se o ciume e um sinal de diagnostico

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488 Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., v. 11, n. 3, 488-489, setembro 2008 Se o ciúme é um sinal diagnóstico do amor e da melancolia erótica?* Jacques Ferrand Alessandro Picolomini, em suas Instituições morais, esfor- ça-se para provar que o verdadeiro Amor deve ser isento de todo ciúme, na medida em que aquele que busca algo com a virtude está livre de qualquer outra companhia nessa busca, esperando que ela sirva de destaque e de brilho ao seu mérito. Apenas a im- becilidade teme o encontro com outro porque ela pensa que sua imperfeição ao ser comparada parecerá desmesurada. Plutarco, ao contrário, diz que o elogio da virtude não produz necessaria- mente efeitos belos, diferentemente da inquietação de querer se parecer com as pessoas de bem e o desejo de atingir a perfeição. Do mesmo modo, o Amor, se não tem um pouco de ciúme, não é ativo nem eficaz. Foi o que inflamou os Amores de Aquiles por sua escrava Briseis, de Menelau por Helena e de Orestes por Her- mione. (...) Eu diria, como Simonides, que é necessário que todo verdadeiro Amor contenha um pouco de ciúme. Por conseqüên- * Publicado originalmente em Ferrand, Jacques. De la maladie d’amour ou mélancholie érotique. Discours curieux qui enseigne à cognoitre l’essence, les causes, les signes et les remedes de ce mal fantastique . Paris: Denis Moreau, 1623. Capítulo XXV, p. 142-146. Tradução livre de Paulo José Carvalho da Silva.

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Se o Ciume e Um Sinal de Diagnostico

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Page 1: Se o Ciume e Um Sinal de Diagnostico

R E V I S T AL A T I N O A M E R I C A N ADE P S I C O P A T O L O G I AF U N D A M E N T A L

488

Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., v. 11, n. 3, 488-489, setembro 2008

Se o ciúme é um sinal diagnóstico doamor e da melancolia erótica?*

Jacques Ferrand

Alessandro Picolomini, em suas Instituições morais, esfor-ça-se para provar que o verdadeiro Amor deve ser isento de todociúme, na medida em que aquele que busca algo com a virtudeestá livre de qualquer outra companhia nessa busca, esperandoque ela sirva de destaque e de brilho ao seu mérito. Apenas a im-becilidade teme o encontro com outro porque ela pensa que suaimperfeição ao ser comparada parecerá desmesurada. Plutarco,ao contrário, diz que o elogio da virtude não produz necessaria-mente efeitos belos, diferentemente da inquietação de querer separecer com as pessoas de bem e o desejo de atingir a perfeição.Do mesmo modo, o Amor, se não tem um pouco de ciúme, nãoé ativo nem eficaz. Foi o que inflamou os Amores de Aquiles porsua escrava Briseis, de Menelau por Helena e de Orestes por Her-mione.

(...) Eu diria, como Simonides, que é necessário que todoverdadeiro Amor contenha um pouco de ciúme. Por conseqüên-

* Publicado originalmente em Ferrand, Jacques. De la maladie d’amour ou mélancholieérotique. Discours curieux qui enseigne à cognoitre l’essence, les causes, les signeset les remedes de ce mal fantastique. Paris: Denis Moreau, 1623. Capítulo XXV,p. 142-146. Tradução livre de Paulo José Carvalho da Silva.

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Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 3, p. 488-489, setembro 2008

cia, Phaulius, que entregava voluntariamente sua mulher a Filipe, rei da Macedônia,não tinha por ela um verdadeiro amor. Assim como o infame Galba, que numanoite, ao oferecer um jantar a Mecenas, o viu espreitando sua mulher e fingiudormir, para que ele pudesse gozar de seus amores. Quando um servente, cren-do que seu mestre dormia realmente, aproximou da mesa para recolher um copode vinho, o que Galba não queria, ele então disse: Não vê que durmo apenas paraMecenas? Um e outro eram da natureza do bode que, segundo os naturalistas, éo único animal que nunca tem ciúme (ainda que a morte violenta de Gratis, mortapor um bode, testemunhe o contrário) não mais do que as mulheres dos Tárta-ros, Lacedemonios, Cipriotas, Rodenses e Assírios.

Todavia, o ciúme insinua-se na alma sob o título de amizade e, assim queele a ganha, domina-a e a tiraniza, torna os amantes pálidos, paralisados, magrose, muitas vezes, os precipita no desespero, como Lepidus e um milhão de outros.As mesmas causas que servem de fundamento ao amor, servem posteriormentede fundamento ao ódio capital: a virtude, a saúde, o mérito e a reputação do ama-do. Se pudéssemos escolher, dentre todos os males, o qual estaríamos isentos,na minha opinião, não há outro que devemos evitar tanto como o ciúme. Nos ou-tros males, a pena dura o mesmo tempo que a sua causa, o ciúme, por sua vez,forma-se indiferentemente daquilo que é, do que não é e do que pode não ser. Éuma paixão engenhosa que, freqüentemente, tira de um mal imaginário uma vivae verdadeira dor.

(...) Por que somos tão ambiciosos em nossos males que corremos à suafrente e os adiantamos em pensamento? Nós vemos vários que perderam suasamantes porque desconfiaram de sua castidade, da mesma maneira que os me-lancólicos hipocondríacos acabam adoecendo de tanto medo de ficar doente.Tanto que nós podemos dizer que o ciúme é um peso que nos faz vacilar na fuga,razão pela qual certo autor dizia que a traição e o ciúme são festejados no mes-mo dia. É o que comprovam os exemplos: enquanto Danae estava em liberdade,permaneceu casta. Ao passo que se perdeu assim que seu pai Acrisius a prendeuna torre de bronze. Não há cômodo tão bem fechado, nem gabinete suficiente-mente secreto, onde o desejoso não possa entrar.

JACQUES FERRAND (1575-1623)Doutor em direito e em medicina pela faculdade de Toulouse, foi médico do duque Claudede Loraine, além de ter desempenhado a função de cônsul.

MEDICINADA ALMA