segurança, estudos estratégicos e defesa

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Indaial – 2021 SEGURANÇA, ESTUDOS ESTRATÉGICOS E DEFESA Prof. Jose Antonio Teófilo Cairus 1 a Edição

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Indaial – 2021

Segurança, eStudoS eStratégicoS e defeSa

Prof. Jose Antonio Teófilo Cairus

1a Edição

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Copyright © UNIASSELVI 2020

Elaboração:

Prof. Jose Antonio Teófilo Cairus

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

Impresso por:

C136s

Cairus, José Antonio Teófilo Segurança, estudos estratégicos e defesa. / José Antonio TeófiloCairus – Indaial: UNIASSELVI, 2021. 286 p.; il.

ISBN 978-65-5663-847-8 ISBN Digital 978-65-5663-848-5 1. Estudos de defesa. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardoda Vinci CDD 327

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apreSentaçãoOlá, acadêmico! Seja bem-vindo ao Livro Didático de Segurança,

Estudos Estratégicos e Defesa, que objetiva contribuir para uma formação sólida e dinâmica dentro do curso de Relações Internacionais.

Na Unidade 1, entenderemos os conceitos básicos de tópicos em Estudos Estratégicos, Segurança Internacional, Estudos de segurança e Estudos da paz e Bipolaridade e Segurança tradicional, a partir de suas principais linhas de pensamento e teóricos, compreendendo também como ocorreram as mudanças nas abordagens nas últimas décadas em resposta às transformações do mundo contemporâneo.

Na Unidade 2, estudaremos temas como a dissuasão nuclear, as doutrinas de Segurança Nacional no mundo pós-Guerra Fria e a Segurança Internacional Pós-Guerra Fria, que envolve conflitos e proliferação de armas de destruição em massa.

Finalmente, na Unidade 3, abordaremos os conflitos pós-coloniais (Palestina e Caxemira), os conflitos no pós-Guerra Fria (Coreia e Balcãs), o terrorismo cibernético, o Quadro Jurídico Brasileiro sobre o terrorismo e o Brasil no contexto da Segurança Internacional.

Este conteúdo transcende os limites de uma disciplina desse curso, uma vez que os temas tratados são fundamentais para compreensão do mundo que vivemos, como a globalização, que é um conceito fugaz, cujo início, dimensão e consequências são objetos de intenso debate. Não obstante, muito além das idiossincrasias de um termo “usado e abusado”, é indiscutível que vivemos em mundo em que conceitos de “centro”, “periferia”, “local” e “global” se tornaram tão fluídos como as tecnologias que transformam nossas vidas em uma velocidade até então desconhecida.

Por isso, serão abordados os fundamentos necessários para propiciar o conhecimento introdutório, no curso em geral e na disciplina, em particular. Entretanto, de forma análoga, nosso intuito é servir de ponto de inflexão e reflexão, levando-se em conta que uma das maiores dificuldades do ser humano, em qualquer época e lugar, é perceber, de seu ponto de vista particular, o mundo ao seu redor e suas transformações – portanto, exercitar esse “olhar” estratégico e multidimensional é certamente um dos objetivos.

Por fim, toda época é tempo de transformação; de forma contraditória, a atualidade expõe, no limite, a capacidade quase inesgotável do ser humano diante de desafios, assim como sua fragilidade. Dessa maneira, o início do

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Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

NOTA

século XXI trouxe como desafio a perpetuação dos erros que fizeram do século passado o mais trágico da história ou a ousadia de aprendermos com os nossos erros e construirmos um mundo melhor.

Bons estudos!

Prof. Jose Antonio Teófilo Cairus.

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Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!

LEMBRETE

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Sumário

UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL ................................................................... 1

TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS E SEGURANÇA INTERNACIONAL ......................................................................... 31 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 32 CONCEITOS E PERSPECTIVAS BÁSICAS DOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS ................... 73 COMO AS GUERRAS COMEÇAM E COMO PODEM SER EVITADAS ............................... 84 O ASPECTO MILITAR DOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS NO ALCANCE DOS OBJETIVOS E FINS POLÍTICOS .............................................................. 85 A NECESSIDADE DOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS PARA A ANÁLISE INTERNACIONAL ........................................................................................ 106 OS ESTRATEGISTAS E O DEBATE SOBRE O PODER ............................................................ 127 ESTRATÉGIA NO CONCEITO CLÁSSICO DE CLAUSEWITZ ............................................. 16

7.1 ESTRATÉGIA E PLANEJAMENTO NÃO SÃO A MESMA COISA ..................................... 177.2 A FORÇA DE QUALQUER ESTRATÉGIA RESIDE NA SUA SIMPLICIDADE ................. 177.3 O MORAL FAZ TODA A DIFERENÇA .................................................................................... 18

8 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS ............................................ 189 ESTUDOS ESTRATÉGICOS: ALGUNS CONCEITOS GEOPOLÍTICOS ............................ 19

9.1 GRANDE ESTRATÉGIA .............................................................................................................. 199.2 ESFERA DE INFLUÊNCIA ......................................................................................................... 199.3 IMPERIALISMO INFORMAL .................................................................................................... 209.4 SOBERANIA .................................................................................................................................. 20

9.4.1 Conceitos ............................................................................................................................... 20RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 23AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 24

TÓPICO 2 — ESTUDOS DE SEGURANÇA E ESTUDOS DA PAZ ........................................... 271 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 272 ESTUDOS DA PAZ: UMA RETROSPECTIVA ............................................................................ 273 ESTUDOS PARA PAZ E O ILUMINISMO................................................................................... 284 ESTUDOS PARA PAZ NO SÉCULO XX ....................................................................................... 295 ESTUDOS PARA A PAZ NO SÉCULO XXI ................................................................................. 326 A BIPOLARIDADE E A SEGURANÇA TRADICIONAL ......................................................... 347 TEORIAS E CONCEITOS DA ESTRUTURA DE PODER DO SISTEMA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA ......................................................... 35

7.1 DA BIPOLARIDADE À MULTIPOLARIDADE ....................................................................... 357.2 DA MULTIPOLARIDADE À UNIPOLARIDADE ................................................................... 387.3 DA UNIPOLARIDADE À UNIMULTIPOLARIDADE ........................................................... 407.4 DA UNIMULTIPOLARIDADE PARA NÃO POLARIDADE ................................................ 437.5 EM DIREÇÃO A UMA NOVA BIPOLARIDADE? .................................................................. 44

RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 46AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 48

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TÓPICO 3 — GUERRA, SOCIEDADE E POLÍTICA: PRINCIPAIS ABORDAGENS .................. 51 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 512 A GUERRA COMO UM FENÔMENO SOCIAL E BIOLÓGICO INSTITUCIONALIZADO ................................................................................... 513 A PERSPECTIVA TEÓRICA PÓS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL .................................... 534 GUERRA E VIOLÊNCIA NO PENSAMENTO SOCIAL CLÁSSICO ..................................... 565 A VISÃO DE DURKHEIM SOBRE OS CONFLITOS E O PACIFISMO ................................ 576 A VISÃO MARXISTA E O DISCURSO DE LUTA COLETIVA E REVOLUCIONÁRIA ............................................................................................... 607 A PERSPECTIVA WEBERIANA DA VIOLÊNCIA E DA EXISTÊNCIA DO ESTADO .................................................................................................. 628 AS TRANSFORMAÇÕES DA NATUREZA DA GUERRA, SEGUNDO CLAUSEWITZ ................................................................................... 659 OS ESTUDOS DE JOMINI E A PROPOSIÇÃO DE UM CONJUNTO DE REGRAS PARA ALCANÇAR A VITÓRIA ............................................................................ 6710 A GUERRA COMO CONTINUAÇÃO DAS RELAÇÕES POLÍTICAS: A “NÉVOA DA GUERRA” (NEBEL DES KRIEGES) ................................................................ 68LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 72RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 76AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 79

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 82

UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS ................................................................................. 87

TÓPICO 1 — DISSUASÃO NUCLEAR ........................................................................................... 891 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 892 REVISÃO HISTÓRICA E CONCEITUAL SOBRE TEORIA DA DISSUASÃO ................... 913 EVOLUÇÃO DA DISSUASÃO NUCLEAR ................................................................................. 95RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 103AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 104

TÓPICO 2 — AS DOUTRINAS DE SEGURANÇA NACIONAL NO MUNDO PÓS-GUERRA FRIA ........................................................................ 1071 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 1072 DIMENSÕES DA SEGURANÇA NACIONAL ......................................................................... 1093 SEGURANÇA FÍSICA E SEGURANÇA MILITAR ................................................................. 1104 SEGURANÇA DE INFRAESTRUTURA ..................................................................................... 1115 SEGURANÇA INFORMÁTICA ................................................................................................... 1126 SEGURANÇA POLÍTICA .............................................................................................................. 1147 SEGURANÇA ECONÔMICA ....................................................................................................... 1178 SEGURANÇA ECOLÓGICA ......................................................................................................... 1179 SEGURANÇA DE ENERGIA E RECURSOS NATURAIS ...................................................... 118

9.1 AMAZÔNIA: SEGURANÇA DE ÁGUA, ALIMENTOS E ENERGIA ............................... 1199.2 A ANTÁRTIDA ........................................................................................................................... 120

9.2.1 Aclimatação ........................................................................................................................ 1209.2.2 Impactos globais ................................................................................................................ 122

9.3 Por um futuro mais limpo ......................................................................................................... 12210 QUESTÕES DE SEGURANÇA NACIONAL ........................................................................... 12311 SEGURANÇA NACIONAL VERSUS SEGURANÇA TRANSNACIONAL ...................... 125

11.1 O CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU E A CONTROVÉRSIA EM TORNO DO PODER DE VETO ....................................................................................... 126

11.1.1 Cronologia de uso do veto (1946-2020) ........................................................................ 126

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12 IMPACTO DA SEGURANÇA NACIONAL NAS LIBERDADES CIVIS E DIREITOS HUMANOS .......................................................... 127

12.1 NAS LIBERDADES CIVIS – PARA CONTROLE DO COMPORTAMENTO PÚBLICO ..................................................................................... 12712.2 NO USO DE VIGILÂNCIA, INCLUINDO VIGILÂNCIA EM MASSA ........................... 12912.3 NOS EFEITOS DA GUERRA NA POPULAÇÃO CIVIL .................................................... 13012.4 ESTUPRO COMO ARMA DE GUERRA ............................................................................... 130

RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 133AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 135

TÓPICO 3 — SEGURANÇA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA: CONFLITOS, PROLIFERAÇÃO DE ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA ............................ 1371 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 1372 SEGURANÇA INTERNACIONAL: PASSADO E PRESENTE ............................................... 137 2.1 O CONCEITO DE SEGURANÇA ............................................................................................. 138

2.2 SEGURANÇA DEPOIS DA GUERRA FRIA .......................................................................... 1403 SEIS NÍVEIS DOS ATORES DE SEGURANÇA ....................................................................... 141

3.1 O INDIVÍDUO COMO VÍTIMA ............................................................................................... 1423.2 SOCIEDADE COMO VÍTIMA: AMEAÇAS À IDENTIDADE ............................................. 1433.3 O ESTADO COMO VÍTIMA: AMEAÇAS À SOBERANIA .................................................. 146

4 O CONTROLE DE ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA ................................................ 1474.1 DESAFIOS DA PROLIFERAÇÃO DE ARMAS DE DESTRUIÇÃO DE MASSA ..................... 150

4.1.1 Armas nucleares ................................................................................................................. 1514.1.2 Armas químicas ................................................................................................................. 1524.1.3 Guerra química .................................................................................................................. 1534.1.4 Armas biológicas ............................................................................................................... 154

5 TRATADOS ....................................................................................................................................... 1555.1 TRATADO DE PROIBIÇÃO PARCIAL DE TESTES (1963) .................................................. 1565.2 TRATADO DO ESPAÇO EXTERIOR (1967) ........................................................................... 1565.3 TRATADO DE NÃO PROLIFERAÇÃO NUCLEAR (TNP – 1970) ..................................... 1575.4 TRATADO DE CONTROLE DE ARMAS DO FUNDO DO MAR ....................................... 1575.5 TRATADO DE PROIBIÇÃO COMPLETA DE TESTES NUCLEARES ................................ 1575.6 CONVENÇÃO DE ARMAS BIOLÓGICAS E TÓXICAS ...................................................... 1585.7 CONVENÇÃO DE ARMAS QUÍMICAS ................................................................................ 1585.8 TRATADO DE PROIBIÇÃO DE ARMAS NUCLEARES ...................................................... 158

LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 160RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 165AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 167

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 169

UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL ............................................ 175

TÓPICO 1 — OS CONFLITOS PÓS-COLONIAIS (PALESTINA E CAXEMIRA) E NA GUERRA FRIA E NA PÓS-GUERRA FRIA (COREIA E BALCÃS) ................................................................................................ 1771 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 1772 OS CONFLITOS ENTRE ÍNDIA E PAQUISTÃO .................................................................... 177

2.1 TEORIAS DE RIVALIDADES DURADOURAS E CONFLITOS ASSIMÉTRICOS .................. 1782.1.1 Origens da rivalidade: o legado histórico ...................................................................... 1802.1.2 A estrutura do conflito: assimetria de objetivos ............................................................ 184

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2.1.3 A Guerra Indo-Paquistanesa de 1965 ............................................................................. 1852.1.4 A Guerra Indo-Paquistanesa de 1971 e a independência de Bangladesh ......................... 185

3 GUERRA DA COREIA (1950-1951) .............................................................................................. 1883.1 ALÉM DO PARALELO 38 ......................................................................................................... 1913.2 CONSEQUÊNCIAS DA GUERRA DA COREIA ................................................................... 192

4 CONFLITO E GENOCÍDIO NOS BALCÃS (1992-1995) .......................................................... 1944.1 AS CARACTERÍSTICAS DA GUERRA DA BÓSNIA ........................................................... 1964.2 AS CAUSAS DA PAZ ................................................................................................................. 197

4.2.1 Fase I: do início das hostilidades ..................................................................................... 1994.2.2 Fase II: adaptação gradual ................................................................................................ 2024.2.3 Fase III: o fim da Guerra e a Paz de Dayton................................................................... 203

5 CONFLITO PALESTINO-ISRAELENSE..................................................................................... 2055.1 A GUERRA DOS SEIS DIAS (1967) .......................................................................................... 2125.2 A PRIMEIRA INTIFADA PALESTINA (1987-1993) .............................................................. 2145.3 A SEGUNDA INTIFADA (2000-2005) ..................................................................................... 2155.4 GUERRA DO YOM KIPPUR (1973) ......................................................................................... 217

5.4.1 Guerra do Yom Kippur: consequências .......................................................................... 218RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 220AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 221

TÓPICO 2 — RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA ............................................................................... 2231 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 2232 RELAÇÕES ENTRE ESTADOS UNIDOS E RÚSSIA .............................................................. 2243 RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-CHINA ................................................................................. 231

3.1 QUATRO DÉCADAS DE RELACIONAMENTO E DESAFIOS .......................................... 2313.2 OLHANDO PARA O FUTURO: A POSSIBILIDADE DE UMA NOVA GUERRA FRIA ............................................................................................. 240

4 TERRORISMO GLOBAL ............................................................................................................... 2414.1 A DEFINIÇÃO DE TERRORISMO NOS ESTADOS UNIDOS ............................................. 2434.2 TERRORISTA OU GUERREIRO DA LIBERDADE? .............................................................. 2454.3 A TEMPORARIEDADE DO TERRORISMO ........................................................................... 2474.4 O PROBLEMA DE DEFINIR O TERRORISMO NOS ESTADOS UNIDOS ....................... 2494.5 ALGUNS ATAQUES SÃO MAIS TERRORISTAS DO QUE OUTROS? .............................. 251

RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 253AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 255

TÓPICO 3 — TERRORISMO CIBERNÉTICO: O QUADRO JURÍDICO BRASILEIRO SOBRE O TERRORISMO E O BRASIL NO CONTEXTO DA SEGURANÇA INTERNACIONAL .......................................................................... 2571 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 2572 TERRORISMO CIBERNÉTICO .................................................................................................... 257

2.1 DIFERENTES ABORDAGENS GOVERNAMENTAIS .......................................................... 2582.2 OPERACIONALIZANDO O TERRORISMO CIBERNÉTICO ............................................ 260

3 O QUADRO JURÍDICO BRASILEIRO SOBRE TERRORISMO ........................................... 2623.1 DEFINIÇÃO DE TERRORISMO E ATOS DE TERRORISMO SOB A NOVA LEI ................... 263

3.1.1 Punição por atos terroristas .............................................................................................. 2633.1.2 Promoção e preparação para o terrorismo ..................................................................... 2633.1.3 Recrutamento e treinamento de terroristas ................................................................... 2643.1.4 Financiamento terrorista ................................................................................................... 2643.1.5 Investigação criminal de atos terroristas ........................................................................ 264

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4 O BRASIL NO CONTEXTO DA SEGURANÇA INTERNACIONAL .................................. 2654.1 AMEAÇAS NUCLEARES .......................................................................................................... 2684.2 AMEAÇAS ECONÔMICAS ...................................................................................................... 2694.3 AMEAÇAS AMBIENTAIS ......................................................................................................... 270

LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 272RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 277AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 279

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 281

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UNIDADE 1 —

ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE

INTERNACIONAL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender os conceitos e as perspectivas básicas dos estudos estratégicos;

• entender as diferentes interpretações e teorias na evolução das relações internacionais (RI) nas últimas décadas;

• perceber a relevância dos estudos estratégicos como área do conhecimento;

• analisar alguns conceitos clássicos de estratégia

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS E SEGURANÇA INTERNACIONAL

TÓPICO 2 – ESTUDOS DE SEGURANÇA E ESTUDOS DA PAZ

TÓPICO 3 – GUERRA, SOCIEDADE E POLÍTICA: PRINCIPAIS ABORDAGENS

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Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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TÓPICO 1 — UNIDADE 1

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS E SEGURANÇA INTERNACIONAL

1 INTRODUÇÃO

Como descente de uma família libanesa que imigrou para o Brasil no início do século XX, a geopolítica se tornou parte de minha vida muito cedo. Por certo, imigrantes e as gerações que se seguem, em qualquer época e lugar, trilham caminhos distintos, principalmente no que se refere aos laços com a terra de origem de seus antepassados. Uns se distanciam de forma consciente ou inconsciente, outros mantêm laços fragmentados ou mesmo uma relação seletiva limitada a alguns aspectos da cultura ancestral. No meu caso, assim como outros, o vínculo se manteve forte graças à determinação individual de meu pai.

Os vínculos, incluíam, acompanhar de perto os acontecimentos no Líbano, em particular, e no chamado Oriente Médio, em geral. Na geração de meu pai, os acontecimentos, no Oriente Médio, se relacionavam com uma luta anticolonial e a formação dos estados nacionais naquela região. Na minha, o tabuleiro geopolítico do Oriente Médio passa a ser afetado, principalmente pelo quadro global da Guerra Fria, e, regionalmente, com conflitos na Palestina e seus subprodutos.

Portanto, Política Internacional, História, Geopolítica, Diplomacia, Estudos Estratégicos, entre outros tópicos, se incorporaram naturalmente aos debates em família e, mais tarde, se estenderam para a vida acadêmica.

Nessa altura, a partir dessa breve nota pessoal, já estão delineados alguns marcos essenciais deste livro, que é um trabalho interdisciplinar, por excelência, cujo interesse no assunto cresce consideravelmente nas últimas décadas.

Recuando um pouco no tempo, os eventos trágicos do chamado “curto século XX”, por Eric Hobsbawm, sem dúvida, seriam razão de sobra para despertar interesse em estudos do gênero. Fatos como duas guerras mundiais, genocídios, Holocausto e o bem menos divulgado Porajmos (“holocausto” do povo romani), o desenvolvimento de armas de destruição de massa e os meios de lançá-las para qualquer quadrante do planeta com precisão cirúrgica, entre tantos outros, contribuíram, de maneira decisiva, para aumento do interesse na disciplina.

No entanto, foi a globalização dos conflitos que despertou um interesse ainda maior em matéria de segurança, Estudos Estratégicos e defesa. Assim, em um mundo “encolhido” pela globalização, os conflitos e suas consequências não mais se limitam a suas regiões de origem (RAMSBOTHAM, 2016). Além disso, o

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

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caráter assimétrico dos conflitos contemporâneos, o poder de atores não estatais, a guerra cibernética e a psicológica são apenas algumas possibilidades em conflitos contemporâneos que fazem desta disciplina fundamental para enfrentar tais desafios.

No entanto, no meu entendimento, tanto âmbito pessoal como no acadêmico, a disciplina de Relações Internacionais (RI) não reflete as vozes, as experiências, as reivindicações, de conhecimento e contribuições, da vasta maioria das sociedades e países do mundo. Pior, muitas vezes, marginaliza aqueles que estão fora do eixo de países centrais do Ocidente. Com estudiosos de RI em todo o mundo buscando encontrar seu espaço para suas vozes e reexaminando suas tradições, o desafio agora é traçar um curso em direção a uma disciplina verdadeiramente inclusiva, reconhecendo seus múltiplos e diversos fundamentos.

Portanto, seria necessário buscar a noção de um “RI global” que transcendesse a divisão entre o Ocidente e o “restante”. Uma disciplina engajada com o universalismo pluralista, fundamentado na história mundial, redefinindo teorias e métodos de RI existentes e construindo novos a partir de sociedades, até então ignoradas, como fontes de conhecimento. Dessa maneira, integrando o estudo de regiões e regionalismos nas preocupações centrais de RI, evitando o etnocentrismo e o excepcionalismo, independentemente da fonte e forma, e reconhecendo uma concepção mais ampla de agência com elementos materiais e transcendentes, que incluem resistência, ação normativa e construções locais de ordem global.

Em seguida, seria igualmente necessário implementar uma agenda de pesquisa que contemplasse estudos comparativos de sistemas internacionais com um olhar além da forma westfaliana, conceituando a natureza e as características de uma ordem mundial pós-ocidental, que pode ser denominada como um mundo multiplex.

Consequentemente, expandindo o estudo de regionalismos e ordens regionais, além dos modelos eurocêntricos, construindo sinergia entre abordagens disciplinares e de estudos de área, expandindo nossas investigações na difusão de ideias e normas, e investigando, assim, as múltiplas e diversas maneiras pelas quais as civilizações se encontram, o que inclui interações pacíficas e aprendizado mútuo. O desafio de construir um RI Global não significa uma abordagem única para todos; em vez disso, obriga-nos a reconhecer a diversidade que existe em nosso mundo, buscar um terreno comum e resolver conflitos.

A necessidade de uma introdução aos Estudos Estratégicos é fruto do crescimento exponencial da massa crítica da literatura especializada no assunto nas últimas décadas. Mais de três décadas de escrita se acumulam desde a primeira corrida de armas nucleares que resultam no surgimento da disciplina “Estudos Estratégicos” como um campo distinto na década de 1950. Além disso, se refletirmos sobre o longuíssimo período pré-nuclear, a literatura especializada remonta ao trabalho de Sun Tzu (544-496 a.C.). O estrategista chinês, de menção

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS E SEGURANÇA INTERNACIONAL

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obrigatória em Estudos Estratégicos, certamente não foi o único, mas apenas o mais famoso de tantos em outros povos, lugares e épocas que se dedicaram ao que veio a ser conhecido como Estudos Estratégicos.

“A guerra [...] é o reino da vida e da morte. Dela depende a conservação ou a ruína do império. Urge bem regulá-la” (TZU, 2011, p. 27).

É bem provável que você já tenha lido ou ouvido falar da obra de Sun Tzu, porém, o que provavelmente não sabe é quem ele realmente foi ou onde nasceu. Bom, a verdade é que ninguém sabe ao certo. A vida do autor da tão aclamada obra A Arte da Guerra é um mistério. Existem, inclusive, teorias de que ele sequer tenha existido e que sua obra seja um compilado, feito por muitos estudiosos do assunto. No entanto, segundo uma reportagem do history.com, recentes descobertas de antigos manuscritos na China, atribuídas a Sun Tzu, podem confirmar a sua existência e nos dar mais pistas sobre ele. Seu nome era, na verdade, Sun – o “Tzu” significa “mestre” –, ele foi um especialista militar no final da turbulenta Dinastia Chou (Zhou), nascido entre 722-221 a.C. no Reino de Chi (Qi ou Ch’i). Independentemente da exatidão de seu nascimento, uma coisa é fato: o Mestre Sun passou sua vida inteira cercado pela guerra total, quando reinos rivais usavam a força bruta para conquistar mais territórios ou impor sua vontade. Tratava-se de guerras materiais e físicas, cujas elaboradas táticas de batalha tinham como objetivo primário dizimar o inimigo. Sun Tzu deu luz a uma abordagem diferente, que sugere influência da filosofia Taoísta e visava a derrotar seu oponente por meios psicológicos, de preferência antes mesmo de derramar sangue ou sequer desembainhar a sua espada.

FONTE: <https://tinyurl.com/y6fo44el>. Acesso em: 25 nov. 2020.

NOTA

As mudanças no campo de estudos precisam também ser compreendidas em termos de impacto nas teorias e políticas estratégicas prevalentes. Portanto, é preciso entender que a maioria dos estrategistas produziu trabalhos especializados, respondendo à pressão das mudanças e às demandas ditadas pela política. Consequentemente, isso os levou a estreitar suas análises a objetos específicos. Se, por um lado, isso favoreceu à especialização, por outro, a área de Estudos Estratégicos produziu poucos generalistas.

A literatura especializada reflete a orientação política de curto prazo, que está intimamente ligada à agenda de decisões do governo em questões militares e de defesa. Assim, a relevância dessa literatura expira rapidamente. A despeito das continuidades, estas, muitas vezes, estão sujeitas a mudanças nos contextos tecnológico e político.

A tarefa de definir Estudos Estratégicos não é simples. O campo abrange um conjunto diversificado de tópicos e está incorporado no campo mais amplo das RI. Embora os Estudos Estratégicos tenham um foco distinto, não há limites rígidos que os separe das RI. Os dois campos convergem em muitos pontos. Os

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Estudos Estratégicos são, portanto, um componente vital das RI. Certamente, possui elementos que o tornam distinto, mas estão conectados, de forma indelével, por uma miríade de questões teórico-metodológicas que, se fossem separadas, comprometeriam seriamente as duas disciplinas.

A identidade peculiar dos Estudos Estratégicos decorre de sua ênfase na estratégia militar, que pode ser amplamente definida como “a arte ou ciência de moldar meios e promover fins em qualquer campo de conflito” (BULL, 1961, p. 593). Para Estudos Estratégicos, os meios são militares, o campo de conflito é o sistema internacional e os fins são os objetivos políticos dos atores no contexto internacional. Como os estados detêm a maior parte do poder militar e estratégico, os estudos abordam, principalmente, o uso da força dentro e entre os estados. Algumas entidades não estatais (ou subestatais), como movimentos separatistas, de libertação nacional, grupos revolucionários, entre outros, eventualmente, tornam-se relevantes no cenário internacional, mas os principais atores ainda são os estados.

A primazia dos estados é reforçada pelo fato de que a maioria das entidades subestatais tendem a conquistar uma entidade já existente (Congresso Nacional Africano, na África do Sul) ou criar um estado (Organização para Libertação da Palestina, Movimentos Curdos). A estratégia, nesse sentido mais específico, foi definida pelo historiador militar britânico Sir Basil Liddell Hart (1895-1970) como “a arte de distribuir e aplicar meios militares para cumprir os fins da política” (LIDDELL HART, 1991, p. 335).

Já o especialista australiano Hedley Bull afirma que a estratégia é: “explorar a força militar de modo a atingir determinados objetos de política” (BULL, 1961, p. 593). O especialista britânico Colin Gray (1943-2020) define estratégia “o relacionamento entre o poder militar e o propósito político” (GRAY, 1992, p. 1). Por fim, o militar e estrategista francês, André Beaufre, sugere que estratégia é: “a arte da dialética de duas vontades opostas usando a força para resolver sua disputa” (BEAUFRE, 1975, p. 22).

No campo dos Estudos Estratégicos, como um todo, Louis Halle (1910-1998), professor emérito norte-americano, foi um dos poucos a tentar uma definição abrangente: “é o ramo dos estudos políticos preocupado com as implicações políticas da capacidade de fazer guerra disponível para as nações” (HALLE, 1962, p. 4). A partir das definições supracitadas, fica claro que a essência da estratégia trata da “força ou ameaça de força” (GRAY, 1992, p. 3). Os Estudos Estratégicos são geralmente entendidos, entre seus estudiosos, como o uso da força nas relações políticas dentro e entre estados, uma vez que “uso” significa ameaça, bem como seu emprego real em campo de batalha.

Os Estudos Estratégicos também tratam dos instrumentos de força e a maneira pelas quais o emprego deles afeta as relações entre os estados. Na verdade, como veremos, as armas nucleares elevaram a importância das ameaças, em potencial, para uso da força. Por outro lado, aumentou também o debate sobre

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as restrições ao poder militar em combate. Por isso, o estudo de estratégia, desde 1945, passa a enfatizar os próprios instrumentos de força, o uso de ameaças e como prevenir o uso de armas nucleares. Os Estudos Estratégicos, em termos de combate dirigido a militares decisivos, as vitórias perderam sua centralidade por causa do risco avassalador de cataclismo nuclear, embora ainda seja altamente relevante para o extenso conjunto de relações militares que não estão sujeitas à paralisia nuclear.

2 CONCEITOS E PERSPECTIVAS BÁSICAS DOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS

A tarefa de definir Estudos Estratégicos não é simples, pois o campo contém um conjunto diversificado de tópicos e está incorporado no campo mais amplo das RIs. Embora Estudos Estratégicos tenha um foco distinto próprio, não há limites rígidos que os separam das RIs. Os dois campos se fundem uns aos outros em muitos pontos.

Somente nas últimas décadas, o estudo da estratégia se tornou uma disciplina academicamente respeitável. Depois da Segunda Guerra Mundial, para muitos, a única razão para estudar a guerra era criar uma ordem internacional em que as disputas fossem resolvidas sem recurso às armas. No entanto, até meados do século XX, o papel da força militar como instrumento político foi estudado apenas em termos gerais.

Os historiadores da diplomacia estavam interessados na ameaça da força e de sua aplicação em casos particulares, mas raramente abordavam questões de tática e logística. Somente aqueles próximos ao aparato militar perceberam a importância do estudo da estratégia, tendo produzido histórias de campanha e tentado buscar princípios de estratégia para formar um corpo de oficiais.

Na melhor das hipóteses, como no caso de Carl von Clausewitz (1780-1831), os especialistas entendiam a relação entre a guerra e o caráter das sociedades que as combatiam. Como Bernard Brodie (1910-1978) observou: “Era necessário haver um mínimo de teoria e, de forma análoga a muitos equipamentos militares, esta teoria tinha que ser leve e facilmente embalada para ser transportado para o campo de batalha” (BRODIE, 1978, p. 66).

Dessa maneira, Brodie (1978) percebe a tendência de converter em máximas ou princípios os fundamentos básicos da guerra. A teoria estratégica se tornava pragmática e prática, mas não refletia a estrutura em que os estrategistas estavam operando. Portanto, antes do início da era nuclear, não havia uma estrutura estabelecida para o estudo acadêmico da estratégia militar. Os historiadores especializados em diplomacia estavam cientes das estratégias individuais, os estudantes de RIs entendiam por que as estratégias eram necessárias, os militares ocuparam-se com o desenho de estratégias, os teóricos políticos e advogados procuraram reordenar o mundo de forma que a estratégia fosse irrelevante.

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A experiência das décadas de 1930 e 1940, porém, tirou muito do idealismo da vida política e intelectual. Uma guerra mundial seguida, tão rapidamente, por uma guerra fria pode ter encorajado o estudo da estratégia. O advento das armas nucleares colocou as questões de estratégia em primeiro plano na vida política e, portanto, não demoraria muito para que a comunidade acadêmica seguisse essa tendência. Michael Howard (1922-2019) e Bernard Brodie faziam parte de uma comunidade emergente de pensadores estratégicos, que buscava imprimir um caráter interdisciplinar a esse campo de estudos. Em conjunto com outros especialistas em História e Ciência Política, inicialmente se concentraram na estratégia nuclear, duvidando que esta pudesse ser transformada em um recurso militar decisivo.

3 COMO AS GUERRAS COMEÇAM E COMO PODEM SER EVITADAS

Entretanto, de modo geral, pensava-se que as armas nucleares tivessem substituído todos os outros tipos de armas, tendo sido realizadas alianças políticas baseadas nesse pressuposto. Assim, os poucos estrategistas clássicos se encontravam intelectualmente despreparados para esse novo quadro. Como resultado, surgiu uma nova geração de estrategistas, muitas vezes de escolas de economia e engenharia, que procuraram demonstrar que o novo quadro poderia ser entendido pela exploração de novas metodologias.

Essa abordagem derivou do estudo das diferenças do exercício do poder, antes e depois, das armas nucleares, o que, inevitavelmente, levou ao abandono das fontes tradicionais de poder militar.

Além disso, a atração intelectual pelas novas metodologias se relacionava com sua natureza abstrata, pois os cenários de conflito futuro explorados, como um conflito nuclear, e o contexto político e social seriam totalmente transformados. No entanto, muitos dos novos estrategistas argumentaram que, não obstante o papel inevitável das forças sociais e as paixões, essa influência deveria ser minimizada em favor da tomada de decisões racionais e frias na eventualidade da ameaça de um confronto nuclear. Contudo, a emoção coletiva poderia ser usada em um cálculo político para persuadir o oponente a chegar em um acordo – foi quase uma tentativa de transformar o exercício do poder político em uma revolução de gestão e, assim, transformar os Estados em agentes de decisão racionais.

4 O ASPECTO MILITAR DOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS NO ALCANCE DOS OBJETIVOS E FINS POLÍTICOS

A nova abordagem analítica explora aspectos da estratégia, nem sempre apreciados pela abordagem clássica, mas faltava uma visão alargada e historicamente sintonizada. Por outro lado, faltava aos estrategistas clássicos uma estrutura teórica apta a integrar as novas análises. Portanto, não é surpreendente

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que tenha havido um resgate de Clausewitz (1976). O historiador militar Michael Howard (1922-2019), inclusive, sugeriu a necessidade de uma estrutura conceitual para fazer avançar o estudo da estratégia.

Uma abordagem clássica começa com o Estado como a unidade central do sistema internacional, refletindo soberania, capacidade de ação independente e determinados sistemas de valores. Os Estados precisam de estratégia porque são vulneráveis: podem ser criados ou destruídos por uma força armada. Howard insistiu que uma abordagem do sistema internacional deveria se preocupar com esse lado cruel e enfatizou as suas consequências adversas como fator potencial para provocar conflitos, em vez de evitá-los. Dessa maneira, a abordagem estratégica deve ser usada apenas em conjunto com outras abordagens positivas, para a condução das relações entre os Estados.

Todavia, enquanto a força armada permanecer como alternativa, ela não pode ser ignorada. O fato de que a estratégia militar, intrinsicamente, pressupor que o uso da força a distingue de outras formas de planejamento que são, frequentemente, descritas como estratégicas, mas que não envolvem “violência funcional e proposital”. Em uma definição concisa, Howard (1995) descreve a estratégia militar como “coerção organizada”. O ideal, para o estrategista, é atingir a condição de “pura coerção”, impondo sua vontade de forma irresistível, mas essa possibilidade é cada vez mais rara no sistema internacional contemporâneo.

Portanto, um estado que recorre à força, como instrumento de política, deve superar uma oposição armada. Assim, de forma análoga a André Beaufre (1902-1975), Michael Howard (1995) vê a estratégia como uma “dialética de duas vontades opostas”. A ênfase na “vontade”, em uma análise do significado da estratégia, é importante porque remete às definições clássicas de poder. Howard define isso como a capacidade das entidades políticas “de organizar os elementos relevantes do mundo externo para satisfazer suas necessidades” (HOWARD, 1995, p. 55).

O poder estratégico, de acordo com os teóricos da dissuasão, se torna uma “capacidade coercitiva” elaborada como “a capacidade de usar a violência para a proteção, execução ou extensão da autoridade” (SCHELLING, 1966, p. 24). Essa compreensão de poder é central para a abordagem estratégica. A elaboração de um conceito adequado de poder é um esforço conhecido entre os especialistas em política e a falta de uma definição consensual sugere que é um conceito contestado, que desafia uma definição monolítica.

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5 A NECESSIDADE DOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS PARA A ANÁLISE INTERNACIONAL

No que refere a “poder”, existem três definições clássicas:

• para Thomas Hobbes (1588-1679), o poder do homem são seus meios presentes de obter um futuro aparentemente melhor (HOBBES, 1994);

• para Max Weber (1864-1920), “é a probabilidade de que um ator, em um relacionamento social, ocupe uma posição de impor sua vontade a despeito da resistência e independente de justificativa” (WEBER, 1947);

• para Bertrand Russell (1872-1970), pode ser definido como a “capacidade de se produzir os efeitos pretendidos” (RUSSELL, 1945).

Uma das questões-chave é se o poder só pode ser realizado por meio de conflito. Talcott Parsons (1902-1979), por exemplo, definia o poder como uma capacidade de buscar os objetivos de um grupo e enfatizava até que ponto esses objetivos podiam ser consensuais e postos em prática por uma autoridade reconhecida (PARSONS, 1991). Por outro lado, vozes dissonantes afirmam que isso negligência as dimensões, essencialmente coercitivas e conflitantes, do poder.

O debate sobre a aplicabilidade do poder fez que Robert Dahl (1915-2014), um teórico pluralista, buscasse medir o poder analisando os processos de tomada de decisão, o que o levou a concluir que nenhum grupo tinha o monopólio efetivo do poder e, tampouco, a capacidade de impor sua vontade. Tal abordagem provocou críticas de teóricos mais radicais, como Peter Bachrach (1918-) e Morton Baratz (1924-1998), que apontaram para a importância das não decisões bem-sucedidas, ou seja, a capacidade de se alcançar interesses consagrados pelo consenso, não falado e não contestado, como um indicador crítico de poder.

Para os teóricos “radicais”, o poder pode ser exercido pela criação de instituições sociais e políticas, que decidam apenas questões supérfluas. Se as principais questões relativas à distribuição de recursos e valores, em uma sociedade, forem mantidas fora de consideração política, então esse seria um exercício eficaz de poder. Portanto, o que é medido pode não ser relevante. Outros argumentaram que o poder pode ser medido observando-se a distribuição de recursos e valores, mas tal hipótese não contempla a possibilidade de que a distribuição pode não ter sido pretendida e, portanto, não pode ser verdadeiramente considerada um exercício de poder. Analisar a hierarquia política em busca de “elites” também tem suas limitações, pois nem sempre pode impor decisões aos insatisfeitos com o processo político. Portanto, é realmente um exercício de poder se os efeitos não foram intencionais? Devemos, no limite, mostrar que seu exercício fez diferença?

Os estrategistas com as teorias sobre o poder mais sensíveis foram teóricos marxista-leninistas, porque sua teorização era intimamente ligada à ação política (práxis). A teoria marxista toma como ponto de partida a existência de um conflito de interesses entre as classes dominante e trabalhadora, e busca, como estratégia, criar uma consciência da desigualdade e a opressão de classe. As dificuldades

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS E SEGURANÇA INTERNACIONAL

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para implementar essa estratégia levaram os marxistas a desenvolverem uma variedade de meios pelos quais as pessoas podiam ser oprimidas. Conceitos como hegemonia, tão úteis na compreensão das relações internacionais, foram aplicados sistematicamente por ativistas-teóricos, como Antonio Gramsci (1891-1937), que estavam ansiosos para descobrir como os grupos governantes podiam garantir a passividade e a obediência entre as massas.

O problema de tomar o controle do Estado, em condições em que todas as probabilidades estavam em favor do grupo dominante, estimulou um debate estratégico. Os marxistas estavam menos interessados na tomada de decisões em uma democracia burguesa, uma vez que eles viam como parte da pretensão de que os grupos dominantes ocultavam as realidades do poder das massas. Ao contrário, eles estavam interessados nos processos pelos quais a consciência das massas foi obscurecida pela capacidade da classe dominante de influenciar a maneira como viam a realidade política.

No outro extremo, interessavam-se em momentos históricos revolucionários, nos quais as massas tentam tomar o poder. Outros teóricos políticos consideraram a relação entre poder e autoridade, por um lado, e força, por outro. A ligação entre poder e autoridade é uma questão importante em muitas teorias políticas, dependendo se os dois são considerados excludentes ou extensões um do outro. É quase consenso que o exercício pacífico da autoridade é muito mais satisfatório do que o exercício violento da força, mas como isso pode ser alcançado? O segredo dos poderosos é governar encorajando os governados a internalizarem os próprios valores do governante e interesses.

“Hegemonia” define um tipo de dominação geralmente de natureza consensual de pessoas (individual) e grupos (coletivo) e não, necessariamente, por meio de coerção. O termo é, às vezes, usado para indicar uma dominação absoluta, mas tal aplicação é objeto de debate e análise. O conceito de “hegemonia” originou-se na Grécia Antiga, mas, no século XIX, na Europa, os movimentos socialistas o ressignificaram, principalmente na obra de Antonio Gramsci, filósofo marxista e líder político italiano. Embora conceitos semelhantes existam em outras culturas, por exemplo, no pensamento chinês, sua genealogia, predominantemente ocidental, não impediu que o conceito de hegemonia fosse amplamente utilizado desde em campos das relações internacionais até de teoria pós-colonial e de estudos de gênero.

FONTE: <https://www.sciencedirect.com/topics/social-sciences/hegemony>. Acesso em: 19 jun. 2021.

NOTA

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

12

6 OS ESTRATEGISTAS E O DEBATE SOBRE O PODER

Os estrategistas podem contribuir para esse debate? Os Estudos Estratégicos em si não são ricos em teoria, pois apelam ao prático e ao pragmático. Boa parte do fascínio da estratégia é que ela se preocupa com a política em sua forma mais pura e crua; a busca de interesses, mesmo quando eles entram em conflito, os problemas de antecipar as decisões de rivais e a tentativa de manipular o cenário, em vez de simplesmente se tornar vítima passiva de forças além do controle.

A teoria política na academia foi dominada por questões de ordem e justiça – até mesmo no estudo do poder frequentemente se debate se exercê-lo é moral, e não como o conceito pode ser refinado para ajudar a compreensão da dinâmica da vida política. De uma perspectiva moral, a estratégia parece subversiva: ela ilumina os meios pelos quais o impulso para a ordem é frustrado e o injusto pode triunfar. Enquanto isso, análises políticas mais contemporâneas têm buscado identificar padrões e regularidades nos sistemas políticos, que tendem a negar a importância do elemento ativo na vida política.

O debate dentro da ciência política sobre o conceito de poder, durante as décadas de 1960 e 1970, pouco afetou o estudo da política internacional, menos ainda a teoria estratégica. A descoberta de Graham Allison (1940-) das limitações para a tomada de decisão racional, em Essence of Decision (1971), refletiu muitos dos argumentos usados por escritores pluralistas em sua batalha com os teóricos da elite.

No entanto, havia uma tradição intelectual relevante que influenciou aqueles que chegavam a essas questões a partir do estudo mais amplo da política internacional; os que trabalhavam dentro da tradição realista tinham “poder” como o conceito central e, em geral, o definiam ao longo de linhas estabelecidas, enfatizando a causalidade e a produção dos efeitos pretendidos, identificando-o em termos de poder sobre os recursos.

Considerando o conceito de poder na obra de Hans Morgenthau, uma tensão entre sua compreensão do poder como um meio para atingir fins e o po-der como um fim em si mesmo. A menos que um exercício de poder seja sempre diferente, de acordo com os fins buscados, a aquisição do poder como uma capa-cidade geral, que pode servir a uma variedade de fins, é uma atividade natural. O poder está diretamente relacionado aos processos políticos. Tudo o que pode ser alcançado por meios naturais não requer energia, com exceção das interações não controversas, como os tratados de extradição. O conceito de política de Mor-genthau (2005) é, portanto, limitado, principalmente para abordagens contempo-râneas. É ainda mais circunscrito aos assuntos domésticos, pois muitas ativida-des são moldadas por fatores não políticos. Nos assuntos internacionais, sem o cimento social, muito mais é deixado para a política, embora a compreensão de Morgenthau (2005) da política seja limitada, sua definição de poder é intrigante:

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS E SEGURANÇA INTERNACIONAL

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Quando falamos de poder, queremos dizer o controle do homem sobre as mentes e ações de outros homens. Assim, a afirmação de que A tem ou deseja poder político sobre B significa sempre que A é capaz, ou deseja ser capaz de controlar certas ações de B por meio da influência psicológica. Assim, o conceito de poder enfatiza “o elemento psicológico da relação política”. Como tal, funciona por meio de uma expectativa de benefícios ou medo da desvantagem, ou “respeito ou amor por um homem ou um cargo (MORGENTHAU, 2005, p. 265).

Assim, para Morgenthau (2005), o processo envolve ordens, ameaças e persuasão, mas também um reconhecimento de autoridade ou prestígio, um aspecto da política internacional que o autor considerava frequentemente negligenciado, mas distinto do próprio exercício de violência física. A ameaça de violência é um elemento intrínseco da política internacional, mas, quando a violência se torna uma realidade, abdica do poder político em favor do poder militar ou pseudomilitar. Ainda assim, Morgenthau (2005) não separa a aplicação da força do poder, porque a guerra tem um objetivo político. A guerra é um meio apolítico para um fim político: o acúmulo de poder. O objetivo político da guerra em si não é per se a conquista do território e a aniquilação dos exércitos inimigos, mas uma mudança na mente do inimigo que o faz ceder à vontade do vencedor – observa-se aqui também a identificação de perceber a própria vontade como expressão de poder.

Existem problemas óbvios com a distinção entre força física e poder psicológico. O único momento em que realmente é possível impor sua vontade é quando se atinge o domínio físico e a consequência da presunção de que o poder é exercido por meio da mente do alvo – está na mente de quem vê.

Esse é um ponto de partida útil para qualquer análise de poder, mas seu

impacto imediato é minar duas das suposições comuns, associadas a Morgenthau e com as quais muitas análises começam: o poder é um ativo a ser acumulado e é alcançado na medida em que a vontade de alguém pode ser realizada, uma vez que é reconhecido que o poder só pode ser exercido por meio de seu impacto na mente do adversário.

Abu Ali Hasan (1018-1092) foi o vizir persa nos reinados dos sultões seljúcidas Alp Arslan (1063-1072) e Malik-Shah I (1072-1092). Pela sua habilidade política e administrativa, recebeu o título honorífico de “Nizam al-Mulk” (a “Ordem do Reino”), alcunha que ficaria para a posterioridade. Redigiu, entre outras, sua obra mais importante intitulada Siyaset Nameh (Tratado de Governo), que, por muitos séculos, foi uma obra inovadora. Para o mundo islâmico, essa obra foi o que seria para o Ocidente, quatro séculos mais tarde, O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, porém, com uma diferença definitiva: O Príncipe, de Maquiavel, foi a obra de um desiludido e frustrado do exercício do poder político, enquanto o tratado de Nizam al-Mulk foi fruto da experiência, insubstituível, de um verdadeiro construtor de impérios. Outrossim, a obra de Nizam al-Mulk não se resume, exclusivamente, às exortações moralistas reservadas aos príncipes, pois aborda a organização da administração do império,

IMPORTANTE

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

14

a formação e a manutenção das forças armadas, a promoção da ideologia do Estado e a neutralização dos inimigos do império, inclusive, com o uso de serviços sofisticados de inteligência, entre outras matérias fundamentais para a governança de um Estado.

FONTE: Adaptado de KOURIMA, A. Théorie de l’Etat et du gouvernement en islam médiéval: La siyaset nameh, ou traité de gouvernement de Vizir Nizam al-Mulk. Paris: Sindbad; 2015.

FIGURA 1 – “CONHECIMENTO É PODER”

FONTE: <https://tinyurl.com/y4g4g862>. Acesso em: 11 nov. 2020.

OS ESTUDOS ESTRATÉGICOS COMO ÁREA DE CONHECIMENTO

Os Estudos Estratégicos referem-se aos fenômenos relativos à Defesa Nacional e à Segurança Internacional. Requerem conhecimentos que se inter-relacionam porquanto não podem, a não ser analiticamente falando, ser pensados sem que uma face da moeda não se refira a outra. Conceituar a Defesa Nacional de um dado país em um espaço vazio, meramente abstrato, é ineficaz. Ela só ganha sentido e conteúdo real quando se intercala em espaço objetivamente dado e externo a ela: a ambiência da segurança internacional. Considerar a segurança internacional – seja qual for a definição que se queira lançar mão – em si e por si mesma, sem localizá-la em uma moldura ainda mais ampla, retira do conceito sua concretude. A Segurança Internacional deve ser compreendida como formando um subsistema que supõe um outro ainda maior, o sistema de relações internacionais. Tratar desses conceitos requer jargões científicos próprios, teorias e metodologias apropriadas aos seus objetivos, temáticas específicas, formações acadêmicas singulares capazes de corresponder aos intentos pretendidos.

FONTE: FIGUEIREDO, E. L. Estudos Estratégicos como Área de Conhecimento Científico. Rev. Bra. Est. Def., v. 2, n. 2, 2015, p. 107-128. Disponível em: https://bit.ly/36Vs1Sf. Acesso em: 2 jun. 2021.

IMPORTANTE

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS E SEGURANÇA INTERNACIONAL

15

Os Quadros 1 e 2 permitem vislumbrar a riqueza temática do complexo “De-fesa Nacional/Segurança Internacional”, em rápido recorte, meramente indicativo.

QUADRO 1 – TEMAS RELACIONADOS À DEFESA NACIONAL

Ameaças (novas e tradicionais) Estratégias Militares Recrutamento nas Forças

Armadas

Antropologia Militar Estratégia Nacional de Defesa

Relação militares versus militares

Aprestamento Militar Estudos Aeroespaciais Revolução Civil

Aquisição de material militar Estudos Marítimos Revolução nos assuntos

Militares

Atividades subsidiárias das Forças Armadas

Forças Armadas e Sociedade Políticas de Defesa

Cerceamento tecnológico militar Indústria da Defesa Teoria e análise dos

assuntos de Defesa

Ciências Militares Infraestrutura de Defesa Teoria Política dos Estudos Estratégicos (viés “Defesa”)

Ciência, Tecnologia e Inovação para fins

militares

Instituições e Organizações Militares

Segurança Nacional (relacionada à Segurança

Internacional)

Cultura de Defesa Cultura Militar Inteligência

Segurança Pública (relacionada à Segurança

Nacional)

Cultura Estratégica História Militar Serviço Social Militar

Defesa Nacional Mobilização NacionalSistemas de comando,

controle, comunicações, computação e inteligência

Defesa CivilPesquisa e Desenvolvimento voltados para indústria de

DefesaSociologia Militar

Diplomacia Militar Planejamento Estratégico

Dissuasão Pensamento Estratégico

Doutrina Militar

Polemologia (estudo da guerra como fenômeno social

autônomo; análise de suas formas, causas, efeitos)

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

16

Economia de Defesa Psicologia Militar

Educação e Ensino militares

FONTE: Adaptado de Figueiredo (2015, p. 112).

QUADRO 2 – TEMAS RELACIONADOS À SEGURANÇA INTERNACIONAL

Ameaças e novas ameaças

Estudos Estratégicos e Relações Internacionais

Organizações internacionais e regionais

de segurança e defesa

Cenários regionais de Segurança e Defesa Geoestratégia Operações de paz

Segurança Internacional

Cerceamento tecnológico em Defesa e Segurança Guerra Pirataria

Contrabando de armas Missões de Paz Políticas de Segurança Internacional

Cultura Estratégica Mobilização Teoria e análise dos assuntos de Segurança

Direito Humanitário NarcotráficoTeoria Política do

Estudos Estratégicos (viés “Segurança”)

Direito Internacional dos conflitos armados Novas conflitualidades Terrorismo e

Contraterrorismo

Economia Política dos Estudos Estratégicos

Mercenários e empresas militares privadas

FONTE: Adaptado de Figueiredo (2015, p. 113).

7 ESTRATÉGIA NO CONCEITO CLÁSSICO DE CLAUSEWITZ

Para o famoso estrategista militar do século XIX, Carl von Clausewitz (1976), a guerra não devia ser comparada à arte, como em Sun Tzu, mas ao comércio, pois também é um conflito de interesses e atividades humanas.

Ainda assim, durante muito tempo, a palavra “estratégia” raramente aparecia no vernáculo do mundo dos negócios. O conceito, derivado do grego strategia – um composto de stratos, que significa “exército”, e agein, que significa “liderar” –, nasceu nas forças armadas.

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS E SEGURANÇA INTERNACIONAL

17

Clausewitz foi um general prussiano que lutou contra Napoleão e escreveu sobre a ciência da guerra. Publicado em 1832, um ano após sua morte, Da Guerra (Vom Kriege) é considerado, até hoje, por especialistas militares, como o estudo definitivo da guerra. Suas ideias permanecem amplamente ensinadas nas escolas militares e são, mais do que nunca, essenciais para o estrategista moderno.

Com relação à questão do limite, por que precisamos de uma estratégia em primeiro lugar? Clausewitz (1976) afirma que a estratégia é a resposta necessária à realidade inevitável de recursos limitados. Nenhuma entidade, independentemente do tamanho, possui recursos ilimitados, portanto, é fazer escolhas sobre como iremos concentrar nossos recursos limitados para obter vantagem competitiva. Todo o resto segue daí.

7.1 ESTRATÉGIA E PLANEJAMENTO NÃO SÃO A MESMA COISA

A “tática” (do grego taktike ou a “arte do arranjo”) é o uso das forças armadas em uma batalha específica, enquanto a estratégia é a doutrina do uso de batalhas individuais para fins de guerra. Estratégia, portanto, é escolher as batalhas certas e as táticas consistem em executar essas batalhas com sucesso.

A estratégia se preocupa em definir um propósito geral e prioridades. É holística. A estratégia esclarece como as batalhas individuais se encaixam e por que estão sendo travadas. O papel principal da estratégia é definir uma proposta vencedora, uma chamada de convocação a partir da qual todas as decisões e atividades serão aplicadas. Para ser claro, o planejamento também é importante, mas não é um substituto para a estratégia. Não se cria uma estratégia com um plano, mas este é executado com um plano. Por exemplo, seu orçamento deve ser a expressão financeira de sua estratégia, não o contrário. A sequência certa é essencial: estratégia primeiro, planejamento depois.

7.2 A FORÇA DE QUALQUER ESTRATÉGIA RESIDE NA SUA SIMPLICIDADE

A simplicidade no planejamento torna sua execução mais efetiva. A forte determinação em realizar uma ideia simples é o caminho mais certo para o sucesso. A simplicidade vencedora que buscamos, a simplicidade do gênio, é resultado de um intenso engajamento mental. Uma estratégia deve ser destilada na linguagem mais simples possível, para que todos em uma organização possam segui-la. Enquanto a complexidade paralisa, a simplicidade fortalece. Contudo, simplicidade não é um atalho; é um trabalho árduo, que exige o tipo de envolvimento mental intenso que Clausewitz (1976) enfatiza.

Nenhum documento de estratégia deve ter mais de dez páginas. No entanto, o documento sozinho não é o produto de uma estratégia. Os líderes devem ser capazes de esclarecer a estratégia em uma mensagem convincente,

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

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usando exemplos, imagens e metáforas que forneçam um incentivo à ação. Como Peter Drucker afirmou: “A primeira tarefa de um líder é ser a trombeta que soa o som claro” (1990 apud WILLS, 2013, p. 14).

7.3 O MORAL FAZ TODA A DIFERENÇA

A guerra é uma prova de forças morais e físicas, realizada por meio do segundo tipo de força. Em última análise, é para a força moral, e não para a física, que toda ação militar é dirigida; logo, fatores morais são os determinantes finais na guerra.

A guerra, é claro, envolve uma competição de força física. É um esporte sangrento. No entanto, Clausewitz (1976) enfatizou a importância definitiva dos “fatores morais”, ou o que consideramos moral. Ele afirma, sem rodeios, que, ao se destruir o espírito de seu inimigo – sua vontade de lutar –, se ganha a guerra. Ele observa que os exércitos que prevalecem com mais frequência são aqueles que contam com o apoio total de seus cidadãos. Na falta desse aspecto moral e legitimador, a motivação é minada.

8 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS

Nas últimas décadas, os especialistas em Estudos Estratégicos incorporaram, além do estudo da guerra e de campanhas militares, a estratégia e a aplicação de poder militar para alcançar objetivos políticos. Mais especificamente, a teoria e a prática do uso, a ameaça de uso da força organizada para fins políticos.

O militar e estrategista britânico Sir Basil Liddell Hart cunhou o conceito de “grande estratégia”, que envolve a coordenação e a direção de “todos os recursos de uma nação, um grupo de nações, para a realização dos objetivos políticos” (LIDDELL HART, 1991, p. 321).

• Os Estudos Estratégicos podem ser utilizados para lidar com questões relativas à política nacional nas áreas de política, econômica, psicológica e fatores militares se sobrepõem. A teoria estratégica é uma teoria da ação (BRODIE, 1974), só pode ser estudada em uma perspectiva interdisciplinar (que envolve política, economia, psicologia, Sociologia, geografia, tecnologia, estrutura de força e táticas).

• Durante a Guerra Fria, os Estudos Estratégicos se tornaram uma das subdisciplinas mais importantes dentro das Relações Internacionais.

• Bernard Brodie (1974), preocupado com a metodologia, argumentou que Estudos Estratégicos precisavam ser estudados cientificamente.

• A Primeira Era dos Estudos Estratégicos, a “era de ouro”, ocorreu em 1950/1960-1980 (dissuasão nuclear, guerra limitada e controle de armas).

• Década de 1970: período de descanso para Estudos Estratégicos (Détente) – período de distensão durante o qual foram assinados os acordos de limitação das armas estratégicas (SALT1 e SALT 2).

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS E SEGURANÇA INTERNACIONAL

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• Segunda Era de Estudos Estratégicos – abrange a Iniciativa Estratégica de Defesa (Bush Sr.), a Organização de Defesa de Mísseis Balísticos (Bill Clinton) e a Defesa Nacional de Mísseis (George Bush Jr.).

• De meados da década de 1990 (colapso da URSS) até a atualidade (os Estudos de Segurança se tornaram uma área de investigação de extrema relevância) – Terceira Era.

9 ESTUDOS ESTRATÉGICOS: ALGUNS CONCEITOS GEOPOLÍTICOS

A seguir, veremos os conceitos geopolíticos, relacionados com os estudos estratégicos, de grande estratégia, esferas de influência, imperialismo formal e soberania.

9.1 GRANDE ESTRATÉGIA

Na concepção clássica da primeira metade do século XX, “grande estratégia” é a conjunção e coordenação dos recursos nacionais para os objetivos políticos da guerra. Sir Basil Henry Liddell Hart define o papel da “grande estratégia” como o instrumento maior de política de um Estado. A “grande estratégia”, assim, cumpre um papel superior à estratégia, que seria calcular e desenvolver os recursos humanos e econômicos de uma sociedade para sustentar as Forças Armadas.

9.2 ESFERA DE INFLUÊNCIA

“Esferas de influência” (EDI) podem ser definidas como a dinâmica das relações internacionais em que uma nação (o influenciador) detém o poder de influenciar outras. Assim, para que exista, o nível de o controle que o influenciador tem sobre as nações sujeitas a sua influência deve ser intermediário, ou seja, inferior ao de uma nação ocupante ou colonizadora, mas superior ao de um líder de uma coalizão.

É importante ressaltar que os meios de controle empregados pela nação influenciadora devem ser nos campos políticos e econômicos, em vez do campo coercitivo. Assim, pode-se argumentar que a Doutrina Monroe, proferida por James Monroe em 1823, foi o ponto de partida pelo qual os EUA estabeleceram sua esfera de influência na América Central, no Caribe e na América do Sul. De forma análoga, desde a Segunda Guerra Mundial, a Coreia do Norte está sob a esfera de influência da China, e o Japão sob a esfera de influência dos Estados Unidos.

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

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O termo “imperialismo informal” é empregado nas esferas de influência que um Estado implementa, como resultado de seus interesses comerciais, estratégicos ou militares, para dominar outro Estado sem recorrer à ocupação na forma de colônia, protetorado, estado tributário ou vassalo.

O imperialismo informal usa meios indiretos, geralmente econômicos, mas com potencial para se transformar em uma ameaça militar, para controlar uma nação ou um território. No imperialismo informal, o controle é exercido de forma mais sutil, por meio da superioridade tecnológica, grandes empréstimos (dívidas) que não podem ser reembolsados, propriedade de terras ou da indústria privada, ou forçando os países a firmarem acordos comerciais desiguais.

9.4 SOBERANIA

A soberania é um princípio de autoridade suprema dentro de um território. No Direito Internacional, soberania é o exercício desse poder por um Estado e está dividida em soberania de jure, que se refere ao direito legal de exercer esse poder, e soberania de facto, relacionada à capacidade factual de implementá-lo.

9.3 IMPERIALISMO INFORMAL

9.4.1 Conceitos

Os conceitos de soberania foram discutidos ao longo da história e ainda são objetos de debate. Sua definição, seu conceito e sua aplicação mudaram, principalmente após o Iluminismo (século XVIII). A noção atual de soberania do Estado consiste em quatro aspectos: território, população, autoridade e reconhecimento.

Além disso, o termo soberania pode ser entendido de quatro maneiras diferentes:

• Soberania doméstica: controle real sobre um Estado exercido por uma autoridade organizada dentro deste estado.

• Soberania de interdependência: controle real do movimento, através das fronteiras do Estado, assumindo que as fronteiras existem.

• Soberania jurídica internacional: reconhecimento formal por outros Estados soberanos.

• Soberania de Vestefália: é um princípio de direito internacional em que cada Estado tem soberania exclusiva sobre seu território.

Em alguns casos, esses quatro aspectos aparecem simultaneamente, mas, em outros, eles não são afetados um pelo outro, de forma a haver exemplos históricos de Estados que não eram soberanos em um aspecto, mas eram soberanos em outros.

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS E SEGURANÇA INTERNACIONAL

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De acordo com Immanuel Wallerstein (2004), a soberania deve ser um status reconhecido por outros se quiser ter algum significado, portanto, é mais do que qualquer outra questão de legitimidade que requer reconhecimento recíproco (WALLERSTEIN, 2004).

Soberania é o princípio pelo qual governos são livres para fazer o que quiserem em seu próprio território, o qual forneceu o princípio organizador das relações internacionais por mais de 350 anos. Daqui a 35 anos, a soberania não será mais um santuário. Novas forças poderosas e ameaças insidiosas convergirão contra ele.

Os Estados-nação não desaparecerão, mas compartilharão o poder com um número maior de poderosos atores não soberanos do que nunca, incluindo corporações, organizações não governamentais, grupos terroristas, cartéis de drogas, instituições regionais e globais, bancos e capital privado fundos.

A soberania será vítima do fluxo poderoso e acelerado de pessoas, ideias, gases do efeito estufa, mercadorias, dólares, drogas, vírus, e-mails e armas dentro e fora das fronteiras. Todo esse tráfego desafia um dos fundamentos da soberania: a capacidade de controlar o que atravessa as fronteiras. Os Estados soberanos medirão cada vez mais a sua vulnerabilidade, não uns aos outros, mas às forças da globalização além de seu controle.

No futuro, pode ocorrer que os Estados decidam não reconhecer a soberania de outros Estados em situações específicas. De forma análoga, um governo que não tem capacidade ou vontade de atender às necessidades básicas de seus cidadãos poderá perder sua soberania. A intervenção da OTAN, em 1999, em Kosovo, por exemplo, forçou a Sérvia a desistir do controle daquela província, após anos de governo abusivo, pode muito bem ser um protótipo para o futuro.

Implícita em tudo isso está a noção de que a soberania é condicional, mesmo contratual, em vez de absoluta. Se um Estado patrocina o terrorismo, desenvolve armas de destruição em massa ou comete genocídio, ele perde os benefícios normais da soberania e se abre para o ataque, a remoção ou a ocupação. O desafio diplomático será obter amplo apoio para os princípios de conduta do Estado e um procedimento para determinar a solução quando esses princípios forem violados.

Os Estados também optarão por abrir mão de parte de sua soberania. Essa tendência está bem encaminhada, mais claramente no campo do comércio. Os governos concordam em aceitar as decisões da Organização Mundial do Comércio porque, em geral, eles se beneficiam de uma ordem comercial internacional baseada em regras, mesmo que uma determinada decisão interfira em seu direito de proteger as indústrias nacionais. A mudança climática global também estabelece limites à soberania.

O Protocolo de Kyoto, que foi até 2012, exigia que os signatários limitassem as emissões de gases de efeito estufa. Pode-se imaginar um acordo ainda mais ambicioso, no qual um número maior de governos, incluindo Estados Unidos, China e Índia, aceitaria limites mais rígidos com base no reconhecimento de que estariam em situação pior se nenhum país aceitasse tais restrições.

IMPORTANTE

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

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Tudo isso resultará em um mundo que não é totalmente soberano. Entretanto, não será um governo mundial ou anarquia. O mundo, daqui a 35 anos, será semissoberano. Isso refletirá na necessidade de adaptar os princípios jurídicos e políticos a um mundo no qual os desafios mais sérios à ordem virão do que as forças globais fizerem aos Estados e do que os governos fizerem aos seus cidadãos, e não do que os Estados fizerem uns aos outros.

FONTE: <https://tinyurl.com/ycsyznek>. Acesso em: 23 fev. 2021.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A disciplina de Estudos Estratégicos estuda a utilização da força como instrumento da política de Estado e continua relacionada com a noção de Clausewitz (1976, p. 128) de estratégia como “o uso do engajamento para fins de guerra”.

• Os Estudos Estratégicos enfatizam, inicialmente, estudar como as guerras começam, como podem ser evitadas e, se não podem evitadas, como devem ser travadas da maneira mais eficiente possível.

• O aspecto militar dos Estudos Estratégicos, tradicionalmente, tem sido o mais significativo porque é o empregado pelos atores do sistema internacional para alcançar seus objetivos ou fins políticos.

• A necessidade de uma introdução aos Estudos Estratégicos é fruto do seu crescimento exponencial nas últimas décadas.

• A maioria dos estrategistas produziu trabalhos especializados respondendo à pressão das mudanças e às demandas ditadas pela política.

• Os Estudos Estratégicos abrangem um conjunto diversificado de tópicos e estão incorporados no campo mais amplo das Relações Internacionais.

• Os Estudos Estratégicos são um componente vital das Relações Internacionais.

• Na perspectiva dos Estudos Estratégicos, os meios são militares, o campo de conflito é o sistema internacional e os fins são os objetivos políticos dos atores no contexto internacional.

• Os Estudos Estratégicos são geralmente entendidos como o uso da força nas relações políticas dentro e entre Estados.

• O poder está diretamente relacionado aos processos políticos.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 A disciplina de Estudos Estratégicos ganhou um impulso em resposta aos eventos e às mudanças ocorridas após a Segunda Guerra Mundial. Entre eles, um em particular, relacionado à rivalidade geopolítica entre duas superpotências, e o desenvolvimento de novas armas de destruição em massa foi fundamental para a expansão da disciplina. A chamada Primeira Era dos Estudos Estratégicos, ou “era de ouro” (1950/1960-1980), ficou caracterizada por algumas políticas específicas. Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A Primeira Era dos Estudos Estratégicos ficou caracterizada pela assinatura dos acordos de limitação das armas estratégicas (SALT 1 e SALT 2).

b) ( ) A Primeira Era dos Estudos Estratégicos ficou caracterizada pela dissuasão nuclear, pela guerra limitada e pelo controle de armas.

c) ( ) A Primeira Era dos Estudos Estratégicos ficou caracterizada pela “Iniciativa Estratégica de Defesa” (George Bush Sr.), pela Organização de Defesa de Misseis Balísticos (Bill Clinton) e pela Defesa Nacional de Misseis (George Bush Jr.).

d) ( ) A Primeira Era dos Estudos Estratégicos ficou caracterizada pelo colapso da URSS e pela transformação dos Estudos de Segurança em uma área de investigação de extrema relevância.

2 Os Estudos Estratégicos, apesar de sua característica contemporânea, remontam à Antiguidade. Por certo, não como uma disciplina acadêmica, mas, não obstante, objeto de estudo de indivíduos, em épocas e regiões diferentes. Ao longo do século XIX e XX, porém, consolidaram-se dentro de determinados parâmetros. Classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Para Carl von Clausewitz (1975), a guerra deveria ser comparada à arte.( ) André Beaufre (1975) sugere que estratégia é uma arte da dialética de

duas vontades opostas usando a força para resolver sua disputa.( ) Os Estudos Estratégicos referem-se aos fenômenos relativos à Segurança

Internacional, e não à Defesa Nacional.( ) A maioria dos estrategistas produziu trabalhos especializados,

independentemente das pressões e das demandas ditadas pela política.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – V – F.b) ( ) V – V – V – F.c) ( ) F – F – V – V.d) ( ) V – V – F – F.

AUTOATIVIDADE

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3 A teoria marxista adota, como ponto de partida, a existência de um conflito entre a classe dominante e a classe trabalhadora e busca, como estratégia, criar uma consciência da desigualdade e da opressão da classe trabalhadora. As dificuldades para implementar essa estratégia levaram os marxistas a analisarem os diversos meios pelos quais as pessoas podiam ser oprimidas em uma sociedade. classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) No período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, Sir Basil Liddle Hart elaborou o conceito de hegemonia, que também foi importante para as Relações Internacionais.

( ) O conceito marxista de hegemonia cultural, de Antonio Gramsci, foi cunhado no período pós-Segunda Guerra Mundial em um quadro de Guerra Fria.

( ) Em um governo autoritário, a hegemonia cultural só é hegemônica se aqueles que são expostos a seus efeitos consentirem e incorporarem seus valores.

( ) Os marxistas estavam menos interessados na tomada de decisões em uma democracia burguesa, uma vez que eles viam como parte da pretensão de que os grupos dominantes ocultavam as realidades do poder das massas.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – V – F – F.b) ( ) F – F – V – V.c) ( ) V – V – V – F.d) ( ) F – V – V – F.

4 Relações Internacionais, dependendo da instituição acadêmica, é uma subdisciplina da Ciência Política ou um campo multidisciplinar mais amplo de Política Global, Direito, Economia e História. Como subdisciplina da Ciência Política, o foco dos estudos de Relações Internacionais está nas conexões políticas, diplomáticas e de segurança entre os Estados, bem como no estudo da história política mundial moderna. Sobre a disciplina de Relações Internacionais, disserte sobre a origem dos conceitos, as perspectivas básicas e os autores dos Estudos Estratégicos após a Segunda Guerra Mundial.

5 O campo da literatura em Estudos Estratégicos cresceu enormemente nas últimas décadas, tornando-se vasta e complexa. Os Estudos Estratégicos são uma área acadêmica interdisciplinar centrada no estudo de conflitos e estratégias de paz, dedicando, muitas vezes, atenção especial à relação entre política internacional, geoestratégia, diplomacia internacional, economia internacional e poder militar. No que se refere ao “poder”, disserte sobre as quatro definições clássicas.

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TÓPICO 2 — UNIDADE 1

ESTUDOS DE SEGURANÇA E ESTUDOS DA PAZ

1 INTRODUÇÃO

A ênfase na política de poder e a segurança militar dominou o campo dos Estudos de Segurança no século passado, por conta da adoção da abordagem tradicional da escola realista centrada no Estado. Tal abordagem permanece com o surgimento dos Estudos de Estratégia durante a Guerra Fria. Os Estudos para a Paz, portanto, se estabeleceram no período pós 1945, de um ponto de vista alternativo para o foco empírico tradicional no equilíbrio de poder com uma reconceptualização normativa da violência, visando a se concentrar na resolução de conflitos e na construção da paz (ROGERS, 2010).

Como uma dimensão importante para os Estudos de Segurança, a concentração nos Estudos da Paz avançou na era pós-Guerra Fria, mantendo uma perspectiva global, multicultural e se tornando interdisciplinar, por excelência, dialogando com os campos de Sociologia, Relações Internacionais, História, Política e Economia, entre outros (ROGERS, 2010).

Portanto, é importante avaliar o valor dos Estudos para a Paz, no século XXI, e a relevância de sua agenda como uma resposta aos desafios da segurança internacional. Em razão das transformações na natureza e no impacto do conflito nas últimas décadas, principalmente em um contexto globalizado, faz-se mister compreender o estudo da disciplina como uma alternativa à percepção da paz e da guerra, que, por sua vez, poderia se transformar no ponto de equilíbrio ao debate em torno da estabilidade e da segurança.

Inicialmente, veremos um breve histórico dos Estudos para a Paz, resumindo suas origens e sua evolução até se tornarem reconhecidos como disciplina acadêmica. A partir disso, podemos avaliar a contribuição dos Estudos para a Paz, no século XXI, como uma subdisciplina de Estudos de Segurança e Relações Internacionais, considerando os benefícios de uma abordagem mais “positiva” da paz, em contraste com uma concepção “negativa” da paz apenas como um período de ausência de guerra.

2 ESTUDOS DA PAZ: UMA RETROSPECTIVA

O século XX tem sido descrito como o mais sangrento da história humana, não apenas pelas duas guerras mundiais e pela Guerra Fria, mas também devido aos conflitos étnicos, religiosos e revolucionários, além de guerras de fronteira

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

entre Estados menores. A propósito do século XXI, o especialista canadense Conrad Brunk observa que: “Certamente, uma das tarefas mais importantes para a humanidade no novo milênio é aprender a lidar com aspectos individuais, sociais e lutas nacionais ou internacionais de maneiras mais construtivas e pacíficas” (BRUNK, 2012, p. 10-11).

Ao compreender a natureza dos conflitos humanos e os contextos que os geraram, os acadêmicos dos Estudos para a Paz têm como tarefa não apenas sugerir resoluções pacíficas para as crises, mas também redefinir e determinar uma concepção da paz como condição com a qual seja possível trabalhar como processo e como meta. Com as origens do pensamento sobre a paz enraizadas em todas as tradições religiosas, o desenvolvimento da teoria da “guerra justa” (jus bellum justum) e o pacifismo religioso podem ser vistos como exemplos de objeções à guerra. Por exemplo, podemos observar os Quakers, no século XVII, desempenhando um papel fundamental na fundação do pacifismo inicial nas sociedades ocidentais (CARTER, 2014).

A Sociedade Religiosa dos Amigos, também conhecida como Movimento Quaker, foi fundada por George Fox no século XVII, na Inglaterra. Ele e outros Quakers, ou “amigos”, foram perseguidos por suas crenças, que incluíam a ideia de que a presença de Deus existe em cada pessoa. Os Quakers rejeitavam cerimônias religiosas elaboradas, não tinham clero oficial e acreditavam na igualdade espiritual para homens e mulheres. Os missionários Quakers chegaram à América (atual EUA) em meados da década de 1650. Eram pacifistas e desempenharam um papel fundamental e pioneiro nos movimentos de abolição da escravidão e pelos direitos das mulheres.

FONTE: <https://www.history.com/topics/immigration/history-of-quakerism>. Acesso em: 11 nov. 2020.

ATENCAO

3 ESTUDOS PARA PAZ E O ILUMINISMO

O racionalismo secular na Europa, no século XVIII, pode ser visto como base dos modernos Estudos para a Paz, pelos trabalhos de teóricos como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Immanuel Kant (1724-1804). Esses intelectuais iluministas produziram reflexões críticas sobre a questão da organização internacional dos Estados para garantir uma condição permanente de paz (CARTER, 2014). Assim, a “paz perpétua” de Kant pode ser considerada a origem do idealismo do século XX e uma proposta inovadora para a relação entre os Estados republicanos, operando dentro de uma federação mais ampla, limitada por tratados e conjuntos de normas que promovam paz e estabilidade duradouras.

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TÓPICO 2 — ESTUDOS DE SEGURANÇA E ESTUDOS DA PAZ

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Em alguns de seus artigos, Kant antecipa a erradicação da guerra entre estados: “Nenhum tratado de paz, que tacitamente, contempla a possibilidade de guerra futura será considerado válido” (KANT, 1983). Dessa maneira, o trabalho de Kant contém elementos do pensamento moderno sobre a paz, em termos de sua conceituação, e os mecanismos existentes para preservá-la. Como outro ponto de ênfase, Kant afirmava que:

Uma nação não é uma possessão. É uma sociedade de homens que ninguém, além da própria nação, pode comandar ou dispor. [Segue-se, portanto, que] nenhuma nação deve interferir à força com a constituição e governo de outra, [e] nenhuma nação em guerra com outra deve permitir atos de guerra que tornem a confiança mútua impossível durante algum futuro tempo de paz (KANT, 1983, p. 108-109).

Hoje, o pensamento de Kant sobre o tema da paz está enraizado no pensamento liberal sobre sociedade internacional e fornece a base fundamental adotada pelos Estudos para a Paz. Isso pode ser percebido na promoção ativa da paz e do reconhecimento da soberania incorporada em organizações intergovernamentais, como a Organização das Nações Unidas (ONU).

4 ESTUDOS PARA PAZ NO SÉCULO XX

No entanto, para compreender os Estudos para a Paz no século XXI e a relevância de sua abordagem de Segurança Internacional, devemos, inicialmente, olhar para o seu desenvolvimento como uma escola de pensamento no período pós-Segunda Guerra Mundial, principalmente em contraste com os Estudos de Conflitos, que se concentraram com uma compreensão científica da guerra. Para traçar um paralelo entre os dois princípios acadêmicos, é importante notar que ambos compartilham uma origem comum na instabilidade e no medo de conflito nuclear no rescaldo da Segunda Guerra Mundial.

FIGURA 2 – ESTUDOS PARA A PAZ (EM FARSI)

FONTE: <https://tinyurl.com/yycojpx7>. Acesso em: 11 nov. 2020.

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

Os especialistas em Estudos de Conflitos buscavam compreender a paz por meio do estudo empírico da guerra, ou seja, em termos “negativos”. Portanto, seguindo essa linha de raciocínio, a paz só poderia ser alcançada através da prevenção da guerra. Os especialistas de Estudos para a Paz, por outro lado, procuravam uma nova maneira de entender o conflito humano redefinindo o conceito de paz como busca de segurança e estabilidade (BRUNK, 2012).

O crescimento dos movimentos pacifistas, na segunda metade do século XX, e as mobilizações em grande escala contra guerras (como na Guerra do Vietnã) favoreceram o aumento do ativismo pelo desarmamento e uma organização mais eficaz de oposição aos conflitos e aos métodos de guerra. Consequentemente, surgiu a necessidade de maior pesquisa em torno das estratégias e propostas para a paz, as quais são incorporadas aos estudos em institutos acadêmicos. Para dar uma breve olhada no papel do pacifismo no estabelecimento de um pano de fundo para a pesquisa para a paz, é importante notar que o conceito de pacifismo pragmático preenche a lacuna entre o pacifismo e a tradição da guerra justa, e fornece uma estrutura mais holística para compreensão da defesa da paz (CORTRIGHT, 2012).

Além disso, a difusão e o aperfeiçoamento da democracia propiciaram as condições para o surgimento de movimentos pacifistas, que, por natureza, dependem da liberdade de expressão e do direito das pessoas de se reunirem e falarem livremente. Nas últimas décadas, o amálgama de direitos humanos e as estratégias para a paz proporcionaram maior vigor nas ações internacionais, que chegam a justificar o uso da força “como meio necessário para acabar com a opressão e garantir a paz com justiça” (CORTRIGHT, 2012).

FIGURA 3 – MARTIN LUTHER KING JR. E O SEU DISCURSO “I HAVE A DREAM” (“EU TENHO UM SONHO”) NO LINCOLN MEMORIAL EM WASHINGTON, EM 1963

FONTE: <https://tinyurl.com/y4msjeyw>. Acesso em: 11 nov. 2020.

Observando o início do período da Guerra Fria, os Estudos para a Paz emergem, como disciplina acadêmica, no final da década de 1950, como resposta à abordagem tradicional concentrada no equilíbrio de poder centrado no Estado

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TÓPICO 2 — ESTUDOS DE SEGURANÇA E ESTUDOS DA PAZ

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e em um clima de impasse nuclear. Dessa maneira, a aplicação em órgãos institucionais dos resultados das pesquisas acadêmicas dos Estudos da Paz passa a contribuir ativamente na promoção internacional da paz e da estabilidade.

O marco inicial para os Estudos para a Paz ocorre dentro das universidades e dos departamentos de pesquisa, mais logo se estende (especialmente na Europa) aos centros e institutos de paz, cujo objetivo era não apenas pesquisar ativamente a paz, mas influenciar a política governamental para abranger a agenda mais ampla de segurança.

O Instituto de Pesquisa da Paz de Oslo (PRIO), fundado em 1959, por Johan Galtung, foi inicialmente formado como parte do Instituto Norueguês de Pesquisa Social, mas se tornou independente, em 1966, e iniciou uma publicação (de jornal especializado) chamada Journal of Peace Research (ROGERS, 2010).

Semelhantemente ao exemplo norueguês, dois dos maiores centros de Estudos para a Paz no mundo foram fundados no Reino Unido e na Suécia. Criado em 1966, o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI) estabeleceu uma reputação global por sua pesquisa em torno de controle de armas, corridas armamentistas e desarmamento. O equivalente britânico, o Departamento de Estudos para a Paz, na Universidade de Bradford, foi criado em 1973 e é agora o maior centro universitário de estudos sobre a paz do mundo (ROGERS, 2010).

Entretanto, é importante explorar as características que diferenciam os Estudos para a Paz do foco tradicional das Relações Internacionais. Para começar, o princípio subjacente dos Estudos para a Paz é seu compromisso normativo com a paz, que pode ser definido como “construir a paz” em oposição a “limitar a guerra”.

Francis Beer (1939-) reconhece que essas teorias “vão além de proteger as relações internacionais existentes. Eles visam equilibrar e reestruturar o sistema mundial” (BEER, 2001, p. 173). Por “equilibrar”, entende-se a “tentativa de reorganizar a importância e as relações entre os diferentes níveis do sistema” (BEER, 2001, p. 174). Assim, os Estudos para a Paz se afastam do objetivo centrado tradicionalmente no Estado e têm como objetivo diminuir o papel do “Estado-nação” para melhorar a proteção e a implementação dos direitos humanos, incluindo a premissa de que “um sistema forte e saudável cresce por meio do crescimento de seus componentes e não à sua custa” (BEER, 2001, p. 175).

No que diz respeito à “reestruturação”, Beer afirma que é uma tarefa importante para a criação da paz e busca “reestruturar processos e atividades em diferentes níveis do sistema internacional” (BEER, 2001, p. 94). Com destaque para a desmilitarização e a promoção da igualdade e estabilidade internacional, doméstica e individual. Portanto, “Isso significa menos ênfase no: direito da guerra, manutenção da paz militar internacional, alianças militares internacionais, regimes militares domésticos, despesas militares e temas militares na mídia e na cultura” (BEER, 2001, p. 95).

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

Como apenas um exemplo de algumas das teorias e proposições referentes aos Estudos para a Paz e Teoria da Paz, as ideias de Francis Beer demonstram como essa escola de pensamento foi rotulada como “radical” na Teoria Internacional, afastando-se das abordagens anteriores mais liberais. Na justificativa para o uso da força em emergências humanitárias, defendida por pacifistas pragmáticos e ativistas pela paz, podemos observar que a natureza da paz passa por mudanças significativas no século XXI, ou seja, podemos estar dispostos a renunciar à prevenção imediata de conflitos para preservar um equilíbrio mais amplo de segurança e paz.

Portanto, estas mudanças visam promover uma cultura de paz e encorajar o diálogo através da construção de estruturas de reciprocidade, igualdade e autonomia humana através da educação, alfabetização e criação de um estímulo para novas ideias. Estes estudos, por sua vez, no que se refere a construção da paz em sociedades pós-conflito, representam o próprio cerne dos ideais humanitários e unidade no sistema internacional que constituem questões de segurança em nosso tempo (GALTUNG, 2012).

Incorporando a desigualdade e a injustiça no âmbito estrutural e social ou cultural, os Estudos para a Paz são capazes de atender às necessidades físicas e psicológicas do indivíduo, ao enfatizarem o direito fundamental à liberdade de consciência e combaterem a discriminação institucionalizada. O teórico britânico Paul Rogers (1943-) afirma que os princípios fundadores dos Estudos para a Paz permitiram que ele permanecesse flexível e evoluísse ao longo do tempo, incorporando uma “perspectiva interdisciplinar, uma orientação global e uma relação entre teoria e prática” (ROGERS, 2010, p. 50).

5 ESTUDOS PARA A PAZ NO SÉCULO XXI

Os Estudos para a Paz equilibraram o debate em torno da legitimidade e da justificativa para o uso da força. A disciplina manteve o foco moral e ético e desafiou o status quo por meio do estudo comparativo de processos pacíficos e não pacíficos de mudança política e social (ROGERS, 2010). No entanto, é importante questionar a viabilidade dos Estudos para a Paz diante da natureza mutante do conflito no século XXI, além de como a disciplina pode permanecer como uma alternativa relevante para se analisar as abordagens tradicionais sobre a guerra.

Paul Rogers reconhece duas questões mais amplas que afligem o sistema global e seus conflitos, que podem tornar os Estudos para a Paz ainda mais relevantes. A primeira seria o aprofundamento das desigualdades em relação à distribuição global de riqueza considerando que, em 30 anos, 1/7 da população mundial controlará 3/4 da riqueza. Pode-se argumentar, continua Rogers, que a reconceituação única dos Estudos para a Paz permitirá que aborde com mais eficiência a polarização socioeconômica resultante (ROGERS, 2010).

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A segunda questão, para Rogers, prevê que a crise ambiental aumentará a dificuldade do crescimento econômico convencional, para preservar o bem-estar humano. Ele identifica o potencial de conflito de recursos em relação à comida, à terra, à água, aos combustíveis minerais e fósseis, além do aumento das pressões migratórias, em um quadro de radicalização nacionalista e conflitos culturais (ROGERS, 2010).

A tendência no atual quadro é o aumento de manifestações violentas dos destituídos, da retaliação revolucionária face à opressão, à crescente pressão da globalização, da fragmentação pós-colonial e da violência sectária e ao aumento das tensões políticas internas. As subdisciplinas de Estudos para a Paz e Estudos de Segurança enfrentam o desafio de responder a essas situações para fornecer soluções de curto e longo prazos para a resolução de conflitos. Contudo, os Estudos para Paz permanecem relevantes como resposta direta à mudança nas divisões socioeconômicas e nas restrições ambientais, pois propõem a cooperação em questões de desenvolvimento sustentável, o alívio da dívida externa, a ajuda ao desenvolvimento e a reforma nas relações comerciais.

Com relação às questões que se relacionam mais de perto com a ideia tradicional de segurança (por exemplo, a luta global contra o terrorismo), Paul Rogers destaca que muitas das soluções consideradas pela comunidade internacional derivam diretamente da terminologia da pesquisa para a paz, abrangendo ideias como prevenção de crises, manutenção da paz, construção da paz, intervenção com base ética, controle de armas regional e global e desmilitarização (ROGERS, 2010).

Os Estudos para a Paz são, portanto, uma disciplina valiosa no século XXI, que compreende mais do que apenas a violência física, mas considera a mudança climática, a pobreza e a desigualdade financeira, para citar apenas alguns. Os Estudos para a Paz e, portanto, os próprios Estudos de Segurança evoluíram para além das teorias tradicionais de Relações Internacionais de Liberalismo, Realismo e de suas concepções a respeito do significado do problema de segurança. O seu enfoque multidisciplinar é, talvez, o que o distingue dos métodos tradicionais e, sem dúvida, permite manter a sua relevância na abordagem de questões mundiais que vão além de uma determinada área temática.

A capacidade dos Estudos para a Paz de se vincularem diretamente a outras disciplinas dentro das Relações Internacionais, por exemplo, Estudos Críticos de Segurança e Estudos de Conflitos, pode ser um testemunho de sua longevidade.

A necessidade de qualquer disciplina acadêmica evoluir e se ajustar é pertinente a sua resistência e, embora muitos dos maiores desafios continuem a ser vistos, na maioria dos casos, os Estudos para a Paz fornecem uma alternativa essencial para o foco na política de poder e no Estado-centrismo que dominou as Relações Internacionais. Como esse ensaio mostrou, apesar de o foco na paz ter desafiado o status quo na teoria das Relações Internacionais, apresentando uma alternativa à ênfase das condições que deram origem à guerra, ele forneceu

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informações valiosas para a resolução de conflitos e a construção da paz pós-conflito. Em particular, a pesquisa e os dados desenvolvidos a partir de Estudos para a Paz, junto à reconceituação da relação entre violência e paz propriamente dita, proporcionaram um equilíbrio perspicaz para o debate em torno da natureza das relações interestatais.

É claro que, quando consideramos a agenda em evolução na comunidade global e o aumento da globalização e da complexa interdependência, os Estudos para a Paz continuarão a fornecer a ênfase necessária à natureza humana, bem como igualdade e medidas pacíficas para resolver crises que se tornam ainda mais pertinentes à medida que o escopo dos Estudos de Segurança é ampliado.

PRIMAVERA ÁRABE

A Primavera Árabe é uma expressão que faz referência a uma série de movimentos de contestação política, social e militar em países no Médio Oriente e Norte de África. Esse fenômeno ocorreu em países que tinham em comum a língua árabe e a religião islâmica, embora fossem culturalmente distintos. No entanto, as causas dos protestos, ocorridos no final de 2010, se relacionam com fatores comuns a todas as nações afetadas: desemprego e falta de oportunidades para as gerações mais jovens, repressão política e concentração do poder e da riqueza com uma minoria. Entende-se, porém, que o episódio catalisador da onda de protestos foi a autoimolação do vendedor de rua tunisino, Mohamed Bouazizi, que ateou fogo ao corpo, em 17 de dezembro de 2010, em protesto contra as humilhações causadas pelas autoridades locais que lhe confiscaram os bens que ele usava para trabalhar. A Primavera Árabe estendeu-se rapidamente da Tunísia a vários países, como o Egito, Líbia, Iêmen, Síria, Bahrein, Iraque, Argélia e Marrocos, entre outros. No entanto, na Tunísia, no Egito, na Líbia e no Iêmen, o movimento levou à deposição dos seus chefes de Estado. Na Síria, a Primavera Árabe provocou uma guerra civil brutal, que fez centenas de milhares de mortos. No ano de 2011, em Angola, os ativistas do chamado “Movimento Revolucionário” deixaram-se inspirar na Primavera Árabe quando começaram as suas manifestações contra o Governo de José Eduardo dos Santos.

FONTE: <https://tinyurl.com/y6syutag>. Acesso em: 18 nov. 2020.

IMPORTANTE

6 A BIPOLARIDADE E A SEGURANÇA TRADICIONAL

O fim da Guerra Fria foi um marco significativo na história contemporânea e gerou uma busca por respostas relacionadas com a estrutura de poder que iria surgir no cenário internacional. Afinal, o que mudou na estrutura de poder do sistema internacional pós-Guerra Fria?

Várias avaliações foram feitas desde a queda da chamada “Cortina de Ferro” sobre a estrutura de poder do sistema internacional pós-Guerra Fria, como a unipolaridade, a multipolaridade, a unimultipolaridade e a apolaridade.

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Alguns especialistas dividem o período seguinte à Guerra Fria em pós-Guerra Fria e pós-pós-Guerra Fria, estabelecendo os ataques de 11 de setembro de 2001 como marco divisório (HAASS, 1997).

FIGURA 4 – “CORTINA DE FERRO”: DIVISÃO DA EUROPA DURANTE A GUERRA FRIA

FONTE: <https://tinyurl.com/y3lznmgh>. Acesso em: 11 nov. 2020.

7 TEORIAS E CONCEITOS DA ESTRUTURA DE PODER DO SISTEMA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA

A transição do sistema internacional bipolar na Guerra Fria para o sistema multipolar, segundo alguns especialistas, ocorreu devido à falta de vontade política de se estabelecer um sistema unipolar liderado pelos Estados Unidos (GAISER; KOVAČ, 2012). Em 2001, após a eleição de George W. Bush, houve um breve momento unipolar que durou até 2006, quando o mundo, gradualmente, se transformou em uma estrutura unimultipolar em consequência do declínio relativo do poder econômico dos Estados Unidos e dos resultados adversos dos governos norte-americanos no cenário internacional.

7.1 DA BIPOLARIDADE À MULTIPOLARIDADE

Ao final da Guerra Fria, havia três ideias presentes no meio acadêmico sobre a nova natureza do sistema internacional. As três eram conceitualmente diferentes e contraditórias, mas todas se relacionavam a uma manifestação política.

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Inicialmente, na ideia de uma “nova ordem mundial”, o poder não desempenharia um papel significativo nas relações internacionais; o papel do Estado desapareceria e os principais atores nas relações internacionais se tornariam organizações internacionais e entidades econômicas. A esses conceitos foram dadas denominações ligeiramente diferentes, porém todas compartilhavam a tese política fundamentada no Realismo, que daria lugar à cooperação e a uma percepção liberal das relações internacionais. Dessa maneira, surgiram denominações como “neoidealismo”, também referido como “idealismo neo-wilsoniano”, “idealpolitik” e “neoliberalismo”.

Uma das manifestações políticas dessa ideia foi o discurso proferido pelo Presidente dos Estados Unidos da América George H. Bush, em 11 de setembro de 1990, no qual ele apontou para a oportunidade de avançar “Rumo a uma Nova Ordem Mundial”. Além disso, um dos principais defensores dessa visão foi Francis Fukuyama, que, em seu artigo O Fim da História, observava que:

O ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano. A vitória do liberalismo ocorreu principalmente no reino das ideias ou da consciência e ainda está incompleta no mundo real ou material. A morte da ideologia significa a crescente “mercantilização comum” das relações internacionais e a diminuição da probabilidade de conflito em grande escala entre os Estados (FUKUYAMA, 1989, p. 17).

Ao contrário dos “otimistas”, como às vezes Fukuyama e outros autores da “nova ordem mundial” foram chamados, surgiu a segunda grande ideia, ou os “pessimistas”, que sugeriram a ideia de um mundo multipolar. Com o colapso da União Soviética, alguns autores argumentaram que a ascensão do Japão, da União Europeia e de outros atores, nos assuntos internacionais, o mundo se tornou multipolar. Paul Kennedy (1945-), historiador militar britânico, cunhou o termo “esticamento imperial”, pelo qual definiu que os Estados Unidos estenderam, além de sua capacidade, seu poder de manter e controlar seus compromissos militares e econômicos. Um exemplo de manifestação política dessa visão do mundo pós-Guerra Fria é a afirmação irônica de Paul Tsongas, o falecido senador dos Estados Unidos, por Massachusetts, na Convenção Democrática, de 1992: “A Guerra Fria acabou, o Japão ganhou” (DOWD, 1992).

John Mearsheimer, cientista político norte-americano (1947-), foi uma das figuras-chave da visão multipolar “pessimista”, que defendia que a mudança da bipolaridade para a multipolaridade poderia ter consequências desastrosas para a paz. Ele traçava um paralelo entre o futuro das grandes potências e as experiências da Europa, no início do século XX, criticando argumentos otimistas de que o futuro seria pacífico devido aos altos custos da guerra moderna, à existência de muitas democracias e ao aprendizado – um processo de socialização. Enquanto os “otimistas” veem o fim da Guerra Fria como a negação do passado de guerra do sistema internacional, os pessimistas o veem como o retorno do passado (MEARSHEIMER, 1985).

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Nas Relações Internacionais, o realismo ofensivo é uma variante do realismo político. Contudo, o realismo ofensivo diz respeito aos Estados como os principais atores nas relações internacionais, adiciona várias hipóteses ao quadro do realismo estrutural. Veja um resumo do Realismo Ofensivo, de John Mearsheimer, acessando: https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=2397466.

UNI

A terceira grande ideia contempla um mundo unipolar. Enquanto a segunda enfatizava o equilíbrio de poder, a terceira tem como foco a hegemonia. Após o colapso da União Soviética, restou apenas uma superpotência: os Estados Unidos. Assim, seria lógico que o mundo se transformasse em unipolar. Alguns autores proclamaram o pós-Guerra Fria como a Pax Americana e outros como “hegemonia americana” (SCHWARZ; LAYNE, 1993).

Em 1992, uma manifestação política dessa visão vazou da Orientação de Planejamento de Defesa (DPG) do Pentágono para os anos fiscais 1994-1999, em que os estrategistas militares norte-americanos defendem, enfaticamente, o papel hegemônico dos Estados Unidos ao dissuadir concorrentes potenciais que ousassem aspirar um papel regional ou global mais amplo. A redação inicial do DPG foi tão polêmica que, em uma redação posterior, a linguagem referente ao objetivo de preservação da unipolaridade foi excluída. O principal protagonista de tal ideia foi Charles Krauthammer (1950-2018), que previu que um momento unipolar pode durar aproximadamente uma década antes que um mundo multipolar instável surja (KRAUTHAMMER, 1990).

Em retrospecto, conclui-se que as três ideias, parcialmente provadas, estavam corretas, embora elas também estivessem parcialmente incompletas; todas superestimavam seus argumentos e ignoravam fatores relevantes. Por mais atraente que parecesse, para certos setores conservadores, a tese de Fukuyama não se realizou. Na primeira administração de Clinton (1992-1996), bem como nas duas administrações de George W. Bush (2001-2009), houve uma tendência apenas parcial em adotá-la. Portanto, ficamos com duas ideias restantes.

Os Estados Unidos foram confrontados com a questão de “o que fazer com sua primazia” e não encontraram uma resposta para essa pergunta. O fim da Guerra Fria teria surpreendido os norte-americanos e, portanto, eles pareciam não estar prontos para os desafios inesperados, e, dessa maneira, não desempenharam o papel da única superpotência remanescente. Os Estados Unidos precisavam de tempo para compreender completamente a nova situação nas relações internacionais (KISSINGER, 1994). Então, no início da década de 1990, o mundo teria continuado bipolar, porque os norte-americanos não teriam exercido seu potencial de poder unipolar.

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No final da década de 1990, a administração de George H. Bush enfatizava que a política externa não era sua prioridade. No entanto, em 1989, interveio no Panamá (Operação Justa Causa) e, em 1991, Bush e Gorbachev assinaram um Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START). E, ainda mais importante, os Estados Unidos começaram, em janeiro de 1991, a Guerra do Golfo. Apesar dessas ações, o governo Bush não criou uma visão de política externa nem uma estratégia para implementar a ideia de unipolaridade. Além disso, nem no primeiro governo Clinton o fez, o que é a razão pela qual os Estados Unidos não impuseram uma geopolítica unipolar (LAYNE, 1993).

Consequentemente, a estrutura de poder do sistema internacional mudou de bipolar (na Guerra Fria) para multipolar (pós-Guerra Fria). Portanto, o argumento de que a Guerra do Golfo (1990-1991) indicou uma política de unipolaridade não se sustenta, porque essa política não teve continuidade. Ainda, o caráter unipolar da Guerra do Golfo foi apenas um momento efêmero de unipolaridade sem maiores consequências na estrutura de poder do sistema internacional.

O ímpeto unipolar dos Estados Unidos apenas se concretizaria na década seguinte. Embora todas as três grandes ideias do sistema internacional pós-Guerra Fria, presentes na época do colapso do Bloco Comunista, tenham sido parcialmente incorporadas em manifestações políticas, foi a ideia (“pessimista”) da multipolaridade que prevaleceu nos anos 1990.

7.2 DA MULTIPOLARIDADE À UNIPOLARIDADE

As prioridades do primeiro governo Bill Clinton eram de natureza econômica e os Estados Unidos permaneceram passivos na arena internacional, não assumindo a posição de potência hegemônica mundial, o que teria contribuído para um caos multipolar, guerras (civis), genocídios, falta de governança global e a indefinição de regras em assuntos internacionais. Esse posicionamento poderia ser comparado ao período entre guerras (décadas de 1920-1930) em que os Estados Unidos adotaram uma política isolacionista que voltaria a ser praticada após a Guerra Fria (MEARSHEIMER, 2001).

Entretanto, ao final do primeiro mandato de Clinton, os Estados Unidos começaram a implementar seu potencial hegemônico como resposta aos genocídios em Ruanda, Darfur e Bósnia, à tomada de Cabul, capital do Afeganistão, em 1996, pelo Talibã, e aos ataques às embaixadas norte-americanas no Quênia e na Tanzânia. Por fim, os Estados Unidos se deparam, em meados da década de 1990, com a ascensão econômica da China e sua ofensiva em busca de recursos energéticos. Estes acontecimentos foram catalisadores adicionais para a mudança no comportamento dos Estados Unidos nas relações internacionais.

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Em dezembro de 1995, foram assinados os acordos de Dayton, em Paris, que findava o conflito nos Bálcãs. No entanto, a violência continuou em Kosovo, mas, dessa vez, o segundo governo Clinton interveio, em 1999, em conjunto com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) sem a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

FIGURA 5 – SOLDADO BRITÂNICO (OTAN) NA GUERRA DA BÓSNIA (1992-1995)

FONTE: <https://tinyurl.com/y66k7mz9>. Acesso em: 11 nov. 2020.

A OTAN, muitas vezes designada por NATO ou Aliança Atlântica, é uma aliança militar intergovernamental baseada no Tratado do Atlântico Norte assinado em abril de 1949. A organização constitui um sistema de defesa coletivo, por meio do qual os seus Estados-membros concordam com a defesa mútua em resposta a um ataque por qualquer entidade externa à organização. A sede da OTAN localiza-se em Bruxelas, na Bélgica, um dos 28 países membros. Algum tempo depois de sua fundação, os países do bloco socialista, liderados pela União Soviética, reagiram e criaram o Pacto de Varsóvia, em 1955, uma organização que tinha os mesmos preceitos de cooperação militar mútua em caso de ataque por parte de um país ou países não alinhados. O Pacto de Varsóvia foi, porém, extinto.

FONTE: <https://tinyurl.com/yyqhfajw>. Acesso em: 24 nov. 2020.

ATENCAO

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ENTENDA O CONFLITO EM KOSOVO

A disputa por Kosovo, Província no sul da Iugoslávia de população majoritariamente de etnia albanesa, é o motivo dos presentes bombardeios da OTAN (aliança militar ocidental, liderada pelos Estados Unidos), contra o país. A ação começou em 24 de março de 1999, após o fracasso de negociações para um acordo que colocasse fim ao conflito entre tropas de Belgrado, sob ordens do presidente Slobodan Milosevic, e separatistas de etnia albanesa de Kosovo. A OTAN acusa Milosevic de praticar “limpeza étnica” – matar ou expulsar os albaneses de suas casas – na região. Em abril de 1999, o processo de expulsão dos kosovares foi acelerado. Milhares de pessoas já atravessaram as fronteiras da Albânia e da Macedônia em busca de refúgio.

A OTAN chegou a estimar que mais de 900 mil albaneses (de um total de 1,8 milhão) deixaram Kosovo desde 1998. Milosevic se defende. Afirma que suas tropas apenas combatem guerrilheiros separatistas do Exército de Libertação de Kosovo; diz que a Província é importante por ser o berço do nacionalismo sérvio (a Sérvia, junto com Montenegro, compõe a atual Iugoslávia). Em um mês de ataques aéreos [março a abril de 1999], a OTAN destruiu boa parte do Exército iugoslavo. Também matou civis, atingidos por seus mísseis. Para encerrar a guerra, a aliança ocidental exige que Milosevic retire suas tropas de Kosovo, permita a volta em segurança dos refugiados e a entrada de forças de manutenção de paz na Província.

FONTE: Adaptado de <https://tinyurl.com/yyf9hdxy>. Acesso em: 24 nov. 2020.

INTERESSANTE

O segundo governo Clinton, assim, se tornou mais assertivo e deu início a uma política unipolar. No entanto, a intervenção da OTAN, em 1999, bombardeando os sérvios, na Bósnia, não pôde ser considerada um sinal de unipolaridade, que, por definição, precisa de uma força para mantê-la e governá-la de acordo com sua visão. O mundo multipolar da década de 1990 começou a tomar uma forma diferente. Com o novo presidente, George W. Bush, essa visão tomou forma, tornando o mundo, em 2001, unipolar. Assim, o governo Bush enfatizou a preparação militar, a política das grandes potências e os interesses nacionais concretos (DUECK, 2004). Imediatamente após a invasão do Afeganistão e do Iraque, alguns autores chegaram a argumentar que essa concentração de poder não teve paralelo na história mundial (BROOKS; WOHLFORTH, 2002). Portanto, as razões para a mudança de polaridade, desde o fim da Guerra Fria, não foram materiais, mas, sim, resultado de decisões políticas a partir da década de 2000.

7.3 DA UNIPOLARIDADE À UNIMULTIPOLARIDADE

A mudança no governo George W. Bush pôde ser percebida na nova estratégia de criar esferas de influência no antigo espaço geopolítico soviético (Bulgária, Romênia, Polônia, Lituânia, Geórgia, Uzbequistão, Cazaquistão e

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Quirguistão), na retirada do Tratado de Mísseis Antibalísticos, usando seu poder de veto no protocolo de verificação da Convenção de Armas Biológicas, ao parar de enviar ajuda à Rússia para redução do arsenal nuclear. Os Estados Unidos começaram a preparar suas forças armadas para as guerras do século XXI, ao recusarem assinar o Protocolo de Quioto (tratado internacional com compromissos mais rígidos para a redução da emissão dos gases que produzem o efeito estufa) e ao ratificar o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (tratado internacional que criou o Tribunal Penal Internacional [TPI], uma organização internacional permanente e independente com competência para julgar indivíduos por crime de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crime de agressão). Para alguns especialistas, essa nova estratégia norte-americana de política externa tinha características neoimperialistas (IKENBERRY, 2004).

ESTADOS UNIDOS E TALIBÃ ASSINAM ACORDO DE PAZ HISTÓRICO

Os governos dos Estados Unidos e do Afeganistão anunciaram em 29 de fevereiro de 2020 que preveem uma retirada completa das tropas americanas e de outros países da OTAN baseadas no país da Ásia Central dentro de 14 meses. A medida faz parte de um acordo histórico assinado em Doha, no Catar, entre os Estados Unidos e o grupo islâmico Talibã. O pacto foi assinado pelo negociador especial dos Estados Unidos para a paz, Zalmay Khalilzad, e pelo líder político talibã mulá Abdul Ghani Baradar. Ambos apertaram as mãos no salão de um luxuoso hotel no Catar, diante de uma grande presença talibã, na ocasião.

O secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, participou da cerimônia. A iniciativa pretende pôr fim a 18 anos de conflito no Afeganistão. Cerca de 3.500 militares dos Estados Unidos e de países da coalizão liderada pelos americanos morreram no país desde 2001. O envolvimento americano no país teve início após os atentados de 11 de setembro, conduzidos pela rede terrorista al-Qaeda, à época baseada no Afeganistão. Como parte do acordo, o número de militares estrangeiros no Afeganistão será reduzido de cerca de 14 mil para 8.600 até julho deste ano [2020]. O restante da retirada será feito de forma gradual ao longo dos meses seguintes, caso o Talibã cumpra sua parte no acordo. “A coalizão completará a retirada de suas forças restantes do Afeganistão dentro de 14 meses após o anúncio desta declaração conjunta e do acordo Estados Unidos-Talibã... sujeito ao cumprimento pelo Talibã de seus compromissos sob o acordo Estados Unidos-Talibã”, afirmou o comunicado conjunto divulgado pelos americanos e afegãos. Já o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, afirmou que a aliança está preparada para “ajustar e reduzir” sua presença no país.

No entanto, ele também frisou que, se a situação na região eventualmente piorar, os membros da aliança podem voltar a aumentar sua presença. Em discurso pouco antes da assinatura, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, pediu para que o Talibã corte quaisquer laços com a rede Al-Qaeda e que continue a combater os terroristas do Estado Islâmico. Na sexta-feira, o presidente Donald Trump pediu que os afegãos “aproveitem a chance de paz”. “Se o Talibã e o governo afegão conseguirem cumprir seus compromissos, teremos um caminho claro para acabar com a guerra no Afeganistão e

IMPORTANTE

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levar nossos soldados para casa”, disse Trump. O tratado prevê a retirada de todas as tropas americanas do Afeganistão no decorrer dos próximos 14 meses e abre caminho para encerrar 18 anos de guerra no país.

FONTE: Adaptado de <https://tinyurl.com/yynxnbdh>. Acesso em: 24 nov. 2020.

No início do governo, Bush considerou a China e a Rússia desafios estratégicos. Entretanto, essa visão mudou depois do 11 de setembro de 2001 e das guerras no Afeganistão e no Iraque. Em muitos aspectos, a tragédia do 11 de setembro tornou o mundo ainda mais unipolar, mas o evento, em si, não representou uma mudança estrutural no sistema internacional. Por outro lado, os atos que se seguiram ao 11 de setembro revelaram a vulnerabilidade dos Estados Unidos como superpotência. Além disso, após os ataques, a política externa do país foi alterada, pois a chamada Guerra ao Terror exigia aliados estratégicos e adaptações da estratégia pré-11 de setembro.

A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, em 2002, que alguns especialistas chamaram de “Doutrina Bush” (KRAUTHAMMER, 2004), possibilitou que países que violassem direitos humanos básicos, mas que eram geopoliticamente importantes (Uzbequistão e Sudão), se tornassem parceiros estratégicos dos Estados Unidos. Além disso, o Pentágono também adotou uma nova doutrina chamada “1-4-2-1”, que exigia uma força capaz de defender os Estados Unidos operando em quatro regiões avançadas, derrotando, rápida e simultaneamente, dois adversários regionais e alcançando um resultado mais decisivo e duradouro, como a mudança de regime em uma dessas regiões. Tais novas estratégias também tiveram seus efeitos negativos, especialmente em seu poder brando, pois, aos olhos de muitos países, inclusive de aliados, os Estados Unidos se tornaram uma superpotência desonesta (HUNTINGTON, 1999).

A supremacia dos Estados Unidos, na década de 2000, é inconteste, porém, a unipolaridade (como um sistema com apenas um polo) só fazia sentido no início da era pós-Guerra Fria, pois, uma década depois, parecia cada vez claro que a economia dos Estados Unidos dava sinais de fraqueza. Além disso, as intervenções militares não conseguiram estabilizar o Afeganistão e o Iraque. O poder militar não resolveria todos os desafios e os norte-americanos aprenderam que é mais difícil construir do que destruir. O governo Bush, então, reajustou a estratégia de política externa delineada, em 2002, na Estratégia de Segurança Nacional (JERVIS, 2003).

No início do século XXI, especialistas concordaram que os Estados Unidos haviam passado do apogeu de poder sem precedentes. Dessa maneira, o termo unipolaridade é enganoso, porque exagera a capacidade norte-americana de obter os resultados que eles desejam em algumas dimensões da política mundial (NYE, 2002).

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Para Aaron Friedberg, alguns cometeram o erro clássico da Ciência Política de igualar poder e controle sobre recursos com poder como controle sobre resultados. Em outras palavras, só porque os Estados Unidos têm a maior economia e as forças armadas mais poderosas isso não significa que eles possam fazer com que todos façam tudo o que desejam o tempo todo (FRIEDBERG, 2009).

Nesse ponto, o mundo estava longe da multipolaridade e muito mais próximo do conceito de unimultipolaridade de Samuel Huntington (1927-2008), no qual há apenas uma superpotência em um mundo unipolar. Assim, um sistema unipolar teria uma superpotência, e muitas potências menores. Um sistema multipolar teria vários poderes principais de força comparável, que cooperam e competem entre si. No entanto, a política internacional contemporânea não se encaixa em nenhum desses três modelos, pois é um sistema híbrido, unimultipolar, com uma superpotência e várias potências principais (HUNTINGTON, 1999).

Os Estados Unidos são a maior potência do mundo, porém, em 2006, não conseguiam manter o mundo em um estado de unipolaridade. Além disso, outras grandes potências ainda não conseguiam pôr em xeque o poder dos Estados Unidos, de maneira que o mundo não era multipolar. Outras grandes potências ainda precisam dos Estados Unidos para ações substanciais, enquanto este também precisa de outras potências. Com os Estados Unidos envolvidos no Afeganistão e no Iraque, sua economia desacelerou, houve a ascensão de outros atores na arena internacional, com objetivos não alcançados, bem como tiveram que lidar com resultados incontroláveis, o mundo se tornou unimultipolar.

7.4 DA UNIMULTIPOLARIDADE PARA NÃO POLARIDADE

O imbróglio militar no Afeganistão e no Iraque, a nova estratégia de segurança e a situação econômica, segundo o diplomata norte-americano Richard Haass (1951-), definiram a atual ordem mundial como “não polaridade”. Para Haass (2008), a principal característica das relações internacionais do século XXI se caracteriza pela “não polaridade” em um mundo dominado por dezenas de atores que possuem e exercem vários tipos de poder. Essa ideia tem como base a abordagem de Suzan Strange (1923-1998), em que o poder está mudando lateralmente dos Estados para os mercados e outros atores não estatais (STRANGE, 1996).

Com a crise econômica mundial, que começou em 2008, o conceito de não polaridade se tornou uma maneira conveniente de descrever a distribuição de poder no mundo. Especialistas interpretaram a crise financeira global como o início do declínio norte-americano (NYE, 2010). Com efeito, a crise de 2008 teve um impacto maior no sistema internacional do que o 11 de setembro, percepção reforçada pela tese de Charles Krauthammer (1950-2018) de um momento unipolar, em que ele descreveu que um colapso norte-americano não acontecerá por motivos externos, e sim internos. Dessa maneira, Krauthammer (1990) sugeriu que a baixa taxa de poupança, o sistema educacional em declínio, a produtividade

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

estagnada, uma ética de trabalho enfraquecida, a crescente demanda por direitos do estado de bem-estar social e o novo gosto por luxos ecológicos nada têm a ver com o envolvimento na Europa, na América Central ou no Oriente Médio.

A crise econômica prejudicou o poder econômico e militar e o poder brando dos Estados Unidos. A incapacidade de Wall Street de policiar o sistema financeiro teve consequências devastadoras para o resto do mundo, no sentido de descrédito do modelo norte-americano de capitalismo liberal. Além disso, o poder brando dos Estados Unidos perdeu credibilidade pela relutância em fechar a prisão de Guantánamo, pelos incidentes na prisão de Abu Ghraib, no Iraque e pela guerra de drones.

7.5 EM DIREÇÃO A UMA NOVA BIPOLARIDADE?

Diante do exposto, conclui-se que o sistema internacional contemporâneo carece de uma nova arquitetura de governança. Ian Bremmer e Nouriel Roubini chamaram esse mundo de “G-0”, pois os Estados Unidos não possuem condições de implementar o “Consenso de Washington” sozinho. Por outro lado, ainda não é possível contrapor com um “Consenso de Pequim” (BREMMER; ROUBINI, 2011).

O mundo globalizado contemporâneo é grande demais para ser governado por uma única potência. Portanto, a luta futura pela governança global será entre alianças. No entanto, essas alianças serão feitas apenas entre atores que compartilham uma visão semelhante da ordem global. Novamente, como na Guerra Fria, pode-se esperar uma rivalidade ideológica entre alguns centros de poder.

O cientista político Carlo Pelanda (1951-), em 2007, argumentou, em seu livro, que um novo conflito bipolar é inevitável (PELANDA, 2007). Ele observa que a futura luta bipolar pela governança global será entre dois conceitos diferentes: o capitalismo autocrático e o capitalismo democrático. Sendo os principais protagonistas os Estados Unidos e a China, ele afirma que, para o capitalismo democrático prevalecer, uma grande aliança entre os Estados Unidos, a União Europeia e a Rússia deve ser formada.

Sobre possíveis mudanças no eixo geopolítico, os Estados Unidos podem passar a concentrar seus recursos no Pacífico e na Ásia se perceberem a China como principal adversário. A decisão do Pentágono de transferir 60% das forças navais para o Pacífico é uma indicação de que a mudança já começou a tomar forma política. Consequentemente, pela primeira vez em séculos, a União Europeia e a região do Mediterrâneo serão empurradas para a periferia geopolítica da política e governança globais. Além disso, focar exclusivamente na China e não levar em consideração a visão de uma grande aliança criará um “ponto-cego” crítico para os Estados Unidos.

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TÓPICO 2 — ESTUDOS DE SEGURANÇA E ESTUDOS DA PAZ

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Por outro lado, como na Guerra Fria, a região do Euro-Mediterrâneo está ressurgindo como um quebra-cabeças crucial do mundo atual. A crise econômica na União Europeia, a instabilidade no Norte da África, as revoluções árabes, os desafios geopolíticos em curso no Oriente Médio e a influência chinesa naquela região são lembretes de que a luta pela governança global não pode se limitar ao Pacífico. Portanto, se os Estados Unidos desejam uma grande aliança, eles deveriam se concentrar também na região euro-mediterrânea.

Os perigos da marginalização do Euro-Mediterrâneo foram bem apresentados por Carlo Jean (1936-), que afirma que, se os Estados Unidos realmente desejam que o capitalismo democrático prevaleça, devem prestar atenção ao que está acontecendo no entorno da União Europeia. Os Estados Unidos deveriam se engajar ativamente na região euro-mediterrânea para torná-la próspera e estável. No futuro, seria necessária uma abordagem transatlântica euro-mediterrânica, considerando-a uma macrorregião geopolítica.

CONSENSO DE WASHINGTON: ENTENDA O QUE FOI ESSE CONJUNTO DE MEDIDAS LIBERAIS

O Consenso de Washington é o conjunto de dez políticas econômicas liberais, que passaram a ser sugeridas e aplicadas para acelerar o desenvolvimento de vários países. Só na América Latina e no Caribe, 13 países seguiam as medidas nos anos 1990. Entretanto, dependendo do local, algumas medidas eram mais favorecidas que outras. O economista inglês John Williamson cunhou o termo “Consenso de Washington” como forma de descrever as ideias econômicas defendidas durante o evento, em 1989, na capital norte-americana.

FONTE: <https://tinyurl.com/y2xx8vxf>. Acesso em: 21 fev. 2021.

NOTA

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• A ênfase na política de poder e a segurança militar dominou o campo dos Estudos de Segurança no século XX, com base na abordagem tradicional da escola realista centrada no Estado.

• Os Estudos da Paz avançaram na era pós-Guerra Fria, mantendo uma perspectiva global, multicultural e se tornando interdisciplinar, por excelência, dialogando com os campos de Sociologia, Relações Internacionais, História, Política e Economia, entre outros.

• No século XXI, como uma subdisciplina de Estudos de Segurança e Relações Internacionais, os Estudos para a Paz adotam uma abordagem “positiva” da paz, em contraste com uma concepção “negativa” da paz como apenas um período de ausência de guerra.

• O século XX foi o mais sangrento da história humana, não apenas pelas duas guerras mundiais e pela Guerra Fria, mas também devido aos conflitos étnicos, religiosos e revolucionários, além de guerras de fronteira entre Estados menores.

• O racionalismo secular na Europa, no século XVIII, pode ser visto como base dos modernos Estudos para a Paz, pelos trabalhos de teóricos como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Immanuel Kant (1724-1804).

• Para compreender os Estudos para a Paz no século XXI e a relevância de sua abordagem de Segurança Internacional, devemos, inicialmente, olhar para seu desenvolvimento como uma escola de pensamento no período pós-Segunda Guerra Mundial.

• O crescimento dos movimentos pacifistas, na segunda metade do século XX, e as mobilizações em grande escala contra guerras (como na Guerra do Vietnã) favoreceram o aumento do ativismo pelo desarmamento e uma organização mais eficaz de oposição aos conflitos e aos métodos de guerra.

• Os Estudos para a Paz equilibraram o debate em torno da legitimidade e da justificativa para o uso da força. A disciplina manteve o foco moral e ético e desafiou o status quo, por meio estudo comparativo de processos pacíficos e não pacíficos de mudança política e social.

• Para que a “segurança” seja significativa e durável, teria que corresponder a uma estrutura de “paz positiva” ou “estável”. Isso implicaria estabelecer um status além da “paz negativa” e, nesse caso, igualada à ausência de guerra.

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• A abordagem tradicional de Relações Internacionais para “segurança”, especialmente durante a era de quase domínio do paradigma do realismo, foi o foco no Estado como o objeto referente de segurança.

• No início de 1980, surge uma inovação relacionada com o termo “segurança comum”. O termo foi cunhado pelo político alemão Egon Bahr.

• De acordo com uma ética baseada na teoria do “cosmopolitismo”, o que realmente importa é a sobrevivência e o bem-estar dos indivíduos, porém isso raramente pressupõe a defesa da soberania.

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1 As ideias preconizadas no Iluminismo, no século XVIII, serviram como base para os Estudos para a Paz contemporâneos. Entretanto, este campo foi influenciado pelas mudanças das novas realidades no século XX. No que tange às prioridades dos Estudos para a Paz contemporâneos no século XX, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Os conflitos étnicos e religiosos.b) ( ) A política do poder e a segurança militar.c) ( ) As revoluções burguesas e a expansão colonial.d) ( ) O enfraquecimento da Igreja Católica na Europa e a industrialização

inicial.

2 Nos Estudos de Segurança, há divergências, entre os teóricos, das prioridades no que se refere à segurança. Entre as linhas de pensamento com prioridades diversas, uma delas é “cosmopolitismo”. Analise as sentenças a seguir:

I- Os proponentes do cosmopolitismo priorizam a segurança do Estado.II- Os proponentes do cosmopolitismo priorizam a segurança do Estado

contra o terrorismo.III- Os proponentes do cosmopolitismo priorizam a política de expansão do

Estado, por meio de imperialismo informal. IV- Os proponentes do cosmopolitismo priorizam a segurança do ser humano.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As alternativas I e IV estão corretas.b) ( ) As alternativas I e II estão corretas.c) ( ) As alternativas I e III estão corretas.d) ( ) Somente a alternativa III está correta.

3 “O poder é precisamente o elemento informal que passa entre as formas de saber, ou por baixo delas. Por isso ele é dito microfísico. Ele é força, e relação de força, não forma. E a concepção das relações de forças em Foucault, prolongando Nietzsche, é um dos pontos mais importantes de seu pensamento” (DELEUZE, 2012, p. 112). Considere as definições clássicas de poder apresentadas a seguir:

I- “O poder do homem, como entendido universalmente, são seus meios presentes de obter um futuro aparentemente melhor”.

II- “É a probabilidade de que um ator, em um relacionamento social, ocupe uma posição de impor sua vontade a despeito da resistência e independente de justificativa”.

AUTOATIVIDADE

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De acordo com os autores de cada frase, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) I- Karl Marx; II- Hegel.b) ( ) I- Thomas Hobbes; II- Max Weber.c) ( ) I- Max Weber; II- Hegel.d) ( ) I- Karl Marx; II- Antonio Gramsci.

4 O século XX foi o mais violento da história. O número de mortes causadas ou associadas às guerras foi estimado em 187 milhões ou o equivalente a mais de 10% da população mundial em 1913. Considerado o conceito de “breve século XX” de Eric Hobsbawm, a partir de 1914, foi um período de guerra quase ininterrupta, com poucos e breves momentos sem conflito armado em algum lugar do planeta. Foi um século dominado por guerras mundiais, isto é, por guerras entre Estados territoriais ou alianças de Estados. Sobre os Estudos para Paz, disserte sobre suas origens no Iluminismo.

5 Três coisas definiram o mundo pós-Guerra Fria: o primeiro foi o poder dos Estados Unidos; o segundo foi a ascensão da China como centro do crescimento industrial global; e o terceiro foi o ressurgimento da Europa como uma potência econômica integrada. Enquanto isso, a Rússia, o principal remanescente da União Soviética, cambaleou, enquanto o Japão mudava para um modo econômico dramaticamente diferente. Com relação ao mundo pós-Guerra Fria, disserte e contextualize sobre a transição da multipolaridade para a unipolaridade dos Estados Unidos durante os dois mandatos do presidente Bill Clinton (1993-2001).

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TÓPICO 3 — UNIDADE 1

GUERRA, SOCIEDADE E POLÍTICA: PRINCIPAIS ABORDAGENS

1 INTRODUÇÃO

Neste tópico, abordaremos aspectos relacionados à guerra, à sociedade e à política. Incialmente, veremos a guerra como fenômeno social e biológico a partir dos estudos contemporâneos. Em seguida, trataremos da perspectiva teórica da Sociologia na pós-Segunda Guerra Mundial e da guerra e violência no pensamento social clássico, abordando o pensamento de intelectuais clássicos, como Émile Durkheim, que explana os conflitos e o pacifismo, Karl Marx, que expõe sobre o discurso de luta coletiva e revolucionária, e Max Weber, que discute a violência e a existência do Estado.

Por fim, analisaremos os conceitos clássicos de autores especializados na ciência da guerra, no século XIX, como o franco-suíço Antoine-Henri Jomini, que aborda a proposição de um conjunto de regras para alcançar a vitória, e o prussiano Carl Philipp Gottfried von Clausewitz, que trata da guerra como continuação das relações políticas.

2 A GUERRA COMO UM FENÔMENO SOCIAL E BIOLÓGICO INSTITUCIONALIZADO

Ao contrário de outros fenômenos sociológicos relevantes, como classe, etnia, gênero, religião, poder e educação, a guerra, raramente, é tratada em livros de Sociologia. Assim, a guerra só é percebida como um fato, presumivelmente autoexplicativo, ou uma calamidade que dispensa teorização sociológica. Desse modo, os livros didáticos apenas refletem a visão dominante na Sociologia convencional, que percebe a guerra como um resquício do passado ou como uma espécie de anomalia temporária que não requer uma análise mais profunda.

O preconceito da Sociologia contemporânea em relação ao estudo da guerra e da violência se baseia, em parte, no legado das duas guerras mundiais e, particularmente, na rejeição total de seu passado considerado darwinista. No entanto, esse passado é teoricamente muito mais amplo e cheio de recursos do que esse rótulo pejorativo poderia acomodar. As diversas interpretações sociológicas da guerra e da violência como darwinismo social resultaram no abandono do tema pelos sociólogos. Em outras palavras, tentando purgar o suposto darwinismo social de seu campo de estudo, a Sociologia está em uma situação paradoxal: não desenvolveu uma teoria abrangente da guerra que possa desafiar a prevalência atual das interpretações neodarwinistas de guerra e violência.

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

NEODARWINISMO

O Neodarwinismo, também chamado de Teoria Sintética da Evolução ou, ainda, de Teoria Moderna Evolutiva, reúne estudos e conceitos de vários campos da Biologia para determinar e explicar os processos evolutivos. A teoria surgiu no século XX, após os avanços genéticos utilizados para explicar algumas lacunas existentes nas teorias evolutivas da época. Dessa forma, o Neodarwinismo relaciona os estudos em genética, citologia, evolução, paleontologia, botânica e zoologia para sistematizar o processo de evolução e de diferenciação das espécies.

O principal nome do pensamento evolutivo foi Charles Darwin, que estabeleceu a lei da Seleção Natural. Entretanto, Darwin não conseguiu explicar como as características dos indivíduos eram passadas adiante. Com o desenvolvimento da genética, as explicações para a hereditariedade foram surgindo e, atualmente, o neodarwinismo é a teoria evolutiva mais aceita entre os cientistas e estudiosos. [...]

Os estudos em Gregor Mendel, em 1866, só foram redescobertos e reanalisados a partir de 1900. Antes disso, apesar de possuir fundamentos suficientes para algumas pessoas desacreditarem na teoria Darwinista, o estudo possuía algumas controvérsias que só foram explicadas com o desenvolvimento e o estudo da genética. Mendel estudou os caracteres existentes em plantas antes e após a fecundação entre elas. O estudo visava a entender como plantas híbridas expressavam as características vindas das espécies antecessoras. [...]

A Teoria Sintética da Evolução promove a união entre as ideias de Darwin, os estudos de Mendel e os avanços posteriores no campo da genética. Em 1910, Thomas Hunt Morgan, através de estudos utilizando a mosca da fruta, conseguiu estabelecer teorias cromossômicas de herança e de mutação, mas ainda não conseguiu correlacionar com a Seleção Natural proposta por Darwin.

Entretanto, em 1918, Ronald Fisher mostrou como as variações contínuas, ambientais e de espécie resultaram em mudanças nos genes de um cromossomo. Em 1937, um dos estudantes de Morgan, Theodosius Dobzhansky, aplicou a teoria de Morgan, em conjunto com os estudos sobre genética populacional, em organismos da natureza e seu estudo é considerado o primeiro trabalho neodarwinista pleno.

Portanto, o Neodarwinismo mostra que vários fatores podem desencadear variabilidade genética entre indivíduos da mesma espécie [...]. Essas alterações no DNA fazem com que existam indivíduos geneticamente diferentes dentro de uma mesma espécie, os quais podem passar suas características para sua prole, obedecendo as leis mendelianas de dominância. O ambiente, por outro lado, promove condições que selecionam os indivíduos mais aptos que outros a sobreviverem.

Dessa forma, o Neodarwinismo correlaciona as alterações cromossômicas e os conceitos hereditários de Mendel com a Seleção Natural de Darwin e os conhecimentos genéticos e de cromossomos surgidos a partir do século XX.

FONTE: <https://tinyurl.com/y3uls5q7>. Acesso em: 11 nov. 2020.

IMPORTANTE

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TÓPICO 3 — GUERRA, SOCIEDADE E POLÍTICA: PRINCIPAIS ABORDAGENS

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3 A PERSPECTIVA TEÓRICA PÓS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

As ideias darwinistas ser tornaram influentes e populares na atualidade. A mídia de massa, a internet, os filmes de grande sucesso e os livros acessíveis tornaram os princípios centrais da teoria da evolução acessíveis a um público mais amplo.

A disponibilidade de literatura sociobiológica, em conjunto com o enfraquecimento institucional da autoridade religiosa, o aumento contínuo do prestígio da ciência e a crescente disseminação da ética neoliberal da competição individual contribuíram para a popularidade das interpretações biológicas dos fenômenos sociais.

A sociobiologia parte da proposição de que muito do comportamento social tem raízes biológicas como produto de longos períodos de evolução. Nesse sentido, a ação humana é vista como governada pelos mesmos princípios genéticos que direcionam o comportamento dos lagartos ou borboletas. A ideia central é que animais (incluindo os seres humanos) são mais propensos a se comportar de uma maneira que provou ser evolutivamente vantajosa para a espécie em particular.

Os sociobiólogos argumentam que o comportamento social é, em sua maioria, o resultado da seleção natural, por meio do qual um organismo é conduzido à autorreprodução. Assim, os sociobiólogos argumentam que as ações sociais podem ser explicadas com referência à reprodução genética.

O biólogo evolutivo Richard Dawkins (1949-) afirma que os seres humanos e todos os outros animais são máquinas criadas por genes. No entanto, ao contrário do darwinismo clássico, que se concentrava em seleção individual, os sociobiólogos estendem os princípios biológicos da seleção natural para o coletivo. Dessa maneira, o ponto focal muda para os princípios da seleção de parentesco e a ideia de “aptidão inclusiva”, segundo o argumento de que, quando os organismos não podem se reproduzir diretamente, eles o farão indiretamente por meio de seus parentes geneticamente mais próximos (DAWKINS, 1989).

O conceito de aptidão inclusiva é utilizado para explicar o comportamento altruísta; argumenta-se que os irmãos favorecem cada outro sobre seus primos de primeiro ou segundo grau, uma vez que compartilham significativamente mais genes (ou seja, metade para irmãos versus 1/8 para primos de primeiro grau e 1/16 para primos de segundo grau). Mesmo que os sociobiólogos reconheçam a cultura de impacto e meio ambiente tem sobre a vida humana, eles ainda percebem a cultura como secundária à natureza: não há como negar a importância da cultura, mas a cultura é uma superestrutura que se baseia em um substrato biológico. A cultura surge da evolução biológica; não limpa a ficha biológica e começa do zero (VAN DEN BERGHE, 1981).

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

Seguindo os preceitos centrais da teoria da evolução, vários estudiosos desenvolveram uma explicação sociobiológica abrangente da guerra. Dos primeiros trabalhos no pós-Segunda Guerra Mundial a trabalhos contemporâneos mais sofisticadas, a guerra e a violência são entendidas através do prisma da seleção natural. Considerando que os primeiros etologistas pesquisaram os “instintos de luta” e “impulsos agressivos naturais”, os sociobiólogos contemporâneos invocam os genes como os principais agentes do conflito violento. Contudo, o argumento central é constante: a violência humana é apenas uma extensão do comportamento animal, que inclui competição agressiva por recursos ou território, com o objetivo de maximizar o sucesso reprodutivo.

Etologia é a especialidade da Biologia que estuda o comportamento animal.

NOTA

O fundador da sociobiologia moderna, E. O. Wilson (1929-), influenciou consideravelmente a ideia de que os seres humanos são inatamente agressivos e criaturas com tendência à guerra. Em sua opinião, os humanos, assim como outros animais, têm disposições agressivas geneticamente enraizadas, que evoluíram ao longo de milhões de anos. Consequentemente, a instituição da guerra nada mais é do que uma extensão dessa disposição combativa: “Ao longo da história, a guerra, representando apenas a técnica de agressão mais organizada, tem sido endêmica a todas as formas de sociedade, de bandos de caçadores-coletores a nações industrializadas” (WILSON, 1978, p. 101).

Nessa visão, não há distinção entre agressão individual e violência organizada: toda violência é reduzida a impulsos agressivos, quer envolva dominação sexual, defesa do próprio território, agressão predatória na caça, aplicação de hierarquias dentro de um grupo ou “agressão disciplinar” empregada para manter a ordem social em uma sociedade em grande escala.

Para Wilson, a agressão tem uma forte base genética e hereditária, uma vez que evoluiu como uma série de respostas dos sistemas endócrino e nervoso, e é regulado por processos hormonais. Mais especificamente, o comportamento agressivo está ligado a altos níveis de testosterona e baixos níveis de estrogênio, o que levou Wilson a concluir que homens são caracteristicamente agressivos, enquanto geneticamente as meninas estão predispostas a serem intimamente sociáveis e menos fisicamente arriscado (WILSON, 1978).

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TÓPICO 3 — GUERRA, SOCIEDADE E POLÍTICA: PRINCIPAIS ABORDAGENS

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De acordo com essa teoria, a guerra seria uma forma de agressão moldada pelas regras de seleção natural, nas quais os homens arriscam suas vidas para melhorar o potencial reprodutivo de seus próprios genes ou de seus parentes mais próximos (o que envolve proteção de seus companheiros potenciais – mulheres).

Embora haja uma variedade de posições distintas dentro da sociobiologia, é um entendimento geral que a guerra, como outras formas de agressão animal, é universal e, em sua maioria, é um produto de processos biológicos. Enquanto alguns sociobiólogos argumentam que existe, no ser humano, uma “semente genética” da guerra (WILSON, 1978).

Por outro lado, a sociobiologia contemporânea fez alguns avanços no sentido de ser menos determinista. Os princípios neodarwinistas centrais que vinculam fortemente a guerra e a violência organizada à biologia da agressão permaneceriam inalterados. Para os críticos, o principal problema com os argumentos sociobiológicos não é que sejam necessariamente falsos, mas geralmente são insuficientes para explicar a ação social. Embora faça pouco sentido contestar nossa origem genética comum com outros animais e nossa base biológica (tão aparente em nossas necessidades básicas de comer, beber, dormir e procriar), o ponto é que a sociabilidade evoluiu a tais níveis de complexidade que agora envolve camadas distintas de ação social não encontradas no resto do reino animal (GRAY, 1992).

Em outras palavras, a sociobiologia ignora os produtos não intencionais da ação humana, como estrutura social, cultura e ideologia, mas também instituições e organizações sociais, que adquiriram uma autonomia substancial e são capazes de gerar novas dinâmicas sociais. Não é por acaso que os argumentos sociobiológicos parecem mais convincentes quando aplicados ao mundo dos primeiros humanos e mais frágeis ao lidar com os mundos agrário e industrial. A dinâmica cultural e política em constante expansão de eras históricas posteriores ilustra muito bem até que ponto a vida humana foi transformada com o surgimento da civilização. Portanto, a questão-chave é que as explicações biológicas dos fenômenos sociais geralmente não são totalmente equivocadas, mas, sim, insuficientes para dar conta do desenvolvimento social e cultural. Ao reduzir a guerra à agressão e a atitudes como lutar e matar, perde-se a origem social, a função e a estrutura do fenômeno; ao contrário, a agressão é uma resposta psicológica e a guerra é um fenômeno social que requer ação social organizada, intencionalidade coletiva e a sistemática de uso de armas, coordenação linguística sofisticada e ritualismo. De certa forma, a guerra é o oposto da agressão (GRAY, 2007).

A guerra é um mecanismo social que restringe reflexos biológicos e psicológicos, uma vez que necessita do uso organizado de força física para fins políticos específicos. Para entender a guerra, é preciso separá-la de outras ações violentas, pois o que é distinto sobre a guerra é seu caráter sociológico – sua estrutura organizacional e ideológica justificação. O aumento dramático da capacidade humana de lutar em guerras de grande escala (evidenciado nas

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guerras totais do século XX) tem pouco a ver com “agressão natural” e “teias de desejo”, e muito a fazer com construções distintamente humanas, como organizações sociais, políticas instituições, Estado-nação moderno, doutrinas ideológicas e geopolítica (MALEŠEVIĆ, 2010).

Em vez de tratar as guerras de forma voluntarista como produtos do “desejo humano que fundamentam o sistema motivacional humano em geral – apenas por violentos significa” (GAT, 2006, p. 668), a guerra deve ser estudada como um conjunto complexo e altamente contingente de eventos e processos que requerem a mobilização de poder, seres humanos, recursos e tecnologias de produção e comunicação, que se somam a processos e eventos que interrompem dramaticamente a vida social cotidiana e geram novas dinâmicas sociais. A guerra é social, e não um fato biológico. Além disso, embora os sociobiólogos sejam persuasivos, quando empiricamente desmascaram o antigo mito “rousseauniano” do nobre selvagem e do lugar desenvolvimento humano em um contexto evolutivo mais amplo, seu argumento geral, em última análise, falha em sua tentativa de englobar a totalidade da história humana. Embora as premissas centrais da teoria da evolução geralmente tenham muito mais ressonância nas discussões sobre os primeiros períodos do desenvolvimento humano, os sociobiólogos parecem incapazes de convencer quando o mundo moderno é discutido.

Como exemplo, quando Wilson (1978) e Gat (2006) se concentram nas eras agrária e industrial para demonstrar a continuidade da seleção natural, muitas vezes combinam parentesco real e simbólico, contando com a linguagem metafórica e figurativa para ressuscitar o argumento sociobiológico (GAT, 2006). Se a aparente seleção deve ser um modelo explicativo plausível, então não pode mudar entre o real e o simbólico – se não pode ser provado como real, então não é parentesco de forma alguma. Da mesma maneira, sua epistemologia essencialista, que opera com um conceito homogêneo e limitado de um grupo, reduz gênero, etnia e nacionalidade a atributos quase biológicos. Uma vez que a sociobiologia reifica a cultura e a sexualidade, ela não é capaz de explicar a relação entre gênero e guerra nem o desenvolvimento do grupo coesão e nacionalismo em tempos de conflitos violentos (MALEŠEVIĆ, 2010).

4 GUERRA E VIOLÊNCIA NO PENSAMENTO SOCIAL CLÁSSICO

Na atualidade, os especialistas criticam os sociólogos clássicos por ignorarem o estudo da guerra e da violência coletiva. Os sociólogos Clive Ashworth e Christopher Dandeker afirmam que, dada a onipresença da guerra e da violência na história, surpreende que seu estudo tenha permanecido na periferia da análise sociológica (ASHWORTH; DANDEKER, 1987). O motivo mais comum atribuído a essa negligência é a herança do Iluminismo, supostamente compartilhada por todos os principais teóricos sociais que analisam a modernidade em termos de racionalidade universal, crescimento econômico, progresso científico e paz. Em

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TÓPICO 3 — GUERRA, SOCIEDADE E POLÍTICA: PRINCIPAIS ABORDAGENS

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vez de serem vistas como regulares e características estruturalmente intrínsecas da vida social, guerra e violência foram, em grande parte, percebidas como irracionais, facetas atávicas da era primitiva que desapareceriam com a chegada e a disseminação da modernidade.

Dessa maneira, a aparente negligência da Sociologia em relação aos estudos da guerra é uma consequência da evolução do pensamento social e político após a Segunda Guerra Mundial. No entanto, o pensamento social clássico era, na verdade, muito mais amplo e menos “pacifista” do que a trindade Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim, que dominaram o cânone sociológico após a Segunda Guerra Mundial.

É difícil, senão impossível, disputar a originalidade, a sofisticação, a complexidade e a aplicabilidade das ideias e dos modelos de Marx, Weber e Durkheim, que foram aceitos com base em seus modelos conceituais, teorias e estruturas analíticas. O desgosto pela guerra e violência, por parte do público em geral, foi compartilhado por muitos sociólogos pós-Segunda Guerra Mundial, e isso ajudou a redirecionar os principais interesses de pesquisa da disciplina para longe daqueles que dominavam o fin de siècle. Portanto, em vez de “luta racial”, “seleção de grupo por meio da violência”, nacionalismo, poligenia, diferença cultural e biológica, e guerra, os sociólogos ficaram preocupados com a estratificação social, a desigualdade de gênero, o bem-estar, a racionalização, a secularização, a urbanização e os sistemas normativos.

5 A VISÃO DE DURKHEIM SOBRE OS CONFLITOS E O PACIFISMO

Émile Durkheim (1858-1917), como um descendente direto da tradição do Iluminismo, foi influenciado pela ideia de inevitabilidade do progresso humano e do pacifismo. Seu trabalho se concentrou nos mecanismos coletivos que produzem e reproduzem a solidariedade. Para Durkheim, o avanço social se baseou em complexas redes de solidariedade de mútua interdependência. Além disso, para ele, os seres humanos são criaturas guiadas por normas. Portanto, os conflitos consensuais e sociais seriam a exceção, e não a regra. Consequentemente, o que caracteriza a chegada da modernidade seria marcado pela formação de um consenso (solidariedade) superior.

Em tal contexto, não haveria lugar para a violência coletiva, por isso, Durkheim interpretava a guerra como uma aberração e um anacronismo destinado a desaparecer: “na guerra, temos algo de uma sobrevivência anômala e, gradualmente, os últimos vestígios dela serão eliminados” (DURKHEIM, 1986, 43). “A guerra durante este tempo, exceto por alguns contratempos [...] tornou-se cada vez mais intermitente e menos comum” (DURKHEIM, 1986, 53). Na linha do pensamento evolutivo, ele argumentava que a industrialização e o desenvolvimento tecnológico requeriam a promoção da paz, que a violência

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

pertencia a um mundo agrário pré-moderno e que, assim, não teria lugar na ordem social moderna. Entretanto, fez duas valiosas contribuições sociológicas para a guerra e a violência organizada, que derivam diretamente de sua teoria da solidariedade.

A primeira contribuição foi um estudo sobre suicídio, que comprovou que os números de mortes na guerra e devido ao suicídio, em períodos de conflito armado, são inversamente proporcionais, argumentando que, com exceção do “suicídio altruísta” (por exemplo, os kamikazes japoneses), o início da guerra leva regularmente a reduções significativas nas taxas de suicídio. Isso ocorreria, segundo Durkheim, porque as guerras, particularmente as nacionais, fortalecem as relações sociais e morais de integração da sociedade.

grandes guerras populares despertam sentimentos coletivos, estimulam o espírito partidário e o patriotismo [...] e concentram as atividades para um único fim [...] causam uma forte integração da sociedade [...]. À medida que forçam os homens a cerrar fileiras e enfrentar o perigo comum, o indivíduo pensa menos em si mesmo e mais na causa comum (DURKHEIM, 1986, p. 208).

Dessa maneira, a intensificação da integração política e moral reflete diretamente na redução das taxas de suicídio, egoísta e anômico, entre vencedores e perdedores. Em segundo lugar, o início da Primeira Guerra Mundial, com sua brutalidade sem precedentes foi um choque para Durkheim e sua teoria de solidariedade. Ele, então, argumentou que Primeira Guerra Mundial teria sido um estado temporário e patológico ou uma situação anômica, em grande escala, que teria levado ao renascimento da solidariedade mecânica (DURKHEIM, 1986). A origem dessa patologia foi atribuída a “uma mentalidade belicosa guerra alemã”, que Durkheim percebeu como uma anomalia que destruiu o desenvolvimento orgânico e evolutivo da civilização humana. Assim, a guerra foi uma hipertrofia do espírito militarista alemã (DURKHEIM, 1986, p. 45).

Durkheim diferencia basicamente três tipos de suicídio:

• Suicídio egoísta: é um ato que se reveste de individualismo extremado. É o tipo de suicídio que predomina nas sociedades modernas e, em geral, é praticado por aqueles indivíduos que não estão devidamente integrados à sociedade e geralmente se encontram isolados dos grupos sociais (por exemplo, família, amigos, comunidade).

• Suicídio altruísta: é um ato em que o indivíduo está tomado pela obediência e força coercitiva do coletivo, seja ele um grupo social restrito ao qual pertence ou mesmo a sociedade como um todo. Um exemplo típico de suicídio altruísta é o caso dos soldados japoneses que lutaram na Segunda Guerra Mundial.

IMPORTANTE

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• Suicídio anômico: representa mais propriamente uma mudança abrupta na taxa normal de suicídio, geralmente marcado por uma vertiginosa ascensão do número de suicídios que ocorrem em períodos de crises sociais (por exemplo, o desemprego) ou processos de transformações sociais.

FONTE: <https://tinyurl.com/y4s5olas>. Acesso em: 11 nov. 2020.

As críticas de Durkheim tinham como alvo Heinrich Treitschke (1834-1896), que representava a intelectualidade militarista alemã, a qual postulava o poder ilimitado do Estado, além das normas sociais.

No entanto, seu objetivo era, de fato, muito mais amplo e abrangia toda a tradição realista do pensamento social e político, de Maquiavel a Treitschke e além, que tentou separar o Estado de sociedade e seu universo moral. Nessa tradição intelectual, “o Estado não está sob a jurisdição da consciência moral e não deve reconhecer nenhuma lei, mas seu próprio interesse” (DURKHEIM, 1986, p. 18).

Entretanto, o próprio Durkheim observava que o Estado é uma autoridade moral, por excelência, que está simultaneamente enraizado na autonomia moral e individual, sendo produto dessa autonomia e sua salvaguarda: “é o Estado que redime o indivíduo e a sociedade [...]. O dever fundamental do Estado é [...] perseverar na vocação do indivíduo para um modo de vida moral” (DURKHEIM, 1986, p. 69).

Consequentemente, seu pacifismo não era um ideal flutuante, mas estava profundamente enraizado em sua teoria de solidariedade. Para Durkheim, o pacifismo estava ligado a uma organização específica forma, Estado-nação (patrie), e qualquer tentativa de evitar a guerra, invocando o internacionalismo, estava fadada ao fracasso, pois “não podemos viver fora de uma sociedade organizada, e a mais alta sociedade organizada que existe é a patrie, enquanto o internacionalismo é muitas vezes a rejeição, pura e simples, de uma sociedade organizada” (DURKHEIM, 1986, p. 101).

Em outras palavras, para entender e, portanto, prevenir a guerra, é preciso compreender os mecanismos de solidariedade institucionalizada que nunca podem ser obliterados, mas apenas transformados, de modo que a “pátria nacional” envolva a “pátria europeia” ou a “pátria humana”. Resumindo, para Durkheim, a guerra está inevitavelmente ligada ao funcionamento do grupo solidariedade e, para explicar a guerra e a violência em grande escala, é preciso enfrentar os mecanismos de solidariedade humana.

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6 A VISÃO MARXISTA E O DISCURSO DE LUTA COLETIVA E REVOLUCIONÁRIA

A marginalidade do conflito e a violência na pesquisa de Durkheim contrasta com os trabalhos de Karl Marx e Max Weber. Eles são considerados, na Sociologia, os pioneiros da “teoria do conflito” e foram influenciados pelo pensamento político realista ocidental, que enfatizou a coerção e a materialidade da ação humana.

Embora o núcleo da teoria da mudança social de Marx seja firmemente localizado nas fundações socioeconômicas da modernidade, ele estava bem ciente da importância histórica da violência na transformação das ordens sociais. Enquanto sua preocupação principal era com a ótica do conflito de classes, o que ele viu como o declínio inexorável do capitalismo, e o destaque que deu à mudança revolucionária de “formações sociais” existentes, inevitavelmente, implicava o interesse da violência coletiva.

Karl Marx (e ainda mais Friedrich Engels) era versado em História Militar, com apreciação pela teoria da guerra de Clausewitz. Talvez, por isso, adotou um discurso militarista de luta coletiva e revolucionária como essencial para a luta de classes (SEMMEL, 1981). No entanto, como a luta de classes estava ligada à transformação dos modos de produção e sua propriedade, o foco central não era tanto incapacitar a burguesia em uma guerra real, mas, sim, se apropriar e redistribuir sua propriedade. Consequentemente, a linguagem da violência foi empregada em um sentido metafórico, por exemplo, “guerra de classes” ou “preços baratos como a artilharia pesada da burguesia” (MARX; ENGELS, 1998, p. 41-42), ou no contexto dos processos que aceleram a chegada inevitável de uma ordem comunista pacífica.

Apesar da abundância de retórica militarista nas obras de Marx e Engels, eles associavam a violência ao breve estágio final da sublevação revolucionária: “quando a luta de classes se aproxima da hora decisiva, o processo de dissolução acontecendo dentro da classe dominante [...] assume tal violência, personagem gritante” (MARX; ENGELS, 1998, p. 45). Mesmo nessa situação, o uso da força foi definido e justificado em termos defensivos como uma reação a um estado capitalista intrinsecamente coercivo e a uma brutalidade da burguesia. Como o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) observou, a compreensão marxista da violência revolucionária foi conceituada (e legitimada) na premissa de que seu uso facilitaria a eliminação de toda a violência, a longo prazo e, em particular, a forma dominante da violência inerente ao capitalismo (MERLEAU-PONTY, 2017).

No entanto, Marx e Engels trazem dois pontos sociologicamente relevantes da relação entre guerra, violência e Estado moderno. Primeiramente, em um processo semelhante à experiência de Durkheim com a Primeira Guerra Mundial, a compreensão de Marx sobre guerra e violência mudou durante e após o curto experimento da Comuna de Paris (1871). Refletindo, na Guerra Civil na França,

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de 1871, sobre o fracasso desse “estado dos trabalhadores”, Marx argumenta que a violência é parte integrante da modernidade e, mais especificamente, da modernidade capitalista. Por isso, destaca o papel dos aparatos coercitivos do Estado moderno como sendo decisivo na transformação de qualquer ordem social.

A brutalidade com que a Comuna de Paris foi esmagada deixa claro para Marx que “o trabalho classe não pode simplesmente tomar posse da máquina de Estado pronta e manejar para seus próprios fins” (MARX; ENGELS, 1988, p. 54). Em vez disso, a transferência de poder da burguesia ao proletariado exigiria a destruição das estruturas existentes do estado e de sua recriação sob princípios revolucionários.

Em outras palavras, Marx detectou a ligação inerente entre o econômico e os fundamentos políticos e ideológicos das ordens sociais na modernidade. Não obstante, em seus trabalhos anteriores a violência era efêmera e, a partir de certo ponto, assumiu o centro das atenções, já que Marx interpreta o Estado principalmente como um aparato coercitivo do capitalismo. Nesse contexto, o capitalismo não pode ser abolido sem a eliminação de sua base estrutural coercitiva: o próprio aparelho de Estado. Richard Drake argumenta sobre a ideia de violência de Marx: “A violência do Estado justifica uma resposta violenta do proletariado, pois é assim que a causa revolucionária avança” (DRAKE, 2003, p. 27).

Gradualmente, Marx torna-se ciente do poder centralizado do Estado-nação na Era Moderna e contempla a adoção de uma estratégia semelhante à da burguesia durante a Revolução Francesa, isto é, demolir a máquina do Estado. No entanto, ao contrário de seu predecessor burguês, essa nova política deveria ser substituída por “uma ditadura do proletariado” como vanguarda política, econômica e ideológica, enquanto sua base militar seria o povo armado.

O conceito de “povo armado” como os únicos e legítimos “agentes responsáveis da sociedade” é importante, pois dá início a uma doutrina militarista da “milícia proletária”, mais plenamente articulado na teoria e estratégia de Lenin, Mao Tsé-Tung e Lin Biao de “proletariado armado” e “guerrilha camponesa”, que foi decisiva pela tomada comunista do poder estatal na Rússia e na China.

Portanto, apesar dos fundamentos economicistas de sua teoria, Marx reconheceu que o maior agente da violência na modernidade capitalista é o poder coercitivo do Estado-nação. Por último, seguindo os passos do primeiro materialista “dialético”, Heráclito de Éfeso (500-450 a.C.), Marx e Engels percebem na violência um mecanismo de rápida mudança. Como Marx coloca em O capital: “Força é a parteira de cada velha sociedade grávida de uma nova” (MARX; ENGELS, 1998, p. 376).

A nova ordem social não pode ser criada antes que a antiga seja destruída. No final do Manifesto Comunista, fica claro que os fins só podem ser alcançados pela derrubada violenta de todas as condições sociais existentes.

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No entanto, para os marxistas, a violência e a guerra estão fortemente ligadas aos modos específicos de produção. Na refutação da teoria da força do filósofo alemão Karl Eugen Dühring (1833-1921), Engels afirmava que a violência é entendida como baseada no poder econômico. Assim, os exércitos e marinhas, a organização, as táticas e estratégias de guerra são todos dependentes das pré-condições econômicas. Mais especificamente: “sempre e em todo lugar são as condições econômicas e os instrumentos de força que ajudam a ‘forçar’ a vitória, e sem elas, a força deixa de ser força” (MARX; ENGELS, 1998, p. 55).

Nessa visão, a expansão histórica da guerra e do militarismo repousa sobre a invenção científica e o desenvolvimento tecnológico, exigindo, por sua vez, enormes investimentos financeiros.

Consequentemente, o capitalismo é visto como a espinha dorsal da produção de armas, como “o dinheiro deve ser fornecida por meio da produção econômica; e então, mais uma vez, a força é condicionada pela ordem econômica” (MARX; ENGELS, 1998, p. 49).

Para recapitular, Marx não estava alheio à guerra e à violência – ele as via como um gerador significativo de transformação social na história, um poderoso veículo do poder do Estado na era moderna, e um importante instrumento da economia capitalista estrutura.

7 A PERSPECTIVA WEBERIANA DA VIOLÊNCIA E DA EXISTÊNCIA DO ESTADO

Fundado, em parte, em uma ontologia nietzschiana, a teoria social de Max Weber enfatiza fortemente o caráter coercitivo da vida política. Weber não apenas vincula o poder à violência e o estado moderno à força física, mas também vê as relações sociais através do prisma dos valores finais irreconciliáveis.

No pensamento de Weber, a violência tem origens materiais e ideais: a irracionalidade inerente a weltanschauung (cosmovisão) é frequentemente decidida no campo de batalha, enquanto a gênese do capitalismo e da racionalidade instrumental no Ocidente está ligada, em parte, à multipolaridade dos Estados feudais militaristas europeus.

Weber não elabora uma teoria da violência coletiva ou guerra e sua visão da modernidade privilegia a racionalização estrutural e, consequentemente, critica a destruição e a irracionalidade do derramamento de sangue. No entanto, seus conceitos-chave como racionalidade, burocracia e prestígio cultural têm origens militaristas. Nesse contexto, Weber fez pelo menos quatro contribuições vitais para a compreensão da relação entre guerra, violência e modernidade.

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Em primeiro lugar, seu estudo do nascimento e da expansão da modernidade via racionalização está ligado à violência estrutural. O desenvolvimento do Ocidente e o racionalismo, graças ao aperfeiçoamento de técnicas e práticas disciplinares, devem muito à guerra. Como Weber observou: “a disciplina militar dá origem a toda disciplina” (WEBER, 1968). Em sua análise, ambos, o desenvolvimento tecnológico e o crescimento econômico, exigem disciplina social e ação. Portanto, as transformações no campo da guerra acabariam influenciando a transformação de ordens sociais inteiras, notadamente na ética e prática disciplinar. Sobre a disciplina, Weber afirmaria que:

A sobriedade e a disciplina puritana racional tornaram as vitórias de Cromwell possíveis [...] pólvora e todas as técnicas de guerra [...] tornam-se significativas apenas com a existência de disciplina [...] o impacto variável da disciplina na condução da guerra teve efeitos ainda maiores sobre a ordem política e social (WEBER, 1968, p. 1152).

Especificamente, a disciplina militar, com sua crescente racionalização, é vista por Weber como a base de um sistema de organização burocrática nos Estados europeus modernos. Ele também desenhou paralelos entre a disciplina militar e a fábrica capitalista, argumentando que, sem práticas disciplinares, o processo de racionalização seria impensável. Portanto, a disciplina, inexoravelmente, se expande para satisfazer as necessidades políticas e econômicas cada vez mais racionalizadas (WEBER, 1968).

Em segundo lugar, para Weber, não há política que, em última instância, não esteja enraizada na força ou na ameaça de seu uso. Assim, a violência é vista como a razão de ser do Estado. O Estado moderno é definido em termos da posse do monopólio sobre o uso legítimo da força dentro de um determinado território e Weber entende o Estado não como uma substância, mas, exclusivamente, através de seus meios violentos. Não obstante, a ordem social se baseia em três pilares: legitimidade, comércio e coerção, o que distingue a vida política de outras esferas da atividade humana é o uso ou ameaça de violência (WEBER, 1968).

De acordo com Weber, com o avanço do processo de racionalização, a esfera política tende a se separar das esferas econômica, estética ou religiosa, nas quais o Estado desenvolveria sua própria ética para competir com os universos morais dessas esferas. É, portanto, no contexto da guerra que a esfera política prova sua autonomia, ética e poder de mobilização. Além disso, a guerra se transforma em um fenômeno de massa, rompendo barreiras sociais, ao liberar sentimentos como compaixão e amor para os mais necessitados (WEBER, 1968).

A guerra cria o que pode ser chamado de “comunidade até a morte”, transformando o sentimento individual sobre a inevitabilidade da morte em um sacrifício por uma causa específica e nobre.

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Em outras palavras, apesar de sua destrutividade cataclísmica, a guerra cria condições para o sacrifício individual e coletivo, aumentando, assim, o significado da vida social e proporcionando dignidade para que o corpo político exerça violência (WEBER, 1968). Em terceiro lugar, a ascensão da racionalidade ocidental, para Weber, é estruturalmente originária dos estados feudais europeus e de sua estrutura social de senhores, vassalos e feudos. Ao contrário de Marx, que entendia o feudalismo em termos econômicos, Weber o via, principalmente, como uma ordem baseada em uma organização militar distinta, definida pela: “classe dominante dedicada à guerra ou serviço real apoiada por propriedades de terra e privilégios” (WEBER, 1968, p. 38).

Finalmente, para Weber, a guerra é uma fonte importante de mudança social e está intimamente ligada ao conceito de prestígio: “prestígio cultural e prestígio de poder estão intimamente associados. Cada guerra vitoriosa aumenta o prestígio cultural (do Estado)” (WEBER 1968, p. 926).

Historicamente, define-se como “uma guerra em nome de Deus”. Embora já presente na Antiguidade, foi com a chegada dos sistemas religiosos monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) que o conceito de “guerra santa” se tornou predominante como forma de apelar para uma ideia de superioridade coletiva de status. No entanto, com a racionalização gradual da vida social, a guerra, como acontece com outras formas de ação, torna-se rotinizada, instrumental e burocrática; o que caracteriza os exércitos modernos não são as demonstrações pessoais e emocionais de bravura, mas uma eficiente burocracia maquinaria de guerra (WEBER, 1968).

Na análise de Weber, a guerra como uma atividade social não pode escapar à lógica universal de racionalização que afeta todas as esferas da vida humana. Essa breve visão geral da “trindade” Marx, Durkheim e Weber demonstra que eles não ignoravam a importância sociológica da guerra e violência. Considerando que a consciência de Durkheim da beligerância reforçava seu interesse nos mecanismos alternativos “pacifistas” de solidariedade, Weber e Marx entenderam a violência e a guerra como dispositivos poderosos de mudança social. Embora eles não tenham desenvolvido teorias completas sobre a violência coletiva e a guerra, suas contribuições continuam indispensáveis.

Além disso, a natureza de suas análises e seu envolvimento em debates sobre essas questões indicam algo ainda mais relevante – eles estavam refletindo sobre as ideias dominantes, principalmente “belicosas”, de seu tempo. “Belicoso” não apenas para mostrar que, ao contrário do popular acadêmico, esta foi uma pesquisa dominante e paradigma explicativo de sua época, mas também para demonstrar sua relevância intrínseca para a Sociologia contemporânea.

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Embora muito desse legado seja esquecido, a Sociologia política contemporânea deve implicitamente muito à tradição “belicosa” clássica do pensamento social, tema que será discutido na Unidade 2.

ESTUDOS FUTUROS

8 AS TRANSFORMAÇÕES DA NATUREZA DA GUERRA, SEGUNDO CLAUSEWITZ

A teoria do militar prussiano, Carl von Clausewitz (1780-1831), apesar dos elementos encontrados em teóricos anteriores, pode ser considerada um trabalho original. Em sua obra inacabada Da Guerra, Clausewitz explicou a natureza da guerra, como ela perdura no tempo, suas circunstâncias e, até mesmo, seu caráter mutante. Ele enfatizou a unidade lógica e eficaz entre política e guerra e a dimensão moral da guerra, insistindo que a guerra tem que ser um duelo entre vontades antagônicas, mas que está sujeita ao acaso, ao risco e à incerteza, por ele denominada como “fricção”. Seu trabalho não está livre de críticas, mas a maioria dos estudiosos e militares concordam que sua grande contribuição foi elaborar uma teoria geral de guerra e estratégia superior às teorias de todos os seus rivais.

Parecerá estranho, até implausível, que um livro incompleto, escrito na década de 1820, possa permanecer tão relevante no século XXI. Entretanto, como cientista político, segundo Richard Betts, “Clausewitz sozinho vale por um ônibus cheio de teóricos” (BETTS, 1997, p. 29). Clausewitz procurou educar a mente do soldado, para que ele se tornasse equipado intelectualmente para resolver problemas. Militares, em qualquer época, apesar de valorizarem a compreensão da natureza da guerra e da estratégia, se preocupam mais em encontrar respostas para as dificuldades estratégicas do momento.

Clausewitz deu respostas brilhantes a perguntas que raramente ou nunca se fazem. Os militares e os políticos que os comandam precisam saber como vencer ou, pelo menos, como evitar derrotas trágicas. Assim, Clausewitz não priorizou o estudo da natureza da guerra – a principal razão, no século XIX, para que seu rival contemporâneo, mais longevo e mais prolífico, o Barão Antoine Henri de Jomini (1779-1869), fosse tão popular. Jomini provê, ou pretendia prover, os militares com conceitos e ferramentas para a vitória.

No entanto, na década de 1870, a reputação de Jomini foi eclipsada pela de Clausewitz, em parte, graças às vitórias alemãs nas três guerras da unificação da Alemanha (1864, 1866 e 1870-1871). De maneira deliberada, Clausewitz não escreveu um “livro de receitas” de estratégia, um manual de instruções passo a passo para a vitória, porque, na guerra, é necessário um homem de ação, e não um estudioso.

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Um intelecto poderoso é geralmente uma vantagem para um general, mas as qualidades necessárias não são, de forma alguma, restritas ao aspecto intelectual. Um bom intelecto deve ser governado por uma vontade irresoluta. Uma teoria geral de guerra e estratégia, não importa a qualidade, não pode, de fato, ir direto para o mundo da violência aplicada (CLAUSEWITZ, 1976).

Por outro lado, o pensamento estratégico é importante. O sociólogo francês Raymond Aron afirmou de forma categórica que: “o pensamento estratégico se inspira a cada século, ou melhor, a cada momento da História, dos problemas surgidos em razão dos eventos contemporâneos” (ARON, 1976, p. 25). Portanto, consistente com a teoria geral da guerra de Clausewitz, os últimos dois séculos produziram uma infinidade de problemas particulares que exigiram respostas inovadoras no pensamento estratégico.

Bernard Brodie (1974) afirma que o pensamento estratégico (teoria) é pragmático. Estratégia é um estudo de “como fazer”, um guia para realizar algo e fazê-lo de forma eficiente. Como em muitos outros ramos da política, a questão que importa na estratégia é: a ideia funciona? Mais importante, será provável que funcione em circunstâncias especiais sob o qual será testado em seguida? (BRODIE, 1974). Militares e estadistas educados pela teoria geral da guerra de Clausewitz podem se frustrar se entenderem que a guerra deve servir à política ou a natureza da guerra pode frustrar suas intenções estratégicas. Em tempo de guerra, a necessidade é urgente, sendo necessário acelerar o ritmo de experimentação e disposição para assumir grandes riscos. Assim, a crença de que os militares são obstinados e conservadores, em tempos de paz, é uma falácia, pois as evidências de inovações promovidas pelos militares, nesses períodos, são avassaladoras.

O debate sobre se o trabalho de Clausewitz conseguiu transcender a marca de seu tempo, sua experiência pessoal e sua cultura e circunstâncias, de certa maneira, se sustentam. Afinal, Da Guerra é um livro escrito por um oficial do exército com mentalidade europeia, dedicado à causa de sua Prússia natal. Ele abominava, mas admirava, Napoleão e a França. Além disso, foi muito influenciado pelo movimento romântico alemão, que, de certa forma, contrastava com o viés mais racional do Iluminismo, que dominou a teoria da guerra no século XVIII. Clausewitz também sentiu o trauma da derrota prussiana para Napoleão, na Batalha de Jena, em 14 de outubro 1806. Seus trabalhos subsequentes, em nome da reforma do Exército prussiano como assistente do marechal Gerd von Scharnhorst, refletem seu reconhecimento da necessidade de mudança radical.

A obra Da Guerra está longe de ser perfeita, como o autor foi o primeiro a reconhecer, mas o teste para grandeza, para o status de clássico, não é atingir o padrão impossível da perfeição. É suficiente que Clausewitz pareça estar certo das principais questões que afetam a natureza e a mudança de caráter da guerra.

Em um plano superior, há uma teoria geral da guerra e estratégia para todos os tipos de guerra, para por todos os agentes beligerantes, usando todos os tipos de armamentos e táticas em todos os períodos históricos. Contudo, o

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Da Guerra não aborda as preocupações específicas de políticos e militares, e isso não é uma fraqueza. Se Clausewitz escrevesse o melhor manual de conselhos estratégicos possível, seu trabalho seria efêmero (datado). Seus conselhos teriam sido úteis apenas no contexto militar de sua época.

No plano inferior, em contraste, Clausewitz é brilhante e inestimável, mas como lutar com sucesso em uma guerra terrestre contra um inimigo entrincheirado que não tem flancos, como aconteceu na Frente Ocidental, na Europa, entre, 1916 e 1918? Ou como o Exército britânico expulso, de maneira humilhante, da Europa continental, em maio/junho de 1940, poderia continuar a guerra com esperança de vencer? As perguntas e respostas estratégicas não são de natureza filosófica sofisticada, e sim extremamente práticas.

9 OS ESTUDOS DE JOMINI E A PROPOSIÇÃO DE UM CONJUNTO DE REGRAS PARA ALCANÇAR A VITÓRIA

Clausewitz não tem rival em sua articulação da natureza da guerra e da estratégia. Na verdade, sua reputação como o mais influente teórico da guerra é inconteste. Ele visou a educar a mente, e não a aconselhar diretamente para a ação. Entretanto, antes de delinear os elementos essenciais da teoria da guerra de Clausewitz, seria importante conhecer mais de seu rival, Antoine Henri de Jomini. Afinal, o que Jomini teria oferecido aos militares, desde o início do século XIX até hoje, de tão irresistível? Ao contrário de Clausewitz, Jomini prometeu ensinar os militares a vencer e, ao contrário do prussiano, ele abstraiu a ciência militar, ou a arte da guerra, de seu contexto. Sua teoria foi apresentada como orientação profissional atemporal, supostamente imune às mudanças das condições políticas.

Com base em seu estudo e observação das campanhas de Napoleão, Jomini propôs um conjunto de regras, apresentadas como princípios, que ele afirmava que levariam à vitória. Isso era o que os militares queriam e ainda querem saber: como ganhamos? Jomini “propôs mostrar que há um grande princípio subjacente todas as operações de guerra, um princípio que deve ser seguido” (JOMINI, 1992, p. 70).

O único grande princípio de Jomini sustentava que um comandante deveria se lançar a massa de seu exército contra uma fração das forças inimigas no “ponto decisivo” no momento certo e de forma decisiva.

Jomini foi o autor de um conjunto de princípios de guerra para os quais reivindicava autoridade universal. Ele, ao contrário de Clausewitz, viveu o suficiente para ter que lidar com o impacto, em sua teoria, das novas tecnologias produzidas entre 1831 e 1869. No entanto, ele continuou insistindo que os princípios básicos da guerra, elaborados por Napoleão, e codificados por ele, sobreviveriam a todas as mudanças tecnológicas. Portanto, todos os exércitos modernos professam os “princípios de guerra” elaborados por Jomini.

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

A melhor estratégia é sempre ser muito forte; primeiro no geral e depois no ponto decisivo. Além do esforço necessário para criar força militar, o que nem sempre emana do geral, não há lei de estratégia mais elevada e mais simples do que a de mantendo suas forças concentradas. Nenhuma força deve ser desligada do corpo principal, a menos que a necessidade seja definitiva e urgente –nos apegamos a esse princípio e o consideramos um guia confiável (CLAUSEWITZ, 1976).

Embora teoricamente mais sofisticado, o trabalho de Clausewitz compartilha semelhanças com o de Jomini. Michael Handel, especialista em guerra naval, fez uma comparação acadêmica meticulosa entre os trabalhos de Clausewitz, Jomini e Sun-Tzu, afirmando que: “Jomini representou uma abordagem positivista, se não mecânica, do estudo da guerra, mas uma comparação cuidadosa, do trabalho de Jomini com Sun Tzu e Clausewitz, indica que estes três estrategistas estão em acordo na maioria das questões fundamentais” (HANDEL, 2001, p. 3).

10 A GUERRA COMO CONTINUAÇÃO DAS RELAÇÕES POLÍTICAS: A “NÉVOA DA GUERRA” (NEBEL DES KRIEGES)

A teoria da guerra de Clausewitz é considerada a partir de duas perspectivas amplas: o que trata da relação entre política e guerra e a natureza da guerra em si. A primeira perspectiva a ser investigada é a máxima de Clausewitz do elo indissolúvel entre política e guerra. Ele insiste que “a política é única fonte de guerra” e que “a guerra é simplesmente uma continuação das relações políticas, com a adição de outros meios”, então argumenta que “a política converte o esmagadoramente destrutivo elemento da guerra em um mero instrumento” e que “Se a guerra faz parte da política, a política determinará seu personagem” (CLAUSEWITZ, 1976, p. 605-606).

Em contraste, a teoria moderna de coerção estratégica prevê uma “diplomacia da violência”. Para Clausewitz, a guerra pode ser um instrumento político, em primeiro e último lugar, e adverte que a política deve sempre manter domínio soberano sobre a guerra. Política, portanto, permeará todas as operações militares e, na medida em que sua natureza violenta admitir, terá uma influência contínua sobre eles (CLAUSEWITZ, 1976, p. 87).

Clausewitz, na primeira página de Da Guerra, afirma que guerra nada mais é do que um duelo em maior escala e seu propósito é impor nossa vontade sobre o inimigo. Em uma guerra por um objetivo político ilimitado, a rendição incondicional de Alemanha nazista, por exemplo: “devemos tornar o inimigo impotente” (CLAUSEWITZ, 1976, p. 75). Todavia, em uma guerra para objetivos políticos mais limitados, o objetivo não é causar a ruína militar do inimigo, mas, sim, para coagi-lo a se render.

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O domínio histórico desse texto fornece uma ampla ilustração negativa da sabedoria na explicação de Clausewitz da conexão adequada entre política e guerra. Por exemplo, nas duas guerras mundiais, a Alemanha perdeu a perspectiva política e travou guerras mais como um fim, em si mesmo, do que por motivos políticos razoáveis e objetivos plausivelmente possíveis. A história da estratégia está repleta de casos de beligerantes que subestimam a força de seu oponente, particularmente a sua vontade de resistir. A teoria de Clausewitz sustenta que, embora seja uma esperança vã, um certo nível de compreensão dos assuntos militares é vital para os responsáveis pela política geral (CLAUSEWITZ, 1976, p. 608).

A “névoa da guerra” é a incerteza das capacidades e planos do inimigo. É também o caos que ocorre entre as forças aliadas quando ordens são mal interpretadas.

NOTA

Uma maneira de compreender a natureza permanente da teoria da guerra de Clausewitz é abordar holisticamente, como ele fez. O mais importante de suas ideias sobre a natureza da guerra é a sua trindade da violência, inimizade e paixão, chance e oportunidade e razão. O clima de guerra, compreendendo perigo, esforço, incerteza e acaso e atrito, o que explica a diferença entre “guerra real” e “guerra no papel” (CLAUSEWITZ, 1976, p. 104).

A esses pilares centrais da teoria de Clausewitz, a trindade, o clima de guerra e o atrito se deve adicionar o conceito da “névoa da guerra” (CLAUSEWITZ, 1976, p. 101); sobre a importância das qualidades morais dos líderes militares na tese de que os beligerantes têm centro de gravidade e nas distinções entre, a lógica política e a gramática (conjunto de prescrições e regras) da guerra.

O cerne da teoria de Clausewitz é sua proposição de que toda guerra é impulsionada por relações instáveis em constante mudança entre a trindade de paixão e inimizade, chance e criatividade, e razão e política. Portanto, seria necessário desenvolver uma teoria que equilibrasse essas três tendências, tendo em vista que, apesar de a política ser responsabilidade do governo, no mundo moderno ela é influenciada por uma opinião pública, que pode se revelar volátil. Além disso, a política pode ser mudada pelos militares que estão moldando a estratégia, em um processo de diálogo com políticos.

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

FIGURA 6 – BATALHA DE MOSCOU, DE 1812 – CLAUSEWITZ LUTOU, NESSE CONFRONTO, A SERVIÇO DO IMPÉRIO RUSSO CONTRA NAPOLEÃO

FONTE: <https://tinyurl.com/y354n33f>. Acesso em: 11 nov. 2020.

Alguns especialistas contemporâneos sugerem que vivemos em uma era “pós-clausewitziana”, porque, supostamente, a guerra não é mais uma empreitada conduzida por governos com exércitos. Esse argumento defende que o Estado está em declínio e, em certa medida, a guerra contemporânea estaria sendo travada por entidades não estatais, com objetivos não relacionados ao interesse nacional. No entanto, uma leitura cuidadosa, Clausewitz revela que sua trindade primária compreendia paixão, acaso e razão. O povo, o exército e seu comandante e o governo devem ser vistos como uma trindade secundária.

Clausewitz defendia que a guerra tem um “clima” permanente e único, e que toda guerra é afetada pela “fricção”. Assim, o clima de guerra e a fricção é elemento vital em todos os episódios sangrentos dos últimos dois séculos.

O clima de guerra de Clausewitz é produto de perigo, esforço, incerteza e acaso. Exclusivamente entre os teóricos estratégicos, Clausewitz enfatiza que a guerra é “o reino do acaso” porque muitas guerras foram iniciadas na falsa premissa que o acaso seria eliminado por um planejamento cuidadoso (CLAUSEWITZ, 1976, p. 109). Além disso, as incertezas da guerra enfatizadas por Clausewitz são responsáveis por ignorar ou subestimar os formuladores de políticas, cuja capacidade de confundir seus desejos com o que é viável pode ser surpreendente. A essa condição de excesso de confiança estratégica se denomina “doença da vitória”. Ambos, Alemanha e Japão, sofreram com essa “doença”, entre 1940 e 1942, e os Estados Unidos mostraram sintomas de sua presença, em meados da década de 1960, no Vietnã e, em 2003, no Iraque.

A “fricção” está entre os conceitos contundentes no léxico de Clausewitz, erros cometidos na guerra podem ser resultado do comportamento inesperado do inimigo, ou pelo cansaço e estresse dos soldados. Como de costume, com a ideia de “fricção”, Clausewitz elabora um conceito com intuito principalmente

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de educar. Muitos foram os desastres de guerra que se abateram sobre políticos e militares que não contemplaram a possibilidade da “fricção”. Napoleão na invasão da Rússia, em 1812, e Hitler, em 1941, na então URSS são exemplos fatais de fricção. Entre os teóricos da guerra, apenas Clausewitz, e talvez o historiador grego Tucídides, enfatizou sobre o que pode dar errado e como o acaso pode prevalecer (STRASSLER, 1996).

Clausewitz sofreu uma crise intelectual quando o manuscrito de Da Guerra já estava em sua fase final. Em 1827, ele escreveu uma nota que afirmava sua intenção de revisar todo o trabalho para refletir sobre duas coisas: em primeiro lugar, que a guerra vem em duas variantes, total e limitada, e, em segundo, que a guerra é uma continuação da política por outros meios (GAT, 2001). Nos poucos anos de vida que lhe restaram, em torno de seus deveres militares, Clausewitz alcançou apenas uma revisão parcial de seu texto. Isso ajuda a explicar algumas das inconsistências e a análise incompleta de elementos vitais para a dimensão política da guerra. O manuscrito resultante, com revisados em diversos graus, deixa espaço para os estudiosos debaterem o que o autor “realmente quis dizer”.

Transformações na forma de conduzir a guerra e novas tecnologias surgem, envelhecem e, geralmente, são substituídas. No entanto, guerra continua sendo guerra e as mudanças inevitáveis em seu caráter não alteram o valor do legado por Carl von Clausewitz. Acrescentado de Sun-Tzu, Tucídides e, até mesmo, do contemporâneo subestimado do prussiano, Jomini, Da Guerra é uma ferramenta de valor inestimável para abrir as portas da compreensão da história estratégica. Clausewitz escreveu para educar, e não para instruir diretamente com conselhos de comportamento. Da Guerra educa sobre a natureza da guerra, seu funcionamento e sobre o que pode dar errado.

The Last Ship é uma série norte-americana transmitida pelo canal TNT, a partir do dia 22 de junho de 2014. Baseada em um romance de mesmo nome de William Brinkley e dirigida e produzida por Michael Bay, o enredo se baseia nas ações do navio de guerra USS Nathan James, único sobrevivente da frota norte-americana após uma pandemia global que mata mais de 80% da população do mundo. A tripulação (composta de 218 homens e mulheres) tenta encontrar uma cura para o vírus e salvar a humanidade. É interessante observar nos diálogos várias passagens em que os personagens, além do jargão realmente usado nas forças armadas dos Estados Unidos, usam conceitos e pensamentos clássicos de Estratégia.

FONTE: <https://tinyurl.com/ya3x8bh3>. Acesso em: 28 fev. 2021.

DICAS

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

LEITURA COMPLEMENTAR

COSMOPOLITISMO E AS QUESTÕES QUE O CERCAM

Bruce Robbins Paulo Lemos Horta

De onde você é? A palavra “cosmopolita” foi usada pela primeira vez como uma forma de escapar exatamente dessa pergunta, cujas entrelinhas podem ser confrontadoras e até perigosas. Quando Diógenes, o Cínico, se autointitulou um “kosmo-polites”, ou cidadão do mundo, estava optando por não dizer que ele era de Sinope, distante colônia grega no Mar Negro, da qual fora banido sob alegação de fraude das moedas locais, como o autor da pergunta talvez soubesse.

O entendimento singular, normativo e mais antigo do termo tende a gerar uma história relativamente esquemática e linear: origens humildes nos antigos Cinismo e Estoicismo, quando o mundo não era tão fortemente entrelaçado à realidade quanto estava começando a ser ao pensamento; o amadurecimento moderno no humanismo do Renascimento e do Iluminismo; uma interrupção no século XIX, quando o nacionalismo imperial tornou-se predominante; depois, o pleno florescimento nos séculos XX e XXI, quando a real interconexão dos povos do mundo traz consigo, pela primeira vez, a possibilidade de o ideal tornar-se realidade em algum tipo de comunidade mundial.

No entanto, vale ressaltar que, desde seu momento fundador, o cosmopolitismo já era plural. Qualquer versão dada demonstraria uma mistura nítida entre dois impulsos, negativo e positivo. O impulso negativo afirma a indiferença em relação ao lugar de origem ou residência de alguém, uma rejeição da jurisdição das autoridades locais, um excluir-se de convenções, preconceitos, obrigações. O impulso positivo afirma a participação de alguma coletividade maior, mais envolvente ou poderosa. Talvez, inevitavelmente, o cosmopolitismo tenha sido, ou pelo menos aparentado ser, um distintivo de privilégio.

As definições recentes podem tender mais aos impulsos positivo ou negativo, mas em geral são consensuais em algum nível de síntese: o cosmopolitismo seria um comprometimento com o bem dos seres humanos como um todo, que supera todos os laços menores e cria uma indiferença permanente em relação aos valores da localidade. Em vez de normativo, esse “novo cosmopolitismo” é plural e descritivo. Assim, ele descreve um dos muitos modos possíveis de vida, pensamento, e sensibilidade produzidos quando os compromissos e lealdades são múltiplos e sobrepostos, e nenhum deles necessariamente prevalece sobre os outros.

Tal cosmopolitismo é muitas vezes atrelado ao aparecimento da ética kantiana, que rejeita a simples obediência à doutrina e envia a imaginação moral em uma longa, exaustiva, e, talvez, interminável jornada em direção a

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outros invisíveis. Ao menos para seus adeptos, a conquista determinante do cosmopolitismo empático em sua forma iluminista-humanitária é a abolição do tráfico de escravos, no século XIX.

Essa paulatina transição do cosmopolitismo no singular para “cosmopolitismos” no plural, significa que sociólogos, críticos culturais, e historiadores podem reivindicar a posse de um conceito que parecera pertencer em grande medida a filósofos e teóricos da política. E, acima de tudo, isso significa que, em vez de ser a prerrogativa de algumas figuras históricas como Diógenes, o cosmopolitismo passou a ser visto como característica e domínio de numerosas coletividades sociais, que em geral não pertencem às elites e sobre as quais o cosmopolitismo foi impingido por meio de histórias traumáticas de deslocamento e desapropriação. Tornou-se possível falar, na ressonante expressão de Silviano Santiago, do “cosmopolitismo do pobre”.

Hoje, em vez de uma abstração ética debilmente franzina, o termo carrega muitas particularidades viçosas e robustas. E, no entanto, o triunfo do plural descritivo sobre o singular normativo abre tantas perguntas quanto respostas. Em primeiro lugar, ele nos obriga a perguntar o quê, ou quanto, essas variantes têm em comum. A segunda, e mais urgente, pergunta, em especial à medida que avançamos no século XXI, diz respeito a quanto do velho sentido normativo do conceito é preservado ou transformado por essas particularidades empíricas. O que exatamente as torna interessantes, ou importantes?

Sociólogos e etnógrafos, atraídos pelo conceito em sua nova aparência plural, geralmente continuam a usá-lo como um termo elogioso, reivindicando para seus sujeitos diversos, híbridos e diaspóricos, algo como a honra que o conceito singular, normativo e filosófico deveria lhes conceder. Contudo, no novo contexto, essa honra já não está acima de qualquer suspeita. À medida que é pluralizado e democratizado, tornando-se uma parte maior do status quo, o cosmopolitismo não pode mais servir tão confortavelmente como critério de julgamento desse mesmo status quo. Se alguém passa a ser um cosmopolita ao se tornar refugiado ou migrante econômico, o que há para se comemorar nisso? Se o status quo é nacionalista, então, os cosmopolitas podem ser nacionalistas também. Nesse caso, ainda estaríamos falando da mesma ideia?

Uma análise mais severa e, talvez, mais dialética, teria de reconhecer que, juntamente com a natureza, a razão, o secularismo, e a humanidade, a lista de autoridades que promoveram o cosmopolitismo ‘também inclui o colonialismo, Deus, o livre mercado, e experiências coletivas de lealdade dividida que podem não ser favoráveis à distância crítica.

Ela teria de reconhecer que os cosmopolitismos no plural podem exigir histórias plurais, e que o cenário dessas histórias nem sempre será a Europa. Surge, portanto, a pergunta: será mesmo concebível uma história única do cosmopolitismo que permaneça responsável por tanta diversidade?

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UNIDADE 1 — ASPECTOS TEÓRICOS DE PAZ E SEGURANÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

Na verdade, nunca houve um cosmopolitismo que não contivesse um colonialismo à espreita nas redondezas. Sinope era uma colônia, e ela gerou suas próprias colônias. Vários séculos depois, o Cinismo de Diógenes era uma influência para os estoicos, que popularizaram o cosmopolitismo sobremaneira durante o Império Romano e o tornaram a filosofia explícita de um de seus imperadores, Marco Aurélio. Para Hegel, o Estoicismo era a filosofia exemplar da escravidão: ensinava às pessoas a se sentirem livres em suas mentes sem obrigá-las a emancipar seus corpos.

Por outro ângulo, pode-se também considerar a origem alternativa e não comercial para o cosmopolitismo moderno oferecida por Walter Mignolo. Se fosse possível dispensar as raízes seculares do cosmopolitismo, então os debates teológicos na Espanha do século XVI sobre o status dos indígenas do Novo Mundo seriam um ponto anterior de surgimento em relação a Kant e ao Iluminismo na Europa – anterior e, também, melhor, pois, de acordo com Mignolo, a defesa dos povos indígenas nas Américas recebeu uma audiência mais elaborada e solidária na Espanha do que na Alemanha de Kant.

Diante disso, parece mesmo plausível que o reconhecimento básico das lealdades divididas entre o local e o translocal comece com o advento do monoteísmo, ou seja, fortemente estimulado por ele. Em vez de “eu tenho meu Deus e você tem o seu”, significando que eu não tenho obrigação de tratar você e os seus como trato a mim mesmo e aos meus, a premissa seria que, uma vez que há um Deus para todos, a mesma lei moral também deve ser aplicada a todos. Ao menos em tese, tornar-se-ia, portanto, menos aceitável dar preferência a compatriotas e conferir a estrangeiros um tratamento inferior ao padrão de conduta.

Na prática, entretanto, a fé monoteísta não tem sido uma fonte confiável de comportamento cosmopolita, tampouco serve como garantia do status cosmopolita. Se tanto antissemitas quanto filossemitas em geral tomaram o cosmopolitismo como uma palavra-código para judeu, o termo não foi muito aplicado aos muçulmanos – a exemplo dos residentes muçulmanos na União Europeia, que provavelmente oferecem uma melhor ilustração do cosmopolitismo como afiliação múltipla e sobreposta do que a diáspora judia. Isso sugere que o uso da palavra permanece sob o controle residual de um humanismo secular que tem sido mais veladamente particularista – isto é, judeu-cristão – do que aparenta.

Muitos afirmariam, por outro lado, que os direitos humanos se tornaram a versão dominante do cosmopolitismo, a qual, desde a Segunda Guerra Mundial, tem arrebatado os corações e mentes da maioria e se tornado, efetivamente, uma religião secular. Nesse caso, ela estaria vulnerável à acusação de não ser nada mais que liberalismo ocidental, comercializado para exportação. Os verdadeiros portadores de direitos sempre parecem ser indivíduos, não coletividades. Assim, o cosmopolitismo afunda novamente na ética. Ele não consegue criar a justiça global econômica e política que nos ajuda a imaginar, o que depende necessariamente da ação de coletividades e, certamente, demanda a preferência de membros sobre não membros.

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TÓPICO 3 — GUERRA, SOCIEDADE E POLÍTICA: PRINCIPAIS ABORDAGENS

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Apesar da ambiguidade que o termo em si carrega, e de suas interpretações conflitantes, algo, no entanto, parece claro: em termos gerais, o cosmopolitismo hoje está identificado com a ideologia dos Grandes Poderes, e, de tal modo, que passou a sugerir uma desculpa para as antiquadas intervenções militares, agora disfarçadas nas vestes de um desinteresse humanitário. No livro Cosmopolitanism and the geograpgies of freedom (2009, p. 84), David Harvey expressa sua preocupação com a possibilidade de o cosmopolitismo tornar-se “uma máscara ética para práticas neoliberais hegemônicas de dominação de classe e imperialismo financeiro e militar”. No entanto, Harvey continua a falar em nome de um cosmopolitismo melhor, um que escolha rejeitar tal beligerância bem-intencionada, considerando-a uma distorção.

Será que isso significa que o conceito de cosmopolitismo não se sustenta como ideia única? Não necessariamente. Também é discutível que o cosmopolitismo propriamente dito seja a ideia que abre espaço para essas concepções variadas e sobrepostas, forçado pelo imperativo da inclusividade a mudar suas próprias regras. Em vez disso, podemos falar de cosmopolitismos imperfeitos e insistir que, mesmo enquanto buscamos descrever suas formas e espaços de fato existentes, o cosmopolitismo continua a ser uma corajosa aspiração para nós.

FONTE: ROBBINS, B.; HORTA, P. L. Cosmopolitismo e as questões que o cercam. Tradução: Maria Carolina Morais. Pernambuco, Jornal Literário da Companhia Editora de Pernambuco, Recife, [201-?]. Disponível em: https://tinyurl.com/y6tvsdav. Acesso em: 9 nov. 2020.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Para alguns sociobiólogos, a instituição da guerra nada mais é do que uma extensão dessa disposição combativa.

• A guerra, na visão de uma corrente de pensamento sociobiológico, seria uma forma de agressão moldada pelas regras de seleção natural pela qual os homens arriscam suas vidas para melhorar o potencial reprodutivo de seus próprios genes ou de seus parentes mais próximos.

• Alguns sociobiólogos argumentam que existe, no ser humano, uma “semente genética” da guerra.

• Os críticos da abordagem sociobiológica da violência organizada inata ao ser humano argumentam que essas teorias são insuficientes para explicar a ação social.

• A agressão é uma resposta psicológica e a guerra é um fenômeno social que requer ação social organizada, intencionalidade coletiva, sistemática uso de armas, coordenação linguística sofisticada e ritualismo.

• O desgosto pela guerra e violência por parte do público em geral foi compartilhada por muitos sociólogos pós-Segunda Guerra Mundial.

• Para Durkheim, os seres humanos são criaturas guiadas por normas. Portanto, os conflitos consensuais e sociais seriam a exceção, e não a regra.

• Émile Durkheim, na tradição racionalista do Iluminismo, foi influenciado pela ideia de inevitabilidade do progresso humano e do pacifismo.

• Durkheim interpretava a guerra como uma aberração e um anacronismo destinado a desaparecer.

• Durkheim comprovou a proposição de que os números de mortes na guerra e devido ao suicídio, em períodos de conflito armado, são inversamente proporcionais.

• Durkheim percebeu a Primeira Guerra Mundial como uma anomalia que destruiu o desenvolvimento orgânico e evolutivo da civilização humana. Assim, a guerra foi uma hipertrofia do espírito militarista alemã.

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• Para Durkheim, o pacifismo estava ligado a uma organização específica, Estado-nação e qualquer tentativa de evitar a guerra, invocando que o internacionalismo estava fadado ao fracasso.

• Karl Marx e Max Weber são considerados, na Sociologia, os pioneiros da “teoria do conflito”.

• Karl Marx era versado em História Militar e apreciava a teoria da guerra de Clausewitz. Consequentemente, adotou um discurso militarista de luta coletiva e revolucionária como essencial para o conflito de classes.

• Apesar da retórica militarista nas obras de Marx e Engels, eles associavam a violência ao breve estágio final da sublevação revolucionária.

• Marx reconhece que o principal agente da violência na modernidade capitalista é o poder coercitivo do Estado-nação.

• Marx e Engels percebem na violência como um mecanismo de rápida mudança.

• Para Weber, os conceitos-chave, como racionalidade, burocracia e prestígio cultural, têm origens militaristas.

• Para Weber, a violência é vista como a razão de ser do Estado.

• Clausewitz explicou a natureza da guerra, como ela perdura no tempo, suas circunstâncias e, até mesmo, seu caráter mutante.

• Na década de 1870, a reputação de Jomini foi eclipsada pela de Clausewitz. Em parte, graças às vitórias alemãs nas três guerras da unificação da Alemanha.

• Clausewitz visou a educar a mente, e não aconselhar diretamente para a ação.

• A teoria de Jomini foi apresentada como orientação profissional atemporal, supostamente imune às mudanças das condições políticas.

• Jomini, com base em seu estudo e observação das campanhas de Napoleão, propôs um conjunto de regras, apresentadas como princípios, que ele afirmava levar à vitória.

• Jomini foi o autor de um conjunto de princípios de guerra para os quais reivindicava autoridade universal.

• Para Clausewitz, a política é única fonte de guerra e a guerra é simplesmente uma continuação das relações políticas, com a adição de outros meios.

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CHAMADA

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1 O Neodarwinismo surgiu no século XX e trata-se de uma teoria que relaciona os estudos evolucionistas do naturalista inglês Charles Darwin e as novas descobertas no campo da genética. No que se refere aos princípios do Neodarwinismo, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Os sociobiólogos alegam que a guerra seria um fenômeno incorporado culturalmente à natureza humana.

( ) Para os sociobiólogos, o ser humano carregaria a “semente genética” da violência coletiva.

( ) Os sociobiólogos argumentam que as ações sociais podem ser explicadas com referência à reprodução genética.

( ) No século XX, as teorias da sociobiologia foram totalmente descartadas como pseudocientíficas.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) F – F – V – V.b) ( ) V – V – F – F.c) ( ) F – V – V – F.d) ( ) V – F – F – V.

2 Os livros didáticos refletem a visão dominante na Sociologia convencional, que percebe a guerra como um resquício do passado ou como uma espécie de anomalia temporária que não requer uma análise mais profunda. No entanto, a influência de eventos históricos e a abordagens de autores da Sociologia clássica contribuíram para uma abordagem pacifista. Classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Autores clássicos, como Karl Marx, Émile Durkheim e Clausewitz, contribuíram para a abordagem pacifista na Sociologia.

( ) As ideias do Iluminismo teriam contribuído para o hiato da Sociologia sobre estudos da guerra por elas serem consideradas uma ação irracional.

( ) Autores clássicos, como Herbert Spencer, Wittgenstein e Max Weber, contribuíram para a abordagem pacifista na Sociologia.

( ) O preconceito da Sociologia contemporânea, em relação ao estudo da guerra e violência, se baseia no legado das duas guerras mundiais e na rejeição do seu passado considerado darwinista.

AUTOATIVIDADE

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Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – V – F – F.b) ( ) F – V – F – V.c) ( ) F – F – V – F.d) ( ) V – V – V – F.

3 Clausewitz defendia que a guerra possui um “clima” permanente e único e que toda a guerra é afetada pela “fricção”. Assim, o “clima” de guerra e a fricção seriam elementos vitais em todos os episódios sangrentos dos últimos dois séculos. Sobre o teórico e militar prussiano, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Clausewitz enfatizou a unidade lógica e eficaz entre política e guerra e a dimensão moral da guerra.

( ) O único grande princípio de Clausewitz sustentava que um comandante deveria se lançar a massa de seu exército contra uma fração das forças inimigas no “ponto decisivo”.

( ) Para Clausewitz, política e guerra eram esferas distintas e incompatíveis.( ) Clausewitz insistia que “a política é única fonte de guerra” e que “a guerra

é simplesmente uma continuação das relações políticas”.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F – V.b) ( ) V – V – F – F.c) ( ) F – F – V – F.d) ( ) V – F – V – F.

4 Em 1975, o biólogo Edward Osborne Wilson publicou seu livro Sociobiology: The New Synthesis (em português, Sociobiologia: Uma nova síntese), numa tentativa de reunir a pesquisa sobre o comportamento social dos animais em um só lugar, consolidando a teoria e as evidências empíricas de vários subcampos da biologia, incluindo etologia, biologia populacional e zoologia. Mais tarde, sua obra se tornou caudatária de um acirrado “debate sociobiológico”. A “teoria do instinto”, derivada da psicologia animal e da revolução genética, encorajou a crença de que a combatividade havia sido programada na parte primitiva do cérebro humano como resultado de pressões evolutivas que datam da pré-história. A guerra era vista como impulsionada pelo instinto, e a luta genocida postulada como uma força eugênica no início da evolução humana. Disserte sobre o debate sociobiológico e as críticas às teorias de Edward O. Wilson.

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5 Dada a natureza generalizada da violência em nossa vida cotidiana, é compreensível que muitos sociólogos façam dela o foco de seus estudos. A violência se relaciona com todas as instituições sociais e todos os processos sociais, desde as interações de nível micro entre amigos e família até as agressões de nível macro entre nações. Sociólogos com uma variedade de interesses acadêmicos podem fazer da violência o objeto de suas pesquisas, a fim de estudar sobre a guerra, o genocídio, o terrorismo e a violência estatal. Disserte sobre o pensamento de Durkheim, Marx e Weber sobre a violência.

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UNIDADE 2 —

ESTUDOS ESTRATÉGICOS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• entender os Estudos Estratégicos no mundo pós-Guerra Fria;

• conhecer as doutrinas de segurança nacional no mundo pós-Guerra Fria;

• analisarasmudançasocorridascomofimdabipolaridadeURSS/EstadosUnidos;

• compreenderasdefiniçõeseasdimensões,emcamposvariados,da segurança nacional, assim como os impactos na segurançanacional;

• entenderahistóriaeosconceitos,noqueserefereaoindivíduo,àsociedadeeaoEstado,dasegurançainternacionalpós-GuerraFria;

• analisarocontroledearmasdedestruiçãodemassaeosdesafiosparacontersuaproliferação.

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Estaunidadeestádivididaemtrêstópicos.Nodecorrerdaunidadevocê encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdoapresentado.

TÓPICO1–DISSUASÃONUCLEAR

TÓPICO2– AS DOUTRINAS DE SEGURANÇA NACIONAL NOMUNDOPÓS-GUERRAFRIA

TÓPICO3– SEGURANÇA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA:CONFLITOS,PROLIFERAÇÃODEARMASDEDESTRUIÇÃOEMMASSA

PLANO DE ESTUDOS

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Para entender os Estudos Estratégicos nomundo pós-Guerra Fria, umperíodoemqueopotencialdedestruiçãoeasameaçasàcomunidadeinternacionalchegaram a um nível inédito na História da humanidade, discutiremos adissuasãonuclear,istoé,umdesdobramentocontemporâneodasestratégiasdeintimidação,principalmentemilitar,quesempreestevepresentenahumanidade.

Apesquisadousodeameaçasmilitarescomomeioevitarcriseseguerrasinternacionaistemsidoumtemacentraldapesquisadesegurançainternacionalnos últimos 200 anos. No entanto, com o advento das armas nucleares pós-SegundaGuerraMundial, tanto as estratégias como as políticas de dissuasãoforamalçadasaumpatamarinéditoderelevânciaesofisticação,sobretudoemvirtudedopoderdestruiçãoinerenteaosarsenaisnuclearesquesurgiramduranteaGuerraFria.

Nãoobstante,comofimdaGuerraFrianadécadade1990,apesquisaeaspolíticasdedissuasãonuclearcontinuaramaltamenterelevantesemrazãodo mundo multipolar, das transformações constantes no quadro geopolíticoe do surgimento de novos atores de posse de armamento nuclear. Portanto,nestetópico,serãoapresentadasumarevisãohistóricaeconceitualdeTeoriadaDissuasão,eaevoluçãodadissuasãonuclearduranteoperíodoemGuerraFria.

Convémlembrarque,apesardofimdaGuerraFria,em1991,omundoquevivemosfoimoldadonasdécadasdoperíodopós-SegundaGuerraMundial.Adisputaideológica,política,militareculturalentreosEstadosUnidoseseusaliadoseaUniãoSoviéticaeseublocomoldouomundoporquatrodécadas.

OfimdaGuerraFria,noiníciodadécadade1990,pareciaocomeçodeumaeramenospolarizadae,consequentemente,commenosconflitos.Logo, foipossível perceber que, emummundo supostamente unipolar e, na atualidade,maismultipolar,comnovosatoresestataisenãoestataiseasnovastecnologias,inclusiveasdealtopotencialdestrutivo,asquestõesenvolvendosegurançanacionaleinternacionalsetornariammaiscomplexas,difusasemaisdifíceisdecontrolarcomohaviasidoemumcenáriobináriodominadoporduassuperpotências.

TÓPICO 1 —

DISSUASÃO NUCLEAR

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

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SobreasclassificaçõesdadinâmicadasRelaçõesInternacionaisnomundopós-GuerraFria,nemmesmoosunipolaristasnegamopesodeatorescomoaUniãoEuropeia(emboranãonecessariamentemilitar)easnovaspotências,emparticular, a China. Esses blocos e Estados ocupam uma posição econômica,militar e política de importância global.Mesmo entre aqueles dominados porfantasiashegemônicas,háumconsensodequeomundoémuitomaiscomplexodoqueeraduranteaGuerraFria.

Embora os Estados Unidos ainda desfrutem de uma influênciapreponderante, não podem governar o mundo sozinhos. Então, a diferençaentreunipolaristasemultipolaristasnãoéprofunda.Assim,entre1985-1991,nãotestemunhamoso“fimdahistória”, comopretendiaFranciaFukuyamae seusseguidores,maso“fimdahistóriadaGuerraFria”;oqueocorre,naatualidade,seriaavoltadahistóriasemasanomaliasdeumarelaçãobipolardepotencialtãodestrutivoemdiferentesesferas.Algunschamam issodemultipolaridade,outrosdeunipolaridade,masissonãoimporta,poisarealidadeémaisfortedoquecertasclassificaçõessimplistas(DEKEERSMAEKER,2015).

Portanto, abordaremos assuntos ainda pertinentes à Guerra Fria e osdesafiossurgidoseasestratégiasadotadas,porEstadoseindivíduos,umcenáriointernacionalemconstantemudança.

FIGURA 1 – CHARGE SOBRE O PERÍODO DA GUERRA FRIA REPRESENTANDO O MUNDO BIPOLAR E A RIVALIDADE ENTRE A URSS (NIKITA KRUSCHEV) E OS ESTADOS UNIDOS (JOHN F. KENNEDY)

FONTE: <https://tinyurl.com/y3d47dm6>. Acesso em: 27 jan. 2021.

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TÓPICO 1 — DISSUASÃO NUCLEAR

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FIGURA 2 – CHARGE SOBRE O MUNDO MULTIPOLAR, DEMOLINDO AS ESTRUTURAS DA ERA DO BIPOLARISMO

FONTE: <tinyurl.com/snsmzhaf>. Acesso em: 11 abr. 2021.

2 REVISÃO HISTÓRICA E CONCEITUAL SOBRE TEORIA DA DISSUASÃO

DesdeocomeçodaGuerraFria,aTeoriadaDissuasãoéumdostemasmaisestudadosedebatidos emRelações Internacionais.Emumadefinição clássica,quese tornoubemdisseminadaduranteaGuerraFria,adissuasãoédefinidacomoumaestratégiamilitarbaseadanapremissadeconvencerumadversárioanão concretizarumaameaça (SCHELLING,1966).NocontextodasRelaçõesInternacionais,umaameaçaépercebidacomoumatoqueincluiumadimensãomilitareimplicaacapacidadedeprojetaropodermilitarcontraumadversário.

Na Teoria daDissuasão, as relações entre os Estados e a norma, pois,pelo princípio vigente, as nações existem dentro de um sistema internacional“anárquico”. Isso significa que, em virtude da ausência de uma autoridadecentralmundial,compoderdeimpedirconflitos,asguerrassetornarampartedaspolíticasinternacionais.Portanto,emtalsistema“caótico”,caberiaaosEstadossetornaremfortesparaproteger,devidamente,seusinteressesnacionais.

Talprincípio,adotadopeladaTeoriaClássicadeDissuasão,serviucomojustificativaparaqueosEstadosusassemseupoderparainfluenciarasdecisõesdeoutrosEstados.Noentanto,comoveremosaolongotexto,oaparecimento,aproliferaçãoeasofisticaçãodasarmasnucleareslevaramamudançasnomodeloclássico de dissuasão. PatrickM.Morgan, umdos principais autores do temadissuasão, assim definiu o conceito: “uma estratégia que se refere a posturamilitarespecífica,ameaçaseformasdecomunicá-losqueumEstadoadotaparadissuadir, enquanto a teoria diz respeito aos princípios subjacentes nos quaisqualquerestratégiasebaseia”(MORGAN,2003,p.1).

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OestudodaTeoriadaDissuasãofoidividido,segundoAmirLupovici,emquatrofases(LUPOVICI,2010):

• AprimeirafaseocorreuapósaSegundaGuerraMundial.• Asegundafaseaconteceunofinaldadécadade1950.• AterceiraocorreunoaugedaGuerraFria,apartirdadécadade1960.• Aquartafaseaconteceunomundopós-GuerraFria,apartirdadécadade1990.

OsestudosnaprimeirafaseforaminiciadosporespecialistascomoJacobViner, Bernard Brodie e Arnold Wolfers. Na época, o objetivo principal eradefinirasvantagensestratégicaspropiciadaspelasarmasnucleareseseuimpactopolítico,masosestudosdessafaseinicialtiverampoucainfluêncianaspolíticasdedissuasãonuclear.

A segunda fase, ocorrida no final dos anos 1950, incorpora modelosteóricosparaestudaradissuasãoemumesforçoparacompreenderasestratégiase as táticas dos principais atores estatais. Nesse momento, também surgemcríticasàTeoriadaDissuasão,principalmentenoqueserefereànecessidadedepesquisasempíricas.

AterceirafasedaTeoriadaDissuasãocontinuoulidandocomosdesafiosdafaseanterior,enquantocriticavaadependênciadasabordagensfundamentadasnasestratégiasdeataquespreemptivos.

Porúltimo,nachamadaquartaonda,surgiuanecessidadedeserepensaras novas realidades das Relações Internacionais vis-à-vis ao conceito clássicodeTeoriadaDissuasão.Alémdisso,osataquesterroristasrealizadosporatoresnãoestataisnesseperíododesafiamos fundamentosdessa teoria,provocandomudançaseumanovafase(KNOPF,2010).

FIGURA 3 – CORRIDA ARMAMENTISTA NUCLEAR: ESTADOS UNIDOS X URSS, O PERIGO DE UM CONFRONTO NUCLEAR QUE MANTEVE O MUNDO COMO REFÉM DURANTE A GUERRA FRIA; A CHARGE MOSTRA A RELAÇÃO ENTRE OS ESTADOS UNIDOS (CASA BRANCA EM WASHING-

TON) E A URSS (KREMLIN EM MOSCOU)

FONTE: <https://tinyurl.com/yb7ee54y>. Acesso em: 10 dez. 2020.

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TÓPICO 1 — DISSUASÃO NUCLEAR

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ATeoriadaDissuasãofoirevistaemváriasocasiões,principalmenteapósofimdaUnião Soviética, emvirtudedasnovas realidades impostasporumafugazsensaçãodeunipolarizaçãoemultipolarizaçãomaisadequadaaumanovaordeminternacional.

Na atualidade, considerando as atuais tensões nucleares, em regiõescomooOrienteMédioenosuldaÁsia,eaproliferaçãoregionaldearmasdedestruição em massa (ADM), torna-se ainda mais relevante a discussão davalidade de políticas baseadas na Teoria da Dissuasão. Além disso, algunsestudiososdefendemodebatesobreaquartafasedateoria,apósosataquesde11de setembrode 2001, quando sepercebeu anecessidadede revê-la, na suaconcepçãoclássica,comoobjetivodeadaptá-laaosdesafiosdousodearmasdedestruiçãomaciçaporatoresnãoestatais(LUPOVICI,2010).

A doutrina da dissuasão nuclear, que passa por um teste na atual crise entre Estados Unidos e Coreia do Norte, nasceu na Guerra Fria, quando as duas potências da época afirmavam que qualquer ataque teria represálias apocalípticas. Em plena corrida armamentista, Washington e Moscou multiplicavam o número e a potência de suas ogivas nucleares, assim como a quantidade de vetores (mísseis, aviões, submarinos) para conseguir o que os especialistas chamam de “destruição mútua assegurada” (do inglês mutual assured destruction – MAD, cuja tradução significa “louco”).

FONTE: <https://tinyurl.com/y8eygvc6>. Acesso em: 10 out. 2020.

INTERESSANTE

Oconceitodedissuasãodeve ser entendido comouma estratégiaparapersuadirumadversárioanãoiniciarumaagressão.Dessamaneira,alógicadedissuasãonuclearsebaseianapresunçãodequeasarmasnuclearespodemseramelhorferramentaparaprotegeraintegridadedeumpaísdaameaçadeumataquenuclear.Nessesentido,adissuasãonuclearganhacontornos“otimistas”e “racionais” na suposição de que a posse de armas nucleares reduziria aprobabilidadedeumaguerra.Issoocorreriaporque,emtese,ocustodeumconflitoseriamuitoaltoe,portanto,adissuasãoobliterariaainiciativadoadversáriodelançarumataquenuclear.

Do ponto de vista histórico, o surgimento de estratégias de dissuasãonuclear representou uma nova concepção, que iria mudar as estratégias dedefesatradicionaisparaumplanomaisofensivo,objetivandoprevenirconflitoseconsiderandoqueumataquedeumEstadocomcapacidadenuclearpoderiaproduzirdanosimensosaseuadversário.Assim,adissuasãonucleartransformouaspopulaçõescivisemumdosprincipaisobjetivosmilitaresdaguerramoderna.

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Outrossim,atecnologiatambémcontribuiuparaqueospaísespudessemreduzirseusarsenaistradicionaisconsiderandoqueumadversáriopoderiaserdestruídosemanecessidadedeseempreenderumaguerraconvencional.

A dissuasão nuclear funcionaria não apenas pela posse de capacidadenuclear,maspelahabilidadededemonstraraoadversárioquequalquertentativade ataque não alcançaria seus objetivos. Portanto, de acordo com a Teoria daDissuasão,haveria,hipoteticamente,situaçõesdedissuasãoaplicadasporapenasumpaíscomarmasnuclearesousituaçõesdedissuasãocomdoisoumaispaísescomcapacidadesnucleares.

Pordécadas,duranteaGuerraFriaeatéosdiasatuais,asarmasnuclearesinfluenciaramaconcepçãodedissuasãodasgrandespotências.Nessecontextohistórico,foramosEstadosUnidososprimeirosaadotarumaestratégianucleardedissuasãobaseadaemumaestratégiadeataqueàUniãoSoviéticacomarmasnucleares.Dessamaneira,emconsequênciadaquelarivalidadeestratégica,entreosEstadosUnidoseaURSS,a lógicadadissuasãonuclearseestabeleceucombasenapossibilidadededestruiçãomútuaemcasodeconfronto.

Noentanto, ao longodasdécadasapósaSegundaGuerraMundial, asestratégiasnuclearessetransformaram.NoiníciodosdoisgovernosdopresidenteDwightEisenhower(1953-1961),opoderdedissuasãoevoluiuparaumaestratégiaquepretendiadeterumEstadoagressorcomumaresposta,denominadacomoretaliação severa, que poderia incluir o uso de armas nucleares. Em 1954, osecretáriodeEstadonorte-americanoJohnFosterDullesdiscursounoConselhodeRelaçõesExterioreseapresentouumaestratégiacommaisênfasenopoderdedissuasão,oqueencorajoualgunsestrategistasmilitaresapensaremquehaveriamenosrestriçõesaousodaopçãonuclear(NARANG,2014).

AestratégiadedissuasãonucleardogovernoEisenhowersetransformounachamada“respostaflexível”duranteaadministraçãodeJohnKennedy(1961-1963),quepretendiadiminuir apossibilidade realdeusodearmasnucleares.Entretanto,talcenárioprecisalevaremconsideraçãoa“CrisedosMísseis”,emCuba (1962).Nessaocasião,osEstadosUnidoseaURSSestiveramàbeiradeumconflitonuclearcomapossibilidaderealdeocorrerachamada“destruiçãomútuaassegurada”(MAD).Essequadrocontemplavaapossibilidadedeocorrerumprimeiroataque,seguidodeumaretaliaçãoquelevariaàdestruiçãodeambososlados.

EssadinâmicaorientouamaioriadosformuladoresdepolíticasduranteaGuerraFria,quandoosatorescompartilhavamamesmaracionalidadedentrodeumcenáriomilitarcomduaspotênciasnuclearesqueseriamimpedidasdeatacarnasseguintescondições:

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TÓPICO 1 — DISSUASÃO NUCLEAR

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• Cadaladotemacapacidade,seatacadopelooutro,deinfligiraoatacanteumdanoqueodissuadiriadeiniciarumataque.

• Nenhumladopoderiadescartarapossibilidadedooutrousarsuahabilidadenuclearseatacado.

EssasduascondiçõessãoconsideradasasprincipaisrazõespelasquaisaDMApoderiaserevitada.Outracondiçãoimplícitanessaavaliaçãoeraofatode que ambos os atores compartilhariam a mesma racionalidade de temer adestruiçãomútua.

Portanto,convémlembrarque,nahistóriarecente,nãoocorreramconflitosnucleares,poisnenhumdosatoresenvolvidosquiscorreroriscodedesencadearumconfronto tãocatastrófico.Amaioriadasestratégiasnuclearesatuaispartedopressupostode que o cumprimentode umapolítica bemplanejada, tendoativosnuclearescomoseuprincipalagentedissuasor,convenceriaosrivais,empotencial,dequequalqueraçãomilitarestariafadadaaodesastre.

3 EVOLUÇÃO DA DISSUASÃO NUCLEAR

Emboraomundonuncatenhatestemunhadoumaguerranuclearbilateral,acompetiçãonuclearentreosEstadosUnidoseaUniãoSoviética(hojeRússia),duranteaGuerraFria,ensinouliçõesdifíceis.Portanto,asquatrofasesdaTeoriadaDissuasão,mencionadasanteriormente,sugerematransformaçãonocaráterdasarmasedanaturezadadissuasão.

Por exemplo, na primeira fase, estrategistas, como Bernard Brodie,afirmavamqueainvençãodabombaatômicahaviaalteradofundamentalmentea natureza da guerra e promovido uma revolução estratégica: “até agora, oprincipal objetivo dos militares era vencer guerras. De agora em diante, seuobjetivoprincipaldeveserevitá-las”(BRODIE,1946,p.62,traduçãonossa).

De acordo com os números da organização sem fins lucrativos Bulletin of the Atomic Scientists (Boletim dos Cientistas Atômicos), criada nos Estados Unidos para tratar de assuntos científicos de segurança global, em 1990, os Estados Unidos tinham quase 22 mil ogivas nucleares (4.480 atualmente) e a Rússia quase 30 mil (contra 7 mil atualmente, incluindo as que devem ser desmanteladas). A quantidade poderia provocar a destruição completa, por diversas vezes, dos dois países.

FONTE: <https://tinyurl.com/4nwn3w4x>. Acesso em: 10 out. 2020.

NOTA

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

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Para Bernard Brodie, a “destruição total”, inerente ao uso de armasnucleares,tornouavitóriainatingível,mas,simultaneamente,ensinouque,pormeiodeameaçasderetaliação,osEstadospoderiammanipularpsicologicamenteamentedeumadversário.

Deformaanáloga,RobertJ.Artafirmavaque“equilíbrionaeranuclearéopoderdeferir,nãoopoderdederrotar”(ART,1985,p.127).EssasabordagenscontextualizaramaagorachamadaTeoriadaDissuasão,umavezqueo termodissuasãoé,geralmente,entendidocomoacapacidadededissuadirumestadodeadotarumcursodeaçãoprejudicialaosinteressesdesegurançavitaisdealguém,combasenacapacidadedemonstrativa(MORGAN,2003).

A segunda fase ocorre na Guerra Fria em uma atmosfera de intensacompetiçãoarmamentista.ParaThomasSchelling,aguerraéum“processodenegociação”emqueosinimigostentammanipularasexpectativaseasintençõesuns dos outros, por meio de ameaças, promessas e ações. Ele considerava aguerracomoaartededissuasão,coerçãoeintimidaçãoearmasnuclearesaptasparaaçãopunitiva.Schelling(1966)elaborouoconceitodepontofocal,tambémchamadode “pontodeSchelling”,para explicaruma solução encontrada semcomunicaçãoentreaspartes,masapenascontandocom“aexpectativamútuadeaçãoporumadaspartes”(SCHELLING,1966).Simultaneamente,HermanKahnabordouteoriasparalimitarumriscopotencialdeguerra,pormeiodeestratégiasdecontroledosacontecimentos,mantendoumgraudeincertezaparatornaradissuasãopossível(KAHN,1960).

No entanto, os pensadores da terceira fase se concentraram emcompreender as razões subjacentes que levaram às crises e os mecanismospara evitá-las. Eles dedicaram sua atenção para compreender o processo decomprometimentoquepudesseprevenirouresolverconflitos.Assim,asduassuperpotênciaspassaramdo limiardoconfrontoparaa“distensão” (détente).Opresidente dos EstadosUnidos,RichardNixon, e o líder soviético LeonidBrezhnev,noiníciodadécadade1970,secomprometeramalimitaroarsenalnuclearofensivodeseuspaíses.Dessamaneira,osmecanismosdecontroledearmasouumkitdeferramentasdenegociaçãoregulavamalgunsaspectosdascapacidadesoudopotencialmilitardosEstadosUnidosedaUniãoSoviética.Essesarranjosforamaplicadosà localização,àquantidade,àprontidãoeaostipos de forças militares, armas e instalações, a fim de reduzir os riscos deguerra, elaborando, assim,uma formade cooperaçãoou ações conjuntas emrelaçãoaseusprogramasmilitares.

Na quarta fase, após o fim daGuerra Fria, surgiu a aplicabilidade dadissuasão.Emcontrastecomasteoriasanteriores,asameaçasnãoconvencionaisse tornaram a preocupação principal dos estrategistas. O colapso da UniãoSoviética causou impacto na agenda de segurança político-militar, que haviadominadoapolíticamundialduranteaGuerraFria.BarryBuzan, especialistaemRelaçõesInternacionais,elaborouumaconcepçãodasegurança,aplicando-aemuma ampla gamade assuntos, comopolítica, economia, sociedade emeioambiente, além do setor militar tradicional, sem comprometer a essência doconceito(BUZAN,1983).

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TÓPICO 1 — DISSUASÃO NUCLEAR

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Durante essa fase, novos Estados, como Índia e Paquistão, rivaishistóricos,desenvolveramcapacidadeepolíticasnucleares.AÍndiaconsideraaChinaeoPaquistãocomoameaçasasuasegurança,enquantooPaquistãotema Índia comoameaçaexistencial.Asevidênciasempíricas, comoa“GuerradeKargil”,em1999,eumasériedecrisesentreaÍndiaeoPaquistãoderamorigemao paradoxo “estabilidade-instabilidade” no Sul da Ásia.Assim, se as armasnuclearespuderamevitarumaguerratotalentreosEstadosUnidoseaURSS,noaugedaGuerraFria,apaz,naatualidade,peladissuasãonuclear,emregiõescomoosuldaÁsia,permaneceelusivaefrágil(KREPON,2005).

Quando se fala em guerra nuclear, muitos logo imaginam um conflito envolvendo grandes potências como os Estados Unidos, a Rússia ou a China. Todavia, muitos outros países detêm a tecnologia de armas nucleares e seu uso teria resultados igualmente catastróficos. É o que mostra um estudo conduzido por Owen Brian Toon, professor no Laboratório de Física Atmosférica e Espacial na Universidade do Colorado em Boulder, nos Estados Unidos, e sua equipe, que calcularam o resultado de uma guerra nuclear entre Índia e Paquistão, países que estão em conflito há mais de 40 anos. Juntos, eles têm cerca de 300 armas nucleares com potência de algumas centenas de megatons cada, podendo a chegar a 500 armas em 2025.

FONTE: <https://tinyurl.com/ych4lqjl>. Acesso em: 10 out. 2020.

IMPORTANTE

Osataquesde11desetembrode2001levaramaumamudançananaturezadaguerra,poisdemonstraramopoderdedestruiçãodaguerraassimétrica,assimcomoexpuseramaincapacidadedeumasuperpotênciacomoosEstadosUnidosdesedefender.Dessamaneira,ficoupatentequeaestratégiadedissuasãodosEstadosUnidoshaviafalhadoemfaceaosnovosdesafiosinerentesaumespectromaiscontemporâneodeconflito(KNOTT,2004).

Em resposta ao 11 de setembro, o ataque dos Estados Unidos aoAfeganistão teria como objetivo controlar, dentro do possível, a escalada,minimizandoosdanoscolaterais.Isso,decertaforma,questionavaarelevânciadasarmasnuclearesedaTeoriadaDissuasão.Asarmasnuclearespareciamnãoterutilidadecontraasnovasameaças.

O projeto de defesa antimísseis dos Estados Unidos também se tornouirrelevante.Consequentemente, adissuasãonão foimaisvistaapenasà luzdasarmasnuclearesedaguerraconvencionalparaconfrontarumagamarenovadadeameaçasmaisamplas,incluindoatoresnãoestataiseaguerraassimétrica,oqueiriacausaraindamaisquestionamentosàdinâmicadadissuasão(KNOTT,2004).

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

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Aquestãoprincipalerasaberseadissuasãotambémpoderiaserusadacontraameaçasnãotradicionais,comooterrorismo.Muitosargumentaramqueas armas nucleares não foram a solução para lidar com conflitos por proxies(guerrasdeprocuração)entreasduassuperpotências,duranteaGuerraFria.Deformaanáloga,nãosãoasoluçãoparaproblemascomooconflitoentreaÍndiaeoPaquistão.Atualmente,estamosnaquinta,emaiscrítica,fasedadissuasão,comachegadadenovastecnologias,comodrones,inteligênciaartificial,mísseissupersônicos,sistemasdeataquesglobaisimediatos(GPS),entreoutros.Emumquadro de crescente assimetria, tornou-se necessário repensar mudanças nasestratégiasdoutrinárias,inclusivenoconceitodeataquespreventivoseumanovanormasobreataquescirúrgicosseletivos(ABBASI;KHAN,2019).

Uma guerra por procuração (em inglês proxy war) é um conflito armado no qual dois países se utilizam de terceiros, os proxies, como intermediários ou substitutos, de forma a não lutarem diretamente entre si. São exemplos a Guerra da Coreia e a Guerra do Vietnã.

FONTE: <https://tinyurl.com/2xfk5kpa>. Acesso em: 15 fev. 2021.

NOTA

Os Estados mais fortes adotaram tecnologias mais inteligentes paraengajar alvos seletivos com intuito, pelo menos em teoria, de minimizar osdanos colaterais, reduzir o custodaguerra e evitar riscosdeuma escalada.Éevidentequeaprobabilidadedeumaguerraemgrandeescala,entrepotências,foireduzida.OcientistapolíticoGrahamAllison,porexemplo,argumentaqueumaguerraentreosEstadosUnidoseaChinanãoéinevitável,masasrelaçõescomerciaiseadissuasãonuclear seriamfatoresque levariamànegociaçãoeàacomodaçãoentreospaíses(ALLISON,2017).

No entanto, considerando as inovações tecnológicas, as guerrasinteligentes–curtaseprecisas–aindapermanecemcomorelevantesalternativasparaatingirobjetivosestratégicos.ApossedearmasnuclearespodeevitarumaguerraentreEstadosUnidoseChina,ouentreÍndiaePaquistão,devidoaotemorpela retaliação,mas a probabilidade que ocorram corridas armamentistas e apossibilidadedeataques inteligentes e/ou confrontos limitadospermanecemenãopodemsercontroladas.Assim,tecnologiasconvencionaismaisinteligentesparecemmudarasdoutrinassobreoempregodearmasnuclearesnoteatrodeguerracontemporâneo.

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TÓPICO 1 — DISSUASÃO NUCLEAR

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Desafiosdesegurança,decorrentesdeameaçashíbridaseguerrahíbrida,tornam ainda mais complexos o espectro de ameaças e as configurações desegurançaentreosEstados.Aguerrahíbridacompreendeoempregodeestratégiasnãoconvencionaiscomopartedeumestilodecombateemváriosdomínios.

Na guerra híbrida, o objetivo é interromper e neutralizar as ações deumoponente semse expor aumaagressãoaberta.Háumconsensodequeaguerrahíbridaincluiameaçasmúltiplasesincronizadasquevisamaatingirasvulnerabilidades dos Estados em diferentes níveis: religioso, militar, político,econômico, cibernético e de informação. As capacidades de guerra híbridaincluem:

• o movimento de forças convencionais equipadas com tecnologias maisinteligentes;

• intimidação de força nuclear, guerras comerciais, manipulação econômica,coerção de energia;

• propagandaedesinformação,usodeproxieseinsurgências,pressãodiplomáticaeguerracibernética,empregadospormeiosdiretosouclandestinos.

Atualmente,aconectividadeeainformatização,emlargaescala,tambémsão alvos de ataques cibernéticos. O especialista em Política InternacionalAndrewFutterafirmaqueocrescimentodacapacidadecibernéticaeadinâmicatecnológicanaeradainformaçãoestão,semdúvida,criandodesafiosparaaatualestratégia nuclear. Ele destaca a crescente ameaça representada por hackers,quebuscamobter acessoou interferirnesses sistemasaltamente sensíveis, emsua infraestrutura enas armasque controlam.O conflito cibernético já éumarealidade entre os países e inclui ataques e contra-ataques a infraestruturascríticas,comoredesdeenergia,eapopulaçõesmilitaresecivis.Dessamaneira,nesseconflitocibernético,estáenvolvidaumagamaextensadeórgãoestataiseprivados(FUTTER,2015).

Assim,aguerrahíbridaconfundeoslimitesentreasesferascivilemilitar.Pode-se argumentar que os Estados aspiram evitar engajamento em guerrasdiretas,reduzindo,também,ocusto,emváriosníveis,deumaguerraconvencionalparaatingiroobjetivopormeiosnãomilitares.Outrossim,adissuasãonuclearnãopodedeterameaçashíbridas,portanto,nãodetémmaisaposiçãocentralqueocupouduranteaGuerraFriaouno iníciodoséculoXXI.Consequentemente,se a Teoria daDissuasão tradicional não oferece lições para resolver desafioscomplexoscontemporâneos,decorrentesdeameaçashíbridas,seriamnecessáriasnovas teorias, pensadores e abordagens para lidar com ameaças renovadas(JOHNSON;MCCULLOH,2017).

UmadasprincipaiscríticasàTeoriadaDissuasãoestárelacionadacomasuarelevâncianomundoatual,queteveumpapelimportanteduranteaGuerraFriaemummundobipolardeEstadosUnidos×URSS,pois,semarmasnucleareseaGuerraFria,adissuasãoteriapermanecidoumestratagemaocasionale,apósaSegundaGuerraMundial,porém,pelaprimeiravez,adissuasãoevoluiupara

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

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uma estratégia elaborada. No entanto, o quadro prevalente naquele cenáriono mundo mudou radicalmente. Nesse sentido, algumas das políticas maisimportantes e abordagens relacionadas à Teoria da Dissuasão, nas RelaçõesInternacionais, se transformaram após os ataques de 11 de setembro de 2001(JOHNSON;MCCULLOH,2017).

Dopontodevista teórico,umpoderdedissuasãonuclear“confortável”existiriaapenasnocasodehegemonianuclearnasmãosdeumEstado.Assim,opaíscomcapacidadenuclearpoderiasobreviverrodeadoporinimigos,semcapacidadenuclear,mesmosuperadonoequilíbriodearmasconvencionais.Todavia, comoqualquer política de dissuasão, cenários em que outros Estados venham obtercapacidadesnuclearestambémestãoprevistosnoprincípiodeDMA.

AdificuldadedecombinarracionalidadesdedoisEstados,provavelmente,éopontofracodaTeoriadaDissuasão,poisestaébaseadaemsuposiçõesque,emcertamedida,sãofundamentadasematoresdiferentes,masemcálculosracionais.Portanto,dependendodoator,osriscoseasestratégiasvariariamparaambososlados.Alémdoscálculos,deve-sediscutiroquesignifica“racionalidade”paraosgovernoseelitesmilitaresdediferentesatorespolíticos.Dessemodo,aTeoriadaDissuasãonãoprevê se os atoresque iniciariamumaação são “racionais”,mas,sim,especificasobquaiscondiçõesopaísnãoatacará;ateoriaderivaseurigorecaráterpreditivodainter-relaçãoentreasvariáveiscríticasquemoldamocálculodeumagressor.Oproblema,nesseprocesso,équandooagressorbaseiasuasaçõesemaliançasououtraspolíticasnãoincluídasnateoria,oquetornaaequaçãodedissuasãomuitomaiscomplexa(FUTTER,2015).

Uma primeira crítica está relacionada ao conceito de racionalidadedefinida como condições de operabilidade que podem ser consideradas e,consequentemente,previstas.IssolevaàconclusãodequeaTeoriadaDissuasãoapresenta um modelo com certas condições de escolha racional, pelo qual adissuasãopodefuncionar,masoutrosfatoresperturbadorespodeminfluenciarno resultado da dissuasão.A Teoria da Dissuasão foi construída em face dediferentescrises,nãoobstante,podesercontestadadiantedenovosquadroserealidades(FUTTER,2015).

Assim,uma segunda crítica está relacionada aopressupostodeque asarmasnuclearespoderiamassegurarasuperioridade–talsuperioridade,porém,nãoimpediuasguerrasconvencionais.Potênciasnuclearesestiveramenvolvidasemguerrasconvencionais,duranteeapósaGuerraFria,semqueseusarsenaisnuclearesfizessemalgumadiferença.

Indoalém,dopontodevistateórico,existemdoisargumentosdiscutíveisque,seconsiderados,evitariamoconfrontoemumcenárioDMA:

• Osefeitoscolateraisdousodearmasnuclearesseriamtãodanososquenãopoderiamserconcebidosemmodelosracionais.

• Ousode estratégiasnucleares,mesmoque limitadas,devidoà suapróprianaturezaeosmecanismosdecontrole,levariaaumconfrontonuclear.

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TÓPICO 1 — DISSUASÃO NUCLEAR

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Emsuma,sãováriasassituaçõesque levaramaumarevisãodaTeoriadaDissuasãonuclear.Adissuasãofoiconcebidaparadarestabilidadeaospaísesdiantedeameaçasexistenciais,masoquadrodemonstraqueEstadoseatoresnão estatais podem decidir não jogar pelas regras estabelecidas pelo quadroteórico criadodurante aGuerra Fria.Oprocesso internacional de controle dearmasnuclearesseráumalongajornada,poisasarmasnãopodemserapagadase a segurança internacionalpermanecerá, pormuito tempo, enfrentada comanecessidadedevivercomeles.Enquantoisso,ainstabilidadeinerenteàsarmasnucleares,na faltadeum imperativoeeficiente sistemadecontroledearmas,reintroduzapossibilidadedeumaguerranuclear,mesmolimitada.AcontradiçãoatualentreadissuasãonucleareosprocessosdecontroledearmaséodebatemaissignificativonoâmagodaTeoriadaDissuasão.

Albert Einstein, inicialmente, a favor da fabricação de armas nucleares, se tornou um ardente defensor da erradicação de armas de destruição de massa. Sua resposta à pergunta de como seria uma possível ISegunda Guerra Mundial simboliza, com ironia, o poder destrutivo de um conflito atômico entre os Estados Unidos e a URSS.

IMPORTANTE

ALBERT EINSTEIN SOBRE UMA POSSÍVEL SEGUNDA GUERRA MUNDIAL COM ARMAS NUCLEARES

FONTE: <https://tinyurl.com/ycayre9f>. Acesso em: 10 out. 2020.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

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Algumas sugestões de filmes sobre a Guerra Fria:

• Adeus Lênin (2003).• Ponte de Espiões (2015).• O Espião que Veio do Frio (1965).• Treze Dias que abalaram o Mundo (2000).• The Americans (série com seis temporadas – 2013-2018).

DICAS

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Neste tópico, você aprendeu que:

• Dissuasão é uma estratégia militar baseada na premissa de convencer umadversárioanãoconcretizarumaameaça.

• NaTeoriadaDissuasão,asrelaçõesentreosEstadosnãoéoparadigma,pois,emumsistemainternacional“anárquico”,nãoexisteumaautoridadecentral,portanto,emtalsistema,cabeaosEstadossetornarempoderosos,comointuitodeprotegerosinteressesnacionaisdeseusrespectivospaíses.

• ATeoriadaDissuasão,nocampoacadêmico,temevoluídoconstantemente.

• A Teoria daDissuasão, na sua primeira fase, começa logo após a SegundaGuerraMundial,comoobjetivoprincipaldedefinirasvantagensestratégicaspropiciadaspelasarmasnucleareseseuimpactopolítico.

• ATeoriadaDissuasão,nasuasegunda fase, começanofinaldosanos1950e incorpora modelos teóricos para estudar a dissuasão, esforçando-se paracompreensãodasestratégiasetáticasdosprincipaisatores.

• Na segunda fase, surgem críticas à teoria da dissuasão no que se refere ànecessidadedepesquisasempíricas.

• A terceira fasedaTeoriadaDissuasãodá continuidadeaosdebatesda faseanterior, enquanto tenta combater coma fortedependênciadasabordagensfundamentadasnasestratégiasdeataquespreemptivos.

• Na quarta onda, surge a necessidade de repensar as novas realidades dasRelações Internacionaisvis-à-visaoconceitoclássicode teoriadadissuasão.Alémdisso,osataquesterroristasrealizadosporatoresnãoestataisdesafiamateoriadadissuasão,fundindo-aemumanovafase.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 ApósaSegundaGuerraMundial, surgeaprimeira superpotênciae,nosanosseguintes,asegunda,oquedeuinícioaumatensãoquedurariaatéadécadade1990.Sobreessarivalidadegeopolíticaentreduassuperpotências,classifiqueVparaassentençasverdadeiraseFparaasfalsas:

() EstadosUnidoseChinasurgem,após1945,comosuperpotências.()OperíodoentreosanosseguintesàSegundaGuerraMundialeadécada

de1990ficouconhecidocomoGuerraFria.()A Dissuasão Nuclear surge como estratégia política após a Primeira

GuerraMundial.()AGuerraFria,comoindicaonome,secaracterizouporconflitosdebaixa

intensidadediretosentreosEstadosUnidoseaUniãoSoviética.

AssinaleaalternativaqueapresentaasequênciaCORRETA:

a)() V–V–F–V.b)() F–V–F–V.c)() V–F–V–F.d)() F – F – F – V.

2 Considere as lacunas do texto a seguir:

Durante a Guerra Fria, a polarização entre as duas superpotências foichamadapelosespecialistasde____________________.NoperíodoimediatoaofimdaGuerraFria,porém,asnovasdinâmicasnasRelaçõesInternacionaisforamchamadasde__________________,paraummundocomumapotênciahegemônica,e_________________,paraummundoemquenãohaveriaumapotênciahegemônica,mas comblocosepaísesdesfrutandodepoderparainfluenciardecisivamentenapolíticainternacional.

AssinaleaalternativaqueapresentaasequênciaCORRETA:

a)() Uniporalismo–bipolarismo–multiporalismo.b)() Multiporalismo–bipolarismo–uniporalismo.c)() Bipolarismo–uniporalismo–multiporalismo.d)() Uniporalismo–multiporalismo–bipolarismo.

3 Leiaotextoaseguir:

Umadoutrinadeestratégiamilitarnaqualousomaciçodearmasnuclearespor um dos lados iria efetivamente resultar na destruição de ambos,atacanteedefensor.ÉbaseadanaTeoriadaDissuasãoquepreconiza,queodesenvolvimentodearmas,cadavezmaispoderosas,éessencialparaimpedirqueoinimigouseasmesmasarmas.

AUTOATIVIDADE

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Considerandootermoquecontemplaadoutrinadescrita,assinaleaalternativaCORRETA:

a)() EquilíbriodeNash.b)() Tríadeestratégica.c)() Destruiçãomútuaassegurada.d)() Máquinaapocalíptica.

4 Leiaotextoaseguir:

“Adoutrinadadissuasãonuclear,quepassaporumverdadeirotestenaatualcriseentreEstadosUnidoseCoreiadoNorte,nasceunaGuerraFria,quandoasduaspotênciasdaépocaafirmavamquequalquerataqueteriarepresáliasapocalípticas.Emplenacorridaarmamentista,WashingtoneMoscoumultiplicavamonúmeroe a potência de suas ogivas nucleares, assim como a quantidade de vetores(mísseis,aviões,submarinos)paraconseguiroqueosespecialistaschamamde‘DestruiçãoMútuaAssegurada’(MAD,nasiglaeminglês)”.

FONTE: <https://tinyurl.com/4nwn3w4x>. Acesso em: 16 jul. 2021.

Sobreadoutrinadedissuasãonuclear,façaumresumodesuasquatrofasesnoperíodopós-SegundaGuerraMundial.

5 Leiaotextoaseguir:

“Com o final daGuerra Fria, o conceito de dissuasão, que até essa alturaconstituía o núcleo central de uma grande estratégia (grand strategy) de‘contenção’, perdeu proeminência em virtude do desaparecimento da ex-URSS.OocasobipolarconferiuaosEUAoestatutodepotênciamundialúnica.ComoprodutodaGuerraFria,as teoriasdedissuasãoclássicasrefletiamarelaçãodehostilidadeentreosEUAeaURSS,soboespectrodeameaçadeempregodasarmasnucleares”.

FONTE: <https://tinyurl.com/52m2592w>. Acesso em: 16 jul. 2021.

Dissertesobreasmudançasdanaturezadaguerraapósosataquesde11desetembrode2001nosEstadosUnidos.

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UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

ASegurançaNacional ou aDefesaNacional deumEstado inclui seuscidadãos, economia e instituições. Originalmente concebida como proteçãocontraataquesmilitares,aSegurançaNacionalpassouacompreendertambémdimensões não militares, incluindo segurança contra o terrorismo, combateao crime, segurança econômica, segurança energética, segurança ambiental,segurançaalimentar,cibersegurança,entreoutros.

AsameaçascontraaSegurançaNacionalincluem,alémdasaçõesdeoutrosEstados, as açõesde atoresnão estatais,de cartéisdenarcóticos,de empresasmultinacionaiseosefeitosdedesastresnaturais.

ParasalvaguardarasegurançadoEstado,osgovernoscontamcomumasériedemedidas,comopoderpolítico,econômicoemilitar,alémdadiplomacia.Osgovernostambémpodemimplementarcondiçõesparafortalecerasegurançaregional e internacional, reduzindo os efeitos desestabilizadores, comoinsegurança,mudançasclimáticas,desigualdadeeconômica,exclusãopolíticaeproliferaçãonuclear.

TÓPICO 2 —

AS DOUTRINAS DE SEGURANÇA NACIONAL NO MUNDO PÓS-GUERRA FRIA

FIGURA 4 – SEGURANÇA NACIONAL: DIPLOMACIA, INTELIGÊNCIA E DEFESA

FONTE: <https://tinyurl.com/yxlg92d7>. Acesso em: 23 jan. 2021.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

Nestetópico,serãoabordadososnovosdesafiosinerentesàcomplexidadedomundopós-GuerraFria,como:

• asdefiniçõesconceituaisdesegurançanacional;• asdimensõesdasegurançanacional;• asegurançafísicaesegurançamilitar;• asegurançadeinfraestrutura;• asegurançainformática;• asegurançapolítica;• asegurançaeconômica;• a segurança ecológica;• a segurança de energia e recursos naturais;• a segurança nacional;• asegurançanacional×transnacional;• oimpactonasliberdadescivisedireitoshumanos.

AideiaéabrangerumavariedadedeassuntosrelacionadosàSegurançaNacionalnoperíodoqueseguiuofimdaGuerraFria.Algumaspreocupaçõesrelacionadasaotema“SegurançaNacional”jáeramcontempladasnasestratégiasepolíticasdetodososEstados,porém,diantedeumnovoquadrogeopolítico,devisõesdemundocomnovaspreocupaçõesedadisseminaçãodenovastecnologias,o“guarda-chuva”conceitualde“SegurançaNacional”seestendeparaatenderasameaçasreaisoupercebidascomotalpelogovernodetodospaíses.

OconceitodeSegurançaNacionalé intrinsicamenteambíguo,mastemcomobasedefiniçõessimples,queenfatizammedidascontraameaçasmilitaresedeâmbitopolítico.Entreasmuitasdefiniçõespropostas,destacam-seasqueevoluíramparaabrangerquestõesnãomilitares:

• “Uma nação desfruta de segurança quando não tem que sacrificar seusinteresseslegítimosparaevitaraguerraeécapaz,sedesafiada,demantê-losnaguerra”(WalterLippmann,1943).

• “AcaracterísticamaisimportantedeSegurançaNacionaléumanaçãoserlivrededitamesestrangeiros”(HaroldLasswell,1950).

• “A Segurança Nacional é a ausência de ameaças aos valores adquiridos e,subjetivamente, a ausência de medo de que tais valores sejam atacados”(ArnoldWolfers,1960).

• “ASegurançaNacional é a capacidadedepreservar a integridade física e oterritóriodeumanação;demantersuasrelaçõeseconômicascomorestodomundoedepreservarseucaráter, instituiçãoegovernançadeperturbaçõesexternasedecontrolarsuasfronteiras”(HaroldBrown,SecretáriodeDefesadosEstadosUnidos,1977-1981)

• “ASegurançaNacionalpodeserdescritacomoacapacidadedecontrolarascondições,domésticaseestrangeiras,queaopiniãopúblicadeumadeterminadanaçãoacreditasernecessáriasparadesfrutardesuaprópriaautodeterminaçãoouautonomia,prosperidadeebem-estar”(CharlesMaier,1990).

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TÓPICO 2 — AS DOUTRINAS DE SEGURANÇA NACIONAL NO MUNDO PÓS-GUERRA FRIA

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• “ASegurançaNacionaléumacombinaçãoderesiliênciapolíticaematuridade,recursoshumanos,estruturaecapacidadeeconômica,competênciatecnológica,baseindustrialedisponibilidadederecursosnaturaise,finalmente,depoderiomilitar”(NationalDefenseCollegeofIndia,1996)

• “ASegurançaNacionaléoestadomensuráveldacapacidadedeumanaçãosuperarasameaçasmultidimensionaisegarantirobem-estardeseupovoesuasobrevivênciacomoumEstado-naçãoemqualquermomento,equilibrandotodososinstrumentosdapolíticadoEstadopormeiodegovernança[...]eéextensívelàsegurançaglobalporvariáveisexternasaela”(PrabhakaranPaleri,2008).

• “Segurançanacionaleinternacionalpodeserentendidacomoumaliberdadecompartilhadadomedoedanecessidade,ealiberdadedevivercomdignidade.Implica saúde social e ecológica ao invésda ausênciade risco [...] [e é]umdireitocomum”(TheAmmerdownGroup,2016).

FONTE: <https://pt.esc.wiki/wiki/State_security>. Acesso em: 8 jul. 2021.

Asdefiniçõesde“SegurançaNacional”,emordemcronológica,refletemomundo e, certamente, a perspectiva e posição dos seus autores. Por isso, épossívelnotarasdiferençasentreelasduranteeapósaGuerraFria.Asdefinições,nafaseinicial,sãomaissimpleseenfatizamapossibilidadedoconflitoarmadoeasoberaniadosEstados.

ComodecorrerdaGuerraFriaenasuafasefinal,asdefiniçõessetornarammaiscomplexaseseestenderamaoutrasáreas,comoeconomia,segurançasocial,segurançapolíticaeecológica,entreoutras.Portanto,osconceitoseasdefiniçõesde“SegurançaNacional”sãoprodutosdeseutempoetrazemnoseubojoumforteconteúdopolítico.

2 DIMENSÕES DA SEGURANÇA NACIONAL

Naatualidade,deformacrescente,osgovernosorganizamsuaspolíticasde segurança em torno de uma estratégia de Segurança Nacional. Em 2017,Espanha,Suécia,ReinoUnidoeEstadosUnidosforampaísesqueadotaramessasmedidas. Outros criaram órgãos como conselhos de segurança nacional, umaagênciagovernamentalexecutiva,quefornecem,aoChefedeEstado,subsídiosparalidarcomtópicosrelativosàsegurançanacionaleaointeresseestratégico.OConselhodeSegurançaNacionalconcebeestratégiasdelongoprazoeplanosdesegurançanacionaldecontingênciadecurtoprazo(ROGERS,2010).

No Reino Unido, por exemplo, o principal órgão responsável pelacoordenação da política de segurança nacional é o Conselho de SegurançaNacional (Reino Unido), encarregado de criar e implementar a Estratégia deSegurançaNacional.Em2010,onovogovernodecoalizãocriouoConselhode

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

SegurançaNacional,umComitêdoGabinetecomopartedeumareformamaisamplanoaparatodesegurançanacional.EssareformatambémincluiuacriaçãodocargodeConselheirodeSegurançaNacionaleumaSecretariadeSegurançaNacionalparaapoiaroConselhodeSegurançaNacional.

Outro exemplo de doutrina de Segurança Nacional é o conceito de“segurançatotal”adotado,em1984,emSingapura,quesebaseianapremissadequeadefesacoletivaéamaiseficazformadedefesadeumEstado.Assim,nosistemade“defesatotal”,todososaspectosdeumasociedadeestãoligadosàdefesadopaís.A“defesatotal”,adotadatambémemestratégiasdedefesanacionalnaSuéciaenaSuíça,reconhecequeameaçasmilitaresaumanaçãopodemafetarapsiqueeotecidosocialdeseupovo.Portanto,nessaperspectiva,adefesadeCingapuradependedadeterminaçãodetodososseuscidadãos,enãoapenasdogovernooudasforçasarmadas.Porfim,oconceitode“defesatotal”evoluiucontemplandoameaçasedesafiosforadodomíniomilitarconvencional(LINGLE,1996).

Emboracomabordagensdiferentes,algunsEstadoscomeçamapriorizarações não militares para lidar com os fatores sistêmicos de insegurança.Tradicionalmente,ascapacidadesmilitareserambaseadas,sobretudo,emterraounomar,mas,naatualidade,osdomíniosdaguerrapotencial incluemoar,o espaço, o ciberespaço e as operações psicológicas.As capacidadesmilitaresdestinadas a esses domínios podem ser utilizadas para a segurança nacionalou igualmenteparafinsofensivos,comoparaconquistareanexar territórioserecursos(GLEICK,2014).

3 SEGURANÇA FÍSICA E SEGURANÇA MILITAR

Na prática, a segurança nacional está associada principalmente aogerenciamentodasameaçasfísicaseàscapacidadesmilitaresaçõesnecessáriaspara respondê-las–ou seja, a segurançanacional é frequentementeentendidacomoacapacidadedeumanaçãodemobilizarforçasmilitaresparagarantirsuasfronteiraseparadissuadirousedefendercomsucessocontraameaças físicas,incluindoagressãomilitareataquesporatoresnãoestatais,comooterrorismo.AmaioriadosEstados,comoaÁfricadoSuleaSuécia,configuramsuasforçasmilitares principalmente para defesa territorial; outros, como França, Rússia,ReinoUnidoeEstadosUnidos,investememcapacidadesexpedicionáriasdealtocusto,quepermitemasuasforçasarmadasprojetarpoderesustentaroperaçõesmilitaresnoexterior(OLIKA,2016).

EmpaísescomooJapão,porexemplo,apósaSegundaGuerraMundial,asforçasarmadasadotaramonomede“ForçasdeAutodefesa”.NoArtigo9daConstituiçãodopós-guerra,osjaponesesrenunciaramàguerra,comprometendo-seanãomanterforçasterrestres,marítimasouaéreas.Assim,orearmamentodoJapão,nadécadade1950,foiiniciadoemtermosdeautodefesa.Em1950,foicriadaumapequenaforçamilitar,chamadadeReservadaPolíciaNacional,quesetornouumaForçadeSegurançaNacional,em1952,eumaForçadeAutodefesa,em1954.

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TÓPICO 2 — AS DOUTRINAS DE SEGURANÇA NACIONAL NO MUNDO PÓS-GUERRA FRIA

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ADefesaNacionaljaponesatambémémantidaporacordosdesegurançacoletivacomosEstadosUnidos,queestãoemvigordesdeoiníciodadécadade1950.PeloTratadodeCooperaçãoeSegurançaMútua–concluídoentreoJapãoeosEstadosUnidos,em1960,confirmadoem1970e,posteriormente,corroboradocom pequenas mudanças no final da década de 1990 –, os Estados UnidosoperambasesmilitaresnoJapão,principalmenteemOkinawa.Otratadopodeserrescindidoumanoapósqualquerumdossignatáriosindicartalintenção.

A criação das “Forças de Autodefesa” causou controvérsia e suaconstitucionalidadefoiobjetodedisputas legais,massuamanutençãoocorreupor conta de sua natureza, em tese, defensiva. Por outro lado, a disposiçãoanti-GuerradaConstituição também foi contestada, especialmenteporgruposnacionalistasjaponeses.Em1992,ogovernoautorizouoprimeirousodeforçasjaponesas, após a Segunda Guerra Mundial, fora do país para operações demanutençãodapaznãocombatentespatrocinadaspelaOrganizaçãodasNaçõesUnidas(ONU).Em2009,aMarinhaImperialenviou,pelaprimeiravez,forçascombatentes japonesas para o Golfo de Áden para neutralizar as operaçõespiratascontranaviosjaponesesnacostadaSomália(SADŌ,2017).

4 SEGURANÇA DE INFRAESTRUTURA

Segurançadeinfraestruturaéaquelacriadaparaproteger,especialmente,a infraestrutura crítica, como aeroportos, rodovias, transporte ferroviário,hospitais, pontes, centros de transporte, comunicações de rede, mídia, redeelétrica, barragens, usinas, portos marítimos, petróleo refinarias e sistemasdeágua.Asegurançada infraestruturavisaa limitaravulnerabilidadedessasestruturasesistemasàsabotagem,aoterrorismoeàcontaminação.

Vários países estabeleceram agências governamentais para gerenciardiretamente a segurança de infraestrutura crítica, geralmente por meio doministériode agênciasde segurançadedicadas aproteger instalações, comoo“Serviço de Proteção Federal”, nos EstadosUnidos, e a polícia de transporte,comoaPolíciadeTransporteBritânica.Existemtambémunidadesdesegurançadetransportecomercial,comoaPolíciaAmtrak,nosEstadosUnidos.

Ainfraestruturacríticaévitalparaofuncionamentoessencialdeumpaís.Danosacidentaisoudeliberadospodemterumsérioimpactonaeconomiaenosserviçosessenciais.Algumasdasameaçasàinfraestruturaincluem:

• Terrorismo: pessoa ou grupos que visam deliberadamente à infraestruturacríticaparaobterganhospolíticos.NosataquesdeMumbai,emnovembrode2008,aestaçãocentraleohospitaldeMumbaiforamatacados.

• Sabotagem:pessoaougrupos,comoex-funcionários,gruposantigovernamentaisegruposambientais.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

• GuerradeInformação:hackersprivadosparaganhosprivadosoupaísesqueiniciamataquesparacoletarinformaçõesedanificarainfraestruturacibernéticadeumpaís.AtaquescibernéticosnaEstôniaeosataquescibernéticosduranteaguerradaOssétiadoSul,em2008,sãoexemplos.

• Desastres naturais: furacão ou outros eventos naturais que danificam ainfraestruturacrítica,comooleodutos,redesdeáguaeenergia–porexemplo,ofuracãoIkeeosefeitoseconômicosdofuracãoKatrina.

5 SEGURANÇA INFORMÁTICA

A Segurança de Informática, também conhecida como segurançacibernéticaousegurançadeTecnologiadeInformação(TI)refere-seàsegurançadedispositivosde computação, como computadores e smartphones, bemcomoredesdecomputadores,comoredesprivadasepúblicaseainternet.Dizrespeitoàproteçãodehardware,software,dados,pessoaseaosprocedimentospelosquaisossistemassãoacessados;ocampotemumaimportânciacrescentedevidoàcrescentedependênciadesistemasdecomputadornamaioriadassociedades–vistoqueoacessonãoautorizadoainfraestruturascivisemilitarescríticaséconsideradoumagrandeameaça,ociberespaçoéreconhecidocomoumdomíniodeguerra.

O espaço da política e interação cibernética ou, mais precisamente, oespaçoda“ciberpolítica”éconsideradoamaisrecente,nocampoteóricoeprático,e importanteáreade interesseentreespecialistasempolítica internacional.Naatualidade, a política cibernética e a segurança cibernética são discutidas nocampodasRelações Internacionaisedapolítica.Portanto,o ciberespaçoéumnovocampoquepodegeraramizade,cooperação,competição,hostilidadeeatéguerraentrenaçõeseoutrosatores.Apolíticacibernéticaéumconceitoqueserefereàinteraçãoeàcoerênciadasduasarenasdapolítica(olugardeamizade,cooperação,competição,conflitoeguerradevalorese interesses)edainternet(umanovaplataformadeatuação).Algunsespecialistasforamaindamaislongeefalaramda“grandepolítica”daciberpolíticacontraa“políticasecreta”.

No campo das Relações Internacionais, sob a influência da tradição doRealismo, as questões internacionais se dividem em questões cruciais, comosegurançaequestõesmenosimportantes,comoaseconômicas.Algunsespecialistasacreditamque,devidoàimportânciadociberespaço,apolíticacibernéticadeveserconsideradaumaquestãodefundamentalimportâncianamacropolítica.

Como justificativaparaessa importância,observamque,naatualidade,milhõesdepessoasemtodoomundotêmacessoacomputadoreseàinterneteonúmerodeusuáriosaumenta,assimcomoacomplexidadedousodainternet.Portanto,ociberespaçodesempenhaumpapelnaformaçãodaopiniãopública,criando prioridades e desejos, diplomacia pública, espionagem, vandalismo,guerra,conflitoetudooqueconstituiodomínioda“políticareal”.

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OarcabouçoteóricoeoimpactodociberespaçonapolíticaenasRelaçõesInternacionais se baseiam em três questões principais. O primeiro problemaé a apresentação de uma “ordem conceitual” para explicar a relação entre ociberespaçoeapolítica.Asegundaquestãoéidentificareacreditarnaconexãogeneralizadaentreociberespaçoeapolítica.Aterceiraquestãoéaexplicaçãodarotaeasquestõesimportantesnessaconexão.

Alémdessestrêsníveisde“humano”,“Estados”e“SistemaInternacional”,o espaço cibernético requerumnovonível, o “nível global”, caracterizadopeloseu impacto e pela separação entre o “sistema social” e o “ambiente natural”.Logo,onívelglobal,queenfatizaoespaçoda internete seu impactoamplonomundodapolítica,nãopodemaissernostermosdosantigos(tradicionais)níveisqueenfatizavamoindivíduo,oEstadoouosistemainternacional.Dessamaneira,o espaço da internet se tornou um espaço para atores atuantes, inclusive nãoestatais,comoterroristaseempresasprivadas,emtermoseconômicos,culturais,desegurançaeatémilitares.Portanto,onívelglobal,combinadoaoutrosníveis,criaamplainterconexãoedimensõescapazesdeinfluenciaroutrosespaçospolíticos.

Combasenaexperiênciadasúltimasdécadas,ainterneteociberespaçoafetaramasrelaçõesentreospaíses–porexemplo,asrelaçõesentreosEstadosUnidoseoIrã,ChinaeRússia,entreoutros.Assim,acompetiçãoentrepaísesnessaáreatemtantoumefeitopositivoquantonegativo.Entretanto,apesardosefeitospositivosdessacompetição,ainternetcriouumambientedehostilidadeeguerra,no qual vários países já se envolveram.Nesse tipo de guerra, países e outrosatoresusamainternetparaespionar,sabotarecriarinsurreições,revoluçõese,atémesmo,adestruiçãodeinstalaçõesmilitaresecentrosvitaisdoinimigo.

Portanto,anovaatmosferanaarenainternacionalnãopodeseranalisadacombase em teorias, abordagens e níveisdopassado, porque o conteúdo e afilosofia do ciberespaço sãomuito diferentes do passado.Nesse novo espaço,novostiposdeamizade,cooperação,rivalidade,hostilidadeeguerraforamcriadosaoladodepadrõesanteriores.Apolíticacibernéticaeasegurançacibernética,nocontextoatual,sãoconsideradaspelosespecialistasemRelaçõesInternacionaiscomoaquestãoprincipal,emconjuntocomasquestõesmaistradicionaiscomoguerra,economia,direitoshumanosemeioambiente.

Porúltimo,ociberespaçoforneceunovascondiçõesparaacooperaçãoeacompetiçãoentrepaíses,criandocondiçõesnasquaisasquestõesdasRelaçõesInternacionais sãoapresentadasde formadiferenciada, resultandonumanovaformadeciberpolíticacomimplicaçõesparticularesparaasegurançanacionaleinternacional(MALIK,2013)

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6 SEGURANÇA POLÍTICA

EspecialistascomoBarryBuzan,OleWæver,JaapdeWilde,entreoutros,argumentaramqueasegurançanacionaldependedasegurançapolítica,ouseja,da estabilidade da ordem social (BUZAN, 1983). Outros, como Paul Rogers,acrescentaramqueoequilíbriodaordeminternacionaléigualmentefundamental(ROGERS, 2010). Portanto, a segurançapolíticadependedo estadodedireito,internoeexterno,daeficáciadasinstituiçõespolíticasinternacionais,bemcomodadiplomaciaedanegociaçãoentreasnaçõeseoutrosatores.Deformaanáloga,depende,entreoutrosfatores,dainclusãopolíticaefetivadosgruposinsatisfeitosedasegurançahumanadoscidadãos(EMMERS,2007).

No início dos anos 2000, no debate sobre a intervenção humanitária,apenas umpunhado de países se opunham contra a intervenção humanitáriaemnenhumacircunstância.AtémesmoaChinaeaRússiaestavampreparadaspara reconhecer que as violações da segurança política, na forma de criseshumanitárias,eramumapreocupaçãolegítimadacomunidadeinternacional.Noentanto,essesdoispaísesmantiveramaressalvadequeapenasoConselhodeSegurançadaONUteriaodireitodeagir,oque,éclaro,lhesdariaacapacidadedeendossarouvetarqualqueraçãopormeiodeseusassentospermanentesnoConselhodeSegurança.

AimportânciadetalmedidaparaasRelaçõesInternacionaisnãopodeserignorada.Aceitarqueaintervençãohumanitáriaélegítimacorróianormada soberania dos Estados de Vestefália e marca uma ruptura com a noçãohobbesianadequeos soberanos têmodireitodegovernar seus cidadãosdamaneiraqueconsideraremadequadaequeessaeraamelhorformademanteraordeminternacional.

No entanto, em seu lugar, surgiu uma “norma difusa” de soberaniacomoresponsabilidadepelaqualasegurançapolíticadosindivíduosentraemconflitocomalógicadasoberania.ComooSecretário-geraldaONUKofiAnnanreconheceu,em1999,emseudiscurso:“asoberaniadoEstado,emseusentidomaisbásico,estásendoredefinidapelasforçasdaglobalizaçãoedacooperaçãointernacional”(BELLAMY,2006,p.491).

A mudança foi uma resposta aos crescentes desafios do que constituiuma intervenção humanitária legítima. Em 2000, aAssembleia Geral da ONUestabeleceuaComissãoInternacionaldeIntervençãoeSoberaniadoEstado(CIISE),aqualéparcialmentefinanciadapeloCanadáelideradaporacadêmicoselíderespolíticosemconjuntocomumgrupode fundações.ACIISE foiencarregadadeabordarquestõeslegais,morais,operacionaisepolíticasemtornodaintervençãohumanitária para ajudar. O documento The Responsibility to Protect (ou A Responsabilidade de Proteger),quecomumenteéreferidocomoR2P,afirmavaque:

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Estadosestrangeirostêmaresponsabilidadedeprotegerseuspróprioscidadãosdecatástrofesevitáveis–deassassinatoemmassaeestupro,defome–masquandoelesnãoqueremounãopodemfazerisso,essaresponsabilidadedeveserassumidapelacomunidademaisampladeEstados(EVANS;SAHNOUN,2002,p.VIII).

As bases foram delineadas quatro vezes; primeiro, nas obrigaçõesinerentesaoconceitodesoberania;segundo,naresponsabilidadedoConselhode Segurança, nos termos do Artigo 24 da Carta das Nações Unidas para amanutençãoda paz e segurança internacionais; terceiro, nas obrigações legaisespecíficas sobDireitosHumanosedeclaraçõesdeproteçãohumana,pactosetratados, Direito InternacionalHumanitário e DireitoNacional; e, quarto, naspráticas de desenvolvimento de Estados, organizações regionais e do próprioConselhodeSegurança(EVANS;SAHNOUN,2002).

ACIISE,então,preparouumrelatório,quefoiprejudicadopelosataquesde11de setembrode2001nosEstadosUnidos.Emgeral,ospaísesdaÁfricaOcidentaleSubsaariana, juntoaospaísesdaAméricaLatina,receberambemorelatório,enquantoosdoLesteAsiáticoforammaiscautelososeaRússiaparecia“morna”. No entanto, a China desaprovou amplamente o relatório e, junto àmaioriadospaíses,“hesitouemsecomprometer[...]comcritériosqueexigiriamaçãomilitar”(EVANS;SAHNOUN,2002).

NaCúpulaMundialde2005,aAssembleiaGeraldaONUsecomprometeu,por unanimidade, com o “Princípio da R2P”, declarando que cada Estadotemaresponsabilidadedeprotegersuaspopulaçõesdegenocídio,crimesdeguerra, limpeza étnica e crimes contra ahumanidade.Essa responsabilidadeenvolveaprevençãodetaiscrimes,incluindoasuaincitação,atravésdosmeiosadequadosenecessários.

A comunidade internacional deve, conforme apropriado, encorajar eajudar os Estados a exercerem essa responsabilidade e apoiarem as NaçõesUnidasnoestabelecimentodeumacapacidadedealertaantecipado.

Acomunidade internacional,pormeiodasNaçõesUnidas, tambémtema responsabilidade de usar meios diplomáticos, humanitários e outros meiospacíficos adequados, de acordo com aCarta dasNaçõesUnidas, para ajudar aprotegeraspopulações.Nessecontexto,estamospreparadosparatomarumaaçãocoletiva,emtempohábiledecisivo,pormeiodoConselhodeSegurança,deacordocomaCarta,casoacaso,eemcooperaçãocomorganizaçõesregionaisrelevantes,conformeapropriado,casoosmeiospacíficossejaminadequadoseasautoridadesnacionais estejam manifestamente falhando em proteger suas populações degenocídio,crimesdeguerra,limpezaétnicaecrimescontraahumanidade.

Paraalguns,issorepresentouumrompimentonasrelaçõesinternacionais,desterritorializando a segurança política longe do Estado, para o nível doindivíduo.Noentanto,aresponsabilidadedeprotegeradeclaraçãonodocumento

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finalpoucofezparaaumentaraprobabilidadedeprevenirfuturosgenocídios,comoemRuandaeKosovo.Talvez,omaispreocupantesejaque,paragarantiroconsenso,osdefensoresdoconceitoabandonarammuitosdeseusprincípioscentrais, reduzindo significativamente aprobabilidadedeprogressono futuropróximo(BELLAMY,2006).

ApesardapromessadaCúpulaMundialde2005,osanosqueseseguiramforammarcados por uma relutância em implementar a R2P, com um debateconsiderávelsobrequaisforamasconclusõestiradasem2005.Noentanto,entre2005 e 2010, o Conselho de Segurança dasNaçõesUnidas (UNSC) apenas sereferiuàR2PnocasodaCrisedeDarfur,em2006,quandoumaoperaçãodepazfoiimplantada.Entretanto,houveoitooutroscasosemqueR2Pfoireferidadesdeentão:noQuênia(2007-2008),naGeórgia(2008),emMianmar(2008enovamenteemumareferênciacontínuaaotratamentodeminoriasétnicas),emGaza(2009),noSriLanka(2008-2009),naRepúblicaDemocráticadoCongo(emandamento)enaCoreiadoNorte.

Maisde20anosdepoisdolançamentodoHuman Development Report(ouRelatóriodeDesenvolvimentoHumano–RDH),em1994,éclaroquearepressãogovernamental,oabusosistemáticodosDireitosHumanosearepressãomilitarpermanecem.Comotal,oapelododocumentoparaumenfoquenasegurançapolíticacontinuapertinentenasociedadeinternacionalatual.

Todavia, a natureza desse debate, em termos teóricos e concretos, foialteradapeloseventosepeloambienteinternacional.Desdeoiníciodadécadade1990, está claroqueoambientepós-GuerraFria abriuapossibilidadeparaosurgimentodeumateoriaepráticaemevoluçãodesegurançapolítica.Nessecontexto,oRDHéimportanteporajudaracontribuirparaodiscursomaisamplosobreaintervençãohumanitária.

Comascrescentesameaçasàsegurançapolíticaevidentes,deRuandaà Síria, a comunidade internacional tem tentado pelo menos lidar com osdesafiosteóricosepráticos.Odebateatual,paraaquelesquelevamadianteumaagendade segurançapolítica, envolvequempode legitimamente autorizar aintervençãoeemquecircunstâncias.É,nessecontexto,queasegurançapolítica,a intervenção humanitária e a R2P passaram a fazer parte do discurso e dapráticadacomunidadeinternacional.

No entanto, ainda há contestação do que isso significa exatamente.A “nova política de proteção” está repleta de divergências sobre o direito deintervenção,comoequandoissodeveserexercidoesobaautoridadedequem.AconclusãodaCIISEdequeaguerraemKosovofoi“ilegal,maslegítima”nãofoisuficientepararesolveressasdivergências.

Alémdisso,ofracassodosRDHssubsequentesemesclarecererecuperaro significado de “segurança política” pouco ajudou. Contudo, as prescriçõesdoRDHde1994paraasegurançapolíticapermanecemnãoapenaseticamente

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pertinentes, mas também no interesse da comunidade internacional, porque,comoorelatóriodescreve,“fome,doença,poluição,tráficodedrogas,terrorismo,disputasétnicasedesintegraçãosocialnãosãomaiseventosisolados,confinadosdentro das fronteiras nacionais. Suas consequências viajam pelo mundo”(BELLAMY,2006,p.22).

7 SEGURANÇA ECONÔMICA

A Segurança Econômica, no contexto das Relações Internacionais, é acapacidadedeumanaçãodesedesenvolveredemantersuaeconomiaestável.A capacidade econômicadetermina, emgrandeparte, a capacidadededefesadeumanaçãoe,portanto, a segurança econômica– estando sólida, influenciadiretamenteasegurançanacional.

Países com economia sólida e estável tendem a possuir uma segurançaigualmentesólida.Teraeconomiamaisrobustagaranteacapacidadedeprotegerseusmercadoseteracessoamercadosdeoutrospaíses.Assim,paísespobresouemdesenvolvimentotendemasermenosseguros,pelasfragilidadescausadasporaltastaxasdedesemprego,máscondiçõesdetrabalhoetrabalhomalremunerado.

A Segurança Econômica, no complexo sistema atual de comérciointernacional, caracterizado por acordos multinacionais, interdependênciamútuaedisponibilidadederecursosnaturais,constituiumaspectodasegurançanacional tão importante como a política militar.A segurança econômica foiproposta como um determinante fundamental das relações internacionais,particularmentenageopolíticadopetróleonapolíticaexternanorte-americanaapós11desetembrode2001.

NoCanadá, ameaças à segurança econômica do país são consideradasespionagem econômica: “atividade ilegal, clandestina ou coercitiva de umgovernoestrangeiroparaobteracessonãoautorizadoàinteligênciaeconômica,comoinformaçõesoutecnologiaproprietária,paraobtervantagenseconômicas”(RUPERT,2003).

8 SEGURANÇA ECOLÓGICA

ASegurança Ecológica, também conhecida como segurança ambiental,refere-seàintegridadedosecossistemasedabiosfera,particularmenteemrelaçãoasuacapacidadedesustentarumadiversidadedeformasdevida(incluindoavidahumana).Asegurançadosecossistemastematraídomaioratençãoàmedidaqueoimpactodosdanosecológicoscausadospeloshumanosaumenta.

A degradação dos ecossistemas, incluindo erosão da camada superiordo solo,desmatamento,perdadebiodiversidade emudanças climáticas, afetaa segurança econômica e pode precipitar a migração em massa, levando aoaumentodapressãosobreosrecursosemoutroslugares.Asegurançaecológica

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também é importante, uma vez que amaioria dos países domundo está emdesenvolvimentoedependentedaagricultura,aqualéafetada,emgrandeparte,devidoàsmudançasclimáticas,efeitoqueafetaaeconomiadanação,que,porsuavez,afetaasegurançanacional(BUZAN,1983).

Oescopoeanaturezadasameaçasambientaisàsegurançanacionaleasestratégiasparaenvolvê-lassãoumassuntodedebate.JosephRommclassificaosprincipais impactos das mudanças ecológicas na segurança nacional como:

• Problemasambientais transnacionais – incluiproblemasambientaisglobais,comomudanças climáticas devido ao aquecimento global, desmatamento eperdadebiodiversidade.

• Pressõesambientaisouderecursoslocais–incluiaescassezderecursosqueleva a conflitos locais, como disputas sobre a escassez de água no OrienteMédio;migraçãoparaosEstadosUnidos,causadapelofracassodaagriculturanoMéxico;eimpactosobreoconflitonaSíriadaerosãodeterrasprodutivas.A insegurança ambiental em Ruanda, após um aumento da população e adiminuiçãodadisponibilidadedeterrasagrícolas,tambémpodetercontribuídoparaogenocídio.

• Resultados de guerra ambientalmente ameaçadores – inclui atos de guerraquedegradamoudestroemecossistemas.Podemsercitadoscomoexemplosadestruição,naAntiguidade,daagriculturapelosromanosemCartago;aqueimadepoçosdepetróleoporSaddamHusseinnaGuerradoGolfo;ousodo“agentelaranja” pelos britânicos contra os insurgentes na Emergência da Malásia epelosnorte-americanosnaGuerradoVietnã,paradesfolharflorestas;easaltasemissõesdegasesdeefeitoestufadasforçasmilitares(COLLINS,2013).

9 SEGURANÇA DE ENERGIA E RECURSOS NATURAIS

Osrecursosnaturaisincluemágua,fontesdeenergia,terraseminerais.Adisponibilidadederecursosnaturaisadequadoséimportanteparaumanaçãodesenvolver sua indústriae seupodereconômico.Porexemplo,naGuerradoGolfo Pérsico, em 1991, o Iraque invadiu oKuwait, emparte, para garantir oacessoaseuspoçosdepetróleo.

Os recursos hídricos estão sujeitos a disputas entre muitas nações,incluindoÍndiaePaquistãoenoOrienteMédio.Asinter-relaçõesentresegurança,energia,recursosnaturaisesuasustentabilidadesãocadavezmaisreconhecidasnasestratégiasdesegurançanacional,sendoqueasegurançadosrecursosestáincluídaentreosObjetivosdeDesenvolvimentoSustentável(ODS)daONU.

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9.1 AMAZÔNIA: SEGURANÇA DE ÁGUA, ALIMENTOS E ENERGIA

NaAmazônia,mudançasdemográficas,demandascrescentesderecursose degradação do ecossistema florestal, em conjunto com extremos climáticos,comoElNiñoemudançasclimáticas,causamimpactodiretonaágua,naenergiae na segurança alimentar.As previsões são que o desmatamento, em grandeescala,reduzaaschuvasematé21%,oquepodeterconsequênciassignificativasparaaagriculturaeageraçãodeenergia.Em2010,umasecaseveraresultouemperdasdesafranovalorde139milhõesdedólaresemtodaaAmazônia.

OecossistemadaAmazôniatambémsustentaasegurançamuitoalémdafloresta.Porexemplo,temorigemnaAmazôniacercade20%dachuvaquecainaBaciadoPrata,regiãoquegera70%doPIBdoscincopaísesdaregião.Assim, prevê-se que, até 2050, o desmatamento em grande escala reduza aschuvasematé21%.

AsquestõesrelacionadasaoecossistemanaAmazôniaestãointerligadasamuitasoutras,comoasmudançasnasfontesderecursoshídricos,quepodemterrepercussõesmaisamplasnacapacidadedegeraçãodeenergiahidrelétrica,oqueafetariaasegurançaenergéticaecausariaumainsegurançahídrica,aqualtambémafetariaaproduçãoagrícolaeobem-estarhumano.

Deformaanáloga,asflorestasdesempenhamumpapelvitalnasegurançada água (e, portanto, na segurança alimentar e energética), por intermédiodaregulaçãoedapurificaçãodaágua.AAmazônia libera8 trilhõesde toneladasdevapord'águanaatmosferaacadaano,reciclandoáguadoAtlânticoatravésdafloresta e a transportandopormilharesdequilômetros.Umestudo sugerequeapolêmicabarragemdeBeloMonte,naAmazônia,projetadaparafornecer,até 2019, 40% das necessidades adicionais de eletricidade do Brasil, terá umaprodução de energia significativamentemenor do que o esperado, devido aodesmatamentoregional.Issosignificaumaproduçãodeenergiaaté13%menordoqueemumcenáriototalmenteflorestadoeaté36%menor,até2050,seastaxasdedesmatamentoatuaiscontinuarem.

Opapeldasflorestasnasustentaçãodasegurançahídrica,energéticaealimentar, bem comodaprosperidade econômica eda segurança climáticadelongoprazo,estárefletidonosODSadotado,em2015,pelaONU.Noentanto,umdesafio-chaveparaa implementaçãodosODSseráequilibrarascompensaçõesde recursos inerentes entre as metas (por exemplo, com área agrícola finita,sem aumento de produtividade, produção de alimentos e biocombustíveis éimprovávelqueasmetassejamcumpridassemmaisdesmatamento).

Como a demanda por recursos da Amazônia continua a crescer comambiciosos planos de desenvolvimento nacional visando ao desenvolvimentoacelerado na região, os atores envolvidos precisarão reconhecer e administrarascompensaçõesderecursos.Todavia,salvaguardaressesrecursosegerenciar

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osseusriscosnaAmazôniaéumaquestãocomplexae transversal,querequercoordenação intersetorial emvárias escalas, integraçãode agendas ambientaisededesenvolvimentoentrediversose,àsvezes,atoresconcorrentesnaregião.

O nexo água-energia-alimento (AEA) é considerado uma abordagemútil para enfrentar esse desafio, identificando e avaliando as vantagens eas desvantagens do uso de recursos em diferentes setores. Essa abordagemreconhecea interdependênciaentreossistemasdeágua,energiaealimentosesua dependência dos recursos naturais.As iniciativas do “Projeto daAgendade Segurança da Amazônia”, desenvolvido por várias organizações nãogovernamentais (ONGs) associadas à “Aliança Clima e Desenvolvimento”,trabalhamemestreitacolaboraçãocomosgovernosdoBrasil,ColômbiaePeruparausarumaabordagemdonexoAEAnacompreensãodacoerênciaemumaamplagamadeplanosdedesenvolvimentoemeioambiente.

Aoanalisarasegurançadosrecursoseascompensações,éfundamental,alémdosgovernos,envolverONGseossetoresprivados,igualmenteimportantesparadeterminarofuturodasáreasverdesedeseumanejosustentável.Osatoresdossetoresprivadosestãolocalizados,frequentemente,foradasregiõesepaísesafetados,mas,poroutrolado,causamumimpactoconsiderávelnasegurançadonexoAEA.Porexemplo,em2007,estimou-sequeaAméricadoSulexportouoequivalente178km3 incorporados em commoditiesagrícolasparaaÁsiaeEuropa.Essevolumecorrespondeuacercade17%daáguausadaparaaproduçãodealimentosnaregião.

Recentemente, as atitudes mudaram na medida em que começamos aperceberqueexistempoucosecossistemasintocadosnaTerraeoquantoelessãoimportantesparaahumanidade.Porisso,aimportânciadasinteraçõesdepolíticaspúblico-privadasparaavaliaroníveldeexploraçãoemaneiraspelasquaistodospodemcontribuirparaocumprimentodosobjetivosdesegurançadonexoAEA.

9.2 A ANTÁRTIDA

Apreocupação com a gestão ambiental daAntártica gira em torno decomorepararosdanosdopassadoecomoreduzirosimpactosatuaisefuturos.Aseguir,veremosasprincipaisameaçasqueaAntárticaenfrentaatualmente.

9.2.1 Aclimatação

• Mudanças climáticas/aquecimento global resultam em aquecimento dosoceanos e derretimento do gelo marinho e terrestre: essa é a maior ameaça a longo prazo para a região.Algumas plataformas de gelo já entraram emcolapsoeasencostasdegeloeasgeleirasrecuaram.Aacidificaçãooceânica(devidoaodióxidode carbono extradissolvido) já está levandoàperdadealgunscaracóismarinhos,queseacreditateremumpapelsignificativonociclodocarbonooceânico.Aspopulaçõesdereproduçãoe intervalosdealgumasespéciesdepinguinsforamalteradas.

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• Pesca legal e ilegal: os oceanos do mundo estão com excesso de pesca; as chances sãodeque,seforemfeitosinvestimentosnostiposdebarcoseequipamentosdepescanecessáriosparaaAntártica,ela tambémsofreráomesmodestino.Apescadokrillpodeserparticularmentesignificativa,poisestánabasedemuitascadeiasalimentaresdaAntártica.Jáexistembarcosdepescailegaisqueignoramosregulamentosatuais.FocasebaleiasazuisforamcaçadasàbeiradaextinçãonaAntártica,enquantoasfocasserecuperarambem,apopulaçãomundialdebaleiasazuisaindaéprovavelmenteapenas2a5%dosnúmerosanterioresàcaçaàsbaleias.

• AsespéciesinvasorassãoorganismosquenãosãonativosdaAntárticaeestãosendolevadosparaláemnavios,presoscomosementesabotaseroupas.Algunsdelesagorasãocapazesdesobreviverlácomoconsequênciadoaquecimentoglobal.Os ratos, emparticular, sãoumaameaçapotencial para ospássarosterrestres que nidificam nas ilhas subantárticas, que são particularmentevulneráveis,poisnãohápredadoresterrestresnativosparacaçá-los.Umdadopositivoéa ilhasubantárticadaGeórgiadoSul,em2018,quefoideclaradalivrederatosecamundongos250anosdepoisdeelesteremsidointroduzidosacidentalmentepeloseuropeus.Deformaanáloga,pássarosnativos,hámuitobanidosparaalgumasilhasremotasforadoalcance,jáforamvistosretornandoàilhaprincipalnaquelequefoiomaiorprojetodomundonogênero.

• Turismo: com os poluentes que acompanham os navios e as aeronaves, apossibilidadedederramamentosdeóleo,osefeitosdoaumentodepessoaseaconstruçãodeinfraestruturasãoameaçasàvidaselvagemeaomeioambiente.

• Poluição: os clorofluorcarbonetos (CFCs) e outros redutores de ozônio sãoresponsáveis, nos últimos 30 anos, pelo buraco de ozônio que apareceu naAntártica. Os produtos químicos produzidos a milhares de quilômetrosde distância são encontrados no gelo da Antártica e na vida selvagem.Equipamentos, produtos químicos e óleo descartados podem degradara paisagem, e redes de pesca, plástico, linhas, anzóis, entre outros, sãotransportadospelomarepodemresultaremgrandesofrimentoouperdadevidaparapássaros,peixesemamíferosmarinhos.

• Exploraçãoeaproveitamentodereservasminerais,petróleoegás:atualmente,nãoéeconomicamenteviável,mas,comoaumentodademandamundialeoavançodatecnologia,aexploraçãodereservasminerais,petróleoegáspoderásetornarumaameaçaaregiãocomumtodo.OTratadodaAntártica,assinadoem1959,proíbetodamineraçãoeexploraçãomineralportempoindeterminado–porém,essaproibiçãoserárevistaem2048e,portanto,nãoestáproibidaportempoindeterminado.

• Impactosdiretosassociadosaodesenvolvimentodeinfraestruturaparabasescientíficaseprogramas:aconstruçãodeedifícioseinstalaçõescomoestradas,oarmazenamentodecombustível,aspistaseaeliminaçãoderesíduos,associadaaumabasecontínua,causamimpactosdiretosnomeioambientodaAntártica.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

9.2.2 Impactos globais

Os lagos da Ilha Signy, na Antártica Marítima, por exemplo, são ademonstração mais concreta da mudança climática encontrada em qualquerlugardaTerra.Astemperaturasmédiasdoslagos,em15anos,subiram0,9°C,enquantoastemperaturasdosmarescircundantespermaneceramconstantes.

OaquecimentoglobalpodeterefeitosqueimpactamdiretamentenomeioambientedaAntárticaeemsuafaunaefloraepodecontribuirparaorompimentodasplataformasdegelo,causandoperdadehabitatparaanimaisdependentesdaplataformadegelo,bemcomooefeitodoaumentodoníveldomaremregiõesbaixasnorestodomundo.

Oaumentodaradiaçãoultravioleta(UV),devidoaoburaconacamadadeozônio,podecausarmudançasnascomunidadesdefitoplânctonepodeterefeitosnacadeiaalimentar.

AAntárticaéumindicadorsensíveldemudançaglobal.Acalotapolarcontém em si um registro de atmosferas passadas que remontam a dezenasoumesmocentenasdemilharesdeanosatrás,permitindooestudodosciclosclimáticosnaturaisdaTerra,contraosquaisosignificadodasmudançasrecentespodeseravaliado.

9.3 Por um futuro mais limpo

Naatualidade,sãoefetuadasauditoriasambientaisemvoltadasestaçõescientíficas, em terra e no mar, para avaliar o impacto que a base e as suasatividadestêmnazonaenvolvente.Qualqueratividadeestásujeitaaalgumgraude perturbação domeio ambiente, exaustão de veículos, perturbação da vidaselvagem,produçãoderesíduosdeváriostipos.Resíduosdetodosostipossãodevolvidosaopaísdeorigemsemprequepossível.

Um número crescente de estações está usando fontes alternativas deenergia,comoasestaçõesdeMawson,daAustrália,PrincesaElisabeth,daBélgica,Scott,daNovaZelândiaeMcMurdo,dosEstadosUnidos,todascomgeradoresdeeletricidademovidosavento–umaescolhabastanteóbviaparaocontinentemaisventosodoplaneta,emboraproblemática,poisoventoétãofortequeasturbinaseólicascorremoriscodesofrerdanos.

A base da princesa Elisabeth belga é uma base de emissões zero, quefunciona inteiramente com energia eólica e solar, com muita ajuda de umisolamentosignificativo.

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As áreas protegidas são implantadas com vários níveis de proteção,semveículos, limitaçõesdevisitantesanuaisou,atémesmo,nenhumaentradadepessoasemalgunscasos.Osexpedicionáriosrecebemumaeducaçãomuitomelhorsobreaproteçãodomeioambiente,umavezqueeles,osturistaseoutrosvisitantesdaAntárticasãoguiadosporcódigosdeconduta.

10 QUESTÕES DE SEGURANÇA NACIONAL

Asdiferentes dimensões da segurança nacional estão frequentementeemtensãoentresi.Porexemplo,oaltocustodemanutençãodeforçasmilitaresrepresenta um ônus para a segurança econômica de uma nação, mas, poroutro lado,asrestriçõeseconômicaspodemlimitaraescaladedespesascomcapacidadesmilitares.

GRÁFICO 1 – PAÍSES COM OS MAIORES ORÇAMENTOS MILITARES

FONTE: <https://pbs.twimg.com/media/Eaa2SSMWkAAJRtX.jpg>. Acesso em: 11 fev. 2021.

A ação de segurança unilateral, por parte dos Estados, pode minar asegurançapolítica internacionalaoameaçaroEstadodedireitoeenfraqueceraautoridade das instituições internacionais. A invasão do Iraque, em 2003, e aanexaçãodaCrimeia,em2014,sãoexemplos.Abuscapelasegurançaeconômicaem competição com outros Estados-nação pode minar a segurança ecológica de todosquandooimpactoincluiaerosãogeneralizadadacamadasuperiordosolo,aperdadebiodiversidadeeamudançaclimática.Poroutrolado,asdespesascomaadaptaçãoàsmudançasecológicasrepresentamumfardoparaaeconomianacional.Setensõescomoessasnãoforemadministradasdemaneiraeficaz,aspolíticaseasaçõesdesegurançanacionalpodemserineficazesoucontraproducentes.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

PROJETO TENTA DEVOLVER VIDA AO MAR DE ARAL, DESTRUÍDO POR PLANOS SOVIÉTICOS DE IRRIGAÇÃO

MoynaqestálocalizadanocoraçãodeKarakalpaquistão,umarepúblicasemiautônomadentrodoUzbequistão,naÁsiaCentral.Houveum tempoemque98%dospeixesconsumidospelosuzbequesvinhamdali.Noentanto,umdesastreambiental se instalou.OMardeAral secou, e substâncias tóxicasemseu leitoficaramexpostas, causando sériosproblemasde saúdenapopulaçãokarakalpak.

Atualmente,estáemcursoumambiciosoprojetoqueenvolveaplantaçãodemilhõesdeárvoresparatentarsalvaressacomunidadeeseuambiente.OAralcomeçouasecarnosanos1960,quandoaUniãoSoviética,daqualoUzbequistãofaziaparte,desviouocursodaáguadosdoisprincipaisriosqueabasteciamomarcomoobjetivodeirrigarnovasplantaçõesdealgodão.

Comooalgodãoestáemalta,oKremlinignorouoproblemaambientaldecorrentedatransposiçãodaságuas.ÀmedidaqueaáguadesapareciadoAral,aconcentraçãodesalaumentava,prejudicandoavidamarinha.“Oestoquedepeixescaía,esóconseguíamospescarpeixesmortos”,contaTolvashev.“Hoje,osmaisjovenstêmdemudardepaíssequiseremconseguiremprego.”Atualmente,oMardeAraltemapenas10%deseutamanhooriginal–perdeu-seumaáreaequivalente a quaseo tamanhodoEstadode SantaCatarina. “Não está comoantes”,lamentaoex-pescador.“Oclimaestáruim,hátodoestepónoar”.

PESCARIA DEIXOU DE EXISTIR À MEDIDA QUE O MAR SECOU, PORQUE AS ÁGUAS DOS RIOS QUE O ALIMENTAVAM FORAM DESVIADAS PARA PLANTAÇÕES DE ALGODÃO

FONTE: <https://tinyurl.com/yae9gs8u>. Acesso em: 11 fev. 2021.

FONTE: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/projeto-tenta-devolver-vida-ao-mar-de-aral-des-truido-por-planos-sovieticos-de-irrigacao.ghtml>. Acesso em: 11 fev. 2021.

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TÓPICO 2 — AS DOUTRINAS DE SEGURANÇA NACIONAL NO MUNDO PÓS-GUERRA FRIA

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Leia, na íntegra, a matéria sobre o Mar de Aral, destruído por planos soviéticos de irrigação, em: https://g1.globo.com/natureza/noticia/projeto-tenta-devolver-vida-ao-mar-de-aral-destruido-por-planos-sovieticos-de-irrigacao.ghtml.

DICAS

11 SEGURANÇA NACIONAL VERSUS SEGURANÇA TRANSNACIONAL

Naatualidade,háumconsensodeque,quaisquerquesejamasestratégiasdesegurançanacional,asnaçõesnãopodeminvestirisoladamenteemsuaprópriasegurança sem também desenvolver a segurança de seu contexto regional einternacional.AestratégiadesegurançanacionaldaSuécia,em2017,porexemplodeclaraque:

Medidasdesegurançamaisamplasagoratambémdevemabrangeraproteçãocontraepidemiasedoençasinfecciosas,combateaoterrorismoeaocrimeorganizado,garantindotransporteseguroesuprimentosdealimentosconfiáveis,proteçãocontrainterrupçõesnofornecimentodeenergia,combateàsmudançasclimáticasdevastadoras,iniciativasparapazedesenvolvimentoglobalemuitomais(SWEDEN,2017,p.3).

Oescopoeaintensidadedetaismedidaséumassuntoemdebate.AlgunsargumentamqueoprincipalbeneficiáriodapolíticadeSegurançaNacionaldeveser o próprio Estado-nação, que, por sua vez, deve centrar sua estratégia nascapacidadesdeproteçãoemesmocoaçãoparasesalvaguardaremumambientehostil (e potencialmente projetar esse poder em seu ambiente e dominá-lo aopontodesupremaciaestratégica).

Outros argumentam que a segurança depende principalmente daconstruçãodecondiçõesnasquaisasrelaçõesequitativasentreasnaçõespossamsedesenvolver,empartereduzindooantagonismoentreosatores,garantindoqueasnecessidadesfundamentaispossamseratendidasequeasdiferençasdeinteressepossamsernegociadascomeficácia(ROGERS,2010).

NoReinoUnido,porexemplo,argumentou-sequeocernedaabordagemno Reino Unido deveria ser o apoio à aliança militar estratégica ocidentallideradapelaOTANepelosEstadosUnidos,comoaprincipalâncoraemtornodaqualaordeminternacionalémantida(CHALMERS,2020).Emcontraste,oThe Ammerdown Group,umlaboratóriodeideias(think thank),comsedenaInglaterra,sugeriuqueoReinoUnidodeveriamudarseufocoprincipalparaaconstruçãodacooperaçãointernacionalparaenfrentarosfatoressistêmicosdeinsegurança,incluindomudançasclimáticas,desigualdadeeconômica,militarizaçãoeexclusãopolíticadaspessoasmaispobresdomundo(THEAMMERDOWNGROUP,2016).

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

11.1 O CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU E A CONTROVÉRSIA EM TORNO DO PODER DE VETO

O “poder de veto” no Conselho de Segurança das Nações Unidas éconferidoaoscincomembrospermanentesdoConselhodeSegurançadaONU(China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos) de vetar qualquerresoluçãosignificativadasNaçõesUnidas.Noentanto,aabstençãoouausênciadeummembropermanentenãoimpedequeumprojetoderesoluçãosejaaprovado.Ummembro permanente tambémpode bloquear a escolha de um secretário-geraldaONU,embora,nessecaso,ovetoformalsejadesnecessárioemrazãodavotaçãoserrealizadaaportasfechadas.

Opoderdevetoépolêmico,seusdefensoresoconsideramumfatordeestabilidadeinternacional,umfreioàsintervençõesmilitareseumasalvaguardacontra ahegemoniadepaíses comoosEstadosUnidos.Entretanto, os críticosafirmamqueovetoéo elementomaisantidemocráticodaONUeaprincipalcausadeinaçãosobreoscrimesdeguerraecrimescontraahumanidade,poisimpede a ação internacional contra os membros permanentes e seus aliados(FASSBENDER,1998).

Em1945,nacriaçãodaONU,a ideiade instituirovetosobreasaçõesde organizações internacionais não era novidade. Na Liga das Nações (1919-1946),queantecedeuaONU,todomembrodoConselhotinhadireitodevetoemqualquerdeliberação.Nasuafundação,em1919,aLigadasNaçõestinhaquatromembrospermanentesequatrotemporários.Em1936,oConselhodaLigahaviaaumentadoparaquatromembrospermanentese11temporários,oquesignificavaquehavia15paísescompoderdeveto.AexistênciadeumnúmerotãograndedemembroscompoderdevetosetornoudifícilparaaLigadasNaçõesconcordaremmuitasquestões(FASSBENDER,1998).

Oveto foi o resultadodeuma longadiscussãodurante asnegociaçõesparaaformaçãodasNaçõesUnidas,emDumbartonOaks(1944)eYalta(1945).EstadosUnidos,UniãoSoviética,ReinoUnidoeChinafavoreciamoprincípiodaunanimidadepelodesejodequeasgrandespotênciasagissememconjuntoeparaprotegerseusprópriosdireitoseinteressesnacionais.Em1945,naConferênciainaugural da ONU, em São Francisco, os “Cinco Grandes” (Estados Unidos,URSS,China,InglaterraeFrança)deixaramclaroquenãohaveriaNaçõesUnidasseelesnãotivessemdireitodeveto.

11.1.1 Cronologia de uso do veto (1946-2020)

Ouso do veto passou por várias fases distintas, refletindo amudançanoequilíbriopolíticonoConselhodeSegurança.De1946a1969,amaioriadoConselhodeSegurançasealinhouaosEstadosUnidos,quenãofezusodovetoporqueganhoutodasasvotações.Parabloquearasresoluçõesdamaioriaocidental

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TÓPICO 2 — AS DOUTRINAS DE SEGURANÇA NACIONAL NO MUNDO PÓS-GUERRA FRIA

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nesseperíodo,aUniãoSoviéticafezusode93%detodososvetos.AFrançaeo Reino Unido, ocasionalmente, usaram o veto para proteger seus interessescoloniaiseaRepúblicadaChinausouovetoapenasumavez(MALONE,2004).

Apartirdadécadade1960,comaaceleraçãodoprocessodedescolonização,oblocoocidentalcomeçouaperderseupoderdedecisãocomoaumentonúmerode países-membros das Nações Unidas. Os países recém-independentes dochamadoterceiromundo,naépoca,votavamfrequentementecontraaspotênciasocidentais,oquelevouosEstadosUnidosarecorreremmaisaoveto.

De1970a 1991, osEstadosUnidos totalizaram56%dosvetos, àsvezes,acompanhados por franceses e britânicos. Em contrapartida, a União SoviéticalançoumenosvetosdoquequalquerumadaspotênciasocidentaiseaRepúblicaPopulardaChinausouovetoapenasumavez.ApósofimdaGuerraFria,houveum breve período de harmonia no Conselho de Segurança como resultado daunipolaridade.Entre1990e1993,opoderdevetonãofoiusado,oquetornouoperíodomais longodahistóriadaONUsemousodesserecurso.Onúmeroderesoluçõesaprovadasacadaanotambémaumentou.OusodovetoaumentounoiníciodoséculoXXI,principalmente,devidoàGuerraCivilnaSíria.Desde1992,aRússiaéomembrodoConselhoPermanentequemaisusouoveto,seguidodosEstadosUnidosedaChina.AFrançaeoReinoUnidonãousamovetodesde1989.Atéjulhode2020,aRússiausouseuveto116vezes,osEstadosUnidos81vezes,oReinoUnido29vezes,aFrança16vezeseaChina16vezes(MALONE,2004).

12 IMPACTO DA SEGURANÇA NACIONAL NAS LIBERDADES CIVIS E DIREITOS HUMANOS

As políticas e as medidas para a Segurança Nacional podem ter umimpacto considerável sobre os direitos humanos de acordo com as situaçõeselencadasaseguir.

12.1 NAS LIBERDADES CIVIS – PARA CONTROLE DO COMPORTAMENTO PÚBLICO

Nas liberdades civis, em situações que os direitos e as liberdades doscidadãossãoafetadospelousodemilitareseforçaspoliciaismilitarizadasparacontrolarocomportamentopúblico,oscasosdeviolaçõesdedireitoseliberdadesporforçasmilitares,paramilitaresepoliciais,emnomedaSegurançaNacional,sãoquaseuniversais.

NaAmérica Latina, incluindo o Brasil, entre outras partes domundo,essasviolaçõesserelacionamaumatradiçãoautoritáriaresilienteàsmudançasdemodernizaçãoedemocratização.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

NoBrasil,aLeideSegurançaNacional,aindaemvigor,éumaherançadeperíodosautoritáriosnadécadade1930enade1960.Naditaduramilitar,aleiemquestãosetornouumadoutrinadeSegurançaNacionaladotadaemumcontextoexternodeGuerraFriaerepressãointerna.

Noentanto,mesmoempaísesconsideradosdemocraciassólidas, comoosEstadosUnidos,ocorremviolaçõesgravesàs liberdades civis e aosdireitoshumanosemnomedasegurançainterna.OchamadoPatriot Act(LeiPatriótica),em2001,éumexemplodelegislaçãopolêmicacomconsequênciasseverasparadireitoshumanoseliberdadescivisparacidadãosnorte-americanos.

Dezessete anos depois das primeiras detenções, a 11 de janeiro de 2002, a prisão militar na Baía de Guantánamo continua a ser uma mancha no registro de direitos humanos dos Estados Unidos e a ser um local para contínuas violações de direitos humanos enquanto permanecer aberta. Leia a matéria completa da Anistia Internacional em: https://www.amnistia.pt/guantanamo-o-legado-de-17-anos-de-tortura-e-injustica/.

INTERESSANTE

Uma sugestão interessante de filme é O Mauritano (2021).

DICAS

FONTE: <tinyurl.com/ytsmevvr>. Acesso em: 16 abr. 2021.

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TÓPICO 2 — AS DOUTRINAS DE SEGURANÇA NACIONAL NO MUNDO PÓS-GUERRA FRIA

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12.2 NO USO DE VIGILÂNCIA, INCLUINDO VIGILÂNCIA EM MASSA

Avigilânciaemmassaéapráticarealizadaporgovernosesuasagênciasparamonitorarseuscidadãos.Asleiseossistemasjudiciaisquedeterminamoslimitesda vigilânciapeloEstadovariam,mas a vigilância sobre cidadãos era,tradicionalmente,umacaracterísticaassociadaaregimestotalitários.

No entanto, a vigilância em massa tem sido empregada, mesmo emEstadosdemocráticos,sobaalegaçãodecombateroterrorismo,prevenirocrimeeaagitaçãosocial,protegerasegurançanacionalecontrolarapopulação.Taisatividadessãoalvodecríticasporviolaremosdireitosdeprivacidade,limitaremosdireitoseas liberdadescivisepolíticase serem ilegais sobalgunssistemaslegaisouconstitucionais.

Outracríticaéqueoaumentodavigilânciaemmassapodelevaraodesenvolvimentodeum“estadodevigilância”oudeum“estadopolicial”eletrônico,emqueasliberdadescivissãoinfringidasouadissidênciapolíticaéminadaporprogramassemelhantesaoProgramadeContrainteligência (COINTELPRO)nosEstadosUnidos,que,entre1956-1971,promoveuvigilância,infiltração,difamaçãoeeliminaçãodeorganizaçõespolíticascriadasporcidadãosnorte-americanos,emprincípio,incompatíveiscomumEstadodemocrático(GIROUX,2015).

Em2013,apráticadevigilânciagovernamentalemmassafoiquestionadaapós a divulgação, por Edward Snowden, da existência de uma vigilânciaglobal.Snowden,umnorte-americanotrabalhandoparaaAgênciadeSegurançaNacional (NSA), vazou informações sobre as atividadesda agência ligadas aogovernodosEstadosUnidosparaváriosmeiosdecomunicaçãoedesencadeouumdebatesobreasliberdadesciviseodireitoàprivacidadenaeradigital.

AvigilânciaemmassaéconsideradaumproblemaglobalaAerospaceCorporation (Corporação Aeroespacial) dos Estados Unidos descreve que,em um futuro próximo, através do Inteligência Geoespacial (GEOINT), tudonasuperfíciedaterraserámonitoradoemtodososmomentoseanalisadoporsistemasdeinteligênciaartificial(VINCI,2020).

Em2007,apesquisadaPrivacidadeInternacional (PrivacyInternational)cobrindo47paísesindicouquehouveumaumentonavigilânciaeumdeclínionodesempenhodassalvaguardasdeprivacidade,emcomparaçãocomoanoanterior.

A pesquisa classificou oito países como “sociedades de vigilânciaendêmica”. Entre esses oito, China, Malásia e Rússia pontuarammais baixo,seguidos,conjuntamente,porCingapuraeReinoUnidoe,emseguida,porTaiwan(RepúblicadaChina),TailândiaeEstadosUnidos.AmelhorclassificaçãofoidadaàGrécia,consideradacomotendo“salvaguardasadequadascontraabusos”.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

Váriospaíses já instalarammilharesdecâmerasdevigilânciaemáreasurbanasemesmorurais.Porexemplo,emsetembrode2007,aAmericanCivilLibertiesUnion(UniãodasLiberdadesCivisAmericanas–ACLU)declarouqueestamosemperigodecairemumasociedadedevigilânciagenuínacompletamentealheiaaosvaloresamericanos,compotencialparaumfuturosombrio,noqualcadamovimento,cadatransação,todasasnossascomunicaçõesserãogravadas,compiladasearmazenadas,prontasparaseremexaminadaseusadascontranóspelasautoridadessemprequequiserem(ACLU,2006).

Em 2013, a organização “Repórteres Sem Fronteiras” publicou umrelatório especial sobre vigilância na internet, divulgado em uma lista de“Estados Inimigosda Internet”, cujosgovernos estão envolvidosnavigilânciaativaeintrusivadefornecedoresdenotícias,resultandoemgravesviolaçõesdaliberdadedeinformaçãoedosdireitoshumanos.Cincopaísesforamcolocadosnalistainicial:Bahrein,China,Irã,SíriaeVietnã.

12.3 NOS EFEITOS DA GUERRA NA POPULAÇÃO CIVIL

As guerras causam traumas profundos e duradouros na populaçãocivil,deixandoumlegado trágiconãoapenas físico,mas tambémemocionalepsicológico.Na atualidade, as guerras internas ou civis causammaior dano esofrimentonapopulaçãocivilqueosconflitosentrepaíses,poisaassimetriae,namaioria das vezes, amultiplicidade de grupos envolvidos expõemmais apopulaçãonãocombatenteàsagrurasdaguerradoqueemumconflitoclássico.

Osefeitosdaguerrasemanifestam,de formadramática,nadestruiçãoda infraestrutura(principalmenteabásica),dotecidosocial,daeconomiaedaviolênciadegênero.Ossegmentosdapopulaçãomaisvulneráveis,comocriançasemulheres, são,particularmente,alvosdaviolênciaeexploraçãonosconflitosrecentes, como ficou demonstrado nos conflitos da Bósnia, na Palestina e naGuerraCivilnaSíria,entretantosoutrosexemplos.

12.4 ESTUPRO COMO ARMA DE GUERRA

Oestuprodemulheresporsoldadosemtempodeguerraé,infelizmente,algoquesempreocorreuao longodahistória.Seuuso,comoarmadeguerra,ficoutragicamentedemonstradoduranteaSegundaGuerraMundial,quandoosexércitosdosAliadosedoEixocometeramestuproscomomeiodeaterrorizaraspopulaçõescivisinimigasedesmoralizarsuastropas.Doisdospioresexemplosforamaescravidãosexualdemulheresemterritóriosconquistadospeloexércitojaponêseoestuproemmassacometidocontramulheresalemãspor soldadosrussosnaofensivaemdireçãoàAlemanha.

NofinaldoséculoXX,empartedevidoaousodoestupro,comoarmadeguerra,nosconflitosdosBálcãsedeRuanda,acomunidadeinternacionaldecidiupunir tais atos de acordo com a legislação internacional existente. No estatuto

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TÓPICO 2 — AS DOUTRINAS DE SEGURANÇA NACIONAL NO MUNDO PÓS-GUERRA FRIA

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principal,oArt.27,daConvençãodeGenebraRelativaàProteçãodePessoasCivisemTempodeGuerra(CONVENÇÃODEGENEBRAIV,1950),jáincluíaalinguagemqueprotegiaasmulherescontraqualquerataqueasuahonra,emparticularcontraestupro,prostituiçãoforçadaouqualquerformadeatentadoaopudor.

Em1993,aComissãodeDireitosHumanosdaONU(substituídaem2006peloConselhodeDireitosHumanosdaONU)declarouoestuprosistemáticoeaescravidãosexualcomocrimescontraahumanidadepuníveiscomoviolaçõesdosdireitoshumanosdasmulheres.Em1995,aQuartaConferênciaMundialdaONUsobreasMulheresespecificouqueoestuprocometidoporgruposarmadosduranteaguerraéumcrimedeguerra.Ajurisdiçãodostribunaisinternacionaisestabelecidospara julgarcrimescometidosnosconflitosnaex-IugosláviaeemRuandaincluíaoestupro,fazendodessestribunaisumdosprimeirosorganismosinternacionaisajulgaraviolênciasexualcomocrimedeguerra.

FIGURA 5 – MULHER SENTADA NA ESCADA DE SUA CASA DESTRUÍDA POR UM BOMBARDEIO EM RAMESH, LÍBANO, EM 2006

FONTE: <https://tinyurl.com/y35xynzz>. Acesso em: 11 fev. 2021.

Uma sugestão de leitura é o texto Unicamp tira o dia para refletir sobre o drama dos refugiados, disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2018/06/21/unicamp-tira-o-dia-para-refletir-sobre-o-drama-dos-refugiados.

DICAS

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

Comofoipossívelobservar,atémesmonasdemocracias liberais,existeumconflitointensoentreaautoridadegovernamentaleosdireitoseasliberdadesdopúblico.Portanto,oexercíciodasegurançanacional,aindaqueestejasujeitoaumagovernançademocráticaeaoestadodedireito,podesetornarumpretextoparasuprimiraoposiçãodemocráticaaosregimes.

O aparato de segurança internacional e nacional foi obrigado a seadequaràsnecessidadesdopós-GuerraFriaemummundoemqueacrescentemultipolaridade,aassimetriadosconflitoseasnovastecnologiasseconstituememameaçasmenosprevisíveiseque,portanto,exigemnovasestratégiaseumnovomodus operandi.

Assim, de certamaneira, testemunhamos o desmonte de um sistemainternacional preexistente e mesmo as redefinições de identidades, areconfiguraçãogeopolíticaeosurgimentodeatoresnãoestatais,compotencialpolítico e militar, exercem uma pressão considerável em um sistema emtransformação.Os estadosnacionais,maisdoquenunca, sedeparam comodramavividodesdeo ImpérioRomano:“Si vis pacem, para bellum” (“Sequerpaz,prepare-separaaguerra”)(RIPSMAN,2010).

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• ASegurançaNacionalouadefesanacionaldeumEstado-nação inclui seuscidadãos,economiaeinstituições.

• Concebida, na sua origem, como proteção contra ataques militares, asegurançanacionalpassouacompreendertambémdimensõesnãomilitares,incluindo segurança contra o terrorismo, combate ao crime, segurançaeconômica,segurançaenergética,segurançaambiental,segurançaalimentar,cibersegurança,entreoutros.

• Para proteger o Estado, os governos contam com uma série de medidas,incluindopoderpolítico,econômicoemilitar,bemcomoadiplomacia.

• Oconceitodesegurançanacionaléambíguo,masevoluiuparadefiniçõesmaissimplesqueenfatizavamaliberdadedeameaçasmilitaresedecoerçãopolítica.

• Comabordagensdiferentes, algunsEstados começamapriorizar ações nãomilitaresparalidarcomosfatoressistêmicosdeinsegurança.

• A SegurançaNacional está associada principalmente ao gerenciamento dasameaçasfísicaseàscapacidadesmilitares,açõesnecessáriaspararespondê-las.

• Segurançadeinfraestruturaéaaquelafornecidaparaproteger,especialmente,infraestrutura crítica, como aeroportos, rodovias, transporte ferroviário,hospitais, pontes, centros de transporte, comunicações de rede,mídia, redeelétrica,barragens,usinas,portosmarítimos,petróleorefinariasesistemasdeágua.

• ASegurançaEconômica,nocontextodasRelaçõesInternacionais,éacapacidadedeumEstado-naçãodesedesenvolveremantersuaeconomiaestável.

• ASegurançaEcológica,tambémconhecidacomosegurançaambiental,refere-seàintegridadedosecossistemasedabiosfera,particularmenteemrelaçãoasuacapacidadedesustentarumadiversidadedeformasdevida.

• O alto custodemanutençãode forçasmilitares representa umônuspara asegurançaeconômicadeumanação.

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• A busca da segurança econômica, em competição com outros Estados-nação,podeminarasegurançaecológicadetodos,quandooimpactoincluiaerosãogeneralizadadacamadasuperiordosolo,perdadebiodiversidadeemudançaclimática.

• Jáexisteumconsensoque,quaisquerquesejamasestratégiasdesegurançanacional,asnaçõesnãopodeminvestirisoladamenteemsuaprópriasegurançasemtambémdesenvolverasegurançadeseucontextoregionaleinternacional.

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1 ASegurançaNacionaldeumpaísincluiaproteçãodosseuscidadãos,daeconomiaedasinstituições.Nasuaorigem,foiconcebidacomoproteçãocontra ataques militares, mas, ao longo da segunda metade do séculoXX,passouacompreendertambémdimensõesnãomilitares.Sobreessasdimensões não militares da Segurança Nacional, assinale a alternativaCORRETA:

a)() Terrorismo,cibersegurançaeglobalismo.b)() Terrorismo,segurançaambientalesegurançaalimentar.c)() Segurançaeconômica,segurançaenergéticaenacionalismo.d)() Combateaocrimeorganizado,terrorismoesectarismo.

2 A segurança de aeroportos, rodovias, transporte ferroviário, hospitais,pontes,centrosdetransporte,comunicaçõesderede,mídia,redeelétrica,barragens, usinas, portos marítimos, petróleo refinarias e sistemas deágua tambémestá incluídanoescopodeSegurançaNacional.Combasenoquedefineque tipodeSegurançaNacional se relacionacomos itensmencionados,assinaleaalternativaCORRETA:

a)() SegurançaEcológica.b)() SegurançadeEnergética.c)() SegurançadeInfraestrutura.d)() SegurançaInformática.

3Especialistas em Segurança Nacional argumentam que o equilíbrio daordem internacional depende de algumas variáveis importantes naSegurançaPolítica.Considerandoasvariáveisvitaisparaoequilíbriodaordeminternacional,classifiqueVparaassentençasverdadeiraseFparaasfalsas:

()AsegurançapolíticanãodependedoEstadodeDireitoInternacional.()A segurança política depende da diplomacia e da negociação entre as

nações.()Asegurançapolíticanãodependedainclusãodegruposinsatisfeitoseda

segurançadoscidadãos.()AsegurançapolíticadependedoEstadodeDireitoInternacional.

AssinaleaalternativaqueapresentaasequênciaCORRETA:

a)() F–V–F–V.b)() V–F–V–F.c)() F–F–V–V.d)() V–V–F–F.

AUTOATIVIDADE

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4 NoBrasil,aLeideSegurançaNacional,Leinº7.170/1983,temsidousadapara caracterizar crimes de opinião, nos últimos tempos. Para muitosjuristas,essencialmente,aleiviolaodireitofundamentaldaliberdadedeexpressão. Alguns afirmam que o direito fundamental de liberdade deexpressão passa por uma crise face às ameaças decorrentes de atos dasautoridades,incluindo-seosatosdostrêsPoderes(Executivo,LegislativoeJudiciário).DissertesobreoimpactodaspolíticasdeSegurançaNacionalnasliberdadesciviledireitoshumanos.

5 Leiaotextoaseguir:

“CadamembrodoConselhodeSegurançadaONUtemdireitoaumvoto.Asdecisõessobreprocedimentonecessitamdosvotosdenovedos15membros.Asdecisõesrelativasaquestõesdefundotambémnecessitamdenovevotos,incluindoosdoscincomembrospermanentes,ochamado‘direitodeveto’.Seummembropermanentenãoapoiaumadecisão,masnãodesejabloqueá-laatravésdoveto,podeabster-sedeparticipardavotação”.

FONTE: <https://tinyurl.com/3vtmbx5c>. Acesso em: 16 jul. 2021.

Sobreopoderdevetopelospaíses-membrosdoConselhodeSegurançadaONU,dissertesobreapolêmicaemtornodessaprerrogativa.

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UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

O uso e o significado atual do termo “segurança internacional” sãorelativamentenovos,masotermocobreassuntosqueforamimportantesnoquedizrespeitoàscondiçõesdevidadaspessoasaolongodahistória.Estabilidade,emgeral,epaz,emparticular,sempreforamaspiraçõescomuns.Entretanto,essenãofoiocaso.Aguerrasempretrouxeimensosofrimentohumanoedeterioraçãodascondiçõesdevida.Portanto,naguerraenapaz,asegurançainternacionalpodeserconsideradadegrandeimportância.Noentanto,somenteaausênciadeconflitoarmadocriaapré-condiçãonecessáriaparabuscarpolíticasquepossamfacilitarodesenvolvimentoeoaprimoramentodesistemasquepodemmelhoraraqualidadedevidadoserhumano.

Nestetópico,veremosumbrevehistóricodaSegurançaInternacionaledeseusconceitos.Emseguida,trataremosdaSegurançaInternacionalapósaGuerraFria e as ameaças do Estado ao indivíduo, à sociedade e à soberania. Por fim,estudaremososdesafiosdaproliferaçãodasarmasdedestruiçãoemmassa(ADM).

TÓPICO 3 —

SEGURANÇA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA: CONFLITOS, PROLIFERAÇÃO DE

ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA

FIGURA 6 – ARMAS DE DESTRUIÇÃO DE MASSA – SÍMBOLOS

FONTE: <https://tinyurl.com/yxn63qtd>. Acesso em: 13 fev. 2021.

2 SEGURANÇA INTERNACIONAL: PASSADO E PRESENTE

A Segurança Internacional assumiu novas formas no século XXI.Entretanto, o conceito de segurança internacional, como segurança entre osEstados,pertenceaoséculoXX.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

Todavia,nofinaldoséculoXX,asameaçasmaissignificativastêmorigemnosgruposétnicos,afiliadosaoetno-nacionalismoextremo,nocrimeorganizado,nacorrupção,nasepidemias,noterrorismo,nasegurançaalimentar,napobreza,namágestãodaeconomia,nasuperpopulação,nosestadosfalidos,nosfluxosderefugiadose,maisimportante,napoluiçãoenosseusefeitos.

Asvítimasdasnovasameaçassãoprincipalmenteoindivíduo(segurançahumana), a sociedade (segurança social) e o planeta (segurança global). Asobrevivênciafísicaeeconômicadoindivíduoestáameaçadae,deformaanáloga,asobrevivênciadassociedadesestáameaçada,noquedizrespeitoàidentidadee à estabilidade.Alémdisso, a sobrevivênciadomundo, comoo conhecemos,está ameaçadaa longoprazo.Portanto,pelaprimeiraveznahistória,háumaconsciênciaglobalcomumdanecessidadedelutarpelasustentabilidadedoglobo(HEURLIN;KRISTENSEN,2007).

Uma pré-condição importante é o fato de que omundo,mais do quenunca, se torne como no velho slogan do início daGuerra Fria: “ummundoou nenhum”. Tal conceito permanece relevante em uma nova dimensão queenvolveglobalização, internacionalização,transnacionalismo,interdependênciae integração. Por outro lado, essas realidades convivem em tensão comfragmentação, separatismo, desintegração, hipernacionalismo, o fanatismoreligiosoouétnico,oisolacionismoeaautossuficiênciasãoameaçadoresemsi(HEURLIN;KRISTENSEN,2007).

Entretanto, as condições estruturais epolíticaspara a concretizaçãodoprincípio “ummundo ou nenhum” estão melhores do que nunca. De formainédita,vivemosemumaépocadeaceitação,porquasetodosospaísesdomundo,denormasglobaiscomunsa todasasnações.Essasnormassão“democracia”,“economiademercado”,“direitoshumanos”e“liberdadeindividual”.

Ainterpretaçãodessasnormasédiferente,dependendodopaís,mas,nasuatotalidade,sãopoucosEstadosqueasignoram.Todavia,poroutrolado,essesvalorestêmcomooposiçãoasforçasdoantiglobalismo,dohipernacionalismo,doisolacionismoedofundamentalismoreligioso.

2.1 O CONCEITO DE SEGURANÇA

Comoindicado,a“segurança”,comoconceitoecomofenômeno,nofinalda Guerra Fria assumiu novas formas. Surgem novas agendas de segurança,novasmanifestaçõesrelacionadasàsegurançaenovasregrasparaapolíticadesegurança.

Como explicar e compreender a “segurança” como parte das relaçõesinternacionaisnachamadanovaordemmundial?

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Segurançaéumconceitocontestado.Aquestãoéseépossívelusá-lacomoconceitoacadêmico,pois“segurança”éumapalavradeusocomumempregadaemrelaçãoaumaamplavariedadedeatividadesecondiçõespessoaisecoletivas.Pode-sedistinguirentre“segurança”nasatividadesdiáriasnormais (trabalho,economia, sexo, transporte e alimentação), segurança positiva, condiçõesdesejáveis (democracia, liberdade,prosperidade,desenvolvimento eumavidaboa)esegurançacontracondiçõesnegativas(guerra,poluição,crimeetodosostiposdeameaças).

Decertaforma,temostrêsdomíniosdiferentesparaotermo“segurança”.Primeiro,oamplo,nousocotidianodapalavra,referindo-seaumaposiçãoaqueseaspira:deserseguro,protegido.Emsegundolugar,ousopolíticodapalavra,que se refere a ações políticas, processos ou estruturas que podem garantir asegurançadeumaunidadepolítica.Naesferapolítica, o termo“segurança” éusadocomoumaferramentapolítica,porexemplo,parafornecerumdeterminadofenômeno com uma prioridade específica, colocando-a no domínio da altapolítica. Finalmente, “segurança” pode ser usada como um conceito analíticoparaidentificar,descrever,compreender,explicaroumesmopreverfenômenosna esfera social geral, como “política de segurança”, “política de segurançainteração”ou“instituiçõeseestruturasdesegurança”(AYOOB,1995).

A adoção no uso político do termo “segurança”, nos Estados Unidos,em1947,comacriaçãodoConselhodeSegurançaNacional,setornoumodeloparaváriospaísesaoredordomundo,dandoorigemdeumnovoconceitode“segurançapolítica”,quemaisdoqueumapolíticadedefesaouumapolíticamilitardepreparaçãoparaaguerra,passouaserumapolíticadesegurançaquevisavaaevitaraguerra.

A política de segurança englobava segurança interna, política dedesenvolvimentoeconômicoepolíticaparainfluenciarosistemainternacionalcomobjetivodecriarumambientepacífico,regionaleglobal,incluindoaajudaparapaísesemdesenvolvimento.Traduzindooconceito,RobertMcNamara,oentãoSecretáriodeDefesadosEstadosUnidos,afirmavaque“segurançaédesenvolvimento”.

Assim, a política de segurança se tornou uma ferramenta importanteparaasnaçõespromoveremseusinteressesnacionaiseinfluenciaremosistemainternacional. A busca da segurança internacional política ficou a cargo daONU,queperdeugrandepartedesua influênciadevidoaoconfrontoLeste-Oeste(BUZAN,1983).

Comoindicado,duranteaGuerraFria,anoçãopolíticadesegurançafoiampliadapara incorporar questões relacionadas àdefesa e às forças armadas,como a prevenção de agressão militar, para lidar com questões econômicas,políticasesociais,nacionalcomointernacional.

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AconcepçãooriginaleestreitadesegurançafoibaseadanofatodequeaONUfoiacontinuaçãodaaliançavitoriosanaSegundaGuerraMundial,queviaaagressão,comorigememformasradicaisdenacionalismo,comooprincipalmotivodoconflitomundial, entre1939e1945.Portanto, aONUdeveria seraferramentaparaevitarumarepetiçãodaqueleseventostrágicos.AGuerraFria,porém,mudouocenáriointernacionalcompletamente.

2.2 SEGURANÇA DEPOIS DA GUERRA FRIA

Com o fim da Guerra Fria, entre 1989 e 1991, o confronto desaparecee a bipolaridade é substituída pela unipolaridade, o que implicava umanovaagendade segurança,mas, emescalaglobal, a ideiade segurançapermanece.Noentanto,adinâmicadosconflitosmudaeasguerraspassamasertravadasdeformaassimétrica,ouseja,conflitosentreaúnicasuperpotênciaremanescente,osEstadosUnidos,apoiadosporseusaliados,emparte,emnomedasociedadeinternacional,contraestadospercebidoscomoameaças,comooIraqueeoregimetalibã(KALDOR,1999).

Pela primeira vez, todas as guerras de alta intensidade (a “Guerra doGolfo” e a “Guerra Antiterror”, no Afeganistão) foram travadas por forçasautorizadaspeloquepoderiaserchamadode“sociedadeinternacional”,istoé,aONU(ConselhodeSegurança)agindoemnomedetodososEstados-membrosem questões de “paz e segurança”. Por outro lado, a intervenção na “Guerrado Kosovo” não obteve o apoio unânime da sociedade internacional, mas aintervençãofoitacitamenteaceitacomoacirramentodoconflito.

Tantonoquadroglobal e regional, a agendade segurança,baseadanadistensão,similaraostemposdaGuerraFria,retornacomaadiçãodepelomenosquatroimportantes“novas”áreastemáticasdesegurança.Emprimeirolugar,asegurançasocial,graçasaosurgimentodenovasunidadespolíticasourenovadascombasenosconflitosnacionalistasétnicos,quecausavamondasderefugiados.Emsegundolugar,asegurançaindividual,devidoàênfaserenovadaemDireitosHumanos e crimes contra a humanidade. Em terceiro lugar, a segurança emrelaçãoàsaúdedoserhumano,contraepidemiasmundiais,poluiçãodealimentoseafaltadealimentos.Finalmente,“segurançadenovastecnologias”,devidoàsameaçasaossistemasdetecnologiadainformação(TI)vulneráveisparapaísestecnologicamenteavançados(ARCHIBUGI,1998).

No mundo pós-Guerra Fria, a geopolítica, preocupada com espaços,como as fronteiras e a proximidade, voltou; porém, as dimensões, agoramultifacetadas e globais, incluem o ciberespaço ao contrário do período daGuerraFria,quandoageopolíticagiravaemtornodeumeixobinárioLeste-Oeste.Portanto,nonovosistemainternacional,comapenasumasuperpotência,aagendadesegurançamudoudramaticamente.

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OvelhodebatesobresegurançadaGuerraFriacontinuaentreaquelesqueveema segurança comoalgo complexoedenaturezamilitar e aquelesque alegaram que, como todos os eventos foram baseados em estruturasconflitantes,tudoésegurança.

Assim,amaioriadosestudiososadmitequeonovosistemainternacionale a nova organização da ordemmundial deram origem a uma ampliação daagendadesegurançaeparanovosconceitosanalíticosparaidentificar,analisareexplicaroimpactopolíticodessaagenda(KALDOR,1999).

3 SEIS NÍVEIS DOS ATORES DE SEGURANÇA

Ocomplexoproblemadesegurançanonovosistemapodeserdivididoemseisníveisdesegurança,definidospelosagentesdesegurançaque,aomesmotempo,sãovítimas,empotencial,dosproblemasrelacionadoscomasegurança:

• segurançaparaoindivíduo(segurançaindividual);• segurançaparaogruposocial,acomunidade,“nação”,nacionalorganizadoouentidadeétnica(segurançasocial);

• segurança para o Estado ou “nação”, na terminologia dos Estados Unidos(segurançanacional);

• segurançaparaaregião,nãonecessariamenteumacombasenaproximidade(segurançaregional);

• segurançapara a sociedadedasnaçõesouoquepoderia ser referido como“sociedadeinternacional”,consistindoemtodosounamaioriadosEstadosnomundo(segurançainternacional);

• segurançaparaoplaneta(segurançaglobal).

O funcionamento desses diferentes níveis de segurança, definidos deacordocomasentidadespolíticasfuncionando,comoameaçasecomovítimasdeameaças,relacionam-seentresi.Comomapearasameaçasvitaisparaosseisníveisdesegurançaprovenientesdessesmesmosseisníveis?

Aafirmaçãofundamentaléqueaameaçageralserelacionacomasimplesexistênciadaentidadepolítica.Quantoàsameaçasvitaisespecíficas,paraosseisníveisdeunidades, a reivindicaçãobásica,noplano individual se resumenasameaçasfísicaeeconômica,poisnãohácomoserum“homempolítico”,emsuaplenitude,sobessasameaças.

Emuma sociedade,o elementovital e construtivo é a identidade. Semidentidadenãohásociedade.ParaoEstado,aameaçavitalécontraasoberania.Sem soberania, uma entidade sócio-política não pode ser reconhecida comoumEstado.Portanto, nãoháorganização regional semesses elementosvitais.Finalmente, para o mundo, como uma espécie de unidade de segurança, asustentabilidadeéconsideradaofatorvitalexpostoàsameaças(HOLSTI,1996).

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3.1 O INDIVÍDUO COMO VÍTIMA

Paraoindivíduo,existemameaçasprovenientesdepraticamentetodososatoresnossistemasdesegurança:deoutrosindivíduos,dasociedade,doEstado,regionaiseglobais.Éinteressantenotarque,deacordocomasestatísticasdeatoscriminosos,asameaçasàvidaocorrem,commaisfrequência,dentrodefamíliasougrupospróximos.Assim,olugarmaisperigoso,paraumindivíduo,pareceserolarousuasproximidades.Noentanto,ameaçastambémpodemvirdeatorescoletivos.Por exemplo, em uma situação na ex-Iugoslávia (1991-2001), a pergunta “vocêé sérvio, croataoubósnio?”poderia significaradiferençaentre evidaemorte.Entretanto,essaseriaumasituaçãomaisimprovável,emboranãoimpossível,doquesepoderiasuporemumaguerracivil.Assim,asameaçasmaisgraves,emtaissituações,viriamdosaparatosdesegurançadoEstadoemaçõesdirecionadasesistemáticascontraapopulaçãocivil(HEURLIN;KRISTENSEN,2007).

No caso das ameaças regionais, a pré-condição é atuar através deorganizações como a União Europeia (UE), a Organização do Tratado doAtlânticoNorte(OTAN)ouaOrganizaçãodaUnidadeAfricana(OUA).Ameaçasàsegurançacoletivaéumfenômenoraro.AúltimaocasiãofoiaGuerradoGolfo,em1990-1991,naqualiraquianosforamexpostosaataquesmilitares.Porúltimo,emcasodeumaameaçaglobal,comocatástrofesnaturais,epidemias,possíveisameaças futuras do espaço sideral e poluição severa. No entanto, é precisoressaltar as recentes catástrofes humanitárias causadas pela guerra civil e porintervençõesdeEstadosestrangeirosnaatualcrisenaSíria.

A ONU alerta para o maior êxodo de civis sírios desde o início da guerra. Mais de 900.000 pessoas fogem em meio ao frio da ofensiva lançada pelo regime em Idlib. A ofensiva final do Governo de Damasco contra a província de Idlib, no noroeste, último reduto da oposição, está causando o maior êxodo de civis de uma guerra que está prestes a completar nove anos de hostilidades. Dois meses após o início dos ataques das forças governamentais, coordenados com a aviação aliada da Rússia, mais de 900.000 pessoas, 80% mulheres e crianças, tiveram que deixar suas casas no meio do frio, da neve e da chuva desde o início dos combates, que custaram cerca de 300 vidas de não combatentes.

A Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, denunciou na terça-feira os ataques “indiscriminados” e “desumanos” sofridos pela população no noroeste da Síria, e instou as partes a criar corredores humanitários. O Escritório de Direitos Humanos das Nações Unidas confirmou a morte de pelo menos 298 civis nas regiões de Idlib e Aleppo desde 1º de janeiro – pelo menos cem deles nos primeiros 16 dias de fevereiro. A grande maioria dessas vítimas, 93%, corresponderia a ataques do Governo sírio e de seus aliados. Entre as vítimas mortais estão 112 crianças, segundo a ONG Observatório Sírio dos Direitos Humanos, que tem informantes no local.

IMPORTANTE

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O subsecretário-geral de Assuntos Humanitários da ONU, Mark Lowcock, denunciou, por sua vez, que bebês e crianças de tenra idade estão “morrendo por causa do frio” no meio de “uma onda de violência cega”. A ONG Save the Children está documentando vários desses casos. O deslocamento maciço de população acontece no meio da neve e das chuvas de inverno, que no Oriente Médio está mostrando este ano toda a sua crueza. O UNICEF teve de fechar os dois últimos hospitais em operação na região por causa dos combates. “Os civis que fogem dos confrontos estão se acumulando em áreas sem abrigos seguros e se reduzem a cada hora que passa. E ainda assim continuam sob bombardeio. Não têm para onde ir”, disse a Alta Comissária das Nações Unidas, que teme que o saldo de vítimas só aumente se as partes em conflito não agirem.

Os civis “agora correm mais risco do que nunca, com poucas esperanças ou garantias de conseguir um retorno seguro e voluntário às suas regiões de origem ou a outras de sua escolha”, acrescentou. Bachelet pediu o fim imediato das hostilidades, bem como corredores humanitários para que os civis possam escapar com segurança das áreas em conflito e as organizações possam distribuir a ajuda. A esse respeito, alertou que colocar a população em risco implica um descumprimento do Direito Internacional Humanitário e dos Direitos Humanos. A Alta Comissária ficou “alarmada” com o “fracasso da diplomacia”, que “deveria colocar a proteção dos civis acima de qualquer vitória política e militar”.

FONTE: <https://tinyurl.com/y5faryxa>. Acesso em: 3 fev. 2020.

3.2 SOCIEDADE COMO VÍTIMA: AMEAÇAS À IDENTIDADE

Umasociedadedificilmente seráameaçadapor indivíduos.Mesmoemcasos extremos, não se concebe um terrorista ou um grupo particularmenteviolento, representando uma ameaça à existência ou à identidade de umasociedade.Entretanto,umaameaçaàidentidadecoletiva,vindadeumasociedadeconcorrente,podeserconsideradaséria–umexemploéoconflitonaItália,noséculo XIX, ocasião em que as várias “nações” italianas disputavam o papelhegemônicoemumaItáliaunificada.

Damesmaforma,oEstadopodeserumaameaçaaidentidadesregionaisautônomas, de grupos ou comunidades, principalmente se estas pleitearemautonomia política. Os exemplos são numerosos: da Turquia para os curdos,de Israel para os palestinos, da Rússia para os chechenos e da Inglaterra, nopassado,paraosgalesesouescoceses.Oatorregional,àsvezes,podeserumaameaçaaltamenterelevanteparaaidentidadedeuma“nação”.BastaconsiderarapossívelameaçadaUniãoEuropeiaàidentidadedecadaumdosseusEstados-membros.IssovaleparaoimpactocausadopelaOTAN,duranteaGuerraFria,aotentarconstruirumaidentidadesupranacional,emalgunscasos,àcustadaidentidadenacional(WALKER,1993).

De maneira semelhante, a sociedade internacional pode atuar comofonte de ameaças à identidade. A sociedade internacional, representada naLiga das Nações (1920-1946), teve, como um importante objetivo, o princípioda“autodeterminaçãodospovos”,queresultouemumaumentoconsiderável

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no número de Estados-nação na Europa, resolvendo, assim, o problema deidentidade para muitas nações que se tornaram Estados. Ao mesmo tempo,porém,identidadesmultinacionais,constituídascomoEstados,sofreramcomaameaçadedesintegração.

Oprincípiodaautodeterminaçãonãotinhaprioridadenanovaformaçãodasociedadeinternacional,poisemergiudaSegundaGuerraMundial,ouseja,naONU.Emvezdisso,oopostotornou-seanorma:adivisãoacidentaldenações(principalmenteaAlemanha,em1945),a remoçãodeenormespopulaçõeseoreconhecimentodefronteirasquenãolevaramemconsideraçãoasafiliações.Issoconstituiuumaameaçaà identidadesocial.Tambémasociedade internacionalem a nova ordem mundial pode ameaçar a sociedade nacional ou étnica, aidentidade por meio da intervenção humanitária internacional. No que dizrespeitoàsameaçasglobais,aidentidadesocialnãoéexplicitamenteumavítima;existeapenasumaameaçaindiretaàsociedade.

FIGURA 7 – CENTRO DE GROZNY, CAPITAL DA CHECHÊNIA, TOTALMENTE DESTRUÍDA, NA GUER-RA ENTRE CHECHENOS PRÓ-INDEPENDÊNCIA E TROPAS DA FEDERAÇÃO RUSSA, EM 1995

FONTE: <https://i.pinimg.com/474x/5b/e7/e6/5be7e61e5e162bb13b2e520a1a47e2f8.jpg>. Aces-so em: 13 fev. 2021.

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FIGURA 8 – CENA DA GUERRA DE KOSOVO DE UMA CRIANÇA KOSOVAR NO ENTERRO DO PAI MORTO POR FORÇAS SÉRVIAS, EM 1999

FONTE: <https://www.teunvoeten.com/photography/war-conflict-kosovo.html>. Acesso em: 13 fev. 2021.

Partilhas de territórios após a Segunda Guerra Mundial:

• Plano de Partilha da ONU para o Mandato Britânico da Palestina (1947).• Partilha da Índia (Índia colonial britânica), em 1947, nos domínios independentes da

Índia e do Paquistão (que, então, incluía Bangladesh).• Partilha da China entre a República Popular da China no continente e a República da

China em Taiwan após a Guerra Civil Chinesa, em 1949.• Partilha da Coreia, em 1953, entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, após a Guerra

da Coreia.• Partilha do Vietnã, em 1954, entre o Vietnã do Norte e o Vietnã do Sul sob o Acordo de

Genebra, após a Primeira Guerra da Indochina. Reunificado após a Guerra do Vietnã, em 1975.

• Partilha do Paquistão (Ocidental e Oriental), em 1971, quando o Paquistão Oriental se tornou independente como Bangladesh.

• Partilha do Chipre, em 1974 (de fato), em Chipre de maioria grega e Chipre do norte turco, após a invasão turca do Chipre.

• A Partilha da Iugoslávia na década de 1990. • Independência, em 1991, de Croácia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia do Norte e

Eslovênia da Iugoslávia (deixando a Sérvia e Montenegro).

NOTA

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• Divisão etnopolítica da Bósnia-Herzegovina, em 1992, em duas entidades, a República Sérvia, sérvia-majoritária, e a Federação Bósnia-croata maioritária da Bósnia-Herzegovina, após a Guerra da Bósnia.

• Divisão da Tchecoslováquia, em 1993, nas entidades independentes da República Tcheca e Eslováquia.

• A divisão hipotética de Quebec abortada, após o referendo, em 1995, pelo qual a permanência de Quebec, como província canadense, venceu os separatistas por pouco mais de 1%.

• Independência de Kosovo, em 2008, separado da Sérvia.• Partilha do Sudão em duas entidades, em 2011, o Sudão de maioria muçulmana e o

Sudão de maioria cristã do Sul do Sudão.

FONTE: <https://tinyurl.com/y2nv878l>. Acesso em: 8 fev. 2021.

3.3 O ESTADO COMO VÍTIMA: AMEAÇAS À SOBERANIA

Uma sociedade pode representar uma ameaça, especialmente quandoa legitimidadedoEstado é frágil e as identidadesnacionais/sociais sãomuitofortes.Essefoiocaso,porexemplo,dospaísesdoLesteEuropeusobinfluênciadaUniãoSoviéticaduranteaGuerraFria,nosquaisoregimecomunistadesfrutavadeumalegitimidadelimitada.

NospaísesdoLesteEuropeu,asociedadesetornouumaameaçaaoEstadocomunista.Emtrêsocasiões,essasituaçãolevouaumconflitoviolento:em1953,naRepúblicaDemocráticaAlemã(AlemanhaOriental);em1956,naHungria;e,em1968,naTchecoslováquia.

ParaopensamentoneorrealistanateoriadasRelaçõesInternacionais,asameaçasentreEstadosépartevitaldaestruturaanárquicainternacional(SAGAN,2004).Dessamaneira,umaameaçaregional,comofoiocasodaSérviaduranteaoperaçãomilitarnoKosovo,em1999,tambémpodeservistacomoumagrandeameaçaparaasociedadeinternacional.

A pré-condição para esse tipo de ameaça é que Estados, dispostospoliticamente e capazes militarmente, deveriam, em tese, agir em nome dasociedadeinternacionalnaconduçãoguerraparasalvarumEstadoatacadoporuminfratordaleiinternacional(comooIraque,nainvasãodoKuwait,em1990).

No que diz respeito às ameaças globais, a situação é próxima à dasociedade nacional: o estado como um estado não é explicitamente ameaçado poreventosdeorientaçãoglobal(HEURLIN;KRISTENSEN,2007).

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FIGURA 9 – TANQUE SOVIÉTICO TOMADO PELA POPULAÇÃO NA PRIMAVERA DE PRAGA, EM 1968

FONTE: <https://tinyurl.com/yy3j5wlj>. Acesso em: 13 fev. 2021.

4 O CONTROLE DE ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA

Armasdedestruiçãoemmassa(ADMs)podemserdefinidascomoarmasnucleares,radiológicas,químicas,biológicasouqualqueroutraarmaquepossamatar,causardanossignificativosemsereshumanosecausargrandesdanosaestruturasconstruídaspelohomem,aomeioambienteeàbiosfera.Aolongodotempo,oescopoeousodotermomudaram,masasuadefiniçãoaindaéobjetodedebate,principalmentenocampopolítico.OtermofoioriginalmentecunhadoemreferênciaaousodearmasquímicasnaPrimeiraGuerraMundiale,maistarde,passou a se referir ao armamento químico, biológico, radiológico ou nuclear.AsarmasquímicasforamproibidaspeloProtocolodeGenebrade1925,masaItáliausouagentemostardacontracivisesoldadosnaEtiópia,em1935-1936.Noentanto,otermo“armadedestruiçãoemmassa”foiregistradopelaprimeiravez,em1937,aodescreverobombardeiodaLuftwaffe(alemã)aGuernica,noPaísBasco,duranteaGuerraCivilEspanhola.Entretanto,nofimdaSegundaGuerraMundial,apósosbombardeiosatômicosdeHiroshimaeNagasaki,noJapão,em1945,passouasereferirmaisaarmasnãoconvencionais.

DuranteaGuerraFria,otermofoiusadoparasereferiràsarmasnucleares.Naépoca,noOcidente,oeufemismo“armasestratégicas”erausadoparaoarsenalnuclear americano. No entanto, não existe uma definição precisa da categoria“estratégica”;comomencionadoanteriormente,otermosemoldaacontingênciaseinteressespolíticosduranteeapósaGuerraFria(ALEXANDER;MILLAR,2003).

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No iníciode2019,maisde90%das13.865armasnuclearesdomundopertenciamàRússiaeaosEstadosUnidos.Apósosataquesde11desetembrode2001eosataquesdeantrazde2001,tambémnosEstadosUnidos,ummedocrescente de armas não convencionais, e sua possível relação com a guerraassimétrica,seespalhoupelomundo.

Omedoatingiuseupicoem2002,comacrisecomoIraqueeaalegadaexistência de armas de destruição emmassa naquele país, o que justificou ainvasãonorte-americana,em2003,masqueseprovouinfundada.Astropasnorte-americanasapenasencontraramantigosestoquesdearmasquímicas,incluindosarin e agentes de mostarda, mas todos considerados inutilizáveis devido àcorrosãooudegradação(ALEXANDER;MILLAR,2003).

A definiçãomais amplamente usada deADM é a de armas nucleares,biológicas ou químicas, embora não haja nenhum tratado ou lei internacionalquecontenhaumadefiniçãooficial.ODireitoInternacionaltemsidousadoparaidentificar categoriasespecíficasdeADM,masnãocomoumtodo.Emboraasarmas nucleares, químicas e biológicas sejam consideradas os principais tiposdeAMDs,algunsespecialistasargumentamqueosmateriaisradiológicos,assimcomoatecnologiademísseisesistemasdelançamento,comoaeronavesemísseisbalísticos,tambémpoderiamserclassificadoscomoAMDs.

GertG.Harigel,especialistasuíçoemADM,consideraasarmasnuclearesas únicas ADMs porque “Somente as armas nucleares são completamenteindiscriminadas por seu poder explosivo, radiação de calor e radioatividadedeveriamser chamadasdearmasdedestruiçãoemmassa” (HARIGEL, 2001).Elepreferechamarasarmasquímicasebiológicasde“armasdeterror”,quandoempregadas contra civis, e “armas de intimidação”, quando empregadas comfinsbélicos(HARIGEL,2001).

Naatualidade,ocontroledeADMsedaproliferaçãodemísseisépartedomesmoesforçodacomunidadeinternacionaldedeterecontrolaradisseminaçãodessesarmamentos.Existeumaredeinterligadadetratados,regimesmultilateraiseiniciativasparaabordarecorrigiraproliferaçãodosproblemas,oqueéumatarefadifícilecomplexa.

Por outro lado, os proliferadores, empotencial, ou países que buscamtecnologiasdeADM,sedeparamcomumavariedadedeferramentasconcebidase implementadasparaprevenir a disseminaçãodesses armamentos, incluindodiplomaciaemesmosançõesaplicadaspelacomunidadeinternacional.

OspaísesprocuramadquirirADMporváriasrazões,entreelas,prestígioe poder. Em um mundo no qual a tecnologia, para fins pacíficos, é muitomais importante para desenvolvimento e bem-estar das nações, alguns paísesbuscamADMs e as tecnologias para sua fabricação como formade afirmação

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internacional.Emalgunscasos,aprocuradeADMtambéméjustificadaparaadefesadeameaçasregionaisempotencial,ouparaobtervantagememconflitosfuturos.Noentanto,aaquisiçãodeADMpodeiniciarumacorridaarmamentista,localeglobal,e,emalgunscasos,resultaremisolamentointernacional.

Armasquímicasebiológicas(AQB)são,àsvezes,chamadasde“armasdedestruiçãoemmassadospobres”.EssearmamentoéorecursoaoalcancedeEstadosquenãoconseguemdesenvolveratecnologiasofisticadanecessáriaparaproduzirarmasnucleares.Noentanto,essassãoopçõesperigosas,queignoramo impacto desestabilizador dessasADMs para a segurança regional e global.Os poucos que buscam armas químicas e biológicas se colocam frontalmenteem oposição ao consenso global contra a proliferação de tais tipos deADMs,conformeexpressonostratadoseconvençõesquebuscambanirasarmasquímicaebiológicas:TratadodeNãoProliferação(TNP),ConvençãodeArmasQuímicas(CAQ)eConvençãodeArmasBiológicas(CAB).

FIGURA 10 – TROPAS ALEMÃS NO FRONT DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

FONTE: <https://tinyurl.com/y5j7rwgq>. Acesso em: 1 fev. 2021.

FIGURA 11 – ARMAS QUÍMICAS NA GUERRA IRÃ-IRAQUE (1980-1988)

FONTE: <https://tinyurl.com/yyqas2je>. Acesso em: 1 fev. 2021.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

4.1 DESAFIOS DA PROLIFERAÇÃO DE ARMAS DE DESTRUIÇÃO DE MASSA

OdesafioapresentadopelaproliferaçãodeADMségrande,masexisteumapredisposiçãodacomunidadeinternacionalemcontê-la.ParaJohnHolum,“umaestratégiaabrangentedenãoproliferaçãopermanecerácomopeçacentraldapolíticaexternadosEstadosUnidosesegurançaglobalnopróximoséculo”(HOLUM,1994,p.55).

OcoroláriodaaquisiçãodeAMDéaleidaofertaedaprocura.Apesarda crescente conscientização de que ADMs tornam o mundo mais inseguro,váriospaíses,porrazõeseconômicasoupolíticas,continuamavendermísseis,tecnologianucleareoutroscomponentesrelacionadosaAMDs.

Um dos piores cenários da proliferação deAMDs não envolve atoresestatais,masterroristaseoutrosatoresnãoestatais,umavezqueaobtençãoeousodeAMDsteriaumimpactodevastador,especialmentecomasarmasbiológicas,possibilidade que permanece ao alcance daqueles com recursos financeirossuficientesparaobtê-las.Todavia,esforçosinternacionaisparadetectareimpedirtaisaçõessãoconstantementedesafiadosporavançosemtecnologiasquetornamadetecçãomaisdifícilepelarelativafacilidadecomquecertasAMDspodemserfabricadas,escondidasetransportadas.

FIGURA 12 – OS NOVE PAÍSES COM ARMAS NUCLEARES

FONTE: <https://tinyurl.com/yy3pmt4g>. Acesso em: 6 fev. 2021.

Embora o compromisso e os esforços da comunidade global com anãoproliferação,asestimativassãodequemaisdeduasdezenasdepaísespossuamcapacidadeouestãonocaminhodeobterAMDs.Parailustrarisso,a seguir, discutiremos alguns dos mais atuais e significativos desafios napolíticadenãoproliferação.

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4.1.1 Armas nucleares

Em1994,oprogramadearmasnuclearesdaCoreiadoNortefoireveladoapósos inspetoresdaAgência InternacionaldeEnergiaAtômica (IAEA) teremencontradodiscrepânciasnosrelatóriosdecombustívelenriquecidoporaquelepaís.ACoreiadoNorteconcordou,nocontextodeumacordo-quadrobilateralde cooperação, em trabalhar com os Estados Unidos para o cumprimentototal de suas obrigações de não proliferação nuclear. No entanto, atrasos naimplementaçãodaestruturaacordadaeosurgimentodeoutraspreocupaçõesdeproliferaçãotornamumacordocomaRepúblicaDemocráticadaCoreiaincerto.

Em maio de 1998, primeiro a Índia e depois o Paquistão desafiarampadrões globais de não proliferação por meio de testes de armas nucleares.Índia e Paquistão continuamos esforços, de várias formas, para avançar suascapacidadesnuclearesparafinsbélicos.

FIGURA 13 – DAS 13.865 ARMAS NUCLEARES EXISTENTES NO MUNDO NO INÍCIO DE 2019, 90% PERTENCIAM À RÚSSIA E AOS ESTADOS UNIDOS

FONTE: <https://tinyurl.com/yxq3gq9k>. Acesso em: 1 fev. 2021.

CHINA, ÍNDIA E PAQUISTÃO: PAÍSES COM 630 ARMAS NUCLEARES AMEAÇAM GUERRA

A disputa entre militares da Índia e da China, os dois países mais populosos do mundo, escalou nos últimos dias. Reportagem do diário South China Morning Post, de Hong Kong, mostra que outro vizinho, o Paquistão, pode se envolver no conflito. Resultado: três países que, juntos, somam 3 bilhões de habitantes, e um amplo arsenal de armas nucleares, podem entrar em guerra. A possibilidade, embora remota, amplia ainda mais a guerra fria entre a China e outra potência, os Estados Unidos.

O conflito se dá no extremo nordeste da Índia, na região da Caxemira, perto das montanhas do Himalaia. Nas últimas semanas, tropas chinesas se concentraram de seu lado da fronteira, numa sinalização de que Xi Jinping quer no mínimo ampliar sua presença na região. Em 15

IMPORTANTE

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

de junho, militares dos dois países protagonizaram uma batalha corpo a corpo que deixou 20 indianos e um desconhecido número de chineses mortos, no primeiro confronto entre os dois países em 45 anos. O Instituto de Pesquisas Sipri, da Suécia, calcula que a China tem 320 armas nucleares, que o Paquistão tem 160 e que a Índia tem 150. São 630 motivos para os três países evitarem um conflito.

FONTE: <https://tinyurl.com/y2vkcv22>. Acesso em: 1 fev. 2021.

4.1.2 Armas químicas

Emumadefiniçãosimples,umaarmaquímica(AQ)éumprodutotóxicocontidoemumsistemadeentrega,comoumabombaouumprojétildeartilharia.Emboratecnicamentecorreta,essadefiniçãocobre,deformamuitoparcial,oqueestáprescritonaConvençãosobreArmasQuímicas(CAQ),queproíbetantoasuafabricaçãoquantooseuuso.NaregulamentaçãodaCAQ,adefiniçãodeAQinclui todos os produtos químicos tóxicos, e seus precursores, exceto quandousadosparafinspermitidospelaConvençãoeemquantidadesconsistentescomtalpropósito.

Exemplosdearmasquímicasincluem,masnãoestãolimitadosa:

• armas químicas totalmente desenvolvidas e os componentes de tais armasquandoarmazenadasseparadamente(porexemplo,muniçõesbinárias);

• produtosquímicosusadosparaproduzirarmasquímicas(precursores).• produtosquímicosusadosparacausarmorteoudanosintencionais;• itens comusos civispacíficos, quandousados oudestinados aousodeAQ(itensdeduplautilização);

• muniçõesedispositivosdestinadosàentregadeprodutosquímicostóxicos.

Umproduto químico ouprecursor pode ser definido comouma armaquímica, dependendo de sua finalidade. Portanto, qualquer produto químicodestinadoparafabricaçãodeAQs,independentementedeestarespecificamentelistadonaConvençãoouemseusanexos,éconsideradoumaAQ.

ACAQnãodeclaraexpressamentequaissãoosprodutosquepodemserusadospara“finsdeproduzirarmasquímicas”;aocontrário,definepropósitosquenãosãoproibidospelaConvenção.UmprodutoquímicotóxicomantidoporumEstadodeveserproduzido,estocadoouusadoparaumpropósitolegítimoeserdetipoequantidadeapropriadosparaseupropósito“pacífico”.

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4.1.3 Guerra química

Váriosacordosinternacionaistentaramlimitare,porfim,aboliraguerraquímica.ADeclaraçãodeBruxelas,de 1874 (não ratificada), proibiu aspartesbeligerantes de “empregar veneno ou armas envenenadas”.AConferência deHaia,assinadaem1899(emvigorsomenteem1900eatualizadaem1907),proibiu“ousodeprojéteiscujoobjetosejaadifusãodegasesasfixiantesoudeletérios”.OProtocolodeGenebra,assinadoem1925(emvigorapenasem1928),proibiuousodegasesasfixiantes,venenososououtros,edetodososlíquidos,materiaisoudispositivosanálogosnaguerra.

A Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção,ArmazenagemeUsodeArmasQuímicasesuaDestruição,de1993(queentrouemvigorem1997),éadministradapelaOrganizaçãoparaaProibiçãodeArmasQuímicas (OPAQ). Esta Convenção sobre armas químicas foi ratificada portodososEstados-membrosdasNaçõesUnidas,comasseguintesexceções:IsraeleMianmarassinaram,masnãoratificaram;eAngola,Egito,CoreiadoNorteeSudãodoSulnãoassinaramnemaderiram.

Centenas de curdos iraquianos recordaram neste sábado em Halabja, no nordeste do país, o ataque devastador com armas químicas que causaram cerca de 5 mil mortes em 1988, e que foram ordenadas pelo então líder Saddam Hussein. O massacre de Halabja é considerado o pior ataque com armas químicas contra civis na história. Parentes de vítimas desfilaram com fotos de seus entes queridos para lembrar o ataque de 16 de março de 1988.

IMPORTANTE

CURDOS IRAQUIANOS VISITAM CEMITÉRIO DE HALABJA, NORTE DO IRAQUE

FONTE: <https://tinyurl.com/y67awmxn>. Acesso em: 1 fev. 2021.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

50 ANOS DEPOIS, AGENTE LARANJA CONTINUA CONTAMINANDO O SOLO DO VIETNÃ

Herbicida usado pelos Estados Unidos na guerra ainda chega aos humanos a partir de sedimentos de rios e lagos. No Vietnã, o Exército dos Estados Unidos travou duas guerras: uma contra o Viet Cong e outra contra a natureza. Nesta, os militares americanos usaram milhões de litros de herbicidas contra a selva onde se escondiam os comunistas e as plantações de arroz que os alimentavam. O herbicida mais usado foi o agente laranja. Uma revisão de diversos estudos mostra que, 50 anos depois que as forças dos Estados Unidos pararam de pulverizá-lo, ainda há restos altamente tóxicos desse desfolhante no solo e em sedimentos, de onde entram na cadeia alimentar.

FONTE: <https://tinyurl.com/y4kvcpzm>. Acesso em: 9 fev. 2021.

NOTA

4.1.4 Armas biológicas

As armas biológicas sãomicrorganismos comovírus, bactérias, fungosououtrastoxinas,produzidoseliberadosdeliberadamenteparacausardoençase morte em humanos, animais ou plantas. Agentes biológicos como antraz,toxinabotulínicaepestepodemrepresentarumdifícildesafioàsaúdepública,causandomuitasmortes emum curto período, aomesmo tempo emque sãodifíceisde conter.Os ataquesdebioterrorismo tambémpoderiam resultar emuma epidemia, por exemplo, se os vírusEbola ouLassa fossemusados comoagentesbiológicos.

Asarmasbiológicassãoumsubconjuntodeumaclassemaiordearmasconhecidas comoADMs.Ousode agentes biológicos é umproblema sério, eoriscodeusaressesagentesemumataquebioterroristaéumaameaçareal.Aguerrabiológica(GB)érepresentadapelousodetoxinasbiológicasouagentesinfecciosos, como bactérias, vírus, insetos e fungos, com a intenção dematarouincapacitarhumanos,animaisouplantascomoumatodeguerra.Asarmasbiológicas(muitasvezeschamadasde“armasbiológicas”,“agentesdeameaçabiológica” ou “bioagentes”) são organismos vivos ou entidades replicadoras(ou seja, vírus que não são universalmente considerados “vivos”). A guerraentomológica(deinsetos)éumsubtipodeguerrabiológica.

A guerra biológica é distinta da guerra nuclear, da guerra química eda guerra radiológica, que, junto à guerra biológica, formam oCBRN (siglaem inglês) ou oDBRN (Defesa Biológica, Radiológica eNuclear), que é umprotocolo militar para iniciar medidas de proteção em situações nas quaisperigos químicos, biológicos, radiológicos ou de guerra nuclear (incluindoterrorismo)podemestarpresentes.

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TÓPICO 3 — SEGURANÇA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA: CONFLITOS, PROLIFERAÇÃO DE ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA

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As armas biológicas podem ser empregadas de várias maneiras paraobter uma vantagem estratégica ou tática sobre o inimigo, seja por ameaçasou por emprego efetivo. Como algumas armas químicas, as armas biológicastambémpodemserúteispara inutilizarumaaéreaparausodoinimigo.Essesagentespodemserletaisounãoletaisepodemserdirecionadoscontraumúnicoindivíduo,umgrupodepessoasoumesmoumapopulaçãointeira.Podemserdesenvolvidas,adquiridas,estocadasouutilizadasporEstadosouporatoresnãoestatais–nesteúltimocasoounocasodeumpaísasutilizarclandestinamente,pode-seconsiderarcomobioterrorismo.

Aguerrabiológicaeaguerraquímicasesobrepõematécertoponto,poiso uso de toxinas produzidas por alguns organismos vivos é considerado nasdisposições,tantodaConvençãosobreArmasBiológicasquantodaConvençãosobreArmasQuímicas.Astoxinaseasarmaspsicoquímicassãofrequentementereferidas comoagentesdemédio espectro.Ao contráriodas armasbiológicas,esses agentesdemédio espectronão se reproduzememseuhospedeiro e sãotipicamente caracterizados por períodos de incubação mais curtos. O uso dearmasbiológicaséproibidopeloDireitoHumanitárioInternacional,bemcomopordiversos tratados internacionais.Ousodeagentesbiológicos emconflitosarmadoséumcrimedeguerra.

5 TRATADOS

OdesenvolvimentoeusodeAMDsãoreguladosporváriasconvençõese tratados internacionais, embora nem todos os países os tenham assinado eratificado(osparêntesesincluemoanoemqueotratadoentrouemvigor).

• TratadodeProibiçãoParcialdeTestes(1963).• TratadodoEspaçoExterior(1967).• TratadodeNão-ProliferaçãoNuclear(TNP–1970).• TratadodeControledeArmasdoFundodoMar(1972)• TratadodeProibiçãoCompletadeTestesNucleares(TAPTN–assinadoem

1996,aindanãoentrouemvigor).• ConvençãodeArmasBiológicaseTóxicas(CABT–1975).• ConvençãodeArmasQuímicas(CAQ–1997).• TratadodeProibiçãodeArmasNucleares(TPAN–assinadoem2017,ainda

nãoemvigor)

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

5.1 TRATADO DE PROIBIÇÃO PARCIAL DE TESTES (1963)

Emmeadosdadécadade1950,começaramasdiscussõesentreosEstadosUnidoseaUniãoSoviéticaarespeitodaproibiçãodetestesnucleares.

Autoridades de ambas as nações passaram a acreditar que a corridaarmamentistanuclearestavaatingindoumnívelperigoso.Alémdisso,oprotestopúblicocontraostestesatmosféricosdearmasnuclearesestavaganhandoforça.Todavia, as negociações entre asduasnações (mais tarde acompanhadaspelaGrã-Bretanha)searrastaramporanos,geralmenteentrandoemcolapsoquandoaquestãodaverificaçãoeralevantada.

Osnorte-americanosebritânicosqueriaminspeçõesnolocal,algoqueossoviéticosseopuseramveementemente.Em1960,ostrêsladospareciampróximosdeumacordo,masaquedadeumaviãoespiãoamericanonaUniãoSoviética,emmaiodaqueleano,encerrouasnegociações.Entretanto,aCrisedosMísseisemCuba,em1962,quandoomundoesteveàbeiradeumconflitonuclear,serviudeestímuloparaaretomadadenegociaçõesentreEstadosUnidoseUniãoSoviética.Emjunhode1963,asnegociaçõesdeproibiçãodetestesforamretomadas,comcompromissosdetodososlados.Em5deagostode1963,oTratadodeProibiçãodeTestesNuclearesLimitadosfoiassinadoemMoscoupeloSecretáriodeEstadodosEstadosUnidos,DeanRusk(1909-1994),oMinistrodasRelaçõesExterioresSoviético,AndreiGromyko(1909-1989),eoSecretáriodeRelaçõesExteriores,obritânicoAlecDouglas-Home (1903-1995).FrançaeChina foramconvidadasaaderiraoacordo,masrecusaram.

5.2 TRATADO DO ESPAÇO EXTERIOR (1967)

OTratadodoEspaçoExterior foi o tratado internacional que obrigavaossignatáriosausaremoespaçoexteriorapenasparafinspacíficos.Em1966,osEstadosUnidoseaUniãoSoviéticasubmeteramàsNaçõesUnidasprojetosdetratadossobreousodoespaço.

Osdoisprojetossefundiramemumduranteváriosmesesdenegociaçãono Subcomitê Legal doComitê dasNaçõesUnidas para osUsos Pacíficos doEspaçoExterioreodocumentoresultantefoiendossadopelaAssembleiaGeraldaONUem19dedezembrode1966eabertoparaassinaturaem27dejaneiro1967.Otratadoentrouemvigorem10deoutubrode1967,apósserratificadopelosEstadosUnidos,UniãoSoviética,ReinoUnidoeváriosoutrospaíses.

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5.3 TRATADO DE NÃO PROLIFERAÇÃO NUCLEAR(TNP – 1970)

OTratadodeNãoProliferaçãodeArmasNuclearesfoiassinado,em1968,peloReinoUnido,pelosEstadosUnidos,pelaUniãoSoviéticaepor59outrospaíses.Peloacordo,ostrêsprincipaissignatáriosquepossuíamarmasnuclearesconcordavamemnãoajudaroutrosEstadosaobtê-lasouproduzi-las.Em2016,191estadosaderiramaotratado,incluindooBrasil.

ACoreiadoNorte,inicialmente,tornou-sesignatária,em1985,masnuncaocumpriue,alémdisso,anunciou,em2003,asuaretiradadoTNP.QuatropaísesmembrosdaONUnuncaaceitaramoTNP,trêsdosquaispossuemouseacreditaquepossuamarmasnucleares:Índia,IsraelePaquistão.Alémdisso,oSudãodoSul,paísformadoem2011,tambémnãoaderiu.

5.4 TRATADO DE CONTROLE DE ARMAS DO FUNDODO MAR

O Tratado de Controle de Armas do Fundo do Mar é um acordomultilateral, assinadoem1971 (emvigordesde1972) entreEstadosUnidosEstados,UniãoSoviética(agoraRússia),ReinoUnidoe91outrospaíses,queproíbeainstalaçãodearmasnuclearesouADMsnofundodooceano,alémdeumazonacosteirade12milhas(22,2km).Permitequeossignatáriosobservemtodasasatividadesnofundodomardequalqueroutrosignatário,alémdazonade12milhas.

ComooTratadodaAntártica,oTratadodoEspaçoExterioreostratadosdaZonaLivredeArmasNucleares,oTratadodeControledeArmasdoFundoMarinho buscou prevenir a introdução de conflitos internacionais e armasnuclearesemumaáreaatéentãolivredetaisconflitos.

5.5 TRATADO DE PROIBIÇÃO COMPLETA DE TESTES NUCLEARES

OTratadodeProibiçãoCompletadeTestesNucleares (TPCTN)proíbequalquertestedearmanuclearouqualqueroutraexplosãonuclearemqualquerlugardomundo.Otratadofoidisponibilizadoem1996,assinadopor185naçõeseratificadopor170.Otratadonãopodeentraremvigoratéquesejaratificadopor44naçõesespecíficas,oitodasquaisaindanãoofizeram:China,Índia,Paquistão,CoreiadoNorte,Israel,Irã,EgitoeEstadosUnidos.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

5.6 CONVENÇÃO DE ARMAS BIOLÓGICAS E TÓXICAS

A Convenção de Armas Biológicas é um tratado de desarmamentoque proíbe o desenvolvimento, a produção, a aquisição, a transferência, oarmazenamentoeousodearmasbiológicasetóxicas.Emvigordesde1975,essetratadofoioprimeiroacordomultilateraldedesarmamentoaproibiraproduçãodeumacategoriainteiradearmasdedestruiçãoemmassa.Em2021,183paísessãosignatáriosdotratado.Quatropaísesadicionaisassinaram,masnãoratificaramotratado(Egito,Somália,SíriaeHaiti)eoutrosdeznãoassinaramnemaderiramao tratado (Chade, Comoros, Djibuti, Eritreia, Kiribati, Micronésia, Namíbia,SudãodoSul,TuvalueIsrael).

5.7 CONVENÇÃO DE ARMAS QUÍMICAS

AConvenção deArmasQuímicas é um tratado de controle de armasadministradopelaOrganizaçãoparaaProibiçãodeArmasQuímicas (OPAQ),com sede em Haia, Holanda. O tratado entrou em 1997 e proíbe o uso, odesenvolvimento, a produção, o armazenamento e a transferência em grandeescaladearmasquímicase seusprecursores, excetoparafinsmuito limitados(pesquisa,medicina,farmacêuticaouproteção).

Aprincipalobrigaçãodospaísessignatárioséaefetivaçãodaproibição,bemcomoadestruiçãodetodasasarmasquímicasexistentes.TodaadestruiçãodeveocorrersobinspeçãodaOPAQ.Emmarçode2021,193paísesassinaramoacordo,masIsraelassinou,masnãoratificouoacordo.Outrostrêspaíses(Egito,CoreiadoNorteeSudãodoSul)nãoassinaramnemaderiramaotratado.Em2013,aSíriaaderiuàconvençãocomopartedeumacordoparaadestruiçãodasarmasquímicasnaquelepaís.Em2021,98,39%dosestoquesdearmasquímicasdeclaradosnomundohaviamsidodestruídos.

A convenção contém disposições para a avaliação sistemática dasinstalaçõesdeproduçãodeprodutosquímicos,assimcomopara investigaçõesdealegaçõesdeusoeproduçãodearmasquímicascombaseeminteligênciadeoutrospaísessignatários.

5.8 TRATADO DE PROIBIÇÃO DE ARMAS NUCLEARES

OTratado sobre a Proibição deArmasNucleares é o primeiro acordointernacionalaproibir,deformaabrangente,asarmasnuclearescomoobjetivofinal de sua eliminação total. Em 2017, o tratado foi disponibilizado para aassinaturae,em2021,entrouemvigor.Paraasnaçõessignatárias,otratadoproíbeodesenvolvimento,oteste,aprodução,oarmazenamento,oestacionamento,atransferência,ousoeaameaçadeusodearmasnucleares,bemcomoaassistênciaeoincentivoàsatividadesproibidas.

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TÓPICO 3 — SEGURANÇA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA: CONFLITOS, PROLIFERAÇÃO DE ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA

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Paraospaísesportadoresdearmasnuclearesqueaderemaotratado,éfornecidaumaestrutura,comprazodeterminado,paranegociaçõesquelevemà eliminação verificada e irreversível de seu programade armas nucleares.Otratado foi aprovado com122votos a favor, 1 contra (Holanda) e 1 abstençãooficial(Cingapura).

A ADM representa um desafio para a comunidade internacional. AestratégiadenãoproliferaçãoprecisacombinaresforçosparaconvencerospaísesinteressadosemadquiriroudesenvolverADMdosperigosdetalestratégia.Écrucial identificar ameaças de proliferação em um estágio inicial, antes de seimplementar contramedidas dispendiosas emanter a política de redução nosprogramasdeADMecontroledeacessoàstecnologias-chave.

Umaestratégiaassertivaeabrangentedenãoproliferaçãoconstituiumapolíticavitalparaacomunidadeinternacional,quedeveseradministradapelasagências,organizaçõesenosforosinternacionaiscompetentesparaincrementarasegurançaglobalemnossoséculo.

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

LEITURA COMPLEMENTAR

O CERNE DA DISSUASÃO

AlexWellerstein

ATeoriadaDissuasão éumadaquelas ideiasqueparecemuito fácil àprimeiravista,masexaminandocomcuidadoémuitoconfusa.Eu tenhoumabomba,vocêtemumabomba,entãonãovamosatacarumaooutro,certo?Comosefossetãofácil.

TIRA DE QUADRINHOS, NO INÍCIO DA GUERRA FRIA: “COMO VIVER NA ERA ATÔMICA” WA-SHINGTON POST (1947) TENTANDO ILUSTRAR “O QUE OS CIENTISTAS NUCLEARES CONTAM

PARA GENTE”

EmseulivroO Medo Nuclear(doinglêsNuclear Fear),ohistoriadorSpencerWeartdescreveoqueelechamade“paradoxoinsolúveldaTeoriadaDissuasão.Emumdosmeustrechosfavoritos,eleafirma:“Apartirdadécadade1950,osanalistas mais competentes deixaram de ambiguidades, contradições internase saltos cegos de lógica”.No entanto, amaioria dos especialistasmudava deposiçãodeumanoparaooutroe,àsvezes,pareciammudardeopiniãodeumapáginaparaaoutra.

Umexemplodeconfusãofoiofracassodamaioriadelesdefinirclaramenteaté mesmo o termo. Para alguns, significava, como os franceses traduziramo termo, “dissuasão”, entendida como organizar as coisas de modo que osinimigosdeduzissem,comojogadoresdexadrez,quenãodeveriamlançarumataqueporqueestavaclaroquenãoganhariamojogo.Paraoutros,“dissuasão”significavaoqueatraduçãorussachamavade“aterrorizar”,quenãosereferia,deformaalguma,aointelecto.

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Éclaroquealógicamilitar,deumlado,ouoapeloaomedopuro,dooutro,podemexigirestratégiasdiferentes.DesdequeliolivrodeWeart,fiqueisurpresocomaideiadequefranceseserussostraduziramapalavra,supostamentesimples(eminglêsdeterrence),demaneirabemdiferente.Paraosfranceses,édissuasion nucléaire,umaexpressãodaracionalidademodernanobreedeestilofilosófico.Jáosrussoscostumavamusar“ustrasheniye”(устрашение),umapalavraqueinvocaterror,horrorepavor.

SpencerWeartvêumaconfusãonatraduçãodaexpressão,eu,porém,vejoumaambivalênciadeconceito.Noentanto,a“dissuasão”emsuacompreensãocompletarequerambosossignificados.Oconceitocompreendeatoresracionais,teoriadosjogosepersuasãológica,masométododepersuasãoameaçaqueimartodos vivos. É sobre nações estarem racionalmente aterrorizadas com ascapacidadesdedestruiçãoumasdasoutras.Essaambivalênciafundamentaldeconceitotambémpermeiatodasasnossasrepresentaçõesculturaisdedissuasão.

Nãoésurpresaqueamaioriaestrategistasretratadosemlivrosefilmessejamsimultaneamenteessasduascoisas.OfilmeDr. Strangelove(emportuguêsDoutor Fantástico)é,semdúvida,ocasomaisemblemáticoquedefineogênero:friamenteracional,mastambémcompletamentepsicótico.

DR. STRANGELOVE (“DR. FANTÁSTICO OU COMO APRENDI A PARAR DE ME PREOCUPAR E AMAR A BOMBA ATÔMICA”). FILME DE STANLEY KUBRICK SATIRIZANDO A GUERRA FRIA, PRO-

TAGONIZADO POR PETER SELLERS. STRANGELOVE É UM CIENTISTA ALEMÃO (EX-NAZISTA) PRESO A UMA CADEIRA DE RODAS, RECRUTADO PELO GOVERNO NORTE-AMERICANO PARA

PRODUZIR ARMAS ATÔMICAS

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

Asrepresentaçõesidealizadasdedissuasãogeralmentesãoretratadascomoum“impasse”entredoispistoleirosapontandoumaarmaumparaoutro.Essarepresentaçãofariasentidosenãoestivéssemosfalandodeduassuperpotências,ambas com capacidade de contra-atacar. Entretanto, quando transformamosametáforaemrealidade,ascoisassecomplicam.Nãose trataapenasdeduaspessoas com armas. Cada “pessoa” é uma nação inteira.As decisões não sãotomadasemumcérebroouemumconjuntodeórgãossensoriais,masdistribuídaspormilharesdequilômetrosemilharesdesereshumanos,cadaumolhandoparaasituaçãoatravésdelentesbemdiferentes(literalefigurativamente).

Asarmaspodemnãoseriguais–umladopodeterahabilidadedeatacarmaisrápidooudeformamaisletalqueooutro.Umladopodeestarconvencidodequepode“enfrentar”melhorumataquedoqueooutro.Umladopodetermaior oumenor confiança em suaspróprias capacidades, ounas capacidadesdoadversário.Eassimpordiante.Ointeresseprópriopodenãoserdistribuídodemaneirauniforme.OpresidentedosEstadosUnidos,ouoprimeiro-ministrosoviético,foram,pessoalmente,ameaçadosporumaguerranucleardurantetodaaGuerraFria?Aspessoascomosdedosnobotãotêmumaparticipaçãopessoal?Elestêmumabrigonuclearembaixodeumamontanhaparasuasfamílias?

GENTLY (“GENTILMENTE”), A CHAVE DE LANÇAMENTO DOS MÍSSEIS BALÍSTICOS INTERCON-TINENTAIS NO FILME THE DAY AFTER (O DIA SEGUINTE), DE 1983

O que realmente está sendo ameaçado em tal situação é uma naçãointeira,masnãonecessariamenteoindivíduoqueestácomodedono“botão”.Issopoderiaserconsideradoum“riscomoral”–ouoequivalenteajogarcomodinheirodeoutrapessoa.Éclaroqueessaspessoastambémtêmentesqueridosenemtodoscabememumabrigonuclear.

OfísicoevencedordoPrêmioNobel,OwenChamberlain,umavezpropôsumamelhorianaestratégiadedissuasãobaseada,emgrandeparte,nareduçãoda possibilidade de um riscomoral, embora ele não o tenha colocado nessestermos.EleescreveuaopresidentedaFederaçãodeCientistasAmericanos,em

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TÓPICO 3 — SEGURANÇA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA: CONFLITOS, PROLIFERAÇÃO DE ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA

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meadosdadécadade1980,comaseguintesugestão:os200políticosemilitaresmais importantes,emcadasuperpotência,devemserobrigadosa fornecerummembrodafamília,quepoderiaservircomorefém,paravivernasuperpotênciaadversária.Afirmoqueissopoderiaserorganizadofacilmenteeteriapotencialdecolocaromundoemumestadodeespíritodiferenteoumesmotornaraguerranuclearforadequestão.Euadmitoqueestaéumahipóteseimprovável.

Noentanto,emessência,oriscomoralseriaevitadosetodostiveremalgodeimportanteaperderno“jogo”,especialmenteosquetêmseusdedosnosbotõesmetafóricos.Éumtruque,comoadmitiuChamberlain,masébastanteprofundo:aideiade“reféns”soaabominável(atéelenãogostavadapalavra)atéquevocêperceba quena situaçãodedissuasão “normal”, nós,membrosdas classesde“não apertadores” de botão, já somos reféns.A verdadeira engenhosidadedaideiadeChamberlainéqueeleestálidandocomumasituaçãojáexistente,poistodososfilhos,netos, sobrinhase sobrinhosestãoameaçadosporumaguerranuclear,esuaideiapropõetornaraalternativanuclear,explícitaeindigna,paraaquelesquedetêmpoderdedecisão.

De forma análoga, Stephen Schwartz transmitiu essa incrível sugestãoao falecidoRogerFishernaediçãodemarçode1981,doBulletin of the Atomic Scientists,maisumaveztentandotrazeropessoaldevoltaàlógica,muitasvezes,friamente“racional”daguerranuclear:

Háum jovem,provavelmenteoficialdaMarinha,queacompanhaopresidente.Estejovemtemumamaletapretaquecontémoscódigosnecessáriosparadisparararmasnucleares.Pudeveropresidenteemuma reunião de equipe considerando a guerra nuclear como umaquestãoabstrata.Elepodeconcluir:“NoPlanoSIOPUm,adecisãoéafirmativa,comunicaralinhaAlphaXYZ”.Esteéojargãoqueordenaodisparodearmasnucleares.

Minhasugestãoébemsimples:coloqueonúmerodocódigonecessárioemumapequenacápsulaeoimplantebemaoladodocoraçãodeumvoluntário.O voluntário, acompanhando o presidente, carregaria consigo uma faca deaçougueiro. Se algum dia o presidente quisesse disparar armas nucleares, aúnicamaneiradefazê-loseriacomasprópriasmãos,matandofriamenteumserhumano.

Opresidentediria:“George,sintomuito,masdezenasdemilhõesdevemmorrer”. Ele teria que olhar para alguém e perceber o que é amorte de uminocente.SanguenotapetedaCasaBranca.Éarealidadetrazidaparacasa.

Quandosugeri issoaamigosnoPentágono,elesdisseram:“MeuDeus,issoéterrível.TerquemataralguémconfundiriaojulgamentodoPresidente.Elepoderiadesistirdeapertarobotão”.Noentanto,esseéocernedadissuasão,nãoé?Amisturadofriamentelógicoedoprofundamenteemocional–ofatodeque,

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UNIDADE 2 — ESTUDOS ESTRATÉGICOS

dealgumaforma,asduasvalênciassãoessenciaisparaoconceitofuncionare,aindaassim,ambassãoprofundamenteincompatíveis.Afinal,quantaspessoaspoderiampermanecerfriamentelógicassetivessemqueenfrentaroqueépessoal,comosereshumanos?

Uma anedota de despedida: J. Robert Oppenheimer (“pai” da bombaatômicanorte-americana), em1953, comparouoquadroda rivalidadenucleara“doisescorpiõesemumagarrafa,cadaumcapazdematarooutro,mascomriscodeperder suaprópria vida”.Algum tempodepois, um jornalista tentoureproduzirametáforavisualnatelevisãoefoipicadoporumdosescorpiões.OfísicoerecipientedoPrêmioNobel,IsidorIsaacRabi,escreveuaOppenheimer,afirmando que os seus muitos inimigos, pela sua atuação decisiva nodesenvolvimentodebombasatômicas,provavelmente,tambémoculpariamporesteacidentedojornalistacomosescorpiões.

FONTE: Adaptada de <https://tinyurl.com/o5ecqve>. Acesso em: 10 dez. 2020.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Ousoeosignificadoatualdotermo“segurançainternacional”érelativamentenovo,masotermocobreassuntosqueforamimportantesnoquedizrespeitoàscondiçõesdevidadaspessoasaolongodahistória.

• ASegurançaInternacionalassumiunovasformasnoséculoXXI.Entretanto,oconceitodesegurançainternacional,comosegurançaentreosEstados,pertenceaoséculoXX.

• Globalização, internacionalização, transnacionalismo, interdependência eintegraçãoimplicamqueummundodominadoporfragmentação,separatismo,desintegração,hipernacionalismo,fanatismoreligiosoouétnico,isolacionismoeautossuficiênciasãoameaçadoresemsi.

• ASegurançaInternacional,comoconceitoecomofenômeno,nofinaldaGuerraFria,assumiunovasformas.

• Umamudança significativa nousopolíticodo termo “segurança” foi a suaadoção,nosEstadosUnidos,em1947,comacriaçãodoConselhodeSegurançaNacional,quesetornoumodeloparaváriospaísesaoredordomundo.

• Com o fim da Guerra Fria, entre 1989 e 1991, o confronto desaparece e abipolaridade é substituída pela unipolaridade, o que implicava uma novaagenda de segurança, mas, em escala global, permanecendo a ideia desegurança.

• Deacordocomasestatísticasdeatoscriminosos,asameaçasàvidaocorrem,commaisfrequência,dentrodefamíliasougrupospróximos.

• Asameaçasmaisgraves,emtaissituações,viriamdosaparatosdesegurançadoEstadoemaçõesdirecionadasesistemáticascontraapopulaçãocivil.

• Umasociedadenãoserávítimadeameaçasvindasdeumindivíduo.Mesmoemcasosextremos,dificilmenteseconcebeumterroristarepresentandoouumgrupopequenoviolentoameaçandoaexistênciaouaidentidadedetodaumasociedade.

• Uma sociedade pode representar uma ameaça, especialmente quando alegitimidadedoEstadoéfrágileasidentidadesnacionais/sociaissãomuitofortes.

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CHAMADA

• Para o pensamento neorrealista na teoria das Relações Internacionais, asameaçasentreEstadosépartevitaldaestruturaanárquicainternacional.

• Armas de destruição em massa (ADM) podem ser definidas como armasnucleares,radiológicas,químicas,biológicasouqualqueroutraarmaquepossamatar,causardanossignificativosemsereshumanosecausargrandesdanosaestruturasconstruídaspelohomem,aomeioambienteeàbiosfera.

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1 Com origem no século XIX, a Segurança Internacional assumiu novasformasmoldadas nas novas realidades do século XX, que, no seu bojo,trouxe novas ameaças para a segurança dos Estado e dos indivíduos.Considerandoalgumasdessasameaças,assinaleaalternativaCORRETA:

a)() Comunismo,pobrezaeanarco-sindicalismo.b)() Etno-nacionalismo,terrorismoeestadosfalidos.c)() Terrorismo,globalismoesuperpopulação.d)() Doenças,refugiadosemovimentosambientalistas.

2 Em1947,comacriaçãodoConselhodeSegurançaNacional,naOrganizaçãodasNaçõesUnidas,surgiuumnovoconceitode“segurançapolítica”,queserviriademodeloparaospaísesnomundo.Segundoessanovadefiniçãode“segurançapolítica”,assinaleaalternativaCORRETA:

a)() Eraumapolíticade“segurançapolítica”quevisavaalidarcomguerracomofatoconsumado.

b)() Eraumapolíticade“segurançapolítica”depreparaçãoparaaguerra.c)() Eraumapolíticade“segurançapolítica”dedefesa.d)() Eraumapolíticade“segurançapolítica”quevisavaaevitaraguerra.

3 Entre as ameaçasà identidadeétnica,destaca-seadoEstado, sendoumexemplo o conflito na Itália, no século XIX, quando as várias “nações”italianas disputaram o papel hegemônico em uma Itália unificada.ClassifiqueVparaassentençasverdadeiraseFparaasfalsas:

()Oestadorussoéumaameaçaaumaidentidadechechenapoliticamenteautônoma.

()Oestadoturcoéumaameaçaaumaidentidadealbanesapoliticamenteautônoma.

()Oestadoisraelenseéumaameaçaaumaidentidadepalestinapoliticamenteautônoma.

()Nopassado,oestadoinglêseraumaameaçaaumaidentidadeescocesapoliticamenteautônoma.

AssinaleaalternativaqueapresentaasequênciaCORRETA:

a)() V–F–V–V.b)() V–V–V–V.d)() F–F–F–V.e)() V–F–F–F.

AUTOATIVIDADE

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4 Leiaotextoaseguir:

“Quando falamos emSegurança Internacional, qual é aprimeira imagemhistóricaque lhevemà cabeça?A rivalidadebélica entreEstadosUnidoseUniãoSoviéticaduranteaGuerraFria?Ouatensãoatualentreopodernuclear da Coreia doNorte frente aos EUA?Não há uma resposta certapara a questão, já que todas essas situações são matéria de SegurançaInternacional.Ocampovaimaisalém,abrangendotemáticasqueultrapassamapreocupaçãonacionaldospaísesparacomopoderbélico-militardeoutrosEstadoseentrandonaesferacibernética,porexemplo”.

FONTE: <https://tinyurl.com/3tbuxyn3>. Acesso em: 16 jul. 2021.

Sobre a Segurança Internacional, disserte a respeito do tópico “passado ×presente”.

5 Leiaotextoaseguir:

“O fimda disputa bipolar com aUnião Soviética e o posicionamento dosEstadosUnidoscomoúnica ‘potênciaglobal’nopós-GuerraFriapassaramaexigirumanovadefiniçãodos interessesedas linhasdeaçãodapolíticaexternanorte-americananasuaconcepçãodesegurança,nãomaisdominadapela competição nuclear, nem definida exclusivamente por conflitosconvencionais”.

FONTE: <https://tinyurl.com/f4caw4t9>. Acesso em: 16 jul. 2021.

Sobre as mudanças ocorridas com o fim da Guerra Fria, disserte sobre oimpactodessastransformaçõesnaSegurançaInternacional.

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173

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• entender alguns dos principais conflitos pós-coloniais;

• conhecer as dinâmicas dos conflitos e as relações entre as principais hegemônicas;

• compreender os aspectos históricos e geopolíticos de conflitos e rivalidades;

• contribuir para o aprendizado e debate no âmbito da disciplina Introdução aos Estudos Estratégicos.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – OS CONFLITOS PÓS-COLONIAIS (PALESTINA E CAXEMIRA) NA PÓS-GUERRA FRIA (COREIA E BALCÃS)

TÓPICO 2 – RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA

TÓPICO 3 – TERRORISMO CIBERNÉTICO: O QUADRO JURÍDICO BRASILEIRO SOBRE O TERRORISMO E O BRASIL NO CONTEXTO DA SEGURANÇA INTERNACIONAL

UNIDADE 3 —

CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA

INTERNACIONAL

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Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Neste tópico, os conflitos abordados, apesar de ocorrem no período pós-Segunda Guerra Mundial, têm, em alguns casos, suas origens em quadros geopolíticos anteriores. Notadamente, no desmonte de impérios, como o Otomano e o Britânico nos conflitos na Palestina e na Caxemira (Índia × Paquistão). Todavia, a guerra da Coreia, na década de 1950, e o conflito dos Balcãs, na década de 1990, ocorrem como consequência direta da Guerra Fria seus desdobramentos, após o colapso da União Soviética (URSS).

Curiosamente, os dois conflitos originários no quadro de Guerra Fria foram contidos por meio de intervenções sangrentas, que resultaram no surgimento de um status quo duradouro: na Coreia, após a intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU) pós-Segunda Guerra Mundial, e na Bósnia, na década de 1990, após a intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Em contraste, os conflitos com origem no desmantelamento dos impérios otomano e britânico permanecem ativos, por décadas, e sem solução a curto e médio prazos.

TÓPICO 1 —

OS CONFLITOS PÓS-COLONIAIS (PALESTINA E CAXEMIRA) E NA GUERRA FRIA E NA PÓS-

GUERRA FRIA (COREIA E BALCÃS)

2 OS CONFLITOS ENTRE ÍNDIA E PAQUISTÃO

A rivalidade Índia-Paquistão é um dos conflitos mais longos e de difícil solução de nosso tempo. A disputa começou em 1947, logo após o domínio colonial britânico e continuou por mais de meio século, com guerras e crises periódicas entre os dois rivais. O conflito afeta todas as esferas das relações entre os dois países e, apesar das iniciativas de paz e períodos de distensão, a rivalidade permanece não dar sinais de uma resolução definitiva no futuro.

O conflito no sul da Ásia entre Índia e Paquistão, a partir da década 1980, ganhou contornos dramáticos, de consequências inimagináveis, com o surgimento de uma corrida armamentista, inclusive, com armas nucleares. O número crescente de crises e a introdução de estratégias e táticas assimétricas fizeram parte desse período histórico. No entanto, o que explicaria a persistência dessa rivalidade mesmo após a solução de outros conflitos de longa duração em outras partes do mundo? A resposta estaria na teoria das rivalidades duradouras sobre conflitos assimétricos?

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

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2.1 TEORIAS DE RIVALIDADES DURADOURAS E CONFLITOS ASSIMÉTRICOS

As rivalidades duradouras são definidas como conflitos entre dois ou mais Estados que duram mais de duas décadas com choques militares de forma intermitente. Uma rivalidade duradoura é caracterizada por uma incompatibilidade “persistente, fundamental e de longo prazo, “que se manifesta nas atitudes das partes, bem como em recorrência violenta ou potencialmente confrontos violentos durante um longo período” (MAOZ; MOR, 2002, p. 5).

Os especialistas divergem sobre o número de disputas e crises necessárias para chamar uma rivalidade de “duradoura”, mas podemos trabalhar com o conceito dos analistas Paul Diehl e Gary Goertz (2001), que tratam uma rivalidade duradoura como aquela que envolve pelo menos seis disputas militarizadas durante um período de 20 anos.

Esse viés permite definir o conceito ao longo de “consistência espacial, duração e competição militarizada” (DIEHL; GOERTZ, 2001, p. 55). Em outras palavras, uma rivalidade duradoura não pode ser episódica ou de curta duração, mas ocorrer por um período razoavelmente longo em uma base contínua antes que possa ser denominado “duradouro”. Rivalidades duradouras também são chamadas de “conflitos prolongados”, mas a principal diferença entre os dois conceitos se remete à dimensão interestatal do primeiro, considerando que um “conflito prolongado” pode ser interno ou entre Estados envolvendo ou não atores estatais e a “rivalidade duradoura” se refere especificamente a “conflitos interestatais”.

Em uma rivalidade duradoura, o conflito, geralmente, toma forma de um confronto em todas as esferas nas quais as partes envolvidas percebem ameaças existenciais mútuas, como na Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética. No entanto, nas rivalidades duradouras, em alguns casos, a guerra não é uma condição necessária. Outra característica relevante no conceito é a necessidade de equilíbrio de poder entre as partes para uma rivalidade permanecer duradoura. Portanto, em uma rivalidade desigual, o lado mais forte, em geral, seria, em teoria, capaz de impor sua vontade ao lado mais fraco e encerrar o conflito (SENESE; VAZQUEZ, 2003).

Por outro lado, os conflitos assimétricos envolvem Estados de capacidade e poder desiguais, em termos de recursos materiais, tamanho, demografia, capacidade militar e econômica. Fatores intangíveis, como vontade e moral, não estão incluídos na avaliação das capacidades de poder nacional, pois são difíceis de medir. Além disso, esses fatores tendem a mudar, ao longo do tempo, e são difíceis de avaliar até a ocorrência de um conflito militar real (PAUL, 1994).

Nos conflitos assimétricos, o lado mais fraco costumar usar elementos intangíveis (por exemplo, moral, vontade e psicologia) para complementar suas posições militares e políticas, na paz e na guerra. Em conflitos assimétricos, as

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TÓPICO 1 — OS CONFLITOS PÓS-COLONIAIS (PALESTINA E CAXEMIRA) E NA GUERRA FRIA E NA PÓS-GUERRA FRIA (COREIA E BALCÃS)

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disparidades podem ser amplas, como nos casos de Estados Unidos e Cuba ou de China e Taiwan. As disparidades também podem ser limitadas, como no caso da Coreia do Norte e Coreia do Sul, como resultado de um equilíbrio de forças entre os antagonistas.

O conflito entre a Índia e o Paquistão é persistente e assimétrico, mas a assimetria de poder é truncada e mitigada por muitos fatores. Em particular, o lado teoricamente fraco, o Paquistão, teve sucesso desde o final da década de 1980, ao reduzir sua desvantagem por meio de uma assimetria que envolveu estratégia, tática, alianças com poderes externos, aquisição de armas qualitativamente superiores e armas nucleares. Após uma década de guerras de baixa intensidade, o lado teoricamente mais forte, a Índia, não logrou se impor na Caxemira, o principal teatro de conflito (PAUL, 2005).

FIGURA 1 – REGIÃO EM DISPUTA NA CACHEMIRA: NORTE CONTROLADO PELO PAQUISTÃO; SUL CONTROLADO PELA ÍNDIA; E PORÇÃO ORIENTAL RECLAMADA PELA CHINA

FONTE: <https://tinyurl.com/4ksckuv7>. Acesso em: 5 ago. 2021.

O conflito da Caxemira faz referência a uma disputa territorial na região da Caxemira entre a Índia e o Paquistão, com a participação da China em menor escala. O conflito começou em 1947, após a partilha da Índia, quando esta e o Paquistão independentes reivindicaram a totalidade do antigo Estado principesco de Jammu e Caxemira.

UNI

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

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FIGURA 2 – SUL DA ÁSIA

FONTE: <https://bit.ly/3lv2tDE>. Acesso em: 6 abr. 2021.

2.1.1 Origens da rivalidade: o legado histórico

A origem da rivalidade Índia-Paquistão reside em duas visões divergentes de Estado, que surgiram no contexto do movimento nacionalista no subcontinente indiano. O Congresso Nacional Indiano, liderado por Mohandas Gandhi e Jawaharlal Nehru, projetava um país unificado, construído em torno dos princípios do secularismo e da democracia liberal. Apesar da maioria dos membros do Partido do Congresso ser de origem religiosa hindu, o partido incorporou todos os principais grupos étnicos e religiosos da Índia e buscava, em tese, construir um Estado laico.

Entretanto, os líderes muçulmanos desconfiavam que em um governo de maioria hindu, as minorias, incluindo os muçulmanos, seriam inevitavelmente prejudicadas em seus direitos. Assim, com intuito de pressionar por salvaguardas, os muçulmanos formaram, em dezembro de 1906, o Partido da Liga Muçulmana. Suas reivindicações foram aceitas pelos britânicos, em 1909, que concederam direitos políticos limitados aos muçulmanos nos assuntos indianos. Os governantes britânicos simpatizaram com a separação de constituintes, porque esperavam enfraquecer o então insipiente movimento nacionalista, liderado pelo Partido do Congresso. No entanto, com o tempo, essa política ajudou a unificar a comunidade muçulmana sob um ideal político e semeou a ideia do futuro Paquistão.

O Partido do Congresso, inicialmente, aceitou eleitorados muçulmanos separados, mas, posteriormente, em 1928, rejeitou a ideia nas propostas constitucionais. A alienação dos britânicos e do Partido do Congresso deram forma a proposta de uma “pátria muçulmana” apresentada no subcontinente indiano em 1930 pelo poeta indiano Muhammad Iqbal (WOLPERT, 2000).

A Lei do Governo da Índia, em 1935, foi fundamental para a ascensão do nacionalismo separatista muçulmano, sob a liderança de Muhammad Ali Jinnah. Em março de 1940, em Lahore, a Liga Muçulmana lançou a ideia da criação do

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Paquistão como uma pátria separada para os muçulmanos indianos. Em 1944, no encontro entre Gandhi e Jinnah e na conferência de Simla, em 1945, os líderes hindus e muçulmanos não conseguiram quebrar o impasse sobre a partilha da Índia ou a manutenção da unidade indiana.

Mohandas Gandhi (1869-1948) e Muhammad Ali Jinnah (1876-1948) foram duas das principais figuras, juntamente com Jawaharlal Nehru, no processo de independência e a subsequente partilha da Índia. No entanto, Gandhi e Jinnah eram personalidades bem diferentes. Ambos eram advogados de formação, mas as semelhanças paravam aí. Gandhi se tornou um militante da não violência e asceta defensor da unidade indiana. Jinnah, em contraste, era um muçulmano secular, sofisticado, que advogava a criação de uma nação para os muçulmanos indianos separada do resto da Índia. Apesar das diferenças, ambos mantinham uma amizade e, na impossibilidade de manter a unidade da Índia, Ghandi passou a apoiar o projeto de Jinnah de uma Paquistão para os muçulmanos indianos. Essa decisão custou a Gandhi sua vida nas mãos de um extremista hindu, em janeiro de 1948, sem testemunhar a independência indiana em agosto do mesmo ano. Jinnah, poucos meses depois, assiste a independência do Paquistão, mas faleceu menos de um mês depois após uma longa batalha contra a tuberculose.

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A Liga Muçulmana também se beneficiou do seu apoio ao esforço de guerra da Grã-Bretanha na Segunda Guerra Mundial. Além disso, a vitória do Partido Trabalhista na Grã-Bretanha, em 1945, acelerou o processo de independência indiana. Nessa altura, os confrontos entre hindus e muçulmanos haviam se intensificado por toda a Índia, e o vice-rei britânico, Lorde Louis Mountbatten, concluiu que a criação do Paquistão era inevitável.

Assim, os dois Estados independentes, Índia e Paquistão, nasceram em 15 de agosto de 1947, com o Paquistão ganhando as áreas de maioria muçulmana, administradas pelos britânicos no Noroeste, e Bengala, e a Índia o restante da Índia britânica. Entretanto, o destino de 500 estados principescos permaneceu indefinido. A partilha foi seguida por uma das maiores migrações em massa da História: mais de 10 milhões pessoas, de ambos os lados, marcada por uma violência brutal.

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Na época da independência da Índia e do Paquistão, havia 565 Estados principescos no subcontinente indiano, que variavam muito em status, tamanho e riqueza, cobriam 40% da área da Índia pré-independência e constituíam 23% de sua população. O principado de Hyderabad tinha uma população de mais de 16 milhões pessoas, enquanto Jammu e Caxemira tinham pouco mais de 4 milhões. Os menores, como o principado de Lawa, cobriam uma área de apenas 49 km2, com pouco menos de 3.000 habitantes. A era dos Estados principescos terminou, em 1947, com a independência da Índia e do Paquistão. Em 1950, quase todos os principados haviam aderido à Índia ou ao Paquistão. O processo de adesão foi, em geral, pacífico, exceto nos casos de Jammu e Caxemira, no principado de Hyderabad, em Junagarh e em Kalat.

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ÍNDIA E OS ESTADOS PRINCIPESCOS

FONTE: <https://tinyurl.com/ppetn45r>. Acesso em: 5 ago. 2021.

O Ato de Independência da Índia, em 1947, continha uma disposição na qual os 562 Estados principescos – espalhados por todo o subcontinente e parcialmente autônomos sob o domínio britânico – tinham a opção de se unirem à Índia ou ao Paquistão. A maioria aderiu à Índia, enquanto Jinnah incorporou os principados dentro do território do Paquistão.

No entanto, três estados principescos decidiram permanecer indepen-dentes, sem se unirem à Índia ou ao Paquistão: Jammu-Caxemira, no Norte, Hy-derabad, no Sul, e Junagadh, no Oeste. Os governantes dos dois últimos eram

Índia Britânica

Estados Principescos

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muçulmanos, mas a maioria de suas respectivas populações era hindu e, assim, a adesão à Índia ocorreu em consequência de revoltas internas e ações militares indianas. Posteriormente, o governo indiano legitimou as adesões como resul-tado de referendos populares.

Dessa maneira, apenas os principados contíguos de Jammu e Caxemira permaneceram sem aderir à Índia ou ao Paquistão. Os principados se localizavam próximos ao Paquistão e sua população era de maioria muçulmana. No entanto, seu governante era o hindu Maharaja Hari Singh, que, incialmente, optou por permanecer independente. Contudo, alegando reagir a uma invasão, em 1947, de forças tribais da Província da Fronteira Noroeste do Paquistão (que era auxiliada por tropas regulares do Paquistão), Maharaja Hari Singh pediu ajuda e assinou um acordo de adesão à Índia. A decisão de governo paquistanês de enviar tropas para apoiar as forças tribais transformou o conflito na primeira guerra entre Índia e Paquistão, que durou até o final de 1948.

Em 1949, um acordo de cessar-fogo foi alcançado entre os dois países sob os auspícios das Nações Unidas. Uma linha de cessar-fogo foi estabelecida dividindo a Caxemira, com quase dois terços do território sob controle indiano e o restante sob o controle do Paquistão, criada e monitorada por uma missão de observadores da ONU até 1972, quando foi rebatizada como Linha de Controle (LoC). Ao longo de décadas, o cessar-fogo tem sido violado pelas ações de forças regulares dos dois países, por bombardeios esporádicos, por escaramuças ocasionais e por incursões. Três grandes guerras (1947-1948, 1965 e 1971) e uma menor, Kargil (1999), foram travadas pelo controle do território, mas nenhum dos países conseguiu mudar a linha a seu favor. Esse impasse militar é apenas parte da história da rivalidade entre os dois estados. Compreender a estrutura do conflito é fundamental para explicar por que o conflito Índia-Paquistão persiste como uma rivalidade duradoura (SPEAR, 2015).

FIGURA 3 – OS FUNDADORES DA ÍNDIA E DO PAQUISTÃO: JAWAHARLAL NEHRU, MUHAMMAD ALI JINNAH (QUAID-I-AZAM – “O GRANDE LÍDER”) E MOHANDAS GANDHI (O

MAHATMA – “A GRANDE ALMA")

FONTE: <https://tinyurl.com/ygutg8re>. Acesso em: 6 abr. 2021.

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2.1.2 A estrutura do conflito: assimetria de objetivos

O conflito Índia-Paquistão é simultaneamente sobre território, identidade nacional e hegemonia geopolítica na região. O status político da Caxemira, na perspectiva do Paquistão, se tornou algo inacabado, em 1947, na partilha do subcontinente. Os líderes paquistaneses, desde então, transformaram a união com Jammu e Caxemira, e, consequentemente, tentam liberá-lo do domínio indiano – a principal missão por razões nacionalistas, identitárias e estratégicas. Portanto, para os paquistaneses, a região da Caxemira, de maioria muçulmana e controlada pela Índia, se tivesse liberdade de escolha, se uniria ao Paquistão. Assim, apesar da preferência da maioria dos nacionalistas da Caxemira, formada por grupos que pleiteiam sua independência ou uma maior autonomia de ambos os países, o Paquistão defende a visão de que a identidade islâmica do país não será total até aquele território, ocupado pela Índia, ser unificado.

Do ponto de vista indiano, a adesão assinada pelo Maharaja Hari Singh seria o instrumento que, legalmente, teria dado à Índia a posse da Caxemira, além daquele território fazer parte da identidade hindu. Para Nova Delhi, a partilha foi concluída em 1947 e não há outra concessão territorial a ser feita para o Paquistão. Por outro lado, os indianos temem que ceder a independência ou a adesão da Caxemira ao Paquistão abriria um precedente que poderia levar outras partes da Índia ao separatismo. Portanto, tanto na Índia como no Paquistão, a questão de Caxemira-Jammu está acima de posicionamentos ideológicos e partidários, ou seja, com algumas variações em ambos os países, os paquistaneses querem mudar o status quo, estabelecido em 1947, enquanto os indianos querem mantê-lo.

FIGURA 4 – MAPAS DO SUBCONTINENTE INDIANO ANTES E DEPOIS DA PARTILHA: À ESQUERDA, A ÍNDIA SOB DOMÍNIO BRITÂNICO E, À DIREITA, DIVIDIDA EM TRÊS ESTADOS INDEPENDENTES

(ÍNDIA, PAQUISTÃO OCIDENTAL E PAQUISTÃO ORIENTAL, DEPOIS DE 1971 – BANGLADESH)

FONTE: <https://tinyurl.com/3vsjawt5>. Acesso em: 7 abr. 2021.

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2.1.3 A Guerra Indo-Paquistanesa de 1965

O conflito entre Índia e Paquistão (abril a setembro de 1965) foi o ponto culminante de uma série de escaramuças. A guerra começou com a chamada Operação Gibraltar, planejada pelos paquistaneses para infiltrar forças em Jammu e Caxemira, com o intuito de deflagrar a insurgência local contra o domínio indiano. A Índia retaliou lançando um ataque militar em grande escala ao Paquistão Ocidental.

A guerra de 16 dias causou milhares de baixas em ambos os lados e foi palco do maior combate entre as batalhas de blindados desde a Segunda Guerra Mundial. As hostilidades entre os dois países terminaram depois que um cessar-fogo foi declarado através da Resolução nº 211, de 13 de novembro de 2006, do Conselho de Segurança da ONU, após a intervenção diplomática da União Soviética e dos Estados Unidos, e a subsequente emissão da Declaração de Tashkent.

A Declaração de Tashkent selou o acordo de paz entre a Índia e o Paquistão, assinada em 10 de janeiro de 1966, colocando um fim na Guerra Indo-paquistanesa de 1965. A paz foi alcançada em 23 de setembro com a mediação da então União Soviética.

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A guerra, em grande parte, foi travada por forças terrestres na Caxemira e ao longo da fronteira entre a Índia e o Paquistão Ocidental. Nessa guerra, ambos os países empregaram o maior número de tropas na Caxemira, desde a partilha em 1947, ocorrendo também renhidas batalhas aéreas e operações navais. O conflito no aspecto militar terminou em um impasse e sem alterar o status quo em Caxemira-Jammu (MCGARR, 2013).

2.1.4 A Guerra Indo-Paquistanesa de 1971 e a independência de Bangladesh

O terceiro confronto, em 1971, entre a Índia e o Paquistão ocorreu durante a guerra de independência do Paquistão Oriental e terminou com a queda de Dacca (capital do Paquistão Oriental). Os paquistaneses realizaram ataques aéreos a 11 estações aéreas indianas, na chamada operação Genghis Khan, que deu início às hostilidades, com a entrada da Índia na guerra pela independência no Paquistão Oriental, ao lado das forças nacionalistas bengalis.

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O confronto militar ocorreu simultaneamente em duas frentes: oriental e ocidental. A guerra terminou após o Paquistão assinar a rendição em 16 de dezembro de 1971, em Dacca. O fim do conflito também marcou o surgimento da nova nação, independente do Paquistão Ocidental, que passou a se chamar Bangladesh.

A Índia estava em vantagem sobre o Paquistão quando o cessar-fogo foi declarado. Embora os dois países tenham lutado até um impasse, o conflito é visto como uma derrota estratégica e política para o Paquistão, em virtude da perda do Paquistão Oriental, que se tornou independente e adotou o nome de Bangladesh. No final, nenhum dos lados conseguiu alterar o status da Caxemira nem foi capaz de obter apoio internacional significativo (BURKE, 1974).

Internacionalmente, a guerra foi vista no contexto da Grande Guerra Fria e resultou em uma mudança geopolítica significativa no subcontinente. Antes da guerra, os Estados Unidos e o Reino Unido foram importantes aliados, tanto da Índia quanto do Paquistão, também sendo seus principais fornecedores de equipamento militar e ajuda externa ao desenvolvimento. Durante e após o conflito, Índia e Paquistão se sentiram traídos pela percepção de falta de apoio das potências ocidentais para suas respectivas posições; esses sentimentos de traição aumentaram com a imposição de um embargo americano e britânico à ajuda militar aos lados opostos. Como consequência, a Índia e o Paquistão desenvolveram relações mais estreitas com a União Soviética e a China, respectivamente. A percepção da posição negativa das potências ocidentais durante o conflito e durante a guerra de 1971 continuou a afetar as relações entre o Ocidente e o subcontinente. Apesar da melhoria das relações com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha desde o fim da Guerra Fria, o conflito gerou uma profunda desconfiança de ambos os países dentro do subcontinente que, até certo ponto, perdura até hoje.

A guerra de 1971 resultou em um desastre militar para o Paquistão e na perda da porção oriental do seu território, mas a secessão de Bangladesh aumentou os ativos militares do Paquistão na frente ocidental. A Índia não foi capaz de traduzir a vitória em um acordo político duradouro. A guerra também reforçou a percepção da elite paquistanesa de que a Índia visava a destruir o Paquistão e a ideia de revanchismo pela derrota de 1971 é ainda alimentada em certos círculos.

Um acordo também se tornou difícil, dado que o domínio social do exército paquistanês foi construído em torno da Caxemira e no equilíbrio de poder com seu vizinho poderoso. Embora o exército paquistanês ainda detenha poder internamente, o fracasso em resolver a questão da Caxemira afeta o capital social e político dos militares na sociedade paquistanesa. Assim, a assimetria é sobre identidades nacionais e o papel que o território, em disputa, desempenha nas concepções de cada Estado sobre um território físico idealizado.

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Se o território em disputa está vinculado por causa de uma identidade religiosa e cultural, o desafiante, no caso o Paquistão, joga o xadrez geopolítico de forma contínua em regiões como Jammu e Caxemira, habitadas por uma maioria muçulmana. Esse é um terreno que permite aos paquistaneses suportar baixas militares, em conflitos de baixa intensidade e operações de guerrilha, porque conta com o apoio da população local – por sua vez, isso incentiva o defensor, a Índia, a permanecer inflexível, porque veria um possível acordo sobre a Caxemira como uma contradição com seu caráter, na origem, de Estado secular e, portanto, não poderia, em tese, reclamar a Caxemira pela sua importância histórica para o hinduísmo antes daquelas regiões se tornarem islamizadas.

A incapacidade de um dos Estados de impor um acordo ou convencer o outro a fazer concessões significativas ocorre por causa da assimetria de poder que sempre existiu entre os dois lados. Apesar de sua posição de não admitir concessões sobre o status quo territorial, a Índia não teve sucesso na integração da população da Caxemira, o que seria a única alternativa para legitimar seu controle. Esse insucesso se deve, em parte, às táticas arrogantes das forças de segurança indianas e às práticas eleitorais questionáveis, feitas no passado por partidos políticos aliados do Estado indiano.

Embora o lado indiano da Caxemira seja economicamente mais próspero, a Índia não foi capaz de atrair a maioria dos caxemires a sua identidade secular. Portanto, a estratégia indiana tem sido tentar exaurir, por vários meios, e implementar ações coercitivas, para que a população e os grupos de resistência concordem com a integração à Índia. Essa estratégia funcionou no Punjab, na década de 1908, para conter o separatismo, mas a grande diferença é a dimensão irredentista e o envolvimento de atores externos no conflito da Caxemira. Além disso, a Índia manteve a identidade separada e a autonomia de Caxemira, por meio de uma disposição constitucional que, aliás, foi recentemente revogada pelo atual regime nacionalista hindu.

A Figura 5 apresenta um cartoon, de autoria do brasileiro Carlos Latuff, que critica a ocupação da Cachemira, de maioria muçulmana, pela índia, país de maioria hindu. A crítica se remete ao estado de guerra permanente naquelas regiões, cuja população resiste à ocupação indiana e vive sob opressão das forças de segurança indianas.

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FIGURA 5 – CARTOON CRITICANDO A OCUPAÇÃO INDIANA NA CACHEMIRA

FONTE: <https://pbs.twimg.com/media/EBiLypFUYAUprS6.jpg>. Acesso em: 20 abr. 2021.

Após mais de meio século de conflito, nem a Índia nem o Paquistão parecem dispostos a fazerem concessões sobre a Caxemira, tampouco parecem ter capacidade de implementar um acordo. Por fim, nenhuma das guerras travadas foi decisiva o suficiente para resolver a questão militarmente.

3 GUERRA DA COREIA (1950-1951)

Em junho de 1950, as tropas da República Democrática da Coreia do Norte comunista invadiram a República da Coreia (Sul), capitalista. Ato contínuo, os Estados Unidos, à frente de uma força das Nações Unidas, composta por mais de uma dezena de países, interveio para ajudar a Coreia do Sul. Em contrapartida, a China se uniu à Coreia do Norte em novembro de 1950, desencadeando uma ofensiva contra as forças norte-americanas. A União Soviética, por sua vez, também passou a apoiar, secretamente, a Coreia do Norte.

Após três anos, a guerra terminou em um impasse com a fronteira entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul quase inalterada. Essa foi a primeira guerra “quente” da Guerra Fria, por meio da qual ficou claro que a disputa geopolítica entre os Estados Unidos e a União Soviética, e, em menor escala, a China, seria um conflito de proporções globais, travado por procuração.

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FIGURA 6 – A EVOLUÇÃO DA GUERRA DA COREIA (1950-1951)

FONTE: <https://www.todamateria.com.br/guerra-da-coreia/>. Acesso em: 28 abr. 2021.

Desde o século XIX, a Coreia e a sua vizinha Manchúria tiveram grande importância para Rússia, China e Japão. Portanto, confirmando esse interesse geopolítico, a União Soviética, após a Segunda Guerra Mundial, tentou ocupar toda a península coreana. No intuito de impedir o domínio soviético em toda a península coreana, os Estados Unidos ocuparam a metade da Coreia, ao sul do Paralelo 38. Assim como correu na Alemanha ocupada, logo após a Segunda Guerra Mundial, as divisões visavam a estabelecer um status quo: a Coreia do Norte, na área da península coreana ao norte do Paralelo 38, se tornou comunista, enquanto a Coreia do Sul adotou o regime capitalista, com uma política fortemente anticomunista.

Após a libertação da Coreia do controle japonês, no final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a União Soviética concordaram, temporariamente, em dividir a península coreana na altura do paralelo 38 de latitude ao norte da linha do equador. Essa divisão resultou na formação de dois países: a Coreia do Norte (apoiada pelos soviéticos) e a Coreia do Sul (apoiada pelos Estados Unidos).

Em junho de 1950, cinco anos após a partilha, o líder da Coreia do Norte, Kim Il Sung, decidiu reunificar a península e invadir a Coreia do Sul. O governo norte-americano, acreditando que a União Soviética havia apoiado a invasão, adotou uma política chamada de “contenção”, recusando-se a permitir o que os norte-americanos entendiam como tentativa de expansão da esfera de influência soviética no mundo. Dois dias depois da invasão, os Estados Unidos reuniram o Conselho de Segurança das Nações Unidas para declarar apoio à Coreia do Sul. Uma coalizão da ONU, liderada pelos norte-americanos, foi enviada para a Coreia do Sul (CUMINGS, 2011).

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Para a Guerra da Coreia, 16 (nações) estados-membros da ONU forneceram unidades de combate e cinco enviaram hospitais militares e ambulâncias de campo. Os Estados Unidos contribuíram com o maior número de tropas e recursos entre os países-membros da ONU. Grã-Bretanha, Canadá, França, Bélgica, Holanda, Colômbia, Etiópia, África do Sul, Nova Zelândia, Turquia, Grécia, Tailândia, Filipinas e Luxemburgo enviaram unidades de combate. Noruega, Suécia, Dinamarca, Índia e Itália contribuíram com hospitais militares e ambulâncias de campo.

IMPORTANTE

TROPAS TURCAS INTEGRANDO O CONTINGENTE DA ONU NA GUERRA DA COREIA

FONTE: <https://tinyurl.com/42czj6r7>. Acesso em: 20 abr. 2021.

Em agosto de 1950, as forças norte-coreanas haviam ocupado quase toda a Coreia do Sul e as forças norte-americanas mantinham apenas um pequeno perímetro defensivo no Sudeste do país, em Busan. Em setembro, sob o comando do General Douglas MacArthur, os Estados Unidos lançaram uma contraofensiva combinada com um ousado desembarque anfíbio em Inchon, na costa Oeste da Coreia do Sul, que empurrou os norte-coreanos de volta à fronteira no Paralelo 38 (OSTERMANN; PERSON; KRAUS, 2013).

A Figura 7 mostra o desembarque anfíbio norte-americano em Inchon, enquanto o mapa ilustra as tropas dos Estados Unidos cercadas no perímetro defensivo em Busan e o desembarque em Inchon na retaguarda das forças norte-coreanas.

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FIGURA 7 – DESEMBARQUE E MAPA DA SITUAÇÃO NA GUERRA DA COREIA

FONTE: <https://tinyurl.com/sp4ybych>; <https://bit.ly/3axAdd6>. Acesso em: 20 abr. 2021.

3.1 ALÉM DO PARALELO 38

O governo norte-americano, em sua contraofensiva, decidiu prosseguir até a fronteira com a China. Entretanto, em novembro de 1950, em reação à aproximação das forças norte-americanas, os líderes da China comunista, temendo uma invasão, enviaram dezenas de milhares de tropas chineses para a Coreia do Norte, empurrando as forças norte-americanas e da ONU de volta ao Paralelo 38.

Na primavera de 1951, os norte-americanos contra-atacaram e, mais uma vez, alcançaram o Paralelo 38. No entanto, no mesmo período, o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, demitiu o general MacArthur, então comandante norte-americano na Guerra da Coreia, quando este publicamente o desafiou, criticando a estratégia do governo. Os dois anos seguintes se tornaram períodos de combates ferozes, mas a fronteira resistiu. Em 1953, um armistício estabeleceu uma fronteira que restabelecia status quo pré-guerra e dividia, definitivamente, as Coreias do Sul e do Norte. Dezenas de milhares de soldados americanos e das tropas da ONU morreram na guerra, bem como centenas de milhares de soldados e civis da Coreia do Norte, da Coreia do Sul e da China. A zona desmilitarizada (DMZ) foi estabelecida, medindo cerca de 4 quilômetros de largura, fortemente armada, e separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul até hoje.

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FIGURA 8 – FORÇAS MILITARES E BAIXAS NA GUERRA DA COREIA

FONTE: <https://tinyurl.com/f5nzrwba>. Acesso em: 20 abr. 2021.

3.2 CONSEQUÊNCIAS DA GUERRA DA COREIA

O conflito na Coreia teve início em junho de 1950, durante a Guerra Fria, em meio a uma luta entre os Estados Unidos e a União Soviética pelo domínio mundial de suas ideologias concorrentes: democracia/capitalismo versus comunismo. Embora a União Soviética nunca tenha se envolvido diretamente na luta, os soviéticos forneceram à Coreia do Norte armas e suprimentos. Os Estados Unidos, por outro lado, comprometeram suas próprias tropas, como parte de uma força de paz internacional da ONU. Na realidade, era uma força da ONU apenas no nome; as tropas eram compostas quase inteiramente por forças norte-americanas e alguns aliados.

A Guerra da Coreia foi a primeira vez em que o papel da ONU foi questionado como ferramenta da política externa dos Estados Unidos na Guerra Fria. De certa maneira, a intervenção norte-americana foi surpreendente, pois, apenas alguns anos antes, os Estados Unidos assistiram, sem se envolverem seriamente, a China se tornar comunista e aceitaram que a Europa Oriental ficasse sob domínio soviético. Portanto, o envolvimento, altamente custoso em vidas e recursos, na estrategicamente insignificante Coreia, apenas se justifica pela mudança na política externa na Guerra Fria. Em 1950, os estrategistas norte-americanos adotaram uma política assertiva naquilo que entendiam como Teoria do Dominó, a qual preconizava deter o avanço comunista, em qualquer região, pois uma perda, mesmo insignificante, em termos estratégicos, poderia desencadear um “efeito dominó” (CHEN, 1994).

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Assim, acredita-se que os Estados Unidos se envolveram não porque a Coreia fosse vital para os interesses americanos. Ironicamente, a Coreia do Sul, na ocasião, não era um regime democrático e era quase tão autoritário quanto o regime na Coreia do Norte. A intervenção na Coreia estabeleceu um padrão na Guerra Fria, pelo qual os Estados Unidos apoiariam regimes autoritários desde que fossem anticomunistas.

Um dos resultados mais significativos, e que seria de grande impacto na Guerra da Fria, foi que o conflito na Coreia deu aos Estados Unidos motivos para aumentar consideravelmente seus gastos militares. Por consequência, no governo do presidente Harry S. Truman (1945-1953), foram lançadas as bases do complexo industrial militar norte-americano na Guerra Fria. Ainda como consequência da intervenção norte-americana na Coreia, foi nesse conflito que as tropas negras e brancas foram integradas no exército dos Estados Unidos, fato que abriu caminho para a luta pelos direitos civis dos negros na década de 1960.

Outro resultado da Guerra da Coreia foi a ascensão da República Popular da China como potência comunista emergente no cenário mundial, como consequência da ajuda militar soviética. Dessa maneira, as forças chinesas lutaram contra as norte-americanas até a paralisação do conflito, tornando, assim, a intervenção na Coreia a primeira guerra em que os Estados Unidos não venceram.

A Guerra da Coreia também provou tenacidade e habilidade militares dos comunistas na Ásia, o que seria reafirmado, na década de 1960, no fracasso dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Logo, há várias semelhanças entre a Guerra da Coreia e a Guerra do Vietnã, inclusive, o apoio dos Estados Unidos a um regime anticomunista, reconhecidamente corrupto e autoritário, e a concepção norte-americana do comunismo como uma ideologia monolítica a ser combatida, de forma igual e a qualquer custo.

Por fim, na Guerra da Coreia, ficou evidente a dinâmica dos conflitos na nova era pós-Segunda Guerra Mundial, em que seria difícil travar uma guerra limitada de forma previsível. Portanto, embora os Estados Unidos tenham tentado manter a guerra em escala limitada, o conflito se converteu em uma escalada envolvendo a China, chegando à beira de um conflito atômico e, consequentemente, a uma Terceira Guerra Mundial. No entanto, sob outra perspectiva, a Guerra da Coreia pode ser considerada um “sucesso” em termos da habilidade de potências nucleares, como os Estados Unidos e a União Soviética, evitarem um confronto direto. É preciso levar em consideração que a Guerra da Coreia ocorreu apenas cinco anos depois do bombardeio atômico em Hiroshima e Nagasaki, porém não foi uma guerra atômica, evitando a possibilidade de holocausto nuclear imediato e estabelecendo um padrão de dissuasão que continuaria durante a Guerra Fria.

A intervenção chinesa mudou a maré da guerra para os norte-coreanos, que resultaria em um impasse militar (Figura 9). A entrada da China no conflito também serviu como pretexto para o General Douglas MacArthur, comandante norte-americano na Coreia, defender o uso de armas atômicas contra a China.

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FIGURA 9 – TROPAS CHINESAS DURANTE A GUERRA DA COREIA

FONTE: <https://tinyurl.com/289tttaj>. Acesso em: 20 abr. 2021.

4 CONFLITO E GENOCÍDIO NOS BALCÃS (1992-1995)

A guerra na Bósnia e o fracasso da comunidade internacional em intervir por três anos no conflito simbolizou um anticlímax para a euforia pós-Guerra Fria, que previa uma transição suave e pacífica em direção a um sistema de segurança internacional. As expectativas pareciam se justificar diante de eventos como a queda do Muro de Berlim e a primeira “Guerra do Golfo”. Afinal, a comunidade internacional não estaria mais tão dividida por conflitos fundamentais e, em tese, poderia unir suas forças na proteção da paz e da estabilidade internacional. Na Cúpula do Grupo dos Sete (G7) de Londres, em julho de 1991, logo após o triunfo sobre Saddam Hussein, o comunicado final proclamava:

Acreditamos que agora existam condições para que as Nações Unidas cumpram integralmente a promessa e visão de seus fundadores. Uma ONU revitalizada terá um papel central no fortalecimento da ordem internacional. Comprometemo-nos a tornar a ONU mais forte, mais eficiente e eficaz para proteger os direitos humanos, para manter a paz segurança para todos e para dissuadir a agressão. Faremos da diplomacia preventiva uma prioridade máxima para ajudar a evitar conflitos futuros, deixando claro para potenciais agressores as consequências de suas ações. O papel da ONU na manutenção da paz deve ser reforçado e estamos preparados para implementar essa política (COKER, 1992, p. 407).

Entretanto, a guerra na Iugoslávia destruiu esse sonho otimista, pois, mesmo após repetidos debates na ONU, resoluções e uma escalada de medidas militares, a guerra não foi evitada nem suas consequências trágicas, apesar de nenhum dos combatentes envolvidos representar um desafio militar insuperável. No entanto, a ilusão foi rapidamente internalizada. Três anos depois do comunicado otimista em Londres, os Estados Unidos, governados por uma administração que se comprometeu a fazer “multilateralismo assertivo”, a pedra angular de suas ações externas, emitiu uma revisão de sua política de manutenção da paz sem a referência ao idealismo de 1991.

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O problema com a segurança coletiva é que ela pressupõe que todos os Estados percebam, de forma homogênea, qualquer ameaça à estabilidade como relevante. Portanto, quando a tensão internacional é alta, como durante a Guerra Fria, os Estados concentram seus recursos em segurança. Por outro lado, quando a tensão é baixa, como após o colapso da União Soviética, os Estados tendem a investir menos em segurança. Todavia, se a segurança coletiva exigir que os Estados intervenham em disputas, que não sejam percebidas como uma ameaça a seus interesses vitais, nesse caso, o papel atribuído ao mecanismo multilateral é mínimo. Assim, a guerra da Bósnia, em particular, provou ser um terreno difícil para a segurança coletiva, pois a falta de interesses convincentes estimulou uma estratégia ambígua por parte da comunidade internacional no Ocidente (ULMAN, 1996).

Na Bósnia, a lacuna nas prioridades de segurança internacional minou as tentativas de uma intervenção bem-sucedida. Em outras palavras, a comunidade internacional não conseguiu entender o conselho de Clausewitz (1968, p. 125):

Como a guerra não é um ato de paixão cega, mas sim é dominada pelo objeto político, o valor deste objeto é determinado por sacrifícios inerentes ao valor a ser alcançado. No entanto, o objeto político não é um tirano. Ele deve se adaptar aos meios escolhidos e é um processo que pode mudar radicalmente.

No entanto, após três anos, a pressão externa trouxe resultados positivos, forçando as partes a assinarem, nos Estados Unidos, a “Paz de Dayton”, em 1995, que encerrava o conflito na Bósnia. Assim, a principal lição aprendida na Bósnia é que os balcãs não eram uma exceção ao resto do mundo nem que o fim da Guerra Fria traria uma era pós-moderna de conflitos inevitáveis, mas, sim, que a estabilidade e a paz requereriam uma manutenção prudente e equilibrada.

QUADRO 1 – LINHA DO TEMPO PARA O PERÍODO DE 1994 A 1995

Data Acontecimento1994

4 de fevereiro Sérvios atacam Sarajevo, matando 45 e ferindo centenas de pessoas.

28 de fevereiro Otan entra em combate, pela primeira vez na história, ao derrubar quatro aviões sérvios.

17 de abril Sérvios entram na cidade muçulmana de Gorazde, declarada área de segurança.

14 de setembro Croatas e muçulmanos fazem uma confederação.1995

1 de janeiro Definida uma trégua de quatro meses, interrompida por violações de ambos os lados.

6 de julho Início do Massacre de Srebrenica.25 de julho Fim do Massacre de Srebrenica.

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28 de agosto Bombardeio sérvio mata 43 pessoas numa rua em Sarajevo.

4 de outubro Otan ataca os sérvios pela segunda vez.11 de outubro Entra em vigor uma trégua de 60 dias.1 de novembro Começam as negociações em Dayton (Estados Unidos).21 de novembro Acordo de paz (Acordo de Dayton) concluído.14 de dezembro Acordo de Dayton é formalmente assinado em Paris.

FONTE: O autor

4.1 AS CARACTERÍSTICAS DA GUERRA DA BÓSNIA

A história de conflitos, o mosaico étnico e o terreno fragmentado que caracterizavam a ex-república iugoslava se transformou em um pesadelo político e logístico para as tropas de paz. Além disso, havia a percepção internacional de que o conflito era um problema típico dos balcãs, tão intratável quanto todos os outros similares em regiões de conflitos endêmicos. Portanto, as dificuldades peculiares do teatro bósnio foram invocadas por governos relutantes como desculpa para a inércia.

Dessa maneira, a guerra da Bósnia não afetou o equilíbrio econômico e político internacional, o que teria justificado uma intervenção imediata – em contraste, por exemplo, com o fator econômico preponderante, em 1990, na primeira Guerra do Golfo, considerada uma violação flagrante do direito internacional em uma área geopolítica crucial perpetrada sob pretexto de uma ameaça que se acreditava potencialmente perigosa. Por outro lado, a guerra da Bósnia foi um conflito cáustico, em uma região periférica, perpetrada por uma entidade que não representava uma ameaça, mesmo que vitoriosa, à estabilidade internacional. Por isso, a crise no Iraque e a invasão subsequente do Kuwait, em 1990, afetaram mais a ordem internacional do que a guerra civil na antiga Iugoslávia (OWEN, 1995).

Um fator complicador na crise nos balcãs foi a característica interétnica dos envolvidos, pois os três grupos étnicos em conflito conviveram durante séculos e, no início do conflito, não foi possível identificar um “agressor”. No entanto, os sérvios, que mantiveram a vantagem militar na maior parte da guerra, arcaram com a responsabilidade porque foram os primeiros a empregar retórica hipernacionalista e métodos que violavam os princípios humanitários mais básicos adotados pela sociedade internacional.

Outro fator de tensão que levou ao conflito aberto foi que os lados envolvidos, bósnios, muçulmanos e croatas, não queriam viver em regiões em que fossem minoritários. Essas reivindicações levaram ao impasse, que resultou na guerra na primavera de 1992. Consequentemente, cada grupo envolvido entendia a coesão identitária do outro como uma ameaça a ser respondida.

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O problema é que a opção da comunidade pela justiça não foi acompanhada por uma disposição igual para aplicá-la. Pelo contrário, na política internacional, na ausência de uma autoridade central assertiva, os países implementavam suas decisões de acordo com seus interesses. O resultado foi uma solução de compromisso que rejeitava por três anos diversos planos propostos pelos mediadores internacionais, frequentemente criticados, porque permitiam que os sérvios retivessem parte de seus ganhos na guerra.

No entanto, após três anos de guerra e sofrimento, a paz que foi finalmente acordada em Dayton e, no final de 1995, era, pelos mesmos padrões, menos justo do que qualquer um dos projetos de acordos propostos anteriormente. Como não foi possível escolher entre a paz e a justiça, a comunidade internacional não conseguiu alcançar nenhum dos dois.

A complexidade da opinião pública contemporânea e o interesse esporádico por relações exteriores gerou pressões contraditórias no conflito da Bósnia. Como Walter Lippmann (2017) observou, a opinião pública tende a “ser pacifista em tempos de paz e belicosa em tempo de guerra” (LIPPMANN, 2017, p. 24) e, na maioria dos países ocidentais, relutava em admitir que uma guerra, na década de 1990, estivesse ocorrendo em plena Europa, destruindo as expectativas de uma paz “perpétua”. Entretanto, no plano internacional, o sistema multipolar que surgiu, após a Guerra Fria, caracterizou-se por uma maior difusão de poder. Como em todos os sistemas multipolares, a multiplicidade de atores torna os alinhamentos menos estáticos e mais dependentes das circunstâncias particulares, pois os atores têm que distribuir seus recursos e prioridades e não podem se dar ao luxo de se concentrarem em um único contexto (DEUTSCH; SINGER, 1964).

Todavia, a existência de uma ordem multipolar não implica, necessariamente, um sistema mais instável, mas sua estabilidade exige sutileza diplomática e que a comunidade internacional, acostumada à rígida estrutura da bipolaridade, se ajuste a uma nova dinâmica geopolítica. Esse quadro levou a disputas recorrentes entre a Europa, os Estados Unidos e a Rússia, dispersando recursos preciosos que tornaram a pressão internacional menos eficaz.

4.2 AS CAUSAS DA PAZ

A intervenção apenas tornou-se eficaz e possibilitou a paz quando a comunidade internacional aprendeu com esses vários erros e, gradualmente, se aproximou de uma estratégia racional, assumindo responsabilidades. Em 1994, um “Grupo de Contato” foi estabelecido entre as cinco grandes potências (Estados Unidos, Rússia, Alemanha, França e Reino Unido), reduzindo o complicado processo de tomada de decisão na União Europeia, na Otan e na ONU.

O processo culminou no compromisso norte-americano com a operação Deliberate Force (em português, força deliberada). Simultaneamente, as preocupa-ções da Rússia foram, em certa medida, contempladas na tomada de decisões, o

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que permitiu o relaxamento da Leste-Oeste. Como consequência da postura res-ponsável e unida, os Estados Unidos e a Alemanha puderam pressionar pelo fim do conflito entre muçulmanos e croatas, o que possibilitaria a formação de uma confederação muçulmano-croata.

De maneira análoga, os objetivos se tornaram mais realistas, mas com o compromisso de uma sociedade multiétnica e garantias à independência das diversas comunidades. Abandonando os planos anteriores, a comunidade internacional passou para o “Plano de Ação da União Europeia”, que permitia a continuidade territorial e exigia que os sérvios se retirassem da Bósnia. Finalmente, foi assinado o “Acordo de Dayton”, que reconhecia a entidade sérvia como uma unidade distinta e, de certa maneira, endossava a limpeza étnica, ocorrida no verão de 1995, no leste da Bósnia.

Como apontado anteriormente, a comunidade internacional se recusou a implementar o “Plano Vance-Owen” (1993), alegando ser injusto, pois permitia aos sérvios da Bósnia manter alguns de seus ganhos de guerra. Ironicamente, após mais dois anos de sofrimentos, tornou-se uma paz ainda menos justa, já que a porção alocada aos sérvios aumentou de 43% em 1993 para 49% em 1995.

Outro aspecto importante foi a pressão exercida sobre os sérvios-bósnios, pois as tropas multinacionais se tornaram cada vez mais assertivas contra os sérvios recalcitrantes. Inicialmente, a força multinacional foi ameaçada, mas então a retaliação tática se seguiu contra as forças sérvias e, finalmente, em 1995, uma campanha aérea estratégica foi lançada paralisando a capacidade dos sérvio-bósnios de continuar a guerra.

Dessa forma, por intermédio de três processos – melhoria da coordenação, objetivos mais modestos e meios mais assertivos –, conseguiu-se estabelecer a paz na Bósnia. Apesar do cansaço de três anos de guerra, as partes envolvidas não conseguiram chegar a um acordo espontâneo e, assim, apenas a aplicação de meios militares, na terra e no ar, tornou a paz possível.

Contudo, esses processos não surgiram de forma inequívoca nem repentinamente, sendo, possível dividir a história da intervenção na Bósnia em três etapas:

• Fase I: do início da guerra em 1992 ao Plano de Paz Vance-Owen e seu fracasso na primavera de 1993.

• Fase II: no período das três propostas de compromisso – o Pacote Invincible (invencível), o Plano de Ação da União Europeia e a proposta do Grupo de Contato.

• Fase III: final da guerra, em 1995, com os acordos de paz de Dayton.

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4.2.1 Fase I: do início das hostilidades

A guerra da Bósnia foi uma tragédia anunciada desde que a unidade política da Iugoslávia, em 1990, se desfez quando a Eslovênia se tornou independente. A complexa composição multiétnica da república – 44% muçulmanos, 33% sérvios e 17% croatas – tornava a situação potencialmente explosiva, caso a Iugoslávia se reconfigurasse ao longo de linhas étnicas.

A gestão conjunta da crise pela Comunidade Europeia e pelas Nações Unidas foi, então, usada nos primeiros dois anos da guerra e mesmo antes do conflito se iniciar. Por outro lado, a tentativa fracassada de prevenir a guerra em seu início ocorreu pela dificuldade de a ONU encontrar tropas de paz, necessárias para proteger as zonas de conflito. Outra razão para explicar por que o conflito não evitado no início foi o fracasso da Comunidade Europeia em mediar as demandas de sérvios, croatas e muçulmanos-bósnios temerosos em viver sob controle uns dos outros.

No entanto, mesmo com uma mediação mais eficiente, o conflito dificilmente seria evitado. De modo geral, atribui-se como causa principal do conflito iugoslavo o ressurgimento das rivalidades étnicas, mas também se poderiam responsabilizar as antigas elites comunistas, que teriam tentado recuperar sua legitimidade manipulando o hipernacionalismo sérvio. Entretanto, quando os primeiros tiros foram disparados, no verão de 1991, já era tarde para impedir o processo de desintegração da antiga Iugoslávia.

Outro aspecto relevante para explicar o fracasso inicial na prevenção do conflito foram as antigas divisões da república iugoslava, constituídas por linhas de demarcação, que eram, na realidade, apenas demarcações administrativas inúteis para separar entidades étnicas independentes. Assim, a comunidade internacional reconheceu as novas divisões autônomas no princípio da nacionalidade, ignorando as reivindicações das minorias dentro desses novos Estados.

O referendo sobre a independência da Bósnia foi, portanto, realizado no final de fevereiro de 1992, com a maioria muçulmano-croata votando a favor e a minoria sérvia boicotando a consulta. Após a votação, a Comunidade Europeia reconheceu a Bósnia como um Estado independente em abril. No entanto, os sérvios da Bósnia, que fundaram a autodenominada República Sprska, em janeiro, responderam com violência, ocupando 70% do território bósnio.

Enquanto isso, iniciava-se o cerco brutal de Sarajevo e a guerra ganhava contornos de genocídio, com os sérvios aprisionando muçulmanos e croatas em campos de concentração e promovendo estupros em massa e execuções sumárias. A ideia era produzir um fato consumado e tornar a região totalmente sérvia, por intermédio de uma limpeza étnica, para que a Bósnia pudesse se unir a outras regiões na formação de uma “Grande Sérvia”.

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A comunidade internacional respondeu à escalada de várias maneiras. Em maio, sanções foram impostas à Iugoslávia. Em julho, 1.100 soldados da Força de Proteção das Nações Unidas na Ex-Iugoslávia (UNPROFOR) foram enviados para proteger o aeroporto de Sarajevo e garantir que o fornecimento de armamento fosse interrompido pelo cerco sérvio. No final de agosto, na Conferência de Londres sobre a ex-Iugoslávia, estabeleceu-se uma série de princípios para servir de base para um acordo que foi não recompensar a agressão e a limpeza étnica, salvaguardando a multiétnica da pré-guerra da Bósnia. Em outubro, o Conselho de Segurança da ONU proibiu voos militares sobre a Bósnia.

As medidas tiveram algum impacto preventivo, mas se mostraram inadequadas para o alto grau de violência do conflito, especialmente, pela falta de poder militar. Em particular, as sanções e a zona de exclusão aérea foram sistematicamente violadas, devido à falta de fiscalização, o que, para os combatentes, sugeria que a comunidade internacional não estava disposta a pagar o preço para impor um acordo.

Além de designar tropas multilaterais para tarefas difíceis, devido à escassez de recursos, a comunidade internacional também delegou responsabilidades de governos para criar um fórum multilateral – a Conferência Internacional sobre a ex-Iugoslávia, em Londres, elaborou o chamado plano “Vance-Owen”, que estabeleceu uma única entidade, com personalidade jurídica internacional, dividida em dez cantões dotados de grande autonomia. Os cantões foram projetados para englobar a maioria de uma das três comunidades étnicas, e cada uma controlaria três cantões, com status especial para Sarajevo. O plano era um meio-termo, mas também a última tentativa de preservar a qualidade interétnica da Bósnia antes da guerra, como os vários cantões foram exibidos em uma colcha de retalhos.

Apesar da aceitação do plano pelos croatas da Bósnia e pelo presidente da Sérvia, Slobodan Milosevic – que, depois de vencer as eleições contra o primeiro pró-Ocidente ministro Milan Panic, passou a apresentar uma postura mais moderada, na esperança de reduzir o isolamento diplomático e econômico da Sérvia –, o plano foi vítima da falta de unidade na parte da comunidade internacional. O plano “Vance-Owen” foi o plano mais ambicioso entre os propostos na preservação do caráter multiétnico da república na raiz do conflito, enquanto os recursos eram insuficientes para forçar as partes a aceitarem os sacrifícios que o plano exigia.

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SARAJEVO RECORDA 20 ANOS DO INÍCIO DA GUERRA DA BÓSNIA

Bósnia e Herzegovina lembram a eclosão da guerra entre muçulmanos, sérvios e croatas em 1992. Em Sarajevo, 11.541 assentos vermelhos vazios homenageiam os habitantes da cidade mortos durante o cerco à cidade.

As tensões entre grupos étnicos durante o desmantelamento da Iugoslávia fizeram-se presentes também na Bósnia. Após o reconhecimento da independência da Bósnia pela União Europeia em 6 de abril de 1992, milhares de bósnios muçulmanos, sérvios cristãos ortodoxos e croatas católicos participaram na capital Sarajevo de uma manifestação em massa pela paz e pela soberania, quando franco-atiradores sérvios abriram fogo contra a multidão.

Esse é considerado o início da Guerra da Bósnia – que transformou a república dos balcãs num campo de batalha por quase quatro anos – e do cerco a Sarajevo, que só terminaria definitivamente em fevereiro de 1996. A princípio, todas as tentativas por vias militares ou diplomáticas de furar o bloqueio fracassaram.

Sarajevo como refém dos nacionalistas sérviosCom o apoio do Exército Popular Iugoslavo, comandado pela Sérvia, e do governo sérvio sob a presidência de Slobodan Milosevic, Sarajevo foi sitiada por tropas servo-bósnias durante 44 meses, tendo sido bombardeada diariamente a partir das montanhas circundantes, por vezes, com centenas de projéteis.

Os 380 mil habitantes da capital ficaram sem energia, água e aquecimento. Desses, 11.541 foram mortos durante o assédio a Sarajevo. Em memória desses mortos, 11.541 assentos vermelhos vazios foram dispostos ao longo de 800 metros da rua principal da cidade.

Massacres e limpeza étnicaUm ataque ao mercado que matou 37 pessoas, em agosto de 1995, desencadeou os ataques da Otan contra o cerco sérvio, o que criou a base para o fim da guerra e do bloqueio. Em 1996, a ponte aérea humanitária para o abastecimento da população pôde ser encerrada. Quase 100 mil pessoas foram mortas e mais de 2,2 milhões tiveram de fugir durante a Guerra da Bósnia, entre 1992 e 1995. Em julho de 1995, ocorreu na zona protegida pela ONU, Srebrenica um massacre considerado um dos piores na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Milícias servo-bósnias mataram 8 mil homens e jovens muçulmanos na ocasião. Também pela primeira vez desde a Segunda Guerra, viu-se novamente durante a Guerra da Bósnia a limpeza étnica no continente europeu.

IMPORTANTE

SARAJEVO FOI SITIADA DURANTE QUASE QUATRO ANOS

FONTE: <https://tinyurl.com/92my2ew>. Acesso em: 25 abr. 2021.

FONTE: <https://bit.ly/3iYfpQH>. Acesso em: 28 ago. 2021.

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A Miss Sarajevo, que inspirou a banda U2, lembra o dia em que pediu para não morrer. Numa cidade cercada, um homem organizou um concurso de beleza. Inela Nogic venceu e tornou-se “Miss Sarajevo”. Ela vive em Amsterdam, na Holanda. O episódio inspirou a banda rock irlandesa, acompanhados pelo tenor italiano Luciano Pavarotti, a gravarem a canção Miss Sarajevo (música disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zlmg0yzxKvQ&ab_channel=U2).

FONTE: <https://www.dn.pt/mundo/a-logica-quase-impossivel-da-beleza-como-arma-em-tempos-de-guerra-9382100.html>. Acesso em: 28 ago. 2021.

INTERESSANTE

4.2.2 Fase II: adaptação gradual

A segunda fase foi de adaptação gradual e de tentativas de adequar os esforços as necessidades do administrar o conflito. No entanto, essas tentativas se mostraram insuficientes para alterar radicalmente o caráter da guerra. Por um lado, a fiscalização se tornou mais rigorosa impondo a zona de exclusão aérea e o bloqueio no Mar Adriático e no Rio Danúbio. Em setembro de 1993, um pacote foi apresentado às partes prevendo a união de três repúblicas dotadas de território contíguo. A participação dos sérvios na Bósnia seria de 53% e os muçulmanos deveriam receber 30% do território com acesso ao Mar Adriático. O plano foi rejeitado pelos bósnios muçulmanos, porque a “união” era equivalente a uma dissolução disfarçada do país.

Em 5 de fevereiro de 1994, um projétil de morteiro chegou ao mercado no centro de Sarajevo, matando 69 muçulmanos e abalando profundamente a confiança na intervenção da comunidade internacional em interromper uma guerra que já durava de dois anos. O ataque em Sarajevo pode, retrospectivamente, ser considerado um importante ponto de inflexão porque mobilizou reação internacional.

As duas principais potências externas – os Estados Unidos e a Rússia – foram, finalmente e irrevogavelmente, bloqueadas no processo de negociação. No lado militar, a ação internacional com a Otan se tornou mais assertiva. Imediatamente após o ataque em Sarajevo, um ultimato foi emitido pela ONU, exigindo que todas as armas pesadas fossem eliminadas ou retiradas em uma zona de exclusão de 20 quilômetros ao redor da cidade.

A Otan demonstrou sua determinação abatendo quatro aeronaves sérvias-bósnias que violavam a zona de exclusão e a posição internacional mais unificada pagou seus dividendos, também em termos diplomáticos na região.

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O Grupo de Contato da ONU procedeu à elaboração de seu próprio plano, o qual foi apresentado às partes em 5 de julho. O mapa dividia a Bósnia entre a Federação Croata-Muçulmana, que deveria deter 51%, e os sérvios da Bósnia, com os 49% restantes. No entanto, o plano ainda se apoiava no pressuposto de que as partes poderiam encontrar um acordo, mesmo sem a aplicação efetiva de fora. Os sérvios da Bósnia, portanto, não enfrentaram qualquer retaliação direta quando rejeitaram o plano em 20 de julho. A rejeição do plano do Grupo de Contato, como outros antes dele, foi seguida por uma deterioração da situação.

Nesse contexto confuso, o melhor resultado que se pôde obter foi uma trégua de quatro meses, assinada no final de dezembro. No entanto, a credibilidade ocidental foi erodida nas duas fases do conflito. Assim, uma resolução decisiva da crise era a única solução para salvar a reputação de todas as organizações internacionais envolvidas na solução do conflito. Dessa maneira, após a rejeição do plano do Grupo de Contato, mais uma vez, a intervenção direta de governos, ao contrário dos mediadores multilaterais, disponibilizou o poderio militar – o elemento necessário de uma solução definitiva.

4.2.3 Fase III: o fim da Guerra e a Paz de Dayton

A terceira e última fase da guerra, em 1995, começou com uma situação militar fluida e dinâmica. Três meses após o cessar-fogo, sérvios e croatas lançaram ofensivas na região sitiada em Sarajevo. Em maio, o comando das tropas da ONU emitiu um ultimato aos sérvios, que, ao se recusarem a cessar as hostilidades, foram bombardeados por aviões da Otan. A reação sérvia foi fazer 300 reféns da ONU, que foram acorrentados a alvos potenciais e libertados como resultado da revolta internacional.

Em resposta à crise de reféns, as Nações Unidas reforçaram seu contingente militar multinacional, equipando-o com armas de ataque. Em julho, as forças sérvias atacaram o enclave de Srebenica, em uma tentativa eliminar o bolsão muçulmano de seu território. No entanto, a reação ocidental ao ataque foi limitada a ataques aéreos esporádicos e as tropas sérvias expulsaram os 40 mil muçulmanos, habitantes e refugiados, e massacraram 8 mil bósnios muçulmanos.

A indignação da opinião pública diante dessas violações abertas do direito humanitário tornou inevitável o confronto militar entre os sérvios e a Otan. Nesse ínterim, a ofensiva sérvia estimulou a aliança entre croatas muçulmanos. As forças croatas atacaram os sérvios, socorrendo uma cidade muçulmana e expulsando 150 mil sérvios do território croata.

O golpe no moral sérvio, que, até então, dependia de um sentimento de superioridade militar, foi rapidamente explorado diplomaticamente pelos Estados Unidos. Entretanto, mais um ataque sérvio a Sarajevo desencadeou uma

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campanha aérea maciça da Otan, provocando a destruição na infraestrutura sérvia e uma ofensiva croata-muçulmana. Como resultado do impasse militar, os Estados Unidos, junto a seus aliados no Ocidente, aproveitaram a oportunidade para impor um cessar-fogo final.

Após dois meses de duras negociações entre os três lados patrocinados pelos Estados Unidos na base aérea de Dayton, no Estado de Ohio, a paz foi finalmente alcançada, após 44 meses de guerra e mais de 200 mil mortos. A Bósnia-Herzegovina se tornaria um único Estado, com personalidade jurídica internacional composta por duas entidades distintas de direitos iguais e dotadas de grande autonomia: a Federação Muçulmana-Croata e a República Sprska (Sérvia).

A injustiça de aceitar os resultados da etnia, a limpeza no leste da Bósnia foi compensada com o aumento da estabilidade de que o novo arranjo teria, em termos da viabilidade das duas entidades. Sarajevo era atribuído à Federação, enquanto as outras duas questões delicadas do corredor Posavina – que concede à Federação acesso às comunicações Sava ou sérvias entre as duas partes principais de seu território – e do acesso muçulmano ao Adriático foram deixados para arbitragem internacional.

Uma série de anexos detalhava o acordo. As forças militares deveriam ser desarmadas e confinadas em quartéis, sob a supervisão de 60 mil tropas da Otan. Eleições locais, comunitárias e nacionais deveriam reativar o processo democrático, sob a supervisão da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Os acordos de Dayton – recuperando-se das ambições anteriores, também previam a restauração do caráter interétnico do pré-guerra, prometendo a liberdade de circulação para todos os cidadãos em todo o território da Bósnia e o regresso de refugiados sob a responsabilidade do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).

As penalidades de criminosos de guerra foram atribuídas ao Tribunal de Crimes de Guerra ad hoc estabelecido em Haia. Por fim, a União Europeia, em cooperação com o Banco da Europa de Reconstrução e Desenvolvimento e o Banco Mundial, foram responsabilizados pelos esforços de reconstrução civil e revitalização econômica.

Ratko Mladic: o “açougueiro da Bósnia” foi condenado pela maior atrocidade na Europa no pós-Guerra. FONTE: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42079338>. Acesso em: 28 ago. 2021.

INTERESSANTE

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FIGURA 10 – DIVISÃO POLÍTICA DA EX-IUGOSLÁVIA DEPOIS DO ACORDO DE DAYTON. A FEDERAÇÃO BÓSNIA-HERZEGOVINA (MUÇULMANA-CROATA) EM AZUL E REPÚBLICA SÉRVIA EM

CINZA-ESCURO

FONTE: <https://tinyurl.com/bvn9uvjr>. Acesso em: 25 abr. 2021.

5 CONFLITO PALESTINO-ISRAELENSE

Ao contrário do mito de que “judeus e muçulmanos estão em guerra por milhares de anos”, judeus, muçulmanos e cristãos do Oriente Médio viveram sem conflitos significativos até o século XX. Outro mito é que o conflito palestino-israelense seja religioso, porque, na realidade, é um conflito político. Suas origens remetem, pelo lado israelense, ao antissemitismo europeu e, pelo lado palestino, à interferência estrangeira no Oriente Médio, que culminou, em 1948, na expulsão dos palestinos pelos israelenses.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) causou grande impacto no Oriente Médio, especialmente para as populações árabes vivendo na Palestina. No Império Otomano (turco), que governava aquela região há quase meio-milênio, viviam populações e povos diferentes, inclusive as comunidades judaicas nativas. Contudo, principalmente a partir do final do século XIX, as potências europeias buscaram ampliar sua esfera de influência nas terras que constituíam o Império Otomano (KHALIDI, 2020).

Blihać

Bugojno

Mostar

TravnikZenica

Tuzla

Sarajevo

Trebinje

Bijeljina

Brčko

DobojBanja Luka

Prijedor

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

204

FIGURA 11 – PALESTINA, PARTE DO IMPÉRIO OTOMANO

FONTE: <https://tinyurl.com/enberxj8>. Acesso em: 28 abr. 2021.

Durante a Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha temia que uma vitória otomana e de seus aliados alemães e austro-húngaros pudesse lhes custar o acesso às rotas terrestres e marítimas para a Ásia, dificultando a ligação com a Índia e outras possessões britânicas na Ásia. Para tanto, os britânicos buscaram cooptar as populações árabes, com intuito de fazê-los se revoltar contra o domínio otomano e ajudar no esforço de guerra da Grã-Bretanha no Oriente Médio.

De forma análoga, Grã-Bretanha também se preocupava que os judeus europeus, principalmente aqueles que viviam na Europa Oriental, pudessem apoiar a Alemanha na guerra contra a Rússia czarista, que promovia uma política de perseguição a suas populações judaicas. Dessa maneira, os britânicos fizeram duas promessas conflitantes para os árabes no Oriente Médio e para os judeus na Europa, na eventualidade de uma vitória contra os turcos-otomanos na Primeira Guerra Mundial.

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FIGURA 12 – TRATADO DE SYKES-PICOT, EM 1916

FONTE: <https://tinyurl.com/79fajh87>. Acesso em: 28 abr. 2021.

O início do caos no Oriente Médio foi há cem anos, em 16 de maio de 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, a França e o Reino Unido partilharam entre si vastas áreas do Império Otomano, já antecipando a própria vitória e sem qualquer consulta aos habitantes da região. O tratado secreto dessa partilha ficou conhecido como Sykes-Picot, em alusão aos diplomatas que o negociaram, o inglês Mark Sykes e o francês François Georges-Picot.

“Aos franceses caberia um território do sudeste da atual Turquia até o Líbano, passando pelo norte do Iraque e pela Síria. Os britânicos regeriam o Sul e o centro do Iraque. As terras contidas entre esses dois territórios – englobando a atual Síria, a Jordânia, o Iraque ocidental e o nordeste da Península Árabe – seriam um reino árabe sob mandato anglo-francês. A Alemanha também desempenhou um papel pouco louvável nessa negociata. Aliada do Império Otomano, ela queria enfraquecer por meios militares os seus inimigos na Primeira Guerra. Junto ao califa de Istambul, autoridade religiosa suprema dos muçulmanos sunitas, os alemães conclamaram os árabes à jihad, a “guerra santa” contra os britânicos.

FONTE: <https://tinyurl.com/eb36r3eb>. Acesso em: 28 abr. 2021.

INTERESSANTE

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SIONISMO

O sionismo é uma ideologia nacionalista e política que clamava pela criação de um estado judeu e agora apoia a continuidade da existência de Israel como tal estado. Theodor Herzl, um judeu austríaco, é considerado o “pai” do sionismo político. O movimento sionista começou no final do século XIX, em meio ao crescente antissemitismo europeu. O movimento garantiu apoio entre os governos da Europa Ocidental, especialmente, depois que os sionistas concordaram em criar seu estado judeu na Palestina histórica. O objetivo inicial dos sionistas era reivindicar o máximo possível da Palestina histórica expulsando a população palestina. Os sionistas encorajaram ativamente a migração em massa de judeus europeus para a Palestina durante a primeira metade do século XX. Apesar de seus esforços e da intensificação do antissemitismo na Europa, culminando com a perseguição nazista, os árabes ainda eram mais numerosos do que os judeus na Palestina. Como observou o historiador israelense Ilan Pappé, os líderes sionistas estavam cientes de que a implementação de seu projeto exigiria a limpeza étnica da população palestina nativa. Em 1948, David Ben-Gurion, então chefe da Organização Sionista Mundial, proclamou a fundação do Estado de Israel na Palestina. Os sionistas argumentaram que Israel forneceria um lar nacional seguro para os judeus, permitindo que qualquer judeu de qualquer lugar do mundo imigrasse para lá e reivindicasse a cidadania. No entanto, os críticos argumentam que o sionismo funcionou como uma empreitada colonial, pois se consolidou por meio de violência e limpeza étnica da população indígena palestina e a construção de assentamentos ilegais nos territórios palestinos ocupados.

FONTE: PAPPÉ, I. Zionism as Colonialism: A Comparative View of Diluted Colonialism in Asia and Africa. South Atlantic Quarterly, v. 107, n. 4, p. 611-633, 2008. Disponível em: https://read.dukeupress.edu/south-atlantic-quarterly/article/107/4/611/3404/Zionism-as-Colonialism-A-Comparative-View-of. Acesso em: 28 abr. 2021.

IMPORTANTE

Para os árabes no Oriente Médio, os britânicos prometeram a criação de um Estado árabe independente, nos domínios a serem conquistados ao Império Otomano, que abrangeria quase toda a região como havia sido acordado na “Correspondência de Mac Mahon” (1915-1916), entre o Xerife de Meca, Hussein ibn Ali, e Sir Henry McMahon, Alto-Comissário do Império britânico no Egito (FRIEDMAN, 1999).

No entanto, simultaneamente, a Grã-Bretanha redigiu um documento chamado Declaração Balfour (THE BALFOUR DECLARATION, 1917), em que se comprometia apoiar a criação de um “lar nacional” para os judeus europeus na Palestina, na condição de que os direitos civis e religiosos das populações nativas, cristãs e muçulmanas não fossem prejudicados. Entretanto, no fim, a Grã-Bretanha, no que se refere à Palestina, quebrou a promessa aos seus aliados árabes e passou a apoiar a implementação apenas da Declaração de Balfour, à medida que aumentava a imigração europeia judaica para a Palestina, em detrimento das populações

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nativas. Os termos da Declaração de Balfour foram incorporados a um acordo, em julho de 1922, pela então Liga das Nações (precursora das Nações Unidas), para conceder à Grã-Bretanha um “mandato” para administrar a Palestina conquistada pelos otomanos na Primeira Guerra Mundial (KHALIDI, 2020).

Antes de 1880, a comunidade judaica da Palestina somava cerca de 25 mil ou o equivalente a 4% da população total. Do final da década de 1880 ao início de 1900, o antissemitismo na Europa, levou milhões de judeus europeus a emigrar para vários destinos foram do continente europeu. Sendo assim, no início da Primeira Guerra Mundial, apenas 3% de judeus europeus emigraram para a Palestina, o que resultou no aumento da população judaica para cerca de 80 mil ou um décimo da população total (ELGINDY, 2019).

A Grã-Bretanha manteve o controle administrativo da Palestina até depois da Segunda Guerra Mundial e, a partir da década de 1920, a emigração para a Palestina aumentou drasticamente como resultado de dois fatores. O primeiro como consequência do surgimento do nazismo, na Alemanha, e o subsequente início, em 1932, do domínio nazista no cenário político alemão, que resultaria na perseguição dos judeus na Alemanha e, posteriormente, em outras partes da Europa.

O aumento da imigração judaica, fugindo do nazismo, coincidiu com as restrições feitas por diversos países, inclusive o Brasil e outros países na América Latina, à entrada de judeus europeus (CAIRUS; CAIRUS, 2007). Em contraste, a Palestina, entre 1932 e 1939, acolheu 247 mil refugiados judeus ou 46% de toda a imigração judaica proveniente da Europa. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), cerca de 6 milhões de judeus europeus (85% da população europeia de origem judaica) foram mortos, entre 1942 e 1945, principalmente em campos de extermínio nazistas, na Polônia e na Alemanha. Após 1939, os judeus continuaram a fugir da Europa e a Palestina, devido às restrições de outros países, permaneceu o destino mais acessível.

Depois da Primeira Guerra Mundial, muitos judeus europeus buscaram recomeçar a vida longe dos países em que foram perseguidos. Embora a maioria dos judeus europeus tenha emigrado para outros países, milhares acabaram na Palestina. Em 1946, cerca de 6% das terras na Palestina pertenciam aos judeus vindos da Europa, tendo grande parte delas sido compradas de proprietários estrangeiros ausentes. Em 1947, cerca de um terço da população da Palestina era de origem judia, majoritariamente, europeia.

Simultaneamente, os árabes palestinos eram sufocados pelo domínio colo-nial britânico e se preocupavam com o rápido influxo imigrantes judeus europeus. A população palestina nativa se preocupava, notadamente, com o projeto, já então declarado, de organizações judaicas sionistas de estabelecer um estado judeu inde-pendente na Palestina. Essa tensão levou à formação de grupos armados de nativos palestinos e judeus europeus. Embora a violência tivesse como alvo os britânicos, choques entre palestinos e judeus também passaram a ser comuns.

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A revolta na Palestina (1936-1939) foi, em muitos aspectos, o episódio decisivo nos esforços dos árabes palestinos para resistir ao apoio do Mandato Britânico ao projeto sionista. Embora tenha ajudado a forçar uma reavaliação da política britânica, que levou ao Livro Branco, em 1939, que restringia a imigração de judeus europeus para a Palestina, em última análise, a revolta fracassou. Em 1939, após serem reprimidos brutalmente pelos britânicos ajudados por milícias sionistas, os árabes palestinos estavam exaustos. Estima-se que 5 mil árabes-palestinos tenham sido mortos, entre 15 mil e 20 mil feridos e 5.600 foram presos e enviados para a Grã-Bretanha. A maior parte dos que restaram fugiram da Palestina ou foram mortos. As perdas palestinas, entre mortos, feridos ou detidos, em uma população de cerca de 1 milhão, em 1939, correspondiam a mais de 10% da população.

FONTE: <https://tinyurl.com/sb5tzzvv>. Acesso em: 29 abr. 2021.

DICAS

FIGURA 13 – COMBATENTES NA REVOLTA ÁRABE-PALESTINA (1936-1939)

FONTE: <https://bit.ly/30lv9XE>. Acesso em: 29 abr. 2021.

Os protestos crescentes de árabes palestinos e o aumento dos ataques de milícias armadas, judias e palestinas, forçaram a Grã-Bretanha a pedir à ONU a resolução da situação. Ainda sob o espectro do holocausto e o sentimento de culpa pelas perseguições antissemitas históricas na Europa, as potências ocidentais decidem resolver a imigração de judeus europeus, criando um Estado judeu na Palestina em caráter urgente.

Em novembro de 1947, a Assembleia Geral da ONU aprovou o plano para a partilha de Palestina, que alocou 53% das terras para a criação de um Estado de maioria judaica e 47% para um Estado de maioria palestina. A cidade de Jerusalém seria governada por um “Regime Internacional Especial”, separado dos Estados “judeu” e “palestino”.

Na ocasião, os árabes palestinos consideraram a partilha de terra injusta, pois os judeus representavam apenas 33% da população da Palestina, sendo que a grande maioria era formada por imigrantes europeus recém-chegados. Em

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contraste, os palestinos viviam naquelas terras por milênios. Consequentemente, os judeus saudaram o plano, pois formalizou sua visão de uma pátria independente. O plano teve apoio, na ONU, de países ocidentais, incluindo o Brasil, mas com a oposição dos países árabes e da maioria dos países africanos e asiáticos.

Nos meses que antecederam o fim do Mandato Britânico, a violência aumentou, resultando em uma guerra civil total, em 1948. Assim, os líderes judeus criam, unilateralmente, o Estado de Israel poucas horas após o fim do Mandato Britânico. Os combates se intensificaram, entre março e abril de 1948, e se alastraram para várias partes do território, até meados de 1949. Quando os combates diminuíram, as forças israelenses haviam conquistado o controle de 78% das terras destinadas à criação do Estado de maioria palestina. No que restou aos palestinos, o Egito passa a administrar a Faixa de Gaza, enquanto a Jordânia, a Cisjordânia e a parte oriental de Jerusalém. Embora um Estado de maioria judaica tenha sido criado, em 1948 (e admitido na ONU em maio de 1949), o prometido Estado palestino não foi estabelecido.

Durante a guerra, em 1948, 750 mil palestinos fugiram ou foram expulsos pelas milícias judaicas, e centenas de aldeias palestinas foram destruídas. Refugiados palestinos que haviam fugido ou foram expulsos durante a guerra não tiveram o direito de retornar para as suas comunidades de origem, no que se tornou o Estado de Israel. Em sua maioria, esses refugiados foram forçados a viver em campos de refugiados em Cisjordânia, Gaza, Líbano, Jordânia, Síria e Egito desde então. Na atualidade, os palestinos no exílio somam mais de 5 milhões (ERAKAT, 2019).

Independência e Nakba (em árabe “catástrofe”) são as duas faces da mesma moeda. A guerra de 1948 marca o evento que os israelenses comemoram como a criação de seu Estado e que os palestinos comemoram como a perda de sua pátria, a Palestina. Por séculos, árabes e judeus viveram na Palestina em paz e harmonia como um só povo, até o estabelecimento do movimento sionista no final do século XIX e a chegada das primeiras ondas de imigração judaica para a Palestina. Esse foi o início do atrito e confrontos entre os dois lados. Os palestinos viram na imigração judaica uma ameaça à sua existência e às aspirações nacionais por um estado. Ninguém tinha o direito de esperar que os palestinos se tornassem sionistas e recebessem as ondas de imigrantes judeus. A Palestina não era “uma terra sem povo para um povo sem terra”.

FONTE: ABUZAYYAD, Ziad. Nakba and Independence. Palestine-Israel Journal, Jerusalem, v. 15, n. 2, 2008. Disponível em: https://pij.org/articles/1155/nakba-and-independence. Acesso em: 29 abr. 2021.

IMPORTANTE

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FIGURA 14 – NAKBA (CATÁSTROFE), REFUGIADOS PALESTINOS EXPULSOS DE SUAS TERRAS EM 1948

FONTE: <https://bit.ly/3FHrNhB>. Acesso em: 29 abr. 2021.

5.1 A GUERRA DOS SEIS DIAS (1967)

Em 1967, Israel invadiu Cisjordânia e Gaza e atacou Egito, Síria, Iraque e Jordânia. Em apenas alguns dias, Israel conseguiu ocupar as Colinas do Golã na Síria, a Faixa de Gaza, a Península do Sinai no Egito e a Cisjordânia – incluindo Jerusalém. Israel imediatamente anunciou que estava anexando Jerusalém Oriental, que era e continua sendo de maioria árabe e o local de muitos dos lugares mais sagrados do islã e do cristianismo. A ONU aprovou repetidamente resoluções confirmando a ilegalidade dessa anexação.

Desde 1967, Israel mantém uma ocupação militar da Cisjordânia e de Gaza, apesar de numerosas resoluções da ONU exigindo a retirada israelense. Da mesma forma, sucessivos governos israelenses de todos os níveis políticos encorajaram o “assentamento” de terras palestinas, uma medida universalmente considerada ilegal pelo direito internacional. Com sua estratégia de “assentamento”, Israel confisca terras palestinas nos territórios ocupados por “colonos”, exclusivamente judeus. No processo, os palestinos são deslocados de suas terras e privados de seu sustento. A transferência por uma potência ocupante de sua população civil para a área ocupada militarmente viola a Quarta Convenção de Genebra. Até o momento, Israel transferiu cerca de 600 mil colonos para Jerusalém Oriental e o resto da Cisjordânia.

O governo israelense também construiu uma rede de estradas para o uso de colonos exclusivamente judeus, estabeleceu amplas zonas “proibidas” ao redor dos “assentamentos” sob a jurisdição administrativa dos “colonos” e declarou grandes áreas da Cisjordânia para ser “zonas militares” ou “zonas de segurança”. Além disso, Israel construiu um muro maciço de 700 km que corta profundamente o território palestino, anexando, de fato, grandes blocos de território palestino ao lado “israelense” do muro. As ações de Israel resultaram em mais de 40% dos territórios palestinos fora dos limites para a vasta maioria destes e sob o controle de Israel (ERAKAT, 2019).

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O ano de 1948, na Palestina, possui significados distintos para israelenses e palestinos. Para os israelenses, marca a criação do estado de Israel e, para os palestinos, a Nakba, que, em árabe, significa “catástrofe”.

INTERESSANTE

A Guerra dos Seis Dias de 1967 exerceu um efeito significativo sobre a resistência palestina, pois foi quando os israelenses ocuparam a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Consequentemente, na impossibilidade de montar uma base de resistência local, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) se estabeleceu Jordânia, então destino de centenas de milhares de palestinos expulsos de suas terras de origem.

FIGURA 15 – GUERRA DOS SEIS DIAS, EM 1967

FONTE: <https://tinyurl.com/ahr9mv3h>. Acesso em: 29 abr. 2021.

No entanto, a presença palestina na Jordânia se transformou em um conflito com o exército jordaniano, que culminou, em 1970, com o chamado “Setembro Negro” e a expulsão, mais uma vez, dos palestinos para o Sul do Líbano. A insurgência palestina no Sul do Líbano atingiu seu pico no início dos anos 1970, quando o Líbano foi usado como base para lançar ataques ao Norte de Israel e campanhas de sequestro de aviões em todo o mundo, o que atraiu retaliação israelense. Durante a Guerra Civil Libanesa, militantes palestinos continuaram a lançar ataques contra Israel, enquanto lutavam contra oponentes dentro do Líbano.

Em 1978, um ataque palestino levou a invasão israelense, em grande escala, ao território libanês, conhecida como “Operação Litani”. No entanto, as forças israelenses retiraram-se rapidamente do Líbano e os ataques da resistência palestina ao território israelense recomeçaram. Em 1982, os israelenses invadem o Líbano, mais uma vez, na chamada “Operação Paz para a Galileia” e se envolvem na “Guerra Civil Libanesa”, que havia começado em 1975.

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Em território libanês, as forças palestinas e sírias combatem o exército israelense, que avança e conquista Beirute. Como resultado, a OLP foi evacuada para a Tunísia. No entanto, a intervenção israelense na guerra civil libanesa também resulta na formação de movimentos de resistência libanesa, principalmente entre a comunidade muçulmana xiita que habitava as terras transformadas em palco de combates e sucessivas invasões. Dessa maneira, aquelas populações se organizaram como força militar e passaram a combater as forças israelenses que, mesmo após a retirada da OLP do Líbano, continuavam a ocupar uma faixa do território libanês. Em consequência, uma campanha militar, de caráter assimétrico, liderada por organizações políticas, como a Amal (Esperança), e, partir de 1982, o Hezbollah (Partido de Deus), levou à retirada israelense, em 2000, do território libanês.

FIGURA 16 – CENA APÓS A EXPLOSÃO DE UM CARRO-BOMBA, EM 1986, EM BEIRUTE DURANTE A GUERRA CIVIL LIBANESA

FONTE: <https://bit.ly/3DFdOr5>. Acesso em: 28 abr. 2021.

5.2 A PRIMEIRA INTIFADA PALESTINA (1987-1993)

Em 1987, surgiu o primeiro levante (Primeira Intifada) palestino em resposta à repressão e à recusa de uma solução pacífica da ocupação israelense. Os protestos foram contra a ocupação israelense da Cisjordânia e Gaza, iniciada, em 1967, após a Guerra dos Seis Dias. A Intifada durou de dezembro de 1987 até a Conferência de Madrid, em 1991, embora alguns datem sua conclusão em 1993, com a assinatura dos Acordos de Oslo.

A Intifada caracterizou-se por protestos, desobediência civil, pichações, barricadas e lançamento de pedras e coquetéis molotov. Além disso, a população palestina recorreu a greves e boicotes contra a administração israelense na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. No primeiro ano da Intifada, as forças israelenses mataram 311 palestinos, dos quais 53 eram menores de 17 anos. Ao longo de seis anos, as forças israelenses mataram entre 1.162 e 1.204 palestinos e 100 civis e 60 soldados israelenses foram mortos.

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A Primeira Intifada foi reconhecida como uma reação palestina espontânea, coesa e independente de sua liderança ou da assistência de países árabes vizinhos, além de quebrar a imagem de Jerusalém como uma cidade israelense unida. Houve uma cobertura internacional sem precedentes, e a resposta israelense foi criticada nos meios de comunicação e fóruns internacionais.

O sucesso da Primeira Intifada deu a Arafat e seus seguidores a confiança necessária para moderar seu programa político: na reunião do Conselho Nacional da Palestina, em Argel, em meados de novembro de 1988, Arafat obteve a maioria para a decisão histórica de reconhecer a legitimidade de Israel; aceitar todas as resoluções relevantes da ONU, desde 29 de novembro de 1947, e adotar o princípio de uma solução de dois Estados.

FIGURA 17 – PRIMEIRA INTIFADA

FONTE: <https://tinyurl.com/tyw9yfvs>. Acesso em: 28 abr. 2021.

5.3 A SEGUNDA INTIFADA (2000-2005)

A Segunda Intifada foi desencadeada como consequência do fracasso, em 2000, das negociações de Camp David para chegar a um acordo final sobre o processo de paz israelense-palestino. A cauda imediata da violência foi a visita provocativa do então primeiro-ministro, Ariel Sharon, ao Haram esh-Sharif (também conhecido como a Esplanada das Mesquitas), onde se localiza a mesquita de Al Alqsa, entre outros lugares sagrados. A visita, como previsto, gerou protestos e tumultos, que a polícia israelense reprimiu com balas de borracha e gás lacrimogêneo.

A Segunda Intifada resultou em número elevado de vítimas, entre civis e combatentes. Os israelenses empregaram força militar, incluindo tanques, força aérea e assassinatos seletivos, enquanto os palestinos realizaram ataques suicidas, lançamento de pedras, tiros e ataques com foguetes. O número de mortos, incluindo combatentes e civis, é estimado em cerca de 3.000 palestinos, 1.000 israelenses e 64 estrangeiros.

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Em fevereiro de 2005, com o fim da Segunda Intifada, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, e o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, concordaram que todas as facções palestinas parariam todos os atos de violência contra todos os israelenses em todos os lugares, enquanto Israel cessaria todas as suas atividades militares contra todos os palestinos. Eles também reafirmaram seu compromisso com o roteiro para o processo de paz. Sharon também concordou em libertar 900 prisioneiros palestinos dos 7.500 detidos na época e em se retirar das cidades da Cisjordânia que haviam sido reocupadas durante a intifada.

FIGURA 18 – PERDAS TERRITORIAIS PALESTINAS (1947-2005)

FONTE: <https://tinyurl.com/4s5wzc4t>. Acesso em: 28 abr. 2021.

Em 2006, o Hamas ganhou com uma margem de 44% nas eleições parlamentares palestinas. Israel respondeu que iniciaria sanções econômicas a menos que o Hamas aceitasse acordos israelenses-palestinos anteriores, renegasse a violência e reconhecesse o direito de Israel de existir, o que o Hamas rejeitou. Depois que a luta política interna palestina entre o Fatah e o Hamas estourou na Batalha de Gaza (2007), o Hamas assumiu o controle total da área. Em 2007, Israel impôs um bloqueio naval na Faixa de Gaza, e a cooperação com o Egito permitiu um bloqueio terrestre da fronteira egípcia.

As tensões entre Israel e o Hamas aumentaram até o final de 2008, quando Israel lançou a Operação Chumbo Fundido, em Gaza, resultando em milhares de vítimas civis e bilhões de dólares em danos. Em fevereiro de 2009, foi assinado um cessar-fogo com mediação internacional, embora a ocupação e pequenas e esporádicas erupções de violência continuassem.

Em 2011, uma tentativa da Autoridade Palestina de se tornar membro da ONU como um Estado totalmente soberano falhou. Em Gaza controlada pelo Hamas, ataques esporádicos de foguetes contra Israel e ataques aéreos israelenses ainda ocorrem. Em novembro de 2012, a representação da Palestina na ONU foi elevada a um Estado observador não membro, e seu título de missão foi alterado de “Palestina (representada pela OLP)” para “Estado da Palestina”.

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TÓPICO 1 — OS CONFLITOS PÓS-COLONIAIS (PALESTINA E CAXEMIRA) E NA GUERRA FRIA E NA PÓS-GUERRA FRIA (COREIA E BALCÃS)

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5.4 GUERRA DO YOM KIPPUR (1973)

Em 6 de outubro de 1973, na esperança de reconquistar o território perdido para Israel durante a terceira guerra árabe-israelense, em 1967, as forças egípcias e sírias lançaram um ataque coordenado contra Israel no feriado judeu do Yom Kippur. As forças egípcias, diante das surpresas dos israelenses, invadiram a Península do Sinai, ocupada por Israel, em 1967, enquanto as forças sírias tentavam expulsar as tropas israelenses, que também ocupavam as Colinas de Golã. Israel contra-atacou e recapturou as Colinas de Golã. Um cessar-fogo entrou em vigor em 25 de outubro de 1973.

A vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias de 1967 resultou na ocupação de vastos territórios nos países árabes vizinhos. O Egito perdeu a Península do Sinai e a Faixa de Gaza, a Jordânia perdeu Cisjordânia e Jerusalém Oriental e a Síria perdeu as estratégicas Colinas de Golã.

Em 1970, Anwar el-Sadat se tornou presidente do Egito, líder de uma nação economicamente em crise e moralmente abalada pela derrota em 1967, então, concebeu um plano para recuperar o Sinai, recuperar o prestígio do Egito e fazer a paz em condições mais vantajosas. Em 1972, o novo governo egípcio expulsou 20 mil conselheiros soviéticos do Egito e abriu novos canais diplomáticos com os Estados Unidos, que, na condição de principal aliado de Israel, seria um mediador essencial em futuras negociações de paz. Para tanto, Sadat formou uma aliança com a Síria, que também tinha planos de retomar territórios perdidos, em 1967, na coordenação de um ataque conjunto.

Em 6 de outubro de 1973, durante o feriado do Yom Kippur (ou Dia da Expiação), os exércitos do Egito e da Síria atacam e avançam, principalmente no front egípcio no Sinai. A ofensiva árabe, no lado egípcio, causou baixas consideráveis aos israelenses, que, em seguida, com a remessa maciça de equipamentos dos Estados Unidos, equilibrou as ações, nas duas frentes e passou a ofensiva. Assim, em 25 de outubro, um cessar-fogo foi aceito entre egípcios e israelenses e garantido pelas Nações Unidas.

FIGURA 19 – TROPAS EGÍPCIAS ATRAVESSAM O CANAL DE SUEZ

FONTE: <https://tinyurl.com/j8hhe9k>. Acesso em: 29 abr. 2021.

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

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5.4.1 Guerra do Yom Kippur: consequências

A vitória de Israel veio à custa de pesadas baixas, e os israelenses criticaram a falta de preparação do governo. Em abril de 1974, a primeira-ministra do país, Golda Meir (1898-1978), deixou o cargo.

Embora no final o Egito tenha se limitado a ações defensivas, os sucessos egípcios iniciais aumentaram muito o prestígio de Sadat no Oriente Médio e deram-lhe a oportunidade de buscar a paz. Em 1974, foi assinado o primeiro de dois acordos de egípcios-israelenses, que previam o retorno de partes do Sinai ao Egito, e, em 1979, foi assinado um acordo de paz, em que o Egito devolvia totalmente a Península de Sinai, em 1982. Para a Síria, o súbito cessar-fogo egípcio-israelense resultou em perdas territoriais e na permanência dos israelenses nas Colinas de Golã pertencentes a Síria.

Em 15 de novembro de 1988, em Argel, Yasser Arafat, presidente da OLP, proclamou a criação do Estado da Palestina. Um ano após a assinatura dos Acordos de Oslo, em 1993, a Autoridade Nacional Palestina foi formada para governar as áreas na Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Posteriormente, em 2007, o Hamas foi eleito para governar Gaza, após a retirada israelense.

O Estado da Palestina foi reconhecido por 138 dos 193 membros da ONU e, desde 2012, tem o status de Estado observador não membro nas Nações Unidas. A Palestina é membro da Liga Árabe, da Organização de Cooperação Islâmica, do G77, do Comitê Olímpico Internacional e de outros organismos internacionais.

FIGURA 20 – PALESTINA NAS NAÇÕES UNIDAS

FONTE: <https://tinyurl.com/ut38bjju>. Acesso em: 28 abr. 2021.

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TÓPICO 1 — OS CONFLITOS PÓS-COLONIAIS (PALESTINA E CAXEMIRA) E NA GUERRA FRIA E NA PÓS-GUERRA FRIA (COREIA E BALCÃS)

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Os conflitos analisados neste tópico, com exceção da guerra na antiga Iugoslávia, são disputas ainda em curso e de difícil solução, pois as alternativas não podem ser implementadas por razões que seriam impossíveis de enumerar, além do que já foi descrito. Por certo, as abordagens e textos apresentados são considerados de relevância, e, portanto, “consenso” e “neutralidade” são conceitos abstratos idealizados e, quase, impossíveis de serem postos em prática, assim como também a crítica é parte integral no debate acadêmico.

No entanto, fica claro que tais conflitos perenes transcendem contextos geopolíticos específicos, como Guerra Fria, e se tornam de difícil solução, justamente por que são conflitos herdados ainda de fenômenos relacionados com colonialismo, imperialismo e hegemonia, quase absoluta do Ocidente, que resultam em um desequilíbrio de relações que alimenta uma combinação de eventos, cujas consequências atingiram proporções catastróficas para os povos envolvidos, em particular, e para a comunidade internacional, em geral.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• Os conflitos foram resultados do processo de descolonização e da Guerra Fria.

• A disputa entre a Índia e Paquistão se originou na partilha do subcontinente indiano com a partida dos ingleses.

• A rivalidade entre Paquistão e Índia é um dos conflitos mais potencialmente perigos no mundo contemporâneo devido à posse de armas nucleares pelos dois Estados envolvidos.

• Paquistão Índia travaram três guerras desde a independência e permanecem em constante conflito assimétrico na região disputada da Caxemira.

• O movimento sionista tem origem nas perseguições aos judeus europeus na Europa e em um contexto de nacionalismo étnico.

• Ao contrário de determinadas narrativas, o conflito na Palestina é político, e não religioso.

• A origem do conflito precisa ser entendida em um contexto contemporâneo de nacionalismo, xenofobia e imperialismo europeus.

• O período do Mandato Britânico na Palestina (1920-1948) é determinante para consolidar a imigração de judeus originários na Palestina.

• A Organizou das Nações Unidas, em 1947, recomendou a partilha da Palestina alocando 53% das terras para a criação de um Estado de maioria judaica e 47% para um Estado de maioria palestina.

• Em 1948, os sionistas declararam, de forma unilateral, a criação do Estado de Israel.

• Os estados árabes e Israel travaram quatro guerras (1948, 1956, 1967 e 1973).

• A resistência palestina se organizou nos territórios ocupados por Israel e nos países árabes vizinhos.

• Os palestinos nos territórios ocupados organizaram movimentos de resistência chamados “Intifada” (1987-1993 e 2000-2005).

• Em 1988, foi criado o Estado da Palestina reconhecido por 138 dos 193 países-membros das Nações Unidas.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 O conflito entre Paquistão e Índia tem origem no domínio britânico no subcontinente indiano e um dos focos de tensão mais perigosos no mundo contemporâneo, considerando-se que ambos os países possuem em seus arsenais armas nucleares. Sobre o conflito em questão, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Muhammad Ali Jinnah foi o líder da Liga Muçulmana que defendeu a ideia de criar um Estado separado para os muçulmanos na Índia.

( ) Jawaharlal Nehru, líder da maioria hindu, projetava um país unificado, construído em torno dos princípios do secularismo e da democracia liberal.

( ) A guerra indo-paquistanesa, em 1965, resultou na separação do Paquistão Oriental de sua porção Ocidental com a criação de Bangladesh.

( ) No equilíbrio de forças no sul da Ásia, a Índia se alinhou com a China e o Paquistão com a então União Soviética.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) F – V – V – F.b) ( ) V – V – F – F.c) ( ) F – F – V – V.d) ( ) F – F – F – V.

2 A Guerra da Coreia foi travada, na década de 1950, em um contexto dos estágios iniciais da Guerra Fria entre os Estados Unidos e União Soviética. Assim, a divisão da península coreana em norte e sul refletiam a polarização do mundo pós-Segunda Guerra Mundial. A justifica principal para intervenção norte-americana na Coreia se baseava na contenção do avanço comunista. Com base no que define a política dos Estados Unidos de combate ao comunismo no início da Guerra Fria, assinale a alternativa CORRETA.

a) ( ) Doutrina Eisenhower.b) ( ) Doutrina Monroe.c) ( ) Sistema de Breton Woods.d) ( ) Doutrina Truman.

3 A guerra na ex-Iugoslávia marcou o ressurgimento do etno-nacionalismo, na Europa, na região dos Balcãs no fim da Guerra Fria. A convivência imposta por um estado centralizado e autoritário durante a ditadura do líder comunista Josip Broz Tito se mostrou insustentável após sua morte. Considerando o conflito na ex-Iugoslávia, analise as sentenças a seguir:

AUTOATIVIDADE

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I- O conflito pode ser dividido em três fases distintas.II- Apesar da intervenção imediata e decisiva da Otan, o conflito se prolongou

pelo envolvimento militar dos países vizinhos.III- A hesitação da aliança ocidental em intervir, de forma decisiva, no conflito

empoderou o lado mais forte e belicoso dos grupos que compunham o mosaico étnico-sectário na ex-Iugoslávia.

IV- A ação internacional da Otan se tornou mais assertiva, após o cerco de Sarajevo, o que iria contribuir para o final da guerra.

Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I, II e IV estão corretas.b) ( ) As sentenças III e IV estão corretas.c) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.d) ( ) As sentenças I, III e IV estão corretas.

4 O conflito na Palestina, que se arrasta sem solução até os dias atuais, se inicia na transição do controle geopolítico daquelas regiões do Oriente Médio do Império Otomano para o Império Britânico, após a Primeira Guerra Mundial. Sobre a fase inicial da imigração de judeus europeus afiliados ao movimento sionistas, assinale a alternativa CORRETA.

a) ( ) A imigração de judeus europeus aumenta consideravelmente depois da Primeira Guerra Mundial.

b) ( ) A Declaração de Balfour (1917) marcou o início do apoio do Império Britânico para a implantação de um estado judeu na Palestina de acordo com a ideologia sionista.

c) ( ) O Império Otomano, ainda no final do século XIX, encorajou a imigração de judeus russos para a Palestina.

d) ( ) A Guerra dos Seis Dias (1967) provocou um novo êxodo das populações palestinas para os países árabes.

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UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Desde o início da Guerra Fria, a interação entre as grandes potências, Estados Unidos, China e União Soviética/Rússia, sempre desempenharam um papel predominante nas relações internacionais. Durante a maior parte da Guerra Fria, dois momentos se destacaram na relação entre esses três países: o período de alinhamento sino-soviético (até o final da década de 1950) e a aproximação histórica entre os Estados Unidos e a China, promovida no governo Nixon, em 1972. Em ambos, a lógica prevalente se caracterizou pela dinâmica triangular que sempre envolveu dois lados contra um. Na atualidade, a relação triangular Estados Unidos-Rússia-China continua sob a égide de um triângulo, no qual Rússia e China se reaproximaram para fazer frente aos Estados Unidos em uma competição estratégica.

No entanto, é importante notar que, embora certas características da competição estratégica contemporânea tenham alguma semelhança com as da Guerra Fria, na era de globalização, um confronto global a longo prazo entre Estados Unidos e Rússia-China ocorre em um quadro multipolar, no qual interesses complexos e entrelaçados entre as nações serão levados em consideração em quase todos os aspectos da competição estratégica.

Nessa ordem multipolar, apesar de mais uniformemente distribuída com a ascensão da União Europeia, Índia e Japão, entre outros, o poder continua fortemente concentrado nas mãos do chamado “triângulo”, do qual os Estados Unidos e a China comandam dois lados, com o terceiro sendo ocupado pela Rússia. Portanto, embora em termos econômicos e demográficos a Rússia não ocupe um lugar no mesmo patamar que Estados Unidos e China, seu arsenal nuclear e militar, em conjunto com uma política externa assertiva e presença global, garantem ao país um lugar de destaque no “triângulo”.

Assim, neste tópico, serão abordadas, em separado, as relações entre EUA e URSS/Rússia e Estados Unidos e China, cujas interações são fundamentais para o equilíbrio geopolítico do nosso tempo.

TÓPICO 2 —

RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

2 RELAÇÕES ENTRE ESTADOS UNIDOS E RÚSSIA

Em 1918, os Estados Unidos participaram da intervenção militar aliada contra os bolcheviques durante a Guerra Civil Russa. Em 1922, após a vitória dos comunistas e a formação da União Soviética (URSS), os Estados Unidos foram a última grande potência mundial a reconhecer formalmente o governo soviético. Assim, apenas em 1933, os Estados Unidos e a União Soviética estabeleceram relações diplomáticas (KANET, 2011).

Os bolcheviques (termo que, em russo, significa a “maioria”) eram uma facção marxista de extrema esquerda e revolucionária, fundada por Vladimir Lenin e Alexander Bogdanov, que se separou da facção menchevique (em russo: “minoria”) do Partido Trabalhista Social-Democrata Russo Marxista (POSDR). Depois de formar seu próprio partido, em 1912, os bolcheviques tomaram o poder, em novembro de 1917, durante a Revolução Russa, derrubando o Governo Provisório de Alexander Kerensky. Em seguida, tornaram-se o único partido governante na Rússia Soviética, posteriormente chamada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (União Soviética).

UNI

Durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a União Soviética foram aliados contra as potências do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, mas, em 1949, no início da Guerra Fria, os Estados Unidos, Canadá e várias nações da Europa Ocidental assinaram um tratado que criava a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) projetado para fornecer segurança coletiva contra a União Soviética (MANKOFF, 2011).

O primeiro tratado bilateral pós-Segunda Guerra Mundial entre os Estados Unidos-União Soviética foi uma convenção consular assinada, em 1964, em Moscou. Posteriormente, em 1975, a Ata Final de Helsinque foi assinada por vários países, incluindo a União Soviética e os Estados Unidos, e, embora não tenha um poder legal vinculativo de um tratado, efetivamente, significou o reconhecimento do Ocidente do domínio soviético na Europa Oriental e aceitação tácita da anexação soviética dos Estados do Báltico (Estônia, Letônia e Lituânia).

Nas décadas de 1970 a 1980, a União Soviética e os Estados Unidos assinaram uma série de tratados de controle de armas, como o Tratado de Mísseis Antibalísticos, em 1972, dois tratados de Limitação de Armas Estratégicas (SALT), o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, em 1987, e o Tratado de Redução de Armas Estratégicas foi concluído em julho de 1991 (OBERDORFER, 1998).

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TÓPICO 2 — RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA

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No final da década de 1980, as nações do Leste Europeu aproveitaram o relaxamento do controle soviético do primeiro-ministro soviético, Mikhail Gorbachev, e começaram a romper com o regime comunista. Em 1989, Gorbachev e o presidente dos Estados Unidos, George H. W. Bush, declararam o fim da Guerra Fria na Cúpula de Malta. Assim, desde 1991, os Estados Unidos e Rússia, os dois principais protagonistas da Guerra Fria, têm tido um relacionamento turbulento, que, apesar do fim da Guerra Fria, permanece no início do século XXI (PETERSON, 2017).

FIGURA 21 – OS PRESIDENTES NORTE-AMERICANOS RONALD REAGAN E GEORGE H. W. BUSH COM O LÍDER SOVIÉTICO MIKHAIL GORBACHEV EM NOVA IORQUE, EM 1988

FONTE: <https://tinyurl.com/ytte5k39>. Acesso em: 28 abr. 2021.

Atualmente, os Estados Unidos ainda são considerados, econômica e militarmente, a maior superpotência do mundo. A despeito da crise financeira global, em 2008, a pandemia de coronavírus, em 2020, entre outros problemas, a economia norte-americana é a maior e mais rica do mundo, ainda sendo a maior potência militar, com cerca de 1,2 milhão de militares servindo em tempo integral e 800 mil reservistas. O governo norte-americano gasta mais de 600 bilhões de dólares por ano em defesa, o que equivale a quase três vezes mais que o orçamento militar chinês, nove vezes mais que o russo e mais de oito vezes superior a todas as nações restantes juntas.

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

Os Estados Unidos permanecem como o principal membro da Otan, a qual, desde 1991, continua a operar e se expandir, mesmo após o fim da Guerra Fria. A Rússia, em contraste, foi significativamente enfraquecida pela dissolução da União Soviética e, apesar de continuar sendo uma potência regional com um arsenal nuclear e militares poderosos, perdeu seu status de superpotência global para os Estados Unidos e a China (KANET, 2011).

A Guerra Fria terminou com a dissolução da União Soviética em 1991. A União Soviética foi substituída por uma nova entidade chamada Comunidade de Estados Independentes (CEI), mas, ao contrário da União Soviética, a nova confederação não detinha poder formal sobre seus países membros. A CEI foi criada por 11 países-membros das ex-repúblicas soviéticas (Rússia, Armênia, Azerbaijão, Bielo-Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Moldávia, Tadjiquistão, Turcomenistão, Ucrânia e Uzbequistão). A Geórgia ingressou na CEI, em 1993, mas se retirou, assim como a Armênia e a Ucrânia.

A Rússia ainda é a nação-membro mais poderosa da CEI e, em muitos aspectos, seu líder de fato. Apesar da falta de poder coercitivo da organização, o governo russo tem sido frequentemente acusado de determinar a política da CEI unilateralmente ou de exercer pressão indevida sobre outros países-membros (PETERSON, 2017).

A dissolução da União Soviética, em 1991, combinada com as políticas russas repressivas, durante a década de 1990, deu origem a vários movimentos nacionalistas dentro do país. O mais importante desses movimentos separatistas teve origem na Chechênia, uma pequena região no norte do Cáucaso. Em 1991, os separatistas chechenos passaram uma década lutando pela separação da Rússia. A guerra foi travada em duas campanhas militares em grande escala (1994-1996 e 1999-2000), que custaram mais 100 mil vidas, incluindo cerca de 10 mil soldados russos.

A violência no conflito na Chechênia incluiu atos de terrorismo e massacres, mas as forças russas, derrotadas na primeira guerra, eventualmente ganharam o controle da Chechênia, com ajuda de grupos locais aliados que erradicaram os grupos separatistas, impondo um regime pró-Moscou (GERMAN, 2003).

FIGURA 22 – SEPARATISTA CHECHENA NA PRIMEIRA GUERRA RÚSSIA-CHECHÊNIA

FONTE: <https://tinyurl.com/hfr536m9>. Acesso em: 28 abr. 2021.

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TÓPICO 2 — RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA

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A Rússia também tem relações difíceis com a Ucrânia, cuja opinião pública se divide entre manter laços com Moscou ou forjar novos laços com o Ocidente, como a adesão à Otan e à União Europeia (UE). Em 2014, as tropas russas anexaram a península da Crimeia, uma província autônoma da Ucrânia, e instalaram um governo pró-russo. Os combates internos eclodiram no leste da Ucrânia e continuam até hoje, com o envolvimento clandestino de forças russas. Em julho de 2014, militares, sob comando russo, operando mísseis no leste da Ucrânia, abateram um avião civil, o voo 17 da Malaysia Airlines, matando 298 pessoas (SAKWA, 2016).

FIGURA 23 – TIRINHA SOBRE RÚSSIA, COMUNIDADE EUROPEIA E ESTADOS UNIDOS DISPUTANDO ESFERAS DE INFLUÊNCIA NA UCRÂNIA

FONTE: <https://tinyurl.com/2byev8kc>. Acesso em: 28 abr. 2021.

Na década de 1990, as relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a Rússia melhoraram. Em 1993, ambas as nações assinaram um tratado de controle de armas, os laços comerciais se estreitaram, mas, no final da década de 1990, as relações entre os países começaram a se deteriorar. Em 1997, a Otan ofereceu a adesão para Hungria, Polônia e República Tcheca. No entanto, a expansão da Otan na Europa Oriental foi vista como uma provocação à Rússia e aos seus interesses. Em 1999, as forças da Otan interviram na Guerra do Kosovo, bombardeando a Iugoslávia, uma ação que afetava os interesses da Rússia e foi realizada sem o apoio das ONU.

A eleição de Vladimir Putin, em 1999, e George W. Bush, em 2000, seguida pelos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, desencadeou um pivô mudanças nas relações entre russos e norte-americanos. Em dezembro de 2001, o governo norte-americano irritou o russo ao anunciar sua intenção de se retirar do Tratado de Mísseis Antibalísticos de 1972, um dos acordos de redução de armas mais significativos da Guerra Fria. Em 2007, os Estados Unidos irritaram ainda mais russos ao começarem a construção de um sistema de defesa antimísseis na

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

Polônia. Entretanto, as tensões diminuíram entre 2009 e 2012, sob as presidências de Barack Obama e Dmitry Medvedev, e, em abril de 2010, esses dois líderes negociaram e assinaram um novo tratado, reduzindo as armas nucleares estratégicas (SCHOEN; KAYLAN, 2015).

Atualmente, russos e norte-americanos se afastaram, devido a divergências sobre várias questões e políticas, como disputas contínuas sobre os sistemas de defesa e mísseis americanos na Polônia; conflito sobre a influência ou interferência do Ocidente e da Rússia na Ucrânia e na Geórgia; reformas antidemocráticas e abusos dos direitos humanos na Rússia; e, mais recentemente, a intervenção russa na guerra civil em curso na Síria.

Em 2016, o governo russo foi acusado de interferir ativamente nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, por meio de uma campanha de hacking na internet, propaganda e desinformação nas redes sociais. Alguns acreditam que a interferência russa na eleição contribuiu para a vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton, como uma possível “retribuição” pela observação de Clinton, em 2011, de que as eleições na Rússia “não foram livres nem justas” (STENT, 2015).

“Kompromat”, um jargão dos serviços de inteligência russo, é a prática de acumular informações sobre uma pessoa, as quais podem ser utilizadas depois para fazer pressão e chantagem sobre ela ou, simplesmente, destruir sua reputação. A notícia da existência de um relatório não corroborado, que sugere que o governo russo possui informações comprometedoras sobre o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, criou uma tormenta política e de informação no país.

FONTE: <https://bbc.in/3FRD931>. Acesso em: 29 ago. 2021.

CARTOON SOBRE DONALD TRUMP, O “PRESIDENTE MANCHURIANO”

INTERESSANTE

FONTE: <https://tinyurl.com/8b8k5hd6>. Acesso em: 28 abr. 2021.

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TÓPICO 2 — RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA

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O filme norte-americano The Manchurian Candidate, divulgado no Brasil como Sob domínio do mal, é uma narrativa ficcional de um ex-militar norte-americano que sofre uma lavagem cerebral na Primeira Guerra do Golfo e, mais tarde, como político, é usado por uma multinacional para se tornar presidente dos Estados Unidos.

FONTE: <https://www.adorocinema.com/filmes/filme-49774/>. Acesso em: 29 ago. 2021.

DICAS

O colapso nas relações Estados Unidos-Rússia levou alguns especialistas a afirmarem que os dois países entraram em uma nova Guerra Fria. Contudo, outros consideram esse termo impróprio para o contexto atual, uma vez que o conceito sugere semelhanças ou analogias com a geopolítica e as condições existentes entre 1945 e 1991, porém a situação atual é mais complexa e, segundo alguns especialistas, consideravelmente mais perigosa.

Pelo lado russo, Vladimir Putin, um ex-oficial da KGB (polícia secreta da União Soviética), é um nacionalista, cujas políticas buscam restaurar a influência russa na Europa Oriental e na Ásia Central. Putin vê os Estados Unidos como uma potência imperialista agressiva, que ameaça a Rússia militarmente, instalando mísseis na Polônia e expandindo a Otan. Por outro lado, os norte-americanos se envolveram na esfera de influência russa ao apoiarem ideias e políticas pró-ocidentais na Ucrânia e na Geórgia (SAKWA, 2016).

Nos Estados Unidos, na esfera governamental ou não, Vladimir Putin é visto como um governante autoritário e um autocrata traiçoeiro, que ainda usa métodos desleais da Guerra Fria, como armar movimentos separatistas, implementar campanhas de desinformação e “notícias falsas” e ordenar o assassinato de oponentes políticos.

Envenenamentos de opositores de Putin são marcados por mistério. Países ocidentais acusam o russo de envolvimento nas ações contra quem denuncia supostos crimes.

FONTE: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/09/envenenamentos-de-opositores-de-putin-sao-marcados-por-misterio.shtml> . Acesso em: 29 ago. 2021.

IMPORTANTE

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

A avaliação da situação atual também deve olhar além dos líderes individuais e das percepções de governo. Independentemente de sua liderança, tanto os Estados Unidos quanto a Rússia sofreram consideráveis mudanças econômicas e estruturais nas últimas décadas.

Os Estados Unidos passaram por um processo de desindustrialização significativo, eliminando ou reduzindo as indústrias de mão de obra intensiva, como a fabricação de automóveis, a construção naval e a mineração de carvão. A economia norte-americana, na atualidade, se concentra em varejo, tecnologia, comunicações, saúde, manufatura leve e indústrias de serviços. Não obstante, a economia dos Estados Unidos continua a ser a maior do mundo, com um produto interno bruto superior a US$ 18 trilhões, embora carregue uma dívida internar superior a US$ 21 trilhões. A Rússia, por sua vez, também se desindustrializou significativamente desde a Guerra Fria e agora depende de suas vastas reservas naturais de petróleo e gás para impulsionar sua economia.

Ambos os países enfrentam desafios significativos a médio e longo prazo. Entre esses desafios estão as mudanças populacionais, o envelhecimento da infraestrutura, o esgotamento dos recursos, uma dependência cada vez maior das importações e as crescentes desigualdades de riqueza e renda, além de enfrentarem condições externas, como o crescimento da China e os efeitos das mudanças climáticas. Todos esses fatores irão moldar as relações Estados Unidos-Rússia, para melhor ou para pior, à medida que avançamos no século XXI (STENT, 2015).

RÚSSIA E OS ESTADOS UNIDOS NO SÉCULO XXI

Nosso relacionamento com a Rússia deve estar entre os mais importantes. Ambos estão comprometidos com a redução das armas de destruição em massa e têm interesses imediatos no combate ao terrorismo. A Rússia fica na fronteira de cinco importantes repúblicas islâmicas e compartilha conosco preocupações em relação à estabilidade nos Bálcãs e na região do Mar Negro. Possui imensos recursos naturais fornece muitos de nossos aliados na Europa e oferece uma fonte alternativa ao precário abastecimento de petróleo do Golfo Pérsico. Também tem cientistas, físicos e matemáticos de classe mundial. Usamos sistemas de propulsão de foguetes russos para lançar missões espaciais e cooperar em missões espaciais tripuladas. A Rússia oferece um vasto mercado para produtos e serviços norte-americanos e ocidentais, uma oportunidade mais apreciada pelas empresas europeias do que pelas americanas. Além disso, pode ser uma ajuda considerável para nós e nossos aliados em locais tão díspares quanto Irã, Coreia do Norte e Oriente Médio. Em cada um desses casos, eles têm a perder pelo menos tanto quanto nós, senão mais, com a guerra nessas regiões. Devemos tratar os russos como parceiros, e não como subordinados.

FONTE: Adaptado de HART, G. A visão de um político: The Atlantic – Gary Hart: Russia and the United States in the 21st Century. Disponível em: https://www.theatlantic.com/international/archive/2011/12/russia-and-the-united-states-in-the-21st-century/249831/. Acesso em: 28 abr. 2021.

IMPORTANTE

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TÓPICO 2 — RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA

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3 RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-CHINA

A relação Estados Unidos-China está enfrentando seu maior desafio nos 40 anos de relações diplomáticas entre os dois países. O quadro atual pressagia uma piora constante das relações a longo prazo, com consequências ainda mais adversas para ambos os países. Norte-americanos e chineses passaram de um relacionamento, às vezes, contencioso, mas mutuamente benéfico, para um conjunto de interações mais antagônicas e potencialmente destrutivas. Forças, interesses e expectativas otimistas que sustentaram os laços bilaterais, por décadas, estão sendo substituídas por pessimismo, hostilidade e uma mentalidade de confronto em quase todas as áreas de engajamento (SWAINE, 2019).

3.1 QUATRO DÉCADAS DE RELACIONAMENTO E DESAFIOS

Desde 1979, o relacionamento Estados Unidos-China tem passado por mudanças positivas e negativas, mas, na maioria das vezes, as mudanças foram benéficas para ambos os países. Do lado positivo, as duas nações desenvolveram uma gama mutuamente produtiva de laços e interações em uma crescente variedade de áreas, desde comércio e investimento a intercâmbios sociais e culturais, bem como iniciativas comuns para lidar com ameaças globais, como mudanças climáticas, proliferação de armas de destruição de massa e combate a pandemias (SWAINE, 2019; CHANG, 2015).

Nas últimas quatro décadas, a China tornou-se mais integrada com o resto da comunidade internacional, mais observador quanto a leis, normas e procedimentos internacionais e mais aberto a um nível muito maior de influência social, econômica e política. Para os especialistas em história das relações Estados Unidos-China, antes e depois da normalização, simplesmente não há dúvida de que, apesar dos recentes reveses, o governo chinês fez enormes avanços, em grande parte como resultado de sua abertura para o exterior e da adoção do desenvolvimento econômico baseado no mercado. Esses avanços introduziram padrões de vida elevados, melhor infraestrutura social, maior liberdade para viajar e expressar uma variedade de pontos de vista e mais abertura para influências estrangeiras de todos os tipos. Em muitos intervalos ao longo do caminho, entendimentos entre Washington e Pequim propiciaram ímpeto para esses ganhos chineses (SWAINE, 2019; CHANG, 2015).

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

MORRE CHINÊS QUE CRIOU “DIPLOMACIA DO PINGUE-PONGUE”

O jogador de tênis de mesa Zhuang Zedong, que teve papel instrumental na chamada “Diplomacia do pingue-pongue” – que levou a um abrandamento das tensões entre Estados Unidos e China nos anos 1970 –, morreu aos 73 anos.

Em 1971, Zhuang presenteou o jogador americano Glenn Cowan com um retrato pintado em seda, dando início a evento que levaram a equipe americana a fazer uma turnê pela China no mesmo ano. Em 1972, Richard Nixon se tornou o primeiro presidente norte-americano a visitar a China comunista. O evento abriu a China para o resto do mundo e mudou o equilíbrio de poder na Guerra Fria. Nixon chamou sua visita de “a semana que mudou o mundo”. Os dois países normalizaram suas relações diplomáticas em 1979.

FONTE: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/02/130210_china_jogador_tenis_mesa_cc>. Acesso em: 28 abr. 2021.

ESTADOS UNIDOS/CHINA: DIPLOMACIA DO PING-PONG

INTERESSANTE

FONTE: <https://tinyurl.com/ub4s2tjk>. Acesso em: 28 abr. 2021.

Recentemente, no governo de Donald Trump, afirmava-se, equivocada-mente, que o progresso da China nos últimos 40 anos ocorreu à custa dos Estados Unidos. Ao contrário, esses avanços beneficiaram de maneira tangível os Estados Unidos e muitos outros países. O desenvolvimento impulsionado por reformas na China contribuiu substancialmente para o crescimento global geral, principal-mente durante recessões como a recessão de 2008-2010, quando a economia dos Estados Unidos estava em apuros (SWAINE, 2019; BLANCHARD; SHEN, 2017).

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FIGURA 25 – GUERRA COMERCIAL: TRUMP VERSUS XI, CARA A CARA, NA REUNIÃO DO G20

FONTE: <https://tinyurl.com/khjv4vms>. Acesso em: 28 abr. 2021.

Comerciantes e investidores americanos, que fizeram negócios com a China, obtiveram lucros significativos para seus acionistas nos Estados Unidos e ao redor do mundo. Entretanto, depois que o governo de Donald Trump decidiu se retirar do Acordo do Clima de Paris, a cooperação entre chineses e norte-americanos para combater as mudanças climáticas cessou. Além disso, embora os chineses tenham obtido tecnologia norte-americana de forma ilegal, em várias áreas, os investimentos chineses e intercâmbio tecnológico entre os dois países contribuíram para o desenvolvimento de áreas de inovação como o Vale do Silício, na Califórnia (SWAINE, 2019; BLANCHARD; SHEN, 2017).

Os benefícios do lado norte-americano no relacionamento como os chineses também incluíram a obtenção de produtos com custo reduzidos projetados, montados ou fabricados na China de qualidade cada vez melhor. E Pequim foi, nos últimos anos, um aliado dos Estados Unidos política, mas nem sempre atuando como os norte-americanos desejavam, no trato de problemas globais como terrorismo, proliferação de armas de destruição em massa, assistência humanitária/alívio em desastres e pandemias (SWAINE, 2019).

Antes de 1989, por quase duas décadas, os Estados Unidos se beneficiaram da estreita cooperação militar e de segurança com a China dirigida a seu adversário comum: a União Soviética. Esse alinhamento estratégico direcionado contra os soviéticos foi uma das principais razões para estabelecimento relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a China, junto ao desejo dos norte-americanos de integrar os chineses à comunidade internacional e de explorar o enorme mercado potencial do país (SWAINE, 2019; FOOT; WALTER, 2010).

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

Os cinco momentos-chave nas relações entre a China e a ex-União Soviética:

• As relações sino-soviéticas começaram com a Revolução Russa de 1917 e a formação da União Soviética que, a partir de então, deu apoio ao jovem Partido Comunista Chinês.

• No final de 1949, o líder chinês Mao Tse-tung visitou Stalin em Moscou. Apesar de Mao Tse-tung não se sentir considerado um parceiro igual por Stalin, os dois líderes assinaram um importante tratado e aliança militar.

• Em público, a propaganda do Partido Comunista Chinês saudava Stalin como um líder visionário do socialismo mundial, mas, em particular, Mao Tse-tung se sentiu traído pela falta de apoio de Stalin na Guerra da Coreia.

• Em 1956, Nikita Khrushchev, o novo líder soviético, denunciou a brutalidade ocorrida sob a liderança de Stalin. Essa condenação de Stalin colocou Mao Tse-tung em uma posição incômoda e forçou o Partido Comunista Chinês a reavaliar sua posição sobre Stalin.

• As relações sino-soviéticas continuaram a piorar a partir de 1957, impulsionadas por divisões ideológicas, diferentes atitudes em relação ao Ocidente, comentários provocativos e hostis, negociações fracassadas entre Mao Tse-tung e Nikita Khrushchev e disputas de fronteira que levaram a um breve conflito em 1969.

FONTE: <https://tinyurl.com/ymjapzay>. Acesso em: 28 abr. 2021.

TROPAS SOVIÉTICAS E CHINESAS SE ENFRENTAM, EM 1969, NA FRONTEIRA ENTRE OS DOIS PAÍSES COMUNISTAS

DICAS

FONTE: <https://biteproject.com/gladys-aylward/>. Acesso em: 28 abr. 2021.

Nenhum dos resultados positivos para os Estados Unidos e no mundo teria ocorrido se os norte-americanos tivessem mantido uma postura hostil em relação aos chineses, iniciada com a criação, em 1949, da República Popular da China e, que assim permaneceu, nas duas décadas seguintes. Nem teriam ocorrido se os Estados Unidos tivessem limitado sua abertura diplomática nas décadas de 1970 e 1980 (SWAINE, 2019).

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Do lado negativo, uma série de desafios e contratempos também acom-panharam os avanços. Desde que os dois lados estabeleceram relações diplomá-ticas plenas em 1979, China e Estados Unidos divergiram quanto ao tratamento de questões críticas, como consequência de seus sistemas políticos diferentes, do legado de hostilidade e conflito resultante da Guerra da Coreia e da Guerra Fria e de suas culturas, crenças políticas e sociais contrastantes. Essas divergências de política incluíam o tratamento de disputas voláteis sobre a soberania regional e questões de segurança, como a disputa entre a China e Taiwan, reivindicações marítimas polêmicas ao longo da periferia da China e da Península Coreana. As discussões também se estendiam a disputas sobre reciprocidade e justiça no co-mércio e investimento, cibernética e outras formas de espionagem, práticas de direitos humanos dentro e fora da China e outras leis internacionais e normas globais (SWAINE, 2019; CHANG, 2015).

Muitas dessas diferenças existem desde 1949. Outras surgiram ou ganha-ram maior aceitação com o desdobramento da normalização e outras surgiram no início dos anos 2000, depois que o desenvolvimento da China e o impacto na Ásia e no mundo alcançaram maiores proporções. Em sua maior parte, no entanto, até anos recentes, essas diferenças, embora gerassem reduções temporárias significa-tivas no relacionamento (geralmente após ações perturbadoras ou inesperadas, como o massacre da Praça Celestial em 1989), não alteraram fundamentalmente as bases estratégicas, econômicas e interesses políticos de ambos os países em manter relações viáveis e produtivas (SWAINE, 2019; GARSON, 1994).

Em meados de abril de 1989, dezenas de milhares de estudantes, trabalhadores e intelectuais começaram em Pequim uma série de protestos pacíficos, que se espalharam para outras cidades chinesas, dando lugar à história do chamado Movimento Pró-democracia de 1989. Estudantes carregavam um cartaz em que se lia “Dê-me a democracia ou me dê a morte”, durante uma manifestação na Praça da Paz Celestial em Pequim (China), em 14 de maio de 1989. No fundo, a entrada da Cidade Proibida com um retrato do falecido presidente Mao. Na noite de 3 a 4 de junho, os tanques do Exército Popular de Libertação (EPL) entraram nas ruas de Pequim com uma ordem brusca: expulsar a Praça Tiananmen dos milhares de manifestantes que a ocuparam antes das 6 da manhã. De qualquer maneira, os soldados abriram caminho para a praça com tiros, e centenas de pessoas – mais de mil, segundo algumas fontes – morreram sob as balas do Exército e foram esmagadas pelos tanques de guerra nas ruas que levam a Tiananmen.

FONTE: <https://tinyurl.com/33e9bwpu>. Acesso em: 28 abr. 2021.

IMPORTANTE

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

UM MANIFESTANTE ENFRENTA OS TANQUES DAS FORÇAS MILITARES NA AVENIDA DA PAZ ETERNA EM PEQUIM, EM 5 DE JUNHO DE 1989

FONTE: <https://tinyurl.com/yzvnywnv>. Acesso em: 28 abr. 2021.

No século XXI, tornou-se claro, diante dos desafios, o relacionamento Es-tados Unidos-China incluiria níveis sem precedentes de interdependência, resul-tantes da globalização acelerada das trocas econômicas, mudanças tecnológicas e sociais e do surgimento de ameaças como mudança climática, degradação am-biental, pandemias globais, terrorismo e crime transnacional. De forma análoga, tornou-se claro que os Estados Unidos e a China não poderiam lidar tais proble-mas sozinhos ou mesmo bilateralmente (SWAINE, 2019). No entanto, a gestão desses problemas exigiria cooperação internacional com outros países, com capa-cidades e recursos consideráveis (FENBY; MCARVER, 2019).

Entretanto, a cooperação Estados Unidos-China na primeira década do século XXI foi afetada por três conjuntos de tendências negativas, tanto domésticas quanto internacionais. A primeira tendência surgiu nas décadas de 1990 e 2000 e produziu dois resultados negativos graves: danos graves à reputação de Pequim no Ocidente, que minou as expectativas de reformas e abertura contínuas da China, e um aprofundamento das suspeitas chinesas em relação aos Estados Unidos e a outras democracias (SWAINE, 2019).

A primeira crise se originou da resposta chinesa a três grandes desafios: o colapso dos Estados comunistas e autoritários, causado, em parte, pela explosão de formas rápidas de comunicação baseadas na internet com sociedades mais livres; a corrupção e a desordem socioeconômica na China nos anos 2000, em grande parte como resultado de décadas de rápido crescimento econômico liderado pelo mercado e do fracasso em desenvolver um sistema jurídico eficaz; e formas mais perigosas de terrorismo doméstico e agitação, ocorrendo principalmente nas áreas de minorias étnicas do Tibete e Xinjiang (SWAINE, 2019; SUETTINGER, 2003).

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Essa tripla ameaça ao governo chinês criou um clima de insegurança dos líderes da China estimulando esforços para purgar elementos corruptos, fortalecer o controle geral do partido comunista e aumentar o papel econômico do Estado. Tais mudanças se intensificaram com a ascensão ao poder, em 2013, do novo Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping. Essas ameaças fizeram com que Xi Jinping fortalecesse sua posição dentro do partido, minando a evolução gradual do sistema político chinês em direção a um padrão de governo mais previsível, coletivo e institucionalizado.

Como resultado das ações do governo, a imagem da China entre os Estados democráticos, já prejudicada, em 1989, pelo Massacre da Praça Celestial, piorou ainda mais, assim como a confiança do Ocidente no compromisso da China em buscar o crescimento contínuo por meio de maior abertura, práticas comerciais e apoio aos direitos humanos. Pelo lado chinês, em meados da década de 1990, a liderança do partido comunista havia concluído que os Estados Unidos e outras na-ções ocidentais estariam tentando minar o sistema político chinês como teriam feito com outros países socialistas. Essas suspeitas foram ampliadas pelo ressentimento enraizado entre os chineses em relação ao Ocidente como resultado do chamado “Século de Humilhação” da China (SWAINE, 2019; SUETTINGER, 2003).

O “Século da Humilhação” é o termo usado na China para descrever o período de intervenção e subjugação do Império chinês e da República da China pelas potências ocidentais Rússia e Japão, entre 1839 e 1949.

O “SÉCULO DA HUMILHAÇÃO” – AS POTÊNCIAS OCIDENTAIS FAZENDO PLANOS PARA A DIVISÃO DA CHINA EM 1899: ESTADOS UNIDOS, ALEMANHA, ITÁLIA, GRÃ-

BRETANHA, FRANÇA, RÚSSIA E ÁUSTRIA

IMPORTANTE

FONTE: <https://tinyurl.com/4zpsrmy6>. Acesso em: 28 abr. 2021.

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236

UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

Um segundo conjunto de tendências surgiu na década de 2000, como consequência de problemas ocorridos na esfera doméstica dos Estados Unidos e no Ocidente. Particularmente, a recessão global de 2008 e a polarização política e crise econômica nos Estados Unidos aumentaram as suspeitas mútuas e impactaram na relação entre a China e o Ocidente (SWAINE, 2019).

Entre essas tendências negativas, destaca-se a percepção precoce de alguns líderes chineses de que os Estados Unidos haviam entrado em um período sistêmico de declínio, que sua capacidade de desafiar ou “conter” a ascensão da China diminuiria significativamente. Assim, o modelo norte-americano de democracia pluralista e de crescimento de uma economia de mercado iria gradualmente perder seu apelo (SWAINE, 2019; STEINBERG; O’HANLON, 2014).

Tal percepção encorajou a liderança chinesa a buscar uma política internacional mais assertiva na defesa de seus interesses e, consequentemente, se chocar com os interesses norte-americanos. Essa abordagem eclipsou a política internacional anterior da era de Deng Xiaoping, em que a China evitava o confronto aberto com os Estados Unidos e o Ocidente (SWAINE, 2019).

No entanto, uma tendência mais preocupante surgiu, na década de 2010, com a crescente imigração legal ou ilegal para os Estados Unidos e outros países ocidentais. Isso, combinado com agravamento dos problemas econômicos e sociais, tornou-se caudatário de formas chauvinistas de nacionalismo hostil à China e a outros países (SWAINE, 2019). De acordo com a linha de pensamento hipernacionalista, atualmente tão proeminente no governo norte-americano até a eleição do presidente Joe Biden, a globalização dos sistemas econômicos e sociais, manifestada pelo impacto econômico conspícuo da China na vida diária dos norte-americanos, está na raiz da crescente desigualdade econômica doméstica, nas perdas de empregos e na injustiça social, que enfraqueceu a soberania nacional e ameaçou a identidade cultural (SWAINE, 2019; MASTANDUNO, 2019).

Um terceiro fator importante que contribui para a dinâmica negativa nas relações Estados Unidos-China é o crescimento muito rápido da China. Nos últimos 18 anos, a China se tornou a maior potência comercial do mundo, ultrapassando a economia japonesa, e, consequentemente, a segunda maior potência econômica geral. Além disso, a China se transformou em uma importante fonte de inovação nos principais setores de alta tecnologia, acumulou enormes reservas em moeda estrangeira e converteu suas forças armadas de uma força defensiva em uma máquina militar sofisticada, capaz de operar em outras áreas do globo (SWAINE, 2019).

Outro desdobramento da estratégia chinesa é o uso de seus vastos recursos econômicos para criar uma extensa rede de infraestrutura interligando a China à Europa e à África, por meio de rotas terrestres e marítimas, conhecida como “Nova Rota da Seda”. Também apoia ou lidera uma variedade de outras iniciativas multilaterais e bilaterais econômicas e de segurança – como novos bancos de investimento, associações econômicas asiáticas e parcerias estratégicas com amigos e adversários dos Estados Unidos –, que podem moldar significativamente

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os contornos do sistema internacional em novas direções. Além disso, como visto, a China avança mais assertivamente, por meios econômicos, políticos e militares, suas reivindicações de áreas disputadas ao longo de sua periferia marítima do Nordeste ao Sudeste Asiático, alarmando, assim, muitos Estados próximos (SWAINE, 2019; FENBY; MCARVER, 2019).

FIGURA 26 – A NOVA ROTA DA SEDA

FONTE: <https://tinyurl.com/yh7nsmbp>. Acesso em: 28 abr. 2021.

A “Nova Rota da Seda” consiste na ideia de uma série de investimentos, sobretudo nas áreas de transporte e infraestrutura. Esses investimentos deverão ser tanto terrestres (Cinturão), conectando a Europa, o Oriente Médio, a Ásia e a África – regiões de extrema importância geopolítica –, quanto marítimos (rota), passando pelo Oceano Pacífico, atravessando o Oceano Índico e alcançando o mar Mediterrâneo.

FONTE: <https://tinyurl.com/326xueu8>. Acesso em: 28 abr. 2021.

IMPORTANTE

Por outro lado, as críticas ao modelo chinês não remetem aos bilhões de dólares gastos em pesquisa e desenvolvimento legítimos, mas às alegações de entidades chinesas em espionagem cibernética, roubo de propriedades intelectuais, arranjos contratuais coercitivos e outros esforços dissimulados para obter tecnologias de ponta. Tais acusações, porém, não justificam o rótulo de “predador econômico” que certos setores norte-americanos tentam aplicar aos chineses. Entretanto, essas atividades, em conjunto com o protecionismo desfrutado pelas indústrias chinesas, agravaram significativamente as relações com os Estados Unidos (SWAINE, 2019).

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Como resultado de todas as mudanças negativas descritas, a lógica estratégica comum (e em algumas áreas crescendo), os incentivos econômicos e os laços sociais, que há muito ancoraram a relação Estados Unidos-China no passado, estão hoje se desintegrando rapidamente sob uma onda de crescimento suspeita mútua, interpretações errôneas, hipóteses de pior caso sobre os motivos e cálculos de uma política de polarização (SWAINE, 2019; ZHANG, 2012).

3.2 OLHANDO PARA O FUTURO: A POSSIBILIDADE DE UMA NOVA GUERRA FRIA

Em meio a uma perigosa espiral descendente, as relações entre China e Estados Unidos tendem a se concentrar na pressão militar e outros meios coercitivos para sinalizar firmeza nas resoluções de ambos os países. Dessa maneira, aumentam os desafios, reais e imaginários, e o potencial para crises perigosas. O perigo de tais crises é mais evidente no Pacífico Ocidental, onde o crescente poderio militar e econômico da China e a presença de vários pontos voláteis de contenção entre as duas potências (da Coreia e Taiwan até o Mar da China Meridional) podem resultar em situações potencialmente perigosas (SWAINE, 2019).

FIGURA 27 – DISPUTA PELO MAR DA CHINA MERIDIONAL; EM DESTAQUE, A ÁREA RECLAMADA PELA CHINA

FONTE: <https://tinyurl.com/2s38cpsx>. Acesso em: 28 abr. 2021.

Durante a Guerra Fria, a União Soviética e os Estados Unidos eram separados econômica, cultural e socialmente. Ademais, um número reduzido de países dependia da União Soviética para prosperidade e estabilidade. Na atualidade, ao contrário, a China exerce uma influência considerável na Ásia e no resto do mundo. Seus avanços econômicos e tecnológicos estão fortemente interligados com muitas nações no Ocidente; além disso, suas forças armadas representam um desafio cada vez mais perigoso para a domínio militar dos Estados Unidos na Ásia (SWAINE, 2019).

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Os enormes riscos e perigos potenciais inerentes à situação atual são agravados pelo fato de que os Estados Unidos estão mais inseguros, menos confiantes, mais divididos internamente e mais dependentes do mundo agora do que eram durante o auge da Guerra Fria. Como resultado, em uma nova Guerra Fria, uma China mais forte teria mais probabilidade de superestimar sua capacidade de manobrar e pressionar os Estados Unidos. Da mesma forma, um Estados Unidos mais inseguro, mas ainda forte, poderia se mostrar mais suscetível a reações exageradas do que em face das ameaças soviéticas da Guerra Fria (SWAINE, 2019).

Em conjunto, esses fatores indicam que os esforços de um ou ambos os lados para isolar ou minar o outro no espírito da Guerra Fria, da década de 1950 e início da década de1960, podem gerar situações perigosas para ambos os países e outras nações. Por esse motivo, muitas outras capitais resistiriam às tentativas de norte-americanos ou chineses de obrigá-los a escolher um lado em uma luta sem vencedores. A ruptura resultante prejudicaria gravemente a economia mundial, paralisaria a cooperação global e regional em muitas questões e impeliria algumas nações a dedicarem mais recursos à defesa militar, em vez do desenvolvimento econômico. O resultado seria o aumento da probabilidade de instabilidade e crises domésticas, regionais e globais (YAN, 2009).

FIGURA 28 – SÉCULO XX: O SÉCULO DA CHINA

FONTE: <https://tinyurl.com/3p82k24r>. Acesso em: 20 abr. 2021.

4 TERRORISMO GLOBAL

Definir “terrorismo” de forma universal é uma tarefa complexa, devido à variedade de métodos e ações que poderiam ser descritos como atos terroristas. Por isso, John Witbeck, especialista em Direito Internacional, expande sua definição, ou mesmo a indefinição de terrorismo, ao afirmar que existe um

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elemento de intenção de manter o termo amplo e desprovido de significado, porque a única definição viável de terrorismo seria totalmente subjetiva. Entretanto, deixar o conceito indefinido não ajudaria a resolver a complexidade do problema (WEINBERG, 2004).

A palavra “terror” surgiu na língua inglesa para descrever as ações dos revolucionários franceses contra seus inimigos, entre 1793 e 1794, principalmente se referindo à repressão e às execuções. Desse modo, terrorismo foi definido como uma forma de repressão usada em um momento da Revolução Francesa com o objetivo de aterrorizar opositores (CHAILAND; BLIN, 2016).

Assim como o “terror” e a “intimidação”, existem outros fatores considerados cruciais para caracterizar as ações realizadas por um grupo ou um indivíduo como terrorismo, como violência, danos e ameaças, violência aleatória ou indiscriminada, motivação política e ataques a civis e tentativas deliberadas de divulgar os atos de terror. Levando em consideração essas definições, terrorismo pode ser definido como um ato ou conjunto de ações envolvendo a ameaça ou o uso de força e violência com o objetivo de alcançar resultados predeterminados.

Durante muito tempo, os governos ocidentais relutaram em definir o termo, por isso muitos países decidiram seguir as convenções das Nações Unidas que definiam as ameaças terroristas e proibiam atividades associadas ao terrorismo, que incluíam, embora não limitados, a sequestro, tomada de reféns e assassinato. No entanto, tudo mudou depois dos eventos de 11 de setembro de 2001. No período após os ataques nos Estados Unidos, vários países buscaram atualizar ou criar uma legislação antiterrorismo, com definições legais específicas e elaboradas (CARVER, 2016).

Um exemplo disso é a Lei Antiterrorismo do Canadá, em 2001, que, pela primeira vez na história do país, definiu legalmente o terrorismo como uma ação separada de crimes ordinários. Dessa maneira, terrorismo foi definido como:

Ato cometido no todo ou em parte para uma finalidade, objetivo ou causa política, religiosa ou ideológica; e no todo ou em parte com a intenção de intimidar o público ou um segmento do público, no que diz respeito à sua segurança [...] ou obrigar uma pessoa, um governo ou uma organização nacional ou internacional a fazer ou abster-se de fazer qualquer ato, seja o público ou a pessoa, governo ou organização está dentro ou fora do Canadá (CARVER, 2016, p. 130).

A definição passou a incluir causar morte intencional, lesão corporal, dano à propriedade pública e privada e causar interferência ou séria interrupção de serviços essenciais, entre outros, como incidentes definidos como terrorismo. Além dessa definição legal, o governo do Canadá, por meio do Departamento de Segurança Pública e Preparação para Emergências, definiu o termo como “atos terroristas cometidos no todo ou em parte por razões políticas, religiosas ou ide-ológicas com a intenção de intimidar o público, ou um subconjunto do público”

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TÓPICO 2 — RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA

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(PUBLIC SAFETY CANADA, 2017). Essas definições representaram uma ligeira diferença nas definições jurídicas e políticas de terror no Canadá, que indicavam uma tendência de esforço intencional para manter a utilidade de uma definição legal estruturada e uma definição política mais ampla e vagamente definida.

No Reino Unido, a definição legal de terrorismo foi definida, em 2000, na Lei de Terrorismo:

O uso de ameaça ou ação [...] destinada a influenciar o governo ou uma organização governamental internacional ou para intimidar o público ou uma seção do público, e o uso ou ameaça é feito com o propósito de promover uma causa política, religiosa ou ideológica (CODEXTER, 2007, p. 1).

A definição segue listando contra quem ou quais ações podem causar danos e, portanto, é definida como terrorismo; inclui especificamente o uso de armas de fogo ou explosivos no âmbito do terrorismo; e inclui ações que ocorrem fora do Reino Unido como aquelas que podem se enquadrar na definição. Seguindo a definição legal britânica, o Serviço de Segurança do Estado, MI5, define o terrorismo como:

Grupos terroristas que usam violência e ameaças de violência para divulgar suas causas e como meio para atingir seus objetivos. [Eles] muitas vezes visam influenciar ou exercer pressão sobre governos e políticas governamentais, mas rejeitam os processos democráticos, ou mesmo a própria democracia (SECURITY SERVICE, 2021).

As definições legais e políticas britânicas e canadenses de terrorismo fornecem alguns insights sobre as maneiras como foram elaboradas para o uso de legislação e políticas que protegem o status dos países como Estados-nação contra a violência perpetrada por grupos não estatais.

4.1 A DEFINIÇÃO DE TERRORISMO NOS ESTADOS UNIDOS

A definição conceitual do fenômeno terrorismo é ainda mais complexa, porque pode ser confundida com interpretações ideológicas e pelo desejo de enquadrar o conceito em uma interpretação específica e subjetiva. Provavelmente, os Estados Unidos são o país que mais investiu na elaboração de uma definição de terrorismo, devido ao seu lugar na política global e, especialmente, por causa da chamada “Guerra ao Terror” nas semanas seguintes aos ataques de 11 de setembro.

No entanto, o papel dos Estados Unidos como líder global na definição do terrorismo e como agir para combatê-lo começou décadas antes do 11 de setembro e se insere no senso de “excepcionalismo norte-americano”. Especialistas afirmam que, ao ocupar uma posição de liderança global, os Estados Unidos se imaginam destinados e com o direito de desempenhar um papel destacado e positivo no cenário mundial (WALT, 2011).

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

Para esse efeito, a definição de terrorismo apresentada, em 1983, pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos é uma das mais utilizadas no mundo, na atualidade: “o terrorismo é violência premeditada com motivação política perpetrada contra alvos não combatentes, por grupos subnacionais ou agentes clandestinos, geralmente com a intenção de influenciar a opinião pública” (SINAI, 2005, p. 9). De forma análoga, o Bureau Federal de Investigação (FBI) define terrorismo como “o uso ilegal de força ou violência contra pessoas ou propriedades para intimidar ou coagir um governo, a população civil ou qualquer segmento dele, em prol de objetivos políticos ou sociais” (JACKSON, 2016, p. 108).

No entanto, essas duas definições, muito particulares, refletem a perspectiva de entidades governamentais na vanguarda dos esforços antiterrorismo dos Estados Unidos e seus aliados. A semelhança com as adotadas e codificadas pelos governos do Canadá e do Reino Unido são perceptíveis e, embora não seja possível, dados os parâmetros dessa atribuição, uma comparação das definições legais e políticas de terrorismo com outros governos democráticos liberais ocidentais provavelmente revelaria ainda mais semelhanças.

Estudiosos como Noam Chomsky (2007) e Timothy Shanahan (2016) observam que as agências governamentais frequentemente caracterizam terrorismo como crime cometido por atores não estatais, impedindo ou dificultando a possibilidade de se aplicar esse princípio para o terrorismo estatal ou patrocinado pelo Estado (JACKSON, 2016). Chomsky é ainda mais incisivo em suas opiniões sobre como e por que o governo norte-americano propositalmente promove uma definição específica de terrorismo:

É difícil elaborar uma definição de terror que se aplique exclusivamente ao terror que outros praticam contra nós (os Estados Unidos) e nossos aliados, mas que exclua o terror (muitas vezes muito pior) que nós e nossos aliados praticamos contra outros [...] a discussão sobre terrorismo e agressão é a rejeição consistente do princípio moral mais elementar ou seja: que apliquemos a nós os mesmos padrões que aplicamos aos outros e quiçá, que estes padrões que apliquemos a nós sejam ainda mais rigorosos (CHOMSKY, 2007, p. 45).

Essas observações evidenciam a importância da cautela em se definir terrorismo, assim como quem está definindo e com que propósito. Além disso, todas essas considerações tornam ainda mais controversas as tentativas de definir o terrorismo, pois fica evidenciado que, em última análise, há agendas ideológicas e políticas ocultas nas definições nas quais diversas partes envolvidas conceituam o fenômeno. Tal lógica é a base para as teorias em torno do terrorismo de Estado e sua exclusão deliberada do discurso público sobre o terrorismo.

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TÓPICO 2 — RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA

243

FIGURA 29 – CARTOON SOBRE TERRORISMO DE ESTADO

FONTE: <https://tinyurl.com/3phmvnn8>. Acesso em: 29 abr. 2021.

4.2 TERRORISTA OU GUERREIRO DA LIBERDADE?

Outro aspecto importante a ser considerado na definição de terrorismo é como aqueles rotulados como terroristas definem suas ações. A distinção entre terrorista, lutador pela liberdade, ativista do movimento de libertação e outros termos tem sido tão controversa para debater e definir quanto a própria definição de terrorismo. Os estudiosos, cujos argumentos definem esses termos como subjetivistas por natureza e quase impossíveis de definir, admitem que o mesmo poderia ser dito da definição de terrorismo.

Baoz Ganor, especialista israelense, afirma que o velho ditado “o terrorista para um é o lutador pela liberdade do outro” enfatiza que as definições de qualquer um dos termos dependem da perspectiva e da visão de mundo de quem está definindo. Ganor prossegue afirmando que não há validade para a alegação de que um lutador pela liberdade não pode estar envolvido em terrorismo, assassinato e matança indiscriminada e, além disso, que uma organização terrorista não pode também ser um movimento de libertação nacional (GANOR, 2002).

Dessa maneira, os conceitos de “terrorista” e “lutador pela liberdade” não são mutuamente contraditórios e seu significado e a quem esses rótulos são aplicados depende de quem os está aplicando. É evidente que aqueles que definem determinados grupos como terroristas ou não, lutadores pela liberdade ou não, movimentos de libertação ou não, detêm o poder de fazê-lo.

Geralmente, os rotulados como terroristas não se identificam como tal e se autodefinem como movimentos de libertação nacional ou lutadores contra a opressão social, econômica, religiosa, imperialista ou uma combinação desses fatores. Entretanto, os políticos sempre foram rápidos em se opor a essas afirmações, declarando as diferenças entre terroristas e lutadores pela liberdade como evidentes, fundamentais e irreconciliáveis. Em algum lugar no meio desses pontos de vista, está a resposta mais próxima da realidade. Todavia, é importante

ESPERE UM MINUTO.

NÓS INVADIMOSOUTRO PAÍS.

NÓS MATAMOS,FERIMOS E OSAMEAÇAMOS.

NÓS OSDESTRUÍMOS COM

BOMBARDEIOS.

AS PESSOAS QUE LÁVIVEM COMEÇAM A

ATIRAR CONTRA NÓS.

E NÓS OS CHAMAMOS"TERRORISTS"?

PALAVRAS

DRAMÁTICAS,NÃO SÃO?

SÃO

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

observar que as tentativas de apresentar os termos “terrorista” e “lutador pela liberdade” como sendo mutuamente exclusivos são inúteis. Portanto, pode-se sugerir que os dois termos descrevem diferentes aspectos do comportamento humano e político.

A guerra de independência da Irlanda foi um conflito brutal e sangrento que resultou na criação da República da Irlanda, em 1921. O conflito, pelos padrões atuais, seria definido como “terrorismo” praticado por “insurgentes” irlandeses e terrorismo de Estado praticado pelos ingleses.

FIGURA 30 – GUERRA DE INDEPENDÊNCIA NA IRLANDA, EM 1921

FONTE: <https://tinyurl.com/2mhkweuh>. Acesso em: 29 abr. 2021.

Um filme interessante sobre o líder da resistência irlandesa contra o domínio inglês é Michael Collins – O Preço da Liberdade (1996).

DICAS

Assim, alguém poderia descrever o terrorismo como o meio e um método de luta e, simultaneamente, relatando os lutadores pela liberdade como aqueles que lutam por uma causa. Desse modo, os grupos que usam estratégias terroristas como método de combate devem, com razão, ser vistos como tendo uma ampla gama de interesses, aspirações e causas pelas quais lutam. Essas questões se articulam em torno dessa dicotomia, construída entre os dois termos:

Alguns grupos terroristas, sem dúvida, lutam pela autodeterminação ou pela libertação nacional. Por outro lado, nem todos os movimentos de libertação nacional recorrem ao terrorismo para fazer avançar a sua causa. Em outras palavras, alguns grupos insurgentes são terroristas e lutadores pela liberdade, alguns são um ou outro e alguns não são (CHAILAND; BLIN, 2016, p. 27).

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TÓPICO 2 — RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA

245

O debate sobre quem é terrorista e quem é lutador pela liberdade e de quem é a perspectiva é importante, pois, mais uma vez, enfatiza a natureza controversa de quaisquer definições de terrorismo. Também é importante porque destaca a natureza mutante dessas definições.

4.3 A TEMPORARIEDADE DO TERRORISMO

Como visto, a definição de terrorismo é polêmica e objeto de visões divergentes, mas essa controvérsia pode ser resolvida por meio de vontade política. Considerando a definição básica de terrorismo, conforme estabelecida anteriormente, observa-se um vínculo entre o uso da força e a violência, com o objetivo de alcançar resultados predeterminados, bem como outro fenômeno semelhante: a violência política. Patrick O’Neil define o conceito de violência política como violência fora do controle do Estado com motivação política. Outros especialistas percebem a violência política como uma forma de luta política coletivista de massa, que se manifesta de muitas formas, como revoluções, guerra civil, motins e greves, mas também por movimentos de protesto mais pacíficos (O’NEILL, 2005).

O fator-chave que distingue terrorismo e violência política é que todos concordam que, normalmente, há uma solução política no caso da última. Isso significa que os Estados – como as instituições contra as quais a violência é combatida – têm os meios, a legitimidade e a autoridade para acabar com a violência em questão, por meio de uma série de mecanismos diferentes, como negociação, negociações de paz ou acordos de compartilhamento de poder, entre outros. Por outro lado, há aqueles que usam a violência para alcançar resultados predeterminados podendo empregar terrorismo, guerra de guerrilha, guerra civil, insurgência ou outros métodos semelhantes.

As definições de terrorismo articuladas pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos e pelos governos do Canadá e do Reino Unido, listadas anteriormente, fazem menção a motivações políticas para atos e/ou atores terroristas, o que ilustra quão intimamente os dois conceitos estão relacionados uns aos outros, particularmente para aqueles que os definem. Alguns cientistas políticos argumentam que, mesmo os partidos políticos, têm mais em comum com o terrorismo do que se poderia imaginar (CANETTI-NISIM, 2009).

Os especialistas Leonard Weinberg e Ami Pedahzur desafiam o paradigma, amplamente difundido, de que os partidos significam formas pacíficas de atividade política democrática, enquanto os grupos terroristas significam formas ilegais e extranormais de violência. Além disso, eles argumentam que, tanto os partidos políticos quanto os grupos terroristas, usam o poder de persuasão para modificar o comportamento das sociedades. Embora não seja possível e, em última análise, não seja relevante explorar todo o argumento apresentado por Weinberg e Pedahzur, é importante notar que eles abordam a questão de por que os mesmos movimentos sociopolíticos (de protesto) que dão origem a uma

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

organização terrorista também pode, muitas vezes e quase simultaneamente, produzir um partido político pacífico e independente; ao fazê-lo, levantam perguntas importantes sobre as definições de terrorismo, partidos políticos e violência política (WEINBERG, 2004).

A história recente demonstrou que aqueles definidos como grupos terroristas podem, com o tempo, se tornar atores políticos legítimos, reconhecidos pelos Estados contra os quais lutaram. A política internacional tem muitos exemplos, incluindo, mas não se limitando, o “Congresso Nacional Africano”, na África do Sul, o “Hezbollah”, no Líbano, o “Exército de Libertação de Kosovo”, a “Organização de Libertação da Palestina” e o “Exército Republicano Irlandês” (MORAN, 2006). Cada um desses exemplos é uma organização outrora designada como terrorista pela comunidade internacional, e pelo Ocidente em particular, mas que se transformou em partidos políticos, que respeitam o Estado de direito e concorrem nas eleições – as marcas da democracia participativa e uma filosofia defendida pelo Ocidente. Vários movimentos de libertação anticolonial na África, na Ásia e na América Latina usaram a violência e a força para obter seu objetivo político de descolonização, mas, ironicamente, no discurso político atual, alguns desses grupos são considerados terroristas por seus próprios governos e outros grupos, ou parte deles, por determinados membros da comunidade internacional.

Em situações e contextos distintos, esses grupos promoveram violência contra os Estados, mas a solução para os impasses foi, inevitavelmente, política, seja para independência das populações nativas, retiradas de colonos, acordos de partilha de poder, acordos de paz, entre outros. Dessa forma, grupos como a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), ZANU-PF, no Zimbabwe, e o Hamas, na Faixa de Gaza (Palestina), são exemplos daqueles rotulados como terroristas, que eventualmente participaram de transições de governança democrática através de eleições somente possíveis por resolução política (MORAN, 2006).

Recentemente, grupos considerados por décadas como terroristas se dissolveram ou desistiram da luta armada, por meio de acordos firmados com os governos que até então combatiam. O grupo separatista basco ETA, “Pátria Basca e Liberdade”, na Espanha, se dissolveu, em 2011, como uma organização, após um acordo de paz (MASTERS; REBAZA, 2018). Em 2016, o ex-grupo rebelde “Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia” (FARC) concordou em se desarmar e se dissolver, após um acordo de paz e alguns dos seu ex-líderes, inclusive, disputaram eleições naquele país. Por último, o Exército Republicano Irlandês (IRA), em 2005, depois de quase um século de luta violenta contra o governo inglês decide desistir da luta armada (TAYLOR, 2018).

Nelson Mandela, o líder sul-africano, é exemplo mais pungente, no século XX, de alguém que passou de terrorista a libertador e líder político aos olhos do Ocidente. Mandela é o melhor exemplo da mudança de paradigma que ocorre quando terroristas são considerados racionais e atores políticos com quem soluções políticas podem ser negociadas. Os exemplos

IMPORTANTE

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TÓPICO 2 — RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA

247

mencionados demonstram a natureza complexa e polêmica da definição de terrorismo ao longo do tempo contextos distintos. Também demonstram, segundo o especialista israelense, Boaz Ganor, que terroristas e lutadores pela liberdade não são categorias mutuamente exclusivas e podem ser as duas coisas simultaneamente (GANOR, 2002).

CARTAZ DO PARTIDO CONSERVADOR, NA INGLATERRA, NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980. EM TRADUÇÃO LIVRE: “ENFORQUEM NELSON MANDELA E TODOS OS TERRORISTAS DO

CONGRESSO NACIONAL AFRICANO: ELES SÃO TODOS CARNICEIROS”

FONTE: <https://tinyurl.com/335zan79>. Acesso em: 29 abr. 2021.

4.4 O PROBLEMA DE DEFINIR O TERRORISMO NOS ESTADOS UNIDOS

Nos Estados Unidos, determinar o que é terrorismo se tornou uma tarefa difícil, devido a ambiguidade generalizada do termo. O estudioso de fenômeno Christopher Hewitt observou que a falta de definição, social ou legal gera problemas, porque a polícia e as agências de segurança norte-americanas não sabem o que é terrorismo (HEWITT, 2003). Hewitt afirma que a definição do FBI, mencionada anteriormente, é incongruente com o banco de dados e estatísticas das próprias agências:

O FBI não inclui muitos incidentes de violência com motivação política, como, por exemplo, atentados a bomba em clínicas de aborto em suas estatísticas. O FBI depende de relatórios das autoridades locais para coletar informações para seus dados, mas sem uma maneira de aplicar a definição em todas as áreas, a agência depende do arbítrio das agências policiais locais. Além disso, o próprio FBI reluta em aplicar sua própria definição a um incidente, a menos que algum grupo reivindique responsabilidade (HEWITT, 2003, p. 14).

O verdadeiro propósito de definir o terrorismo para a aplicação da lei é criar estruturas nas quais os ataques violentos sejam compreendidos, os planos para executá-los sejam frustrados e aqueles que os planejam sejam capturados e julgados. Portanto, as inconsistências nas definições de terrorismo são resultado de determinadas políticas.

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

Nos Estados Unidos, a distinção entre terror doméstico e internacional é confusa por uma série de fatores. O país tem uma longa história de terrorismo doméstico, que se inicia nas décadas de 1950 e 1960, com os grupos racistas, como a Ku Klux Klan, na década de 1960 e 1970, com grupos de protesto, como os Panteras Negras, nas décadas de 1980 e 1990, com grupos contra o aborto e, mais recentemente, com vários grupos racistas neofacistas (HEWITT, 2003).

FIGURA 31 – ENCONTRO, EM 1985, NA CASA BRANCA ENTRE O PRESIDENTE RONALD REGAN E OS LÍDERES MUJAHIDEEN AFEGÃOS, APOIADOS PELOS ESTADOS UNIDOS

CONTRA A INVASÃO SOVIÉTICA

FONTE: <https://tinyurl.com/3ye7jjjn>. Acesso em: 29 abr. 2021.

TERRORISMO DOMÉSTICO É A MAIOR AMEAÇA NOS ESTADOS UNIDOS

Uma semana depois de Joe Biden assumir o cargo e Washington ter sido uma cidade sitiada pela Guarda Nacional, diante de possíveis distúrbios, após o ataque ao Congresso por uma turba incitada por Donald Trump, o Departamento de Segurança Interna emitiu um alerta ao público sobre o risco crescente de ataques por parte de “extremistas violentos movidos pela ideologia” e a chegada ao poder do presidente democrata. Para esses indivíduos, o fato de Biden estar na Casa Branca aumentou sua sensação de injustiça alimentada por falsas narrativas. O Departamento de Segurança Interna (DHS) emite esse tipo de aviso por meio de seu sistema de Alerta de Terrorismo Nacional, mas, até hoje, esses alarmes tinham a ver com a possibilidade e a preocupação de ataques contra os Estados Unidos, por parte de um país estrangeiro ou de grupos radicais, mas nunca extremistas domésticos. O Governo Federal costuma alertar as polícias locais por meio de boletins e avisos sobre as perspectivas de violência relacionadas a uma data ou evento, como o 4 de julho, quando os Estados Unidos comemoram o Dia da Independência.

FONTE: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-28/estados-unidos-em-alerta-por-ameacas-de-terrorismo-domestico.html>. Acesso em: 29 ago. 2021.

IMPORTANTE

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TÓPICO 2 — RELAÇÕES ESTADOS UNIDOS-RÚSSIA E ESTADOS UNIDOS-CHINA

249

Desde o 11 de setembro, os Estados Unidos foi alvo de vários ataques de grupos extremistas internacionais e de seus próprios cidadãos afiliados a esses grupos. Embora não seja possível explorarmos todas as diferentes variações de ataques terroristas que ocorreram na América nas últimas décadas, nem examinarmos os grupos que os perpetraram, é importante notar que a América enfrentou muitas ameaças de muitos grupos antes e enfrenta uma infinidade de ameaças agora. A questão relevante para essa tarefa é porque o governo norte-americano opta por estreitar seu foco na identificação de terroristas e consequentes políticas antiterroristas, principalmente para os atos e os ataques de pessoas que se identificam com a fé muçulmana e/ou pessoas afiliadas aos chamados grupos extremistas islâmicos.

4.5 ALGUNS ATAQUES SÃO MAIS TERRORISTAS DO QUE OUTROS?

Na atualidade, nos Estados Unidos, vários estudos indicam que a supre-macia branca e a violência nacionalista branca constituem uma ameaça maior aos cidadãos norte-americanos do que o terrorismo praticado por grupos estrangei-ros. Uma pesquisa conduzida pelo “think tank” de segurança New America con-cluiu que, entre 2001 e 2015, mais norte-americanos foram mortos por extremistas de direita locais do que pelos chamados terroristas islâmicos. A organização des-cobriu que, após o 11 de setembro, quase o dobro de pessoas foram mortas por extremistas não muçulmanos do que aqueles mortos por jihadistas.

Outra pesquisa, em 2017, confirmou que, entre 2008 e 2016, os ataques de grupos antigovernos de direita foram mais de três vezes maiores que os chamados extremistas islâmicos. Deve-se notar que essa pesquisa não sugere nem afirma que a violência perpetrada por pessoas afiliadas a grupos extremistas islâmicos não é uma ameaça ou que a ameaça foi eliminada, mas, sim, que a ameaça de extremistas de direita é tão, se não mais, letal e urgente (NEIWERT, 2017).

No orçamento fiscal de 2018, o governo de Donald Trump bloqueou mais de 10 milhões dólares de fundos destinados a financiar pesquisa para desradicalizar neonazistas, combater o recrutamento de extremistas muçulmanos e supremacistas brancos. Simultaneamente, esse financiamento fluiu para agências governamentais e grupos que trabalham, quase exclusivamente, em programas para lidar com ameaças terroristas dos chamados extremistas islâmicos. Tal atitude sugere ações que deliberadamente têm um grupo específico como alvo e também demonstram a vontade política de agir como menos vigor em relação a outros (NIXON; SULLIVAN, 2017).

O cenário político contemporâneo nos Estados Unidos sugere que a definição de terrorismo continuará a ser controversa, pois não será resolvida sem vontade política. No contexto norte-americano, há agora uma necessidade urgente de questionar as definições adotadas anteriormente e se essas definições são realmente úteis no combate ao terrorismo de forma seletiva e discriminatória (STUURMAN, 2019).

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

O exemplo dos Estados Unidos da América, país que está no centro do debate sobre o terrorismo, tem-se que o peso da influência política é evidenciada em fatos. Dessa maneira, a definição de terrorismo e quem constitui uma ameaça terrorista se torna ainda mais complexa e controversa. Em última análise, essa aplicação discriminatória de definições prejudica as iniciativas antiterrorismo e apenas deixa os governos e o público mais expostos do que protegidos a ameaças.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Historicamente, as relações entre Rússia e Estados Unidos, desde a Revolução Russa, em 1917, são contenciosas.

• Com exceção do período da Segunda Guerra Mundial, quando foram aliados, Rússia e Estados Unidos passaram boa parte do século XX em clima de Guerra Fria.

• As relações entre Estados Unidos e Rússia melhoram após o fim da União Soviética, mas voltaram a ser contenciosas, em razão dos conflitos por esferas de influência.

• As relações entre os Estados Unidos e China se deterioraram com o início do regime comunista na China, em 1949.

• Após décadas de isolamento, incluindo conflitos militares entre chineses e norte-americanos, como na Guerra da Coreia, Estados Unidos e China reataram as relações diplomáticas na década de 1970.

• A partir da década de 1990, e principalmente da década de 2000, com ascensão definitiva da China ao patamar de potência mundial, as relações Estados Unidos-China se tornaram ainda mais complexas.

• Apesar da retórica de certos setores políticos nos Estados Unidos, as relações comerciais entre norte-americanos e chineses beneficiaram ambos os países.

• Não obstante os avanços e retrocessos, as relações Estados Unidos-China se caracterizam por conflitos sérios sobre Taiwan e o Mar da China meridional.

• A despeito dos diversos pontos de disputa entre China e Estados Unidos, torna-se vital para a comunidade internacional que as duas potências colaborem em tópicos como seguranças internacional, mudanças climáticas, controle de armas de destruição maciça, entre tantos outros de interesse comum.

• A definição de “terrorismo”, de forma universal, é uma tarefa tão complexa devido à variedade de métodos e ações que poderiam ser descritos como atos terroristas.

• A palavra “terror” surgiu na língua inglesa para descrever as ações dos revolucionários franceses contra seus inimigos, entre 1793 e 1794, principalmente se referindo à repressão e às execuções.

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• Os governos ocidentais relutaram em definir o terrorismo, por isso, muitos países decidiram seguir as convenções das Nações Unidas, que definiam as ameaças terroristas e proibiam atividades associadas ao terrorismo, que incluíam, mas não se limitavam, a sequestro, tomada de reféns e assassinato.

• Noam Chomsky e Timothy Shanahan observam que as agências governa-mentais frequentemente caracterizam terrorismo como crime cometido por atores não estatais, impedindo ou dificultando a possibilidade de se aplicar esse princípio para o terrorismo estatal ou patrocinado pelo Estado.

• Recentemente, grupos considerados por décadas como terroristas se dissolveram ou desistiram da luta armada, por meio de acordos firmados com os governos que até então combatiam.

• O cenário político contemporâneo nos Estados Unidos sugere que a definição de terrorismo continuará a ser controversa, pois não será resolvida sem a vontade política.

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1 As relações entre os Estados Unidos e a União Soviética são contenciosas desde a Revolução Russa, em 1917. Ao longo do século XX, apenas durante a Segunda Mundial, russos e norte-americanos se aliaram para combater o nazismo. Entretanto, pós-Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos e União Soviética se enfrentaram, por décadas, na chamada “Guerra Fria”. No que se refere à dinâmica do relacionamento entre União Soviética e Estados Unidos ao longo da Guerra Fria, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Estados Unidos e União Soviética passaram a Guerra Fria inteira em clima de hostilidade, apenas assinando tratados na década de 1990.

b) ( ) Estados Unidos e União Soviética, apesar da Guerra Fria, começaram a assinar tratados na década de 1960 e, posteriormente, nas décadas de 1970 e 1980.

c) ( ) Estados Unidos e União Soviética, apesar da Guerra Fria, mantiveram relações amigáveis durante as crises na Coreia, em Cuba e no Vietnã.

d) ( ) Estados Unidos e União Soviética assinaram os primeiros tratados ainda na década de 1950.

2 Leia o texto a seguir:“A mais conhecida região separatista da Rússia é a Chechênia. A região, que chegou a ser independente logo no início da existência da União Soviética, entre 1917 e 1921, caiu sob domínio soviético. Na fase final da Segunda Guerra Mundial, Stálin acusou os chechenos de colaborarem com os nazistas – o que, se pode ter ocorrido em movimentos minoritários, não era a regra – e, num único dia em 1944, lotou trens de gado e enviou 60% da população para a Sibéria e a Ásia Central – 20% da população morreu de fome, sede e maus tratos nessa viagem”.

FONTE: <https://tinyurl.com/2rebhuw7>. Acesso em: 28 abr. 2021.

Com relação aos conflitos separatistas na nova federação russa, analise as sentenças a seguir:

I- A Rússia estava envolvida em outros problemas mais graves em seu vasto território e optou por não intervir diretamente na Chechênia.

II- Vladimir Putin, então eleito primeiro-ministro da Rússia, interveio na Chechênia, mas, derrotado, preferiu deixar a decisão dos chechenos para um plesbicito.

III- Na Chechênia, os russos travaram duas guerras para manter aquela região do Cáucaso na federação russa.

IV- As tropas russas anexaram a península da Crimeia, em 2014, que, até então, era uma província autônoma da Ucrânia e instalaram um governo pró-russo.

AUTOATIVIDADE

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254

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.b) ( ) As sentenças I e IV estão corretas.c) ( ) As sentenças III e IV estão corretas.d) ( ) As sentenças I e II estão corretas.

3 Leia texto a seguir:“Virou lugar comum descrever o relacionamento Estados Unidos-China como uma nova ‘Guerra Fria’, uma referência à rivalidade de uma geração entre os Estados Unidos e a União Soviética que lançou uma sombra sobre a segunda metade do século XX”.

FONTE: <https://tinyurl.com/42knwx7d>. Acesso em: 28 abr. 2021.

Sobre a relação Estados Unidos-China, analise as sentenças a seguir:

( ) As relações entre China e Estados Unidos se tornaram difíceis a partir de 1949, com a vitória dos comunistas e a criação da República Popular da China.

( ) As relações entre China e Estados Unidos, “congeladas” por décadas, foram reatadas na década de 1970 com a “diplomacia do pingue-pongue”.

( ) Apesar da retórica, às vezes, agressiva, de ambos os lados, a relação entre os Estados Unidos e a China se limita a disputas comerciais na ausência de disputas por esferas de influência geopolíticas.

( ) Ao contrário da relação entre a União Soviética e os Estados Unidos na Guerra Fria, chineses exerceram uma influência considerável na Ásia e no restante do mundo e seus avanços econômicos e tecnológicos estão interligados com muitas nações no Ocidente.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – V – F – V.b) ( ) V – F – V – F.c) ( ) F – F – V – V.d) ( ) V – V – V – F.

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255

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Neste tópico, analisaremos o terrorismo cibernético, o quadro jurídico brasileiro sobre o terrorismo e o Brasil na Segurança Internacional.

O “terrorismo cibernético”, em contraste com o volume de análises sobre terrorismo, ainda é um conceito sobre o qual há muito a ser debatido. Muitos autores têm apontado as dificuldades em formar uma definição jurídica de “terrorismo cibernético”, diferenciando-o de outros tipos de crimes. No entanto, é consenso que o terrorismo cibernético não é apenas crime comum, mas constitui uma forma especial de crime, caracterizada pela sua gravidade.

Nesse sentido, a melhor forma é pensarmos em terrorismo cibernético não como um crime, mas como uma dimensão diferente do crime, uma versão superior e mais perigosa, uma espécie de “supercrime”, que incorpora algumas das características da guerra.

Além desse tema essencial na atualidade, também abordaremos o quadro jurídico brasileiro sobre o terrorismo – notadamente, as especificidades da “lei antiterrorista”, a Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016 (BRASIL, 2016), e suas críticas. Por fim, serão tratados as fragilidades, os pontos fortes e os desafios a serem enfrentados pelo Brasil em uma variedade de aspectos do quadro geopolítico, no que tange ao país diante da Segurança Internacional.

2 TERRORISMO CIBERNÉTICO

O debate sobre terrorismo cibernético começou no final da década de 1990, em meio a uma onda de ataques terroristas nos Estados Unidos, incluindo o atentado ao World Trade Center, em 1993, e a explosão em Oklahoma, em 1995. Em 1997, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos conduziu seu primeiro exercício de guerra de informação sem aviso prévio, para testar a segurança cibernética de seus próprios sistemas e, no mesmo ano, o relatório da “Comissão Marsh”, sobre proteção de infraestrutura crítica, colocou o crescente cenário de ameaças cibernéticas no mapa político do governo norte-americano (YUNOS; SULAMAN, 2017).

TÓPICO 3 —

TERRORISMO CIBERNÉTICO: O QUADRO JURÍDICO BRASILEIRO SOBRE O TERRORISMO E O BRASIL

NO CONTEXTO DA SEGURANÇA INTERNACIONAL

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

Em outubro de 1999, a Escola Naval de Pós-graduação dos Estados Unidos preparou o primeiro e até agora mais abrangente estudo sobre “terror cibernético” para a Agência de Inteligência de Defesa dos Estados Unidos. Esse estudo incluiu várias definições e declarações que delinearam os contornos da pesquisa do terrorismo cibernético, como os autores terem observado que o uso de tecnologia por terroristas da informação em suas atividades de apoio não se qualifica como terrorismo cibernético, além de terem excluído ataques a sites, e-mails falsos e o bombardeio de caixas de entrada de e-mail (CONWAY, 2002).

Em geral, o estudo definiu o terrorismo cibernético como a destruição ilegal ou a interrupção da propriedade digital para intimidar ou coagir governos ou sociedades na busca de objetivos políticos, religiosos ou ideológicos. Entretanto, nos últimos 20 anos, os pesquisadores tentaram, sem sucesso, separar o terrorismo cibernético do crime cibernético, do “hacktivismo” e das operações cibernéticas militares. Assim, Jonalan Brickey definiu o terrorismo cibernético como o uso de recursos cibernéticos para conduzir e habilitar operações militantes perturbadoras e destrutivas no ciberespaço, para criar e explorar o medo, por meio da violência ou da ameaça de violência na busca por mudanças políticas (HOFFMAN, 2006).

2.1 DIFERENTES ABORDAGENS GOVERNAMENTAIS

A pesquisa sobre terrorismo cibernético, além dos Estados Unidos, também foi alvo das preocupações de outros governos. O governo japonês, em 2000, começou a combater o terror cibernético, em razão das atividades de grupos radicais japoneses e hacktivistas chineses, e principalmente pelas atividades da seita apocalíptica Aum Shinrikyo. Dessa maneira, os japoneses implementaram um “Plano de Ação Especial”, que definia o terrorismo cibernético como quaisquer ataques usando redes de informação, comunicação e sistemas de informação que possam ter um impacto significativo na vida das pessoas e nas atividades socioeconômicas.

Para o governo japonês, a principal motivação para o uso do termo “terror cibernético” era mobilizar recursos e garantir a adesão de provedores de infraestrutura crítica para construir a postura de segurança cibernética no país. O terror cibernético, portanto, não foi inicialmente visto como uma forma específica de crime cibernético ou uma área distinta de defesa nacional. Com o passar dos anos, a narrativa do terror cibernético desmoronou à medida que definições, distinções e percepções mais precisas diluíram o aspecto relacionado com o terrorismo (WILKINSON, 2006).

Apesar dessas mudanças, o termo ainda é usado no Japão e tem implicações práticas para a cooperação público-privada. Por exemplo, os “Conselhos de Contramedidas do Terrorismo Cibernético”, da Agência Nacional de Polícia, facilitam parcerias público-privadas e divulgação em nível de prefeitura, por meio de discussões, palestras e demonstrações. Enquanto

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isso, o “Conselho de Contramedidas do Terrorismo Cibernético”, mantido pela Polícia Metropolitana de Tóquio, serve como um centro de coordenação para proteger todos os grandes eventos no Japão – incluindo os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Tóquio, em 2021.

Nos Estados Unidos, os ataques em 11 de setembro de 2001 introduziram uma série de medidas legais para enfrentar a ameaça do terrorismo cibernético. Destacam-se, entre outros, o US Patriot Act (Lei Patriota), em 2001, e o Terrorism Risk Insurance Act (Lei do Risco Seguro de Terrorismo), em 2002. O US Patriot Act forneceu novas ferramentas para a aplicação da lei federal para detectar e prevenir o terrorismo, incluindo a autoridade para interceptar comunicações eletrônicas e orais relacionadas a crimes de fraude e abuso de computador, divulgação de emergência de comunicações eletrônicas para proteger vidas e membros e interceptação de comunicações de invasores de computador (HENNESSY, 2003).

Além dos Estados Unidos e do Japão, vários outros governos, por uma variedade de razões, incorporaram o conceito de terrorismo cibernético. A “Estratégia de Segurança Cibernética” da Áustria, em 2013, por exemplo, define o terrorismo cibernético como um crime com motivação política de atores estatais e/ou não estatais. O Livro Branco de Defesa, da Coreia do Sul, em 2012, descreve especificamente várias formas de terrorismo cibernético: hacking, ataques DDoS (negações de serviço), bombas lógicas, cavalos de Troia, vírus, armas (de radiofrequência de alta energia), entre outros.

“O ordenamento jurídico brasileiro, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, instituiu o repúdio ao terrorismo, sendo esta uma prática com a finalidade de causar terror social ou generalizado, ameaçando a paz pública, como incitação ao crime, apologia e associação criminosa, ou a incolumidade pública, como os crimes que causem explosões, incêndios, desabamentos e transmissão proposital de doença ou praga, com motivação xenofóbica, discriminatória ou preconceituosa em razão de raça, cor, etnia e religião. Apesar disso, pouco se tem, em texto de lei, sobre o terrorismo cibernético, uma nova vertente do terrorismo que está se tornando mais comum conforme a tecnologia avança e, em muitos casos, tem sido confundido com os crimes cibernéticos”.

FONTE: FONSECA, S. O.; FREITAS, I. O. M. de. Terrorismo Cibernético: Um Estudo Sobre a Adequação da Norma Brasileira ao Terrorismo Cibernético. Revista Âmbito Jurídico, São Paulo, n. 202, ano XXIII, 2020. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/internet-e-informatica/terrorismo-cibernetico-um-estudo-sobre-a-adequacao-da-norma-brasileira-ao-terrorismo-cibernetico/. Acesso em: 29 maio 2021.

IMPORTANTE

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

2.2 OPERACIONALIZANDO O TERRORISMO CIBERNÉTICO

Do ponto de vista operacional, em termos de análise, não importa quem está por trás do ataque cibernético. Pode ser um indivíduo não radicalizado, sem vínculos com nenhuma organização terrorista, pode ser um grupo terrorista que interage regularmente com criminosos cibernéticos ou mesmo um Estado-nação. Da mesma forma, se as motivações políticas, religiosas e ideológicas do atacante permanecem escondidas, o vínculo com o terrorismo pode ou não se revelar. Portanto, o foco deve ser a atribuição técnica (por exemplo: como o agressor o fez, quando ele fez e se ele atingiu seu objetivo). Analiticamente, tenta-se discernir se o ataque foi direcionado, coordenado e persistente, em vez de difuso, oportunista e aleatório (HOWER; URADNIK, 2011).

O segundo item para se eliminar do conflito é se o ataque realmente aterrorizou o alvo pretendido. A razão para isso é simples: há um blecaute afetando toda a sua vizinhança. Aí as luzes se acendem por um momento – todo mundo fica aliviado – e depois se apagam novamente. Existem inúmeras explicações plausíveis para o motivo do apagão e, na maioria dos casos, as pessoas afetadas podem nunca saber o motivo subjacente, depois de resolvido o incidente. Em outra situação, um apagão afeta apenas um apartamento, o que faz o morador mexer em sua rede e procurar por possíveis soluções on-line, mas sem conseguir localizar o problema – então, de repente, as luzes se acendem e se apagam novamente. Comparando os dois casos, qual desses dois apagões assustaria mais? Analiticamente, as únicas duas diferenças importantes, para efeitos de análise de terrorismo cibernético, são: a distância entre o atacante e o alvo pretendido (por exemplo, quão pessoal é?) e o efeito de ressonância psicológica que emana do ataque (por exemplo, quão “terrorista” é) (BIDGOLI, 2004).

Em suma, o terrorismo cibernético é, provavelmente, mais visto como uma tática operacional, voltada para um resultado psicológico distinto, em vez de um campo de pesquisa que conecta o domínio cibernético ao terrorismo no espaço real. Notavelmente, embora a pesquisa e a política de terrorismo cibernético tenham chegado a um impasse nos últimos anos, o uso de abordagens táticas para criar terror no e através do ciberespaço está apenas no começo (HOWER; URADNIK, 2011).

FIGURA 32 – TERRORISMO CIBERNÉTICO

FONTE: <https://tinyurl.com/vs63prvp>. Acesso em: 29 abr. 2021.

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FBI INVESTIGA UM ATAQUE CIBERNÉTICO QUE TEVE COMO ALVO O NYC DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA

A rede de computadores dos advogados municipais foi desativada após o ataque, que a polícia e as autoridades federais acreditam ter sido obra de hackers.

Uma pista inicial de que algo estava errado com os computadores do Departamento de Justiça da cidade de Nova York – a agência de mil advogados que representa a cidade no tribunal – surgiu quando um advogado do departamento escreveu a um juiz federal em Manhattan, pedindo um adiamento na apresentação de documentos judiciais, devido a problemas de “conectividade”.

“No momento, ninguém consegue se conectar ao sistema de computador do Departamento de Justiça”, escreveu a advogada Katherine J. Weall.

No final do dia, as autoridades municipais revelaram a causa do problema: eles foram forçados a desativar a rede de computadores do Departamento de Justiça após detectar um ataque cibernético. Esse ataque está agora sendo investigado pelo escritório de inteligência do Departamento de Polícia de Nova York e pela força-tarefa cibernética do FBI, disseram as autoridades.

O prefeito Bill de Blasio disse, durante uma aparição na TV NY1, que as autoridades municipais não estavam cientes de qualquer informação sendo comprometida ou de um pedido de resgate. No entanto, ele alertou que a situação estava “emergente”.

“Teremos mais a dizer à medida que obtivermos mais informações”, disse ele. “Até agora, acreditamos que as defesas se mantiveram e as informações do Departamento Jurídico não foram comprometidas.”

Os hackers usam ransomware para invadir redes de computadores privadas e governamentais. Uma vez dentro, eles podem bloquear os proprietários ou roubar dados que são usados para exigir um resgate. A frequência dos ataques aumentou nos últimos anos.

As preocupações sobre um possível ataque surgiram pela primeira vez quando o Cyber Command da cidade detectou atividade incomum na rede de computadores do Departamento de Justiça, de acordo com o oficial informado sobre o incidente. O comando é uma unidade que o Sr. de Blasio criou por ordem executiva, em 2017, para defender os sistemas de informática da cidade.

Nicholas Paolucci, porta-voz do Departamento de Justiça, disse que a agência está tomando medidas “para garantir que haja um impacto mínimo nos casos” e para manter as funções do departamento em andamento.

O efeito em outras agências da cidade permaneceu obscuro. “Até entendermos toda a extensão da violação, estamos tentando agir com cautela”, disse Lucian Chalfen, porta-voz do sistema judicial estadual, no qual o Departamento de Justiça o representa a cidade em ações judiciais.

FONTE: <https://tinyurl.com/ky9pcbyb>. Acesso em: 29 maio 2021.

INTERESSANTE

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3 O QUADRO JURÍDICO BRASILEIRO SOBRE TERRORISMO

O Projeto de Lei nº 101/2015 buscou definir crimes de terrorismo no Brasil e dar outras providências investigativas e processuais. Em 28 de outubro de 2015, o Senado brasileiro aprovou a legislação. O texto emendado retornou à Câmara dos Deputados, porém, os especialistas criticam que o projeto tenha excluído um artigo anterior, que estabelecia uma importante salvaguarda que protegeria a participação em manifestações políticas e movimentos sociais de cair no âmbito da legislação (SOARES, 2003).

Os Relatores Especiais compartilharam suas preocupações com as autorida-des brasileiras, que, por sua vez, prestaram maiores esclarecimentos sobre o projeto de lei. Os Estados têm o dever de proteger a sociedade civil e os direitos fundamen-tais para sua existência e desenvolvimento, como os direitos à liberdade de reunião e associação pacíficas e à liberdade de expressão (HUMAN RIGHTS, 2015).

Definições vagas ou excessivamente amplas de terrorismo carregam o potencial de uso indevido deliberado do termo, alertaram os especialistas. Por isso, a legislação de combate ao terrorismo deve ser precisa o suficiente para cumprir o princípio da legalidade, de modo a evitar que seja utilizada contra a sociedade civil, silenciar defensores dos direitos humanos, blogueiros e jornalistas e criminalizar as atividades pacíficas de defesa direitos das minorias, religiosos, trabalhistas e políticos (RABELO, 2017).

Os especialistas enfatizaram que, onde a legislação voltada para a segurança pode ter um impacto sobre as liberdades fundamentais, os Estados devem sempre garantir que os princípios da necessidade, proporcionalidade e não discriminação sejam plenamente respeitados, pois as medidas de combate ao terrorismo que têm um impacto negativo sobre a capacidade das ONGs de operar de forma eficaz e independente são, em última análise, contraproducentes na redução da ameaça representada pelo terrorismo (HUMAN RIGHTS, 2015).

O projeto de lei em causa foi transferido para o Senado em 19 de agosto de 2015, após ter sido aprovado pela Câmara dos Deputados e foi apreciado em processo de urgência. Os especialistas concluíram que a consulta pública no processo legislativo é, de fato, um elemento indispensável no desenvolvimento de políticas e na preparação de legislação (HUMAN RIGHTS, 2015).

Em 16 de março de 2016, o Brasil promulgou a Lei nº 13.260/2016 (BRASIL, 2016) para regulamentar o Inciso XLIII do Art. 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), sobre terrorismo (Lei nº 13.260/2016; conforme alteração até 18 de fevereiro de 2016). A seção XLIII estabelece que a lei tratará da prática de tortura ilícita tráfico de entorpecentes e drogas semelhantes, terrorismo e os crimes definidos como hediondos, não sujeitos à fiança, clemência ou anistia. A responsabilidade por esses crimes se estende aos indivíduos que ordenam tais atos, aos que os executam e aos que não evitam a prática desses crimes, embora sejam capazes de fazê-lo.

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3.1 DEFINIÇÃO DE TERRORISMO E ATOS DE TERRORISMO SOB A NOVA LEI

O Art. 2º da nova Lei nº 13.260/2016 (BRASIL, 2016) define terrorismo como a prática, por uma ou mais pessoas, de certos atos enumerados por motivos de xenofobia; discriminação; ou preconceito com relação a raça, cor, etnia ou religião, quando cometidos com o propósito de causar terror social ou generalizado e expor pessoas, propriedades, paz pública ou segurança pública a perigo. A Lei nº 13.260/2016 define atos de terrorismo como:

I- usar ou ameaçar usar, transportar, manter, possuir ou trazer explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdo biológico, químico, nuclear ou outro meio capaz de causar danos ou promover destruição em massa;II e III [vetadas];IV- sabotar o funcionamento ou apreender com violência, por meio de ameaça grave às pessoas, ou mediante a utilização de mecanismos cibernéticos para o controle total ou parcial, ainda que temporário, dos meios de comunicação ou transporte; portas; aeroportos; ferrovias ou rodoviárias; hospitais; asilo; escolas; estádios esportivos; instalações ou locais públicos onde são realizadas obras essenciais de serviços públicos; instalações para geração ou transmissão de energia; instalações militares; instalações para exploração, refino e processamento de petróleo e gás; e instituições bancárias ou sua rede de serviços;V- atentar contra a vida ou integridade física de uma pessoa (BRASIL, 2016, Art. 2).

3.1.1 Punição por atos terroristas

De acordo com o Art. 2º (§ 2) da Lei nº 13.260/2016 (BRASIL, 2016), os atos de terrorismo mencionados serão punidos com condenação com 12 a 30 anos de prisão, podendo ser acrescidos de outras penas prescritas para ameaças e atos de violência.

3.1.2 Promoção e preparação para o terrorismo

Além disso, ainda segundo a Lei nº 13.260/2016 (BRASIL, 2016, Art. 3º), quem promover, criar, participar ou prestar assistência, pessoalmente ou por intermédio de uma organização terrorista, será punido com pena de condenação com cinco a oito anos de prisão e multa. Quem praticar atos de preparação para atos de terrorismo receberá a mesma pena, que pode ser reduzida de um quarto à metade da pena em circunstâncias não definidas em lei (BRASIL, 2016, Art. 5º).

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

3.1.3 Recrutamento e treinamento de terroristas

A mesma pena de cinco a oito anos de reclusão e multa aplica-se a quem, com o objetivo de praticar atos de terrorismo, recrutar, organizar, transportar ou equipar com munições pessoas que viajem para outro país que não o de residência ou nacionalidade ou que forneçam ou recebam treinamento em um país diferente de sua residência ou nacionalidade (BRASIL, 2016, Art. 5, § 1).

3.1.4 Financiamento terrorista

Receber, fornecer, oferecer, obter, armazenar, manter em depósito, solicitar ou investir de qualquer forma (direta ou indiretamente) recursos, bens, direitos, valores ou dinheiro, ou serviços de qualquer tipo para o planejamento, preparação ou a execução dos crimes previstos na Lei nº 13.260/2016 (BRASIL, 2016, Art. 6º) resultará em pena de 15 a 30 anos de prisão mediante condenação. Quem oferece ou recebe, obtém, armazena, mantém em depósito, solicita, investe ou de outra forma contribui para a aquisição de bens ou recursos financeiros, a fim de financiar, no todo ou em parte, uma pessoa. Incorrerão na mesma pena o grupo de pessoas, associação, organização ou organização criminosa cuja atividade principal ou secundária, ainda que ocasionalmente, os crimes previstos na Lei nº 13.260/2016 (BRASIL, 2016, Art. 6, Parágrafo Único).

3.1.5 Investigação criminal de atos terroristas

Para todos os efeitos legais, considera-se que as infrações penais previstas na Lei nº 13.260/2016 (BRASIL, 2016) são cometidas contra os interesses da União. A Polícia Federal é competente para proceder à investigação criminal cabível, e os tribunais federais são competentes para processar os crimes previstos no Inciso IV do Art. 109 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) (ver também o Art. 11).

Desde que haja provas suficientes da prática do crime instituído nos termos da Lei nº 13.260/2016 (BRASIL, 2016), o juiz poderá, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou do delegado de polícia, no curso da investigação ou do processo, ordenar o sequestro dos bens, direitos ou valores do investigado ou acusado, ou de intermediários, que sejam instrumento, produto ou ganho dos crimes previstos na Lei nº 13.260/2016 (BRASIL, 2016, Art. 12).

Para a investigação, ação penal e julgamento dos crimes previstos na Lei nº 13.260/2016 (BRASIL, 2016), o disposto na Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013 (BRASIL, 2013), que define organização criminal, investigação criminal e obtenção de provas, e da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (BRASIL, 1990), que dispõe sobre a punição de crimes hediondos, também são aplicáveis (ver também BRASIL, 2016, Arts. 16 e 17).

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A proposta de legislação antiterrorismo aprovada pelo Congresso Nacional foi muito ampla e pode restringir indevidamente as liberdades fundamentais, de acordo com um grupo de Relatores Especiais da ONU (HUMAN RIGHTS, 2015). Para o grupo de especialistas do Alto-Comissariado de Direitos Humanos da ONU, a definição do crime estabelecida pelo projeto de lei pode resultar em ambiguidades e confusão quanto ao que o Estado considera um crime terrorista, potencialmente prejudicando o exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais (HUMAN RIGHTS, 2015).

EM CINCO ANOS, LEI ANTITERRORISMO CONDENOU 11 RÉUS

Em vigor há cinco anos, a Lei Antiterrorismo pouco tem sido utilizada em investigações da Polícia Federal e resultou na condenação de 11 pessoas. Nas maiores operações contra supostos terroristas no país, houve casos em que a Justiça recusou as acusações e de suspeitos que, após prisões preventivas, não foram processados. Entretanto, o governo se movimentou para reabrir a discussão de um projeto que pode ampliar o alcance das ações de contraterrorismo.

FONTE: <https://www.istoedinheiro.com.br/em-cinco-anos-lei-antiterrorismo-condenou--11-reus/>. Acesso em: 29 maio 2021.

IMPORTANTE

4 O BRASIL NO CONTEXTO DA SEGURANÇA INTERNACIONAL

O Brasil, na primeira década do século XXI, viveu um período de ascensão econômica surpreendente. Embora o crescimento tenha sido menor que o de outros países do BRICS (Rússia, Índia e China), a principal vantagem do Brasil, sobre as outras potências emergentes, é o nível menor de ameaças estratégicas.

Isso não significa que o Brasil não enfrente nenhuma ameaça: tráfico de drogas, contrabando de armas e atividades de guerrilha em uma região de fronteira sem lei na Amazônia são ameaças de segurança mais perigosas que as vindas do exterior. De forma análoga, como maior exportador mundial de produtos agrícolas, a mudança climática, a destruição da floresta tropical, intimamente ligados à falta de controle do governo na região, também é uma ameaça, pois pode alterar os padrões climáticos em um país altamente dependente da chuva.

No entanto, o Brasil está em uma posição muito melhor do que China, Índia e Rússia. A Índia, por exemplo, enfrenta conflitos perenes na fronteira com o Paquistão e com a China. Além disso, convive com as instabilidades no Nepal, ao Norte, e no Sri Lanka, ao Sul, além de enfrentar uma insurgência renitente maoísta em áreas do

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

Leste e Nordeste do país. A Rússia, por sua vez, vê seu papel de influência diminuída pela expansão da Otan, no Ocidente, e pela China, cada vez mais faminta de recursos no Oriente. A China, simultaneamente, se depara com conflitos internos em suas regiões habitadas por muçulmanos e no Tibete. Ademais, sua disputa de fronteiriça com a Índia pode causar um conflito militar no futuro.

O Brasil, por sua vez, resolveu seu último conflito de fronteira há um século e o último engajamento militar sério ocorreu na Segunda Guerra Mundial. O conflito externo, embora seja dramático, não é o único tipo de ameaça estratégica que os países enfrentam; ameaças internacionais muito diversas podem ser categorizadas da seguinte forma:

• conflito externo;• ameaças nucleares;• ameaças econômicas;• ameaças relacionadas ao crime;• ameaças ideológicas;• ameaças ambientais.

O Brasil, em suma, não enfrenta ameaças tão óbvias como as da China, Rússia ou Índia. Considerando que os outros BRICS enfrentam ameaças que assumem as formas convencionais de conflito militar, competição de recursos, entre outros, as ameaças ao Brasil são mais sutis.

O BRICS é o agrupamento formado por cinco grandes países emergentes – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – que, juntos, representam cerca de 42% da população, 23% do produto interno bruto (PIB), 30% do território e 18% do comércio mundial. O acrônimo BRIC foi cunhado, em 2001, pelo banco de investimentos Goldman Sachs, para indicar as potências emergentes que formariam, com os Estados Unidos, as cinco maiores economias do mundo no século XXI. Em 2006, os países do BRIC deram início ao diálogo que, desde 2009, tem lugar nos encontros anuais de chefes de Estado e de Governo. Em 2011, com o ingresso da África do Sul, o BRICS alcançou sua composição definitiva, incorporando um país do continente africano.

FONTE: <https://tinyurl.com/mn5u9ssy>. Acesso em: 29 abr. 2021.

IMPORTANTE

Um dos tópicos a se considerar nas relações exteriores brasileiras é a ameaça representada pela instabilidade regional. Após décadas de bipolaridade, o fim da Guerra Fria teve como consequência um período de unipolaridade. Não obstante os Estados Unidos manterem o domínio militar na primeira década do

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TÓPICO 3 — TERRORISMO CIBERNÉTICO: O QUADRO JURÍDICO BRASILEIRO SOBRE O TERRORISMO E O BRASIL NO CONTEXTO DA SEGURANÇA INTERNACIONAL

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século XXI, a multipolaridade econômica se tornou um fator fundamental na mudança do eixo de poder do Ocidente para o Oriente. Dessa maneira, a China e, às vezes, Índia e União Europeia são consideradas desafios para outros países nas próximas décadas.

No entanto, o Brasil passou a receber atenção, na primeira década de 2000, quando sua economia, então, se mostrava robusta e resistente diante das crises econômicas de 2008 e 2009. Além disso, na ocasião, o governo brasileiro pretendia concorrer a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, aumentar seu peso no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional (FMI), e desempenhar um papel mais proeminente no G20 (é um grupo formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia).

O Brasil é a maior e mais importante nação da América do Sul, com 35% de sua população total, 47% de seu tamanho total e quase metade de seu PIB total. No entanto, nem sempre o Brasil consegue projetar seu peso geopolítico regional para influenciar positivamente o continente. Essa limitação reduz a capacidade de enfrentar ameaças estratégicas, especialmente aquelas que requerem colaboração com outros países. Com o enfraquecimento do discurso geopolítico de ameaça comunista e o imperialismo capitalista, outras ameaças surgiram, como degradação ambiental, tráfico de drogas, violência e crime organizado. Portanto, não é a força de outros Estados que constitui uma ameaça regional, e sim sua fraqueza e instabilidade.

Ao contrário do Brasil, que resolveu todas as suas disputas de fronteira, ainda persistem, na América do Sul, focos de conflito sobre limites, principalmente no norte do continente, entre o Peru e Equador e, na atualidade, a tensão entre a Colômbia e Venezuela. Em torno de sua fronteira comum, imigração ilegal, drogas e guerrilha são prevalentes e alguns analistas interpretaram um recente pico nos gastos com defesa na região como uma incipiente corrida armamentista. No entanto, nenhum dos conflitos potenciais envolvem Brasil, uma vez que nenhum de seus vizinhos tem uma razão ou a capacidade de ameaçá-lo no futuro.

Fora da América do Sul, o Brasil não enfrenta ameaça de conflito. Estados Unidos, China ou potências europeias não têm interesse em atacar o Brasil. Durante a Guerra Fria, a União Soviética foi percebida por certos setores como uma ameaça, mas o Brasil, notadamente os governos da ditadura militar, se sentiam seguros sob o guarda-chuva de segurança hemisférica dos Estados Unidos. No entanto, a descoberta de vastas reservas de petróleo perto da costa do Brasil nas profundezas do Atlântico Sul (o “pré-sal”) aumentou preocupações sobre a capacidade do país de proteger sua zona marítima de 200 milhas ao longo de cerca de 7.500 km de litoral.

Em termos de impacto e influência, as potências europeias e asiáticas estão muito distantes da América do Sul, mas é com os Estados Unidos que as relações do Brasil são mais complexas. Embora as ameaças fora do hemisfério não desempenhem praticamente nenhum papel no pensamento estratégico

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UNIDADE 3 — CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS, RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS E O BRASIL NA SEGURANÇA INTERNACIONAL

brasileiro, os Estados Unidos sempre foram considerados uma ameaça em potencial, principalmente no contexto de assumir o controle da Amazônia. A ameaça perene à Amazônia brasileira, aliás, é parte de um discurso nacionalista, ressuscitado, com ares de paranoia, durante a ditadura militar, sob o pretexto de uma cobiça e, consequente tomada, da Amazônia brasileira. Mesmo considerando declarações mais radicais de líderes estrangeiros e organizações internacionais sobre a importância da Amazônia para o ecossistema global, não existe nenhuma evidência concreta de que algum país esteja disposto a ocupar fisicamente a floresta amazônica. Portanto, conclui-se que ameaças de um conflito com outros Estados são praticamente inexistentes, exceto em certos círculos de nacionalismo radical ou retórica política manipulada por interesses populistas.

4.1 AMEAÇAS NUCLEARES

Além do Brasil, apenas dois países na América do Sul poderiam desenvolver ou adquirir armas nucleares: Argentina e Venezuela. Em 1991, os parlamentos da Argentina e do Brasil ratificaram uma inspeção bilateral que criou a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), para inspecionar o compromisso do uso de energia nuclear apenas para fins pacíficos. Em 1995, a Argentina aderiu ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) e o Brasil também, em 1998. A Venezuela já havia assinado o tratado na década de 1960.

Dessa maneira, o Tratado de Tlatelolco, assinado em 1967, que baniu as armas nucleares no Caribe e na América Latina, dificilmente será mudado. Mesmo que tratado fosse alterado ou desfeito, países com capacidade, em tese, de produzir armas nucleares, como a Argentina, provavelmente, continuariam a usar a energia nuclear para fins pacíficos, desde que o Brasil fizesse o mesmo. Em 2010, a Venezuela anunciou um acordo de cooperação com a Rússia para a construção de um reator nuclear, com o objetivo de diversificar suas fontes de energia. No entanto, o acordo em si não representa um perigo para os tratados vigentes.

Por outro lado, em 2004, o Brasil barrou a visita de inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica, violando suas obrigações nos termos do Tratado de Não Proliferação Nuclear. Ademais, em 2012, o Brasil iniciou o projeto de construção de um submarino com propulsão nuclear. Posteriormente, durante uma reunião do Grupo de Fornecedores Nucleares (GNF), uma organização que trabalha pela não proliferação, controlando as exportações de materiais nucleares, o representante brasileiro se esforçou para não cumprir os requisitos que teriam feito o programa de submarino nuclear transparente. No entanto, apesar desses sinais ambíguos, o Brasil dificilmente desenvolverá um arsenal nuclear.

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FIGURA 33 – SUBMARINO RIACHUELO. MARINHA DO BRASIL

FONTE: <https://nominuto.com/noticias/brasil/marinha-lanca-novo-submarino-riachue-lo/178833/>. Acesso em: 29 abr. 2021.

4.2 AMEAÇAS ECONÔMICAS

Na ausência de conflitos armados, os governos brasileiros passam a priorizar as ameaças e a natureza econômica. As ameaças econômicas podem surgir de várias maneiras, como em forma de competição estrangeira, que pode se tornar uma ameaça para atividades econômicas domésticas. Um exemplo é a prática do livre-comércio agrícola, que constitui um risco estratégico para União Europeia, Estados Unidos e Índia, em razão da impossibilidade dos seus produtos agrícolas competirem sem subsídios de seus respectivos governos.

No caso de países com economias orientadas para exportação, como o Brasil, o surgimento de barreiras comerciais pode ser uma ameaça estratégica. Isso é particularmente preocupante se a pauta de exportações não for diversificada ou se as exportações estiverem concentradas para um único país. Por exemplo, em vários países africanos, as exportações se limitam a um ou dois produtos, o que os torna altamente vulneráveis quando a demanda global por certos produtos se contrai. De forma análoga, a economia mexicana, embora mais diversificada, se concentra em exportar para o mercado norte-americano, o que torna a economia do México sensível às flutuações econômicas dos Estados Unidos.

No caso brasileiro, a economia historicamente volátil e propensa a recessões severas provou, em um primeiro momento, ser resistente, em 2008-2009, durante a crise econômica global. O Brasil foi um dos últimos países a entrar em recessão, o que, em parte, se explica pela diversificação da pauta de exportações e da existência de um mercado consumidor interno significativo. Entretanto, nos últimos anos, a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil, concentrando não apenas as exportações, mas também as importações brasileiras. Além disso, outro fator que pode tornar a economia brasileira vulnerável é a crescente dependência da exportação de certos produtos básicos, o que compromete a diversificação da pauta de exportação do Brasil.

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ECONOMIAS DA AMÉRICA DO SUL VIVEM MALDIÇÃO DA VOLATILIDADE

Altamente dependentes da exportação de commodities, países da região assolados por crises políticas vivem fim de ciclo de bonança econômica, que abala a popularidade de quem está no poder, afirma pesquisadora.

FONTE: <https://bit.ly/3iW1Hh6>. Acesso em: 29 ago. 2021.

IMPORTANTE

4.3 AMEAÇAS AMBIENTAIS

Como o maior exportador mundial de produtos agrícolas, o Brasil está, particularmente, sujeito a alterações climáticas. Consequentemente, o aquecimento global é considerado a ameaça mais significativa à segurança do Brasil. Ao contrário do que sugere o discurso do governo brasileiro, vários setores da sociedade buscam se engajar ativamente no combate às mudanças climáticas, principalmente reduzindo a taxa de destruição da floresta amazônica, a qual abrange 60% de sua totalidade em território brasileiro, o que constitui o maior sumidouro de carbono em do mundo.

Uma alteração nos padrões pluviométricos, como consequência de mudança climática, poderia, por exemplo, ter consequências trágicas nas áreas cultivadas no Mato Grosso. Sobre o desmatamento, o problema reside na persistência de que ainda é economicamente justificável destruir a floresta. Os madeireiros limpam a área das árvores mais valiosas e, então, os fazendeiros se mudam para criar gado ou cultivar soja. Essa é a razão que explica como o ritmo do desmatamento acompanha o preço da carne bovina e da soja. Entretanto, esse boom econômico gerado nessas áreas é geralmente de curta duração. A maioria das áreas cultivadas encolhe, voltando ao período de baixa atividade econômica anterior. No entanto, com a fronteira da floresta tropical mudada, há o risco de diminuir a precipitação pluviométrica, de forma permanente, em todas as regiões do Brasil, com riscos graves em vários níveis, inclusive, na economia.

O Brasil está localizado em uma região do mundo que é virtualmente livre de grandes conflitos militares. Assim, as ameaças estratégicas e de segurança enfrentadas são consideravelmente menores que outros países emergentes. Essa situação influencia, de forma significativa, a autoimagem do Brasil e como isso se reflete na percepção da comunidade internacional. O país gasta relativamente pouco na defesa em comparação com outras potências emergentes. Em 2006, o Brasil gastou cerca de 14,3 bilhões de dólares, quase tanto quanto a Austrália ou a Espanha, mas menos do que a Índia, a Rússia ou a Alemanha, e muito atrás de China, Japão e França e Estados Unidos.

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O Brasil, portanto, mantém forças armadas com contingentes relativa-mente pequenos, o que, mesmo assim, se destaca quando comparado com seus vizinhos latino-americanos. O exército brasileiro é três vezes maior que o da Co-lômbia, quatro vezes maior que o do México e sete vezes maior que o da Argen-tina. Dessa maneira, sendo o país mais populoso e de maior extensão geográfi-ca, dificilmente o Brasil pode ser ameaçado militarmente por qualquer nação na América Latina. Por outro lado, é historicamente considerado por seus vizinhos um país com pretensões hegemônicas e a principal ameaça de segurança.

Como consequência da ausência de ameaças externas, há uma discussão sobre o emprego interno das forças armadas na manutenção de questões domésticas, geralmente relacionadas com drogas, violência e ordem pública. Desse modo, em razão da capacidade militar reduzida, a política de segurança brasileira é apenas regional e, apesar de sua liderança na Missão de Paz da ONU no Haiti (MINUSTAH), o país não se destaca como contribuinte de tropas para missões da ONU em geral (El Salvador, Croácia, Angola e Timor Leste, entre outros).

Em parte, como consequência da dessa ausência de ameaças externas e da capacidade limitar reduzida, a política externa do Brasil concentra seus esforços na diplomacia, com ênfase no multilateralismo. O país é inerentemente pacifista e autoinvestiu no papel de mediador. O Brasil é signatário de todos os principais tratados internacionais de controle de armas. Não obstante, uma parcela significativa dos brasileiros compartilhar a percepção do país como uma potência, poucos defendem o envolvimento em conflitos distantes. Existe um entendimento de que o país precisa resolver seus problemas sociais mais urgentes, como desigualdade e pobreza, antes de pensar em se envolver em questões internacionais. O Brasil, portanto, deve continuar a usar diplomacia e multilateralismo como estrutura de sua política externa.

FIGURA 34 – DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA

FONTE: <https://tinyurl.com/y222ev82>. Acesso em: 29 abr. 2021.

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LEITURA COMPLEMENTAR

O CHOQUE DA IGNORÂNCIA

Edward W. Said

Rótulos como “Islã” e “Ocidente” servem apenas para nos confundir sobre uma realidade desordenada

O artigo de Samuel Huntington The Clash of Civilizations? (O Choque das Civilizações) atraiu a atenção e reação imediata ao ser publicado na edição do verão, de 1993, da Foreign Affairs. O artigo pretendia proporcionar aos americanos uma tese original sobre “uma nova fase” na política mundial, após o fim da Guerra Fria. Os argumentos de Huntington pareciam convincentes, ousados e até mesmo visionários. Seu objetivo parecia ser engrossar as fileiras dos novos formuladores de políticas e teóricos como Francis Fukuyama com suas ideias de “fim da história”. Além disso, esperava agradar as legiões que se opunham ao globalismo e celebravam a dissipação do Estado. Entretanto, para Huntington, Fukuyama e outros haviam entendido apenas alguns aspectos desse novo período. E, portanto, caberia a ele anunciar o “aspecto crucial e central” do que “a política global provavelmente será nos próximos anos”. Sem hesitar afirmava:

Minha hipótese é que a fonte fundamental do conflito neste novo mundo não será inteiramente ideológica ou econômica. As grandes divisões e as fontes de conflitos serão culturais. Os estados-nações continuarão sendo os atores mais poderosos nos assuntos mundiais, mas os principais conflitos da política global ocorrerão entre nações e grupos de civilizações diferentes. O choque de civilizações dominará a política global. As linhas de fratura entre as civilizações serão as linhas de batalha do futuro.

A maior parte da argumentação nas páginas que se seguem se baseou em uma vaga noção de algo que Huntington chamou de “identidade de civilização” e “as interações entre sete ou oito [sic] civilizações principais”, das quais o conflito entre duas delas, o islã e o Ocidente, recebe a maior parte de sua atenção. Nessa linha de pensamento beligerante, ele busca suporte em um artigo do veterano orientalista Bernard Lewis, publicado, em 1990, cujas cores ideológicas se manifestam em seu título: As raízes da fúria muçulmana. Em ambos os artigos, a personificação de entidades imensas chamadas “Ocidente” e “Islã” é retratada de forma imprudente, como se questões altamente complexas, como “identidade” e “cultura”, existissem em um mundo de desenho animado onde Popeye e Brutus se agridem impiedosamente, com o mais virtuoso sempre levando vantagem sobre seu adversário. Certamente, nem Huntington nem Lewis têm muito tempo a perder com a dinâmica interna e pluralidade de cada civilização. Ou para o fato de que a maior disputa na maioria das culturas modernas diz respeito à

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definição ou interpretação de cada cultura. Ou mesmo para a possibilidade de que a demagogia e total ignorância permeiam nas análises generalizantes de uma determinada religião ou civilização. Não, para Huntington, o Ocidente é o Ocidente e o islã é o islã.

O desafio para os formuladores de políticas no Ocidente, diz Huntington, é garantir que o Ocidente se fortaleça e afaste todos os outros, do islã em particular. Mais preocupante é a suposição de Huntington de que sua perspectiva, que é pesquisar o mundo inteiro de um pedestal, é a correta, como se todos estivessem correndo em busca das respostas que ele já encontrou. Na verdade, Huntington é um ideólogo, alguém que deseja transformar “civilizações” e “identidades” no que não são: entidades fechadas e isoladas que foram eliminadas da miríade de correntes e contracorrentes que animam a História humana. História que, ao longo dos séculos, não apenas feita de guerras religiosas e conquistas imperiais, mas também uma História de troca, fecundação mútua e compartilhamento. Essa História, muito menos visível, é ignorada na pressa de destacar a guerra ridiculamente restrita que “o choque de civilizações” afirma ser a realidade. Quando Huntington publicou seu livro, com o mesmo título em 1996, tentou dar ao seu argumento um pouco mais de sutileza e muitas, muitas mais notas de rodapé – tudo o que ele fez, entretanto, foi se confundir e demonstrar que era um escritor desajeitado e um pensador deselegante.

O paradigma básico do Ocidente contra o “resto” (equivalente a figura do adversário na Guerra Fria reformulada) permaneceu intocado, e é quem persistido, de forma oportunista, em discussão desde os terríveis eventos de 11 de setembro. O ataque suicida, cuidadosamente planejado, e horrendo, com motivação patológica e o massacre em massa por um pequeno grupo de militantes enlouquecidos se tornou a prova da tese de Huntington. Em vez de ver o que é – a captura de certos ideais (uso esta palavra de modo genérico) por um minúsculo bando de fanáticos enlouquecidos para fins criminosos – políticos das mais variadas afiliações as origens, da ex-primeira-ministra do Paquistão, Benazir Bhutto, ao primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, se limitaram a apontar os “problemas do Islã”. Berlusconi, fazendo coro com Huntington, lembrava sobre a “superioridade” do Ocidente, como “nós” temos Mozart e Michelangelo e eles não (Berlusconi, desde então, pediu desculpas protocolares por seu insulto ao “Islã”).

Entretanto, por que não ver paralelos, mesmo que menos espetaculares em sua destrutividade, entre Osama bin Laden e seus seguidores, com cultos como o Branch Davidians (os fanáticos da Tragédia de Waco, no Texas, em 1993) ou os discípulos do Rev. Jim Jones na Guiana (suicídio coletivo, em 1978, Jones-town) ou do japonês Aum Shinrikyo (líder da seita que fez o ataque a gás sarin no metrô de Tóquio, em 1995)? Até o habitualmente sóbrio semanário britânico The Economist, em sua edição de 22 a 28 de setembro, não consegue resistir à vasta ge-neralização elogiando Huntington por suas observações “cruéis e arrebatadoras, mas ainda assim agudas” sobre o Islã. “Hoje”, diz o jornal com indecorosa sole-nidade, Huntington escreve que “cerca de um bilhão de muçulmanos no mundo

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estão “convencidos da superioridade cultural do Ocidente e obcecados com sua inferioridade de seu poder”. Será que Huntington capturou e entrevistou 100 in-donésios, 200 marroquinos, 500 egípcios e cinquenta bósnios? Mesmo que tivesse conseguido tal feito, que tipo de amostra seria essa?

Editoriais incontáveis em jornais e revistas norte-americanos e europeus inflamavam a paixão indignada do leitor que se via como parte de um “Ocidente” triunfante. Até a retórica de Churchill foi usada, de forma inadequada, pelos autoproclamados “combatentes” do Ocidente. Em especial, nos Estados Unidos, onde a atenção a complexidade do tema é escassa e a ideia de separar norte-americanos e “outros”, inimigos, espoliadores e destruidores, em trincheiras armadas tem um apelo particular para determinado público.

O problema com rótulos generalizantes como o “islã” e o “Ocidente” é que eles enganam e confundem ao tentar dar sentido a uma realidade desordenada. Lembro-me de interromper um homem que, depois de uma palestra que dei em uma universidade da Cisjordânia, em 1994, levantou-se da plateia e começou a atacar minhas ideias como “ocidentais” em oposição às ideias de cunho islâmico que defendia. A réplica que me veio à mente foi: “Por que você está de terno e gravata? Eles também são ocidentais”. Ele se sentou com um sorriso constrangido no rosto, mas me lembrei desse incidente quando as informações sobre os terroristas de 11 de setembro começaram a chegar: como eles haviam dominado todos os detalhes técnicos necessários para infligir um ataque letal no World Trade Center e de menor monta no Pentágono. Nesse caso, onde se traça a linha entre a tecnologia “ocidental” e, como Berlusconi declarou, a incapacidade do “Islã” de fazer parte da “modernidade”?

Isso não é tão simples, é claro. Em última análise, quão inadequados são os rótulos, generalizações e afirmações culturais. Em algum nível, por exemplo, paixões primitivas e know-how sofisticado convergem de maneiras que desmentem uma fronteira fortificada não apenas entre “Ocidente” e “Islã”, mas também entre passado e presente, “nós” e “eles”, para não falar dos próprios conceitos de identidade e nacionalidade, sobre os quais há discordância e debate intermináveis. A decisão unilateral de traçar riscos na areia, empreender cruzadas, opor seu “mal” ao nosso “bem”, extirpar o terrorismo e, no vocabulário niilista de Paul Wolfowitz, acabar totalmente com as nações, não torna as supostas entidades mais fáceis de ver. Em vez disso, mostra como é muito mais simples fazer declarações belicosas com o propósito de mobilizar paixões coletivas do que refletir, examinar, determinar com o que estamos lidando na realidade, a interconexão de inúmeras vidas, “nossas” também como “deles”.

Em uma notável série de três artigos publicados, entre janeiro e março de 1999, o falecido Eqbal Ahmad, escrevendo para um público muçulmano, analisou o que chamou de raízes da “direita religiosa”, criticando duramente as mutilações feitas ao Islã por absolutistas e tiranos fanáticos, cuja obsessão em regular o comportamento pessoal promove uma ordem islâmica reduzida a um código penal despojado de seu humanismo, estética, buscas intelectuais e devoção

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espiritual. Isso implica uma afirmação absoluta de um aspecto da religião, geralmente descontextualizado, e um total desprezo por outro. O fenômeno distorce a religião, rebaixando a tradição e distorcendo o processo político onde quer que seja.

Como um exemplo oportuno dessa degradação, Eqbal Ahmad passa primeiro a apresentar o significado rico, complexo e pluralista da palavra “jihad” e, em seguida, passa a mostrar que no atual confinamento da palavra à guerra indiscriminada contra supostos inimigos, é impossível “reconhecer o Islâmica – religião, sociedade, cultura, história ou política – vivida e experimentada pelos muçulmanos ao longo dos tempos”. Os muçulmanos modernos, conclui Ahmad, estão “preocupados com o poder, não com a alma; com a mobilização das pessoas para fins políticos, em vez de compartilhar e aliviar seus sofrimentos e aspirações. A agenda política deles é muito limitada e limitada no tempo”. O que piorou as coisas é que distorções e fanatismo semelhantes ocorrem nos universos dos discursos “judeu” e “cristão”.

Joseph Conrad, com mais contundência que qualquer um de seus leitores do final do século XIX poderia ter imaginado, foi quem entendeu que as diferenças entre a Londres civilizada e “o coração das trevas”, nas florestas do Congo, se dissipavam rapidamente em situações extremas, e que as alturas da civilização europeia poderiam cair instantaneamente nas práticas mais bárbaras sem preparação ou transição. E foi Conrad também, em O Agente Secreto (1907), que descreveu a afinidade do terrorismo por abstrações como “ciência pura” (e por extensão para “Islã” ou “Ocidente”), bem como a degradação moral final do terrorista.

Assim, há laços mais estreitos entre civilizações, aparentemente beligerantes, do que a maioria de nós gostaria de acreditar. Freud e Nietzsche mostraram como o movimento através de fronteiras cuidadosamente mantidas, até mesmo policiadas, se move com uma facilidade muitas vezes assustadora. No entanto, essas ideias fluidas, cheias de ambiguidade e ceticismo sobre noções que nos agarramos, dificilmente nos fornecem diretrizes práticas adequadas para situações como a que enfrentamos agora. Daí as ordens de batalha mais convenientes (uma “cruzada”, “bem” contra o “mal”, “liberdade” contra o “medo” etc.) extraídas da alegada oposição de Samuel Huntington entre o Islã e o Ocidente, tão convenientes que o discurso oficial extraiu do seu vocabulário seu arsenal retorico nos primeiros dias após os ataques de 11 de setembro. Desde então, houve uma redução perceptível nesse discurso, mas o paradigma permanece julgar pelo volume do discurso e de ações de ódio, além de relatos de esforços de aplicação da lei dirigidos contra árabes, muçulmanos e indianos nos Estados Unidos.

Outra razão para a persistência dos discursos de ódio é o aumento da presença de muçulmanos em toda a Europa e nos Estados Unidos. Imagine se as populações atuais de França, Itália, Alemanha, Espanha, Grã-Bretanha e Estados Unidos, e até mesmo da Suécia, admitissem que o Islã não está mais à

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margem do Ocidente, mas em seu centro. No entanto, o que há de tão ameaçador nessa presença? Soterradas na cultura coletiva estão as memórias das primeiras conquistas árabes-islâmicas, no século VII, que, como escreveu o historiador belga Henri Pirenne em seu livro seminal, Mohammed e Carlos Magno (1939), destruíram, para sempre, a antiga unidade do Mediterrâneo, baseada em uma romano-cristã, e deu origem a uma nova civilização que viria a ser dominada pelas potências do norte (Alemanha e França carolíngia), cuja missão, parecia estar dizendo, seria retomar a defesa do “Ocidente” contra seus inimigos culturais. O que Pirenne não disse, infelizmente, é que, na criação dessa nova “linha de defesa”, o Ocidente se valeu de humanismo, ciência, filosofia, sociologia e historiografia do Islã que se interpuseram entre o mundo de Carlos Magno e a Antiguidade clássica. O Islã, dessa maneira, nunca foi o “outro”, como até mesmo Dante, grande inimigo de Maomé, teve que admitir ao Profeta no próprio coração de seu Inferno.

Há ainda o legado persistente do próprio monoteísmo nas religiões abraâmicas, como Louis Massignon as chamou com propriedade. Começando com o judaísmo e o cristianismo, cada um deles um sucessor atormentado por aquele que veio antes. Para os muçulmanos, o islã encerra a linha da profecia. Ainda não há um capítulo final na disputa multifacetada entre esses três seguidores – nenhum deles, de forma alguma, um campo monolítico e unificado. Embora a sangrenta convergência moderna na Palestina forneça um rico exemplo secular do que é irreconciliável entre eles. Portanto, não é de surpreender que muçulmanos e cristãos falem prontamente de cruzadas e jihads, ambos omitindo a presença judaica com uma despreocupação sublime. Tal agenda, diz Eqbal Ahmad, é “muito reconfortante para os homens e mulheres que estão presos no meio de um rio, entre as águas profundas, da tradição e da modernidade”.

No entanto, todos estamos nadando nessas águas: ocidentais, muçulmanos e outros. E, como as águas fazem parte do oceano da História, tentar dividi-las com barreiras é inútil. Esses são tempos dramáticos, mas seria melhor pensar a divisão e dicotomia não entre o Ocidente e o resto, mas em termos de comunidades “poderosas” e comunidade “menos poderosas”, entre a política secular da razão e a ignorância, entre os princípios universais de justiça e da injustiça, do que vagar em busca de abstrações vagas que podem oferecer uma satisfação momentânea, mas pouco autoconhecimento ou uma análise coerente. A tese do “O choque de civilizações” é um artifício, como a ficção apocalíptica de H.G. Wells A guerra dos mundos, boa para reforçar o amor-próprio defensivo, mas péssima para uma compreensão crítica da desconcertante interdependência de nosso tempo.

FONTE: Adaptado de SAID, E. W. The Clash of Ignorance. The Nation, 2001. Disponível em: https://tinyurl.com/225sndpn. Acesso em: 28 abr. 2021.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• O debate sobre terrorismo cibernético começou no final da década de 1990, em meio a uma onda de ataques terroristas nos Estados Unidos, incluindo o atentado ao World Trade Center, em 1993, e a explosão em Oklahoma, em 1995.

• Em 1999, foi feito o primeiro estudo sobre “terror cibernético” para a Agência de Inteligência de Defesa dos Estados Unidos.

• A pesquisa sobre terrorismo cibernético também foi alvo das preocupações de outros governos, além dos Estados Unidos. O governo japonês, em 2000, começou a combater o terror cibernético, em razão das atividades de grupos radicais japoneses e hacktivistas chineses.

• Do ponto de vista operacional, em termos de análise, não importa quem está por trás do ataque cibernético: pode ser um indivíduo não radicalizado, sem vínculos com nenhuma organização terrorista, pode ser um grupo terrorista que interage regularmente com criminosos cibernéticos ou mesmo um Estado-nação.

• O terrorismo cibernético é provavelmente mais visto como uma tática operacional, voltada para um resultado psicológico distinto, em vez de um campo de pesquisa que conecta o domínio cibernético ao terrorismo no espaço real.

• Em 16 de março de 2016, o Brasil promulgou a Lei nº 13.260/2016 para regulamentar o inciso XLIII do Art. 5º da Constituição Federal sobre o terrorismo (BRASIL, 2016).

• A nova Lei nº 13.260/2016 definiu terrorismo como a prática, por uma ou mais pessoas, de certos atos enumerados por motivos de xenofobia; discriminação; ou preconceito com relação a raça, cor, etnia ou religião, quando cometidos com o propósito de causar terror social ou generalizado e expor pessoas, propriedades, paz pública ou segurança pública a perigo (BRASIL, 2016).

• Para a grupo de especialistas do Alto-Comissariado de Direitos Humanos da ONU, a definição do crime estabelecida pela lei brasileira antiterrorista pode resultar em ambiguidades.

• O Brasil, na primeira década do século XXI, viveu um período de ascensão econômica surpreendente. Embora o crescimento tenha sido menor que outros países do BRICS (Rússia, Índia e China), a principal vantagem do Brasil sobre as outras potências emergentes é o menor nível de ameaças estratégicas.

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CHAMADA

• O Brasil, em suma, não enfrenta ameaças tão óbvias como a China, a Rússia ou a Índia. Considerando que os outros países do BRIC enfrentam ameaças que assumem as formas convencionais de conflito militar, competição de recursos, entre outros, as ameaças ao Brasil são mais sutis.

• Um dos tópicos a serem considerados nas relações exteriores brasileiras é a ameaça representada pela instabilidade regional.

• O Brasil nem sempre consegue projetar seu peso geopolítico regional para influenciar positivamente o continente.

• A ameaça perene à Amazônia brasileira, aliás, é parte de um discurso nacionalista, ressuscitado, com ares de paranoia, durante a ditadura militar, sob o pretexto de uma cobiça, e consequente tomada, da Amazônia brasileira.

• O Brasil está localizado em uma região do mundo que é virtualmente livre de grandes conflitos militares. Assim, as ameaças estratégicas e de segurança enfrentadas pelo Brasil são consideravelmente menores que outros países emergentes.

• Existe um entendimento de que o país precisa resolver seus problemas sociais mais urgentes, como desigualdade e pobreza, antes de pensar em se envolver em questões internacionais. O Brasil, portanto, deve continuar a usar diplomacia e o multilateralismo como estrutura de sua política externa.

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1 Ciberterrorismo ou terrorismo cibernético é definido como o uso da inter-net para realizar atos violentos que resultam ou ameaçam vidas ou danos corporais significativos, a fim de obter ganhos políticos ou ideológicos por meio de ameaça ou intimidação. Com relação ao terrorismo cibernético, analise as sentenças a seguir:

I- O debate sobre terrorismo cibernético só começou após os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos.

II- O relatório da “Comissão Marsh” sobre a proteção de infraestrutura crítica colocou o crescente cenário de ameaças cibernéticas no mapa político do governo norte-americano.

III- Em 1999, foi realizado, pela Escola Naval de Pós-graduação dos Estados Unidos, o primeiro estudo sobre “terror cibernético”.

IV- No estudo feito em 1999, nos Estados Unidos, o uso de tecnologia por terroristas da informação em suas atividades se qualifica como terrorismo cibernético.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças II e III estão corretas.b) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.c) ( ) As sentenças III e IV estão corretas.d) ( ) Apenas a sentença I está correta.

2 A Lei Antiterrorismo é uma lei ordinária, de autoria do poder executivo, que trata da tipificação, do julgamento e da punição para crimes de natureza terrorista no território nacional do Brasil. Sobre a lei antiterrorismo, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Definições vagas ou excessivamente amplas de terrorismo não afetam de uso indevido deliberado do termo.

( ) A proposta de legislação antiterrorismo, aprovada pelo Congresso Nacional, é muito ampla e pode restringir indevidamente as liberdades fundamentais.

( ) A lei antiterrorista brasileira trata da prática de tortura ilícita, tráfico de entorpecentes e drogas semelhantes, terrorismo e crimes definidos como hediondos, não sujeitos à fiança, clemência ou anistia.

( ) As polícias militares são competentes para proceder a investigação criminal cabível e os tribunais estaduais são competentes para processar os crimes previstos na lei antiterrorista brasileira.

AUTOATIVIDADE

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Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) F – V – V – F.b) ( ) V – F – V – F.c) ( ) V – F – F – V.d) ( ) F – F – V – V.

3 O Brasil está incluído entre os dez países com características que lhe dão condições de ser um ator de primeira grandeza no cenário mundial. Em termos de território, somos o quinto maior país, também ocupamos a quinta posição em população no mundo e, em economia (PIB), estamos em sétimo lugar, além de possuirmos uma grande abundância de recursos naturais. Com relação à situação brasileira quando comparada com outros países do BRICS, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) O Brasil, em termos de ameaças estratégicas, está nivelado aos outros membros dos BRICS.

( ) Mudança climática, destruição da floresta tropical e falta de controle do governo, em determinadas regiões, são as ameaças estratégicas do Brasil.

( ) A Índia enfrenta ameaças perenes nos conflitos fronteiriços com a China e o Paquistão.

( ) A China não enfrenta ameaças internas e externas.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – V – F – F.b) ( ) F – V – V – F.c) ( ) F – F – F – V.d) ( ) F – V – F – V.

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REFERÊNCIAS

ABU ZAYYAD, Z. Nakba and Independence. Palestine-Israel Journal, Jerusalém, v. 15, n. 2, 2008. Disponível em: https://pij.org/articles/1172/1948-independence-and-the-nakba. Acesso em: 28 maio 2021.

AKHGAR, B. Cyber Crime and Cyber Terrorism Investigator's Handbook. Rockland: Syngress, 2014.

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BLANCHARD, J. M.; SHEN, S. Conflict and Cooperation in Sino-US Relations: Change and Continuity, Causes and Cures. London: Routledge, 2017.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29 ago. 2021.

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