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SCINTILLA

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SCINTILLA REVISTA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVAL

Vol. I, N.1 – 2004

Faculdade de Filosofia São Boaventura - FFSB Curitiba PR

2004

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NEF – NÚCLEO DE ESTUDOS FRANCISCANOS FFSB – FACULDADE DE FILOSOFIA SÃO BOAVENTURA

Av. Silva Jardim 1499 – 80250-020 Curitiba-PR E-mail: [email protected]

Reitor: Fr. Gilberto G. Garcia Diretor do FFSB: Fr. João Mannes Editor: Enio Paulo Giachini Conselho editorial

João Mannes, FFSB (Diretor) Enio Paulo Giachini, FFSB (Editor) Emanuel Carneiro Leão, UFRJ Orlando Bernardi, NEF Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College , Estocolmo, Suécia Urlich Steiner, FFSB Vagner Sassi, FFSB Jaime Spengler, FFSB

Conselho consultivo Marcos Aurélio Fernandes, IFITEG Glória Ribeiro, UFSJR Jamil Ibrahim Iskandar, FFSB e PUC-PR Joel Alves de Souza, UFPR Gilvan Luiz Fogel, UFRJ

Revisão e Editoração: Enio Paulo Giachini Diagramação: Capa: Luzia Fogel Alves de Souza

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Sumário Editorial 7

Artigos 11 A história na filosofia grega Emmanuel Carneiro Leão 13 O medieval e o saber de abnegação Márcia Sá Cavalcante Schuback 35 São Francisco de Assis e os estudos, uma questão Frei Hermógenes Harada 51 O projeto de vida de São Francisco de Assis e a educação para a vida integral Frei João Mannes 99

Comentários 117 Os sentidos internos na filosofia de Ibn Sīnā (Avicena): um estudo comparativo Jamil Ibrahim Iskandar 119 Do sermão 52 de mestre Eckhart

Hermógenes Harada 129

Traduções 153 De como o homem se mantém em paz, se não se encontrar em árduo labor exterior, como o tiveram Cristo e muitos santos; como ele deve [então] seguir a Deus

Mestre Eckhart 155 A humildade de Deus

Ângelo Clareno 159

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EDITORIAL

Enio Paulo Giachini (Editor)

A revista que ora apresentamos a público objetiva o fomento e a divulgação do estudo da medievalidade. Isso significa que seu âmbito de abrangência atinge as mais diversas áreas da vida e do saber medievais. Busca, no entanto, implicitamente um direcionamento específico, destacando a linha mística, que é a expressão de uma espiritualidade mais aprofundada sobretudo dentro da religião cristã e dentro da própria filosofia e teologia. Isso porque compreendemos que o coração, a flor, da medievalidade se encontra na mística, como a elaboração mais refinada da gigantesca busca religioso-cristã empreendida pela medievalidade.

O homem contemporâneo busca ansiosamente na religião um sentido para sua vida diante da dispersão e da exigência, cada vez maiores, provocadas pela cientificização técnico-econômica. O diálogo com a medievalidade, e sua mais refinada elaboração na mística, poderá trazer nova luz e renovar o ar por demais poluído pela obviedade e constringência técnico-científico-econômica. A tradição nunca é um reservatório passado, objeto da “história” e da pesquisa, meramente informativa ou edificante. A tradição é sempre o fundo nascivo, único lugar donde brotam/podem brotar novas perspectivas para o futuro do homem. A tradição é provocação, ela sempre fala, convoca e orienta o cominhar contemporâneo. Todo novo brota e se sustenta incondicionalmente do antigo, como toda floração não passa do vir à luz, à cor, do tronco e da raiz da árvore que se enraíza no escuro e profundo da terra.

A Revista se propõe ser um lugar de diálogo do espírito contemporâneo, não importando a configuração que assuma hoje, na busca de reorientação do sentido da vida. É com esse espírito pé-no-chão, de quem quer aprender e ser instrumento de aprendizado, que ela busca somar e contribuir com a pesquisa e divulgação existente nessa área. Esse pouco e apoucado de sua contribuição encontra-se resumido no título da revista, simbolizado com o nome Scintilla (centelha, minúscula partícula de luz e calor).

A palavra Scintila, portanto, indica um direcionamento. Ela significa centelha, faísca, cintilação... É o abrir-se e fechar-se instantâneo da luz, sua manifestação e ocultamento repentinos. O apoucado e incontrolável dessa luz pode, na prontidão e disponibilidade humanas, iluminar todo um âmbito ou incendiar, como um raio que se abre e fecha num instante. Nessa palavra quer-se também deixar transluzir toda a questão da metafísica medieval da luz. Deus é luz, o intelecto e a alma humana, em seu fundo, à imagem e semelhança dele, são uma centelha divina. Na pobreza dessa limitação e prontidão, também essa revista quer ser uma centelha de luz, cintilação a iluminar a busca comum no intelecto e no espírito.

Este primeiro número abre-se com artigos que refletem a questão das origens; seu foco volta-se para o “passado”, para a questão da história. O fato de a revista focar sobretudo uma determinada época da filosofia não vem por escolha espúria, nem está voltado à eleição de determinado conteúdo de filosofia. É por essa razão que é preciso pensar a questão da história e da historiografia. Para a filosofia, a história não é um conteúdo neutro, uma seqüência linear de fatos, registrados e rememorados num sistema de

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pensamento. História é sempre e primeiramente começo. Para o pensar, história é sempre herança e destino. Vale lembrar então que se há de começar pelo começo. Ou seja, o pensar da filosofia precisa se haver com seus inícios gregos. Qual a implicação entre história e pensamento no universo grego, chão primeiro da filosofia? Não só para toda filosofia e teologia medieval, mas para o próprio destino e desenvolvimento do pensamento ocidental, o pensar grego se apresenta como fonte, não passada, mas sempre nascente. Na sede de saber e não saber se dá a descoberta de nossa filiação grega. O artigo A história na filosofia grega, do Prof. Emmanuel Carneiro Leão reflete sobre esse ponto.

No artigo “O medieval e o saber da abnegação” prossegue-se essa reflexão sobre o confronto com a história. Agora, bem “mais próximo” de nós. Uma das questões centrais do texto é como nós, modernos, nos medimos com a era e o pensar medievais. Nossa busca de distanciamento e diferenciação nos liga irremediavelmente ao medieval. “O saber moderno, o saber transmissor e educador, de caráter universalizante, não pode não saber”. É este saber inconcusso, da certeza e do controle, que busca distância do saber da abnegação e do saber da academia. Trata-se portanto de confrontar essa certeza e controle com o “não” inerente à vida, à natureza, a presença da morte, do incontrolável e abscôndito na luz exacerbada da razão moderna.

O artigo de Fr. Hermógenes Harada trata da Mística e busca franciscana nos primórdios da Ordem. A busca dos primórdios quer reportar mais do que um momento histórico. Significa o itinerário ousado e transformador, rumo a uma experiência que se aproxime o máximo possível do ideal e vida encarnados em Francisco de Assis, um dos representantes máximos do cristianismo e da intensidade de experiência de vida cristã medievais. A busca do saber, dos estudos, no começo da Ordem pode ser encarada pela atualidade como um problema ou como uma questão. Apesar da co-implicação necessária entre esses dois graus de reflexão, enquanto problema, o estudo do saber, no princípio, pode servir de modelo historiográfico comparativo para dirimir dúvidas e direcionar um afazer. Não, porém, quando esse problema se torna questão.

Complementa esse primeiro número da revista um artigo de Fr. João Mannes sobre educação e ideal franciscano. O artigo discute como é possível integrar e encarnar o espírito de Francisco de Assis nos projetos educacionais de nossa formação atual, destacando tanto o desafio quanto a grandeza dessa integração.

Em cada número da revista é intenção da editoria publicar alguns textos traduzidos da medievalidade que referenciem os objetivos maiores da própria revista. Iniciamos assim com a publicação das Conversações espirituais (Reden der Unterweisung) de Mestre Eckhart e uma carta do franciscano Ângelo Clareno.

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ARTIGOS A HISTÓRIA NA FILOSOFIA GREGA Emmanuel Carneiro Leão*

A filosofia Grega não é uma ciência, uma teoria ou disciplina do conhecimento, tal como nós as entendemos hoje em dia. Ao contrário! Toda ciência, teoria ou disciplina do conhecimento é que são, de alguma maneira, dependentes da Filosofia Grega, quer se reconheçam ou não, quer se assumam ou não, como oriundas da Filosofia. A Filosofia Grega também não se constitui uma ideologia, concepção de vida ou visão de mundo. Mas não vale a inversão. Pois, uma ideologia, concepção de vida ou visão de mundo não pode prescindir de todo da Filosofia Grega. Foi o que, em 1949, no Congresso Nacional de Filosofia, reunido em Mendoza, na Argentina, reconheceu o próprio Bertrand Russel com as seguintes palavras:

“... incompromising empiricism is untenable”.

“… um empirismo sem compromisso é insustentável!”

Mas então o que é Filosofia Grega, se não for ciência, teoria ou disciplina do conhecimento, nem ideologia, concepção de vida ou visão de mundo? – Antes de responder, pensemos um pouco o que nos leva a perguntar assim, isto é, o que nos torna esta pergunta não somente possível como, sobretudo, imperiosa!

Esta pergunta supõe aceitas sem discussão muitas coisas. Assim supõe que toda Filosofia, portanto também a Filosofia Grega, seja ou, ao menos, pretenda ser um exercício de conhecimento. Supõe, do mesmo modo, que, além do conhecimento, já não sobre nada mais para a Filosofia ser. Supõe, igualmente, que tudo que é não possa deixar de ser alguma coisa, um quê, por isso se pergunta o que é. Supõe, outrossim, que toda pretensão de conhecimento termine sempre ou com a produção de um conhecimento objetivo e então é ciência, ou, com a produção de uma ilusão transcendental ou empírica e então é ideologia. Supõe, por fim, que toda época, a época dos gregos também, tenha sua concepção de vida e visão de mundo.

Como se vê, não são poucas as suposições que sustentam aquela pergunta! Mas e se todas estas suposições forem e estiverem a serviço de dicta dura, isto é, da ditadura da razão, seu raciocínio e sua racionalidade, muito bons, sem dúvida, para conhecer objetos, mas imprestáveis para pensar a realidade nas realizações do pensamento grego? Neste caso, com que cara nós ficaremos, ao perguntar: “Mas, então, que é a Filosofia Grega se não for nem conhecimento nem ideologia, nem concepção de vida nem visão de mundo?” Será que ainda ficaremos com uma cara quando só nos restar a carranca intransigente da razão e sua ditadura?

Agora que sabemos das suposições e limites da pergunta, poderemos tentar respondê-la.

A Filosofia Grega é uma experiência de Pensamento. Mas não é a única experiência grega de pensamento. Outra experiência grega de Pensamento é o Mito e a Mística. Uma outra, são os deuses e o extraordinário. Ainda uma outra é a Poesia e a Arte. Ainda

* Universidade Federal do Rio de Janeiro

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outra é a πολισ e a πολιτεια. A última, por ser no fundo a primeira experiência grega de Pensamento, é a vida e a morte, εροσ e τανατοσ.

Aqui e agora, nós nos vamos restringir apenas a caracterizar a experiência grega de Pensamento na Filosofia, embora tenhamos de nos referir a outras experiências gregas de Pensamento.

O desenvolvimento da experiência grega de Pensamento na Filosofia atravessou três períodos com peso e importância desiguais atribuídos ao Pensamento e ao conhecimento.

O Primeiro Período: é o período Originário.

Todo esforço da Filosofia se dirige predominante e se orienta prevalentemente pelo e para o Pensamento. São, sobretudo, três os pensadores originários: Anaximandro – Parmênides – Heráclito, com Tales como “principiador”! Há outros filósofos, como Xenófanes e Anaxágoras, Empédocles e Demócrito, mas cujo esforço já começa a se concentrar mais em conhecer do que em Pensar. O período originário se estende dos fins do século VII até meados do século V antes de Cristo. Os lugares da atividade são as Costas da Jônia na Ásia Menor, sobretudo em Mileto; Éfeso, na Ilha de Samos; e na Magna Grécia, sobretudo na cidade de Elea.

O Segundo Período: é o período Clássico.

O esforço da Filosofia já se desloca mais do Pensamento para o conhecimento. São também três os pensadores clássicos em cada uma das correntes, que ocupam o período, a corrente socrática e a corrente sofística. Do lado socrático, temos Sócrates, Platão e Aristóteles. E do lado sofístico, temos Protágoras, Górgias e Pródico. O lugar da atividade é predominantemente a Ática, sobretudo Atenas. O período clássico se estende dos meados do século V até o final do século IV, antes de Cristo.

O Terceiro Período: é o período Helenista.

O esforço da Filosofia se concentra principalmente em conhecer. Tudo é conhecimento, desde os mistérios, os arcanos e a religião até os prazeres e as sensações. Somente com o Neoplatonismo é que ressurge a importância do Pensamento, mas mesmo assim subordinado ao conhecimento. É o período de maior extensão. Estica-se do final do século IV antes de Cristo até meados do século VI depois de Cristo. O espaço de sua atividade vai-se expandindo da Grécia para toda a οικουμενη, para toda terra habitada.

Mas porque é tão importante para se aprender a pensar e desenvolver a capacidade do Pensamento hoje a Filosofia Grega? Donde provém esta necessidade de se estudar a Filosofia Grega num currículo de Filosofia? Não seria muito mais vantajoso empenhar logo todas as forças e concentrar todo esforço em estudar o Pensamento atual e aprender a pensar o pensamento de hoje? Que utilidade poderá trazer para nós, “filhos do carbono e do amoníaco”, todo o trabalho de penetrar no movimento, por mais criador que seja, do Pensamento na Filosofia Grega, se mais de dois mil e quinhentos anos de história dela nos separam? O que há com a Filosofia que não consegue desvencilhar-se de seu princípio e deixar o passado passar? O que é que se nos dá de Pensamento nas relações entre Filosofia e História.

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O Pensamento é um passado tão vigente que sempre está por vir. Qualquer esforço da Filosofia não deixa de ser um esforço do e pelo Pensamento. E por quê? – Porque nenhum esforço filosófico, em qualquer hora, tanto outrora como agora, pode dispensar a força de futuro do Pensamento no passado. Por isso também toda Filosofia vive de pensar a História da Filosofia. É o que se tornou transparente desde Hegel. Por isso toda Filosofia inclui necessariamente, quer o saiba ou não, quer o aceite ou não, uma Filosofia da História.

Na Introdução às Preleções de História da Filosofia, pergunta Hegel: como a Filosofia, que busca sempre a verdade, isto é, uma verdade una, necessária e imutável, pôde desenvolver-se numa multiplicidade de tantas filosofias? De fato, o balcão da História oferece filosofia para todos os gostos e nos mostra que, onde um filósofo diz sim, outro diz não e vive-versa. Daí se dizer que é próprio dos filósofos se contradizerem uns aos outros e do filósofo se contradizer a si mesmo. A todas estas arremetidas da razão contra o Pensamento na Filosofia, a resposta de Hegel é dialética: a verdade não são as partes; as partes são passagens de que necessita a verdade para chegar a si mesma no todo. A verdade é o todo. Por ser e para ser o todo, a Verdade possui a tendência de se desenvolver e desenrolar nas peripécias de uma dialética, formando um fluxo de crescimento, o curso da História.

E não foi somente Hegel que o percebeu. Heráclito já sabia e o sabia com um saber originário. Aristóteles também, Platão também, Santo Agostinho também, Kant também, Schelling também, Nietzsche também, Heidegger também! Mas é um saber raro. Só os grandes pensadores o possuem. E o possuem, na medida em que o transformam na grandeza de outros endereços e novos caminhos de pensar. O destino do Pensamento em qualquer endereço ou caminho é mantê-lo vivo da forma mais pura, isto é, na forma de um contínuo e diuturno questionamento. Por isso, os filósofos nascem e morrem, como filósofos, num diálogo ininterrupto com seus antecessores e sucessores. Somente morrendo é que um filósofo e uma filosofia se tornam contemporâneos do Pensamento.

Constitui, pois, uma ignorância crassa do modo de dar-se do Pensamento na Filosofia pretender que um filósofo necessite, para sua Filosofia, da caução de seus pares. A caução só é indispensável ou para ser aprovado num concurso ou para ser convidado como professor visitante ou para passar nos exames do final de curso. A análise sociológica, mesmo de uma pretensa “sociologie philosophante” é que confunde às vezes vigor de pensamento com a caução de um concurso. “Criticar”, no sentido de apontar deficiências, indicar erros, denunciar falhas, não faz parte da atividade constitutiva do pensamento. Qualquer crítica fica muito aquém do nível em que se move o pensamento. Toda crítica não passa do uso de parâmetros de dever ser disponíveis e já constituídos.

Ora o modo de dar-se e de ser do Pensamento é sempre constituinte e por isso consiste em ex-plicar. Todo pensamento se ex-plica, ao explicar-se com os outros pensamentos. A ex-plicação é a única maneira de se respeitar um pensador, como pensador. É o modo mais elevado de se considerar e levar a sério um pensamento. Mas não se deve confundir a ex-plicação do Pensamento com a explicação do conhecimento e da ciência. Pois, ex-plicar um pensamento é deixar surgir a profundeza de suas im-plicações com o real, é fazer emergir a vitalidade de sua a-plicação às realizações e assumir o vigor de suas complicações com a realidade.

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Só se enreda na rede das diferenças quem tem dificuldade de pensar a identidade do pensamento nas próprias tensões e oposições de seus níveis, endereços e exercícios. Para o Pensamento, o critério consensual da verdade é tão espirituoso como o esforço de comparar o maior número possível de exemplares de uma edição de jornal para se confirmar a verdade de uma notícia. Nenhum filósofo, digno deste nome, está em diálogo de pensamento com seus contemporâneos. As diferenças entre as filosofias não atrapalham, estimulam o Pensamento saber que a essência da verdade está no consenso. E por quê? – Nietzsche nos responde: a Filosofia “não é algo que se torna, evolui e devém nem algo que passa, decorre e escoa”. A Filosofia está toda se tornando, está toda evoluindo, está toda devindo. A Filosofia está sempre passando, está sempre decorrendo, está sempre escoando. “Os seus excrementos são o seu alimento”. Um puro vir a ser é a vontade de todo ser e um eterno retorno do mesmo é o poder deste incessante querer ser. “Vontade de poder” e “eterno retorno” perfazem o cúmulo da Filosofia porque são a Filosofia do cúmulo no cúmulo e como cúmulo. Por isso, no número 617 de suas anotações para sua obra principal, resume Nietzsche a dinâmica de realização do real com as seguintes palavras: “Recapitulação: imprimir ao vir a ser o caráter do ser é a suprema vontade de poder”. Mas trata-se de uma “recapitulação” ontológica que impõe uma circularidade às realizações oriunda do advento da realidade na história das transformações. Esta circularidade é o cúmulo da reflexão no movimento de uma constante retomada do princípio. É o que nos diz com uma voz imemorial o no 420 ... “Que tudo retorna é a máxima aproximação de um mundo do vir a ser ao mundo do ser – cúmulo de reflexão”.

O único motivo para se estudar a Filosofia Grega é a necessidade que temos de aprender novamente a pensar. Não de certo como os gregos pensaram – o que seria impossível –, mas de aprender a pensar com o que os gregos pensaram, a indigência de pensamento em que nos debatemos hoje no Fim da Filosofia!

Em 1966, o Prof. Eugen Fink, de Friburgo, na Alemanha, completava 60 anos. No discurso comemorativo, Heidegger pensa a situação atual da Filosofia com as seguintes palavras:

A Filosofia entrou hoje num estágio da provação mais difícil. A filosofia está se dissolvendo em ciências independentes e autônomas. São elas: a lógica, semântica, psicologia, sociologia, antropologia, politologia, poetologia, tecnologia. Uma verificação de novo tipo das ciências todas está substituindo a Filosofia junto com sua dissolução nas ciências. O controle das ciências através de uma tendência básica, vigente nelas mesmas, se realiza hoje no aparecimento do que se procura impor com o nome de cibernética. Este processo é promovido e acelerado pelo fato de lhe vir ao encontro um traço fundamental das próprias ciências modernas.

Numa única frase, Nieztsche expressou este traço essencial da ciência moderna, um ano antes do colapso mental de 1888. A frase é a seguinte:

“O que distingue o século XIX não é a vitória da ciência, mas a vitória do método sobre a ciência” (No 466).

O que se pensa aqui como método já não é o instrumento com que a pesquisa científica elabora objetos de fenômenos já dados. O método constitui a própria objetividade dos objetos, caso ainda se possa falar aqui de objeto, caso ainda possua “valência ontológica” partir de determinações da objetividade.

Talvez a Filosofia de tipo tradicional e de vigência correspondente venha a desaparecer do horizonte do homem da civilização técnica. Mas o Fim da Filosofia não é o Fim do Pensamento.

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Por isso torna-se premente a questão se o Pensamento vai assumir a provação que tem diante de si e como o Pensamento vai sobreviver ao tempo da provação.

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... foi a Poesia que preparou entre os Gregos o princípio do Pensamento na Filosofia Ocidental.

Talvez, no porvir, seja o Pensamento, no Fim da Filosofia, que abra o espaço de tempo e de jogo para a Poesia, a fim de a palavra poética instalar de novo um mundo de palavra.

O que Heidegger nos quer dizer e fazer pensar com estas palavras? Ele nos recorda ao coração que o grande desafio de hoje é a indigência de Pensamento.

Para se perceber a indigência do Pensamento na Filosofia atual em fim de carreira, basta pensar o sentido que tem a inversão histórica entre Filosofia e Ciência. Ao longo de toda história do Ocidente, o caminho de passagem correu sempre da Filosofia para as ciências, no plural, a fim de preservar os vários sentidos da palavra. Em todas as épocas anteriores, qualquer abalo histórico sempre iniciou na Filosofia e se alastrou para as ciências. Hoje, não. O sentido do movimento se inverteu. Por toda parte, o caminho que leva à Filosofia já não é o caminho do Pensamento. A ciência tornou-se a passagem obrigatória de todos os caminhos da Filosofia. A grande maioria dos chamados Filósofos de hoje não são pensadores, são parasitas da ciência. Quase todos vivem às expensas da ciência, do que lhe rendem as descobertas científicas, quer se trate da matemática, física ou biologia, quer se trate da antropologia, sociologia ou psicologia. A decadência do Pensamento é de tal monta que se perderam até as condições de se reconhecer a decadência e identificá-la, como decadência. Ao contrário. Hoje se toma a decadência por grandeza e florescimento. Daí a mescla de orgulho e medo, a sensação de sucesso e ameaça que acompanham os resultados e as descobertas da técnica e da ciência. Daí também as tentativas de controlar a angústia através de divisões e separações: separam-se as descobertas da técnica e da ciência de sua má utilização. Assim se acha que o controle da energia do átomo é um bem; apenas seu uso na produção de bombas atômicas é que é um mal. Ora, para sustar a avalanche e reverter o processo, não adianta muito se chamarem, se considerarem e pretenderem ser filósofos. Para a Filosofia existir e sobreviver é preciso aprender novamente a pensar e não apenas repetir, em novos registros, o já pensado pela tradição histórica nem derivar das descobertas, que sua aplicação tem proporcionado às ciências, perspectivas gerais de leitura e interpretação.

Sempre se repete hoje em dia que uma onda de progresso se expande por toda parte e se aponta para novas idéias e invenções revolucionárias nas diversas áreas da produção cultural: nas matemáticas, na lógica, na computação, na semântica, na medicina, nas teorias dos jogos, dos sistemas, das catástrofes etc. A decadência chegou ao ponto de se pretender construir uma nova Filosofia com as últimas descobertas. A justificativa de tal pretensão diz no fundo o seguinte:

O conhecimento científico corre num ritmo tão veloz que, depois de dar algumas voltas em torno da terra, Gagarin, o primeiro homem a ir ao espaço exterior, disse, sem a menor cerimônia, numa entrevista à imprensa internacional: “não encontrei Deus em volta da terra. É que eu girava rápido demais!” Que indigência de pensamento! Neste nível, não é possível nem mesmo perceber e muito menos pensar o problema de Deus no ateísmo e o problema do ateísmo na crença em Deus e no reconhecimento de sua presença! A entrevista foi lida, foi louvada e condenada em toda a grande imprensa do

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mundo. Ela só não foi pensada. Na bolsa do conhecimento, da ciência e da Filosofia, a cotação do Pensamento anda mesmo muito por baixo!

Alguns anos depois, uns astronautas americanos, após contornarem a lua pela primeira vez, comunicaram para o mundo estupefato que a terra azul era o astro mais bonito do universo. Eles ainda não tinham chegado nem mesmo à lua, mas já sabiam que a terra azul era o astro mais bonito do universo. Como dá para se ver, o Pensamento não tem acompanhado o surto de evolução do conhecimento científico. Por isso, a tese fundamental da última preleção de Heidegger na universidade de Friburgo foi: “O que mais nos faz pensar em nosso tempo, que dá tanto a pensar, é não se pensar!” – Nestas condições, não é de forma alguma para se estranhar que o ritmo acelerado do progresso da ciência tenha aumentado consideravelmente o estado de confusão reinante. E não subiu apenas o desnível e, em conseqüência, a dificuldade de comunicação entre as elites culturais e o nível de conhecimento do povo. É muito pior do que isto. O tropel do progresso cientifico atropelou os pressupostos do Pensamento em todos os homens, nas elites mais ainda do que no povo!

Estes pressupostos vinham servindo séculos afora de suporte e sustentáculo não apenas para as convenções e instituições do Ocidente, mas para a própria vitalidade da convivência e o vigor de criação em todos os campos da atividade histórica dos homens. As experiências de pensamento do espaço, do tempo e movimento, da lei, do paradigma e destino, as integrações de natureza, história e sociedade, a força de reunião do uno e do múltiplo, a identidade conquistada através das tensões da diferença, tudo isto se esboroou e dissolveu, deixando todos os padrões de comportamento nas ações, reações e omissões à deriva, sem rumo, nem amparo, sem continente, nem horizonte. Substituindo as experiências do Pensamento, o conhecimento objetivo não dá indicações nem oferece parâmetros para se viver num vazio vazio, isto é, desprovido até mesmo da exigência de rumos e referências. Sem as experiências do Pensamento, não temos perspectivas para encontrar caminhos num mar em que tudo é relativo e mutante, em que as mudanças se sucedem em alta velocidade, embora sempre com a promessa do absoluto das transformações e da segurança das soluções. É esta experiência a importância que nos traz a Filosofia Grega com um modo de vida criativo e livre. Pois, nos séculos de seu vigor originário ela sempre se sentiu em casa no vazio, sem exigência de parâmetros e padrões e, ao invés de horror, sempre experimentou um elã criativo no não saber do Pensamento. Para a experiência do Pensamento originário se inverte nosso senso de amparo. Amparo, já não é ter em cima tetos, telhados, coberturas, ou possuir embaixo solo, cimento e asfalto ou dispor no meio de correntes, trancas e trincos, é viver sem nenhum teto para a cabeça, sem nenhum solo para os pés, sem nenhum esteio para as mãos. É o sentido grego que antecede a passagem do Evangelho: “As raposas têm covas e as aves do céu têm ninhos, mas o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”.

No é que se tenha de fazer um transplante da Filosofia Grega para os dias de hoje. Isto é impossível. Nossos modos de sentir e hábitos de conhecimento no-lo impediriam. A Filosofia Grega está profunda e intrinsecamente tecida na língua grega e ligada à cultura grega, isto é, a instituições, instâncias e costumes que nos são hoje estranhos e exóticos. Mas, por outro lado, temos uma necessidade imperiosa de desaprender muitas coisas e aprender outras tantas com a estranheza do Pensamento na Filosofia Grega. Os gregos do período originário têm a vantagem de um modo de falar e dizer que, justamente por ser desconcertante e paradoxal, se torna tão educativo tanto para nosso saber como para nosso não saber. Muitas são as possibilidades de pensar, modos de comunhão ainda não

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explorados, que os pensadores e filósofos gregos têm para oferecer: acuidade, inspiração e humor, mas, sobretudo, um sentido de arte e beleza, um senso de absurdo e contradição que, ao mesmo tempo, exaspera a razão e deleita o pensamento. Pois, o próprio do Pensamento é a força original de virar pelo avesso tanto o racional como o irracional e dissolver o que se nos afigura constituir os princípios mais caros à racionalidade e a exclusividade de valor do binômio moderno racional-real. O pensamento na Filosofia Grega é a mais radical compaixão pela humanidade do homem, de que se tem notícia, sem concessões nem reservas. O grego do período originário não quer ser salvo nem quer salvar ninguém e por isso não busca nenhum messias e nenhuma doutrina de salvação. Não tem religião. A língua grega não possui nenhuma palavra própria para dizer religião. Religião é um étimo latino e designa uma experiência romana. Mas não quer isto dizer que o grego seja ateu. Apenas seus deuses não são salvadores e sua experiência histórica não inclui nenhuma missão redentora nem individual nem racional nem universal.

A aprendizagem da Filosofia passa sempre pelas obras dos grandes pensadores. Mas uma leitura com o propósito de aprender a pensar não poderá ser ideológica. Não se estudam os filósofos para sair repetindo as atitudes que tomaram, as posições que defenderam ou as respostas que deram. Em toda leitura e interpretação de um texto está em jogo a capacidade de pensar de quem lê e interpreta. “A filosofia não é uma doutrina. A Filosofia é uma atividade”, diz Wittgenstein no n. 5217 do Tratado Lógico-Filosófico. E qual é a atividade da Filosofia? – É a atividade de aprender e ensinar a pensar. A tarefa do pensador não é construir respostas nem formular teorias. É examinar as irrupções das diversas teorias e respostas em seus respectivos pressupostos de sustentação. Na conhecida formulação socrática “oida oyden eidws", “sei que não sei”, este “que” não tem função nem categorial, nem transcendental, seja integrante seja causal. Indica simplesmente a conjuntiva histórica da existência, em que se dá e exerce a liberdade do Pensamento em tudo que sabe; em tudo que sabe o pensamento não somente sabe que não sabe. A formulação não visa apenas a constatar um fato e sua aceitação por parte de Sócrates. Fala de uma realização e modo de ser, a realização e o modo de ser do filósofo. O pensador em tudo, e sobretudo, vive o não saber. Pois pensar não é saber. É não saber. Quando se pensa não se pretende saber, e quando se pretende saber não se pensa. Desde o Poema de Parmênides, o pensador-filósofo é aquele que não cessa de questionar as raízes em que se encontram e desencontram, numa encruzilhada da verdade, os caminhos do ser, do não ser e do parecer.

No mesmo dia do colapso mental nas ruas de Turim, Nietzsche explicitou num bilhete a seu amigo Jorge Brandes as relações do Pensamento, vigentes em todo estudo de Filosofia, com três verbos: “entdecken”, “finden” e “verlieren”, “descobrir”, “encontrar” e “perder”. É o seguinte o teor do bilhete:

Turim, 04.01.1889.

Caro Jorge,

Depois de me teres descoberto não foi difícil me encontrar: a dificuldade agora é me perder... O crucificado.

Neste bilhete, um dos chamados “bilhetes da loucura”, “Wahnzetteln”, Nietzsche não está falando de suas obras, mas do Pensamento e do modo extraordinário de operar do Pensamento, isto é, de como o Pensamento se põe em obra, age e trabalha. Os verbos não se referem apenas a Nietzsche e seus escritos, mas aos pensadores de todos os

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tempos e a suas obras, qualquer que seja a situação individual, ideológica ou política de cada um.

Só se poderá corresponder ao Pensamento de um pensador se se conseguir ler a sua escritura numa leitura libertadora de nosso próprio pensamento, isto é, numa leitura que nos liberte o pensamento para a liberdade de pensar. Não existe um método de leitura, nem uma filosofia que nos proporcione as condições para uma compreensão criadora dos textos dos filósofos gregos. Nem a própria Filosofia Grega nos garante uma leitura livre de seus filósofos. Pois, toda obra criadora, caso seja realmente criadora, isto é, uma obra que nos liberte a capacidade de pensar, transcende sua própria filosofia, ultrapassa seus próprios parâmetros, remetendo-nos para fora e para além da posição fundamental em que ela mesma se planta. O único sentido de uma obra filosófica é precisamente rasgar novos horizontes, é desencadear novos impulsos, é instaurar novo princípio em que os recursos, os caminhos e padrões da obra se apresentem superados e insuficientes, se mostrem exauridos e ultrapassados pelo novo nascimento histórico. Instituindo novos parâmetros de questionamento. Uma obra de pensamento cria novas regras de leitura. Ora, toda explicação, no sentido do conhecimento e não a ex-plicação do Pensamento, recorre ao já existente, remete para o já sabido excluindo de qualquer explicação tudo que for libertador e criativo, tudo que inaugurar uma transição histórica. E não é somente isto. O predomínio destas explicações destila por toda parte uma compulsão de repetir a que nada poderá resistir, como se já não pudesse haver nenhuma criatividade e tudo se reduzisse à miragem de um deserto monótono e incapaz tanto de viver como de morrer.

Este sentido de Pensamento, que Nietzsche atribui a toda leitura das obras dos Pensadores, dá às contribuições da Filosofia Grega uma outra autoridade e uma renovada dignidade de criação, sobretudo para nós hoje imersos num processo de transição e respirando o ar de um século vespertino. Numa famosa preleção de 1935, publicada em 1953, fala Heidegger da necessidade atual de aprender a pensar com a Filosofia Grega:

Justamente porque nos devemos aventurar na grande e longa missão de demolir um mundo envelhecido e construir um outro verdadeiramente novo, isto é, histórico, temos de saber a tradição. E temos de sabê-la mais, isto é, de modo mais rigoroso e comprometido do que todas as épocas anteriores e revoluções passadas. Só o mais radical saber histórico nos põe diante do que há de extraordinário em nossa tarefa e nos há de preservar contra uma nova explosão de mera repetição e estéril imitação.

O que se trata de ultrapassar hoje, o que se tem de superar agora não é determinada interpretação do sujeito. É determinar o homem como sujeito. Esta determinação caracteriza os tempos modernos e alcança hoje na expansão essencial da técnica uma força planetária. É tão profundo seu vigor histórico que permite a concepções diferentes e até contrárias reivindicar com o mesmo direito a linhagem da modernidade. Idealismo e realismo, materialismo e espiritualismo, racionalismo e existencialismo, capitalismo e socialismo têm em comum a necessidade histórica de não se desenvolverem nem se afrontarem senão plantados no solo de um mesmo niilismo, do niilismo em que o mistério da realidade e do realizar-se no tempo já não é nada e o nada se reduz sempre a algo simplesmente negativo, à mera ausência de qualquer coisa. Centro de um mundo quase que só feito de sujeitos e objetos, de funções e operações, a armação da técnica se vai tornando o fundamento comum de todos os sistemas e organizações modernas, o tema de todo humanismo, cristão, ateu ou indiferente, a meta de todas as revoluções, capitalistas ou comunistas.

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No império das funções politônicas em que hoje batemos e nos debatemos, a Filosofia Grega nos faz ver a urgência de pensar a questão de fundo de toda existência atual: será que continuaremos prisioneiros da insurreição da técnica e condenados para sempre a desenvolver, sem nem mesmo pressentir suas conseqüências monstruosas, as muitas ideologias de esquerda, direita e do centro? Ou os tormentos que nos atormentam nas tormentas de hoje não poderão vir a transformar-se de repente no prelúdio, por mais doloroso que seja, de uma nova “aurora dos dedos de rosa” ou fênix de uma outra ressurreição? – Com estas esperanças animando-nos o Pensamento, devemos começar o esforço de aprender a pensar estudando a Filosofia dos Gregos. É um começo estranho e curioso, como todo começo essencial. Pois é um começo que, quando realmente começa, faz a experiência e descobre que já tinha desde sempre começado! E que em nenhum começo se poderá confundir começo com princípio. Começo não é princípio. Começo é alavanca. Remete-nos ao empuxo e arranque com que uma coisa começa. Enquanto princípio é origem. Remetemos à fonte donde uma coisa brota. O começo mal começa, e já está superado. Desaparece e fica para trás nas peripécias do processo de criar e produzir. O princípio ao contrário surge e se impõe ao longo de todo o processo, pois só alcança a plenitude no fim. Começo é o princípio em busca de realizar-se, fim é o princípio plenamente realizado como princípio. Quem começa muito, que inicia muitas coisas, nunca chega ao princípio. É que nós, seres finitos, somos definidos. Temos necessidade de definições. Nunca poderemos começar com o princípio. E por que não? – Porque já estamos sempre imersos no princípio. Por isso mesmo, para sabermos que estamos onde estamos, temos de começar invariavelmente com o início, com algo, portanto, que nos descubra o princípio, que nos mostre a origem, que nos desvele a fonte. É a esta espécie de começo, é este tipo de início que nos proporciona a Filosofia Grega, quando nos surpreendemos num esforço de aprender a pensar. Pois, o estudo dos gregos é o esforço que fazemos para entrar e tomar posse do que já nos é sempre dado: a capacidade de pensar. Colocamos o estudo da Filosofia Grega no começo para chegar onde desde sempre já estamos, no princípio do Pensamento. O caminho mais longo, tão longo, que dura toda a vida, é aquele que nos leva ao mais próximo, tão próximo que nós o somos, e a última caminhada, a que nos deixa no princípio, no princípio do que somos e não somos.

Só se compreende o que se aprende. Pois aprender é esvaziar-se de todo continente e de qualquer conteúdo e, assim, abrir-se e manter-se aberto para o estranho e não sabido, para o outro, a diferença e o desconhecido. Por isso só aprende quem pensa. Pois, pensar significa acolher o mistério da realidade irrompendo nas realizações do real. Para se compreender, portanto, o sentido, isto é, a necessidade e urgência da Filosofia Grega nos dias de hoje, temos de aprender a pensar a diferença entre Pensamento e Filosofia dentro da experiência grega.

Antes de tudo, é necessário assumir em nosso modo de ser e incorporar em nossa atitude que não é possível nem ensinar nem estudar o Pensamento. Só é possível mesmo aprender a pensar. Ensino e estudo, disciplina e esforço são processos de aquisição do conhecimento. E por que não? E será mesmo possível separar ensino, estudo e conhecimento para um lado e aprendizagem, compreensão e pensamento para outro? Não se trata disto. É que no Pensamento já estamos, nos movemos e somos desde sempre. O pensamento não é objeto de estudo. É o modo de viver dos homens. Justamente por não se poder separar ser homem de pensar, por isso é que não se pode ensinar e estudar o Pensamento. Mas se o Pensamento não pode ser objeto de estudo, não quer isto dizer que não se possa estudar os pensamentos dos pensadores. Muito pelo contrário. Significa apenas que o estudo é necessário e indispensável, mas não é

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bastante nem suficiente. Além do estudo, deve-se ainda favorecer o Pensamento, deixando-se arrastar e fluir na correnteza da realidade com esperança de ser transformado pela realidade, mas sem expectativas nem pretensão de determinar como deve ser o real. Pois, diferente das expectativas, esperança é confiança na entrega e consignação da realidade, enquanto expectativa se alimenta da frustração de não se ter aceitado a realidade e, por isso, busca substituir o real. O modo de o Pensamento difundir-se e o processo de sua expansão estão mais para contágio e infecção do que para esforço e disciplina. Por isso, também não há mestres no Pensamento. Todos são discípulos. Mestre, só de obras e de conhecimento. O pensamento é que domina os pensadores com a sutileza de sua fragilidade. Todas as grandes coisas da vida, como a bondade, a inocência, a liberdade não têm poder de impor-se, de defender-se. É o que acontece também com o Pensamento.

Corre em Friburgo, na Alemanha, a estória de um livro de Filosofia. Heidegger queria presentear um amigo com o Tratado de Schelling sobre a liberdade. Empacotou e foi despachá-lo pelo correio. O funcionário perguntou se havia no pacote alguma coisa de quebrar. Heidegger respondeu: “claro, o Pensamento. É um livro de Filosofia”. À delicadeza visceral do Pensamento, o homem do Ocidente se recomenda desde Hesíodo. No prólogo da Teogonia, o poeta canta a fragilidade delicada das musas. A que apelo de pensamento correspondem as musas dentro da experiência do pensamento grego? Conjetura-se que o étimo da palavra musa seja mn. Trata-se de um étimo relacionado com a raiz indo-européia: men-, que diz a experiência de ação de uma força explosiva. Desta raiz se deriva o substantivo menos = a fúria, o furor, o furacão, a alma, o espírito, o coração, o núcleo, o íntimo, o centro, a coragem, a ousadia, o vigor. A articulação com raiz dhe, que significa: pôr; empenhar, forma o tema men+dhen, indicando a experiência de aplicar e pôr uma força de concentração e expansão em alguma coisa. Por isso, manthano diz aplicar o espírito e, portanto, a aprender e ensinar, é a aplicação da força de concentração do espírito em alguma coisa, daí o sentido de cuidado e preocupação.

As musas designam assim a experiência de forças se concentrando no sentido e se afundando no íntimo das coisas. As musas regem o Pensamento em todas as suas formas. São elas que lhe constituem a essência e o vigor de ser. Nasceram em nove noites de Zeus com Mnemosine, a força de interioridade e condensação. Não é de se admirar que as musas existam no plural para possibilitar todos os modos de pensar: poesia, persuasão, sabedoria, história, matemática, astronomia. Somente um espírito rude, prepotente e voraz, como o espírito moderno, poder ver nas musas apenas confusão e fantasia. Na experiência originária dos gregos, as musas são também a fonte da verdade do real e revelação da realidade. Hesíodo nos diz que recebeu das próprias musas a missão de demonstrá-lo:

Pastores rudes, más línguas, somente ventres, sabemos dizer muitas coisas falsas como reais, mas sabemos, quando queremos, dizer a verdade em forma de mito.

O canto das musas alegra o coração de Zeus e dos deuses do Olimpo porque elas cantam os tempos de realização do real e descortinam o horizonte da realidade. É o que nos diz Hesíodo no vv. 36-38:

Vamos, comecemos com as musas que, cantando, alegram o grande coração de Zeus, seu pai, no Olimpo, dizendo com voz uníssona o que é, o que será, o que foi antes.

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Esta fragilidade essencial impede que o Pensamento se possa transmitir diretamente com a massa. A essência do Pensamento é tão sutil e delicada que não agüenta transplante e resiste à transferência. Ela se dá vivificando um modo de ser e alimentando uma vida. Assim vive, por excelência, na vida de pensar dos grandes pensadores e, por abreviatura, na vida espontânea de todos os homens. Se ninguém pode dar Pensamento a ninguém, todos têm a possibilidade de abrir-se e expor-se ao Pensamento, como faz a flor pela manhã aos raios de sol. Neste sentido, estudar é necessário, mas não basta. O estudo vem da razão e, como tudo que é racional, não pode nem morrer nem viver. Aprender é vivo e, como toda vida, precisa morrer continuamente para viver. Estudar é o meio de conhecer. Ora, conhecer é poder e um poder tão poderoso que se pretende dispensar de ser o que conhece. Para o conhecimento ser o que conhece, é perigoso. Traz o perigo de comprometer a isenção e neutralidade de conhecimento. Por isso, o conhecimento tem de ser racional e arrancado de toda possibilidade de viver e morrer. Em latim, arrancar se diz ab-strahere e arrancado ab-stractum. Para arrancar-se da alternativa de vida e morte, o conhecimento se torna abstrato. Abstrato quer dizer, em primeiro lugar e antes de tudo, fora da possibilidade de morrer e viver para poder estar todo dentro da segurança do poder. O ideal de todo conhecimento é muito mais conhecer sem ser do que conhecer sem sujeito. Neste sentido, o conhecimento visa a conhecer o amor sem amar, busca conhecer a meditação sem meditar, quer conhecer o pensamento sem pensar.

Vivemos na época do conhecimento, o que vale dizer: por toda parte grassa a obsessão pelo poder e por segurança. Daí, nosso primeiro cuidado, ao visitar os pensadores gregos e nos encontrar com a Filosofia Grega, é uma atitude de disponibilidade: não ir para estudar e conhecer, mas ir para aprender a pensar. Esta é a semente que vai florescer e transformar-se em árvore de pensamento. Quando, onde e em quem de nós vai transformar-se em árvore não podemos saber, só podemos mesmo esperar. Como diz Heráclito no fragmento 8:

“Se não se espera, não se encontrará o inesperado, sendo sem caminhos de encontro nem vias de acesso”.

A disposição de aprender a pensar constitui, pois, a semente de nossa esperança em todo contato com o Pensamento na Filosofia Grega.

Muitas são as diferenças entre a atitude de aprender e a atitude de estudar. Quem vai estudar quer mais conhecimentos e informações para saber mais, para poder mais, para assegurar-se mais. Quem vai aprender quer esvaziar-se mais e desaprender mais para arriscar-se mais a ser mais. Se não se apostar a vida, não se aprende nada. Quando se estuda, cresce o receituário, isto é, o repertório das receitas; aumentam, em conseqüência, as possibilidades de fazer. Quando se aprende, crescem as possibilidades de ser e realizar-se; aumentam, em conseqüência, as possibilidades de viver e de morrer.

Alguém que se aproxima da Filosofia Grega para estudar vem repleto de perguntas e com muita curiosidade. As respostas vão aumentar o acervo das informações. Esta é outra diferença entre aprender e estudar. Pois, alguém que se achega aos pensadores gregos para aprender a pensar só traz uma única pergunta, só tem um único propósito. Muitas perguntas provêm da voracidade insaciável do conhecimento. Qualquer resposta recebida só servirá mesmo para gerar mais perguntas. A voracidade do saber é como a Hidra de Lerna, cada resposta se transforma em muitas novas perguntas. Assim a resposta à pergunta: “quem criou o mundo?” Se for, por exemplo, Deus, transforma-se

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logo em mais perguntas: “E Deus existe?” “Quem é Deus?” “Deus não é uma ideologia?” “Não resulta do sentimento oceânico do inconsciente?” “Por quê e para que Deus criou o mundo?” “Antes de criar o mundo, o que Deus fazia?” E se a resposta for: “O mundo não foi criado, sempre existiu”, a situação não melhora. Logo se pergunta se a eternidade do mundo é compatível com a entropia? Se não há contradição entre o tempo no mundo e a eternidade do mundo? Se não existe uma proporção constante entre a quantidade de massa e a duração do mundo? E se a resposta for: “O mundo vem do acaso”: “Nosso número saiu na loteria de Monte Carlo”, como escreveu Jacques Monod no “Acaso e Necessidade”. Esta resposta não desencadeia menor avalanche de perguntas: “Não existe correspondência entre causa e efeito?” “O acaso não supõe a necessidade para ser acaso?” “Pode-se transferir sem mais um mecanismo de um nível para outro?” “A probabilidade não exige sempre a possibilidade?” “Pressupor simplesmente a possibilidade de o acaso criar alguma coisa não equivale a admitir provado o que se deve provar?”

Como se pode ver, ter muitas perguntas a fazer aos Filósofos Gregos não é sinal de sabedoria, mas de confusão. Significa que se está perdido girando em círculo pela periferia da vida. Na periferia existem sempre muitos pontos a serem discutidos, mas todos dispostos em círculo: uma pergunta leva a outra que puxa outra e assim ao infinito. Aristóteles já dizia que, em todo movimento de remissão e regresso sem fim, o círculo deixa de ser virtuoso para se tornar vicioso. Por isso: “É preciso parar” o vício e interromper o malefício. Sem o poder de concentração e a dinâmica de reunião de uma força de unidade não se dá nem acontece nenhum movimento. Não adianta multiplicar os vagões ao infinito. Sem o poder de reunião e força de aglutinação da locomotiva o trem não anda. É o que acontece com as nossas perguntas girando em círculo pela periferia do pensamento na Filosofia Grega.

Para se encontrar com o pensamento grego, deve-se ter uma pergunta apenas: a pergunta que brota da unidade de nosso próprio ser. Por isso, é importante deixar a periferia e ir para o centro da vida. Pois, somente no centro a pergunta é essencial. No centro, todo nosso ser transforma-se numa única pergunta. Todo o nosso ser é pergunta. Ser todo pergunta em qualquer estudo da Filosofia Grega é a única maneira de se aprender a pensar com o que pensavam os pensadores gregos.

Mas como é que uma metamorfose desta se dá e acontece em concreto? Sem dúvida, somente quando e na medida em que tudo o que somos e não somos, tudo que temos e não temos, se sintonizar com o apelo e responder ao alento da realidade e suas peripécias biográficas e históricas em nossa essência de Midas do ser e argonautas da verdade. O adjetivo con-creto, com que hoje designamos a experiência do real e sua realização na história da realidade, provém, por derivação, do verbo latino: con-crescere (= crescer junto com; condensar, coagular, coalhar, combinar). É um verbo composto da preposição cum (= com, junto com, em conjunto ou companhia de) e do infinitivo: crescere (= crescer, aumentar, desenvolver-se). Con-crescere diz o processo de crescer em conjunto, isto é, dentro da totalidade do real, e de desenvolver-se integrado no universo das realizações. Con-creto designa, pois, tudo que estiver integrado neste nível de crescer e comprometido com o desenvolvimento da realidade. Pois crescer não é apenas aumentar de tamanho nem subir os graus de uma escala e nada mais. Parmênides nos diz em seu Poema Filosófico que uma integração real e um compromisso com a realidade constituem o “coração intrépido da verdade de circularidade perfeita”. Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2003.

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O MEDIEVAL E O SABER DA ABNEGAÇÃO

Márcia Sá Cavalcante Schuback*

Muito se tem publicado nos últimos dez anos sobre a filosofia e a teologia medievais.

Esse interesse responde à vontade intelectual de saber, uma vontade de superar o não-

saber num saber dos dados, das fontes, da letra. Se, no entanto, prestarmos atenção à

atenção que o espírito medieval dedicou ao que o saber não é capaz de saber, haveremos

de admitir que o medieval se distingue pela sabedoria do não-saber. Como nossa ânsia

de saber e superar todo não-saber haveria de compreender a sabedoria medieval do não-

saber? Antes de qualquer tentativa de reunir vários textos medievais sobre esse tema,

antes de ensaiar uma interpretação sobre o célebre texto de Nicolau de Cusa, a Douta

Ignorância, deveríamos nos perguntar sobre o que nós entendemos hoje por saber. Pois

somente desde nossa história concreta é que podemos encontrar ou desencontrar outros

horizontes de experiência. O presente texto reúne apenas algumas anotações

espontâneas sobre a relação entre saber e abnegação.

Nosso saber é historicizante. É um saber em busca da objetividade do que nós mesmos

não somos. Quando queremos saber alguma coisa perguntamo-nos “quando isso

aconteceu?”, “quem fez isso?”, “por que isso aconteceu?” Em todas essas perguntas

simples já se decidiu, de maneira complexa, o que é esse “isso” a que nos referimos. Se

fizermos essas perguntas a respeito de quando esse caráter historiográfico do saber se

firmou como uma marca do saber intelectual, haveríamos de dizer que isso se deu na

virada do século XVII para o XVIII. Diz-se que foi então que o homem europeu deu-se

conta de sua natureza histórica. O que há de característico e próprio nessa tão

conclamada descoberta da história? A chamada descoberta da consciência histórica é a

descoberta da condição moderna da vida da história. A novidade não é tanto um

conteúdo ou sentido da vida e da história mas, sobretudo, o modo em que qualquer

* Södertörns University College, Estocolmo, Suécia

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conteúdo ou sentido da vida e da história poderá ser conquistado em concordância com

o tempo: esse modo é o moderno.

Fala-se demais de moderno, modernismo, pós-moderno, neomoderno, trans-moderno

etc. A diferença entre essas várias correntes ou modismos da crítica reflexiva consiste

na gangorra, que oscila entre a adesão ao antigo e medieval ou a sua repulsa. Sem que

seja necessário atravessar os meandros dessas modas críticas, pode-se guardar como o

decisivo do “moderno” a referência e remissão ressentidas ao passado, em suma, àquilo

que já se foi mas que se deixou de ser. A proclamada descoberta da razão moderna,

dessa “terra firme do pensamento”, numa expressão de Hegel, com Descartes, a

consolidação da consciência racional com o “Esclarecimento” definem-se, desde seus

primórdios, como “êxodo”, como saída, libertação do passado, entendido como

princípio de autoridade. Cabe, aqui, lembrar a célebre definição kantiana do que é

Esclarecimento (Aufklärung): Aufklärung é a saída do homem de sua minoridade, da

qual ele próprio é responsável. O moderno é o que deixou de ser regido pelo passado, o

que se libertou do princípio de autoridade, do parâmetro e paradigma para encontrar o

seu próprio caminho. Esse caminho, porém, que é a sua própria razão, só se deixa

definir relativamente, remissivamente ao antigo. Sendo, inexoravelmente, um conceito

anfibológico, o moderno só se define, definindo, ao mesmo tempo, o que ele não é, o

que ele não é mais, o passado. E, por isso, a Idade Moderna só pode nascer e fundar-se

como Renascimento. Por isso, a forma moderna só pode estabelecer-se mediante

reformas. Por isso, as evoluções modernas se apresentam como revoluções. Nesse “re”,

explicita-se essa duplicidade do moderno: só poder ser o que é na referência ao que não

é mais, na referência ao passado. Isso evidencia, igualmente, o próprio dessa

consciência histórica, que marca a segunda metade da Idade Moderna. Trata-se da

consciência de que a razão, essa que faculta o êxodo do estado de minoridade, também

já foi uma outra, a da autoridade e, por isso, Kant refere-se a minoridade como sendo

responsabilidade do próprio homem, ou seja, a minoridade da razão humana pertence à

própria natureza da razão. Trata-se da consciência de que, já tendo sido outra e diversa,

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a razão também inclui a não-razão ou a desrazão (a descoberta da consciência histórica

é também descoberta do irracional). Trata-se da consciência de que, sendo relativa e não

absoluta, a razão pode ser conquistada, a razão pode esclarecer-se, mediante formação,

mediante educação. Nessa tríplice acepção da consciência histórica, o moderno se

afirma como um “não”, um “não-antigo”, um “não-mais” e, portanto, como uma

separação, uma distinção ou, num termo grego, como uma crise.

O moderno se apresenta como a crise da autoridade. Por crise da autoridade deve-se, no

entanto, entender não a simples crítica dos modelos e parâmetros, mas,

fundamentalmente, a apreensão problemática do que é pertencer. Ser é pertencer no

modo de não aceitar nenhum pertencimento, ou seja, no modo de não aceitar a si

mesmo. A crise da autoridade, pela qual se pode passar da minoridade para a

maioridade, explicita a problematicidade de pertencer a uma tradição, a um mundo, a

problematicidade de se ter um passado. Esse é o drama crítico de Hamlet, o drama do

ter, o drama do pertencer, em que a dramaticidade não reside numa impossibilidade mas

na apreensão de que ter, pertencer não constituem um dado puro e simples, mas uma

exigência de conquista. O passado não é somente uma transmissão mas, sobretudo, uma

missão. Ter passado é ter de conquistar o seu sentido para descobrir o que é próprio.

Por isso, “assim como o estranho, também o próprio precisa ser aprendido” (Hölderlin).

O drama de Hamlet constitui uma das fontes mais ricas para uma discussão acerca da

essência do moderno. O drama tem início com uma aparição. A aparição do fantasma do

rei. O rei está morto, mas não cessa de reaparecer fantasmagoricamente, ou seja, como

morto. O antigo, o passado, a autoridade do paradigma está sempre referida no moderno

mas sempre como o morto, como o fantasma. Ao longo da Idade Moderna, teceram-se

inúmeras determinações do antigo, ou seja, da instância paradigmática para a formação

do próprio. O antigo é o natural, o puro, o inocente, o imediato, o mágico, o terno, o

pueril, o ingênuo, o maravilhoso, o lugar do “pathos”, o mítico. Em todas essas

adjetivações está em jogo uma idéia de natureza, de naturalidade, enquanto o que se faz

em si mesmo por si mesmo, numa radical imediaticidade, mas igualmente de uma

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natureza-morta. O moderno é, por sua vez, essa natureza-morta, o que se perdeu da

natureza, perdeu a naturalidade, sendo o predomínio do artefato, do artifício, do mundo

das mediações, do que não é capaz de fazer-se por si mesmo mas somente por um outro.

Para o moderno, tudo se realiza apenas por mediações, não havendo mais escuta direta

do real – em Hamlet, o rei morreu por envenenamento no ouvido. Nessa distinção de

base entre natureza e artifício, o moderno se apresenta como o que se perdeu da

imediaticidade do real e, com ele, pode apenas lidar numa espécie de “autópsia” da

realidade. As suas aproximações são aquelas de um patologista, que disseca, investiga

os corpos, os objetos, os restos, as relíquias, os órgãos, numa única condição: a de que

esses corpos não se mexam, não estejam em vida. Essa determinação do “passado”

como fantasma do rei morto opera, sem dúvida, uma grande mutação. A mutação da

experiência das passagens, do passar, dos passos, a experiência gerundial do realizar-se

da vida em marcos, dados, fatos da realidade. O fantasma do rei morto exprime uma

mutação no sentido de realidade e existência, que passa a significar as coisas reais, as

coisas existentes, os corpos reais, os corpos existentes e não mais a vida de seu

processo. A mutação é de uma apreensão gerundial da vida para uma apreensão

pretérita. Preterida tornou-se a vida. E em seu lugar edifica-se o artifício. Essa mutação

vai redimensionar profundamente o sentido de todo pertencimento. Nessa apreensão

pretérita da existência, o que significa pertencer a uma tradição? Significa reproduzi-la.

Significa reproduzir a vitalidade do vivo – e, portanto, de tudo o que passa, perpassa,

ultrapassa: num conjunto de dados, num conjunto de corpos, num conjunto de coisas.

Pertencer a uma tradição transmuta-se, assim, em coletânea, em coleção, em

arqueologia e museologia. Pertencer a uma tradição é transmitir os seus dados a fim de

que a tradição não passe. E somente nessa exigência de que a tradição não passe é que

as traições podem se cumprir e impor. Sendo transmissão de dados, pertencer a uma

tradição implica num modo de saber de si mesmo. Saber de si é, aqui, enumeração de

tudo o que já se sabe ter sido para se prever o que se poderia ainda vir a ser. É um saber

retrospectivo e prospectivo, é um saber descritivo e prescritivo. Daí provém a exigência

enciclopedista, especialista, profissionalista do saber. E com esse saber, pretende-se

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conferir à vida aquilo que lhe parece sempre faltar: permanência, eficiência e certeza,

com vistas ao seu uso, ao seu controle. Esse saber transmissivo é, em primeira e última

instância, um saber educador da natureza da vida para uso dos homens. No horizonte

desse saber transmissivo e educador, está sempre em jogo dar, propiciar uma coisa que

ainda não se possui, que ainda não é pertinente. E é nesse sentido que o saber

transmissivo e educador é um saber técnico. É técnico porque pretende conferir à vida

do saber a certeza do sabido. Pretende conferir ao ritmo da criação, a pressa do

resultado. Pretende conferir à força de formação a rigidez das formas. O saber

transmissivo e educador é o saber que em tudo o que sabe não deixa de arrastar um

corpo, o corpo do rei morto. Norteado por esse sentido técnico do pertencer, o moderno

se relaciona com a natureza, com a sua própria natureza, com vistas ao seu uso. Não

obstante a pluralidade de suas determinações, a natureza e o natural sempre se

apresentaram como reduto do encantamento, do incontrolável, do indizível, do

incoercível, do inefável, do estranho. Sendo o mundo moderno, o mundo da educação

da natureza para o uso dos homens, todo estranho precisa ser educado, no sentido de

tornar-se familiar. Todo indizível deve ser pronunciado para que se encontre um modo

de dizê-lo. É o mundo dos grandes descobrimentos, das grandes descobertas, das

grandes traduções, das grandes conversões, das grandes decodificações. O planeta se

ocidentaliza. Mas, para tanta “grandeza”, esse mundo precisa ser o mundo da formação

de regras, de códigos, de paradigmas, de parâmetros, de métodos, de instruções, de

manuais, de catálogos, de memórias. E, em tudo isso, parece que o próprio de cada um,

o próprio de cada indivíduo, de cada povo, de cada cultura, no próprio de sua

estranheza, é passível de formação e educação dentro dos moldes de uma forma única e

absoluta de apropriação da realidade. Aprendizado, aqui, é converter, reduzir uma

variedade a uma norma de comportamento, de saber, de ação. Aprendizado é, pois,

entendido como aplicação de regras e normas com vistas a um resultado – é o próprio

mecanismo do artifício. Seja avaliado como o mais positivo, no Candide de Voltaire, ou

o mais negativo, no Emile de Rousseau, o aprendizado é, para o moderno, a certeza da

eficácia do artifício.

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O saber moderno, o saber transmissor e educador, de caráter universalizante, não pode

não saber. E é justamente aqui que se pode perceber em que medida a definição

moderna do acadêmico como unpractical, not leading to a decision, distingue-se

radicalmente da experiência medieval do que é universitas e da antiga na sua academia,

o akademikos. A academia, o akademikos grego, socrático-platônico, é o que sabe do

não-saber. Saber do não-saber é o próprio da virtude acadêmica, é o próprio da teoria,

esse termo estranhamente perdido, que nos atravessa os séculos como bala perdida, sem

que se saiba de onde vem e para onde vai. A palavra teoria, que em grego deriva-se de

olhar, indica o olhar que sabe do não-saber.

O que é um saber do não-saber? Descrevemos, brevemente, o ideal moderno de saber

como o saber que, em tudo que sabe, arrasta sempre o corpo de um rei morto. Trata-se

de um saber que não consegue enterrar, abandonar, deixar, esquecer nada. É um saber

que pretende intransitoriedade absoluta. É um saber que não admite obscuridade,

incerteza, nenhuma mortalidade. Por isso, a sua temporalidade é o acerto ininterrupto de

contas com tudo o que passa. Esse ideal de saber funda-se na exclusão obstinada de toda

abnegação. Por abnegação, devemos entender não uma simples aceitação passiva das

coisas, uma alienação ou submissão característica, por exemplo, de nossa sociedade

massificada. A abnegação exprime uma negação, um caminho do não, que, no entanto,

não é o mesmo de uma negação ou mesmo de uma denegação. A língua latina mostra

aqui uma riqueza, pois na distinção entre negatio, denegatio e abnegatio algo de

essencial se evidencia relativamente ao “não”. O não da negação, da recusa, da surdez,

distingue-se do não denegador de uma falta temporária, de uma expectativa, de uma

saudade, por exemplo, pois aí o não é somente relativo, é o não que se pronuncia a partir

do sim e cuja negatividade pode ser superada quando a expectativa se cumpre, quando

se “mata” a saudade. O não da abnegação é, porém, o não que só é positivo, doador

enquanto não. É o não que não busca ser superado, resolvido, eliminado, mas, única e

somente, preservado: é o não da condição de possibilidade, é o não vital, o não

incoercível da vida, esse que possibilita que a vida nunca deixe de seguir vivendo. O

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que seria, então, o saber do não-saber? Seria um saber abnegado, um saber da

abnegação. Aquele que preserva, cultiva, e lavra em toda palavra, em todo conhecido,

em tudo o que se sabe, a condição de possibilidade, a condição vital do saber. E qual é

essa condição? É não-saber, é o espanto, a admiração de que todo saber é não apenas

limitado, mas é sempre um saber do limite e, portanto, um saber de que não se é o

único, um saber de que há sempre um “outro”. É o saber de que a de-limitação não se

constitui a partir de um artefato do pensamento, das idéias mas na experiência de que a

vitalidade da vida é delimitadora e, portanto, a apresentação de limites enquanto doação

do outro, doação da inesgotável estranheza do próprio. O saber abnegado do não-saber

mostra-se, nesses termos, como a visão de que nada é mais estranho do que o próprio.

Na tradição cristã, encontram-se os célebres escritos apócrifos dos Padres do Deserto.

Um desses livros narra os ensinamentos do mestre espiritual Poemen. Conta-se que um

discípulo o interrogou sobre como se deve estar e viver, no lugar em que já se habita.

Mestre Poemen respondeu: “No lugar em que habitas, tenha sempre a mentalidade de

um estranho a fim de não buscares exibir a tua palavra e, assim, encontrarás a paz”. Ter

sempre a mentalidade de um estranho no lugar em que já sempre habitamos é o modo da

abnegação, o modo de saber do não-saber. A ausculta do próprio, do familiar, do lugar

é a sua estranheza. Todo saber é um já-saber. A primeira palavra pronunciada por uma

criança já sempre se pronuncia numa língua, nossos atos já se cumprem num mundo,

nossos sonhos já sempre se constroem a partir de nossas próprias circunstâncias. Já

sempre estamos no mundo. Guimarães Rosa dizia ao nascer de uma criança: que alegria,

eis que o mundo começa outra vez. Sempre estamos inseridos em hábitos, em palavras,

em atos que nos pertencem justamente porque nos transcendem, ou seja, porque

pertencem a outros homens. Mas é somente no instante em que estranhamos o hábito,

que estranhamos a palavra, somente quando estranhamos o ato é que nos descobrimos

num exercício do saber. É o estranhamento de que já somos quando começamos a ser.

Já sempre somos-no-mundo. O estranhamento do já ser, do já saber antes de qualquer

consciência implica uma “arte” – vou usar o termo arte sobretudo no sentido de uma

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arte marcial, implica uma luta – nada é mais difícil do que a abnegação –, uma luta e

formação que os místicos medievais descreveram como um desenformar-se,

transformar-se, formar-se. A primeira luta – primeira não porque se faz uma só vez mas

porque é aquela sem a qual as demais não conseguem se fazer – é a de um abandono,

um arrancar-se das formas, dos preconceitos, das idéias fixas, das evidências. É o

abandono que se cumpre num tempo de relâmpago, numa espécie de arrebatamento, que

Platão denominou de taumatso, de admiração, de desencantamento – (como falamos de

sapo desencantado!). É ver o que sempre já se viu numa primeira vez. É ver o cachorro

em que sempre fazemos festa, é ver o caminho onde sempre andamos, é ver a casa em

que sempre habitamos. Esse abandono não é, porém, uma simples obra de inspiração. É

também e sobretudo obra da transpiração. Pois essa visão-relâmpago – essência mesma

da teoria – só pode acontecer ao longo de um trabalho de desconstrução. Desconstruir

não é destruir. É desfazer as construções, os monumentos, as edificações das idéias, dos

hábitos de pensamento, sondando-lhes de onde eles puderam se constituir. Esse estranho

trabalho de arquiteto, de desconstruir para habitar um aberto é o que caracteriza a tarefa

filosófica. O filósofo é sempre um desabituado, o que se comporta como estranho no

lugar em que habita. Sendo, porém, a sua desconstrução um estranhamento, um

estranhamento para habitar o aberto, o campo da possibilidade das infinitas construções

humanas, o filósofo não busca propriamente construir um novo edifício. Ele busca

seguir os caminhos das formações e é esse acompanhamento que dimensiona o sentido

transformador da filosofia. Pois trans-formar é, antes de mais nada, ultrapassar as

formas, é seguir a dinâmica de formação. Esse acompanhamento dimensiona o modo da

abnegação filosófica – pois o aceitar, acompanhar, seguir não é um assentamento cego

mas sim um caminhar a dois, um caminhar dialógico, para usarmos um termo de Martin

Buber, caminhar com o estranho de si mesmo. Assim, a transformação é uma formação

para além de si, uma formação que ultrapassa a si mesmo no sentido de um outro. Mas

de um outro que preserve a possibilidade de uma nova formação. Trata-se de um sim

que ao se afirmar preserve e afirme o não vital, o não que condiciona a vitalidade da

vida. E aqui o saber do não-saber evidencia-se como um saber da vida.

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Foi numa carta a Casimir von Böhlendorff, datada de 4 de dezembro de 1801, que o

poeta alemão Friedrich Hölderlin afirmou que “assim como o estranho, também o

próprio é algo que precisa ser aprendido”. Ele se refere ao aprendizado da abnegação.

No aprendizado da abnegação, o paradigma, o parâmetro não é o que se deve seguir e

nem o que se deve recusar. O paradigma é o que se deve desconstruir, no sentido de

fazer aparecer o aberto das formações. No aprendizado da abnegação não são os

conteúdos, os ditos, os fatos que nos formam. Somente a vida é que nos pode formar. O

que se aprende com o passado é o próprio aprender. É aprender a apreender a vitalidade

da vida em todas as formas, em todos os limites, em todas as configurações e modos. O

que se aprende é, em outros termos, corresponder à vitalidade da vida – à estranha lei de

tudo perpassar e nada ser – em tudo o que se faz. É o aprendizado de de-limitar, de-finir,

de construir limites, de dar nomes, de compreender, correspondendo à vitalidade da

vida, ou seja, sempre preservando a falta, a ausência, o não vital, o que possibilita que a

vida siga vivendo.

Isso tudo pode parecer um monte de palavras vazias. Pode mesmo parecer um monte de

belas palavras. Mas como esse saber do não-saber, esse aprendizado da abnegação

poderia se realizar concretamente, poderia se aplicar por exemplo no estudo do

pensamento medieval? Essa pergunta é, sem dúvida, uma pergunta bem moderna. Ela

tem inclusive uma tradição moderna. Desde que o moderno se descobre nessa relação de

pertencimento ao que ele já foi mas deixou de ser, ele descobre o seu saber como um

saber em formação. Rousseau ancorou seu pensamento numa idéia de perfectibilidade

do ser-humano; Lessing escreveu uma educação da espécie humana, à qual se seguiu

um escrito de Herder sobre a educação da humanidade; Schiller escreveu as cartas para

a educação estética da humanidade; o romantismo alemão chegou a inaugurar um

gênero literário, denominado “romance de formação”, como os Anos de aprendizagem

“Wilhelm Meister” de Goethe, o Hipérion de Hölderlin etc., Humboldt dedicou-se a

discutir a possibilidade de uma universidade mais humana e menos especializada etc.

Todos esses escritos concentram-se na questão filosófica da formação e todos debatem,

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debatem-se na relação de vida e formação, formação e destino. O que cada um desses

exemplos de esforço nos demonstra é que, enquanto base ontológica, o aprendizado

jamais pode pretender dar o que não se possui. Isso é o que cada um desses autores,

cada um desses livros descobre em meio à consolidação do ideal técnico e especializado

do saber. Pois em cada um desses romances de formação, o aprendizado é entendido

como a doação do que já se possui. Nenhum desses tratados e romances refere-se a uma

didática. A pergunta de como essa lei vital do aprendizado pode tornar-se uma didática

é a mesma de como ao ouvir o passar do tempo ensinar o papagaio do rei a recitar de

cor a Odisséia.

A experiência medieval de um saber do não-saber constitui para nós, modernos, a maior

de todas as estranhezas. Para o medieval, saber é um aprendizado da abnegação.

Aprendizado da abnegação funda-se numa modificação. Todavia numa modificação

específica: modificação do que já se possui e não modificação para uma outra coisa.

Trata-se mais de um desenformar-se do que de um transformar-se em outra coisa.

Trata-se de uma atitude de problematização, isto é, de colocar-se diante das coisas,

frontalmente, num corpo-a-corpo com as coisas. Essa é a atitude teórica: desenformar-

se, no sentido de seguir e acompanhar os caminhos de formação da realidade. Para tanto

é preciso antes de mais nada de uma abertura de conhecimento. Essa abertura de

conhecimento, no sentido em que falamos de abertura de caminho, não se dá por

nenhuma via transmissiva, erudita, enciclopédica. Ela pode apenas se dar numa

concentração, num concentrar-se na situação em que nos encontrarmos. É um saber que

é assim. É o saber do ser-assim. A abertura de conhecimento é, na verdade, um

aprendizado do reconhecimento. Pensemos no encontro de duas pessoas que se

compreendem com profundidade – o sentimento de que esse encontro é apenas um

reconhecimento do que já se possui. Pense na alegria de ler um autor que parece estar

pronunciando o que já se percebe por si mesmo. Nesse sentido, esse autor, mesmo que

tendo vivido há milênios, é nosso contemporâneo. É um aprendizado da nossa própria

veracidade.

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O saber do não-saber é o saber que não consegue desgarrar-se do fundo existencial e

vivencial do saber e do não-saber. Mas dentro da dinâmica própria da abnegação, isto é,

de desprender-se para prender-se e preservar a condição da vitalidade, toda experiência

natural da vida está sempre enredada num outro sentido, num sentido profundo da

alteridade. Essa intuição originária do outro – vitalidade da vida – possibilita o segundo

momento da via aprendiz. Segundo aqui não deve, porém, ser entendido como

conseqüência do primeiro momento – da tomada de conhecimento – mas sim como a

sua potenciação. A imagem dos momentos da aprendizagem deve ser a da pedrinha

lançada num lago e da formação de seus círculos. O segundo momento é que

poderíamos chamar de disposição de conhecimento. Disposição aqui não é sinônimo

de voluntarismo e nem de ambição. Mas a força da admiração que exige que se

abandone a própria situação, que se apague esse “eu” do conhecimento, no sentido da

totalidade em retração, e se procure um modo de relacionar-se com aquilo de que se

descolou. A disposição de conhecimento é a própria força de um diálogo com o que se

é, com tudo aquilo que já sempre travamos. Sendo o diálogo o lugar e o modo em que o

“eu” do conhecimento pode se apagar, já que para dialogar é preciso fundamentalmente

ouvir, acolher, receber, ser hospitaleiro com o que já possuímos, o diálogo é uma

habitação desse a dois que se descobre numa abertura de conhecimento. Uma habitação

que não precisa de grandes construções mas de cultivo de seu campo entreaberto. O

diálogo não se constrói aqui segundo as regras de uma língua, nem segundo um tipo de

discurso ou de um código lingüístico. Constrói-se, sim, na escuta de como é possível

surgir uma palavra que corresponda às leis de uma formação vital. A disposição de

conhecimento é entrega à radical liberdade da formação vital. Por isso não pode

prender-se às ciências específicas, não pode permanecer ciência explicativa. Nesse

momento do desenformar-se, distinguem-se, com nitidez, as ciências puramente

explicativas das ciências compreensivas. Ciência compreensiva é, pois, a ciência que

apreende conjuntamente o que não se deixa apreender, fisgar, prender num saber, num

conteúdo, numa ciência. É a que co-apreende o limite de toda compreensão. Nessa co-

apreensão, funda-se a visão do caminho, que é visão dinâmica, visão que caminha ao

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apreender o caminho. Essa visão caminhante é a visão investigadora, a que adentra a

dinâmica dos vestígios, essa que só pode seguir caminhos porque se constitui na

serenidade. A serenidade de deixar o caminho ser o mestre. E aqui podemos vislumbrar

um terceiro momento, um terceiro círculo de repercussão dessa atitude abnegada do

saber do não-saber, que chamaremos de serenidade do conhecimento.

Esse aprendizado da abnegação como abertura de conhecimento, disposição de

conhecimento e serenidade de conhecimento nos fala de um aprendizado que, na

tradição ocidental, recebeu o nome de filosofia. A filosofia não diz aqui ainda a

disciplina filosófica mas um amor da sabedoria ou talvez e sobretudo a sabedoria do

amor. Sabedoria do amor é sabedoria do relacionamento que se constrói em

correspondência ao aberto de sua possibilidade. Por isso, ela é condição de todo e

qualquer relacionamento de conhecimento. Mas o que significa dizer que a filosofia é a

condição de possibilidade de todo e qualquer conhecimento? Significaria dizer que a

disciplina filosófica deve ser ensinada antes das demais ciências? Significa dizer que

toda ciência deve guardar um espaço para discutir as idéias filosóficas que a elas

chegam a tangenciar? Ou será que nesses entendimentos não se estaria justamente

abandonando o sentido radical da filosofia? Pois nesses círculos concêntricos do saber

do não-saber – que denominamos de abertura de conhecimento, disposição de

conhecimento e serenidade de conhecimento – o que está em jogo é o dimensionamento

de uma atitude: a atitude filosófica e não de qualquer conteúdo, idéia, conceito

filosófico ou científico. O nosso hábito moderno de arrastar para todo lugar que vamos

o corpo do rei morto e todos os corpos já mortos, nosso hábito “antiquarista”, como

dizia Nietzsche, costuma confundir a atitude filosófica com o acerco das idéias

filosóficas, legadas na tradição. Confundimos atitude filosófica com método, com

discernimento, com clareza de exposição. E, nessa confusão, esquecemos de nos

perguntar como é possível que se pronuncie uma palavra de pensamento, como é

possível enunciar-se na verdade um aforismo. Achamos que as palavras exprimem

idéias e que, portanto, as palavras e suas conjugações possíveis devem-se às leis do

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código lingüístico e que só exteriormente articulam-se com uma idéia. Mas nessa

confusão deixamos de perguntar como se pode constituir um código lingüístico, como

cada língua encontra seu destino, como cada indivíduo chega a pronunciar essa e não

aquela palavra. É que a palavra não exprime idéias. A palavra nasce, surge de um

relacionamento com a existência. A força criadora da palavra é obra, portanto, do

relacionamento, da atitude, enfim, da experiência. Sem o empenho e o trabalho de

conquista da atitude filosófica, nenhuma palavra filosófica pode se pronunciar com

veracidade, pode constituir testemunho da verdade, obra da liberdade.

Como realizar a atitude filosófica? A atitude filosófica diz da possibilidade humana de

“agir” com a realidade, isto é, de agir segundo a disposição do cuidado. Agir

filosoficamente nada mais é do que cuidar. No e pelo cuidado, a tomada de

conhecimento – enquanto saber do ser-assim para desprender-se desse assim, para

liberar-se do já dado, do já fato etc. – significa a necessidade de se construírem

cuidadosamente as questões. Nenhuma questão cuidadosa é somente um grito de

espanto – Como isso aconteceu? A questão cuidadosa é aquela que precisa ser curada,

curtida, trabalhada mediante a atenção cuidadosa do sentido de existência. A questão

cuidadosa é um posicionar-se, implicando uma delicada arte de apreender o espaço e o

tempo – a estranha arte de buscar um lugar, implicando uma geomancia e uma

cronomancia. No momento em que a questão cuidadosa pode enunciar-se, ela mesma

realiza a abertura de conhecimento como diálogo, como confrontação, interpretação –

ou seja, como a arte de construir uma pequena morada e cultivar o seu campo nesse

lugar, encontrado nesse tempo. Nesse confronto da interpretação descobre-se, porém,

que toda morada é construída para que se possa prosseguir a busca cuidadosa da vida –

e que, portanto, não se pode trabalhar nem para o monumento, nem para a fortaleza –

não há morada indemolível. Há que se permitir nessa morada as portas para partidas, as

portas que afirmam a distância e o limite desse abrigo, distância e limite sempre abertos

na morada para que se possa continuar a busca e aprofundar o cuidado. É nesse trabalho

incansável de buscar um lugar para dele partir e prosseguir a vida da busca que o

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conhecimento chega a pronunciar as suas palavras. Palavras que nascem e surgem como

flores. Flores da serenidade do conhecimento, do saber-se sempre a caminho. Nessa

lavra que se torna palavra encontra-se a obra da abnegação e do despojamento, essa que

para o nosso mundo moderno é sempre e cada vez mais o maior de todos os arcaísmos.

Tudo o que tentamos descrever aqui, de modo geral, não passa de uma tentativa de

apreender o que é um saber abnegado, um saber despojado da pretensão de já saber o

que é saber e da pretensão de se poder saber tudo. A questão filosófica do saber é o

saber capaz de ouvir a positividade do não da vida como radical doação.

Esse saber é um saber contente. Contente por descobrir-se suficientemente pobre para

precisar de um outro. Contente por seu descontentamento. Pois sem esse contentar-se

com seu descontentamento homem algum teria sido capaz de pronunciar uma palavra de

admiração.

É que, para o saber da abnegação, já é muito para o próprio coração a simples

existência de um outro. Nesse saber, conquistado como atitude filosófica radical só, se

ambiciona um ensinamento, este que o mestre espiritual Poemen formulou como um

imperativo: ele disse: “ensina a tua boca a dizer conforme o próprio coração”.

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SÃO FRANCISCO DE ASSIS E OS ESTUDOS, UMA QUESTÃO

Fr. Hermógenes Harada*

INTRODUÇÃO

O tema da reflexão diz: “São Francisco de Assis e os estudos, uma questão”. O tema

insinua que o relacionamento de São Francisco com os estudos, aqui para nós,

acadêmicos, não é pacífico. Há ali problemas. E de imediato nos vem à memória a

observação de Francisco na Regra Bulada, X a irmãos iletrados: “...os que não têm

estudos, não os procurem adquirir”1.

Geralmente os termos questão e problema são usados como sinônimos ou quase

sinônimos ambiguamente. Na nossa reflexão distinguimos problema, da questão.

Problema é o que suscita dificuldades, dúvidas e perguntas a partir e dentro de uma

posição já estabelecida. Questão se refere à busca do sentido disso, a partir e dentro do

qual se acha a posição estabelecida. O problema dos estudos em São Francisco foi e é

um problema implicante que deve se tornar uma questão para nós, por sermos

franciscanos. A ambigüidade do fundador da Ordem franciscana a respeito dos estudos

sempre nos incomodou e nos incomoda, cada vez de novo sempre mais, pois parece

incidir decididamente na compreensão do que seja propriamente o carisma franciscano

da pobreza. Assim, o tema nos orienta a falar sobre o que São Francisco de Assis

pensava sobre os estudos. E, ao mesmo tempo, nos sugere que falemos sobre o que São

Francisco pensava dos estudos, a partir da implicância de questão. Da questão como

busca do sentido do ser que pulsa como tônus vital da radicalidade da experiência de

São Francisco. Da experiência de tudo que ele pensava, sentia, dizia e fazia, conhecida

e, ao mesmo tempo, esquecida por nós sob a denominação de pobreza franciscana. A

suposta ambigüidade e reticência na fala de São Francisco sobre os estudos acadêmicos

parecem estar intimamente ligadas ao sentido do ser constitutivo dessa radicalidade.

Portanto, no início da Ordem, com São Francisco e seus primeiros companheiros, e a

seguir na evolução da Ordem franciscana, no seu primeiro século, os estudos

* NEF (Núcleo de Estudos Franciscanos)

1 Regra Bulada, X. Para o nosso uso, os textos citados das fontes franciscanas foram tirados do livro São Francisco de Assis. Escritos e biografias de São Francisco de Assis, Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1981.

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apareceram como problema. Mas trata-se de um problema que se deve tornar, para nós,

uma questão: questão dos estudos, hoje. Mas em que sentido questão dos estudos, hoje?

Um problema do passado somente nos atinge e se nos torna histórico se nos convoca

hoje a colocarmos em questão o evento que se fossilizou como realidade óbvia de um

fato historiográfico. Colocar em questão um problema na sua factualidade significa

avivar o palpitar da inquietação de um questionamento fundamental. Pois, um

questionamento pulsa sempre na raiz de um problema, o qual como problema já

estabelecido não mais investiga nem sonda o móvel da situação, em que se achava

colocado, quando se consolidou como fato. A ação de in-vestigar o móvel de fundo,

onde se assenta um fato, se chama questão.

Para colocar em questão o problema dos estudos em São Francisco e transformar

problema do passado em questão hoje, formulemos o nosso problema como o costuma

expor e explicar a maioria dos historiadores, peritos no franciscanismo. Mas antes, para

que essa formulação usual do problema não fique no ar, como que isolada e abstrata no

seu conteúdo, mencionemos, ainda que de modo bem geral e panorâmico, alguns fatos

que constituem as etapas da evolução do problema dos estudos na Ordem franciscana e

resumamos o que Gratien de Paris2 diz da organização dos estudos no início da Ordem.

I - O PROBLEMA DOS ESTUDOS E SUA FORMULAÇÃO USUAL

1 Um apanhado geral historiográfico

O período que abrange a origem e o primeiro século do franciscanismo vai de 1209 até

1318. Esse longo período pode ser considerado em 2 etapas: a primeira vai de 1209 a

1219 e a segunda de 1219 a 1318. Na primeira, trata-se da origem da Ordem, onde os

2 No capítulo IV, 3 de Gratien de Paris (1982, p. 125-135) há uma ampla bibliografia acerca do surgimento dos estudos na ordem franciscana e sua implicação com os estudos universitários. Um bom apanhado das diferentes publicações sobre o tema através da História da ordem franciscana se encontra p. ex. em Maranesi (2002). A obra de Gratien de Paris é de 1926. É juntamente com a obra de FELDER, H., Geschichte der wissenschaftlichen Studien in Franziskanerorden bis um die Mitte des 13. Jahrhunderts, Freiburg i. Br.: Herder, 1904, um trabalho clássico acerca do nosso tema. Cf. também: BRLEK, M. De evolutione iuridica studiorum in Ordine Minorum. Ab initio Ordinis usque ad an. 1517, Dubrovnik, 1942; DI FONZO, Lorenzo. Apostolato intellettuale, componente essenziale del carisma francescano-conventuale, in: Misc. Franc. 94 (1994), p.525-609; BERG, Dieter. Armut und Wissenschaft: Beiträge zur Geschichte des Studienwesens der Bettelorden im 13. Jahrhundert. Düsseldorf: 1976 (Geschichte und Gessellschaft, 15); Atti del convegno di studi del 1978, Le scuole degli Ordini mendicanti (Secoli XIII-

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estudos não aparecem ainda como estudos organizados e não se constituem ainda como

problema. Na segunda dá-se a evolução da Ordem, onde os estudos se manifestam

explicitamente como problema e se consolidam como problema, congelados numa

determinada impostação do problema.

Na primeira etapa, de 1209 a 1219 temos os seguintes fatos: Depois da conversão de

Francisco, os primeiros companheiros se agrupam ao redor de Francisco. Surge a idéia

de uma ordem. Constatamos em Francisco um plano, seus meios de ação e princípios

que segue. As características principais da instituição franciscana se tornam visíveis e

com isso também idéias e ideais de Francisco sobre pregação, estudos e ciência. Surge a

Primeira Regra (1209), hoje perdida; inicia-se o processo de formulação das regras mais

elaboradas, que nos deu a Regra não Bulada (1221) e a Regra Bulada, a definitiva

(1223).

Na segunda etapa, de 1219 a 1318 podemos distinguir 3 momentos: primeiro momento,

de 1219 a 1257. É tempo da consolidação da Ordem, aprovada pelo Papa, oralmente: a

Primeira Regra, a elaboração da Regra Não Bulada, da Regra Bulada, do Testamento, a

morte de São Francisco (1226) e a sucessão dos primeiros ministros gerais da Ordem

(João Parente 1227-1232; Frei Elias, 1232-1239; Aymon de Faversham 1240-1244;

Crescêncio de Jesi, 1244-1247; João de Parma, 1247-1257). O segundo, de 1257 a

1274. É o tempo do generalato de São Boaventura. O terceiro, de 1274 a 1318. É o

tempo de luta ao redor da questão da pobreza.

Nessa segunda etapa temos os seguintes fatos: a clericalização da Ordem; a introdução

dos estudos institucionalizados e a sua organização na Ordem; surgimento das casas

de estudos em Bolonha, Paris e Oxford; a atuação dos frades na universidade de

Bolonha, Paris e Oxford; a luta dos mendicantes pelo direito de ensinar nas cátedras

da universidade de Paris; o generalato de São Boaventura, sua postura acerca dos

estudos e da ciência; o surgimento e a exacerbação da controvérsia sobre a pobreza.

2 A organização dos estudos

XIV), Todi, 11-14 ottobre 1976, Todi: Centro di Studi sulla spiritualità medievale, XVII; ROEST, B. A History of Franciscan Education (c. 1210-1517), Leiden: 2000.

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Segundo Gratien de Paris (1982, p.125-135), há inúmeros indícios que mostram como

os estudos foram introduzidos na Ordem, provavelmente já no tempo em que São

Francisco ainda vivia. E rapidamente se espalharam por todas as províncias da Ordem,

logo depois da morte de São Francisco. Jordão de Jano nos relata que em 1228 “o

ministro geral João Parente, ao perceber que a província da Alemanha não possuía

professor em teologia, tirou do cargo de provincial a frei Simão e o nomeou professor”.

Essa observação nos faz suspeitar que nas outras províncias também havia o cultivo da

ciência sacra. O Papa Gregório IX na sua bula Quo elongati (1230) dispensa do exame e

da aprovação do ministro geral os frades instruídos na teologia. E Jordão de Jano

menciona entre os objetos dos quais os frades podiam ter uso, de modo especial, os

livros. Os apelos dos pontífices à caridade pública em favor dos frades se referem

sempre à ajuda para construções e aquisição de livros. Assim, Gratien de Paris deduz

que desde 1230 o estudo da Sagrada Escritura, i. é, da teologia, estava implantado na

Ordem Franciscana e que o número dos clérigos aumentava de dia para dia. Uma tal

afluência de pessoas sábias e estudadas fomentou no interior da Ordem uma corrida ao

estudo. E, como observa Gratien de Paris, o estudo era uma necessidade inevitável. Os

frades não podiam cumprir com seus deveres e suas missões pastorais sem ele. É que

havia em toda parte, em cada esquina, em cada praça pública, os heréticos, armados até

aos dentes com argumentos falaciosos, sutis e capciosos. Não havia a possibilidade de

evitar o confronto e a controvérsia. Os irmãos sentiam nitidamente que não os podiam

enfrentar sem possuir um sério e profundo conhecimento das Sagradas Escrituras.

Gregório IX, renovando os cânones dos concílios antigos proibira a pregação aos irmãos

leigos, sejam eles de que Ordem forem (1235). Por outro lado, os sacerdotes estavam

mal preparados para sua missão. O Papa sentiu o grande perigo que a Igreja corria

devido à decadência dos estudos eclesiásticos. Na tentativa de levantar o nível espiritual

e intelectual do clero, os papas começaram a recorrer às ordens mendicantes: aos

dominicanos e franciscanos. Os dominicanos, desde o início, já pela natureza de sua

fundação, se dedicavam aos estudos e estavam aptos para o desempenho de pregação e

confronto com herejes. Os papas e alguns bispos, vendo a disposição da nova Ordem de

São Francisco para o serviço à Igreja, começaram a incentivá-la aos estudos, e isso tanto

mais, ao verem como uma grande multidão de pessoas instruídas, estudadas e muitos

universitários tomavam o hábito da pobreza franciscana. Assim, as vozes amigas de um

Jacques de Vitry, de Roberto Grossetête, chanCer da universidade de Oxford, de

Guilherme d’Auvergne, bispo de Paris, de Eudes de Châteauroux, chanCer da

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universidade de Paris, encorajavam os filhos de São Francisco a seguirem o exemplo

dos filhos de São Domingos. Logo começaram a surgir, entre os próprios frades,

pessoas que confirmavam no seu ser e nas suas obras a eficácia e a fecundidade da

aliança entre o ideal franciscano e o cultivo dos estudos, como p. ex., César de Spira,

João de Plan Carpin na Alemanha, Gregório de Nápolis e Aymon de Faversham em

Paris, Santo Antônio de Pádoa na Lombardia e na França. Bem em breve se estabeleceu

entre dominicanos e franciscanos, no âmbito e no nível das ciências, uma rivalidade

fecunda e amiga, cujo exemplo temos na amizade que unia Santo Tomás de Aquino e

São Boaventura na busca da verdade. Em 1231 os frades já possuíam 3 grandes centros

de estudos: Bolonha, Paris e Oxford.

3 A formulação usual do problema dos estudos

A exposição desses dados historiográficos, colocados como fatos que constituem o

problema dos estudos, poderia ser bem mais completa em número de fatos e nos seus

detalhes informativos. Uma vez colocados como constituintes do problema de estudos,

há diferenças de interpretações e valorização dos fatos, em diferentes autores

franciscanólogos, conforme as perspectivas de impostações que lançam sobre os dados.

No entanto, no seu todo, na colocação do problema enquanto problema dos estudos na

Ordem, há, na maioria dos autores, uma e mesma impostação, um e mesmo enfoque.

Essa colocação comum e unânime pode ser formulada mais ou menos da seguinte

maneira:

Os estudos estão intimamente ligados à evolução e ao crescimento da Ordem, à sua

clericalização, à intelectualização dos seus membros, devido ao apelo e às exigências da

Igreja, por causa da evangelização. No problema dos estudos assim colocado, trata-se

mais da diferença existente entre São Francisco e o pequeno grupo de seus seguidores

do início com o seu modo pessoal de compreender e viver o Seguimento (Evangelho),

na experiência radical da pobreza na identificação com o Cristo Crucificado, de um

lado e, de outro lado, o modo de ser da Ordem, que como comunidade em crescimento

rápido e contínuo, não mais podia viver enquanto comunidade o radicalismo ideal,

ainda possível num grupo bem menor, tendo o apoio da presença física do fundador. E

ao mesmo tempo, na medida do seu crescimento, a Ordem estava dentro da necessidade

do desenvolvimento histórico, sob a convocação feita pela própria Igreja de se dispor e

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se adaptar às necessidades epocais da Igreja e do mundo, no que se refere à

Evangelização.

4 As idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência

O problema dos estudos assim colocado na formulação acima como problema de

transição entre o modo de ser da experiência pessoal e privativa do indivíduo Francisco

e de seus primeiros companheiros e o modo de ser, nascido da necessidade de evolução

e adaptação da coletividade da Ordem em franco crescimento, precisa ser des-

estabilizado, para que nela surja a possibilidade de interrogações que nos façam

perceber na sua raiz uma questão. Para que isso se torne viável, vamos expor mais em

detalhes o que São Francisco na origem do franciscanismo pensou a partir e através da

sua experiência pessoal e privativa dos estudos e da ciência3.

Certamente, essa descrição atinge apenas um momento ainda bem inicial do problema

na origem do franciscanismo. Seria ideal, se pudéssemos também demorar-nos na

descrição de cada etapa do outro momento do fato, a saber, da evolução e adaptação da

Ordem na sucessão do processo da sua clericalização e institucionalização no primeiro

século do franciscanismo. Mas nessa nossa reflexão nos limitamos apenas a examinar

com mais detalhes as idéias de S. Francisco sobre estudos e ciência. Se por essa

descrição apenas de um momento do fato-problema pudermos desfazer de algum modo

esse momento, talvez estejamos possibilitando também a mobilização de todo o resto, a

ponto de podermos começar a colocar interrogações que acordem o interesse da questão

para o primeiro século do franciscanismo. Para essa descrição mais detalhada,

reproduzimos num resumo o parágrafo 3 do Capítulo III da obra já citada de Gratien de

Paris, onde se fala de Idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência

(GRATIEN DE PARIS, 1982, p.81-90).

a) Pregação

3 A respeito da opinião de São Francisco sobre os estudos, se fala de le oscillazioni interpretative (MARANESI, 2002, p.42). As oscilações das interpretações se dão entre a posição que atribui a Francisco uma total rejeição (Sabatier), uma aceitação resignada (Gratien de Paris) e a permissão ou até a recomendação positiva dos estudos (Felder).

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São Francisco tinha grande estima pelas Sagradas Escrituras e sua pregação (2C

103, 104, 105). Segundo Celano, dizia que: “os pregadores eram dignos de respeito e

veneração por serem arautos das ordens que recebem da boca de um grande rei, para

anunciá-las ao povo” (2C 163). Depois da aprovação da Ordem pelo Papa Inocêncio III,

a pregação era um ofício reservado a religiosos especialmente designados para isso. No

cumprimento do ministério da pregação Francisco pedia com insistência que os irmãos

guardassem com muito cuidado e fidelidade os seguintes dois pontos: o primeiro, que

em nenhum caso o apostolado da palavra diminuísse ou substituísse o apostolado do

exemplo; e que jamais ferisse as duas grandes principais diretrizes da ação franciscana, a

saber, submissão à Igreja de Roma e fidelidade à vida de oração (RNB 17). A

pregação, não menos do que o trabalho corporal e o cuidado dos leprosos, não é um fim

em si, nem tem importância em e por si, mas é caminho que conduz os irmãos a dar

antes de tudo o exemplo cristão. A Ordem que Francisco quer instituir é antes mais uma

Ordem de imitadores de Cristo do que uma Ordem de pregadores. Por isso, Francisco

insiste que o pregador franciscano medite profundamente o que deve ensinar aos outros

e que para isso esteja livre de todo outro encargo para poder doar-se inteiramente aos

estudos espirituais (2C 163); e coloca o apostolado do exemplo no centro de toda a ação;

e quer que o irmão menor, de tempo em tempo, se engaje no humilde trabalho corporal

e no serviço dos doentes e leprosos e na mendicância (2C 74ss; LP 71). O segundo

ponto a ser observado no ministério da pregação pelos irmãos é de que jamais se

abandone o gênero simples e popular da pregação penitencial. Segundo Gratien de

Paris, se nos ativermos com precisão à intenção de Francisco, não deveria propriamente

haver na Ordem dois tipos de pregação, digamos, um, comum a todos os religiosos, p.

ex., exortação piedosa; e um outro, o da pregação eclesiástica propriamente dita,

reservado para os clérigos. Mesmo os mais eruditos e sábios deveriam a modo dos

irmãos não-clérigos se ater ao “terreno moral”4. Essa atitude de São Francisco em

referência à pregação nos faz entrever o que ele pensava a respeito dos estudos e da

ciência.

b) Estima de São Francisco pela ciência

4 RNB 16; RB nos mostra bem o que foi dito. Nem todos respeitam essa intenção de Francisco; daí é interessante observar bem o que RNB 17 diz a respeito da vã gloria; cf. 2C 164; LP 71.

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Francisco se denomina e se qualifica como simplex et idiota. Simples e idiota soa hoje

como simplório e ignorante, diríamos gente ingênua, sem maneiras, sem formação nem

instrução. E logo associamos a tudo isso a conotação de grosseiro, inculto, estulto,

selvagem. São Francisco parece colaborar para esse modo de o interpretar, quando se

chama de vil. Vil é quem mora na vila, i. é, no sítio; nós diríamos caipira, caboclo.

Francisco, porém, é tudo menos grosseiro, vilão e selvagem. Ele é de fino tato e trato,

na sensibilidade fora do comum, de uma percepção e penetração extraordinária,

altamente inteligente, com força de criatividade fora de série. E não era nem ignorante,

nem analfabeto. Sabia ler e escrever. Não possuía uma formação acadêmica, não

freqüentou cursos teológicos. Mas segundo Gratien de Paris, no que toca às “coisas” de

Deus, recebera pela leitura atenta e pela meditação das Sagradas Escrituras aquela

sabedoria que “vem do alto” (1982, p.83)5. Numa alma tão nobre e inteligente não há

lugar para o desprezo e medo que vem do ressentimento e complexo diante da ciência e

da superioridade do saber verdadeiro. Assim, tratava com grande respeito, natural e

tranqüilamente as produções do espírito humano, as quais ele acolhia com veneração,

veneração esta que mais tarde viriam a demonstrar os humanistas cristãos para com os

escritos pagãos (1C 81, 82, 83). No entanto, Francisco considerava os estudos e a

ciência sob dois aspectos distintos: Primeiro, em referência a sua função dentro da

Igreja; segundo, em referência a sua função dentro da Ordem. Em referência a função da

ciência dentro da Igreja Francisco reconhecia que é de necessidade vital. E possuía uma

estima muito grande para com os que possuíam conhecimento da Ciência Sagrada.

Assim, diz ele no Testamento: “Devemos honrar e venerar todos os teólogos e todos

aqueles que nos explicam a Palavra de Deus, porque eles nos dão o espírito e vida” (cf.

LP 70). Mas em referência à função da ciência na sua Ordem, Francisco não coloca a

ciência como um dos meios de sua ação. E aqui percebemos uma impostação bem

diferente à de São Domingos que considerava a ciência como elemento constitutivo

essencial da ação da sua Ordem.

c) São Francisco não considera a ciência como elemento constitutivo essencial da ação

da sua Ordem

5 Cf. GILSON, E. La Philosophie de saint Bonaventure, 194, 47. Diz 2C 102-104: “Embora pouco familiarizado com a terminologia da Escolástica, a penetração e a superioridade da sua inteligência se revelavam na justeza de suas soluções”.

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Francisco por um momento de sua vida teve a idéia de colocar a ciência como um dos

elementos constitutivos da ação franciscana. Quando um noviço lhe pediu a licença de

ter um saltério disse: “Eu, também como tu, já fui tentado a ter livros, mas eu abri o

evangelho para conhecer a vontade de Deus, e então ali eu li: A Vós foi dado conhecer o

reino dos céus; a outros só o conhecem em parábolas” (LP 71, 72 73). E acrescentou:

“São tantos os que querem subir os degraus da ciência, que bem-aventurado será quem a

ela renuncia por amor do Senhor Deus” (LP 72). Essa renúncia, a que tipo de estudos e

de ciência se refere? Certamente, não se refere a estudos e conhecimento de edificação

pessoal, mas sim a um trabalho verdadeiramente científico e que tenta alcançar ciência

por ciência6. O estudo, i. é, o empenho7 que Francisco e seus primeiros companheiros

cultivavam com intenso engajamento é o de poder progredir sempre mais no espírito de

conversão e na santidade (1C 34-41; 2C 195). A Francisco e seus primeiros

companheiros, aqui, nesse tipo de estudo, de empenho e engajamento não ocorre sequer

pensar na possibilidade e na utilidade de sentar-se nos bancos da escola e da

universidade. Por outro lado, Francisco compõe o Cântico do sol, envia irmãos a pregar,

cantando. Francisco e seus irmãos se consideram jongleurs de Deus, entoam o louvor de

Deus, pregam e cantam e por salário desse seu trabalho somente pedem que os ouvintes

se convertam e se tornem bons cristãos. Francisco usa poesia e música para levar as

almas ao Senhor. Assim, para Francisco a arte entra, até certo ponto, na existência

franciscana como elemento válido e recomendado da sua ação (2C 126, 213; LP 24, 43,

44). Não há, porém, no programa da formação, na origem do franciscanismo, lugar para

o cultivo científico, expressamente recomendado como no caso do trabalho manual e

cuidado dos leprosos8. Portanto, Francisco, segundo Gratien de Paris, não somente não

quis promover ciência na sua Ordem, mas nada absolutamente fez para remover

obstáculos que o gênero de vida imposta por ele a seus discípulos criava contra o cultivo

6 A ciência como nós hoje a concebemos não havia na Idade Média. Por isso, na nossa reflexão precisaríamos discutir sobre a diferença entre a compreensão da ciência hoje e a da scientia, doctrina, sapientia na Idade Média. Deixamos, porém, de fazê-lo, pois isto nos levaria a um excurso muito longo. Mas apenas observemos que ciência medieval, no sentido como é usada por Gratien, se refere antes de tudo à filosofia e à teologia como eram ensinadas nas universidades da época e também à medicina e ao direito. Não se tratava, pois, de ciências (ciências naturais e ciências humanas) cujo modo de ser nos domina hoje e transforma tudo tecnologicamente.

7 Studium é palavra latina para o empenho.

8 RNB 7, 8; RB 10; Testamento. Certamente nenhuma das regras monásticas anteriores à época de São Francisco e de São Domingos fazia do trabalho intelectual um dever para os religiosos. Mas na sua intenção encorajava os estudos da ciência.

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da ciência (RNB 3, 7; 2C 21, 22, 62, 129, 194, 195; LP 66-74, 96, 97). Enquanto São

Domingos quer estabelecer seus irmãos nas cidades universitárias, Francisco se revolta

contra a construção duma casa de frades estudantes em Bolonha (2C 58). Portanto,

conclui Gratien, é um fato que Francisco não foi promotor do movimento científico

dentro da sua família religiosa.

Mas como compreender uma tal atitude num homem de uma inteligência tão vasta e

dum espírito tão elevado? Pois a ciência teológica é por excelência uma arma do

apostolado, um meio eficaz e utilíssimo para salvar almas, destruindo as armadilhas dos

argumentos capciosos das exposições das ideologias heréticas. Aqui não bastava ser

apenas piedoso, humilde e simples para vencer os adversários da Fé; pois os sacerdotes

cátaros, p. ex., eram muito mais preparados e sabidos do que o clero católico. É, pois,

necessário unir a ciência à virtude. Assim, pensava São Domingos, o fundador dos

dominicanos; assim pensavam também os intelectuais que começavam a povoar a

Ordem de São Francisco em grande número. Eles deduziam a necessidade dos estudos,

da tarefa do compromisso e da responsabilidade de se prepararem adequadamente para a

pregação. Por mais lógico que seja esse raciocínio dos discípulos sábios e letrados de

Francisco, este surpreendentemente pensava de modo inteiramente diferente. É, pois,

importante marcar bem essa diferença. A missão que Francisco escolheu para si e para

seus primeiros companheiros não requeria uma erudição para além do que serviria a

suas metas. Francisco não pretendia responder ele sozinho a todas as necessidades do

coração e do espírito do homem, nem possuía ele sozinho os remédios da ciência para a

glória de Deus. Que outros se sirvam dos estudos, erudição e ciência para glorificar a

Deus; que outros reproduzam os traços de Cristo, Doutor e Mestre de toda a verdade! O

que Francisco, ele mesmo, porém, queria é imitar o Cristo humilde, pobre, amando e

sofrendo. O seu apostolado e o da sua Ordem, sua vocação, não é a de, com a ajuda de

polêmicas sábias, defender a Fé da Igreja contra seus inimigos de fora, mas sim, de

renovar no seio da Igreja a vida conforme ao Evangelho, e isto pela força comprovante

do exemplo e pela pregação da penitência. Os doutores com a ajuda da Ciência, da

dialética e da controvérsia, demonstram a verdade do Evangelho. Francisco, por sua

vez, mostra a beleza oculta, a intimidade da ternura do mistério evangélico. Para essa

busca intensa e total de encontro corpo a corpo, “full contact” com Cristo pobre,

humilde, estudos científicos lhe pareciam inúteis e perigosos para o espírito de vida

interior, de simplicidade, humildade e pobreza, que são os fundamentos da sua Ordem

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(2C 195; LP 70). Os estudos e a ciência exigem a posse de ricas bibliotecas, moradia

estável, conforto e ambiente protegido. A ciência orna a fronte de quem a possui de uma

aura de glória e atrai honras (2C 194). Além disso, Francisco desconfiava

principalmente do saber livresco. Dizia: “A ciência torna muitas pessoas indóceis, não

deixando que alguma coisa de rígido nelas se dobre aos ensinamentos humildes” (2C

194, 195). A rejeição de Francisco contra o saber livresco vinha do receio de que o

saber livresco crie um intelectual inepto à ação e vazio de boas obras (2C 195).

d) A Ciência e a ação apostólica franciscana

Mas então, por que Francisco aceitou na sua Ordem os intelectuais, sábios e letrados? A isto responde com uma parábola relatada por 2C 191:

Vamos supor que todos os religiosos da Igreja se reuniram em um só capítulo geral! Estando

presentes letrados e analfabetos, sábios e os que sabem agradar a Deus mesmo sem sabedoria,

encomendaram um sermão a um dos sábios e a um dos simples. O sábio, por ser sábio, calculou

consigo mesmo: “isto aqui não é lugar de demonstrar conhecimentos, porque estão presentes

homens perfeitos na ciência e não convém que eu me faça notar pela afetação, dizendo coisas

sutis diante das pessoas mais sutis. Talvez seja mais proveitoso falar com simplicidade”.

Amanheceu o dia combinado, reuniram-se as congregações dos santos, sequiosas de ouvir o

sermão. O sábio se apresentou vestido de saco, com a cabeça coberta de cinza e, diante da

admiração de todos, pregando mais com o exemplo, foi breve nas palavras. Disse: “Prometemos

grandes coisas, maiores são as que nos foram prometidas. Observemos as primeiras e,

suspiremos pelas segundas. O prazer é breve, o castigo, perpétuo, o sofrimento é pequeno, a

glória não tem fim. Muitos são os chamados, poucos os escolhidos, todos têm a sua retribuição”.

Os ouvintes romperam em lágrimas com o coração compungido, e veneraram aquele verdadeiro

sábio como um santo.

“Vejam só”, disse o simples em seu coração. “O sábio me tirou tudo que eu ia fazer e dizer. Mas

já sei o que faço. Conheço alguns versículos de salmos: vou agir como sábio, já que ele agiu

como um simples”.

Chegou a sessão do dia seguinte. O simples se levantou, propôs um Salmo como tema. Inspirado

pelo Espírito Santo, falou com tanto fervor, com tanta sutileza, com tanta doçura, por um dom

que só podia vir de Deus, que todos ficaram muito admirados e disseram: “Deus fala com os

simples”.

E 2C 192 continua: Depois, o homem de Deus explicou assim a parábola que tinha contado:

Nossa Ordem é uma assembléia muito grande, um verdadeiro capítulo geral, que se reuniu de

todas as partes do mundo para viver de uma maneira comum. Nela os sábios aproveitam o que é

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dos simples, vendo que os ignorantes buscam as coisas do céu com inflamado vigor e que os não

instruídos pelos homens aprenderam com o Espírito as coisas espirituais. Nela também os

simples aproveitam o que é dos sábios, porque vêem que nela convivem com eles homens

preclaros, que poderiam gozar de grande conceito no mundo. É isso que faz brilhar a beleza

desta bem-aventurada família, cuja variedade tanto agrada ao pai de família.

O que nos quer dizer essa parábola a respeito da concepção de Francisco sobre o

relacionamento da Ciência e da ação apostólica franciscana?

Diz Gratien de Paris: “São Francisco tentava assim fazer compreender que os novos

membros da Ordem deviam se formar, seguindo a própria natureza e missão dessa

Ordem, e não, transformá-la” (1982, p.91). Assim, os sábios e os letrados não deviam

ter um outro método e uma outra meta do que os simples e os ignorantes (2C 192). Ao

sábio que se apresentava para receber o hábito da pobreza, ele convocava a renunciar,

não somente aos bens materiais, mas também, de uma certa maneira, à ciência, para que

desapegado de tudo, se oferecesse nu aos braços do Crucificado e chorar seus pecados

na solidão e no silêncio. Uma vez assim preparado, o irmão menor podia ser

considerado apto para a pregação. E ele então “sairá qual leão solto, com força para

tudo, e a boa seiva que hauriu no começo continuará a se desenvolver para o seu

proveito” (2C 194). Em acolhendo os sábios e letrados na sua Ordem, São Francisco

não fazia apelo à ciência deles, nem contava com ela para converter almas, mas, sim,

apelava a e contava unicamente com exemplo de humildade, simplicidade e pobreza.

Em aceitando os homens de estudos e de ciência na sua fraternidade humilde e pobre,

Francisco pôde consagrar e engajar as mais belas e profundas inteligências à educação

da gente pobre, devotou grandes clérigos, estudados e sábios ao apostolado dos

humildes, pobres e marginalizados. Um mestre na teologia, um doutor, diplomado na

universidade de Paris, Oxford e Bolonha, explicando com amor e diligente cuidado o

catecismo aos camponeses, às empregadas, aos velhos e às crianças… eis a imagem que

Francisco fazia do sábio franciscano! E é por isso que devemos escutar a recomendação

escrita por ele na RNB, IX como valendo para todos os irmãos, sejam iletrados ou

letrados e sábios: “E devem alegrar-se quando se encontram entre pessoas vis e

desprezadas, pobres e débeis, enfermos, leprosos e mendigos da rua”.

Portanto, se, em nos apoiando nas palavras de São Francisco, e sem nos deixarmos

influenciar pela importância que os estudos recebem mais tarde na Ordem franciscana,

perguntarmos qual foi o verdadeiro pensamento de Francisco a respeito dos estudos e da

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ciência, percebemos que para compreendê-lo com precisão, não basta dizer: Francisco

não rejeitou os estudos e a ciência, mas apenas rejeitou seus abusos, i. é, a curiosidade, a

vã erudição, o orgulho de superioridade, a vaidade. Essa desconfiança e atitude crítica

contra os abusos e modos deficientes provenientes dos estudos e da vida científica eram

um lugar comum da eloqüência eclesiástica do século XIII. Segundo Gratien de Paris,

Francisco vai além desse lugar comum. Pois, deliberadamente recusa assumir a ciência

como um dos meios da ação franciscana, por causa do perigo que ela fazia correr ao seu

ideal, à estrutura do seu instituto, ao seu sistema de apostolado, alicerçado mais e

essencialmente sobre a força do exemplo do que sobre o poder do ensinamento verbal.

Nem o apostolado da palavra nem o apostolado da Ciência deviam nem podiam

substituir o apostolado do exemplo (2C 185, 193; RB 7).

e) Sob que condição Francisco permitia os estudos científicos?

No entanto, recusando a se fazer promotor da ciência dentro da sua Ordem, São Francisco não a quis banir. Cedendo a inúmeras solicitações dos clérigos, ele até consentiu que ela fosse cultivada, mas sob certas condições bem precisas, destinadas a imunizar os frades contra perigos demasiadamente reais, existentes nos estudos (cf. LM XI, 1)9. Assim:

- Em princípio, cada um dos seus seguidores deveria permanecer no seu estado e na

sua profissão (RNB 7).

- Interditou os estudos aos irmãos não-clérigos (2C 195).

- Portanto, os estudos foram permitidos àquele a quem já eram de direito pela

profissão, e isto conforme as orientações então em vigor na Igreja, a saber, estudos

da Ciência Sagrada exclusivamente. Outros tipos de pesquisa dificilmente se

conciliavam, segundo Francisco, na interpretação de Gratien, com a vocação do

frade menor. É o que se mostra nos elogios à simplicidade que Francisco faz diante

9 LM (Legenda maior de São Boaventura) XI, 1:

Alguns irmãos um dia lhe pediram, para aqueles que haviam estudado, a permissão de se dedicar aos estudos da Sagrada Escritura. Respondeu: “Permito, contanto que não se esqueçam de se dedicar também à oração, como Cristo, que, como se lê, mais rezou do que estudou, e contanto que não estudem unicamente para saber como falar, mas para pôr em prática primeiro aquilo que tiverem aprendido e, depois de terem posto em prática, para ensinar aos outros aquilo que eles devem fazer. Quero que meus irmãos sejam discípulos do Evangelho e que seus progressos no conhecimento da verdade sejam tais, que eles cresçam ao mesmo tempo na pureza da simplicidade. Dessa forma não hão de separar aquilo que o Mestre uniu com sua bendita palavra: a simplicidade da pomba e a prudência da serpente”.

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dos seus irmãos (2C 189). Tudo isso insinua dentro de que espírito, feitio e forma,

os filhos de São Francisco deveriam e poderiam se doar aos estudos, a saber: no

espírito de profunda humildade.

- Francisco ensina a procurar nos livros o testemunho de Deus, e não, o valor verbal;

a piedade, e não a beleza estética (2C 62). Dizia, pois: a maneira, a mais frutuosa de

ler e de aprender não é a de percorrer mil tratados, mas de ler pouco e de meditar

muito, de ruminar com devoção (2C 102).

- Adquirida na meditação e na contemplação, a Ciência que sabe a São Francisco se

perfaz na ação e deve tender à ação (Adm 7), conforme o seu axioma: “Um homem

tanto possui da Ciência, quanto aquilo que realiza nas suas obras; e um religioso

tanto possui da oração, quanto aquilo que na vida põe em prática” (LP 74).

- O verdadeiro frade menor não deve se dedicar aos estudos em vista principalmente

da pregação, para buscar nos Livros Sagrados temas de especulações teoréticas, de

belos materiais para discurso, para argumentos potentes, portanto, não aprender

somente a falar, mas em vista da sua própria santificação, i. é, aprender a agir, a

melhor amar, a melhor viver.

- Essas colocações de Francisco não são apenas eloqüências; elas saem das suas

entranhas, da sua própria experiência, de toda a sua vida.

E conclui Gratien de Paris: “A lealdade e a atividade que figuram entre os traços, os

mais característicos da espiritualidade de São Francisco, lhe ditam esta atitude em vista

da ciência” (1982, p.95).

O que dissemos até agora é o que geralmente se costuma dizer mutatis mutandis sobre o

problema estudos em São Francisco no início da Ordem.

II - A QUESTÃO DOS ESTUDOS E SUA INTERROGAÇÃO

1 A necessidade de desfazer a factualidade e despertar a realidade existencial

A descrição do que São Francisco pensava dos estudos na origem do franciscanismo é

um problema. Como dissemos na introdução, problema é o que suscita dificuldades,

dúvidas e perguntas a partir e dentro de uma posição lançada como estabelecida.

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Examinemos em que sentido esse fato dado como sendo “experiência pessoal e privativa

do indivíduo Francisco e seus companheiros” é algo estabelecido. Acima grifamos a

expressão como sendo. Por que grifamos o como sendo? O que significa precisamente

como sendo? O como sendo diz ao mesmo tempo sendo como. Mas, quando se destaca o

como do sendo do fato simplesmente dado, esse como já está predeterminado, posto,

sim localizado num sentido do ser que se oculta como lugar comum ou pré-jazida, na

qual, a partir da qual, para a qual e ao longo da qual o fato, os fatos, os momentos do

fato repousam e recebem sua localização e consistência. Os fatos são, por assim dizer,

entificações consolidadas desse prévio sentido do ser, algo como suas pontuações

atomizadas. O que usualmente captamos como o quê simplesmente dado à nossa frente

enquanto esta coisa, aquela coisa, isto e aquilo, são como blocos de formas terminais

dessa entificação. Assim, temos diante de nós Francisco como este ente-indivíduo, os

seus companheiros como esta, mais outra, mais outra entidade etc. E a cada uma dessas

coisas ou entidades, seja a cada uma, seja ao conjunto delas como a um bloco,

atribuímos então atos de diferentes tipos, classificados por nós como vivências,

pensamentos, sentimentos, volições, ações etc. Temos assim o fato denominado

“experiência pessoal e privativa” do indivíduo Francisco e de seus primeiros

companheiros. O mesmo processo se dá, quando então, ao estabelecermos a experiência

pessoal de Francisco como fato e os atos dos franciscanos posteriores também como

outro fato, opomos o fato experiência pessoal do indivíduo Francisco ao fato

coletividade da Ordem na sua evolução e necessidade de adaptação. E sobre essa

plataforma estabelecida de posição de factualidade é que tentamos explicar os

problemas, como p. ex. se São Francisco queria ou não, ou se apenas tolerou os estudos

acadêmicos para seus frades, sem desfazer, sem desestabilizar a fixidez da sua aderência

ao sentido do ser da factualidade, i. é, do modo de ser do fato-coisa, pelo qual os fatos

estão afetados como se fossem coisas em si, ali dadas simples e obviamente.

A seguir, à mão de dois textos de Celano, falemos, à guisa de ilustração, da diferença de

colocação, quando miramos a vivência pessoal de Francisco como fato e quando

tentamos de alguma forma intuir10, i. é, ir para dentro do fundo dinâmico do

movimento, da origem e estruturação da vida, denominada experiência pessoal de

Francisco.

10 Intu = intus (para dentro); emos = eamus (de ire = vamos).

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1.1 Ilustração 1

O primeiro texto é 2C 102, citado por Gratien, para nos mostrar que Francisco ensinava

a procurar nos livros o testemunho de Deus, e não, o valor verbal; a piedade, e não a

beleza estética. Pois, a maneira, a mais frutuosa de ler e de aprender não é a de percorrer

mil tratados, mas de ler pouco e de meditar muito, de ruminar com devoção. Diz

Celano:

Embora não tenha tido nenhum estudo, o santo aprendeu a sabedoria do alto, que vem de Deus, e

iluminado pelos fulgores da luz eterna, não era pouco o que entendia das Sagradas Escrituras.

Sua inteligência purificada penetrava os segredos dos mistérios, e, onde ficava fora a ciência dos

mestres, entrava seu afeto cheio de amor. Lia, às vezes, os livros sagrados, e o que punha uma

vez na cabeça ficava indelevelmente gravado em seu coração. Usava a memória no lugar dos

livros, porque não perdia o que ouvia uma vez só, pois ficava refletindo com amor em contínua

devoção. Dizia que esse modo de aprender e de ler era muito vantajoso, sem ter que folhear

milhares de tratados. Era um verdadeiro filósofo, porque não preferia coisa nenhuma mais que a

vida eterna. Afirmava que passaria facilmente do conhecimento de si mesmo para o

conhecimento de Deus aquele que estudasse as Escrituras com humildade e sem presunção. Era

freqüente resolver oralmente as dúvidas de algumas questões porque, embora não fosse culto nas

palavras, destacava-se vantajosamente na inteligência e na virtude.

Esse relato de Celano se refere a uma experiência pessoal sui generis de Francisco. O

relato, porém, ao falar da experiência pessoal, o faz a modo de uma constatação de fatos

e ocorrências. Relata, pois, não a partir de experiência pessoal de Francisco, mas sim

sobre ela como fato constituído de inúmeros fatos, todos eles já pressupostos. Temos

assim o fato este indivíduo sujeito, chamado Francisco de Assis; sua inteligência; o seu

afeto, cheio de amor; sua cabeça privilegiada; sua memória. Temos as ocorrências da

ação desse indivíduo sujeito Francisco: aprendia a sabedoria do alto; era iluminado

pelos fulgores da luz divina; penetrava os segredos dos mistérios; lia livros sagrados;

não perdia o que ouvia uma vez etc. Os atos desse indivíduo sujeito Francisco se

dirigem sobre fatos reais ou tidos como tais, a saber, p. ex., estudos; sabedoria do alto;

Deus; iluminação dos fulgores da luz eterna; Sagradas Escrituras; segredos dos

mistérios; livros; milhares de tratados; vida eterna; conhecimento de si mesmo;

conhecimento de Deus; inteligência; memória; amor; virtude; humildade etc. Todos

esses fatos que, por sua vez, são como que um todo tecido de outros pequenos fatos,

expressam no seu conjunto a constatação do fato real ou supostamente ocorrente de que

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esse indivíduo sujeito, chamado Francisco, não tinha estudos, mas aprendeu a sabedoria

do alto; e que a sua inteligência estava iluminada e plena da luz e do vigor da sabedoria

divina; que mais do que do saber intelectual humano dos estudos recebia o seu

conhecimento do sabor da afeição do seu coração, cheio de amor, da sua busca

preferencial da vida eterna, na virtude da humildade etc. Cada fato e cada conjunto de

fatos, em pluriformes concatenações no percurso da narração de Celano – (na sua

totalidade e dentro dessa totalidade, cada fato por sua vez também como totalidades na

sua conjuntura, correspondente a cada momento da narração) –, são como que objeto(s)

da própria ação narrativa do relator Celano que, por sua vez, ao narrar os fatos, ali está

também como fato, cercado por inúmeros diferentes fatos, relatados ou por próprio

relator ou por outros relatores que nos informam sobre Celano.

Nessa complexa rede, tecida de fatos, onde os fatos são como que nós, i. é, pontos de

convergências de concatenações do todo, a factualidade dos entes fixados como fatos

ofusca a dinâmica operativa dos entes enquanto entroncamentos de diferentes linhas do

sentido do ser. Assim, cada fato, conforme a conjuntura em que se acha, pode aparecer

como componente de um todo, cuja referência é p. ex. historiografia, psicologia,

sociologia, antropologia cultural etc., conforme o horizonte e enfoque sob cuja mira o

relator considera o fato. Desse modo, cada vez ao redor de cada fato, abre-se uma bem

determinada paisagem própria que se constitui como conjunto de fato impregnado por

um determinado sentido do ser, o qual cada vez deveria ser sondado e tematizado para

se perceber em que sentido o fato deve ser entendido. P. ex. no relato de Celano, na

constatação de que Francisco, apesar de não ter nenhum estudo, aprendeu a sabedoria

do alto etc., se estou concentrado em averiguar se tudo isso é de fato real ou apenas uma

atribuição devota subjetiva de veneração de um admirador fiel do Francisco, o fato se

apresenta apenas no seu modo de ser formal abstrato da confirmabilidade da sua

ocorrência. Aqui o fato não libera de si o conteúdo interno e assim é compreendido

meramente como dado “objetivo” da ocorrência físico-real material. Numa tal

perspectiva do horizonte de averiguação factual é que surge então a dúvida se essa

sabedoria do alto que vem de Deus, os fulgores da luz eterna etc. de fato são reais ou

apenas projeções subjetivas, provenientes do enfoque de uma crença religiosa.

De modo semelhante, se agora consideramos como fatos a inteligência, a memória de

Francisco, suas virtudes, o que ali entendemos por inteligência, memória, virtudes etc.,

por estarem já na formalização generalizante da perspectiva do horizonte de enfoque do

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saber psicológico, do antropológico etc., apenas nos revelam que são faculdades de

alma, uma vez como capacidade de compreensão intelectual, outra vez como depósito

mental dos dados adquiridos, ou hábito ético adquirido pela contínua repetição de

exercícios.

Dentro desse enfoque factual, por mais que detalhemos os dados, por mais que

acrescentemos fatos sobre fatos, o todo do relato – e cada fato ali ocorrente – é como

que recoberto por uma camada de solidificação “coisificante”, a ponto de não deixar

transparecer a dinâmica de pulsões estruturantes que fazem eclodir de dentro

pluriformes níveis de dimensões que surgem, crescem e se consumam cada vez de novo

como totalidades que não são outra coisa do que gênesis das possibilidades da abertura

livre de novos mundos. Desfazer a solidificação factual da projeção objetivante e deixar

aparecer a “vida interior” dos fatos é o que designamos por desfazer o(s) fato(s) para

dentro de experiência pessoal, no nosso caso de Francisco de Assis. Essa

desestabilização não consiste apenas em examinar as vivências subjetivas “pessoais” de

Francisco, mas sim, muito mais, de considerar o que usualmente chamamos de

experiência pessoal de Francisco como, digamos, um buraco de fechadura de um quarto

trancado, através do qual começamos a vislumbrar uma paisagem aberta de todo um

mundo novo, até agora não percebida. Assim, tão logo comecemos a detalhar o fato

“experiência pessoal e particular do indivíduo Francisco”, determinado como “idéias de

São Francisco sobre estudos e ciência”, a opacidade e a fixidez começam a diminuir e

aparecem detalhes de conteúdos, relacionamentos, implicações e explicações que nos

começam a esboçar toda uma região ou paisagem de significações e valores que

constituem o modo de ser do mundo todo próprio chamado experiência pessoal de

Francisco. O que antes ali estava dado simplesmente como fato, se abre, a partir de

dentro na sua implicação, como explicação de um todo, mais profundo, oculto para

dentro de uma pré-jazida viva, digamos, pré-factual. Se agora, tomarmos as indicações

dos textos, donde Gratien de Paris tirou as descrições dos fatos, as quais resumimos

acima, e formos ler, nós mesmos, esses textos, cuja fonte assinalamos entre parentes ou

nas notas do rodapé, então o fato, há pouco explicitado como todo um mundo de

significações e valores chamado experiência pessoal e privativa de Francisco, continua

a se explicitar e a se intensificar, a se estruturar, se adensando, se diferenciando cada

vez mais, e se revela e se oculta ao mesmo tempo como imensidão, profundidade e

originariedade de uma totalidade viva e dinâmica, na qual, para a qual, a partir e através

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da qual pulsa a realidade toda própria, chamada usual e banalmente de Vida de São

Francisco. A fixidez da locação dos entes-fatos se liquefaz. Começam a eclodir regiões

e regiões da paisagem dos entes que constituem e povoam o mundo exterior e o mundo

interior, onde Francisco e seus primeiros companheiros estão inseridos até o pescoço.

Mas este Francisco não é mais aquele Francisco-indivíduo, ali dado simplesmente como

fato, qual substância-bloco no meio de outros fatos, mas sim como que a vivência, a

explicitação viva e concrescida de todos os fatos que lhe cercam por fora e por dentro,

os quais ele assume, dos quais se responsabiliza a partir de um fundo, o mais profundo

da intimidade dele, na qual e para a qual ele se per-faz e a partir da qual se constitui

como experiência corpo a corpo do e no toque de uma inspiração; inspiração que abre

toda uma nova realidade, própria e única denominada Seguimento de Jesus Cristo,

Crucificado. Essa “realidade” inspiradora não é, no entanto, algo já existente em si, a

modo de entes e fatos simplesmente dados, nem é fato entre outros fatos que estão

dentro e fora do sujeito Francisco, mas sim o que impregna todo o ser de Francisco

como o sentido do seu pensar, agir e sentir, de todos os seus anelos e desejos, de todos

os seus afazeres, de todas as paisagens que constituem a sua vida.

1.2 Ilustração 2

O segundo texto diz respeito ao relacionamento pessoal, íntimo de Francisco para com

Jesus Cristo Crucificado, que, por assim dizer, seria o protótipo da experiência pessoal

de Francisco. Diz 1C 115:

Os frades que conviveram com ele sabem (...) que estava todos os dias e continuamente falando

sobre Jesus, e como sua conversação era doce, suave, bondosa e cheia de amor. Sua boca falava

da abundância do coração, e a fonte de amor iluminado que enchia todo o seu interior

extravasava. Possuía Jesus de muitos modos: levava sempre Jesus no coração, Jesus na boca,

Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros. Quantas

vezes, ao sentar-se para almoçar, ouvindo ou falando ou pensando em Jesus, esquecia-se do

alimento corporal e, como lemos a respeito de um santo: “Vendo, não via; ouvindo, não ouvia”.

Também foram muitas as vezes em que estava viajando e, pensando em Jesus ou cantando para

ele, esquecia-se do caminho e convidava todos os elementos para louvarem a Jesus. E porque

conservava sempre com amor admirável em seu coração Jesus crucificado, foi marcado por seu

sinal com uma glória superior à de todos os outros. Contemplava-o, em êxtase, sentado numa

glória indizível e incompreensível, à direita do Pai, com o qual, ele mesmo, Filho do Altíssimo, e

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igualmente altíssimo, na unidade do Espírito Santo vive e reina, vence e impera, Deus

eternamente glorioso por todos os séculos dos séculos. Amém.

Como no texto anterior de Celano, observamos que também aqui se fala da experiência

pessoal de Francisco a modo de uma fala sobre o fato indíviduo-Francisco e sobre seu

ato denominado relacionamento íntimo com Jesus Cristo. Aqui também se apresentam

diferentes tipos de fatos: fato indivíduo-Francisco; fato seus atos; fato Jesus Cristo,

objeto do ato de relacionamento íntimo do indivíduo-Francisco; fato indivíduo-Celano

que fala sobre Francisco e seus atos; fato-indivíduo ou grupo de indivíduos que

examinam e pesquisam todos esses fatos referentes ao indivíduo-Francisco etc. etc.

Divisamos, em todos esses fatos dados, seus diferentes modos de ser como diferenças

ônticas. Diferenças ônticas indicam, pois, o modo, de cada ente aqui dado como fato,

aparecer como sendo11. A identidade desses como sendo, o sentido do ser desses como

sendo, que encobre e subsume todos esses diferentes entes nas suas diferenças ônticas é

o sentido do ser que caracteriza o modo de se dar, o modo de se apresentar do fato, da

entidade, cujo ser é a presença da objetividade, i. é, da realidade objeto-coisa físico-

material12. Ao sentido do ser desse modo de ser comum a todos os entes e que serve

como de horizonte geral-formal dentro e a partir do qual os entes são dados como fatos

a modo da realidade objeto-coisa físico-material, costumamos chamar de ser-

ocorrência ou ser simplesmente dado. Esse horizonte do sentido do ser da ocorrência ou

do simplesmente dado se inclina sempre de novo tenazmente a servir de fixador na

tentativa e na tentação de salvaguardar a “realidade” dos fatos, para não se esvair no

fluxo caótico de aparecimento desordenado dos entes no seu ser. Essa tendência

fixadora dos entes na dinâmica da entificação decai sempre de novo e, se fixa no sentido

do ser da ocorrência ou do simplesmente dado como o critério, como a medida básica,

elementar e suprema da compreensão de toda e qualquer “realidade”, transformando a

ocorrência-factual como o sentido do ser fundamental e fundante, comum e geral de

todos os entes. Com isso as diferenças ônticas são encobertas sob uma maciça camada

de univocação generalizante, cujo conteúdo significativo não libera a concreção viva e

dinâmica do próprio de cada ente na sua diferença. A diferença do ser de cada ente, não

11 O particípio ativo do esse (ser) é ente ou também sendo. Substantivado: o ente, o em sendo. Em grego to ón, -ontos, daí, ôntico.

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é considerada a não ser como uma diferença ôntica já dentro e a partir de uma

identidade geral-formal que então serve como identidade ontológica de duas ou mais

coisas diferentes entre si, mas tendo como modo básico e fundamental de ser, ao menos

e antes de tudo, de “algo”, “coisa”, fato, ocorrência. Dentro dessa colocação, temos,

pois, coisas materiais e espirituais; coisas humanas, coisas não-humanas de vários tipos,

coisas divinas, coisas apenas coisas, coisas apenas idéias, coisas concretas e reais,

coisas subjetivas e coisas objetivas etc. etc. Como aparece, pois, dentro dessa

perspectiva do horizonte do sentido do ser da ocorrência ou do simplesmente dado, a

experiência pessoal acima mencionada de São Francisco no seu relacionamento íntimo

com Jesus Cristo, como é relatada em Celano? P. ex. onde se localiza o sentido vivo e

concreto de itens como: continuamente falando sobre Jesus; sua conversação doce,

suave, bondosa e cheia de amor; sua boca falava da abundância do coração; o amor

iluminado que enchia todo o seu interior e extravasava; sempre Jesus no coração,

Jesus na boca, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os

outros membros; conservava sempre com amor admirável em seu coração Jesus

crucificado; foi marcado por seu sinal com uma glória superior à de todos os outros;

em êxtase; o Pai, com o qual, ele mesmo, Filho do Altíssimo, e igualmente altíssimo, na

unidade do Espírito Santo; Deus eternamente glorioso por todos os séculos dos

séculos? Respondemos usualmente: entre coisas psicológicas, coisas vivenciadas,

espirituais, divinas, coisas projetadas por Francisco: coisas, em todo o caso mais

subjetivas do que reais, factuais e ocorrentes em si, como dados objetivos verificáveis

concretamente. Ou melhor, incluímos todos os dados desse gênero sob a denominação

geral de coisas subjetivas na experiência pessoal do indivíduo sujeito-Francisco. No

entanto, com essa resposta reduzimos a experiência pessoal-Francisco ao fato-coisa

sujeito e seus atos subjetivos individuais ao lado de outros fatos coisas ou subjetivos ou

objetivos de diferentes tipos e classificações já estabelecidas. E fazemos que toda a

paisagem inteiramente nova, viva e concreta de um mundo todo próprio real, realíssimo

e bem estruturado na sua dinâmica criadora fique neutralizada sob a opacidade

indiferente e factualidade monótona, sem cor, sem tonância, sim sem vida de algo e

algo, algo no algo, algo do algo etc. Com isso, todos os termos e as expressões do relato

acima mencionado não vêm à fala, a não ser como referências aos fatos, às coisas

12 Os entes que não são coisa-objeto físico-material, como p. ex. atos, vivências, objetos ideais etc., são dados de alguma forma como “algo” factual, real, sempre de certo modo referido ao ser da realidade

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diversificadas, no modo de ser preestabelecido, sim padronizado do sentido do ser da

ocorrência, do simplesmente dado; impedindo que consigam percutir e repercutir como

toque da origem de todo um mundo da realidade realíssima nova, portanto como

repercussões da totalidade, cuja identidade anuncia a diferença ontológica de um sentido

do ser todo singular e próprio, mais vasto, mais profundo e mais originário do que o

sentido do ser preestabelecido como ocorrência ou simplesmente dado.

O que acontece com a assim chamada experiência pessoal (leia-se individual privativa e

subjetiva) de Francisco, se ela não for um dos fatos entre outros fatos que ocorrem nele

“interiormente” e outros que o rodeiam “exteriormente”, mas sim o próprio saltar, o

próprio surgir de todo um mundo, cuja paisagem está impregnada de um sentido do ser

inteiramente novo, não vindo desse fato particular subjetivo do indivíduo denominado

Francisco, mas sim do toque de inspiração que possibilita e cria a realidade originária,

em cujo âmbito aberto se tornam possíveis Francisco e seus atos, suas obras, seus

companheiros e a Ordem, seu destinar-se através da História, em suma, se torna

possível a existêncialidade franciscana ou ser da existência franciscana?13

2 Franciscanismo e a existência franciscana

coisa-objeto físico-material.

16. A palavra existência e similares como existencialidade, existencial está sendo usada na reflexão no sentido da fenomenologia de Ser e Tempo (Martin Heidegger). Indica o próprio do ser do homem ou da “vida humana”. Em vez de o próprio do ser do homem podemos também dizer o ontologicum do humano. Geralmente quando diferenciamos o ser do homem do ser de outros entes não-humanos, marcamos certamente a diferença entre ente e ente, mas não “entre” o ser do ente humano e o ser do ente não-humano. Com outras palavras, não tematizamos a diferença ontológica, mas apenas a ôntica. A palavra existência e seus derivados, no seu uso específico fenomenológico, indica de imediato o próprio do homem no sentido da diferença ôntica mas ao mesmo tempo, acena também para a diferença ontológica i. é, a diferença que se dá no sentido do ser, ao pensarmos com maior precisão o ser do homem e não o homem como ente. O grande desafio em se manter na tematização da diferença ontológica é de não representar a diferença “entre” ser e ser como se fosse uma diferença a modo da distinção entre ente e ente. A diferença ontológica só vem à fala se, em se operando bem a diferença ôntica e marcando na mira de nossa atenção a diferença entre ente e ente, divisarmos numa “mira”, digamos oblíqua, a dinâmica do in-stante do lance livre da totalidade que se estrutura como mundo. É nesse surgir do mundo, nesse “intus” “ire” como ser-no-mundo, que nos mira nesse in-stante o sentido do ser na sua criatividade cada vez nova e gratuita. O ente que tem como o seu próprio o apanágio de ser clareira do desvelamento do sentido do ser se chama Homem, mas não mais entendido como substância ou sujeito, mas sim como a responsabilidade livre e criativa pelo sentido do ser: é existência.

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O fato-experiência do Seguimento em Francisco, compreendido dentro da colocação

usual do problema dos estudos, como radical, mas pessoal privativo, só possível14 a

poucos e a pequenos grupos, não, porém à Ordem evoluída para um grande estamento

social...(!?)

Os predicados radical, ideal, pessoal privativo, atribuídos à experiência religiosa de

Francisco, como também os predicados a eles contrapostos moderado, real concreto,

comum atribuídos à Ordem como coletividade, para explicar o porquê do surgimento

dos estudos entre frades...

Todos esses qualificativos formam binômios da tabela de classificação, na qual, de um

lado a experiência de Francisco e de seus primeiros companheiros é taxada de

individual, e, do outro lado, a vivência e a resolução da Ordem já evoluída são taxadas

de coletivas e comunitárias. Mas em assim se efetuando a classificação, não se está

examinado nem tematizado o que realmente significam esses binômios no seu conteúdo

e na evidência. É que os binômios achatam a compreensão dos fatos, reduzindo-a a suas

significações usuais já estabelecidas e não permitem que os fatos venham à luz na

mostração do que são. Lancemos, pois, sobre o fato-experiência do Seguimento em

Francisco e seus primeiros companheiros uma interpelação interrogativa e lhe

perguntemos o que é, como é, esse acontecimento já de antemão classificado como

radical, ideal, pessoal e privativo. Uma resposta a esse interrogatório só pode vir, a

partir do próprio fato, mas agora captado, não no achatamento da classificação já feita,

mas sim nele mesmo, em concreto, na e-vidência.

No outono (setembro-dezembro) de 1205 Francisco recebe a voz do crucifixo de São

Damião: “Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Vai, pois e restaura-a

para mim”. O título do capítulo 5 da Legenda dos três companheiros onde está relatada

a fala do crucifixo é: Da primeira vez em que o Crucificado lhe falou, e como, desde

este momento até a morte, trouxe a paixão de Cristo em seu coração. E a resposta de

Francisco, a decisão de sua existência é: Com muito boa vontade o farei, Senhor! No

14 Possível, possibilidade se entende usualmente como o que ainda não foi realizado, o que carece de atualização, o que é ainda apenas virtual. Nesse sentido o possível é menos do que o real. Mas pode ser entendido como dinâmica real, como poder no sentido de potência, i. é, como atuação poderosa, no sentido de “pode quem pode”. É nessa última acepção que dizemos: Amar assim, só pode um deus. Aqui o possível é maior do que o real. Se, porém, pensarmos com precisão, o possível que é maior do que o

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prosseguimento dessa tarefa, se dá o confronto com o pai Pedro Bernardone e a entrega

total a Deus, diante do bispo de Assis. Aos poucos se agrupam ao redor dele seguidores.

E em 1209 Francisco escreve a sua primeira regra, vai a Roma com 11 companheiros

pedir a aprovação do Inocêncio III para a vida do Seguimento de Jesus Cristo,

Crucificado, a vida da Pobreza. Obtém a aprovação, mas só oralmente. Trata-se da

assim chamada Primeira Regra franciscana, hoje perdida.

Do conteúdo dessa regra nada sabemos. Aliás, por isso mesmo ela nos parece

inteiramente inútil para obter notícias sobre se e o que Francisco fala acerca dos

estudos. No entanto, o surgimento da Primeira Regra e suas implicações e pressupostos,

suas subseqüentes reformulações como Regra Não Bulada, e finalmente como Regra

Bulada e o Testamento, o qual Francisco quer que consideremos não como uma outra

Regra, nos podem revelar o modo de ser, digamos, interno e entranhado disso que,

externa e usualmente denominamos de fato-experiência religiosa de Francisco na sua

conversão pessoal. O fato-surgimento da Primeira Regra em 1209 é como a pequena

ponta delicada, aparentemente frágil de um broto. Esconde sob a camada “objetiva” de

um fato historiográfico, cronologicamente datado em 1209 e caracterizado como uma

etapa final da experiência subjetivo-pessoal do sujeito-indivíduo Francisco, o surgir, o

crescer e consumar-se da intensificação e do vir à fala do ser da “realidade”, a qual

podemos denominar de mundo franciscano ou ser-no-mundo todo próprio chamado

existência franciscana.

Em geral, quando falamos de existência franciscana, pensamos na mundividência

franciscana, i. é, visão, concepção do mundo e da vida dos(as) franciscanos(as). É o

fraciscanismo. Essa mundividência se origina com Francisco, se inspira nele. Mas não é

a experiência pessoal e originária do próprio Francisco. É já derivada, e muitas vezes até

um seu modo deficiente. Nessa perspectiva, portanto, o franciscanismo ou

mundividência franciscana não coincide simplesmente com a experiência pessoal e

originária de São Francisco. Temos então, de um lado: a experiência pessoal e privativa

de Francisco (e de seus primeiros companheiros); e de outro lado: a concepção do

mundo e da vida aceita e cultivada por muitos, por grupo ou grupos de pessoas que

simpatizam, amam e seguem a São Francisco nos inúmeros movimentos inspirados por

sua espiritualidade; ou que pertencem à Ordem que ele fundou.

real não está no mesmo nível do ser do possível como do virtual, como menor do que o real, pois

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A palavra existência franciscana pode ser também entendida como indicando a plena

vida de Francisco com a sua experiência pessoal do Seguimento de Jesus Cristo

Crucificado. Nesse caso existência franciscana não é sinônimo de franciscanismo nem

de mundividência franciscana, mas sim do que há de mais nuclear, autêntico, íntimo e

profundo na vivência e experiência do indivíduo Francisco. É o próprio coração, a

própria alma de Francisco. Trata-se de todo um mundo de “realidades” vivas de

estruturações complexas que constituem o interior, o cerne da “pessoa” (leia-se

indivíduo ou sujeito) Francisco. É o que vislumbramos tão logo comecemos a cavar

debaixo da superfície opaca e fixa dos fatos e deixemos vir à tona a dinâmica

constitutiva da paisagem interior dos fatos e acontecimentos. É, mais ou menos nessa

perspectiva de fundo, que Gratien de Paris nos expôs as idéias de São Francisco sobre

pregação, estudos e ciência. Aqui, o fato “experiência pessoal e privativa” de Francisco

se torna muito mais complexo, rico e diferenciado nos seus detalhes. Mas Francisco é

sempre ainda considerado como sujeito que faz, vivencia e agencia a sua experiência

religiosa que ele possui (e é por ela possuído), em contraposição à mundividência dos

que o seguiram, mas de um modo menos radical, mais adaptado às necessidades e

exigências das épocas posteriores.

A situação muda inteiramente, se entendermos existência franciscana no sentido

especificamente fenomenológico, insinuado e pressuposto na nossa reflexão. Pois

existência franciscana, nesse caso, não significaria nem a vida de Francisco e sua

experiência pessoal, privativa, na origem do movimento franciscano, nem a vida dos

que a ele sucederam como seus seguidores ou fãs, nem suas vivências e

mundividências, inspiradas por Francisco, mas sim, o que possibilita a ambas, o que dá

essência, o sentido do ser, tanto a Francisco como a nós, seus seguidores, tanto na

origem, no primeiro século do franciscanismo, como nos séculos subseqüentes, como

também hoje e amanhã. Existência franciscana é o que se denominou, na tradição da

espiritualidade, de espírito de São Francisco.

3 Existência franciscana como espírito de São Francisco

possibilidade aqui diz: condição da possibilidade do possível e do real.

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Essa compreensão fenomenológica15 do que denominamos de existência franciscana,

agora como espírito16 de São Francisco, se torna de importância decisiva na questão do

problema dos estudos na origem e no primeiro século do franciscanismo. Pois, ela

modifica inteiramente a impostação da busca em referência aos fatos do problema dos

estudos na Ordem. Em que sentido? No sentido de a experiência pessoal e privativa de

Francisco não ser mais considerada como algo individual, particular, como subjetiva, só

válida para este caso, aqui e agora, para este fato empírico e ôntico “Francisco”; mas

sim, ser ela o lugar onde vem à fala e toma corpo o lance fundacional de uma

inteiramente nova possibilidade do sentido do ser que se torna condição da

possibilidade do ser franciscano, portanto, se torna existencialidade da existência

franciscana. Trata-se, pois, da medida fundamental, universal e apriorística de todo e

qualquer movimento que pretenda carregar o qualificativo de franciscano, inclusive do

próprio Francisco17. Enquanto medida universal de tudo que é e pode ser franciscano,

essa experiência pessoal de Francisco enquanto existência franciscana torna-se a única

questão, i. é, a única ação de busca dos estudos dos seus seguidores. O que usualmente

denominamos de experiência de uma pessoa, entendendo-a como vivência subjetiva, i.

é, da pessoa enquanto sujeito indivíduo, em São Francisco é existência. Para que

compreendamos vivência subjetiva de Francisco como concreção do ser da existência, é

necessário que a vivência seja entendida como um momento, portanto dentro da

perspectiva da absoluta doação de toda a vida de Francisco inteiramente dedicada ao

Seguimento de Jesus Cristo Crucificado. A intensidade dessa doação apaixonada é

15 Em vez de fenomenológica, podemos também dizer existencial, mas de preferência ontológica. Aqui ontológico não se refere à grande região dos entes não-humanos, os assim chamados entes “objetivos”, em contraposição à outra grande região dos entes humanos, os assim chamados entes “subjetivos”. Ontológico aqui se refere ao sentido do ser, não à significação lógica do termo ser, abstrata formal, sem nenhum conteúdo, comum ou geral a todos os entes extensivelmente. Sentido do ser deve ser captado como aceno à dinâmica da gênesis de estruturação do mundo, cada vez nova, criativa, em cujo vir à luz se anuncia cada vez de novo o desvelar-se e ocultar-se do abismo insondável da possibilidade de ser.

16 Espírito, spiritus em latim, é respiração, o sopro vital. Significa a fonte da vida, sustentação da vitalidade, a própria vitalidade, o vigor, o ânimo, o que impregna todo o ser de uma pessoa em todas as suas ações; significa portanto o ser da existência, a existencialidade. Só que vida, vitalidade, ânimo conota sempre ainda algo como energia num sentido vago e geral, digamos, a modo de explosão de uma bomba ou de vitalidade vegetal ou animal. Ao passo que espírito se refere à vitalidade e ao ânimo, sim, mas a modo da liberdade e da criatividade.

17 Apriorístico ou o a priori não deve ser entendido como dado prefixado, a modo de uma norma fixa, mas no sentido da dinâmica do abismo insondável e inesgotável do ser; portanto no sentido da essência. Ao termo essência aqui está intimamente ligada a compreensão de que a excelência e originariedade do ser não está no sentido do ser como simplesmente dado, como ocorrência, mas sim como pessoa no encontro da doação de si da liberdade, do Deus, como amor-comunhão, difusivo de si.

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tamanha que culmina na conformidade de Francisco com o Crucificado, na total

identificação com Ele, na estigmatização, sobre o Monte Alverne. Assim, Francisco é

chamado de um outro Cristo. Uma tal identificação com o outro na doação e recepção

mútua de si se chama encontro. É união, comunhão no amor. A identificação unitiva no

amor de encontro no Seguimento de Jesus Cristo Crucificado é talvez a realização

suprema, ou melhor uma das tentativas – das mais intensamente experimentadas na

História do Pensamento Ocidental – de penetrar e perfazer um novo sentido do ser da

realidade no seu todo, que no cristianismo recebeu o nome de Boa-Nova ou Evangelho

do Mistério da Encarnação. Na mística do cristianismo medieval, como a pressuposição

ontológica da sua metafísica (HEIDEGGER, 1975, p.127), o sentido do ser do ente na sua

totalidade se dá num único ente, todo próprio, sui generis, supremo e absoluto que

concentra em si toda a intensidade do ser. E isso de tal sorte que aqui Ser e Ente

coincidem. Esse ente único, o Ente como tal se chama Deus. Deus é ipsum esse, fora de

Deus não há propriamente ente, a não ser a modo analógico. Por concentrar em si toda a

força da entidade, se atribui a Deus ser no grau de excelência, infinito, absoluto,

necessário, onipotente, onisciente etc. No entanto, o característico próprio desses

atributos de supremacia como infinitude, onisciência, onipotência, ser absoluto, ser

necessário, ser a se não é a supremacia da escalação optimal da força eficiente do poder

da metafísica, cujo sentido do ser é o do ser simplesmente dado ou da ocorrência, mas

sim a perfeição de ternura e vigor da liberdade, cuja excelência, cuja consumação se

chama pessoa18 e é desvelada no mistério da Santíssima Trindade, de uma deidade em

três pessoas. Nesse sentido a infinitude, onisciência, onipotência, ser absoluto, ser

necessário, ser a se, diz: o sentido do ser por excelência não é outra coisa do que o ser

de toda e absolta doação suma e infinita, incomensurável e incondicional, que tudo pode

na ternura e vigor da gratuidade da oferta de si. Essa colocação fundamental como o

sentido do ser da totalidade que impregna e estrutura criativamente todo um mundo

próprio, de ser, pensar, agir, é proposta como princípio prático de iniciação à

experiência fundamental e fundante do mundo cristão, formulado como o grande

Mandamento do amor, a saber, amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e

com toda a mente, e ao próximo como a si mesmo (Mt 22,37-40). Mandamento esse que

18 Cf. Rombach (1987, p. 27-37). Pessoa aqui não deve ser entendida como equivalente ao sujeito-indivíduo, mas sim a uma dimensão toda própria.

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em Jesus Cristo, na última ceia alcança a sua consumação como o Novo Mandamento:

amai-vos uns aos outros como eu vos amei (Jo 13,34).

Toda essa concatenação de referências que liga a experiência pessoal de Francisco ao

Seguimento, à identificação com o Crucificado, e esta ao amor unitivo denominado

encontro, e tudo isso à realização suprema do grande Mandamento do amor a Deus e ao

próximo como a si mesmo, do Novo Mandamento, dado por Cristo na última ceia, tudo

isso, portanto, quer apenas realçar que todas essas “coisas” ou “fatos”, uma vez

entendidos como constituintes essenciais da existência franciscana, não mais devem ser

representados como ações e compreensões de um sujeito chamado Francisco, mas sim

como estruturações, como texturas de “realidades” e “possibilidades” de ser,

caracterizado no Evangelho como Reino dos céus ou novo céu e nova terra. Lembremos

que as idéias de São Francisco sobre estudos e ciência, como Gratien de Paris as

apresentou no item III, 3 do seu livro já citado no início desta exposição, pertencem

como elementos constitutivos a essa realidade da união de amor de encontro, e somente

recebem o seu pleno sentido a partir dela.

Usamos há pouco a expressão “realidade da união do amor de encontro”. Realidade diz

e pressupõe ser. Ser, a saber, um sentido do ser19. União, amor e encontro só têm

sentido próprio, a partir e dentro do horizonte de um determinado sentido do ser. São

conceitos que revelam, por assim dizer, o fundo pré-jacente do horizonte desse sentido

do ser. Como tais, são suas categorias fundamentais denominadas existenciais. Com o

risco de isso tornar-se chato e pedante, repitamos o que já foi dito várias vezes

anteriormente: o sentido do ser aqui operante na união do amor do encontro não pode

ser apreendido a partir e dentro do horizonte20 do sentido do ser dos fatos-coisas. Dito

19 Sentido do ser não é idêntico com significação da palavra ser. Sentido, propriamente, pouco tem a ver com signo ou significação, embora tenha muito a ver com aceno. Sentido, usualmente, indica os 5 sentidos que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, à sensibilidade estética. Mas sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências está presente o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado, previamente, por um “anterior”, para que se receba. Mas, aqui, não se dá, não há o quê, que afeta. A anterioridade do prévio, do a priori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre antes, em si e então afeta, mas sim atinência ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente e nova a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo. Trata-se, portanto, não de fato, mas sim de operação ou ato nos seus momentos.

20 A palavra horizonte pode insinuar um espaço, dentro do qual se acham os entes. A impostação que vem do sentido do ser da factualidade (ocorrência ou do simplesmente dado) sempre distingue horizonte como condição da possibilidade de ser e o que se dá dentro do horizonte (transcendental e empírico; ontológico e ôntico). No caso da existência e existencialidade o “modelo” horizonte não mais consegue dizer com

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com outras palavras, para se compreender devidamente o que seja união do amor do

encontro, necessitamos intuir, i. é, ir para dentro de uma nova e outra compreensão de

um outro e novo sentido do ser, muito mais rico, mais diferenciado, vivo e dinâmico do

que a usual compreensão do ser que está à base da compreensão dos entes como coisas e

fatos. Surge aqui a possibilidade e a necessidade de uma nova e outra ciência do ser, da

ontologia existencial ou fenomenológica21. O que aparentemente parecia ser um fato da

precisão a “realidade” desse ser. Pois aqui o ontológico e o ôntico coincidem, por ser uma realidade anterior e una. Talvez os “modelos” tonância, percussão, dimensionalidade, e até certo ponto função nos podem melhor servir de aceno. A paisagem da tonância da existencialidade é bem diferente à do horizonte da factualidade. Para de alguma forma podermos vislumbrar essa diferença, vamos observar a pregnância do ser presente num par de sapatos camponês, cuja descrição feita por Martin Heidegger no livro Der Ursprung des Kunstwerkes (A origem da obra de arte), Philipp Reclam, p.31, mostra a dinâmica da estruturação dimensional da existência humana. Aqui na existência camponesa cada ente, cada fato coincide cada vez de novo e novo com a totalidade da dimensão na mútua percussão e repercussão. Diz a descrição:

Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato está sedimentada a tenacidade do andar lento através dos sulcos extensos e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do chão. Debaixo das solas se arrasta a solidão do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doação de si do grão maduro e o inexplicável fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Através desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurança do pão cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigência premente, a vibração na chegada do nascimento, o frêmito na iminência da morte. À terra pertence este artefato e no mundo da camponesa está ele protegido. É dessa pertença protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistência. Mas tudo isso, talvez, nós possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato está quiçá na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Nós o denominamos de confiabilidade. É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e terra estão assim ali à camponesa e aos que com ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos “apenas” e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao mundo simples a proteção segura e assegura à terra a liberdade da impulsão permanente.

O ser-artefato do artefato, a confiabilidade, mantém recolhidas todas as coisas, cada vez, segundo seu modo e amplitude, em si. A serventia do artefato, no entanto, é apenas a conseqüência essencial da confiabilidade. A serventia se embala na confiabilidade e seria, sem esta, nada. O artefato em particular se torna usado e desgastado; mas, ao mesmo tempo, também o uso cai no desgaste, se desfaz e se torna usual. Assim, o artefato entra na desertificação, decai a apenas artefato-coisa. Tal desertificação do artefato é o sumiço da confiabilidade. O sumiço, ao qual a coisa do uso deve então cada vez a sua monótona e persistente rotina vazia; é, porém, um testemunho a mais que acena à essência originária do artefato. A desgastada rotina usual do artefato então se impõe como o único e exclusivo modo de ser a ele próprio.

21 Ciência do ser é ontologia. Mas, aqui, entendida não como ciência dos entes na sua generalidade, mas sim como ontologia fundamental na acepção fenomenológica, explicitada no Ser e Tempo (Heidegger). Ser aqui não significa Ente, mas sim o sentido do ser oculto na subjetividade transcendental ou subjetidade, ainda interpretada a partir do ser da entificação factual.

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experiência pessoal e privativa que pertence à classe dos atos da vivência chamada

religiosa ou mística se revela como sendo o vir à fala da possibilidade de uma nova e

outra ciência do ser. Isto significa que quanto mais pessoal, íntima e religiosa for uma

experiência, tanto mais deve estar impregnada da clarividência do modo de ser de uma

nova e outra ontologia, da ciência do ser.

Por isso, essa nova e outra ciência do ser22 diz: quanto mais pessoal, íntimo e religioso

for o ente, tanto mais intensidade, profundidade, vastidão e pregnância deve possuir do

ser. E, como foi dito acima, segundo os medievais, o Ente que por excelência é pessoa

absolutamente, a tal ponto de ser três pessoas numa só natureza ou essência, de ser o

amor entranhado na ternura e vigor da doação e recepção mútua de si na benevolência

e comunhão, é o Deus Uno e Trino, o Deus do Amor do Encontro e do Encontro do

Amor da Vida Divina, no abismo da intimidade do Mistério da Encarnação. Tudo isso

quer dizer, por sua vez, que todo o Seguimento de Jesus Cristo Crucificado, vivido

corpo a corpo, em todas as dimensões do ser, até a consumação de total identificação

com o Crucificado, ou numa palavra a Vida de Pobreza, foi para Francisco o seu único

e grande empenho, i. é, studium, os seus estudos na aprendizagem dessa suprema, nova

e outra ciência do ser do “Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar” (RM 10).

4 A questão dos estudos, hoje

O sentido do ser, assim compreendido, coincide com Jesus Cristo, o Crucificado “em

pessoa”. Jesus Cristo e o seu seguimento com tudo que esse seguimento implica se nos

revela como abertura e o aberto de uma nova dimensão do ser no seu historiar-se, no seu

destinar-se como ser da vida humana, portanto, como existencialidade da existência. Na

perspectiva de uma tal compreensão do ser por excelência, onde o ser se identifica tout

court com o Ente único, singular e supremo, que não é outra realidade do que o Amor

do Encontro e o Encontro do Amor, a SS. Trindade no Mistério da Encarnação, portanto

o Amor de Deus e Deus de Amor temporalizado e de-finido como este, concreto

indivíduo-pessoa Jesus Cristo. Portanto, na mira de uma tal ciência do ser do Amor de

Deus, o conceito, i. é, a concepção do que seja pessoal, se liberta inteiramente do

22 Na Idade Média, é na sua mística cristã que encontramos a autêntica teologia. E na mística medieval, não temática mas operativamente atuante de modo incoativo, está essa nova e outra ontologia existencial.

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binômio subjetivo-objetivo, individual-coletivo, para se estruturar livremente como

coincidentia oppositorum23 da singular totalidade, denominada pelos medievais de

universal. Por isso, em vez de totalidade essencial, substancial, em vez de concentração

ou intensificação ou qualificação e plenitude do ser, podemos também dizer totalidade

universal24. Universal diz vertido, con-vertido, virado de volta, centrado ao uno. Isto é:

convergência do e para o uno, recolhimento e expansão, acolhimento e doação do e no

uno, a saber, na absoluta concentração do ser, i. é, do ser do Deus de Amor Uno e Trino,

na contração do Mistério da Encarnação como Jesus Cristo, o Crucificado: i. é, segundo

São Francisco, a Senhora Pobreza.

Assim questionado, portanto, o problema dos estudos na origem e no primeiro século

do franciscanismo não é mais a diferença e contraposição existentes entre o pessoal e

particular da experiência individual de Francisco e o comum, geral e coletivo da Ordem

em evolução e crescimento na adaptação às necessidades dos tempos posteriores25. É,

antes, uma corajosa, imensa e profunda convocação universal, uma chamada, um

convite para a tarefa decisiva de cada um, e de cada comunidade, dos seguidores

vindouros de Jesus Cristo. É, pois, a proposta de um a priori, cuja analítica é a

diligente ternura da precisão de uma criatividade fontal que brota continuamente,

sempre, i. é, cada vez nova e de novo, do abismo do Mistério do Deus feito Finitude da

Encarnação. Uma tal analítica liquida e dissolve todo e qualquer bloqueio,

endurecimento ou dogmatismo do saber entificante factual, acordando, cordializando o

nosso saber para o gosto e a sensibilidade, para o sabor, para o rigor cordial da generosa

afeição à síntese encarnada. E reduz, i. é, reconduz todos os entes, i. é, cada ente, à auto-

identidade, ao cada vez seu, à própria finitude de si agraciada, sob o céu aberto da

23 Coincidentia oppositorum é expressão usada por Nicolau de Cusa para indicar um dos existenciais mais importantes da sua ontologia que possui uma grande afinidade com a ontologia fenomenológica de hoje.

24 Católico ou na grafia antiga cathólico vem do grego kata olou, i. é, segundo ou seguindo o todo.

25 Esse problema, se São Francisco queria ou não, ou apenas tolerou os estudos acadêmicos, se referido ao fato como problema, não nos causa grande dificuldade, pois, hoje, historicamente estamos numa epocalidade bem diferente à de Francisco e seus primeiros companheiros. E a necessidade dos estudos acadêmicos para servir à Igreja e à humanidade sempre esteve presente como uma exigência positiva na evolução da Ordem franciscana. Se deixarmos um tanto de lado reverência e piedade para com nosso pai São Francisco (i. é. para os franciscanos), que, aliás pode não passar de um culto de personalidade, que importância tem, se Francisco, na Idade Média longínqua, quis ou não ou apenas tolerou os estudos acadêmicos? Mas é uma outra coisa, é uma questão sempre atual e premente, colocar a questão do sentido do ser oculto no relacionamento de Francisco com os estudos acadêmicos, pois ali pode estar esquecida a questão da causa essencial do espírito franciscano, que em São Francisco recebeu o nome de Senhora Pobreza, i. é. Jesus Cristo, o Crucificado e o seu Seguimento.

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imensidão, profundidade e originariedade do surgimento, da gênesis da existência, a

saber, da liberdade da graça, estruturante do mundo, da disponibilidade generosa,

expedita de uma vida inteiramente devotada, engajada no empenho, i. é, no studium,

nos estudos, no inter-esse da busca que sabe à sabedoria do Pobre de Assis.

Se agora, retomarmos os textos-fonte, citados por Gratien de Paris, quando no item III,

3 expôs as idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência, e condições sob as

quais Francisco permitiu os estudos acadêmicos na Ordem, haveremos de perceber que

os conceitos como apostolado do exemplo, e a sua primazia sobre o apostolado da fala,

o trabalho manual corporal, o cuidado dos leprosos, a mendicância, a paciência, a

humildade, a simplicidade, a cruz, a pobreza etc., indicam lugares, onde se encontram

fatos, quais pequenas fendas sobre gigantesca superfície opaca de um paredão, através

das quais, se pode entrever vislumbres da “realidade” abissal de uma nova ciência que

nos introduz para dentro do coração de todas as coisas, cuja razão exige uma nova

inteligência, um novo intelecto. E segundo Beato Egídio de Assis, fiel companheiro de

São Francisco e grande mestre da Ciência Útil26, esse novo intelecto deve estar

cordialmente disposto a querer saber muito, para poder dever aprender muito,

humilhando-se a si mesmo, abaixando a cabeça até que o ventre toque no chão. Nessa

busca, se o nosso empenho, o studium se perfizer, se se fizer, se vier a si, na jovialidade

generosa dessa luta “full contact”, corpo a corpo com a coisa ela mesma do Espírito do

Senhor e do seu santo modo de operar”, então o Senhor nos dará toda a Ciência, toda a

Sabedoria do Belo Amor.

A cientificidade dessa Ciência Útil, formulada como humilhar-se muito27, abaixando a

cabeça, até que o ventre toque no chão, para receber em cheio, através de todas as

26 DEg, Doutrina e Ditos de Frei Egídio de Assis, cap. 13, Da ciência útil e inútil; cap. 12: Da Santa Cautela espiritual. Em falando da necessidade da precisão, em manter-se límpido na questão, i. é, na busca da ciência útil do Seguimento de Jesus Cristo, Crucificado, diz: “Oh! Que grande sapiência é saber fazer e operar estas coisas! Mas porque estas são coisas grandes e altíssimas apenas são concedidas por Deus a poucas pessoas. Mas quem verdadeiramente estudasse bem todas as preditas coisas e as pusesse em prática, digo que não precisaria ir a Bolonha nem a Paris para aprender outra teologia”. Em vez de ler essas palavras de Egídio como fechamento fundamentalista de um analfabeto, inculto, ressentido contra os estudos universitários, talvez hoje pudéssemos suspeitar se ali não há aceno de uma outra e nova ciência, toda própria com suas implicações sui generis.

27 Aqui, humilhar-se nada tem a ver com o masoquismo ou complexo de inferioridade, em ser pisado e sofrer na frustração e tristeza, portanto com o ensimesmamento do eu ferido e ressentido da vida. Tem tudo a ver com estar firmemente enraizado na finitude da Terra dos Homens, na acolhida corajosa e cordial da graça de poder ser como Jesus Cristo, o Deus Encarnado.

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coisas, a evidência e claridade da epifania e diafania do Deus Uno e Trino no Amor de

Encontro, encarnadas como a obra-prima Jesus Cristo, o Crucificado, é o nosso

empenho, o nosso studium, os estudos na Ordem dos franciscanos.

E assim o que era um problema do passado medieval, se torna hoje uma tarefa atual de

busca enraizada e radical, uma questão. Uma busca cuja emissão e missão é o envio, o

apostolado28, necessariamente a modo do exemplo, a saber, práxis29, uma luta corpo a

corpo – sem simulacro de apenas demonstração, do fazer de conta que, do show de

erudição fútil ou do saber geral, informativo formal; portanto, um lançar-se na práxis de

experiência, vivida, vivificante, não na “destilada” teorética da generalização neutra

indiferente em classificações e informações processadas dentro de padrões já há tempo

sorrateiramente preestabelecidos e congelados. Trata-se, pois, da questão, da busca do

saber real e essencial, da autêntica práxis da teoria, disposta mortalmente à verdade,

cuja jovialidade brota continuamente, na atenta e vigilante alerta cordial, da con-

templação30 do “Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar”.

CONCLUSÃO

Se, no problema dos estudos na origem e no primeiro século do franciscanismo, essa

confusa reflexão, apesar de tudo, despertar em nós o interesse pela questão do ser dos

estudos em São Francisco, haveremos de perceber que com essa questão estamos sendo

tocados pela inquietação que se oculta no âmago da nossa atualidade, pulsando no

subterrâneo dos nossos cotidianos óbvios e usuais, tanto nos afazeres da vida como nos

empenhos e desempenhos das ciências; inquietação epocal que nos faz pensar na

28 Apóstolo, apostolado, apostolicidade vem do grego apostéllein que significa enviar, deslanchar.

29 Práksis, práxis vem do verbo práttein que significa agir, mas no sentido de criar, fazer obra, trazer à luz obra-prima. O modo de ser da teoria, em grego theoreîn, significa divisar o vislumbre da incandescência do transluzir da realidade. Nesse sentido, a práxis, a prática não é outra coisa do que o árduo labutar, venturoso, artesanal, corpo a corpo, usando as próprias mãos, em deixar ser a coisa ela mesma na clara lucidez da alegria de ser. Os medievais denominavam uma tal ação de contemplação.

30 Contemplação, em latim contemplatio, é um conceito que se refere à theoria, em grego. O verbo theorein significa ver o aspecto (horáo = ver; théa = aspecto) de uma coisa. Só que hoje quando dizemos aspecto pensamos na aparência exterior de uma coisa. Ao passo que aspecto aqui no sentido de théa se refere ao esplendor, à incandescência de uma coisa. Nesse sentido teoria da contemplatio não se opõe à práxis nem à vida. Refere-se à disposição de ser em deixar-se tocar, deixar-se atingir pelo esplendor, pela incandescência da grandeza, beleza e profundidade abissal do que nos vem de encontro. Na Idade Média uma outra palavra para dizer contemplatio era speculatio, i. é, a especulação.

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dominância da factualidade nas abordagens que fazemos das coisas do espírito na

espiritualidade. Por que reduzimos as nossas buscas à averiguação dos fatos em acribia

e zelo do asseguramento da certeza? Por que para nós, hoje, verdade significa certeza

dos fatos? Por que verdade não mais pode ser um fascinante risco de uma intrépida

aventura apaixonada. Por que não somos mais capazes de nos ex-por, dispostos ao

inesperado, ao abismo do não saber agraciado, na acolhida do vislumbre da nova

clareira do saber, da docta ignorância (NICOLAU DE CUSA, 2002)? Por que se nivelou a

verdade, a tal ponto de crescer em toda parte a aridez baldia do sentido do ser, em cuja

secura e vazio, ser não diz nem sequer apenas ocorrência factual de algo, nem sequer

nos mobiliza a nos indagarmos se não está acontecendo algo de estranho na nossa

compreensão do sentido do ser na sua totalidade? Esse crescente campo da aridez baldia

da factualidade no tempo de indigência do espírito, não poderia ocultar, no subterrâneo

do seu esquecimento do esquecimento do sentido do ser, uma insinuação de um novo

hálito que nos possa preparar para um puro deserto, cujo rigor de precisão interrogativo

nos conduza ao ermo da pobreza do saber, cada vez mais sóbria, silenciosa, simples e

atenta, qual pura ausculta dos vigias de uma nova vigília, a preparar a nasciva

disposição da alegria da espera inesperada...? A questão dos estudos na origem do

franciscanismo… A perfeita alegria nos estudos do Seguimento de Jesus Cristo,

Crucificado31… O zelo e o rigor, a precisão da pura ausculta do ser da Pobreza de São

Francisco de Assis: A Idade Média da Contemplação e Mística e simultaneamente o

saber e sabor do deserto no nihilismo do ser na dominação da factualidade… A

globalização do positivismo a modo de ciências naturais, físico-matemáticas32: a

espera cada vez mais esquecida, retraída do aceno mudo de um “outro pensar”?!...

Deixar-se tocar profundamente pela inquietação da busca angusta na indigência do

tempo da espera, viver intensamente o estreito dos riscos e perigos da pobreza agraciada

na dor e na alegria da passagem... não estaria, aqui, a in-sistência da existência hodierna

franciscana, inserida na questão dos estudos na Ordem de São Francisco “medieval”

na ternura e sobriedade, na simplicidade e precisão de uma nova jovialidade?

31 Cf. I Fioretti de São Francisco de Assis, cap. 8.

32 A predominância da certeza na abordagem de todas as coisas a partir do seguro da factualidade dos fatos não seria um modo de ser deficiente do sentido do ser que atua no fundo das assim chamadas ciências naturais ou exatas no seu modo de ser físico-matemático?

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Diz, pois, Hölderlin, o poeta-pensador, o vigia avançado do tempo da indigência: Pouco

saber, mas muita jovialidade, é dada a mortais (IV, 240)33. E, já dizia Heráclito, o

obscuro, no fragmento 118 dos pré-socráticos, cujo eco derradeiro somos nós hoje, os

factuais: Ó alma seca, a mais sábia e a melhor (Áue psykhé sophotáte kai aríste).

33 A tradução é do professor Emanuel Carneiro Leão. O texto alemão diz: Zu wissen wenig, aber der Freude viel, Ist Sterblichen gegeben. E traduzindo literalmente: A saber, pouco, mas muito, da alegria, é dada a mortais.

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Abreviaturas Ad - Admoestações RB - Regra Bulada RNB - Regra Não-Bulada Test. - Testamento 1C - Tomás de Celano: Vida I 2C - Tomás de Celano: Vida II AP - Anônimo Perusino LP - Legenda Perusina 3S - Legenda dos Três Companheiros LM - S. Boaventura: Legenda Maior Lm - S. Boaventura: Legenda Menor Fior - I Fioretti DEg - Doutrina e Ditos de Frei Egídio

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O PROJETO DE VIDA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS E A EDUCAÇÃO PARA A VIDA INTEGRAL João Mannes, OFM*

Neste artigo34, temos por objetivo apresentar alguns elementos que constituem o projeto de vida de São Francisco de Assis e, à sua luz, clarear o nosso projeto como professores-educadores no mundo hodierno. O tempo presente urge a superação dos aspectos negativos da visão moderna do mundo, inclusive no seio das organizações educacionais, a partir da vivência dos valores que fizeram de São Francisco um modelo universal de vida integrada com Deus, consigo mesmo e com todas as criaturas.

1 O projeto da existência humana

A existência humana é essencialmente um projeto. Porém, projeto não entendido apenas como intenção de fazer algo no futuro ou como descrição escrita e detalhada de um empreendimento a ser realizado. O termo deriva do latim projectus, que significa ação de lançar para frente, estar lançado para fora de si. A existência como projeto é, portanto, uma existência lançada para fora de si mesma, “é diligência de busca e procura do que não se tem para melhor ser o que já se tem: a vida” (BUZZI, 1977, p. 11). Projeto de vida é, pois, algo que queremos ser e que, de certa forma, já somos. Como, por exemplo, o pai de família que tem como projeto de vida ser um bom pai, ou como a ginasta Daiane dos Santos que planeja ser a líder do ranking mundial em ginástica no solo. Assim sendo, a existência humana não é estática, previamente determinada e acabada, mas é empenho de “ter que ser”; é empenho de sempre de novo termos de nos responsabilizar por aquilo que somos, fazemos e queremos ser. A palavra existência, em sua raiz etimológica latina, exprime justamente a dinâmica de continuamente sair de si (ex) para, inteiramente descentrado de si mesmo, melhor ser (sistere) o que assiduamente procuramos.

Um outro termo que exprime muito bem o dinamismo próprio da existência humana é experiência. Porém, experiência não como experimentum (experimento científico), mas na sua acepção originária (GADAMER, 1998, p. 512). O termo experiência, do latim “ex-perior” ou “ex-per-iri”, compreende um vir de, um passar através de, passar por uma prova. Também o étimo grego para experiência, “peirao” ou “peiraomai”, exprime o ato de passar através de um grande perigo (situação-limite de vida) no qual é colocada radicalmente em questão a totalidade da existência humana (RIPANTI, 1993, p. 106). Em outras palavras, são as situações-limite da vida que abrem a nossa consciência para novos e inusitados horizontes e que aprofundam e redimensionam qualitativamente a totalidade da existência humana (GADAMER, 1998, p. 525-527).

* Faculdade de Filosofia São Boaventura 34 Este artigo originou-se de uma palestra, proferida pelo autor aos professores do Ensino Médio do Colégio Bom Jesus de Curitiba, PR, em fevereiro de 2004.

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Experiência não é, pois, um fazer do homem entre outros, não é uma vivência entre outras no interior da consciência humana, mas indica antes a viagem de nossa consciência, que sempre de novo abre-se para uma nova consciência. A consciência humana não é estática, mas está num contínuo vir a ser. Para usar uma expressão do livro VIII das Confissões de Santo Agostinho, experiência é parturitio novae vitae: geração de nova vida. Este parto está sempre acontecendo ao longo da existência humana.

Portanto, a dinâmica de continuamente renascer é própria do homem que se lança na busca do sentido da vida, forjando, assim e aos poucos, sua própria identidade. E, cabe a cada ser humano, individualmente, a decisão e a tarefa de levar à plenitude o projeto de sua existência. Cada um, como principal protagonista de sua história, deve tomar em suas mãos seu próprio desenvolvimento e destino. Porém, podemos nos espelhar em homens como São Francisco de Assis, que realizaram de forma arquetípica o projeto de suas vidas.

2 O projeto de vida de São Francisco

Francisco, filho de um rico negociante de tecidos, converteu-se ao Evangelho depois de uma juventude um pouco desvairada. O seu projeto de vida foi o de tornar-se pobre e livre no seguimento de Jesus Cristo; o irmão universal, menor, alegre, cortês, serviçal, misericordioso e amante incondicional de Deus e de todas as criaturas (LELOUP; BOFF, 1999, p. 74-85). Ora, detenhamo-nos brevemente em cada um destes elementos que constituem a experiência humana e religiosa de São Francisco, a partir de sua própria vida e Escritos.

2.1 Pobreza e liberdade

São Francisco não tinha o conceito capitalista e economicista da pobreza. Para nós, que temos como referência o ter, o pobre é aquele que não tem e o rico é aquele que tem muito. Na lógica de Francisco, porém, a pobreza não se confunde com a privação. A privação é insatisfação que busca superar o vácuo de sua indigência, desencadeando um sistema de mais ter e mais possuir. A pobreza brota do vigor da própria doação. Por conseguinte, o que constitui a pobreza é a capacidade de dar e dar-se inteira e gratuitamente (BUZZI, 1977, p. 106-107).

No modo de ser de Francisco de Assis, pobreza é colocar-se em inteira disponibilidade, sem interesses, sem nada que se interponha entre nós e os outros, para ter um contato de coração a coração, de olho a olho com os semelhantes. O desprendimento total, longe de ser um empobrecimento de sua verdadeira personalidade, abria nele um espaço cada vez maior de acolhimento, uma capacidade crescente de fraternidade e de paz. “Não o poder, que quer a posse e o domínio, mas a pobreza, que é abnegação, promove a solidariedade e a paz” (BUZZI, 1977, p. 101).

2.2 São Francisco, irmão universal

São Francisco chama de irmãs as cotovias (2 Cel 151, 200), as andorinhas (LM 12, 4), a cigarra (2 Cel 130, 171) e as flores (LP 65, 100). Do mesmo modo,

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chama de irmão o leproso, o infiel, os ladrões e até mesmo as suas enfermidades (2 Cel 161, 212). Este desejo de presença fraterna no mundo encontra a sua expressão máxima no Cântico do Irmão Sol ou Cântico das Criaturas. Este Cântico, que Francisco compôs no ocaso de sua vida, é um grande impulso de louvor a Deus por todas as suas criaturas e acolhe a todas como irmãos e irmãs: irmão sol, irmã lua, irmã terra, irmão vento, irmã água e irmão fogo (Cant 3-9). Acolhe inclusive a morte como irmã: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal, da qual homem algum pode escapar” (Cant 12). Francisco se eleva até Deus no louvor cósmico do Cântico das Criaturas, vivendo em profundidade a dimensão de doçura, de cortesia e de ternura, de amor e de afabilidade, de abraço e de carinho (LECLERC, 1999, p. 7-15).

2.3 Atitude de minoridade e de serviço

Francisco é chamado de irmão menor porque se coloca diante das pessoas, dos animais e das plantas não como senhor, mas com a atitude básica de serviço. O termo “menor” elimina qualquer suspeita de superioridade e de dominação no servir. “Aquele que quiser ser o maior entre eles (os irmãos), dizia São Francisco, seja o ministro e servo deles” (Rnb 5, 14). E, “os que estão constituídos sobre os outros não se vangloriem dessa superioridade mais do que se estivessem encarregados de lavar os pés aos irmãos” (Adm 4, 2).

O Pobre de Assis, ao servir às criaturas, serve ao Criador, pois, vislumbra em todas as coisas sua presença. O mundo, para Francisco, é como um semblante de Deus. Enquanto nós, na noite de Natal, contemplamos o Menino-Deus "envolto em panos e deitado num presépio", na experiência religioso-mística de Francisco a criação inteira torna-se "berço divino" (LECLERC, 2000, p. 104-105). Razão pela qual, servir as obras de Deus e servir a Deus era, para ele, uma única e mesma coisa.

2.4 Disposição de máxima alegria

Francisco descobriu a verdadeira alegria no seguimento de Jesus Cristo. Como escreve Celano, “depois de ter invocado mais completamente a misericórdia divina, mostrou-lhe o Senhor o que convinha fazer. A partir de então, ficou tão cheio de alegria, que não cabia mais em si e, mesmo sem querer, deixou escapar alguma coisa aos ouvidos dos outros” (1 Cel 3, 7). E recomenda aos irmãos que não se mostrem “em seu exterior como tristes e sombrios hipócritas. Mas antes comportem-se como gente que se alegra no Senhor, satisfeitos e amáveis, como convém” (Rnb 7, 15).

Cheio de “alegria espiritual” (2 Cel 88, 125), Francisco faz todas as coisas com “máxima alegria” (2 Cel 181), ou seja, coloca-se todo inteiro, de corpo e alma, com unção e devoção, em tudo aquilo que faz.

2.5 Misericórdia e compaixão

O Pobre de Assis extasia-se diante da inefável misericórdia de Deus (1 Cel 11, 26), que se manifesta em plenitude ao salvar-nos por meio de Jesus Cristo, na Cruz. Por isso, à medida que progride no seguimento de Jesus Cristo,

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Francisco é revestido de misericórdia divina e a anuncia com a palavra e o testemunho. De fato, a misericórdia divina está na origem do amor de Francisco para com os pobres e os leprosos: “e eu tive misericórdia com eles” (1 Cel 7, 17). Escreve São Boaventura: “a caridade de Cristo era infusa em sua alma (...). Seu coração se comovia de piedade à vista dos pobres e doentes. E quando não podia socorrê-los materialmente, procurava ao menos mostrar-lhes seu amor” (LM 8, 5).

Também em relação aos que pecam Francisco é muito mais misericordioso do que justo. Enquanto a justiça retribui a cada um conforme a sua obra, a misericórdia é sem limites. Enquanto a justiça pune e enquadra as pessoas dentro de medidas pré-estabelecidas, a misericórdia abre o seu coração e acolhe indistintamente a todos. A misericórdia realiza o mandato de Jesus, na versão do Evangelho de São Lucas, de amar inclusive os ingratos e maus. Não diz para tolerá-los e, sim, para amá-los (Ct 5, 7, e 10).

Enfim, Francisco, tendo apreendido do Senhor, que “é rico em misericórdia e compaixão” (Tg 5,11), “sabia ser enfermo com os enfermos, aflito com os aflitos” (Ltc 14, 59). O seu coração é, pois, misericordioso e compassivo. Compaixão, no sentido etimológico da palavra “compassio”, significa deixar-se afetar pelo sofrimento do outro, alegrar-se junto, chorar junto, construir e crescer junto. Esta compaixão encontrou seu paroxismo na experiência mística de Francisco no Monte Alverne, dois anos antes da sua morte (LM 8, 1).

2.6 Amor a Deus e às criaturas

A existência de São Francisco se consuma no amor incondicional a Deus e às criaturas. Porém, somente quem mergulha nos abismos da pobreza e da liberdade pode amar a Deus e às criaturas com amor divino. Somente livres e despojados de tudo podemos amar, pois, o amor não se apropria de nada. O amor é o ato mais supremo da liberdade. O coração que ama já não vive em si, mas naquele que constitui o objeto do seu amor e vislumbra o amado em todas as coisas. Isto quer dizer que na base da cosmovisão mística de São Francisco subjaz uma intensa e profunda experiência de encontro de amor com Deus (MANNES, 2002, p. 125-129).

Numa antiga Legenda sobre o amor universal de São Francisco, lê-se o seguinte:

“Um dia disse Francisco ao Senhor Deus, entre lágrimas: Eu amo o sol e as estrelas, Amo Clara e suas irmãs, Amo os corações dos homens E todas as coisas belas. Senhor, perdoa-me porque só a Ti eu deveria amar. Sorrindo o Senhor Deus lhe respondeu: Eu também amo o sol e as estrelas Amo Clara e suas irmãs, Amo os corações dos homens E todas as coisas belas. Meu caro Francisco, Não precisas chorar Pois tudo isso eu amo também” (BOFF, 2000, p. 326).

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A liberdade e o amor de Francisco é sem limites. Por isso ele parece não caber inteiramente dentro de um convento fechado. No Sacrum commercium, obra que pertence à literatura franciscana primitiva, lê-se que o claustro de Francisco e de seus irmãos não é um convento fechado que protege do mundo. O claustro é o mundo inteiro, onde cada criatura de Deus tem sua morada (Scom, 63). Assim, o Santo de Assis inaugura uma presença verdadeiramente nova ao mundo. Referindo-se a esta singularidade de São Francisco escreve Éloi Leclerc: "O que me atraía nele (em Francisco) de modo especial não era o fato de ser o fundador da Ordem, nem o pregador, nem o asceta ou o modelo de virtudes. Tudo isto eu podia encontrar em outros santos" (LECLERC, 2000, p. 17). Ele se caracterizava e se distinguia pela sua "nova qualidade de presença ao mundo" (LECLERC, 2000, p. 18). Uma presença criadora de inumeráveis fraternidades nas quais os mais humildes reencontravam seu lugar e sua dignidade.

Portanto, foi este o grande projeto de vida de São Francisco: amar a Deus acima de tudo e amar a todas as criaturas porque são filhos e filhas de Deus e porque de Deus Altíssimo são sinais. O amor renuncia a dominar e a instrumentalizar as pessoas e as coisas para servi-las com grande humildade. A humildade é uma atitude pela qual o ser humano se coloca no chão, no húmus da terra, junto às criaturas. Não se trata mais de elevar-se acima dos outros, mas de estar com, de fraternizar com (LECLERC, 2000, p. 56-57).

Enfim, o projeto de vida de Francisco foi o de ser e de vir-a-ser um irmão obediente a Deus, misericordioso, compassivo, alegre, livre, cortês, serviçal e universal. Depois que o Senhor revelou o que lhe convinha fazer, ele não quis outra coisa no mundo senão seguir Jesus Cristo, tornar-se um “alter Christus”, plenitude da integração humana e divina.

E nós nos perguntamos: qual é a mensagem de São Francisco para nós professores/educadores na complexidade do mundo atual? Antes de esboçarmos uma resposta à esta questão, temos que conhecer melhor a nós mesmos e o mundo que habitamos.

3 Visão moderna do mundo e suas implicações na escola

Na configuração histórica da modernidade não mais impera uma visão cristocêntrica do mundo, mas antropocêntrica, racionalista e fragmentada. Em outras palavras, a modernidade, que tem em Renè Descartes (1596-1650) sua maior referência, posicionou o homem como senhor de si mesmo e da natureza, a quem esta deveria servir. É inegável que a absolutização da deusa razão, em detrimento de outras dimensões do ser humano, provocou alterações substanciais nas relações éticas do homem consigo mesmo, com o outro, com a natureza e com o sagrado (CAPRA, 1996, p. 25).

Outro fenômeno que vem afetando profundamente nossas formas de viver e conviver, nossos modos de ser e de fazer é a globalização do mundo, ou seja, as interdependências econômicas, políticas, culturais, sociais e tecnológicas (IANNI, 1999, p. 27). O mundo hoje funciona em rede. Redes de intercâmbios, de cooperações, mas também redes de desigualdades, de intolerância e de violências, redes de drogas e de desemprego. A globalização pode conduzir à

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mais brutal exclusão e marginalização, se norteada simplesmente pelo critério do neoliberalismo e da competitividade (IANNI, 1999, p. 25).

Todavia, o que nos interessa no momento é enfatizar que a visão cartesiana do mundo, caracterizada pela predominância de uma excessiva racionalidade, tem suas implicações também nas organizações educacionais. De fato, percebe-se que a escola tende a absolutizar o aspecto cognitivo. O nível de competitividade e a preocupação com o mercado enfatizam uma educação cada vez mais técnica e intelectual, não se preocupando, com a mesma intensidade, com a dimensão afetiva, ética e transcendente do ser humano.

Hoje estamos questionando este unilateralismo nas escolas e universidades, como também compreendemos que já não podemos continuar cultivando os valores e crenças da racionalidade instrumental que vê as pessoas e as coisas como meios (instrumentos) para alcançar algum fim. Sabemos que, apesar das relevantes contribuições do desenvolvimento da ciência e das tecnologias atuais, a racionalidade científica não transformou o ser humano em ser mais humano, nem gerou uma sociedade mais justa, mais fraterna e mais feliz. Pelo contrário, transformou-nos em máquinas de produção e consumo e destruidores do meio ambiente (MORAES, 2003, p. 144-145). Ou seja, a relação do homem moderno com as pessoas e com a natureza não é de amor e de serviço, de respeito e de estima, mas de domínio, de posse e de desfrute.

4 Necessidade de um novo paradigma educacional

O tempo presente exige que se ultrapasse a atitude antropocêntrica e a racionalidade instrumental para uma nova visão de mundo, mais voltada para os aspectos qualitativos (ser) do que quantitativos (ter). Isto requer uma nova cultura, novas crenças e novos valores, enfim, requer uma nova consciência (LÜCK, 2001, p. 85-90). Também no âmbito das organizações educacionais requer-se uma consciência mais global e orgânica da realidade. Neste sentido, Maria Cândida de Moraes, em seu livro O paradigma educacional emergente (1997), problematiza a concepção cartesiana do mundo e a fragmentação das escolas e disciplinas em compartimentos estanques. Consciente da complexidade da realidade, ela repele uma visão fragmentada do mundo, que desconecta a escola e a vida, o corpo e o espírito (alma), o indivíduo e a sociedade, o passado, o presente e o futuro, a teoria e a prática, o sentir e o pensar, o ser e o fazer, Deus e o mundo.

É demonstrável cientificamente que o universo já não está somente fora de nós, mas dentro de cada um e que o nosso corpo é parte da terra, um sistema vivo que tem a sua própria vida e a sua própria história. Todos os seres do universo estão interconectados por uma rede invisível, da qual cada um de nós é apenas um de seus elos. Na verdade, participamos, cada um a seu modo, de um mesmo cântico universal, de uma grande sinfonia universal (MORAES, 2003, p. 151-152). A compreensão do universo como uma sinfonia, como um grande e belíssimo poema escrito por Deus, é muito cara ao exímio pensador franciscano São Boaventura.

Nenhum indivíduo ou coisa possui significado como entidade isolada. “Somos, ao mesmo tempo, indivíduos e unos com tudo o que é” (MORAES, 2003, p. 150).

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Por isso, hoje, mais do que nunca, urge uma pedagogia voltada para a formação integral do ser humano em vista da construção de um mundo mais humano, mais justo e fraterno. Pois, o mundo em que vivemos não existe já feito, predeterminado, independente de nós mesmos. Se o mundo em que vivemos é “assim ou assado” não é porque Deus assim o quer, mas porque nós o criamos desta forma. O mundo é em criação e transformação contínuas (VASCONCELLOS, 2002, p. 118-119).

Salta-nos aos olhos que hoje, numa outra configuração histórica, estamos redescobrindo o que São Francisco e outros pensadores franciscanos como São Boaventura, experimentaram no auge da Idade Média (século XIII). Ou seja, que tudo está interligado como numa teia. Para Francisco, a grande teia que unifica e inter-liga todas as diferenças é o próprio mistério divino, princípio único do universo, intimamente presente em suas criaturas. Por isso, o universo em sua unidade, bem como em sua diversidade, é um sacramento de Deus, uma “escada” que nos leva até o Criador (LM 9, 1). O universo criado é semelhante a uma família cujos elementos formam uma única fraternidade. Na verdade, são poucos os que, como Francisco, conseguem alcançar um estado de unidade tão profunda com Deus e com a natureza, a ponto de tornar-se modelo arquetípico para toda a humanidade, em todos os tempos.

4.1 A escola a serviço da vida

Conforme já tivemos a oportunidade de elucidar anteriormente, a existência humana é um projeto inacabado, e, como tal, uma experiência. Dentro desta linha de pensamento, o neurocientista chileno Humberto Maturana sustenta a tese de que a vida é um “processo de cognição” (MATURANA, 1999, p. 104), é um processo de contínua aprendizagem. E a escola, por sua vez, deve estar a serviço da vida. Assim compreendemos que ensinar é muito mais do que instruir, fornecer dados e informações. Ensinar é proporcionar experiências, é criar circunstâncias para que a aprendizagem aconteça (LIBANIO, 2002, p. 14).

Por conseguinte, aprendizagem não é mera aquisição de informações, mas é contínua transformação da nossa consciência, do nosso modo de ser e de fazer as coisas. Para evoluir na direção de uma civilização da convivialidade (BOFF, 2002, p. 30-32), além de aprender a conhecer e a pensar, aprender a fazer, devemos aprender a ser e a conviver com os outros a partir de valores fundamentais que garantam o espaço de uma autêntica comunhão de vida: amor justiça, paz, solidariedade, liberdade, humildade, tolerância e respeito à natureza. Provocar o aprendiz em todos estes âmbitos de aprendizagens, que constam no Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, é, por excelência, tarefa do educador (LIBANIO, 2002, p. 15).

4.2 Educação para a vida integral

A educação se confronta com a apaixonante tarefa de formar seres humanos. Todavia, formar seres humanos não tem a conotação de imposição externa e autoritária de uma “fôrma” ou de um modelo já pré-existente de homem e mulher. Na verdade, pensamos a formação como “processo educativo”. Processo vem do verbo “proceder” que, na sua origem latina, conota “avançar,

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ir para diante”. E o verbo “educar” (educare, educere), muito mais do que conduzir alguém para determinado objetivo usando de artifícios externos, traduz a ação de “tirar para fora”, “trazer à luz” aquilo que já existe, de certa maneira, dentro de cada pessoa humana. Educar é descobrir, é desvelar, é fazer aflorar todas as potencialidades que Deus escondeu no íntimo de todo ser humano. Nesta perspectiva, educação inclui tudo o que nós fazemos e o que os outros fazem por nós, com o fim específico de aproximar-nos da perfeição de nossa natureza. Assim sendo, a tarefa da educação assemelha-se à “maiêutica” socrática, ou seja, ao ofício da parteira – maieia –, que permite nascer a criança ainda velada no seio materno (LIBANIO, 2002, p. 11-14).

O ser humano, por natureza, quer viver em comunidades, em sociedades e culturas que valorizem o cuidar uns dos outros. Por conseguinte, educar a pessoa humana para a vida integral é educá-la para a autêntica convivência que requer o resgate da ética, ou seja, a vivência dos valores humanos universalmente aceitos e que, conforme já demonstramos, nortearam a existência de São Francisco. O amor é a forma suprema de convivência. Amor entendido como desprendimento e doação total de si mesmo, como modo cordial, terno e maternal de relacionar-se com o outro como alteridade (BOFF, 2002, p. 49-50).

E, sendo o amor a expressão máxima da vida humana, a competição, a rejeição, a raiva, o ódio e a indiferença negam o outro e repugnam à nossa própria humanidade.

O processo educativo, na perspectiva acima anunciada, não privilegia apenas o aspecto cognitivo, mas recoloca a totalidade da vida humana no centro, ajuda o ser humano a desenvolver-se plena e sadiamente, aprimorando todas as suas potencialidades e capacidades: física, intelectual, moral, afetiva, social e religiosa. Muitos desequilíbrios emocionais e psicológicos decorrem da repressão de uma destas dimensões. Por exemplo, não podemos ignorar que no homem habita uma semente, um germe divino que o impele para o Transcendente.

A missão do professor/educador não se restringe, portanto, à transmissão de informações e conhecimentos, mas consiste em conduzir o aprendiz à realização plena de todas as suas potencialidades. Dentre estas, a formação do caráter das crianças e dos jovens é um aspecto da educação que deve ser considerado mais importante do que a instrução utilitária. Porém, isto requer, por parte dos mestres, a vivência de valores fundamentais que garantam uma autêntica convivência humana nos ambientes de aprendizagem. Os verdadeiros mestres não apenas ensinam o que sabem, mas vivem intensa e coerentemente, e amam tudo o que fazem. Eles são fontes inesgotáveis de amor e de fraternidade. Uma pedagogia vivida é capaz de transmitir valores que incidem mais eficazmente sobre a personalidade do educando.

Este pensamento está em perfeita sintonia com o pensamento da Escola Franciscana que não desconecta o amor e o conhecimento, a ciência e a sabedoria ou a santidade de vida. Francisco não é, por princípio, contrário aos estudos da ciência, mas, conforme narra São Boaventura na Legenda Maior, agrada-lhe muito o fato de ver os irmãos “não estudarem unicamente para

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saber como falar, mas para pôr em prática primeiro aquilo que tiverem aprendido e, depois de terem posto em prática, para ensinar aos outros aquilo que eles devem fazer” (LM 11, 1).

Enfim, evocamos, no presente ensaio, o projeto de vida de São Francisco, porque ele é justamente qualificado como educador exemplar e como “mestre de vida integral” (ZAVALLONI, 1999, p. 23-24). Pois somente podemos dar e partilhar daquilo que temos e somos.

Considerações finais

À guisa de considerações finais gostaríamos de recordar alguns dos elementos que julgamos indispensáveis para superar os aspectos negativos da visão moderna do mundo e combater suas conseqüências mais funestas, sobretudo no âmbito das organizações educacionais:

• Devemos ser profundos conhecedores de nós mesmos, ou seja, de nossos valores, crenças, ações e pensamentos, de nossas formas de viver e conviver em sociedade, pois o mundo em que habitamos é reflexo de tudo o que nós somos e fazemos; é o espelho de nossas relações.

• Para que na modernidade se inaugure um novo modelo de relação do homem com Deus, consigo mesmo, com os seus semelhantes e com a natureza, é imprescindível redimensionar a nossa existência a partir do cultivo dos valores que fizeram de São Francisco um modelo de homem bem integrado para toda a humanidade, em todos os tempos.

• O professor/educador tem uma visão global e orgânica da realidade (Deus, Homem e Mundo), e é um mestre de vida integral. No projeto de sua existência, alia ciência (conhecimentos) e vida virtuosa, conforme o axioma franciscano: “Um homem tanto possui da ciência, quanto aquilo que na vida põe em prática” (LP 74).

• O tempo presente impele-nos a pensar uma educação para a vida integral. Por isso, a principal função do professor hoje não é informar, mas formar/educar o ser humano em todas as suas dimensões: intelectual, afetiva, ética, social, religiosa, psicológica, lúdica etc.

• Enfim, parece que a grande obsessão de qualquer organização educacional no mundo hoje deva ser, à base de valores humanos universalmente reconhecidos, formar pessoas humanas e cidadãos criativos, críticos, atuantes e responsáveis pelo mundo que habitam.

Siglas e abreviações

Escritos de São Francisco Adm Admoestações Cant O Cântico do Irmão Sol Ct Carta a um ministro dos frades menores Rnb Regra Não-bulada da Ordem dos Frades Menores

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Test Testamento

Biografias 1 Cel Tomás de Celano, Vida I 2 Cel Tomás de Celano, Vida II LM São Boaventura, Legenda Maior LP Legenda Perusina Ltc Legenda dos Três Companheiros Com Sacrum commercium

REFERÊNCIAS

FONTES FRANCISCANAS. Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1982.

BOFF, Leonardo. Ecologia. Grito da terra, grito dos pobres. 3.ed. São Paulo: Ática, 2000.

BOFF, Leonardo. São Francisco de Assis. Ternura e vigor. 9.ed., Petrópolis: Vozes, 2002.

BUZZI, Arcângelo R. Itinerário. A clínica do humano. Petrópolis: Vozes, 1977.

CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1996.

GADAMER, Hans Georg. Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

IANNI, Octavio. A era da globalização. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1999.

LECLERC, Éloi. O cântico das criaturas ou os símbolos da união. Tradução de J.B. Michelotto. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

LECLERC, Éloi. O sol nasce em Assis. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2000.

LELOUP, Jean-Yves e BOFF, Leonardo. Terapeutas do deserto. De Filon de Alexandria e Francisco de Assis a Graf Durckheim. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

LIBANIO, JOÃO Batista. A arte de formar-se. 3.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

LÜCK, Heloísa (et al.). A escola participativa. O trabalho do gestor escolar. 5.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

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MANNES, João. O Transcendente imanente – A filosofia mística de São Boaventura. Petrópolis: Vozes, 2002.

MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

MORAES, Maria Cândida. Educar na biologia do amor e da solidariedade. Petrópolis: Vozes, 2003.

RIPANTI, Graziano. Parola e ascolto. Brescia, 1993.

VASCONSELLOS, Maria José Esteves de. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. Campinas: Papirus, 2002.

ZAVALLONI, Roberto. Pedagogia franciscana. Desenvolvimentos e perspectivas. Tradução de Celso Márcio Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1999.

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COMENTÁRIOS OS SENTIDOS INTERNOS NA FILOSOFIA DE IBN SĪNĀ (AVICENA): UM ESTUDO COMPARATIVO

Jamil Ibrahim ISKANDAR*

Numa obra de juventude denominada al-Mabda’ wa al-Ma‘ad35 (A Origem e o

Retorno), especificamente no cap. III do tratado III, Ibn Sina expõe uma teoria sobre

os sentidos internos e suas respectivas funções. No todo, este escrito apresenta o

pensamento metafísico deste pensador e descreve a questão da origem da alma humana

e seu retorno a Deus, semelhante ao esquema neoplatônico da saída e retorno (exitus et

reditus). No Alcorão também há menção sobre o retorno da alma humana ao Criador

nos seguintes termos: Ó alma que estás tranqüila, retorne ao teu Senhor, satisfeita e

comprazida! Entra entre os meus servos! Entra em meu paraíso! (Alcorão, 89; 27-30).

Numa obra posterior já de maturidade e talvez das mais conhecidas tanto no Oriente

como no Ocidente, chamada al-Shifa’ (A Cura), no Kitāb al Nafs (Livro da alma) Ibn

Sina também faz uma exposição sobre os sentidos internos. O propósito aqui é cotejar

os dois textos para verificar se houve ou não mudanças conceituais quanto nesta

temática de uma obra para outra. Iniciamos apresentando o capítulo de Al-Mabda’ wa

al-Ma‘ād e posteriormente o texto da Šhifā’.

CAPÍTULO III36

SOBRE A GERAÇÃO DOS ANIMAIS E AS FACULDADES DA ALMA

ANIMAL

Se os elementos se mesclarem de maneira acentuada quanto à proporção, estarão

preparados para receber a alma animal, porém, depois de cumprir a etapa da alma

* Pontifícia Universidade Católica do Paraná, E-mail – [email protected] 35 Esta obra foi editada por Abd Allāh Nurānī, em 1984, em Teerã, através do Institute of Islamic Stadies em colaboração com a MCGill-University e Tehran University, tendo sido traduzida pelo autor deste artigo para o Português. A obra completa é composta de três tratados. O tratado I foi editado pela Editora EDIPUCRS de Porto Alegre, Brasil, no ano de 1999. A obra com os três tratados será publicada em breve pela Editora Martins Fontes.

36 Este capítulo encontra-se às páginas 93 à 97 na obra citada.

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vegetal37. A alma animal é perfeição primeira de um corpo natural dotado de órgãos

cuja condição é sentir38 e se movimentar pela vontade.

As faculdades desta alma se dividem em faculdade de apreensão e faculdade motriz. A

faculdade de apreensão se divide em externa e interna. O princípio do movimento se

divide em aquilo que traz o útil, ou seja, a concupiscência para o deleite e em o que

rejeita o prejudicial, ou seja, a ira, que deseja a vingança. Suas ações se completam uma

pelo desejo e outra pela relação sexual.

Quanto às apreensões externas, correspondem aos cinco sentidos externos, porém, na

verdade, são mais que cinco porque o tato não é apenas uma só faculdade mas quatro

faculdades que se referem a um só tipo de contrários. Há um julgamento para o frio e o

quente, um julgamento para o terno e o sólido, um julgamento para o seco e o úmido e

um julgamento para o rugoso e o liso. No entanto, como estas faculdades estão

dispersas conjuntamente num só órgão exterior, presume-se que seja apenas uma

faculdade.

Quanto à faculdade interna: as faculdades dos animais completos são cinco ou seis. A

primeira delas é a faculdade da fantasia, chamada de sentido comum e recebe dos

sentidos os sensíveis. Esta faculdade é o verdadeiro sentido.

E a faculdade da imaginação, que conserva aquilo que recebe dos sentidos no que diz

respeito às formas sentidas. A diferença entre esta e a primeira (a faculdade de fantasia)

é que a primeira é uma faculdade receptiva e a (faculdade) de imaginação é a que

conserva. A faculdade que recebe e a que conserva não são uma só faculdade.

Acompanha a faculdade da imaginação uma outra faculdade quando está nas pessoas e

é empregada pelo intelecto: chama-se faculdade cogitativa; se estiver nos animais ou

nas pessoas e for empregada pela estimativa, será chamada faculdade imaginativa. A

diferença entre elas e a imaginação é que o que há no imaginado39 é obtido dos sentidos

e a (faculdade) imaginativa é composta, se distingue e começa a ser a partir das formas

37 Depois de cumprir a etapa da alma vegetal. De acordo com o exposto no capítulo anterior, isto significa que é depois de adquirir as faculdades de nutrição, de absorção, de crescimento entre outras.

38 Sentir. Relativo às sensações.

39 No imaginado. O conteúdo da imaginação

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não sentidas e que não serão sentidas absolutamente, como, por exemplo, um homem

voando ou uma pessoa metade homem metade árvore.

Acompanha esta faculdade, a faculdade estimativa que apreende dos sentidos noções

não sentidas. A indicação para isto é que há no animal uma faculdade igual a esta. Ao

ver o lobo, a ovelha fica com medo e foge, pois, sem dúvida, apreendeu a forma do

mesmo e seu vulto e apreendeu a sua inimizade e que (o lobo) é seu oponente. Ao ver o

ubre grande40 que lhe gerou sendo afetuoso com ela, vê, então, o vulto do mesmo e

apreende que lhe é adequado. O animal também distingue quem lhe é amistoso e

bondoso e, propositalmente, o segue; além disso, apreende seu oponente e o nocivo por

parte das pessoas fugindo das mesmas e tem um propósito mau em relação a elas. É

impossível apreender dos sentidos aquilo que não pode ser sentido ou imaginado. Resta,

então, que há no animal uma faculdade que apreende estas noções, além daquelas

sentidas que existem nos sentidos; esta faculdade chama-se faculdade estimativa.

Segue a esta faculdade uma outra (faculdade) que lhe é um depósito, chamada

(faculdade) que recorda e conserva. A relação de conservar e recordar para o que é

apreendido pela estimativa é a mesma relação da imaginação apreendida pelos sentidos.

A imaginação e a fantasia (situam-se) na parte dianteira do cérebro e seu princípio é o

coração; a que recorda e a que conserva (situam-se) na parte posterior do cérebro e seu

princípio é o coração.

A primeira coisa que é engendrada no animal é o coração, onde está o seu espírito41 e o

princípio de todas as faculdades anímicas e a partir do qual emanam faculdades para os

órgãos por meio dos quais completam-se as ações (das faculdades anímicas).

Quando o cérebro é engendrado, emanam para o mesmo as faculdades dos sentidos e do

movimento e, assim, completa-se o engendramento de sua primeira ação porque o

espírito adquire mais equilíbrio com o resfriamento do cérebro e as faculdades dos

sentidos e dos movimentos emanam do cérebro para os órgãos particulares,

completando-se assim o engendramento de sua segunda ação.

40 Ubre grande. É uma referência à ovelha mãe.

41 Espírito. Tradução da palavra rūh. Normalmente Avicena a utiliza como sinônimo de ‘aql, isto é, intelecto ou faculdade.

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Posto que o cérebro sozinho não é a visão, mesmo sendo o princípio da mesma, a visão

se completa por um outro órgão além do cérebro. Assim ocorre também com o coração.

Sozinho ele não é o órgão dos sentidos para o corpo todo, mesmo sendo o princípio dos

sentidos. O mesmo ocorre com o movimento. O cérebro é o órgão prioritário do

movimento e os nervos são seus órgãos secundários e o órgão do cérebro é o órgão

prioritário.

Assim como o cérebro transmite por um só nervo faculdades distintas, sendo algumas

sensíveis e outras motrizes; as sensíveis, algumas estão relacionadas ao paladar e outras

ao tato, também são transmitidas do coração ao cérebro, por uma só artéria, uma

faculdade de sentir e de movimento e (também é transmitida uma faculdade) para o

fígado, se houver carência na faculdade da nutrição.

Não se proíbe que sejam transmitidas por um só princípio, faculdades distintas por meio

de um órgão apenas e, posteriormente, se distribuam nos órgãos e se separem de modo

que cada órgão passe a pertencer a uma faculdade, de acordo com a definição do

mesmo. Assim, então, a artéria, mesmo sendo uma, transmite o espírito que sustenta os

princípios de todas as faculdades.

Se (a artéria) for dividida, eleva-se até o cérebro uma ramificação e, se descer uma

ramificação até o fígado, será penetrada por uma outra faculdade, pois as ramificações

dos nervos têm estas situações. Para cada órgão há uma faculdade nutritiva distinta

quanto à espécie em relação ao outro órgão. No entanto, o princípio de todas elas é

o fígado, além do coração, e o seu órgão é a jugular. Quem conhece anatomia, não

considera isto improvável.

O coração é o princípio de todas as faculdades porque a alma é una quanto à essência e

ocupa este coração. Logo, ele é princípio de muitas faculdades.

Entre o corpo e as faculdades, há um corpo delicado e quente, que é o primeiro a

sustentar todas estas faculdades e chama-se espírito, que começa a ser por meio de uma

delicada mescla de componentes e de acordo com o plano destas e segundo uma

proporção determinada.

No entanto, os órgãos começam a ser por uma mescla de componentes bastos. Se esta

faculdade fosse transmitida por intermédio de um corpo, a obstrução não impediria a

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sensação e o movimento. Se este corpo não fosse acentuadamente delicado, não

transmitiria, devido ao entrelaçamento deste nervo.

Este espírito, enquanto está no coração, chama-se espírito animalesco. Se porém, se

efetivasse no cérebro e fosse passivo, não seria chamado espírito anímico e seu lugar

seria nas profundezas42 e no interior do cérebro. Se se efetivasse no fígado, seria

chamado de espírito natural e o seu lugar seria no interior das jugulares.

Este espírito se efetiva no coração segundo duas mesclas43 na maioria dos animais:

uma mescla com uma proporção quente que é própria do masculino e, assim, a natureza

faz os órgão masculinos. Uma outra mescla com proporção menos quente que é própria

do feminino e, assim, a natureza faz os órgãos femininos.

Voltando à faculdade dos sentidos, dizemos: a audição e a visão foram criadas para a

apreensão do que está distante. O tato para o que está próximo; o olfato e o paladar, para

distinguir os alimentos. A (faculdade) da fantasia, para deduzir de algo sentido o que é

(este algo) sentido. Se, por exemplo, o olfato e o paladar forem insuficientes para

indicar um alimento, será indicado por intermédio da cor porque a primeira sensação

sabe que tal cor pertence a tal comida, se se reunirem a forma44 da cor e da comida

conjuntamente. No entanto, a imaginação não necessita a cada momento de experiência

para conservar isto; nem a estimativa (necessita disto) para apreender o que é

imprescindível quanto às noções sentidas. O recordo45 não necessita constantemente da

estimativa como experiência. A imaginativa (não necessita) da estimativa para recuperar

o que desapareceu do recordo ou para revelar o que não se recorda pela representação

de uma forma imaginada, composta e separada (em partes) para realização da noção

exigida (por esta forma); efetiva-se, porém, para o (recordo) a noção exigida.

42 Nas profundezas. Na parte baixa do cérebro.

43 Mesclas. Tradução de mizāj, a mescla que forma os elementos do corpo de um animal e mais especificamente o corpo humano, como, por exemplo, o seu temperamento.

44 Forma. Deve ser entendida como a afeição exterior de uma coisa.

45 Recordo. Também pode ser memória.

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O TEXTO DO KITĀB AL-NAFS46

Quanto ao sentido que é o sentido comum, na verdade, ele é, diferente do que se

pensou, ou seja, que os sensíveis comuns possuem um sentido comum; o sentido

comum é a faculdade à qual chegam todas as coisas sensíveis

A ação de reter o que o sentido comum percebe pertence à faculdade que se chama

imaginação, e ela se chama faculdade formativa e se chama faculdade imaginativa.

Algumas vezes distingue-se entre imaginação e a faculdade imaginativa, em relação ao

significado convencional da palavra. Somos dos que distinguem isso das formas que

estão no sentido comum. O sentido comum e a imaginação são como se fossem uma só

faculdade; é como se os dois não diferissem quanto ao sujeito de inesão mas, quanto à

forma. Isto porque “que ele percebe” não significa “que ele conserva”. Isto porque a

forma do sensível é conservada pela faculdade que se chama formativa e imaginação,

mas ela não possui de modo algum um julgamento, ao contrário, possui uma

conservação. Quanto ao sentido comum e aos sentidos externos, certamente, eles julgam

sob um certo aspecto ou por um certo julgamento.

Às vezes, sabemos de maneira inconteste que está na nossa natureza compor certas

coisas sensíveis com outras, e separar certas delas de outras, não segundo as formas que

encontramos nessas coisas sensíveis no exterior nem pela mediação de um assentimento

dado à existência de uma coisa pertencente a elas ou à sua não existência. É preciso que

haja em nós uma faculdade pela qual fazemos isso; essa é a que é chamada de cogitativa

quando a inteligência a emprega, e chamada imaginativa quando empregada por uma

faculdade animal.

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A faculdade que conserva é assim chamada porque ela preserva o que está nela, e

também é chamada faculdade que se recorda em razão de sua rapidez na aptidão de

fixar e conceber recuperando-o quando o perdeu. Isto ocorre quando a estimativa volta a

sua imaginativa para a frente, e começa a apresentar uma a uma as formas presentes na

imaginação, para que se faça como se ela visse as coisas que têm essas formas.

O centro do cérebro foi colocado como lugar da faculdade estimativa para lhe ser uma

junção com os dois depósitos da idéia e da forma. E parece que a faculdade estimativa é

aquela que é por ela mesma cogitativa e imaginativa e recordativa; ela é por si mesma a

que emite julgamento, pois, ela emite um julgamento por sua essência, ao passo que

pelos seus movimentos e suas ações ela é imaginativa e recordativa; pois ela é

imaginativa pelo fato de que age sobre as formas e sobre as idéias, e recordativa por

aquilo em que resulta sua ação.

Comparando os dois textos, esquematicamente, tem-se a apresentação das seguintes

faculdades:

Na obra al-Mabda’ wa al-Ma‘ad

1. Faculdade da fantasia ou sentido comum. Recebe dos sentidos os sensíveis, é uma

faculdade receptiva.

2. Faculdade da imaginação. Conserva aquilo que recebe dos sentidos.

3. Faculdade cogitativa. Se for empregada pela estimativa, será chamada faculdade

imaginativa. Diferença entre a cogitativa e a imaginativa e a faculdade da imaginação:

o que há no conteúdo da imaginação é obtido dos sentidos. A faculdade imaginativa

começa a ser a partir das formas não sentidas e que nunca serão sentidas, como por

exemplo, uma pessoa metade árvore e metade homem.

46 Páginas 157 a 197, Al-Šhifā’, Tabi ‘iyā t, ‘IIlm al-Nafs, Editions du Patrimoine Árabe et Islamique, Paris, 1988.

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4. Faculdade estimativa. Apreende dos sentidos noções que não são sentidas.

5. Faculdade que recorda e conserva. É um depósito da estimativa.

Na obra Kitāb al-Nafs

1. Sentido comum. É a faculdade à qual chegam todas as coisas.

2. Faculdade da imaginação. Faculdade que retém aquilo que o sentido comum percebe.

3. Faculdade cogitativa no homem e imaginativa no animal. Compõe coisas sensíveis com outras e separa coisas sensíveis de outras.

4. Faculdade que conserva e recorda. Conserva aquilo que está nela mesma e recupera aquilo que conservou, caso seja perdido.

5. Faculdade estimativa (por ela mesma é cogitativa) imaginativa e recordativa. Esta faculdade emite um julgamento por si mesma.

Como pode-se constatar, nas duas obras há o mesmo número de faculdades e com as

mesma funções, não havendo diferenças conceituais. A primeira obra foi escrita quando

Ibn Sina tinha em torno de 21 anos. A segunda foi terminada quando o nosso filósofo

tinha em torno de 50 anos, tendo sido iniciada quando tinha aproximadamente 40 anos.

Muito já foi escrito sobre a contribuição de Ibn Sina tanto para a medicina como para a

filosofia e, também, sobre sua privilegiada inteligência. Não é nosso propósito discorrer

aqui sobre o conteúdo das duas obras mas, como já foi dito, cotejar o tema nas mesmas.

Porém, para concluir, pode-se dizer que o constatado aqui é um indicativo de que Ibn

Sina foi realmente um grande mestre, mesmo quando era jovem.

Referências

IBN SINA [avicena]. Al-Mabda’ wa al-Ma‘ād [A origem e o retorno]. Edição de ‘Abd allāh Nurāni. Teerã: the Institute of Islamic Studies. McGill University-Tehran University, 1984.

IBN SINA [avicena]. Kitāb al-Najāt. Fi al-Ηikma al-Mantiqīyya, al-Tabi‘īyya e al-Ilahīyya. [Livro da Salvação: sobre Lógica, Física e Metafísica]. Beirut: Manšurāt Dar al-Mafaq.

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DO SERMÃO 52 DE ECKHART Frei Hermógenes Harada*

Introdução

A presente comunicação é comentário da tradução da primeira parte do sermão 52 das

pregações alemães do Mestre Eckhart1. Nela Eckhart caracteriza o homem pobre

dizendo: “É homem pobre quem nada quer e nada sabe e nada tem”. A primeira parte

do sermão contém somente a primeira das três características do homem pobre, a saber:

pobre é quem nada quer.

Texto

Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum (Matth. 5,3)

A bem-aventurança abriu sua boca de sabedoria e disse: “bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus” (Mt 5,3).

Todos os anjos e todos os santos, tudo que um dia foi nascido deve silenciar, quando fala a sabedoria do Pai. Pois toda a sabedoria dos anjos e das criaturas é puro nada diante da sabedoria abissal de Deus. Essa sabedoria falou: os pobres são bem-aventurados.

Há, porém, pobreza em dois modos: um é pobreza exterior. Ela é boa e muito louvável no homem que a assume voluntariamente, por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, porque Ele mesmo a possuiu na terra. Dessa pobreza não mais vou falar. Entrementes, há ainda uma outra pobreza, uma pobreza interior, que deve ser subentendida naquela palavra de Nosso Senhor, quando diz: “bem-aventurados são os pobres em espírito”.

Peço-vos assim, agora, que sejais igualmente pobres para que compreendais essa fala. Digo-vos, pois, pela verdade eterna: se não vos igualardes a essa verdade da qual agora queremos falar, não me podereis compreender.

Diversas pessoas já me perguntaram o que é, pois, a pobreza em si mesma e o que é um homem pobre. A isso queremos responder.

Diz o Bispo Albrecht: esse é homem pobre, quem não tem nenhuma satisfação em nenhuma coisa que Deus criou – e isso está bem formulado. Mas nós vamos dizê-lo de modo ainda melhor e tomamos a pobreza numa compreensão ainda mais elevada: é um homem pobre quem nada quer e nada sabe e nada tem. Desses três pontos quero falar, e

* NEF (Núcleo de Estudos Franciscanos)

1 O texto que serviu de base para a tradução foi tirado de “Meister Eckhart (Deutsche Predigten und Traktate), editados e traduzidos para o alemão moderno do alemão medieval, por Josef Quint, Stuttgart: Kohlhammer, 1988, p. 727-734.

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peço-vos por amor de Deus que compreendais essa verdade, se puderdes. Mas se não a compreendeis, não vos inquieteis por isso. Quero, pois, falar-vos de uma verdade tão jeitosa, a qual apenas poucas boas pessoas hão de compreender.

Primeiramente dizemos que é homem pobre quem nada quer. Muitas pessoas não compreendem corretamente o sentido dessa afirmação. Trata-se de pessoas que se prendem ao seu eu egotista nos exercícios de penitência e nos exercícios exteriores, o que elas têm em grande conta. Que delas Deus se compadeça por conhecerem tão pouco da verdade divina! Chamam-se santas em razão da aparência exterior; mas de dentro são asnos, pois, não apreendem o exato sentido próprio da verdade divina. Elas também dizem certamente que é homem pobre quem nada quer. Mas o interpretam de seguinte modo: que o homem deve viver de tal modo a jamais satisfazer sua própria vontade em coisa alguma; que antes deve aspirar a satisfazer a tão querida vontade de Deus. Nisso estão interessados esses homens, pois sua intenção é boa. Por isso vamos louvá-los. Que em sua misericórdia Deus lhes presenteie o Reino do céu. Eu, porém, digo-vos pela verdade divina, que esses homens não são realmente homens pobres, nem a eles semelhantes. São considerados grandes apenas aos olhos das pessoas que não sabem de nada melhor. Eu, porém, afirmo que são asnos e não entendem nada da verdade divina. Que, por causa de sua boa intenção, possam alcançar o Reino dos céus. Mas da pobreza, da qual agora quero falar, nada sabem.

Se alguém me perguntasse agora, mas o que é, pois: um homem pobre que nada quer, a isso respondo e digo assim: enquanto o homem tiver ainda em si isto de ser sua vontade, querer satisfazer a mais amada vontade de Deus, esse homem assim não tem a pobreza, da qual queremos falar. Pois ele ainda tem uma vontade, com a qual quer satisfazer a vontade de Deus, e isso não é verdadeira pobreza. Portanto, se o homem deve possuir verdadeiramente pobreza, deve estar tão livre de sua vontade criada como o era quando ainda não era. Eu vos digo, pois, junto à verdade eterna: tanto quanto tendes a vontade de satisfazer a vontade de Deus e o anelo da eternidade e de Deus, tanto assim não sois corretamente pobres; pois só é homem pobre, quem nada quer e nada cobiça.

Quando eu estava na minha causa primeira, então eu não tinha Deus, e era a causa de mim mesmo. Eu nada queria, nada cobiçava, pois eu era um ser livre e solto e um conhecedor de mim mesmo na fruição da verdade. Então eu queria a mim mesmo e nada mais; o que eu queria, isto era eu, e o que eu era, isto queria eu, e aqui eu estava livre de Deus e de todas as coisas. Quando, porém, saí da livre decisão da vontade e recebi o meu ser criado, então eu tinha um Deus; pois antes que fossem as criaturas, Deus ainda não era “Deus”: ele, muito mais, era o que era. Quando as criaturas se tornaram e receberam seu ser criado, então Deus não era em si mesmo Deus, mas, nas criaturas, era ele Deus.

Dizemos então que Deus, enquanto é apenas “Deus”, não é o mais elevado fim da criatura. Pois a uma tal excelência do ser tem também a menor das criaturas em Deus. E se fosse assim que uma mosca tivesse mente e que pudesse por via da mente buscar o abismo eterno do ser divino, de onde ela veio, diríamos então que Deus com tudo isso que ele é enquanto “Deus”, não poderia sequer dar plenitude e satisfação a essa mosca. Por isso pedimos a Deus que nos tornemos livres de “Deus” e que apreendamos a verdade e a fruamos eternamente lá, onde os anjos supremos e a mosca e a alma são iguais, lá onde eu estava e queria o que eu era, e era o que queria. Digamos, pois assim: se o homem deve ser pobre em vontades, deve querer e cobiçar tão pouco como queria e cobiçava, quando ele ainda não era. E nesse modo é pobre o homem que nada quer.

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Comentário

Diz Eckhart: É homem pobre, quem nada quer. O verbo quer está destacado em itálico.

O destaque gráfico poderia nos orientar para entendermos o querer nada, no sentido de

um querer potecializado. Embora não se tenha objeto do seu querer por ser aqui objeto

nada, em nada se diminui a potência do querer; pelo contrário, aumenta. A nulidade do

que se quer não influi no vigor do querer, mas pelo contrário, o impulsiona a mais

querer, a ponto de em se dizendo tudo quer ou nada quer, este parece exigir um querer

maior do que aquele. Um querer que se estenda para além de tudo ou que não necessite

de nada para querer. Nessa acepção nada quer deve ser entendido não como não querer

o querer, mas sim como querer o não querer2.

Por outro lado, nada quer pode ser entendido na acepção da expressão: “Meu irmão está

tão abatido que não quer nada”. Aqui o nada querer não está dizendo que se queira o

não querer, mas sim que se está na astenia da vontade, que se está sem vontade. Assim,

nesse caso nada querer é um estado de deficiência na vontade, cujo querer não é mais

querer, mas sim total indiferença, portanto abulia.

Pobre é, portanto, homem que nada quer no sentido da deficiência da vontade, i. é,

aquele que não tem vontade?

À pergunta, Eckhart nos responde, reproduzindo a opinião usual de que o homem pobre

“deve viver de tal modo a jamais satisfazer sua própria vontade em coisa alguma; que

antes deve aspirar a satisfazer a tão querida vontade de Deus”. Portanto, segundo essa

opinião, nada querer não tem nada a ver com abulia, mas sim com não satisfazer minha

própria vontade em coisa alguma; e somente querer satisfazer a tão querida vontade de

Deus. Por conseguinte nada querer não é não querer, mas sim querer absoluta e

2 Poder-se-ia dizer que no tudo querer, querer depende de tudo, como do objeto; ao passo que no nada querer, o querer é puro querer como querer o querer do seu querer? Mas, sempre ainda querer.

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totalmente só a Vontade de Deus3. Entrementes, diz Eckhart das pessoas que possuem

uma tal opinião:

Nisso estão interessados esses homens, pois sua intenção é boa. Por isso vamos louvá-los. Que

em sua misericórdia Deus lhes presenteie o Reino do céu. Eu, porém, digo-vos pela verdade

divina, que esses homens não são realmente homens pobres, nem a eles semelhantes. São

considerados grandes apenas aos olhos das pessoas que não sabem de nada melhor. Eu, porém,

afirmo que são asnos e não entendem nada da verdade divina. Que, por causa de sua boa

intenção possam alcançar o Reino dos céus. Mas da pobreza, da qual agora quero falar, nada

sabem.

O que é, pois: um homem pobre que nada quer? Diz Eckhart:

Se alguém me perguntasse agora, mas o que é, pois: um homem pobre que nada quer, respondo e

digo assim: enquanto o homem tiver ainda em si isto de ser sua vontade4 querer satisfazer a mais

amada vontade de Deus, esse homem assim não tem a pobreza, da qual queremos falar. Pois ele

ainda tem uma vontade, com a qual quer satisfazer a vontade de Deus, e isso não é verdadeira

pobreza. Portanto, se o homem deve possuir verdadeiramente pobreza, deve estar tão livre de sua

vontade criada como o era quando ainda não era. Eu vos digo, pois, junto à verdade eterna: tanto

quanto tendes a vontade de satisfazer a vontade5 de Deus e anelo da eternidade e de Deus, tanto

assim não sois corretamente pobres; pois só é homem pobre quem nada quer e nada cobiça.

À primeira vista tudo isso soa como se Eckhart afirmasse a total e absoluta exclusão do

querer ou mais ainda da vontade. E essa exclusão parece resultar num estado de total

apatia, ou, mais precisamente, de total aniquilação da vontade: “Portanto, se o homem

3 Para querer o querer de Deus, se supõe do querer uma potência infinitamente maior do que querer ou não querer um querer humano. Nesse sentido poder-se-ia achar bem viável o raciocínio: se tivesse uma vontade do “tamanho” da vontade de Deus poderia querer fazer a vontade de Deus, poderia satisfazê-la plenamente. Esse raciocínio, no entanto, não se vê, pois uma tal escalação da vontade, apenas pontencializa em infinito a vontade entendida como ato do querer humano. É como se perguntássemos diante da grandeza da nobreza de uma mãe que doa sua vida para salvar seu filho: quantos metros tem essa nobreza?

4 Usualmente entendemos a “proibição” de não fazer a sua vontade própria, mas sim somente a vontade de Deus como o ponto nevrálgico da questão. No entanto, aqui poderíamos suspeitar que o pivô da questão pode estar localizado não tanto na “diferença” entre eu (leia-se minha identidade) e Deus (leia-se identidade de Deus), mas sim na total alteridade no que se refere ao ser da vontade. Nesse sentido, se entendermos a Vontade de Deus (o seu querer) a modo da vontade que eu tenho (o eu quero), então não “compreendemos” de modo igual a Vontade de Deus como Ele o é, mas sim igualamos a Vontade de Deus à nossa vontade. Se, porém, somos tornados iguais a Deus, então posso igualar a minha vontade à Vontade de Deus. (Deixemos aqui suspensa a pergunta: mas isto não é panteísmo? O problema do panteísmo pode não surgir da igualação Deus e eu enquanto filho de Deus, mas sim da dominação do horizonte coisista do sentido do ser, a partir e dentro do qual miramos tudo como algo).

5 A acepção do termo vontade deve mudar, quando se fala aqui da “vontade de Deus”.

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deve possuir verdadeiramente pobreza, deve estar tão livre de sua vontade criada como

o era quando ainda não era6”. O que é, porém, quando ainda não era? O que não é

chama-se nada! O que ainda não é chama-se também nada. Mas e o que é “quando

ainda não era” é também nada no mesmo sentido do “que não é” e do “que ainda não

é”?7. Entretanto, no que concerne tanto ao ser como ao não ser, diz Eckhart com

precisão: que o homem pobre “deve estar tão livre de sua vontade criada como o era,

quando ainda não era”8. O que quer dizer essa formulação? “Estar livre da sua vontade

criada” dá para entender. Mas o que quer dizer “como o era quando ainda não era”?

O que “não é”, e muito mais o que “ainda não é”, é nada, mas é o que pode ser. O que é

pode ser não ter sido, portanto, pode ser o que é quando ainda não era. Eckhart parece

assim insinuar que se dá ser além ou aquém do ser e não ser atual. E diz Eckhart:

Quando eu ainda estava na minha causa primeira, então eu não tinha Deus, e era a causa de mim mesmo. Eu nada queria, nada cobiçava, pois eu era um ser livre e solto e um conhecedor de mim mesmo na fruição da verdade. Então eu queria a mim mesmo e nada mais; o que eu queria, isto era eu, e o que eu era, isto queria eu, e aqui eu estava livre de Deus e de todas as coisas. Quando, porém, saí da livre decisão da vontade e recebi o meu ser criado, então eu tinha um Deus; pois, antes que fossem as criaturas, Deus ainda não era “Deus”: ele, muito mais, era o que era. Quando as criaturas se tornaram e receberam seu ser criado, então Deus não era em si mesmo Deus, mas, nas criaturas, era ele Deus.

Ao ler essa resposta, imediatamente ligamos as afirmações: “Quando eu ainda estava na

minha causa primeira...” e “quando ainda não era” e “quando saí da livre decisão da

vontade e recebi o meu ser criado”. Eckhart parece, pois, se referir à criação, a saber, ao

homem no seu surgir, i. é, ao ser do homem enquanto criatura. E segundo a doutrina

metafísica tradicional da Criação, a causa primeira é o Deus Criador9. No entanto, no

sermão de Eckhart, essa referência à criação insinua uma complexidade que nem

sempre é refletida quando falamos da criação como causação das criaturas10 por um ente

supremo, Deus. Pois diz Eckhart:

6 Isto significa que o homem possui vontade incriada?

7 Mas o sentido do ser quando se diz ser e não ser na questão metafísica e o sentido do ser quando se diz não ser da vontade, num sermão como esse de Ekhart, coincidem?

8 Essa fala parece ser na sua tonância bem diferente à da afirmação da abulia, mas também da afirmação da potencialização infinita do querer da vontade e, quem sabe, também da questão “especulativa” digamos metafísica do ser e não ser.

9 Cf. as usuais provas da existência de Deus na Teodicéia tradicional.

10 Cf. Rombach, Heinrich, Substanz, System, Struktur vol. I, Editora Karl Alber, Freiburg/München 1965, p. 58, onde mostra que os medievais achavam possível creatio ab aeterno (a aeviternidade).

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Quando recebi o meu ser criado, então eu tinha um Deus; pois antes que fossem as criaturas, Deus ainda não era “Deus”: Ele, muito mais, era o que era. Quando as criaturas se tornaram e receberam seu ser criado, então Deus não era em si mesmo Deus, mas, nas criaturas, era Ele Deus.

Assim, segundo o que segue no sermão, aqui “quando eu ainda estava na minha causa

primeira, e então era a causa de mim mesmo; quando nada queria, nada cobiçava,

porque eu era um ser livre e solto e um conhecedor de mim mesmo na fruição da

verdade; quando eu queria a mim mesmo e nada mais; e quando o que eu queria, isto

era eu, e o que eu era, isto queria eu; e quando eu estava livre de Deus e de todas as

coisas” – aqui portanto – a causa primeira, no ser e tempo de todos esses quandos, não

deve ser identificada com a primeira causa como, causador do universo criado na

acepção categorial metafísica de causa e efeito. Há, pois, Deus antes da criação e depois

e com a criação? Do mesmo modo, há homem antes da criação e depois e com a

criação? Há também ser e tempo antes da criação e depois e com a criação?

Mas isto significa que há uma realidade, um ser para além do supremo ser, há um

quando para além da eternidade, um Deus para além do deus, criador? Refere-se a essa

distinção, quando Eckhart distingue entre deus e deitas, entre ser e nada?

Mas de quem é essa estranha fala que diz: “Quando eu ainda estava na minha causa

primeira, então eu não tinha Deus e era a causa de mim mesmo”? Do homem “tão livre

de sua vontade criada como o era quando ainda não era”, do homem antes da

criação”11? Não é, porém, absurdo algo como criatura humana antes da criação, cuja

fala soa num tom de “superioridade” presunçosa: “Quando saí da livre decisão da

vontade e recebi o meu ser criado, então eu tinha um Deus, pois antes que fossem as

criaturas, Deus ainda não era ‘Deus’”12?

Mas o que há de estranho nessa resposta de Eckhart? Não está falando da alma cristã e

da sua decisão de ser em Deus? Da união da alma fiel a Deus na intimidade com Ele?

Da experiência mística subjetiva e privativa do homem, cuja crença é mundividência?

Mas e essa fala toda abstrata e metafísico-especulativa do modo de ser do homem como

era quando ainda não era; do homem quando ainda estava na sua causa primeira? O

11 Mas ao mesmo “tempo”, falando depois de e com a criação?!...

12 A não ser que Eckhart esteja falando de Jesus Cristo, da segunda pessoa da SS. Trindade, do Verbo feito carne, portanto de Jesus Cristo homem-e-Deus e do homem como a nova criatura em Jesus Cristo, segundo a doutrina cristã tradicional...?!

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verbo “ser” no contexto da formulação “era quando ainda não era”; o verbo “estar” no

seu contexto da formulação “quando ainda estava na sua causa primeira”; e a própria

expressão causa primeira significam uma “realidade” subjetiva ou objetiva?

Essa pergunta poderia ser respondida de antemão, sem tanto senões e complicações, se

dizendo que: nos sermões alemães, trata-se da “realidade” subjetiva da experiência e

vivência pessoal privativa da “alma” religiosa, aqui cristã-medieval católica. Ao passo

que nas suas obras filosófico-teológicas, escritas em latim, Eckhart tenta elucidar todos

esses fenômenos religiosos, digamos psicológico-subjetivo-pessoais da alma religiosa

cristã, numa especulação teorética filosófico-teológica, em uso na Idade Média. E, a

quem pertence por convicção ao que se chama usualmente de Religião cristã, todas

essas especulações são místico-teológicas, e se referem não apenas às vivências

subjetivas pessoais dos crentes, mas à realidade sobre-natural (sobre-natural, em latim

super-naturale, em grego meta-physika), transcendente, para além de toda e qualquer

tentativa de explicação natural, de modo que o que Eckhart diz é a tentativa suprema de

dizer o que por intelecto apenas humano não pode ser captado “positivamente”, mas

apenas “negativamente”, i. é, o que essa “realidade sobrenatural” não é. E o que é

positivamente essa “realidade” do além só se pode captar pela Fé cristã. Mas que se

trata de uma realidade realíssima, por excelência, absoluta e perene, portanto não apenas

subjetiva, mas sim em grau supremo “objetiva”, disso, uma tal crença não pode

dispensar. Entrementes quem não pertence à acima mencionada “Fé Cristã”, por mais

que se respeite uma tal convicção e a conduta ética coerente que dali pode surgir, não

pode, se quiser permanecer sincero consigo mesmo, admitir que uma tal explicação,

especulação ou teoretização esteja referida à “realidade” objetiva em si. Para ele tudo

isso não passa de um processo de explicitação do que chamamos de mundividência, i. é,

dum determinado modo que as pessoas ou grupo de pessoas têm de interpretar e viver o

mundo e a vida. Como tal, mundividência não é outra coisa do que crença subjetiva, não

fundamentada num saber objetivo, comprovado e universal como o seria no caso do

conhecimento científico. Assim, por mais sublime que seja o que Eckhart fala nos seus

sermões e nos seus tratados filosófico-teológicos especulativos, não passa da expressão

de uma crença, mundividência, subjetiva e privativa dos cristãos.

Essa colocação é bem razoável e correta. Explica também por que Eckhart uma vez fala

de “querer, não saber e não ter”, portanto do aspecto antropológico, subjetivo, i. é,

referido ao sujeito-homem e seu agenciamento, e outra vez de “ser e não ser, do nada,

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do quando ainda não era”, portanto, do aspecto ontológico, objetivo, i. é, referido ao

“objeto”, “coisa”, ao que é em si, anterior à existência ocorrente e ao relacionamento

desse sujeito-homem com a “coisa” existente. No entanto, ao classificarmos a fala e o

saber de Eckhart nos seus sermões espirituais como ponto de vista da fé, a saber, da

mundividência ou crença subjetiva de um grupo denominado cristão, teísta ou crente,

contrapondo-os a uma “evidência objetiva” de um saber sistemático comprovado ou a

ser comprovado pela constatação objetivo-científica de confronto com a “realidade”;

portanto, em operando também na divisão binômia do subjetivo-objetivo, qual dessas

“vidências” detém a primazia do critério da realidade do sentido do ser?

Nisso tudo, entrementes, é interessante observar que todos os nossos arrazoados acerca

do ser e não ser, portanto, da “realidade ontológica” (objetiva!?) e do querer e não

querer, portanto, da “realidade antropológica” (subjetiva!?), o sentido do ser é

simplesmente pressuposto tanto para o otológico como para o antropológico como

obviamente comum, geral a ambos, de modo indeterminado. Esse sentido do ser

obviamente pressuposto e tido como indeterminado e sem problema, sem tematizar em

que consiste essa sua indeterminação e obviedade, esconde um problema que dificulta

uma melhor aproximação na compreensão do que Eckhart nos propõe no seu sermão 52.

O problema consiste numa suspeita. Na suspeita de que a pré-compreensão do sentido

do ser comum tanto ao ontológico como ao antropológico na sua indeterminação

generalizante, com o qual operamos hoje, e a compreensão toda própria do sentido do

ser, operante na estruturação do universo na visão medieval são bem diferentes; e nos

convida a examinarmos um pouco, ainda que de modo bastante diletante e deficiente,

essa diferença. Eis o resumo da estruturação do universo na visão medieval, cujos dados

foram ajuntados dos manuais usuais da História da Filosofia:

Na explicação da concepção medieval do relacionamento “entre” Ser (comum) e ente

(duas grandes regiões do ente na sua totalidade, a saber, mundo sensível e mundo supra-

sensível) se diz que não se trata de relacionamento do gênero-espécie (= gênero +

diferença específica, cf. árvore porfiriana). Portanto a comunidade do Ser não é a do

gênero. Assim, essa comunidade sui generis do Ser se denomina transcendental (no

sentido da metafísica medieval). Ser não é pois o gênero supremo (que no caso da

árvore porfiriana estaria implícito na espécie Homem (gênero animal + diferença

específica racional), e que sob uma outra denominação e estruturação ascendente

entraria na escalação das substâncias simples ou dos espíritos; nem gênero ínfimo (que

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no caso da árvore porfiriana estaria implícito na espécie substância sem vida: matéria).

Pois transcende, vai para além dessa imensa região dos entes que compõem os degraus

do ente que vai desde a matéria sem vida até o homem, dotado de razão ou espírito

(matéria → planta → animal → homem ) = (substância → vivente (substância +

vivente) → animal (vivente + sensível) → homem (animal + racional). Nessa imensa

região dos entes, onde vale o relacionamento mútuo entre os degraus do ente, cuja

esquematização é atribuída a Porfírio (circa 232 – circa 304) sob o título de árvore

porfiriana como referência de composição entre gênero + diferença específica → para

formar uma espécie, em vez de referimento gênero, diferença específica, espécie, se

usava também o relacionamento mútuo do binômio matéria e forma em diferentes

processos ascendentes de composição. Ser não está presente nessa escalação dos

degraus do ente a modo de gênero, pois está a cada momento presente também no

gênero, na diferença específica e na espécie e ultrapassando essa região dos entes

visíveis do mundo sensível, se torna presente de modo cada vez mais excelente na

imensa região do ente onde se dão os entes espirituais. Assim no próprio homem, na

racionalidade que constitui a sua diferença específica surgem degraus ou melhor

intensidades da presença do Ser como intellectus, spiritus e mens; e nos entes espirituais

que não são humanos, mas dotados de conhecimento e vontade, portanto, nas diferentes

regiões ascendentes dos espíritos se dão as diferentes hierarquias dos “coros” celestes,

portanto dos anjos, até tudo culminar no ente supremo, transcendente denominado

Deus. Aqui nessa região dos espíritos o processo de intensificação hierárquica da

presença do Ser na sua excelência se dá através da mútua implicação do binômio

potentia-actus e não mais do binômio matéria-forma. O ente supremo, Deus, é chamado

então de actus purus. Aqui o ente supremo, Deus, é o ente, cuja entidade consiste em

ser ipsum esse ou suum esse, i. é, ser Ser por excelência, de tal modo que Nele o Ser e o

ente coincidem. Essa coincidência é tal que falando propriamente Deus contém o Ser

todo, a ponto de “fora” Dele não poder haver Ser no sentido próprio e originário. Mas

então o que acontece com os entes criados que não são Deus? Que “realidade” é essa

que contém em si o Ser todo, e é fonte de todos os entes, sem que os entes assim

participantes do Ser não sejam eles mesmos o próprio Deus, seu prolongamento? E

observemos que aqui nessa pirâmide de hierarquia dos entes, o Ser não deve ser

entendido como gênero supremo agora num nível mais sublime e hierarquicamente

superior da realidade do mundo supra-sensível. É que a presença do Ser, no ente

supremo, Deus, nos anjos, nos homens, nos animais, nas plantas e na matéria, digamos

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desde a Excelência suprema da divindade até ao pó e esterco ínfimo do chão, portanto, a

comunidade do Ser é tal que está presente tout court em todos os entes e em todos os

momentos e composições dos entes, sejam eles de que grau forem. Assim o Ser é

onipresente em todos os entes, certamente em níveis de intensidade de ser diferentes,

mas realmente (?!). Mas então como evitar que tudo isso não seja panteísmo, que os

entes não sejam prolongamento de Deus? Assim na tentativa de evitar o panteísmo e de

salvaguardar a identidade de Deus e a identidade dos entes como cada qual sendo em si,

surge a questão da analogia entis (Sto. Tomás) e univocitas entis (Duns Scotus) com

tudo que ela implica. E no nominalismo posterior à época áurea dessa concepção do

pensamento medieval, Ser perde todas essas conotações “reais” ontológicas para se

reduzir aos poucos à pura abstração conceitual lógica, ens rationis, e por fim apenas

ressonância vocal (flatus vocis), portanto termo vocal ou gráfico que não têm nenhuma

correspondência real fora da mente, ou mesmo nem sequer na mente.

Se agora examinarmos atentamente o resumo bastante simplificado e indiferenciado da

História do sentido do ser no pensamento medieval acima proposto, podemos ali

divisar, ainda que não nitidamente, a seguinte situação: há algo não dito nesse caráter

comum do ser enquanto transcendental, silenciado como fundo indeterminado do

sentido do ser, que na nossa acepção usual, cotidiana, óbvia e auto-evidente é

considerado como o sentido geral, lógico do conceito ser13. Esse sentido geral é fixado

na nossa linguagem comum usual com o termo algo. Tentemos examinar mais em

detalhe o uso desse termo algo, dando um exemplo. Michel Foucault, no livro As

Palavras e as coisas14, reproduz um trecho de Jorge Borges, onde se fala de “uma certa

enciclopédia chinesa”, onde está escrito que “os animais se dividem em: a) pertencentes

ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g)

cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos,

f) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) etcetera,

m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”.

13 Ser é conceito o mais geral que abrange tudo que é possível no sentido de não contradição. Assim é o mais vasto na extensão e o mínimo no conteúdo.

14 FOUCAULT, Michel, As palavras e coisas (Uma arqueologia das ciências humanas). Lisboa: Portugália, 1968, p. 3.

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Todas essas entidades de diversas procedências, modo de ser, realidades e sentido,

podem ser, no entanto, ajuntadas num conjunto, sob o termo algo. Se aplicarmos esse

modo de classificar as realidades no conjunto assinalado algo à “realidade” da

ordenação do mundo dos medievais, poderíamos afirmar: não sei bem o que seja Deus,

anjos, homem, animal, planta e matéria. Não sei bem o que seja alma, espírito, a

realidade interior e a realidade exterior, o que seja deidade e Deus nas criaturas em

Eckhart; não sei o que seja subjetivo, objetivo, o que seja lógico, psicológico-

antropológico, ontológico; não sei bem o que seja ser e nada: mas sei muito bem que

cada um desses “itens” pode ser predicado por algo, dizendo: deidade é algo; matéria é

algo; conceito lógico é algo; a vida interior da alma é algo; e também nada é algo (!?)...

Aqui, entrementes, ficamos perplexos. E de imediato objetamos: nada não pode ser

algo; pois nada diz exatamente que é não algo. Logo, porém, nos corrigimos,

observando: por que então dizemos é não algo? Não é assim que até do próprio nada

dizemos que é nada? Mas a cópula é apenas termo de ligação, não possui nenhum

conteúdo. Por isso no “nada é algo” e no “nada é não algo” o significado do é

permanece inalterável, vazio, apenas ligação entre sujeito e predicado...

Ou não poderia ser bem diferente a situação? Em que sentido?

No sentido de que essa pura função lógica copulativa do verbo ser, sem conteúdo, sem

nenhuma implicância nem com a “realidade” ontológica nem antropológica, ou melhor

anterior a toda e qualquer tendência de “inclinação concrescível” para o lado objetivo

ou subjetivo, portanto, o comum dessa generalização formal, apenas impossibilitada

pelo princípio de não contradição, esconde, debaixo de sua neutralidade e lisura formal,

abismo de amplidão, profundidade e vitalidade criativa, que mal contido, vibra numa

pulsação infinitesimalmente tão diferenciada, suave e retraída para dentro da sua

identidade profunda, qual tinir do silencio abissal, qual pudor do ocultamento, a ponto

de não percebermos a não ser, como que de longe, de fora, como a extensão superficial

do seu “desprendimento” ora como o a-priori lógico da objetividade empírico-fisicista

(algo), ora como a infinitude da possibilidade ilimitada do horizonte de fundo da

subjetividade transcendental15 (nada). E nesse a-priori da objetividade empírico-fisicista

e na infintude do horizonte de fundo da subjetividade transcendental, portanto, nesse

15 Transcendental na acepção da metafísica moderna da subjetividade transcendental.

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algo e nada parece estar sedimentado um bem determinado sentido do ser que de

antemão se estabelece como tonância fundamental de todas as coisas sem distinção. O é,

portanto, já está ocupado de antemão pelo sentido do ser que está implícito na palavra

algo, quando dizemos disso e daquilo, quando predicamos de tudo e de nada: é algo.

Assim, para que se seja ou não se seja, já se deve estar de alguma forma no horizonte do

algo. Mas, o que é algo? A pergunta na sua suposição parece insinuar que algo é quê. E,

o quê? É a forma, a mais abstrata, a mais desidratada, ou melhor desvitalizada do que a

tradição do ocidente chamou de substância. Substância que, na escala do ser dos

medievais, é a mais ínfima, a do gênero ínfimo, a da matéria, e esta por sua vez ainda

mais despojada de toda e qualquer resquício de “realidade”, portanto apenas como pura

possibilidade. Isto significa que no horizonte do algo, nenhuma outra entidade da

ordenação do mundo sensível pode aparecer na sua diferença específica e muito menos

da ordenação do mundo supra-sensível na sua identidade diferencial própria na

hierarquia da escalação do ser do esquema medieval. Assim, nivelando todas as

diferenças ao nada, esse horizonte substancialista formal e abstrato permite que tudo

seja assegurado como algo, sem conteúdo, a não ser como núcleo vazio de ponto de

referência da possibilidade de ser, cujo sentido unívoco e homogêneo se torna garantia

da realidade e da objetividade. Assim, o ser da vida (planta), o ser da sensibilidade

(animal), o ser da razão (homem), o ser do conhecimento, da vontade, do amor, do

espírito em mil e mil diferentes variações e intensidades, o ser de Deus, da divindade, e

o próprio ser da matéria e do nada, da possibilidade e da realidade, se retrai para o

fundo, não vem à fala, e é considerado como menos ser, como não ser em si, e apenas

como um acréscimo, propriedade, acidente do quê: isto é do ser (=substância ínfima

ajeitada e formalizada a modo de um sentido universal básico)16.

16 Esse sentido do ser como substância ínfima ajeitada e formalizada a modo de um sentido universal básico, portanto esse “algo” ainda pode ser considerado como resquício da coisificação da compreensão da substância na acepção medieval mais concreta como a da matéria. Pois matéria aqui nessa ordenação do universo medieval não é “extensio” no sentido da filosofia moderna como p. ex. em Descartes. Aqui pode surgir a pergunta: a categoria ôntica quantitas da ontologia tradicional coincide com a extensio na acepção moderna da palavra extensão indicando quantidade físico-matemática? E o conceito do ser na lógica formal a modo da lógica medieval, onde se diz que ali há o mínimo de conteúdo e o máximo de extensão, que esse conceito não é outra coisa do que ens rationis, coincide com o sentido do ser prejacente no formalismo lógico-matemático das ciências naturais, cujo modelo excelente é o das ciências físico-matemáticas? E quando se fala do transcendental no sentido da subjetividade transcendental na filosofia moderna, em que consiste o ser dessa transcendentalidade? Não poderia ser assim que tanto na inclinação para o lado “subjetivo” da transcendentalidade da subjetividade como também na inclinação para o lado “objetivo” da formalização físico-matemático da objetividade, no fundo permanece ainda como que numa suposição sorrateira não tematizada, digamos um resquício da acepção da substância medieval na sua forma, a mais “deficiente” de algo?

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Como seria tudo isso se a situação de fundo das pré-suposições do sermão 52 de

Eckhart, no que diz respeito à ordenação dos entes no ser, fosse diferente, sim contrária

do que acima expomos, referida ao sentido do ser cuja fixação toma a forma de algo?

Mas em que sentido, contrária? Contrária no sentido de que na “ontologia” medieval ser

é Deus (e não: Deus é ser). E isso de tal maneira que, se digo “ser”, já disse Deus e se

digo Deus, já disse ser: Deus est suum esse. Toda a dificuldade de, com precisão,

perceber o sentido do ser que aqui opera consiste em ficar inteiramente livre do

horizonte do sentido do ser geral e formal, cuja determinação aparece como algo, acima

explicitado. Para de alguma forma facilitar essa percepção imediata do sentido do ser

pulsante na formulação medieval Deus est suum esse, experimentemos uma hipótese: na

ordenação ascendente da intensidade do ser na hierarquia dos entes que vão da esfera da

matéria até a suprema esfera do anjo, portanto do espírito supremo, e para além até o

próprio Deus como suum esse, o que constitui o sentido do ser não é a substância

(entendida no horizonte algo), mas sim a diferença que, na preponderância do algo

como o sentido básico do ser, se retrai e não vem à fala. Aqui a intensidade do ser, a

excelência do ser não é avaliada pela substância como tal, em geral, mas a própria

substância recebe o sentido do seu ser, segundo a qualificação diferencial que lhe é

atribuído como sua propriedade. Assim o ser da substância homem deve ser captado a

partir e dentro da percepção imediatamente própria da “racionalidade”. O mesmo vale

da racionalidade na sua “intensificação” ontológica como intellectus, spiritus, mens; e a

fortiori de todos os “graus” acedentes dos coros angélicos, i. é, dos espíritos “celestes”

que desembocam em Deus, Criador, fonte de todos os entes; e, para mais além, como

três pessoas do Deus uno e trino. Portanto, o recolhimento abissal para dentro da

unidade da diferença da sua identidade, ser livre e solto, desprendido em si mesmo, o

suum esse Deus, a Deitas diz de si:

Quando eu ainda estava na minha causa primeira, então eu não era ainda Deus, e era a causa de

mim mesmo. Eu nada queria, nada cobiçava, pois eu era um ser livre e solto e um conhecedor de

mim mesmo na fruição da verdade. Então eu queria a mim mesmo e nada mais; o que eu queria,

isto era eu, e o que eu era, isto queria eu, e aqui eu estava livre de ser Deus e de ser Ser de todas

as coisas. Quando, porém, saí da livre decisão da vontade e recebi o meu ser criado, então eu era

um Deus; pois antes que fossem as criaturas, eu ainda não era “Deus”: era, muito mais, o que

era. Quando as criaturas se tornaram e receberam seu ser criado, então eu não era em mim

mesmo Deus, mas sim nas criaturas, eu era Deus.

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De imediato protestamos contra uma tal violência de interpretação, mostrando que no

sermão 52 de Eckhart essa fala não é de Deus, mas sim da alma, da criatura-homem.

Entrementes, porém, é fala do homem pobre que nada quer. Que nada quer, tão livre de

sua vontade criada como o era quando ainda não era. Isto é, quando ainda estava na sua

causa primeira. Na mente do Deus criador? No projeto, no planejamento de Deus como

idéias eternas, como sua representação? Mas esse Deus, Criador, sujeito e agente do ato

de Criação, portanto a causa do efeito-criaturas, não coincide com a causa primeira do

texto acima citado de Eckhart, como já comentamos antes. Não somente não coincide,

mas esse Deus Criador não é propriamente Deus no seu ser próprio, “livre e solto,

conhecedor de si mesmo na fruição da verdade”, mas ele mesmo ainda um ser criado,

co-criado juntamente com as criaturas17, algo como o fundo, horizonte a partir e dentro

do qual se tornam possíveis as criaturas, algo como condição da possibilidade do ser das

criaturas: portanto não mais Deus no seu desprendimento, na plenitude da solidão e

liberdade da diferença da sua identidade, a saber na sua Abgeschiedenheit. Isto significa

que há no ser do homem uma “realidade” igual à deidade na sua Abgeschiedenheit?

Essa “realidade” não é res, não é algo, não é substância, mas a própria intimidade do

Deus uno-e-trino no seu abissal recolhimento para dentro da sua identidade; o encontro

da união de Deus e Homem no mistério da Filiação divina: o ser do homem como

filiação divina, a saber, ser tout court igual a Deus na sua Abgeschiedenheit. É por isso

que a última parte do texto que fala do homem pobre, como aquele que nada quer diz

Eckhart no seu sermão 52:

Dizemos então que Deus, enquanto é apenas “Deus”, não é o mais elevado fim da criatura. Pois uma tal excelência do ser tem também a menor das criaturas em Deus. E se fosse assim que uma mosca tivesse mente e que pudesse por via da mente buscar o abismo eterno do ser divino, de onde ela veio, diríamos então que Deus, com tudo isso que ele é enquanto “Deus”, não poderia sequer dar plenitude e satisfação a essa mosca. Por isso pedimos a Deus que nos tornemos livres de “Deus” e que apreendamos a verdade e a fruamos eternamente lá, onde os anjos supremos e a mosca e a alma são iguais, lá onde eu estava e queria o que eu era, e era o que queria. Digamos, pois, assim: se o homem deve ser pobre em vontades, deve querer e cobiçar tão pouco como queria e cobiçava quando ele ainda não era. E nesse modo é pobre o homem que nada quer.

17 Talvez falte precisão dizer “co-criado juntamente com as outras criaturas”. Talvez seja melhor dizer: tornando-se co-criado a serviço das criaturas para ser igual a elas, pedindo-lhes que sejam iguais a Ele na plenitude da liberdade de ser como seus filhos (Criação = Filiação = Encarnação). Nessa direção a Abgschiedenheit da deidade inclui, no mais profundo da sua intimidade, ser Ele criatura, igual a nós em tudo, a tal ponto de se retrair na “transcendência” radical da imanência como “non aliud” (Cf. Nicolau de Cusa). Isto quer dizer: a deidade é tão radicalmente “outra” (aliud) da creaturidade, de modo que dizer “é outra” é negar a alteridade, pois, se é radical-outra, deve ser “outra” num sentido inteiramente outro (non-aliud) do que no sentido anterior. Isto equivale a dizer: Deus é tão aliud da criatura que é igual a ela e ela a Ele. A igualdade dessa com-veniência não é equivalência no sentido usual do ser “algo = algo”, mas sim a singularidade única e uma do Eu:Tu na plenitude intacta da Liberdade. Cf. a Conclusão.

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Conclusão

O ser de Deus, a deitas, a unidade e unicidade da Abgeschiedenheit, não pode ser

percebido nele mesmo a não ser nele mesmo, a partir dele, sem nenhum ponto comum

de comparação, portanto na solidão perfeita da sua propriedade. Isto dito de outro modo,

o ser de Deus é simplesmente Abgeschiedenheit. Como, porém, compreender essa

unicidade única, se ela é radical outra, inacessível a todas as nossas compreensões, de

antemão? Não é assim que exatamente por causa dessa inacessibilidade, tudo que nós

sabemos, dizemos e compreendemos desse ser-Abgeschiedenheit é o que ele não é? É

daí que vem a classificação do pensamento de Eckhart como um dos representantes

mais coerentes e exigentes da teologia negativa.

No entanto, se observarmos atentamente tudo que viemos refletindo até agora, a solidão

ab-soluta da Abgeschiedneheit não diz inacessibilidade. Pois inacessível se refere,

queiramos ou não, ao querer, saber e ter. E, aqui, querer, saber e ter são

compreendidos de alguma forma como atos do sujeito homem, atos através dos quais

tenta se adequar ao seu “objeto” Abgeschiedenheit. Portanto, dito com outras palavras,

toda essa maneira de considerar o pensamento de Eckhart já está de antemão na

perspectiva da Teoria de conhecimento. Isto significa que se fala do ser não

ontologicamente, mas “epistemologicamente”18. Mas não é a grande conquista da Teoria

de Conhecimento, ela nos ter mostrado que todo e qualquer “contacto” com o ser, i. é,

com a “realidade” se dá mediante o conhecimento? Que a teoria do conhecimento é a

Prima philosophia, o saber o mais geral e abrangente que se refere a todos entes, sejam

de que tipo forem, portanto trata do ente enquanto ente?19

Entrementes, na reflexão feita acima acerca da ascendente qualificação do sentido do

ser, na ordenação do universo, na medida em que passamos da esfera ínfima (matéria,

substância-algo) para as esferas do reino dos espíritos, nos adentrando para dentro da

dimensão de Deus-Deidade, o que dita a medida da excelência de ser são as

propriedades diferenciais da identidade do ente de cada esfera, até em Deus

18 Aqui o termo epistemológico não está sendo usado na sua acepção própria e mais estrita como referido à teoria das ciências; mas sim no sentido lato, referido à Teoria do conhecimento.

19 Cf. a divisão do saber na tabela de classificação das disciplinas filosóficas e científicas de Christian Wolff (1679-1754), onde a lógica (leia-se epistemologia) é ciência propedêutica, na perspectiva da

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encontrarmos um ente único, singular, incomparável que é o sentido de ser nele mesmo,

de tal modo que esse ente é o suum esse, o Ser simplesmente. Mas em que consiste esse

proprium diferencial que identifica o Ser simplesmente? Eckhart responde:

Abgeschiedenheit. Outros pensadores medievais de modo geral responderiam: o ser a

se, a Aseidade. Não haveria um outro termo mais acessível para nós hoje, em vez de

Abgeschiedenheit e Aseidade? O próprio Eckhart usa de vez em quando a palavra

Liberdade. E recordemos que abgeschieden é traduzido usualmente como desprendido,

Abgeschiedenheit como Desprendimento. E desprendido e desprendimento devem ser

lidos diretamente como não preso, solto, livre. Isto quer dizer: solto, livre, à vontade no

próprio de si mesmo que é Liberdade20. E o ser da Liberdade não pode ser captado no

horizonte do sentido do ser entendido como algo, seja esse algo algo sem vida, algo com

vida, algo humano, algo espiritual ou algo divino, por ser esse horizonte-algo modo

deficiente da pré-compreensão do ser, cuja plenitude se expressa como

Abgeschiedenheit. Com o risco de no fim criar uma compreensão totalmente

equivocada de tudo que dissemos, poderíamos experimentar dizer que o ser da

Abgeschiedenheit é Pessoa, não no sentido psicológico-antropológico (sujetivo-

objetivo), mas de novo no sentido todo próprio no seu uso operativo, quando Eckhart

“descreve” a igualação da alma e Deus e de Deus e alma na união íntima incondicional

como sendo alma e Deus a unidade da dinâmica da nossa Filiação Divina no

“interrelacionamento” trinitário das “três” “pessoas” na Unicidade da

Abgeschiedenheit21. Numa tal colocação que parece constituir o fundo silenciado do

sermão acerca da pobreza como nada querer, nada saber, nada ter, Eckhart não nos

convida a nos recolocarmos de modo totalmente novo na questão do sentido do ser?22

definição da Filosofia que é “a Ciência de tudo que é possível, de tal modo que todas as coisas devem tornar-se objeto da Filosofia, sejam elas como forem, quer existam quer não existam”.

20 Segundo Trübners Deutsches Wörterbuch (ed. por Alfred Götze, editora Walter de Gruyter, Berlin 1940, pg. 430) na palavra frei (livre), Freiheit (Liberdade), que se refere ao estado de nobreza de quem não trazia ao redor do pescoço a argola de escravo, contém na sua raiz indogermânica o significado de amável, amado, querido, desejado, e assim como substantivo: esposo, esposa. Frei significa também solto, à vontade na plenitude da inocência do seu ser, i. é, intacto.

21 Cf. Sermão 2: Intravit Jesus in quodam castellum et mulier quaedam, Martha nomine, excepit illum in domum suam. Lucae II. (Luc 10, 38).

22 Surge de novo aqui a questão insinuada na nota 16. Toda essa conclusão não é apenas viável somente para quem está na “mundividência” cristã? A recolocação da questão do sentido do ser, no entanto, não é uma questão da doutrina cristã, mas da ontologia que transcende o particularismo das crenças e mundividências que são subjetivas. No entanto, a proposta do sermão 52 não é de colocar o fundo silenciado do sermão sobre a pobreza como tese, mas de nos convidar (seja qual for a crença, mundividência, teologia, filosofia, sim ciência a que nos atenhamos, sejamos o que for, teistas, panteístas,

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Concluamos esse comentário desengonçado com um trecho do sermão n. 1 das

pregações alemães do Mestre Eckhart:

Quando esse templo23 se torna (...) livre de todos os impedimentos (...) brilha tão belo e esplende tão puro e claro por sobre tudo e através de tudo que Deus criou, que ninguém pode lhe ir de encontro com igual esplendor, a não ser unicamente o Deus incriado. E em plena verdade: a esse templo ninguém é igual a não ser somente o Deus incriado. Tudo que está abaixo dos anjos se iguala, de modo algum, a esse templo. Mesmo os anjos, os mais elevados, só se igualam a esse templo da alma nobre até um certo grau, mas não plenamente. Que eles se igualem à alma em certa medida, isso vale para o conhecimento e o amor. Todavia, foi-lhes posto um acabamento; para além do qual não podem ir. Mas a alma pode muito bem ultrapassá-lo. Se uma alma – e, a propósito, a de um homem que ainda vivesse na temporalidade – estivesse na altura igual ao mais elevado dos anjos, esse homem poderia, assim, sempre ainda, em sua possibilidade livre, alcançar imensuravelmente mais alto por sobre o anjo, a cada instante, novo, sem número, i. é, sem modo e por sobre o modo do anjo e de toda a razão criada. Só Deus é livre e incriado, e por isso só Ele é igual a ela segundo a liberdade, não, porém, em vista da in-criaturidade, pois ela é criada. Quando alcança a luz sem mistura, a alma percute para dentro do seu nada, no nada, tão distante do seu algo criado que, pela sua própria força, não pode por nada retornar ao seu algo criado. E Deus com a sua incriabilidade, se coloca sob o nada da alma e a mantém no Seu algo. A alma ousou tornar-se nada e também por si mesma não pode se alcançar a si mesma, tanto assim ela se esvaiu de si mesma antes de Deus ter-se colocado debaixo dela24.

E diz o sermão 52: “É homem pobre quem nada quer e nada sabe e nada tem”25, a não

ser senão o toque da percussão do silêncio na fala da abissal sabedoria do Pai, que em

seu Filho nos “amou primeiro” (1Jo 4,10) iguais a seu Filho.

ateus, realistas, idealistas ou positivistas e cientificistas) para examinarmos com cuidado o sentido do ser que, quer operativamente, quer tematicamente, atua no fundo do nosso saber e da nossa abordagem, e nos perguntarmos se ele é suficientemente aclarado e aprofundado para intuir o que um sermão medieval como este do pobre que nada quer, nada sabe e nada tem tenta mostrar no seu ser.

23 Templo i. é, a alma como ser do homem.

24 Sermão 1: Intravit Jesus in templum et coepit eicere vendentes et ementes (Mat 21,12), Eckhart, op. cit. p. 156.

25 Seria dizer demais, suspeitar que hoje mais do que nunca na redução nominalista-positivista do sentido do ser a simples algo e na liquidação desse algo como resto do quê da substancialidade abstrata formal, ao puro fluir das seqüências de funcionalidades virtuais, sem o querer, sem o saber, estamos de alguma forma mais dispostos a nada querer, nada saber e nada ter?

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TRADUÇÕES

MESTRE ECKHART

17. De como o homem se mantém em paz, se não se encontrar em árduo labor

(arbeit) exterior, como o tiveram Cristo e muitos santos; como ele deve [então]

seguir a Deus1

O temor e o desalento (krankeit) podem sobrevir às pessoas pelo fato de a vida de

Nosso Senhor Jesus Cristo e dos santos ter sido tão rigorosa e laboriosa (arbeitsam),

enquanto que o homem não consegue alcançar o mesmo nesse sentido, nem se sente

impelido para tanto. Por isso, quando não se acham iguais a eles nesse ponto, os homens

consideram a si mesmos como estando distantes de Deus, como a alguém a quem não

poderiam seguir. Isso, ninguém deverá fazer! De modo nenhum, jamais, o homem deve

considerar-se como distante de Deus, nem por causa de uma enfermidade nem por

causa de uma fraqueza (krankeit) nem por causa de qualquer outra coisa. E mesmo que

tua grande enfermidade (gebresten) te impila de tal modo que não possas sentir-te

próximo de Deus, deves, no entanto, aceitar e acolher Deus como próximo a ti. Pois é

nisso que se encontra um grande mal, que o homem coloque a Deus distante de si

mesmo; pois, perambule o homem distante ou próximo: Deus jamais anda distante, ele

permanece sempre a seu lado e se aproximando; e se ele não pode permanecer dentro,

ele não se distancia, no entanto, mais do que até diante da porta.

Assim se dá também com o rigor do seguimento. Repara no que poderia consistir teu

seguimento, quanto a isso. Deves perceber e ter percebido a que fostes mais fortemente

admoestado por Deus; pois de modo nenhum são os homens todos chamados a um

caminho para Deus. Como Diz São Paulo (1Cor 7,24). Se achas pois que teu caminho

mais próximo não se desenrola e não passa por muitas obras exteriores e grande labor

(arbeit) ou renúncia – o que aliás também não tem lá muita importância, a não ser que

o homem seja impelido especialmente a isso por Deus e tenha o poder de bem realizar

1 Tradução: Enio Paulo Giachini, FFSB.

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isso, sem perturbação de sua interioridade – se, portanto, não encontras nada disso em

ti, fica plenamente satisfeito2 e não dês lá muita importância a isso.

Poderias então dizer: se isso não tem nenhuma importância, por que é que então nossos

precursores, muitos santos, assim o fizeram?

Então, pondera: Nosso Senhor lhes concedeu esse modo e deu-lhes também a força para

fazer isso, para que pudessem seguir esse modo, e isso agradou a Ele; e nisso eles

deveriam alcançar seu melhor. Pois Deus não vinculou a salvação dos homens a um ou

outro modo específico. O que possui um modo, o outro não o possui; o poder de

realizar-se (daz mügen)3, Deus o concedeu a todos os bons modos, e não é negado a

nenhum bom modo. Pois um bem não é contra o outro bem. E nisso as pessoas

deveriam dar-se conta de que cometem erro: se às vezes vêem um bom homem ou

ouvem falar dele, e depois ele não segue o modo deles, de modos que tudo está perdido.

Se o modo deles não agrada a ele, também já não levam em consideração seu bom modo

e sua boa intenção. Isso não está correto! Nas pessoas deve-se levar mais em

consideração o modo do que o fato de que possuam uma boa piedade, e não desprezar o

modo de ninguém. Todos e cada um não podem ter um modo apenas, nem podem todos

os homens ter um modo somente, nem sequer pode um homem ter todos os modos e

nem ter o modo de cada um4.

2 No alemão antigo está ze vride (literalmente em paz, satisfeito); mas também no alemão moderno a palavra zufrieden significa satisfeito, contente, em paz, o que denota esse caráter de pacificar a agitação interior, a qual busca se delongar, se arrastar para além de si, para além de suas possibilidades, e não se resguarda, não se contém (contentamento) nos seus limites próprios. Essa idéia perpassa toda a admoestação, já desde o título: wie sich der mensche in vride halte... = de como o homem deve manter-se em paz... A paz, a satisfação e o contentamento, ao que parece têm a ver diretamente com o respeito aos limites, obedecer ao próprio de cada um. Significa que, como diz o texto, não existe um modo privilegiado que deva servir a todos no geral. Nesse texto de Eckhart aparece, por excelência, a singularização e unicidade do seguimento cristão.

3 A palavra alemã é mügen, no alemão moderno Mögen. Significa gostar, querer, apetecer, desejar, ter vontade, poder. Daí os derivativos: möglich = possível; Möglichkeit = possibilidade etc. Trata-se de um poder de realização, de per-fazer, vir a ser o que se é propriamente, levar à plenificação o modo de ser próprio. Não é um poder genérico, como possibilidade aberta, como uma força neutra disponível para ser usada em muitas alternativas e possibilidades, mas um poder gerido e temperado pelo gosto, com enraizamento próprio na singularidade e unicidade de cada caminho, de cada modo, de cada um, cada vez meu.

4 Tudo que se apresenta ao homem como objetivo, pronto, herdado, sejam normas, preceitos, decálogo, mandamentos, doutrina, tradição, conhecimento, conceitos só tem poder de realização (mögen) na singularidade. Significa que a ontologia eckhartiana concebe o homem não como sujeito, um sujeito entre outros tantos, mas a seu modo, sendo até o limite seu próprio modo, cada homem é todos os homens e tudo, é a própria possibilidade de manifestação e vir a si do divino. O exercício de discernimento do

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Cada um mantenha seu bom modo e integre todos os (outros) modos nele e em seu

modo abrace todo bem e todos os modos. A troca de modo torna o modo e o ânimo

(Gemüt) volúveis e inconstantes. O que um modo pode te conceder, isso podes alcançar

também em outro, suposto que ele seja bom e louvável e tenha em mente apenas Deus.

Além do mais, todos os homens não podem seguir um caminho. E assim se dá também

com aquele seguimento rigoroso daqueles santos. Deves até amar esse modo e ele pode

te ser até agradável, sem, no entanto, que precises segui-lo.

Então poderias dizer: Nosso Senhor Jesus Cristo teve sempre e em todas as vezes o

modo mais elevado; por justiça, deveríamos seguir sempre a este.

Isso é bem verdade! Devemos seguir Nosso Senhor com eqüidade, e no entanto não, em

todos os modos. Nosso Senhor jejuou quarenta dias; Assim, ninguém deve tomar para si

a tarefa de segui-lo nisso. Cristo fez muitas obras, com isso ele tinha em mente que

deveríamos segui-lo espiritualmente (geistlich) e não corporalmente. Por isso, devemos

ser diligentes para poder segui-lo no modo do espírito (vernünftlichen künne); pois ele

teve em mira mais nosso amor do que nossas obras. Devemos segui-lo sempre do modo

próprio.

Como então?

Repara nisso: Em todas as coisas! – Como e de que modo?

Assim como eu já o disse muitas vezes: Considero uma obra do espírito (vernünftlich)

como muito melhor do que uma obra corporal.

Como assim?

Cristo jejuou quarenta dias. Nisso segue-o no fato de observares a que estás

maximamente inclinado e disposto: dedica-te a isso e observa agudamente a ti mesmo.

Convém a ti, às vezes, que abnegues mais e despreocupadamente a isso do que abster-te

totalmente de todos os alimentos. Assim, também, muitas vezes é mais difícil para ti

reter uma palavra do que abster-te de vez de toda conversa. E assim, muitas vezes, é

mais difícil a um homem aceitar uma pequena palavra injuriosa, sem grande

importância, do que talvez um golpe duro para o qual estava preparado, e é muito mais

intelecto não se pauta pela comparação, pela via quantitativa, mas pela identificação plena com seu

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difícil para ele estar sozinho na multidão do que no deserto, e é-lhe muitas vezes mais

difícil deixar alguma coisa pequena do que alguma grande, realizar uma pequena obra

do que uma que se considere como muito grande. Assim, o homem pode seguir Nosso

Senhor segundo sua fraqueza (krankheit) e pode e precisa considerar a si mesmo como

não estando longe e afastado d’Ele.

próprio fundamento.

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ÂNGELO CLARENO A humildade de Deus* O texto que segue é tirado da carta 1 da edição crítica de Lydia von Auw6. Essa carta foi escrita por volta do ano de 1313, por Ângelo Clareno, um franciscano dos primórdios da Ordem (circa 1252-1337), e endereçada a uma comunidade dos arredores de Roma. A tradução é de Fr. Ary Pintarelli. Pois, assim como toda criatura fala mais do criador do que de si mesma, da mesma

forma toda a nossa penitência e ação – quer espiritual ou corporal –, mesmo se nasceu

em nós por obra de Deus, fala de Cristo e não de si mesma. Essa penitência e ação,

realizada no sentido da fé, é a humildade que, com o conhecimento e confissão da

própria miséria e injustiça une a mente de Cristo e, através da ciência da cruz,

estabelece que se devolva a Cristo o que lhe pertence e se tenha como nosso o que se

opõe a Cristo. E já que somente pela graça se aproxima do verdadeiro bem, confessa ser

pó e cinza (Gn 17,27). Criada à semelhança da miséria humana, morre como se fosse

concrucificada, fora da cidade em meio a todos os ladrões do mal; sepultada e

incinerada em segredo, escondida vive morta, aplicando-se ao silêncio em dupla

confissão, porque vive e não vive, e descendo ao mais baixo, sempre reina nas alturas,

adorando a Deus com os serafins com a face por terra e sem pompa. Nascida da fé viva,

a humildade tem sempre sede do temor da fé e alegrando-se por nada ser ou saber ou

poder saber, alimenta no coração sentimentos cristiformes. Mantendo aos pés do Cristo

de Deus a doutrina do duplo silêncio, feita discípula muda a ser instruída pelo

compêndio da caridade, vai a Cristo-Rei coberta com um véu. A humildade é o

sentimento de Cristo, que o apóstolo gloria-se de possuir (1Cor 2,16). Os que a possuem

alegram-se em suas fraquezas, porque a fraqueza da humildade é fecundada pela

verdade da caridade. A verdade da caridade, porém, é Jesus, que a humildade concebeu

e a virgem deu à luz antes do parto, a virgem no parto e a virgem depois do parto e, pelo

número sagrado dos dias, hierarquicamente, traz Jesus, que santifica tudo nos sentidos

santificados antes de gerar a luz verdadeira que ilumina toda razão e intelecto,

aperfeiçoa e inflama toda a afeição e vontade, em cujo nascimento morre a prudência da

carne, dos pensamentos e das razões humanas, exterminam-se as trevas pela força da

* 6 VON AUW, Lydia. Angeli Clareni Opera I – Epistole. Roma: Instito Palazzo Borromini, 1980, p. 3-5.

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ação vivificadora e aparente do sol nascido, aquietam-se os afetos pelo gozo daquela

inefável paz que supera todo o entendimento (Fl 4,7), e assim, pelo cântico celeste do

hino dos exércitos angélicos, com alegria e admiração pelo nascimento da humildade,

completa-se a glória e mostra-se o conhecimento da verdade aos que vigiam os vícios, a

concupiscência e a malícia para o culto, o acesso e a descoberta da humildade, da

pureza e da caridade. Por isso a humildade é o lugar da pureza e da glória de Cristo do

qual se escreve: Bendita a glória do Senhor de seu lugar (Ez 3,12), no qual de modo

ardoroso, santo, único, multiforme certo e cruciforme, pelo gozo, pelo sentido e pelo

gosto do calor da caridade, poderosa e suavemente em Deus se realiza tudo o que é

conforme Cristo e conforme Deus deve ser transpassado santificado e unido. Pois, a luz

e o calor do sol vivificante, com seu fulgor superintelectual e com o calor ardoroso dos

sentimentos sobre o afeto, comunica-se totalmente aos amantes, porque tudo contém,

move, aperfeiçoa, penetra, excede, enumera e aquieta de todos e em todos. Ao se

comunicar, diminuindo-se ao tamanho da humildade de cada um, mostra as luzes da

caridade e os ardores que vivificam, unem e transformam nele, como Deus e Senhor,

como pai e mestre, como rei e juiz, como médico e amigo, como pobre e rico, como

peregrino e hóspede, como pastor e cordeiro, como comensal e alimento, como

padrinho e esposo, como madeiro e livro da vida, como fogo e céu fulgurante e

coruscante de ciência, da piedade e da sabedoria que, tocando abre os olhos para que se

veja em todos, se ouça de todos e se compreenda, e, porque em todos está totalmente,

doa-se totalmente, mostrando-se e aparecendo infinito em todos, permanece oculto e a

ninguém conhecido. E já que revela nele as naturais e próprias virtudes de todos e as

vozes ardorosas veementemente impulsivas e repulsivas a si mesmas e, por uma ação

desconhecida e inefável, multiforme e única manifesta-se e se abre nelas, foge

totalmente. E quem em todos se mostra totalmente infinito, infinitamente e infinitas

vezes bom, infinitas vezes infinitamente mais se retrai de todos e doando-se e se

mostrando totalmente, fugindo se esconde e permanece inacessível em si mesmo; ele

que é íntimo apenas aos amigos membros amantes de Cristo – isto é, aos nascidos da

humilde e pobre Virgem Maria, que não são deste mundo (Jo 17,18).

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Texto no original latino

Sicut enim omnis creatura plus dicit creatorem quam se ipsam, ita omnis penitentia et operatio nostra – sive spiritualis sive corporalis – si ex Deo est nata in nobis, Christum dicit et non se ipsam. Et talis penitentia et operatio in sensu fidei facta, humilitas est que mentem Christo cum cognitione et confessione proprie vilitatis et iniusticie iungit et per crucis scientiam verificat ut Christo que sua sunt reddat et sibi ipsi que sunt Christo opposita teneat. Et quia soli bono vero per gratiam appropinquat, se pulverem et cinerem esse pronuntiat. Et in similitudinem obprobrii hominum facta quasi extra civitatem in medio latronum concrucifixa malis omnium moritur, sepulta et incinerata in absconditis mortua latens vivit, vacans silentio duplicis confessionis, quia vivit et non vivit et in infinis descendens, semper in excelsis Deum adorans cum seraphim in faciem prostrata sine pompa regnat. Humilitas ex fide vivente nata, reverentiam fidei semper sitit nichilque se esse aut scire vel posse scire gaudens, affectus christiformes in corde nutrit. Duplicis silentii doctrinam tenens ad pedes Christi Dei docibilis effecta discipula muta per compendium caritatis, convelata vadit ad Christum regem. Humilitas est Christi sensus quem se habere apostolus gloriatur.

Hunc habentes gaudent in infirmitatibus suis quia infirmitas humilitatis veritate caritatis fecundatur. Veritas vero caritatis est Ihesus quem concipit et parit virgo ante partum, virgo in partu, virgo post partum humilitas et portat numero dierum ierarchyce sacro Ihesum sanctificantem omnia in sensibus sanctificatis antequam pariat lumen verum quod iluminat omnem rationem et intellectum et totum affectum et voluntatem perficit et inflammat, in cuius ortu moritur prudentia carnis et humanarum cogitationum et rationum exterminantur tenebre ex virtute operationes vivificantis et apparentis nati solis et fruitione illius ineffabilis pacis que exsuperat omnem sensum, affectus quientantur et ita per celestem angelorum exercitum canticum hymni cum gaudio et admiratione super partus humilitatis gloria perficitur et scientia veritatis vigilantibus a vitiis, concupiscentiis et malitiis ad cultum et accessum et inventionem humilitatis, munditie et caritatis prestatur. Est igitur humilitas munditie et glorie Christie locus de quo scribitur: Benedicta gloria Domini de loco suo, in quo ignee, sancte, unice, multiformiter, certitudinaliter, cruciformiter, ex caloris caritatis fruitione, sensu et gustu, potenter et suaviter christiformia omnia deiformiter confingentia et sancticantia et unientia in Deum fiunt. Lumen enim et calor vivificantis solis suo fulgore superintellectuali et calore igneo affectuum super affectum motivo omnia continens et movens et perficiens et penetrans et excedens et numerans et quietans ex omnibus et in omnibus se totum comunicat diligentibus. Seque comunicando minorans iuxta mensuram humilitatis uniuscuiusque ostendit ut Deum et Dominum, ut patrem et magistrum ut regem et iudicem, ut medicum et amicum, ut pauperem et divitem, ut peregrinum et hospitem, ut pastorem et agnum, ut convivam et cibum, ut paranymphum et sponsum, ut lignum et librum vite, ut ignem et celum fulgurans et coruscans scientie, pietatis et sapientie, caritatis lumina et vivificantia incendia unientia et transformantia in ipsum qui tangendo aperit oculos ut videatur in omnibus et adiatur ex omnibus et teneatur et quia in omnibus se totus est, se totum dat, in omnibus infinitum monstrans et apparens, occultus manet et nemini notus. Et cum omnium naturales propriasque virtutes et voces ignee vehementer impulsivas in ipsum et a se ipsis repulsivas revelat et operatione ignota et ineffabili, multiformi et unica se in ipsis manifestat et aperit, totus fugit. Et qui se totum infinitum et infinite infinities bonum ostendit in totis, infinities infinite plus recedit ex totis et se totum tribuens et ostendens, fugiens se abscondit et in

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se ipso inacessibilis manet, qui amicis solis amatoribus Christi membris intimus est – videlicet Marie humilis pauperis Virginis natis, qui non sunt de hoc mundo.

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[Numa das últimas páginas]

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(Texto de 3a capa ou última página da revista)

Scintilla: Revista de filosofia e mística medieval é uma revista de publicação semestral sob a responsabilidade da Faculdade de Filosofia São Boaventura e do Núcleo de Pesquisa Acadêmica (NPA) Área de filosofia Medieval e Pensamento franciscano, de periodicidade semestral, com objetivo geral de fomento e divulgação sobretudo do estudo da medievalística, de maneira ampla e irrestrita. Isso significa que seu âmbito de abrangência atinge as mais diversas áreas da vida e do saber medievais, nas áreas de história, filosofia, mística, ciências, costumes etc. O diálogo com outras épocas da filosofia não é excluído mas antes suposto. O que significa que também se publicam artigos com enfoque em outras épocas da filosofia. A revista, no entanto, busca implicitamente um direcionamento específico, destacando a linha mística, que é a expressão de uma espiritualidade mais aprofundada dentro da religião, principalmente a cristã, e dentro da própria filosofia e teologia. Isso porque compreende-se que o coração, a flor da medievalidade se encontra na mística, a elaboração mais refinada da gigantesca busca religioso-cristã empreendida pela medievalidade.