmente diferente da hegemonia holandesa. Ambas se basearam em um
sistema de comércio mundial centrado no território metropolitano da nação
hegemônica. Mas, à hegemonia holandesa, faltaram as bases industriais e
imperiais que dotaram a hegemonia britânica de estruturas muito mais amplas
e complexas. A Paz de Cem Anos na Europa foi o produto mais característico
dessa diferença (ARRIGHI; SILVER, 2001, p. 73).
Porém, a partir do último quartel do século XIX o CSA inglês entra em declínio,
levando consigo a hegemonia mundial do Império Britânico. Na esteira da crise da
hegemonia inglesa e da intensificação da competição interempresarial durante a Grande
Depressão de 1873-1896, Alemanha e EUA apareceram como os grandes emergentes
em vias de industrialização. Com métodos distintos, ambos criaram modelos de
desenvolvimento mais eficientes do que o da indústria familiar inglesa e aceleraram o
fim da ordem oitocentista. Nesse contexto, a difusão de práticas protecionistas
contribuiu não apenas para o fim do ideário liberal inglês do mercado mundial, mas
também para a o declínio da supremacia europeia e do sistema de equilíbrio de poder
europeu.
Na Alemanha, predominou a integração horizontal, a cartelização entre
corporações, também chamada de “capitalismo monopolista de Estado”, em que
empresas do mesmo ramo, usando os mesmos insumos para fazer os mesmos produtos
para os mesmos consumidores reduziam as incertezas do mercado e atendiam ao projeto
de Otto Von Bismarck de criar uma economia nacional centralizada e protecionista
(ARRIGHI; SILVER, 2001, p. 132). Com incentivos em pesquisa, tecnologia e
patrocínio de bancos de crédito, a Alemanha chegou às vésperas da Primeira Guerra
Mundial como uma das potências mais industrializadas do mundo (CURY, 2001, p. 54).
O período de caos sistêmico iniciado no final do século XIX, que culminou nas
duas guerras mundiais, corroeu as bases da hegemonia inglesa e sepultou as aspirações
expansionistas alemãs. Com isso, as capacidades políticas e econômicas do sistema-
mundo foram concentradas nos Estados Unidos. O modelo de integração vertical das
grandes corporações norte-americanas aliado à abundância de recursos naturais em solo
americano e ao mercado consumidor interno em franca expansão trouxe uma nova
mudança de paradigma: a internalização dos custos de transação, um modelo
autocentrado – com fornecedores e mercados consumidores protegidos da concorrência
externa e integrados por redes de transporte e comunicação instaladas dentro do
território nacional.
Portanto, além de internalizar os custos de proteção (como a Holanda) e
centralizar as inovações produtivas (como a Inglaterra), os EUA inovaram ao colocar
sob sua jurisdição praticamente todas as etapas da cadeia produtiva, com foco na esfera
do consumo. De forma cumulativa, tem-se que: a Holanda inovou na esfera dos
transportes e do comércio naval de longa distancia; a Inglaterra incorporou e
aperfeiçoou essas mudanças nos transportes e inovou na esfera produtiva com o advento
da Revolução Industrial; e os EUA aperfeiçoaram as inovações produtivas e comerciais
dos modelos anteriores e inovaram na esfera do consumo, com o advento da sociedade
de massa e o uso dos novos conhecimentos da psicologia para o fomento de
necessidades coletivas criadas pelo marketing.
Em outras palavras, os holandeses transportavam produtos fabricados por
estrangeiros e consumidos por estrangeiros; os ingleses transportavam produtos
fabricados em suas próprias indústrias mas que eram, em boa parte, consumidos por
estrangeiros; e os norte-americanos transportavam produtos fabricados por suas próprias
corporações e consumidos por seus próprios cidadãos. Daí a cunhagem do termo
internalização dos termos de transação.
Portanto, a partir dos anos 1920, tem-se uma mudança de paradigma: a esfera do
consumo, que era apenas a etapa final de uma cadeia de mercadorias centrada na
produção industrial, deu lugar a uma sociedade de massa em que o consumo foi
substituído pelo consumismo. Assim, a mera etapa final das cadeias de mercadorias
tornou-se o centro de um modelo de sociedade que, após a Segunda Guerra Mundial, foi
difundido pelo governo dos EUA e por empresas norte-americanas como ferramenta
não apenas de maximização de lucros, mas também de segurança nacional contra a
ameaça do comunismo.
O fim do Longo Século XX e a internalização dos custos de renovação
A partir dos anos 1970, inicia-se o declínio do Longo Século norte-americano. A
discussão sobre os rumos do sistema-mundo moderno adquire contornos de crise
terminal para Wallerstein e de anomalias no padrão histórico para Arrighi e Silver. No
presente artigo, opta-se pela segunda corrente, que defende uma inédita bifurcação das
capacidades sistêmicas: enquanto nas transições do passado houve uma concentração de
poder militar e econômico na hegemonia emergente, no atual declínio do CSA norte-
americano há uma fissão de tais capacidades, em que os EUA se mantêm como maior
potência bélica do planeta enquanto que a riqueza mundial desloca-se gradualmente
para a Ásia, com foco na China e na Índia. Portanto, é equivocado prenunciar uma
“transição hegemônica” em que um Estado asiático possa substituir os EUA.
Nas palavras dos autores (ARRIGHI; SILVER, 2011, p. 63):
Yet, military resources of any global significance are overwhelmingly
concentrated in the hands of the United States. There is no credible sign that
any of the rising economic states, including China, has any intention of
directly challenging US military power. Even without a direct challenge,
however, the United States no longer possesses the financial resources
needed to support its worldwide military apparatus (and now does so only by
going deeper into international debt).
No entanto, esta anomalia no padrão histórico é apenas parcial. Dela é possível
depreender que, se há uma bifurcação entre o centro militar e o econômico, há também
um descolamento entre os ciclos hegemônicos e os ciclos sistêmicos de acumulação.
Em outras palavras, ainda que não haja uma transição hegemônica tradicional, afinal os
EUA continuam como a única superpotência militar de escala global e a China não tem
interesse nem condições de substituí-la, o deslocamento das capacidades econômicas
sistêmicas para a Ásia (e aí inclui-se não apenas a China, mas também a Índia e países
do Sul Global como o Brasil) implica a substituição do paradigma econômico que
caracterizou o CSA do Longo Século XX.
É precisamente nesse contexto que se insere a quarta etapa da evolução histórica
dos CSA: a internalização dos custos de renovação5. Segundo os autores, todas as
hegemonias e seus modelos de acumulação estiveram baseados na externalização dos
custos de renovação da natureza. Assim, a lucratividade das empresas nos ciclos do
passado esteve propensa a considerar os insumos naturais como um input produtivo
próximo ao custo zero – devido à abundância (ou pelo menos à perspectiva de não
extinção) dos recursos naturais essenciais à lógica produtiva e à não preocupação com
os dejetos resultantes desse processo (2011, p. 67). A externalização desses custos
acentuou-se no Longo Século XX com o modelo de produção intensiva e com a difusão
da sociedade de massa e do uso maciço de combustíveis fósseis.
Diante da fissão das capacidades sistêmicas, com a preponderância militar norte-
americana e a crescente relevância econômica dos países emergentes, o presente artigo
pretende analisar uma esfera fundamental da mudança de paradigma para um possível
5 O termo “reproduction” pode ser traduzido literalmente como “reprodução”, mas opta-se pelo termo
“renovação” por captar de forma mais objetiva o conceito trabalhado pelos autores.
CSA do século XXI: os recursos naturais associados à geração de energia. Mais do que
um simples componente do processo produtivo, a geração de energia nos CSA do
passado teve seus custos externalizados. Tomando como exemplo o carvão no Longo
Século XIX e o petróleo no Longo Século XX, argumenta-se que, embora esses
recursos estivessem distribuídos de forma desigual pelo globo, a) os agentes
empresariais dependentes dessas matrizes energéticas não contavam com a
possibilidade de extinção dos recursos no curto e médio prazo; e b) os impactos
ambientais dos dejetos resultantes do seu uso não eram considerados no cálculo dos
lucros empresariais.
Diante da gradual redução da oferta de recursos para combustíveis fósseis, da
elevação de seus custos e dos crescentes impactos ambientais de seus dejetos, defende-
se que a mudança de paradigma na geração de energia por meio da internalização dos
custos de renovação energética é a chave para que os países emergentes sejam
protagonistas de um novo CSA, desvinculado da antiga lógica de transições
hegemônicas. Logo, em um mundo marcado pela supremacia militar norte-americana,
cabe aos países emergentes galgar degraus nas cadeias de mercadorias globais através
de inovações empresariais – e a internalização dos custos de renovação energética é um
dos caminhos para tal.
A coalizão informal dos BRICs e a internalização dos custos de renovação
energética
Uma transição hegemônica nos moldes das transições do passado é improvável.
Conforme mencionado, o sistema-mundo moderno passa por um processo de bifurcação
em que os EUA se mantêm como única superpotência no campo militar enquanto que a
riqueza mundial tem se deslocado gradualmente do Ocidente industrializado para os
países do Sul Global, especialmente China e Índia, mas também Brasil, África do Sul,
México, Turquia, Indonésia e Coreia do Sul. Diante da impossibilidade de surgimento
de uma nova hegemonia mundial, começam a aparecer novas siglas e coalizões
informais que refletem o ganho de poder econômico de membros do antigo Terceiro
Mundo: BRICs, BRICS, IBAS, G-20 financeiro, MIST, países emergentes, etc. Porém,
a euforia, geralmente midiática, dessas novas coalizões tende a ser efêmera e
superficial, uma vez que costuma ser baseada apenas em índices anuais de crescimento
econômico, deixando de lado fatores conjunturais e estruturais.
Diante disso, coloca-se a seguinte problemática: é possível identificar um
denominador comum entre os BRICS que reflita uma preparação para a gradual
internalização dos custos de renovação energética? Em caso negativo, a aproximação
bilateral entre seus membros pode contribuir para tal?
A geração e o consumo de energia têm características distintas em cada um dos
BRICS. Devido ao notável crescimento econômico, China e Índia são dois dos maiores
consumidores mundiais de energia enquanto a Rússia é uma potência energética calcada
em uma matriz típica do século XX (petróleo e gás natural) aliada à tecnologia no
âmbito nuclear. Já o Brasil apresenta dois fatores que podem torná-lo uma potência
energética do século XXI: um imenso potencial hídrico e um histórico de investimento
em combustíveis renováveis (caso do etanol), reforçados pela possível receita
decorrente da exploração de petróleo na camada do pré-sal.
Apesar de divergências em temas como democracia, direitos humanos,
mudanças climáticas, reforma da ONU e questões fronteiriças, alguns especialistas
veem como provável a cooperação dos BRICs em torno da esfera energética, tendo dois
grandes fornecedores (Rússia e Brasil) e dois grandes consumidores (China e Índia). Os
documentos dos recentes encontros de cúpula do bloco, em Delhi (2012) e Durban
(2013) reforçariam esse argumento, pois mencionam a cooperação e o desenvolvimento
de novas matrizes energéticas bem como o intercâmbio de know-how especializado.
Não obstante a retórica convergente, a temática energética ainda aparece tímida
no âmbito do grupo e não pode ser vista como um passo no caminho da internalização
dos custos de renovação energética. Mais evidente é a possibilidade de acordos
bilaterais e investimentos entre seus membros, fora do grupo formal dos BRICS,
refletindo uma alteração gradual da geopolítica global de energia de acordo com os
interesses particulares de cada um dos países emergentes. Nesse sentido, a China é o
país mais articulado, estabelecendo acordos e projetos de cooperação com os demais.
Combustíveis fósseis e a relação sino-russa
Apesar da crise do Longo Século XX, os combustíveis fósseis persistem como
principal matriz energética não apenas dos emergentes, mas também de muitos países
desenvolvidos. Portanto, um estudo que verse sobre a geopolítica global de energia não
pode desconsiderar os fluxos internacionais de petróleo e gás natural, e deve
compreender o papel desempenhado pelos emergentes nessa esfera.
A produção mundial de combustíveis fósseis ainda tem como principal destino o
Ocidente industrializado: Estados Unidos e União Europeia. Mas com as altas taxas de
crescimento da China nas últimas décadas e o consequente aumento no gap entre
produção e consumo de energia, o país tornou-se um ávido importador de petróleo e gás
natural. Com isso, a Rússia de Putin volta-se gradualmente para as oportunidades de
escoamento desses combustíveis fósseis para o Oriente.
Devido à sua extensão territorial, à sua localização e aos recursos naturais
disponíveis, a Rússia é uma potência energética global. Mas a dependência da
exportação de combustíveis fósseis e a corrupção e a ineficiência típicas de um setor
monopolizado por empresas do governo tornam o país um candidato improvável ao
protagonismo na era da internalização dos custos de renovação energética. Ainda que as
lideranças do país não deem sinais de que se preparam para o novo ciclo, no curto e
médio prazo a exportação de recursos energéticos é essencial para a saúde das contas
públicas russas (corresponde a cerca de 70% da pauta de exportações) e pode se tornar a
solução imediata para abastecer dois gigantes emergentes da Ásia: não apenas a China,
mas também a Índia.
Índia e China, por outro lado, têm problemas no outro extremo da cadeia
energética: seus níveis elevados de crescimento econômico nas últimas décadas os
tornaram dependentes da importação de combustíveis fósseis. O consumo de petróleo
da Índia, por exemplo, é três vezes maior do que a produção doméstica e, junto com
carvão, o hidrocarboneto representa dois terços da matriz energética do país. Os
números da China são ainda mais alarmantes. Em 2012, o consumo de petróleo atingiu
cerca de cinco vezes a produção nacional e, junto com carvão, o hidrocarboneto
representa cerca de 90% da matriz energética chinesa (EIA, 2014).
Devido ao recente atrito político-diplomático envolvendo Rússia e União
Europeia em torno da questão ucraniana, as negociações entre Rússia e China ganharam
destaque. Ambos os países são os pilares da Organização para Cooperação de Shangai,
que inclui também os países da Ásia Central, uma região riquíssima de petróleo e gás
natural.
Especialistas apontam duas hipóteses principais para a aproximação sino-russa
no âmbito desta organização: um balanceamento mútuo que refletiria uma competição
por influência nos países e recursos da Ásia Central; ou um balanceamento conjunto
contra a atuação dos EUA na região (BUMBIERIS, 2010, p. 22). Na esteira dos atritos
entre o Ocidente (EUA, UE e OTAN) e a Rússia, bem como do deslocamento do “pivô
estratégico” norte-americano do Oriente Médio para uma possível política de contenção
da China na Ásia, a segunda hipótese é mais plausível.
Assim, o acordo para fornecimento de gás russo para a China, celebrado em
maio de 2014, pode ter sido engatilhado pela crise na Ucrânia, mas acompanha uma
tendência de aproximação entre um grande exportador e um grande consumidor de
recursos energéticos – ambos considerados “países emergentes” e membros dos BRICS.
Uma vez que a construção dos canais de escoamento pode levar anos, é difícil traçar um
cenário mais preciso para a questão, mas, nitidamente, a geopolítica dos combustíveis
fósseis da Eurásia tende a sofrer profundas mudanças nos próximos anos.
Energias renováveis e a liderança chinesa
Dentre os BRICS, a China é o principal candidato a embarcar com sucesso no
processo de internalização dos custos de renovação energética. Nos últimos anos, o país
tornou-se o maior investidor em energias renováveis do mundo, com ênfase em energia
solar e eólica. Através de empresas estatais, o país estabelece uma série de programas de
transferência de tecnologia com empresas ocidentais por meio de joint-ventures
(GOMEZ, et. al., p. 554).
Ainda que a parcela de energia renovável na matriz chinesa tenha caído pela
metade (de 18% em 1999 para 9% em 2009), o suporte governamental resultou em um
aumento bruto considerável da geração de energia por esse meio. Ademais, de 2004 a
2013 os investimentos da China no setor saltaram de US$2,4 bilhões para US$ 56,3
bilhões, enquanto os EUA passaram de US$5,5 bilhões para US$ 35,8 bilhões.
O gráfico abaixo demonstra o papel de destaque da China em relação a outros
emergentes no tocante a pedidos de patentes submetidos à IEA referentes aos diversos
setores de energia, sendo hidrelétrica, eólica e biocombustíveis alguns dos principais.
Fonte: IEA, 2013, p. 10.
Como reflexo dessa tendência, as empresas chinesas lançaram-se no mercado
global de energias renováveis movidas por ganhos abrangentes e específicos. Os ganhos
abrangentes significam benefícios macroeconômicos com superávits comerciais e de
investimentos diretos, que contribuem para o equilíbrio no Balanço de Pagamentos do
país e aquecem o setor bancário (XIAOMEI, et. al, 2013, p. 9). Já os ganhos específicos
variam entre os setores de energia eólica e solar, mas giram em torno da escalada
tecnológica das empresas chinesas ao realizar joint-ventures com companhias europeias,
japonesas e norte-americanas, e da participação em mercados consumidores, como de
turbinas eólicas ou de painéis solares, nos países ricos e em desenvolvimento (Ibidem).
Esse é o caso da aproximação entre China e Brasil. Recentes acordos entre a
Eletrobrás e a China Three Gorges Corporation (CTGC) sinalizam a intenção chinesa de
explorar o vasto potencial do mercado brasileiro de energia em troca do
compartilhamento de tecnologia. Para tanto, foi criado o “Centro China-Brasil de
mudanças climáticas e tecnologias inovadoras para energia”, que promove o diálogo de
pesquisadores da Universidade Tsinghua e da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
com foco em projetos ligados a biocombustíveis, energia eólica, captura e
armazenamento de carbono e tecnologias para produção de petróleo em águas
profundas.
Fonte: IEA, 2013, p. 11
A tabela acima mostra a posição de destaque do Brasil como receptor de
investimentos chineses no setor energético, mas também ressalta a crescente
importância de outros emergentes, como Indonésia, Rússia e Índia.
Biocombustíveis e o potencial sino-brasileiro
O comércio internacional de biocombustíveis ainda é inexpressivo e os países
produtores têm como maior foco o próprio mercado interno. Não por acaso, os maiores
produtores são também os maiores consumidores, casos de Brasil e EUA com o etanol e
França e Alemanha com o biodiesel (MASIERO, p. 102).
Porém, a China tem entrado gradualmente nesse mercado. Sua produção de
etanol é ainda muito inferior à brasileira e à norte-americana, mas desde 2004, com o
lançamento da Estratégia Nacional de Desenvolvimento de Energia Renovável, o país
alavancou sua produtividade e tornou-se o terceiro maior produtor da referida
commodity. Conforme ressalta Masiero, as exportações de etanol brasileiro para a
China são insignificantes, o que reflete a ausência de conversas de alto escalão sobre o
assunto. Porém, ambos os países assinaram, em 2009, um memorando de cooperação
em energia e mineração com a expectativa de incentivar o comércio bilateral. Por fim,
um fenômeno recente de compra de terras no estado da Bahia por companhias da China
dá mostras de que uma relação de investimentos chineses no setor agrícola brasileiro
tem se destacado.
De acordo com a tabela abaixo, a previsão chinesa é de aumento considerável na
demanda por biocombustíveis. No 11º plano quinquenal (2006-2010) foi estabelecida,
pela primeira vez, uma meta para o comércio destes. Já no 12º plano quinquenal (2011-
2015) busca-se uma ampliação da escala de produção e no 13º (2016-2020) o objetivo é
substituir em 15% o uso de combustíveis fósseis e desenvolver uma indústria
competitiva globalmente.
Fonte: MASIERO, 2011, p. 109.
Portanto, o mercado de biocombustíveis apresenta um imenso potencial de
aproximação entre Brasil e China. Porém, mais do que simples mercados consumidores,
é necessário que ambos vejam, um no outro, possibilidades de produção de
conhecimento e desenvolvimento de tecnologia de ponta e, neste sentido, a participação
conjunta de empresas, governos e centros de pesquisa se faz fundamental.
Considerações finais
A atual crise do “Longo Século XX” traz consigo uma mudança do paradigma
que caracterizou os ciclos sistêmicos de acumulação do sistema-mundo moderno: para
galgar degraus na divisão internacional do trabalho, os Estados e empresas precisam
internalizar os custos de renovação energética.
A hipótese de formação de um processo de cooperação entre os países
emergentes do chamado BRICS para lidar com esse processo não se verificou ao longo
do trabalho. Tímidas menções sobre energias renováveis nos encontros de cúpula
demonstram que o tema não tende a ser tratado no âmbito multilateral e sim no bilateral,
o que reflete a heterogeneidade das matrizes energéticas de seus membros.
Em contrapartida, essa articulação bilateral que tem a China como pivô dos
maiores projetos, deve ser destacada. No âmbito dos combustíveis fósseis, que mantêm
sua importância apesar da crise do Longo Século XX, a principal relação gira em torno
da cooperação sino-russa. Já na esfera de energias renováveis como eólica e solar, a
China tem se aproximado de países em desenvolvimento¸ como Brasil, Índia e
Indonésia, e no caso específico de biocombustíveis, a relação sino-brasileira tem um
imenso potencial devido ao tamanho de seus mercados e à possibilidade de pesquisa de
ponta.
Portanto, a crise do Longo Século XX deixa mais incógnitas do que respostas
acerca dos rumos do sistema-mundo moderno. Mas a partir do marco teórico traçado
por Arrighi e Silver, é possível demonstrar que a questão energética ganha relevância e
tende a ser tratada, pelos países emergentes, mais no âmbito bilateral do que
multilateral.
Referências
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