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INTRODUÇÃO A Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro (SEC) está coordenando a elaboração do Plano Estadual de Cultura, a partir do diálogo com gestores públicos dos 92 municípios do estado, agentes culturais, artistas, Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa e o Ministério da Cultura para apontar diretrizes e estratégias de políticas públicas de cultura para os próximos 10 anos, no estado do Rio de Janeiro. Além dos encontros que estão ocorrendo em todas as regiões do estado para discutir Lei e Plano Estaduais de Cultura, a SEC está promovendo também discussões sobre 11 setores e linguagens artísticas (Artes Visuais, Audiovisual, Circo, Dança, Música de Concerto, Música Popular, Livro e Leitura, Museus, Patrimônio Material, Patrimônio Imaterial; e Teatro). O texto a seguir foi encomendado pelo Grupo de Planejamento Setorial de Dança, criado pela SEC em 11 de junho de 2012, e tem por objetivo estimular o debate sobre as políticas públicas para esse setor. Além deste, outros textos, também encomendados, estão disponíveis na página do Plano na internet (http://www.cultura.rj.gov.br/projeto/plano-estadual-de-cultura), a partir de agosto de 2012. Qualquer pessoa ou entidade pode enviar seus comentários e sugestões através dessa página. Após um período de debates pela internet haverá uma reunião pública para cada setor, cujas datas serão amplamente divulgadas, onde os textos serão apresentados e discutidos também presencialmente. Esperamos que a discussão em torno das ideias trazidas aqui estimule a apresentação de propostas de diretrizes e estratégias a serem incorporadas pelas políticas setoriais do Plano Estadual de Cultura. SOBRE O AUTOR Gustavo Rocha-Peixoto é arquiteto, doutor, professor titular de história e teoria da arquitetura e do urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. GOVERNO DO RIO DE JANEIRO Secretaria de Estado de Cultura Plano Estadual de Cultura

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Page 1: Secretaria de Estado de Cultura · arquitetura eclética. Este foi um primeiro passo para ampliar os conceitos fixados pelo Patrimônio Federal. Pouco a pouco o órgão estadual se

INTRODUÇÃO A Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro (SEC) está coordenando a elaboração do Plano Estadual de Cultura, a partir do diálogo com gestores públicos dos 92 municípios do estado, agentes culturais, artistas, Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa e o Ministério da Cultura para apontar diretrizes e estratégias de políticas públicas de cultura para os próximos 10 anos, no estado do Rio de Janeiro. Além dos encontros que estão ocorrendo em todas as regiões do estado para discutir Lei e Plano Estaduais de Cultura, a SEC está promovendo também discussões sobre 11 setores e linguagens artísticas (Artes Visuais, Audiovisual, Circo, Dança, Música de Concerto, Música Popular, Livro e Leitura, Museus, Patrimônio Material, Patrimônio Imaterial; e Teatro).

O texto a seguir foi encomendado pelo Grupo de Planejamento Setorial de Dança, criado pela SEC em 11 de junho de 2012, e tem por objetivo estimular o debate sobre as políticas públicas para esse setor. Além deste, outros textos, também encomendados, estão disponíveis na página do Plano na internet (http://www.cultura.rj.gov.br/projeto/plano-estadual-de-cultura), a partir de agosto de 2012. Qualquer pessoa ou entidade pode enviar seus comentários e sugestões através dessa página. Após um período de debates pela internet haverá uma reunião pública para cada setor, cujas datas serão amplamente divulgadas, onde os textos serão apresentados e discutidos também presencialmente.

Esperamos que a discussão em torno das ideias trazidas aqui estimule a apresentação de propostas de diretrizes e estratégias a serem incorporadas pelas políticas setoriais do Plano Estadual de Cultura.

SOBRE O AUTOR

Gustavo Rocha-Peixoto é arquiteto, doutor, professor titular de história e teoria da arquitetura e do

urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, presidente da Associação Nacional de

Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo.

GOVERNO DO RIO DE JANEIRO

Secretaria de Estado de Cultura Plano Estadual de Cultura

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Documento Setorial de Patrimônio Material

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Um patrimônio de palavras

Gustavo Rocha-Peixoto

Os responsáveis pela elaboração do Plano Estadual de

Cultura do Rio de Janeiro me pediram uma contribuição “autoral” na forma de um texto que pudesse

fomentar a discussão daquele plano. Este é o pretexto singular e a justificativa única para a existência das

páginas que seguem. Mas deve estar o leitor previamente advertido de que, sob o ponto de vista

estritamente técnico, dificilmente as palavras adiante podem ser consideradas um plano. Não se

formalizam justificativa, objetivos gerais e específicos, metas intermediárias, diretrizes. Evita o linguajar

perito, o jargão da área. São uma expressão de como vejo o estado do patrimônio cultural fluminense.

Militei década e meia em órgãos técnicos do Estado do Rio de Janeiro, do Município de Niterói e da União

Federal. Mas já há mais de quinze anos que vejo o mundo do patrimônio à distância, de longe da labuta

diária dos experts. O patrimônio me toca agora principalmente como um vivente da cidade.

As mal-traçadas linhas que o leitor está prestes a encarar foram talhadas no fio da navalha entre duas

metas absurdas:

ANI QUIL AR O PATR IMÔN I O MATE RI AL e TOMB AR O MUNDO .

Na tensão pendular desses objetivos estapafúrdios, tento esboçar um entendimento do sentido do

patrimônio material fluminense em vista da instituição de um plano de cultura para o nosso tempo.

i.

A responsabilidade de um plano como este é especialmente grande no Rio de Janeiro, onde historicamente

tiveram início muitas iniciativas intelectuais pioneiras que nos trouxeram ao estado atual do pensamento

sobre patrimônio no Brasil. Foi no Rio que, em meados dos anos 1930, intelectuais de todo o país

construíram o fundamento do conceito de patrimônio histórico e artístico nacional que se converteu em

legislação definidora em 1937 através do Decreto-lei n° 25. Esse diploma legal criou no nosso país a figura

do tombamento, como um ato do poder público que reconhece oficialmente uma coisa como integrante do

patrimônio comum do Brasil. A partir então de 1938 o SPHAN foi desenhando uma imagem do Brasil nos

livros do tombo mantidos sob sua responsabilidade. A novidade crucial criada pelo DL 25/1937 está no

artigo 17 que diz: As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruídas, demolidas ou

mutiladas. O tombamento é um mero reconhecimento oficial de valor. Mas o que tornou esse

reconhecimento efetivo como instrumento de preservação foi a compulsória indestrutibilidade do bem

tombado. Desse fato legal provém a força dos órgãos gestores do patrimônio.

Mas o decreto 25 e a criação do SPHAN não são o início da consciência patrimonial no nosso país. O

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) fora criado em 1836 no Rio de Janeiro como iniciativa

particular e sob os auspícios pessoais do Imperador. O documento de proposta de criação revela os motivos

e metas do instituto:

“... por isso os abaixo assinados, membros do conselho administrativo da Sociedade

Auxiliadora da Indústria Nacional, conhecendo a falta de um instituto histórico e geográfico

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nesta Corte, que principalmente se ocupe em centralizar imensos documentos preciosos, ora

espalhados pelas províncias, e que podem servir à história e geografia do Império, tão difícil

por falta de um tombo ou prontuário de que se possam aproveitar os nossos escritores,

desejam e pedem a sua pronta instalação debaixo dos auspícios da Sociedade Auxiliadora da

Indústria Nacional...” 1

A organização surgia assim para amealhar documentos e constituir deles um registro sistemático – tombo

ou prontuário – (um verdadeiro patrimônio histórico) a partir do qual se pudesse escrever a história do

Brasil. Já antes em 1826, a abertura da Academia Imperial de Belas Artes criara – sempre no Rio de Janeiro

– o ambiente onde se pode debater o conceito de patrimônio artístico.

A primeira palavra teórica sobre patrimônio artístico no Brasil pertence a Manuel de Araújo Porto-Alegre

(1806-1879), antigo aluno da Academia e seu futuro diretor. Ainda em 1843 nos seus Fragmentos de notas

de viagem de um artista brasileiro, publicado na revista Minerva Brasiliense2 ele teorizou:

Todas as vezes que uma idéia conquista a humanidade se torna a expressão daquela idéia;

todas as suas produções, não só intelectuais como materiais, apresentam a forma

característica daquela idéia.

Lançava, assim, pela primeira vez no Brasil, a opinião de que o acervo das produções humanas materializa

uma idéia abstrata. E, numa frase que parece adequada à nossa reflexão sobre o patrimônio material ele

acrescenta:

A matéria, representando em suas formas as idéias, sofre as mesmas modificações que estas

no decurso dos séculos: [...] e, semelhante às balizas que o viajor coloca no cimo dos Alpes

para reconhecer a estrada coberta de neve, marca-lhe o trilho da humanidade e testemunha

com sua existência e formas a realidade de um povo que teve civilização.

...e, em resumo: A matéria é o termômetro do desenvolvimento de uma nação.

Mais tarde, quando o Rio já não era mais capital federal, foi do ambiente cultural carioca que surgiu o

primeiro órgão estadual de patrimônio em 1964. Foi no Rio que se tombaram os primeiros edifícios de

arquitetura eclética. Este foi um primeiro passo para ampliar os conceitos fixados pelo Patrimônio Federal.

Pouco a pouco o órgão estadual se mostrou eficaz na definição ampliada do conceito de bem cultural. O

exemplo do Rio foi reproduzido pelo país adentro, principalmente depois do chamado Compromisso de

Brasília de 1970. Foi assim que, a partir do Estado do Rio de Janeiro, se consolidou a noção de patrimônio

cultural em substituição à de patrimônio histórico e artístico justamente para permitir o reconhecimento de

um espectro mais abrangente de manifestações culturais.

E foi ainda na Cidade do Rio de Janeiro que surgiu o ferramental de proteção dos ambientes urbanos

tradicionais a partir do programa pioneiro do Corredor Cultural do Rio de Janeiro, modelo legal inspirador

de inúmeras iniciativas municipais análogas pelo país afora. Esse tipo de proteção está embasado em um

instrumento de planejamento urbano tipicamente carioca: os PAA (Projetos Aprovados de Alinhamento)

1 Revista do IHGB n

o. 1; 1856

2 Manuel de Araújo Porto-Alegre. Fragmentos de notas de viagem de um artista brasileiro. in Minerva Brasiliense no.

2; 15 de novembro de 1843.

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com que a municipalidade vem desenhando as configurações urbanas do Rio de Janeiro desde Pereira

Passos. O conceito de preservação ambiental urbana associa a proteção do patrimônio urbano ao

planejamento urbano. Parte da premissa que certos setores do tecido urbano são dotados de um valor

patrimonial de conjunto que deve submeter as edificações individuais aos parâmetros fixados pela tradição

urbanística.

Da experiência dos patrimônios regionais mudou o velho patrimônio federal. Em 1975 Aloísio Magalhães

criou o Centro Nacional de Referência Cultural para cuidar das festas e doces populares, de certos fazeres

tradicionais, do folclore e de todos aqueles produtos e rotinas que constituem o cotidiano cultural no

Brasil. Essa preocupação com o aspecto mais fugidio do patrimônio mudou a face do IPHAN a partir de

1979 quando Aloísio Magalhães foi nomeado secretário da SPHAN. O Patrimônio começou a se ocupar

também das manifestações culturais.

O artigo 216 da Constituição Federal de 1988, ao definir o patrimônio cultural brasileiro, introduziu na

legislação a figura do patrimônio imaterial. Isto se definia como algo de natureza diferente dos bens

materiais. Na enumeração dos tipos de bens integrantes do patrimônio aparecem primeiro as formas de

expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras,

objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais (incisos I,

II, III e IV) e em último lugar aquilo que constituía naquele momento o objeto de trabalho dos organismos

de proteção havia meio século: os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (inciso V).

Em 1997 a UNESCO reconheceu a existência de um patrimônio oral e imaterial da humanidade também

chamado de patrimônio intangível. Um decreto federal do ano 2000, regulamentando a Constituição

instituiu o registro dos bens culturais de natureza imaterial. Estava consagrada essa terminologia.

ii.

Esse preâmbulo quis mostrar como o conceito de patrimônio é uma entidade em contínua modificação e

que se vai ampliando sem limites aparentes. As coisas do Brasil colonial tombadas pelo SPHAN nos

decênios de 1930 e 1940 permanecem para nós, hoje, como inegáveis preciosidades culturais sem as quais

não se pode mais compreender o Brasil.

Os primeiros tombamentos estaduais de arquitetura eclética e de paisagens naturais reconhecidos nos

anos 1960 também estão incorporados em definitivo no conjunto das coisas de valor. Mesmo trechos nada

excepcionais de tecido urbano tradicional se constituem na imagem de cidade que nos permite distinguir

cada cidade entre as demais.

O acervo do patrimônio foi se expandindo e ampliando cada vez mais. Podemos imaginar que um dia

almejaremos tombar o mundo! Dito de outra maneira: poderíamos imaginar um mundo tão denso de

significados e significados tão amplamente reconhecidos por todos que o mundo se tornasse igual ao

patrimônio. A natureza e o conjunto das criações humanas seriam integralmente reconhecidos como coisas

de relativo valor a preservar e, como exceção, uma coisa ou outra poderia ser destruída. E todas as criações

novas que viessem a surgir estariam embebidas de um respeito imanente pela cultura a ponto de se

integrarem espontaneamente no conjunto existente como em uma continuidade. Falo de uma quimera

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totalmente incompatível com o mundo que nos cerca, em que lutam empreendedores privados numa

busca amoral por lucro especulativo e teimosos defensores de valores que precisam ser preservados em

nome da identidade nacional, da cultura, da civilização ou qualquer outro nome que se queira dar a essa

coisa indefinível que nos põe em sintonia com o mundo em volta. As hordas bárbaras de empreendedores

que vêem a cidade e o mundo como campo livre para a exploração comercial, ignoram o acervo existente e

pensam o Patrimônio como conjunto molesto de técnicos dispostos a tudo para emperrar o progresso e

empatar a geração de empregos e divisas. Do outro lado o incrível exército de Brancaleone se acha

investido da missão sagrada de obstar o avanço dos hunos e dos sarracenos vestindo a armadura da

legislação e empunhando o tombamento como uma longa lança de combate. Somadas, essas armadas

constituem um número mínimo de pessoas, um cisco no conjunto da imensa maioria da gente que fica de

fora da conversa, alheia ao embate.

Mas se me for permitido ainda um pouco continuar fantasiando aquele mundo ideal, eu diria que nele não

seriam mais necessários órgãos técnicos nem a defesa do patrimônio porque os valores seriam de tal modo

compartilhados por todos que o reconhecimento geral do universo de significados tornaria toda a

população naturalmente zelosa do acervo e que a ninguém ocorreria destruí-lo.

Voltemos à realidade. Paramos a resenha histórica na separação dos bens conforme sua ‘natureza’ material

ou imaterial. Numa primeira análise parece que não há bem patrimonial que não tenha uma materialidade.

Há matéria tanto num edifício de concreto quanto num copo de cachaça. Nada justifica que se diga que a

boa cachaça de Paraty não tem matéria. Trata-se de um líquido com peso e volume que porta o significado

cultural. Mesmo uma música tem, de certo modo, uma forma de materialidade nas ondas de som que

tangem nossos ouvidos. Parece haver uma diferença nessas materialidades, já que o patrimônio

arquitetônico é constituído de uma matéria que precisa permanecer para ser fruída enquanto a degustação

da cachaça depende da sua destruição e a arte da música toma substância de sons que se extinguem no

tempo.

Entretanto é preciso reconhecer que o importante não é o líquido da cachaça, mas a qualidade do seu

sabor. Tampouco são importantes para o patrimônio musical as ondas físicas de energia sonora já que o

que interessa são os modos intangíveis como esses sons sensibilizam os nossos corações. Porém também

não é a matéria da igreja ou da casa tombada que interessa, mas o seu valor, essa coisa imaterial e vaga,

fugidia e cambiante que habita na memória. Vejamos um caso:

O famoso filme Amarcord de Federico Felini trata das recordações de infância do diretor na cidade de

Rimini. De fato amarcord é a pronúncia de ‘eu me lembro’ no dialeto da Emilia Romagna. A ação se

desenvolve ao longo de um ano na vida da pequena cidade durante o auge do regime fascista. Os

personagens e lugares provêm da memória imaginosa do grande diretor. Ao receber o Oscar pelo melhor

filme estrangeiro, em 1975, ele concedeu uma entrevista à televisão italiana3. Logo no início o

entrevistador pergunta:

– A Rimini da sua fantasia existiu verdadeiramente ou não?

3 A íntegra dessa entrevista está disponível em

http://www.youtube.com/watch?v=mSzpMJ7pbDc&list=PL9c017B9E7928CB60playnext=2

acessado em 13/6/2012; 10:28h

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para ouvir de Felini a notável resposta:

– Para mim é muito mais verdadeira aquela Rimini lá. Isto é, aquela Rimini um pouco inventada, um

pouco sonhada, um pouco repensada, embebida assim de saudades.

A única cidade que somos capazes de fruir é a que habita a nossa memória. No caso de Amarcord trata-se

de uma memória pessoal de Felini que o filme torna social. Amarcord, isto é a Rimini da memória individual

do diretor, pertence hoje ao acervo cultural da humanidade muito mais intensamente que a pequena

Rimini material, debruçada no mar Adriático.

Deve ser tarefa de um plano de cultura prover modos de associar o conjunto de bens do patrimônio ao

imaginário coletivo influindo na formação de uma memória social.

Essa coisa imaterial e intangível que permite apreciar o mundo depende de um conjunto de valores sociais

introjetados que povoam nosso pensamento e nossas emoções. Essa memória social comum é condição

indeclinável de civilização. Em 1929 o poeta Paul Valéry escreveu um prefácio para as Cartas persas de

Montaigne que começa assim: Uma sociedade se eleva da brutalidade para a ordem. Como a barbárie é a

era do fato, é, por conseguinte necessário que a era da ordem seja o império das ficções. A frase parece a

princípio paradoxal, mas ele continua: ...porque não há potência alguma capaz de fundar a ordem apenas

pelo embate dos corpos. São necessárias forças fictícias. A passagem da rudeza dos fatos brutos para a

civilização exige que os instintos, mestres da idade do fato, sejam gradualmente superados por um sistema

de convenções que definem o sagrado, o justo, o legal, o decente, o louvável. O processo civilizatório

depende de uma garantia de que os homens controlarão sua violência natural, que se comportarão de

modo decente, que perseguirão minimamente objetivos comuns. Desse modo a sociedade se afasta pouco

a pouco do domínio do fato. Internalizados pela força da palavra e do diálogo esses valores constituem um

mundo social. Valéry mostra como esse mundo social parece-nos então tão natural quanto a natureza. Ele

que só existe por magia. Não é, com efeito, um edifício de encantamentos este sistema que repousa sobre

escrituras, sobre palavras obedecidas, promessas mantidas, imagens eficazes, hábitos e convenções

observados – ficções puras? 4

O reino da ordem, a civilização mesma é, na visão de Valéry o domínio destas coisas vagas, símbolos e

sinais que não mais percebemos como inventados (fictícios) porque penetraram nos nossos instintos. A

solidez das sociedades depende, assim, de um conjunto de mitos que regulam as relações humanas.

É frequente na universidade ouvirmos de algum aluno que tal ou qual edifício é importante porque é

tombado pelo patrimônio e por isso não pode ser modificado. Penso mesmo que esse é o senso comum

sobre tombamento: matéria congelada, que não pode mais ser alterada em nada. Talvez mesmo entre

alguns técnicos dos órgãos de patrimônio prevaleça esse entendimento. Na verdade é preciso esclarecer

que trata-se justamente do oposto. Algo é tombado porque é importante. E essa ‘importância’ que

determina o tombamento é uma daquelas coisas vagas de Valéry, que dependem de um discurso. O

tombamento não pode encerrar a história do bem, é preciso permanentemente reativar a conversa sobre a

coisa tombada para que o valor permaneça. E se esse valor é uma coisa vaga e mutante, só uma constante

resignificação pode sustentar a sua permanência no conjunto semovente de referências do nosso tempo.

A matéria, por si só, é coisa inerte. Nada significa. O que lhe confere significado são os mitos

compartilhados. Mito aqui não é uma fábula, estorinha mentirosa que encerra uma moralidade, mas uma

4 Paul Valéry. Œuvres.

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narrativa que estabelece um acordo social sobre os fatos inertes. No tratado da Poética, Aristóteles define

o mito – – como um agenciamento dos fatos para que constituam um sistema.5 Em outras palavras

mito é enredo, intriga, texto que dá sentido aos fatos, ou seja, história. Lévy-Strauss definiu em 1958: O

mito é uma linguagem.6 Os filósofos responsáveis pela radical reviravolta operada no mundo das ciências

sociais a partir da chamada Virada linguística entendem o mundo como um fato de linguagem. Já

Wittgenstein definia em 1921: Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.7 Essa frase,

invertida, coincide com a meta de tombar o mundo.

Nos últimos decênios cresceu muito a qualificação dos técnicos dos órgãos de patrimônio. Hoje dispomos

de especialistas em conservação de materiais pétreos, em argamassas, em restauração de madeiras, de

pintura etc. Parece, no entanto, que, em muitos casos, alguns desses profissionais perderam o sentido

cultural do patrimônio. O conhecimento técnico é coisa importantíssima e meritória. Por mais que eu esteja

aqui a defender a natureza imaterial de todo patrimônio, é preciso manter sua base física sem a qual

desaparece o corpo em que repousa a imaterialidade do bem cultural. Mas é preciso restabelecer o

compromisso primordial com a civilização. É necessário que amemos mais o patrimônio que a

preservação.

Num texto clássico sobre História da Arte, Giulio Carlo Argan faz uma distinção:

Como as obras de arte são coisas ligadas a um valor, há duas formas de se ocupar delas.

Pode-se cuidar dessas coisas: buscá-las, identificá-las, classificá-las, conservá-las, restaurá-

las, expô-las, comprá-las, vendê-las ou se pode pensar em seu valor, investigar em que

consistem, como são geradas e transmitidas, como se reconhecem e se desfrutam. 8

Argan trata da história da arte como uma história da cidade. Advoga que a obra de arte por excelência é a

cidade, ou melhor, seu patrimônio coletivo; se pensamos no patrimônio como um conjunto de bens

materiais, teremos a tendência de nos ocuparmos mais intensamente dos objetos que dos seus valores.

Entretanto não se pode negar que a fruição desses valores depende da sua existência material. E trata-se

aqui da permanência de um traço material do passado que subsiste num presente com valores diferentes

daqueles em que foi produzido. Os traços materiais são insubstituíveis. Uma vez perdidos nunca mais

poderão ser refeitos. Embora inertes, são eles que autenticam os mitos. É sobre o solo firme da

materialidade inerte que se vivem as histórias contadas. É no apoio dos vestígios conservados do passado

que se constrói o edifício magnífico da civilização.

Se esquecermos a base material do patrimônio o passado se torna para nós um fantasma desencarnado.

Se, por outro lado, relaxarmos o sentido (mito) e restringirmos nossas ações à manutenção da matéria do

bem, estaremos cultuando um fetiche.

Outro objetivo seria, então, estabelecer critérios de intervenção nos bens tombados e no seu entorno a

partir de um diálogo erudito com o patrimônio. Todo bem admite uma multiplicidade de interpretações. No

trato da intervenção do patrimônio tombado não se deve escolher uma dessas interpretações, mas operar

5 Cf. Aristóteles. On the art of poetry em Classical literary criticism.

6 Claude Lévy-Strauss. Antropologia estrutural.

7 Ludwig Wittgenstein. Tractatus logico-philosophicus; nº 5.6

8 Giulio Carlo Argan. Storia dell’arte comme storia della città. p. 15

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com a multiplicidade de sentidos entrelaçados no bem. E o aparato para essa compreensão crítica é a

história da arte tal como entendida por Argan:

Entre o fetiche e o fantasma ele procura enquadrar o conhecimento da arte em um sistema unitário de

cultura. Será preciso substituir a palavra ‘arte’ aqui por ‘patrimônio’. E esse sistema de cultura nada mais é

que a definição aristotélica de mito. – agenciamento dos fatos em sistema. O procedimento, conclui ele,

que permite encaixar os fenômenos artísticos [os bens culturais] no contexto da civilização é a história da

arte.9

Eis assim uma meta - é preciso falar sobre os fatos do patrimônio, desvendar os seus múltiplos sentidos.

Elaborar sobre ele um discurso coerente. Pôr esse discurso à prova, submetendo-o a opiniões contrárias.

Quanto mais diferentes forem as opiniões competentes sobre o bem cultural, mais sólida será a sua

interpretação.

Uma vez estabelecida a interpretação do passado é preciso tê-la sempre diante de si como conceito capaz

de dirigir nossas ações de projeto, de conservação, de restauração, de divulgação e de fruição do bem.

Essas ações porão em cena novos atores que emitirão novas opiniões e vão talvez modificar a

interpretação, acrescentando-lhes novos significados, modos alternativos de ver.

Em resumo: É preciso falar.

iii.

Desde o começo esse texto tem falado de leis. O patrimônio depende de uma legislação. Em uma

sociedade de grandes massas como a nossa, o Estado depende de normas para se constituir, para definir

seus valores e para garantir certos padrões de comportamento considerados aceitáveis.

O último diálogo de Platão, escrito na metade do quarto século antes de Cristo, se chama justamente As

leis. O filósofo imagina um Estado ideal – Magnésia. Juntamente com A república esse livro reflete o

pensamento de Platão sobre a organização da sociedade e do governo. As leis escritas assumem grande

importância para ele principalmente pelo seu caráter educativo. Ele defende que o sentido das leis deve

envolver a alma dos cidadãos. O respeito às leis é, assim, condição de coesão social. A principal atenção de

Platão a partir dessa concepção das leis é com a educação pública dos cidadãos.

As concepções platônicas de Estado não importam tanto aos propósitos desse texto, mas me interessa

destacar aqui o papel que pode desempenhar o patrimônio como força de coesão social. As sociedades só

podem se constituir a partir do compartilhamento de mitos. Num trecho do diálogo o cidadão de Magnésia,

Clínias, argumenta com um ateniense:

CLINIAS – É muito importante que demos a maior força possível de

persuasão às nossas afirmações, convencendo a gente de que os deuses

existem e são bons e que honram a justiça muito mais do que o fazem os

homens. Atrevo-

9 id.. op. cit.; p. 16

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me a dizer que teríamos aí a mais bela e mais eficaz introdução para a

totalidade das nossas leis.

ATENIENSE – Parece-me que tuas palavras são uma chamada à oração, pelo calor e

urgência que tu as pronunciaste. Não cabe mais possibilidade alguma de

vacilar: é preciso falar. 10

Platão escreve num tempo em que os mitos divinos – as histórias dos feitos dos deuses – eram ensinados

às crianças pequenas pelas mães e amas. Os meninos assistiam seus pais oferecendo vítimas em sacrifício

aos deuses diante dos templos em rituais com orações que punham em prática os mesmos mitos. As

orações que os mais velhos dirigiam aos deuses testemunham a absoluta certeza de que os deuses existiam

tão naturalmente quanto o ar que eles respiravam.

Platão não propunha mentir ao povo ensinando-lhe falsas divindades. Deve-se supor que ele mesmo estava

convencido da existência dos deuses. O que ele diz é que é preciso compartilhar as mesmas convicções, os

mesmos mitos. E que o modo desse compartilhamento é a fala, a oração pública em coerência com a

conversa privada. Não precisamos mais crer na existência de Apolo ou Atena, mas a sociedade do Estado

do Rio de Janeiro precisa de mitos civilizatórios comuns. O patrimônio cultural é um instrumento

pedagógico poderoso para que se estabeleçam as origens do caráter fluminense. Mas isso só se fará se

falarmos.

Defendo aqui como meta indispensável para a determinação e proteção do patrimônio o uso da palavra. É

preciso convocar jornalistas, escritores, agentes comunitários com voz, professores e comunicadores em

geral para voltarem a falar sobre nossa história através do patrimônio.

Ainda podemos lembrar como o patrimônio foi valorizado e restaurado no primeiro momento do processo

de redemocratização do Brasil, nos anos 1980. Naquele momento a grande imprensa nacional deu notável

atenção ao patrimônio cultural. Os edifícios históricos estavam na pauta dos jornais e das redes de

televisão. Surgiram patrocinadores, houve obras de restauro em uma época de pouca verba pública. Esse

surto permitiu que crescesse uma geração de especialistas. O Instituto Estadual do Patrimônio Cultural não

tinha verbas, mas gozava de prestígio no governo e comparecia como nunca no horário nobre da televisão

entre os anúncios das novelas e noticiários de maior audiência.

Mas aos poucos o momento passou. Outros temas ganharam a atenção do grande público. Bem

orquestradas campanhas publicitárias baniram o cigarro dos ambientes fechados. Mais que qualquer lei,

melhor que a ação policial repressora, o mito repetido expurgou o tabagismo. A colaboração da imprensa

tornou o uso do cinto de segurança coisa banal para a melhor segurança do trânsito. Igualmente nesse caso

não foi só a ação fiscal nem as multas que criaram o hábito, mas o mito compartilhado. Agora vivemos o

esplendor do amor à natureza, e toda a gente se sente engajada em uma cruzada que se pretende

redentora do planeta, contra a destruição dos ecossistemas; pela diminuição das emissões de gases do

efeito-estufa; contra a agricultura predatória. Mas o patrimônio cultural saiu de cena.

10

Platão. As leis em Obras completas. p. 1455

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Uma meta indispensável para um plano de cultura é pautar o patrimônio. Pôr a cultura urbana e o acervo

fluminense nas redações de jornal. Tirá-lo daí para os veículos de divulgação. E fazê-lo chegar à boca do

povo.

iv.

Penso que está claro que meu combate contra a definição de patrimônio material é mais que uma

implicância com o nome fixado pela legislação e pelos documentos internacionais. Estou defendendo como

meta uma definição de patrimônio que elimine os limites conceituais entre o que é construído e os bens

culturais cuja matéria se consome mais rápido. Não prego a demolição dos edifícios históricos quando falo

de aniquilar o patrimônio material. Que ninguém tenha dúvida que defendo vigorosamente os

tombamentos como coisa indispensável a qualquer pretensão de civilização e democracia no Brasil.

Quando falo aqui em aniquilar a matéria estou fazendo uma ironia hiperbólica por absurda. Penso, sim, em

uma superação radical da idéia de que aquilo de que interessa preservar é a matéria.

Acrescento ainda um argumento: Em 587 a.C. os babilônicos destruíram o Templo em Jerusalém e

obrigaram os hebreus ao exílio na Mesopotâmia. O Templo fora construído pelo rei Salomão e era o centro

da vida religiosa e cultural de Israel. O tabernáculo (Santo dos Santos) guardava as tábuas da lei e outras

relíquias sagradas. Junto ao Templo eram oferecidos os sacrifícios de preceito. Havia tributos e uma série

de outras manifestações de uma religião, naquele momento, ainda bastante materialista. No exílio

surgiram as sinagogas. Sem o templo e a possibilidade do sacrifício, os hebreus desenvolveram uma religião

espiritualizada, que tem as escrituras por fundamento central.

O judaísmo contemporâneo, como religião espiritual, só pôde11 existir pela destruição do Templo material.

E só num ambiente assim poderia ser entendida a pregação de Cristo. E mais adiante é nessas bases que

Maomé pode contrapor o Islã às práticas pré-muçulmanas da Península Arábica. Entre judeus, cristãos e

muçulmanos estamos falando de 2/3 da população contemporânea do nosso planeta. A Civilização

Contemporânea só se explica, portanto, pela destruição, por Nabucodonosor II, do patrimônio material. E

pela resistência à destruição cultural que valorizou as escrituras e transformou Israel em um povo da

palavra.

Não estou, repito novamente, pregando a destruição da base material do patrimônio. Mas quero dizer que

precisamos inventar um sistema pelo qual se fale e se ouça mais sobre o patrimônio. Um sistema de crítica

da arquitetura e dos demais componentes do acervo do patrimônio para que sejam reconhecíveis pela

sociedade. Para que sozinha a sociedade tombe o mundo...

O sistema de reconhecimento do patrimônio brasileiro tem matriz francesa. Imitamos de França as leis, o

classement. Vem de lá a doutrina fundadora segundo a qual o direito ao patrimônio público e coletivo da

sociedade ultrapassa o direito individual ao patrimônio. Mas não podemos esquecer que essas definições

legais e práticas patrimoniais na França foram historicamente precedidas pelo debate público. Esse lado do

patrimônio não se fez no Brasil. Ainda hoje as páginas de jornal na França trazem uma quantidade

impressionante de opiniões e contra-opiniões sobre tudo no mundo da cultura.

11

Pela moderna ortografia não se pode por acento em pôde, mas sem acento pôde vira pode e isso, nessa frase,

definitivamente, não pode.

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A oposição dialética de opiniões faz pensar de novo em Platão. Se é imperioso falar e ser ouvido, é preciso

também ouvir e provocar a voz. Dizemos assim de uma necessária negociação. Se o valor do bem depende

de uma conversa, também sua gestão depende de um honesto comércio. O que conservar, até onde

preservar, como restaurar, quando intervir, que coisas proibir, tudo isso são negociações. Ao mito é agora

preciso opor um rito. Para que a negociação não descambe em negociata precisamos estabelecer um rito. E

um rito público. Penso em um sistema de negociações em que as opiniões e contra-opiniões sejam

formalizadas por escrito e divulgadas. Isso vale para as audiências entre técnicos e proprietários, entre

empreendedores e fiscais; vale para as seções dos conselhos de tombamento, televisionadas ao vivo pela

internet, disponibilizadas on-line em podcast, videocast, texto. Uma liturgia formal nessas relações há de

inibir especuladores e moderar eventuais abusos conservativos. Entre o “quero” e o “não pode” a

negociação aberta fará surgirem soluções intermediárias, a justa posição. A voz da cultura se fará ouvir.

Esse ritual tem em vista a necessidade de fortalecer as estruturas de gestão do patrimônio com

independência em relação à transitoriedade do poder público e em melhor sintonia com o caráter alongado

das ações na área.

Ouvindo vozes externas e deixando-se ouvir pelo mundo, o sistema estadual de proteção do patrimônio

ganha legitimidade e estabilidade.

A meta de tombar o mundo pressupõe o mundo mesmo como órgão tombador e gestor. E ao escolher o

que fica e o que deve sair, o mundo não pensaria isoladamente em patrimônio, memória, identidade.

Consideraria em conjunto na qualidade da vida. Também os projetos urbanos, os planos viários, a oferta de

serviços, a ecologia, violência, lucro, liberdade, arte, trabalho... precisam ser negociados diante do mundo.

No fundo todos esses são aspectos da vida em transformação que caracteriza a cultura urbana.

De fato a manutenção da vida exige transformação. Células precisam morrer para que o corpo fique vivo.

Coisas precisam ser esquecidas para a saúde da memória. Também a cultura urbana tem o dinamismo

como caráter essencial. E, se o movimento é da essência da cultura, a transformação deve ser também

tombada! Se parar, morre.

Por outro lado, no pólo oposto do pêndulo, há algo (material) que deve permanecer no corpo vivo que se

modifica sem parar. Se tudo se perder, o corpo também perece. É possível reconhecer as feições jovens da

velha fotografia no rosto enrugado do ancião. Os traços do bisavô revivem no rosto da menina. Escolher o

que deve ficar e o que pode mudar depende de uma negociação. E este é tema complexo demais para ser

deixado inteiramente na mão dos técnicos, do governo, dos empreendedores. Trata-se de decidir as

rupturas e continuidades no tecido da cultura; de arbitrar entre a permanência e as transformações que

qualificam (ou degradam) o espaço de viver da gente.

v.

Posso aqui, antes de terminar, sugerir algumas ações práticas que parecerão desanuviadas em contraste

com o tom difuso deste texto: Há formas universitárias consagradas de “falar e ser ouvido”: Livros,

periódicos, congressos, seminários. A universidade aprendeu a falar e a ouvir. As pesquisas têm circulado e

sido bem divulgadas no ambiente acadêmico. Que os técnicos do patrimônio no Estado do Rio de Janeiro

(os do INEPAC e dos órgãos municipais, assim como os federais no Estado) sejam apoiados e estimulados

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com verbas próprias (especialmente da FAPERJ) a participar de encontros técnicos no país. É um caminho

para articular o pessoal das diferentes repartições e para integrá-los com a universidade. Com efeito, as

universidades têm produzido grande quantidade de pesquisa de qualidade na área do patrimônio que

interessa contrastar com a ação cotidiana nos gabinetes técnicos. A participação em seminários se efetiva

com apresentação de trabalhos. E apresentar trabalho pressupõe desenvolver pesquisa. A pesquisa nos

órgãos de patrimônio deve ser estimulada e incentivada com o necessário aporte financeiro.

Bolsas de estágio para estudantes universitários podem trazer vigor juvenil para a gestão patrimonial. Que

novas gerações de profissionais sejam incorporadas ao INEPAC (e demais órgãos no Estado do Rio de

Janeiro) em tempo de conviverem profissionalmente com os profissionais experientes. Eis aí um caminho

para favorecer a renovação dos quadros técnicos do Estado sem que se perca a história institucional.

Deve ser diretriz de um plano fluminense para o patrimônio pensar todo o patrimônio fluminense – não

apenas os tombamentos estaduais. Para isso será necessário alinhar federais e municipais, invitar privados,

conclamar o mundo. Na melhor tradição a que aludi na abertura deste texto, penso ser dever especial do

Estado do Rio de Janeiro manter-se integrado à liderança do pensamento patrimonial brasileiro.

* * *

Fizeram, talvez, mal – os responsáveis pela elaboração do Plano Estadual de Cultura em pedir-me este texto

– porque não bem comecei a propor objetivos nítidos e cristalinos e já me aproximo de novo das coisas

vagas em tempo de encerrar em imaginação o texto encomendado. É que, se me perguntam para que

serve o patrimônio, penso em responder que ele é o fundamento da experiência demasiado humana da

vida em sociedade. Meu tirocínio de fluminense e carioca depende de voltar a percorrer, de vez em

quando, a rua Gonçalves Dias e entrar na grande nave envidraçada da Confeitaria Colombo. Sentir-me no

Rio depende do gosto daquela velha Cachaça de Paraty e da possibilidade de provar de novo o filé à

francesa do Lamas. Amarra-se o meu estar na cidade hoje aos percursos e personagens cariocas de

Machado de Assis, à música de Tom Jobim e Villa Lobos, ao cheiro do mar no meio da cidade, ao silencioso

pôr do sol em Itaipu, ao campestre majestoso do centro histórico de Petrópolis. Preciso do Aterro do

Flamengo esplendidamente livre de novas edificações e com a Glória contracenando com as massas

vegetais de Burle Marx. São experiências que alteram a respiração e o ritmo cardíaco, transfiguram em

beleza a rotina diária. Enganam a saudade do Paraíso Perdido... Tais coisas materiais se devem proteger e

preservar porque nelas celebra-se a vida da civilização fluminense.

Se tiver de responder qual a serventia do patrimônio posso dizer, como Dewey, que

Há em uma civilização elementos transitórios e elementos duradouros. As forças

duradouras não são separadas; são funções de uma multiplicidade de incidentes

passageiros, à medida que esses se organizam nos significados que formam as mentes. A

arte é a grande força que efetua essa consolidação. Os indivíduos dotados de uma mente

desaparecem, um a um. As obras em que os significados receberam uma expressão

objetiva permanecem. Tornam-se parte do meio, e a interação com essa fase do meio é o

eixo de continuidade na vida da civilização. Os ditames da religião e o poder da lei são

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eficazes por se revestirem de uma pompa, dignidade e majestade que são obra da

imaginação. Se os costumes sociais são mais do que formas externas e uniformes de ação,

é por estarem saturados de histórias e significados transmitidos.12

E já não importa se são verazes, porque são sempre imaginadas essas histórias e significados transmitidos;

porque só será verdadeiramente existente a cidade um pouco inventada, um pouco sonhada, um pouco

repensada, embebida assim de saudades.13

Os mitos, estrutura atômica de todo o nosso conhecimento do mundo e do além, quando repetidos e

repetidos, constituem a matéria viva de toda certeza humana. E, mesmo quando sabidamente desprovidos

de existência fática, seguem interessando à nossa compreensão compartida do estar no mundo. Para que

esse texto se conclua lindamente chamo nova intuição do mito: é Fernando Pessoa que, querendo cantar a

origem de Portugal, evoca o mito de Ulisses, herói inventado da literária guerra de Tróia, a quem se atribui

a fundação de Lisboa, Lissipona, Ulyssipona onde teria aportado em meio à jornada de volta a Ítaca:

O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo –

O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo.

Este que aqui aportou,

Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo E nos criou.

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade De nada, morre.14

12

John Dewey. Arte como experiência. p. 522 13

Ver, por favor, a nota 4, acima. 14

Fernando Pessoa, Ulisses, em Castelos em Brasão em Mensagem em Obra Poética. p. 72

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