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Segurança energética e cooperação entre os BRICS no final do “Longo Século XX”: convergências e divergências 12 Bruno Hendler 3 O presente artigo tem como objetivo verificar a existência de uma política de energias renováveis convergente entre os países membros do BRICS. Utilizando-se do marco teórico dos ciclos sistêmicos de acumulação, desenvolvido por Giovanni Arrighi, pretende-se demonstrar que a atual crise do “Longo Século XX” implica uma mudança paradigmática acerca das matrizes energéticas dos países emergentes. Nos termos do autor, a atual reorganização sistêmica entre países ricos e em desenvolvimento coloca em evidência a internalização dos custos de renovaçãodos fatores energéticos, ao contrário dos ciclos anteriores, em que os insumos, ainda que distribuídos de forma desigual pelo globo, não apresentavam o risco de escassez em larga escala e sua utilização não trazia impactos imediatos na biosfera. Uma vez que o grupo do BRICS inclui países deveras heterogêneos em termos de demanda e matrizes energéticas, é possível identificar uma política comum de cooperação no âmbito de energias renováveis? Ou cada país atua de forma a obter apenas ganhos individuais de acordo com seus interesses? A partir da análise empírica dos projetos de energia renovável e seus resultados entre os membros do grupo, pretende-se verificar a hipótese de formação de um processo de cooperação de longo prazo que nos permita verificar a transição para um possível “longo século XXI”, em que a “internalização dos custos de renovação” energética, por parte dos países emergentes, lhes trará mais condições de moldar o sistema internacional. 1 Artigo a ser apresentado no “2º Seminário de Relações Internacionais: Graduação e Pós-graduação: os BRICS e as transformações da Ordem Global”, organizado pela Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) que ocorrerá nos dias 28 e 29 de agosto na Academia da Polícia Militar da Paraíba. 2 Artigo apresentado dentro do painel de trabalho: “Os países BRICS na geopolítica global: como as diferenças importam?”. 3 Bruno Hendler é Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (IREL-UnB) e Professor do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).

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Segurança energética e cooperação entre os BRICS no final do “Longo Século

XX”: convergências e divergências12

Bruno Hendler3

O presente artigo tem como objetivo verificar a existência de uma política de energias

renováveis convergente entre os países membros do BRICS. Utilizando-se do marco

teórico dos ciclos sistêmicos de acumulação, desenvolvido por Giovanni Arrighi,

pretende-se demonstrar que a atual crise do “Longo Século XX” implica uma mudança

paradigmática acerca das matrizes energéticas dos países emergentes. Nos termos do

autor, a atual reorganização sistêmica entre países ricos e em desenvolvimento coloca

em evidência a “internalização dos custos de renovação” dos fatores energéticos, ao

contrário dos ciclos anteriores, em que os insumos, ainda que distribuídos de forma

desigual pelo globo, não apresentavam o risco de escassez em larga escala e sua

utilização não trazia impactos imediatos na biosfera.

Uma vez que o grupo do BRICS inclui países deveras heterogêneos em termos de

demanda e matrizes energéticas, é possível identificar uma política comum de

cooperação no âmbito de energias renováveis? Ou cada país atua de forma a obter

apenas ganhos individuais de acordo com seus interesses?

A partir da análise empírica dos projetos de energia renovável e seus resultados entre os

membros do grupo, pretende-se verificar a hipótese de formação de um processo de

cooperação de longo prazo que nos permita verificar a transição para um possível

“longo século XXI”, em que a “internalização dos custos de renovação” energética, por

parte dos países emergentes, lhes trará mais condições de moldar o sistema

internacional.

1 Artigo a ser apresentado no “2º Seminário de Relações Internacionais: Graduação e Pós-graduação: os

BRICS e as transformações da Ordem Global”, organizado pela Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) que ocorrerá nos dias 28 e 29 de agosto na Academia da Polícia Militar da Paraíba. 2 Artigo apresentado dentro do painel de trabalho: “Os países BRICS na geopolítica global: como as

diferenças importam?”. 3 Bruno Hendler é Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (IREL-UnB) e

Professor do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba).

Introdução

A articulação da mais notória coalizão informal entre países emergentes no

começo do século XXI, o BRICS, reflete mudanças cruciais na dinâmica de um sistema

internacional que já não pode ser caracterizado apenas como o mundo “pós Guerra

Fria”. O debate sobre a transição da unipolaridade dos anos 1990 para uma possível

unimultipolaridade dos anos 2000 é válido, mas retrata apenas a esfera do poder entre os

Estados em uma visão essencialmente realista das relações internacionais. Em

contrapartida, uma visão neoliberal que enfatiza o estreitamento de laços entre povos,

empresas e organizações deixa de lado uma série de estruturas de longa duração que

permeiam o que chamamos de “internacional” e falham em captar mudanças

paradigmáticas que marcam esse começo de século. Nesse contexto, o modelo dos

ciclos sistêmicos de acumulação (CSA) de Giovanni Arrighi (1996) apresenta uma alta

capacidade explicativa da mudança de paradigmas no final do “Longo Século XX” e

pode ser utilizado para compreender como a questão energética tem sido abordada pelos

países emergentes, em especial os BRICS.

Fundamentado em Fernand Braudel, o autor sustenta que o sistema-mundo

moderno resulta da fusão de duas estruturas de longa duração, surgidas no final da Idade

Média e que mantêm uma relação intrínseca de causalidade mútua desde então: o

sistema interestatal, pautado pela incessante competição por poder entre Estados; e o

sistema capitalista, pautado pela incessante acumulação de capital entre agentes

empresariais. Desde essa transição para a Idade Moderna, essas estruturas foram

lideradas por Estados e empresas que deram origem a “complexos de ponta”

hegemônicos, ou seja, sucessivos loci de acumulação de poder e riqueza definidos como

hegemonias mundiais dos chamados “Longos Séculos”. Assim, tem-se o Longo Século

XVI (Ibérico-Genovês), o Longo Século XVII (Holandês), o Longo Século XIX

(Inglês), e o Longo Século XX (Norte-americano).

Essas quatro molduras temporais correspondem a uma série de inovações tanto

na esfera de poder interestatal quanto no mundo da disputa interempresarial. E para fins

deste trabalho, tem-se como objeto de estudo o lugar ocupado pelos BRICS no contexto

do fim do Longo Século XX e, mais especificamente, o papel desempenhado pelos

membros dessa coalizão informal na construção de um novo paradigma energético para

o possível Longo Século XXI.

As inovações qualitativas nos ciclos sistêmicos de acumulação

Ao longo de sua obra, Arrighi trabalha com as inovações estatais e empresariais

na incessante disputa por poder e riqueza no sistema-mundo moderno. A tabela abaixo

(ARRIGHI; SILVER, 2011, p. 61) apresenta o conjunto dessas inovações de acordo

com a internalização de custos de cada modelo. Em poucas palavras, cada novo ciclo

trouxe algum tipo de inovação em relação ao ciclo anterior ao trazer para dentro de sua

jurisdição política e de suas próprias redes de mercadorias os custos de determinados

processos políticos e econômicos.

Fonte; ARRIGHI; SILVER, 2011, p. 61.

O primeiro CSA foi produto de uma aliança entre os financistas genoveses em

busca de rentabilidade para seus capitais “encalhados” após a expansão comercial

italiana no século XV e os governantes expansionistas dos reinos ibéricos em formação,

ávidos por recursos financeiros e carentes de serviços no tráfego de moedas e

mercadorias (ARRIGHI, 1996, p. 125). Logo, a inovação do primeiro CSA refere-se

apenas à fusão da lógica territorialista das coroas ibéricas com a lógica capitalista das

redes comerciais e financeiras de genoveses espalhados pela Europa Ocidental. Assim,

os banqueiros genoveses, que não podiam contar com a proteção de uma Gênova

ameaçada por vizinhos e repleta de problemas internos, precisavam de proteção para

suas rotas comerciais e transações financeiras – e a encontraram no poder político-

militar das coroas ibéricas.

Foi apenas no segundo CSA, baseado nas Províncias Unidas, que a centralidade

econômica de uma região fundiu-se com uma única unidade política capaz de garantir

sua própria proteção, culminando na primeira hegemonia mundial do sistema-mundo

moderno. Enquanto no primeiro CSA a “nação”4 de capitalistas genoveses oferecia

serviços financeiros em troca da proteção dos reinos ibéricos, os holandeses

conquistaram ao final da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), sua soberania em relação

à Espanha dos Habsburgo e tornaram-se o lócus de uma nova expansão material graças

às companhias de comércio e ao comércio de longa distância com a Ásia Oriental

(ARRIGHI, 1996, p. 135). Portanto, no momento em que as redes comerciais e

financeiras das companhias de comércio holandesas não precisam pagar pela proteção

de outro Estado, temos aí uma grande inovação: a internalização dos custos de

proteção, ligada tanto à esfera do capitalismo quanto à esfera do sistema interestatal.

Após o declínio do poderio comercial e bélico da marinha holandesa e um

período de conturbações sistêmicas que culminaram nas Guerras Napoleônicas, a

Inglaterra tornou-se a nova hegemonia mundial. Conforme indica a tabela 1, esse ciclo

trouxe uma inovação na esfera produtiva com a internalização dos custos de produção.

Essa mudança de paradigma, que corresponde à Primeira Revolução Industrial, fez com

que a Inglaterra desse um salto qualitativo e cumulativo em relação à hegemonia

anterior: além de centralizar o poder global e canalizar as redes de mercadorias (tal

como o CSA ibérico-genovês) e internalizar os custos de proteção (tal como o CSA

holandês), a Inglaterra tornou-se o berço de inovações na esfera produtiva do

capitalismo global através do modelo da indústria familiar.

Logo, enquanto os holandeses inovaram na esfera comercial ao conectar

territórios colonizados por outras potências europeias, os ingleses inovaram na esfera

produtiva, trazendo para a soberania do império tanto a produção agropecuária de suas

colônias quanto a produção industrial da metrópole.

4 Arrighi utiliza a expressão “nações” de agentes capitalistas para se referir a grupos expatriados,durante a

Baixa Idade Média, que se identificavam e eram reconhecidos uns em relação aos outros e aos governos

das cidades-mercado em que residiam, sendo os florentinos, genoveses, milaneses, ingleses, alemães e

lucaneses os mais influentes. Tais nações estabeleceram as primeiras redes de mercadorias na economia-

mundo capitalista ainda em formação e, por meio de um instrumento monetário – a letra de cambio –

obtinham lucros no comércio de produtos e, principalmente, no câmbio de moedas (ARRIGHI, 1996, p.

131-132).

Em suma, a hegemonia britânica do século XIX estruturou-se de um modo

totalmente diferente da hegemonia holandesa. Ambas se basearam em um

sistema de comércio mundial centrado no território metropolitano da nação

hegemônica. Mas, à hegemonia holandesa, faltaram as bases industriais e

imperiais que dotaram a hegemonia britânica de estruturas muito mais amplas

e complexas. A Paz de Cem Anos na Europa foi o produto mais característico

dessa diferença (ARRIGHI; SILVER, 2001, p. 73).

Porém, a partir do último quartel do século XIX o CSA inglês entra em declínio,

levando consigo a hegemonia mundial do Império Britânico. Na esteira da crise da

hegemonia inglesa e da intensificação da competição interempresarial durante a Grande

Depressão de 1873-1896, Alemanha e EUA apareceram como os grandes emergentes

em vias de industrialização. Com métodos distintos, ambos criaram modelos de

desenvolvimento mais eficientes do que o da indústria familiar inglesa e aceleraram o

fim da ordem oitocentista. Nesse contexto, a difusão de práticas protecionistas

contribuiu não apenas para o fim do ideário liberal inglês do mercado mundial, mas

também para a o declínio da supremacia europeia e do sistema de equilíbrio de poder

europeu.

Na Alemanha, predominou a integração horizontal, a cartelização entre

corporações, também chamada de “capitalismo monopolista de Estado”, em que

empresas do mesmo ramo, usando os mesmos insumos para fazer os mesmos produtos

para os mesmos consumidores reduziam as incertezas do mercado e atendiam ao projeto

de Otto Von Bismarck de criar uma economia nacional centralizada e protecionista

(ARRIGHI; SILVER, 2001, p. 132). Com incentivos em pesquisa, tecnologia e

patrocínio de bancos de crédito, a Alemanha chegou às vésperas da Primeira Guerra

Mundial como uma das potências mais industrializadas do mundo (CURY, 2001, p. 54).

O período de caos sistêmico iniciado no final do século XIX, que culminou nas

duas guerras mundiais, corroeu as bases da hegemonia inglesa e sepultou as aspirações

expansionistas alemãs. Com isso, as capacidades políticas e econômicas do sistema-

mundo foram concentradas nos Estados Unidos. O modelo de integração vertical das

grandes corporações norte-americanas aliado à abundância de recursos naturais em solo

americano e ao mercado consumidor interno em franca expansão trouxe uma nova

mudança de paradigma: a internalização dos custos de transação, um modelo

autocentrado – com fornecedores e mercados consumidores protegidos da concorrência

externa e integrados por redes de transporte e comunicação instaladas dentro do

território nacional.

Portanto, além de internalizar os custos de proteção (como a Holanda) e

centralizar as inovações produtivas (como a Inglaterra), os EUA inovaram ao colocar

sob sua jurisdição praticamente todas as etapas da cadeia produtiva, com foco na esfera

do consumo. De forma cumulativa, tem-se que: a Holanda inovou na esfera dos

transportes e do comércio naval de longa distancia; a Inglaterra incorporou e

aperfeiçoou essas mudanças nos transportes e inovou na esfera produtiva com o advento

da Revolução Industrial; e os EUA aperfeiçoaram as inovações produtivas e comerciais

dos modelos anteriores e inovaram na esfera do consumo, com o advento da sociedade

de massa e o uso dos novos conhecimentos da psicologia para o fomento de

necessidades coletivas criadas pelo marketing.

Em outras palavras, os holandeses transportavam produtos fabricados por

estrangeiros e consumidos por estrangeiros; os ingleses transportavam produtos

fabricados em suas próprias indústrias mas que eram, em boa parte, consumidos por

estrangeiros; e os norte-americanos transportavam produtos fabricados por suas próprias

corporações e consumidos por seus próprios cidadãos. Daí a cunhagem do termo

internalização dos termos de transação.

Portanto, a partir dos anos 1920, tem-se uma mudança de paradigma: a esfera do

consumo, que era apenas a etapa final de uma cadeia de mercadorias centrada na

produção industrial, deu lugar a uma sociedade de massa em que o consumo foi

substituído pelo consumismo. Assim, a mera etapa final das cadeias de mercadorias

tornou-se o centro de um modelo de sociedade que, após a Segunda Guerra Mundial, foi

difundido pelo governo dos EUA e por empresas norte-americanas como ferramenta

não apenas de maximização de lucros, mas também de segurança nacional contra a

ameaça do comunismo.

O fim do Longo Século XX e a internalização dos custos de renovação

A partir dos anos 1970, inicia-se o declínio do Longo Século norte-americano. A

discussão sobre os rumos do sistema-mundo moderno adquire contornos de crise

terminal para Wallerstein e de anomalias no padrão histórico para Arrighi e Silver. No

presente artigo, opta-se pela segunda corrente, que defende uma inédita bifurcação das

capacidades sistêmicas: enquanto nas transições do passado houve uma concentração de

poder militar e econômico na hegemonia emergente, no atual declínio do CSA norte-

americano há uma fissão de tais capacidades, em que os EUA se mantêm como maior

potência bélica do planeta enquanto que a riqueza mundial desloca-se gradualmente

para a Ásia, com foco na China e na Índia. Portanto, é equivocado prenunciar uma

“transição hegemônica” em que um Estado asiático possa substituir os EUA.

Nas palavras dos autores (ARRIGHI; SILVER, 2011, p. 63):

Yet, military resources of any global significance are overwhelmingly

concentrated in the hands of the United States. There is no credible sign that

any of the rising economic states, including China, has any intention of

directly challenging US military power. Even without a direct challenge,

however, the United States no longer possesses the financial resources

needed to support its worldwide military apparatus (and now does so only by

going deeper into international debt).

No entanto, esta anomalia no padrão histórico é apenas parcial. Dela é possível

depreender que, se há uma bifurcação entre o centro militar e o econômico, há também

um descolamento entre os ciclos hegemônicos e os ciclos sistêmicos de acumulação.

Em outras palavras, ainda que não haja uma transição hegemônica tradicional, afinal os

EUA continuam como a única superpotência militar de escala global e a China não tem

interesse nem condições de substituí-la, o deslocamento das capacidades econômicas

sistêmicas para a Ásia (e aí inclui-se não apenas a China, mas também a Índia e países

do Sul Global como o Brasil) implica a substituição do paradigma econômico que

caracterizou o CSA do Longo Século XX.

É precisamente nesse contexto que se insere a quarta etapa da evolução histórica

dos CSA: a internalização dos custos de renovação5. Segundo os autores, todas as

hegemonias e seus modelos de acumulação estiveram baseados na externalização dos

custos de renovação da natureza. Assim, a lucratividade das empresas nos ciclos do

passado esteve propensa a considerar os insumos naturais como um input produtivo

próximo ao custo zero – devido à abundância (ou pelo menos à perspectiva de não

extinção) dos recursos naturais essenciais à lógica produtiva e à não preocupação com

os dejetos resultantes desse processo (2011, p. 67). A externalização desses custos

acentuou-se no Longo Século XX com o modelo de produção intensiva e com a difusão

da sociedade de massa e do uso maciço de combustíveis fósseis.

Diante da fissão das capacidades sistêmicas, com a preponderância militar norte-

americana e a crescente relevância econômica dos países emergentes, o presente artigo

pretende analisar uma esfera fundamental da mudança de paradigma para um possível

5 O termo “reproduction” pode ser traduzido literalmente como “reprodução”, mas opta-se pelo termo

“renovação” por captar de forma mais objetiva o conceito trabalhado pelos autores.

CSA do século XXI: os recursos naturais associados à geração de energia. Mais do que

um simples componente do processo produtivo, a geração de energia nos CSA do

passado teve seus custos externalizados. Tomando como exemplo o carvão no Longo

Século XIX e o petróleo no Longo Século XX, argumenta-se que, embora esses

recursos estivessem distribuídos de forma desigual pelo globo, a) os agentes

empresariais dependentes dessas matrizes energéticas não contavam com a

possibilidade de extinção dos recursos no curto e médio prazo; e b) os impactos

ambientais dos dejetos resultantes do seu uso não eram considerados no cálculo dos

lucros empresariais.

Diante da gradual redução da oferta de recursos para combustíveis fósseis, da

elevação de seus custos e dos crescentes impactos ambientais de seus dejetos, defende-

se que a mudança de paradigma na geração de energia por meio da internalização dos

custos de renovação energética é a chave para que os países emergentes sejam

protagonistas de um novo CSA, desvinculado da antiga lógica de transições

hegemônicas. Logo, em um mundo marcado pela supremacia militar norte-americana,

cabe aos países emergentes galgar degraus nas cadeias de mercadorias globais através

de inovações empresariais – e a internalização dos custos de renovação energética é um

dos caminhos para tal.

A coalizão informal dos BRICs e a internalização dos custos de renovação

energética

Uma transição hegemônica nos moldes das transições do passado é improvável.

Conforme mencionado, o sistema-mundo moderno passa por um processo de bifurcação

em que os EUA se mantêm como única superpotência no campo militar enquanto que a

riqueza mundial tem se deslocado gradualmente do Ocidente industrializado para os

países do Sul Global, especialmente China e Índia, mas também Brasil, África do Sul,

México, Turquia, Indonésia e Coreia do Sul. Diante da impossibilidade de surgimento

de uma nova hegemonia mundial, começam a aparecer novas siglas e coalizões

informais que refletem o ganho de poder econômico de membros do antigo Terceiro

Mundo: BRICs, BRICS, IBAS, G-20 financeiro, MIST, países emergentes, etc. Porém,

a euforia, geralmente midiática, dessas novas coalizões tende a ser efêmera e

superficial, uma vez que costuma ser baseada apenas em índices anuais de crescimento

econômico, deixando de lado fatores conjunturais e estruturais.

Diante disso, coloca-se a seguinte problemática: é possível identificar um

denominador comum entre os BRICS que reflita uma preparação para a gradual

internalização dos custos de renovação energética? Em caso negativo, a aproximação

bilateral entre seus membros pode contribuir para tal?

A geração e o consumo de energia têm características distintas em cada um dos

BRICS. Devido ao notável crescimento econômico, China e Índia são dois dos maiores

consumidores mundiais de energia enquanto a Rússia é uma potência energética calcada

em uma matriz típica do século XX (petróleo e gás natural) aliada à tecnologia no

âmbito nuclear. Já o Brasil apresenta dois fatores que podem torná-lo uma potência

energética do século XXI: um imenso potencial hídrico e um histórico de investimento

em combustíveis renováveis (caso do etanol), reforçados pela possível receita

decorrente da exploração de petróleo na camada do pré-sal.

Apesar de divergências em temas como democracia, direitos humanos,

mudanças climáticas, reforma da ONU e questões fronteiriças, alguns especialistas

veem como provável a cooperação dos BRICs em torno da esfera energética, tendo dois

grandes fornecedores (Rússia e Brasil) e dois grandes consumidores (China e Índia). Os

documentos dos recentes encontros de cúpula do bloco, em Delhi (2012) e Durban

(2013) reforçariam esse argumento, pois mencionam a cooperação e o desenvolvimento

de novas matrizes energéticas bem como o intercâmbio de know-how especializado.

Não obstante a retórica convergente, a temática energética ainda aparece tímida

no âmbito do grupo e não pode ser vista como um passo no caminho da internalização

dos custos de renovação energética. Mais evidente é a possibilidade de acordos

bilaterais e investimentos entre seus membros, fora do grupo formal dos BRICS,

refletindo uma alteração gradual da geopolítica global de energia de acordo com os

interesses particulares de cada um dos países emergentes. Nesse sentido, a China é o

país mais articulado, estabelecendo acordos e projetos de cooperação com os demais.

Combustíveis fósseis e a relação sino-russa

Apesar da crise do Longo Século XX, os combustíveis fósseis persistem como

principal matriz energética não apenas dos emergentes, mas também de muitos países

desenvolvidos. Portanto, um estudo que verse sobre a geopolítica global de energia não

pode desconsiderar os fluxos internacionais de petróleo e gás natural, e deve

compreender o papel desempenhado pelos emergentes nessa esfera.

A produção mundial de combustíveis fósseis ainda tem como principal destino o

Ocidente industrializado: Estados Unidos e União Europeia. Mas com as altas taxas de

crescimento da China nas últimas décadas e o consequente aumento no gap entre

produção e consumo de energia, o país tornou-se um ávido importador de petróleo e gás

natural. Com isso, a Rússia de Putin volta-se gradualmente para as oportunidades de

escoamento desses combustíveis fósseis para o Oriente.

Devido à sua extensão territorial, à sua localização e aos recursos naturais

disponíveis, a Rússia é uma potência energética global. Mas a dependência da

exportação de combustíveis fósseis e a corrupção e a ineficiência típicas de um setor

monopolizado por empresas do governo tornam o país um candidato improvável ao

protagonismo na era da internalização dos custos de renovação energética. Ainda que as

lideranças do país não deem sinais de que se preparam para o novo ciclo, no curto e

médio prazo a exportação de recursos energéticos é essencial para a saúde das contas

públicas russas (corresponde a cerca de 70% da pauta de exportações) e pode se tornar a

solução imediata para abastecer dois gigantes emergentes da Ásia: não apenas a China,

mas também a Índia.

Índia e China, por outro lado, têm problemas no outro extremo da cadeia

energética: seus níveis elevados de crescimento econômico nas últimas décadas os

tornaram dependentes da importação de combustíveis fósseis. O consumo de petróleo

da Índia, por exemplo, é três vezes maior do que a produção doméstica e, junto com

carvão, o hidrocarboneto representa dois terços da matriz energética do país. Os

números da China são ainda mais alarmantes. Em 2012, o consumo de petróleo atingiu

cerca de cinco vezes a produção nacional e, junto com carvão, o hidrocarboneto

representa cerca de 90% da matriz energética chinesa (EIA, 2014).

Devido ao recente atrito político-diplomático envolvendo Rússia e União

Europeia em torno da questão ucraniana, as negociações entre Rússia e China ganharam

destaque. Ambos os países são os pilares da Organização para Cooperação de Shangai,

que inclui também os países da Ásia Central, uma região riquíssima de petróleo e gás

natural.

Especialistas apontam duas hipóteses principais para a aproximação sino-russa

no âmbito desta organização: um balanceamento mútuo que refletiria uma competição

por influência nos países e recursos da Ásia Central; ou um balanceamento conjunto

contra a atuação dos EUA na região (BUMBIERIS, 2010, p. 22). Na esteira dos atritos

entre o Ocidente (EUA, UE e OTAN) e a Rússia, bem como do deslocamento do “pivô

estratégico” norte-americano do Oriente Médio para uma possível política de contenção

da China na Ásia, a segunda hipótese é mais plausível.

Assim, o acordo para fornecimento de gás russo para a China, celebrado em

maio de 2014, pode ter sido engatilhado pela crise na Ucrânia, mas acompanha uma

tendência de aproximação entre um grande exportador e um grande consumidor de

recursos energéticos – ambos considerados “países emergentes” e membros dos BRICS.

Uma vez que a construção dos canais de escoamento pode levar anos, é difícil traçar um

cenário mais preciso para a questão, mas, nitidamente, a geopolítica dos combustíveis

fósseis da Eurásia tende a sofrer profundas mudanças nos próximos anos.

Energias renováveis e a liderança chinesa

Dentre os BRICS, a China é o principal candidato a embarcar com sucesso no

processo de internalização dos custos de renovação energética. Nos últimos anos, o país

tornou-se o maior investidor em energias renováveis do mundo, com ênfase em energia

solar e eólica. Através de empresas estatais, o país estabelece uma série de programas de

transferência de tecnologia com empresas ocidentais por meio de joint-ventures

(GOMEZ, et. al., p. 554).

Ainda que a parcela de energia renovável na matriz chinesa tenha caído pela

metade (de 18% em 1999 para 9% em 2009), o suporte governamental resultou em um

aumento bruto considerável da geração de energia por esse meio. Ademais, de 2004 a

2013 os investimentos da China no setor saltaram de US$2,4 bilhões para US$ 56,3

bilhões, enquanto os EUA passaram de US$5,5 bilhões para US$ 35,8 bilhões.

O gráfico abaixo demonstra o papel de destaque da China em relação a outros

emergentes no tocante a pedidos de patentes submetidos à IEA referentes aos diversos

setores de energia, sendo hidrelétrica, eólica e biocombustíveis alguns dos principais.

Fonte: IEA, 2013, p. 10.

Como reflexo dessa tendência, as empresas chinesas lançaram-se no mercado

global de energias renováveis movidas por ganhos abrangentes e específicos. Os ganhos

abrangentes significam benefícios macroeconômicos com superávits comerciais e de

investimentos diretos, que contribuem para o equilíbrio no Balanço de Pagamentos do

país e aquecem o setor bancário (XIAOMEI, et. al, 2013, p. 9). Já os ganhos específicos

variam entre os setores de energia eólica e solar, mas giram em torno da escalada

tecnológica das empresas chinesas ao realizar joint-ventures com companhias europeias,

japonesas e norte-americanas, e da participação em mercados consumidores, como de

turbinas eólicas ou de painéis solares, nos países ricos e em desenvolvimento (Ibidem).

Esse é o caso da aproximação entre China e Brasil. Recentes acordos entre a

Eletrobrás e a China Three Gorges Corporation (CTGC) sinalizam a intenção chinesa de

explorar o vasto potencial do mercado brasileiro de energia em troca do

compartilhamento de tecnologia. Para tanto, foi criado o “Centro China-Brasil de

mudanças climáticas e tecnologias inovadoras para energia”, que promove o diálogo de

pesquisadores da Universidade Tsinghua e da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

com foco em projetos ligados a biocombustíveis, energia eólica, captura e

armazenamento de carbono e tecnologias para produção de petróleo em águas

profundas.

Fonte: IEA, 2013, p. 11

A tabela acima mostra a posição de destaque do Brasil como receptor de

investimentos chineses no setor energético, mas também ressalta a crescente

importância de outros emergentes, como Indonésia, Rússia e Índia.

Biocombustíveis e o potencial sino-brasileiro

O comércio internacional de biocombustíveis ainda é inexpressivo e os países

produtores têm como maior foco o próprio mercado interno. Não por acaso, os maiores

produtores são também os maiores consumidores, casos de Brasil e EUA com o etanol e

França e Alemanha com o biodiesel (MASIERO, p. 102).

Porém, a China tem entrado gradualmente nesse mercado. Sua produção de

etanol é ainda muito inferior à brasileira e à norte-americana, mas desde 2004, com o

lançamento da Estratégia Nacional de Desenvolvimento de Energia Renovável, o país

alavancou sua produtividade e tornou-se o terceiro maior produtor da referida

commodity. Conforme ressalta Masiero, as exportações de etanol brasileiro para a

China são insignificantes, o que reflete a ausência de conversas de alto escalão sobre o

assunto. Porém, ambos os países assinaram, em 2009, um memorando de cooperação

em energia e mineração com a expectativa de incentivar o comércio bilateral. Por fim,

um fenômeno recente de compra de terras no estado da Bahia por companhias da China

dá mostras de que uma relação de investimentos chineses no setor agrícola brasileiro

tem se destacado.

De acordo com a tabela abaixo, a previsão chinesa é de aumento considerável na

demanda por biocombustíveis. No 11º plano quinquenal (2006-2010) foi estabelecida,

pela primeira vez, uma meta para o comércio destes. Já no 12º plano quinquenal (2011-

2015) busca-se uma ampliação da escala de produção e no 13º (2016-2020) o objetivo é

substituir em 15% o uso de combustíveis fósseis e desenvolver uma indústria

competitiva globalmente.

Fonte: MASIERO, 2011, p. 109.

Portanto, o mercado de biocombustíveis apresenta um imenso potencial de

aproximação entre Brasil e China. Porém, mais do que simples mercados consumidores,

é necessário que ambos vejam, um no outro, possibilidades de produção de

conhecimento e desenvolvimento de tecnologia de ponta e, neste sentido, a participação

conjunta de empresas, governos e centros de pesquisa se faz fundamental.

Considerações finais

A atual crise do “Longo Século XX” traz consigo uma mudança do paradigma

que caracterizou os ciclos sistêmicos de acumulação do sistema-mundo moderno: para

galgar degraus na divisão internacional do trabalho, os Estados e empresas precisam

internalizar os custos de renovação energética.

A hipótese de formação de um processo de cooperação entre os países

emergentes do chamado BRICS para lidar com esse processo não se verificou ao longo

do trabalho. Tímidas menções sobre energias renováveis nos encontros de cúpula

demonstram que o tema não tende a ser tratado no âmbito multilateral e sim no bilateral,

o que reflete a heterogeneidade das matrizes energéticas de seus membros.

Em contrapartida, essa articulação bilateral que tem a China como pivô dos

maiores projetos, deve ser destacada. No âmbito dos combustíveis fósseis, que mantêm

sua importância apesar da crise do Longo Século XX, a principal relação gira em torno

da cooperação sino-russa. Já na esfera de energias renováveis como eólica e solar, a

China tem se aproximado de países em desenvolvimento¸ como Brasil, Índia e

Indonésia, e no caso específico de biocombustíveis, a relação sino-brasileira tem um

imenso potencial devido ao tamanho de seus mercados e à possibilidade de pesquisa de

ponta.

Portanto, a crise do Longo Século XX deixa mais incógnitas do que respostas

acerca dos rumos do sistema-mundo moderno. Mas a partir do marco teórico traçado

por Arrighi e Silver, é possível demonstrar que a questão energética ganha relevância e

tende a ser tratada, pelos países emergentes, mais no âmbito bilateral do que

multilateral.

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