scintilla - fraternidade franciscana são boaventura · dr. marco aurélio fernandes, ifiteg dra....

192
EDITORIAL 1 Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2012 SCINTILLA

Upload: trinhdang

Post on 01-Dec-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

EDITORIAL

1Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2012

SCINTILLA

2

ENIO PAULO GIACHINI

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2012

EDITORIAL

3Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2012

SCINTILLA REVISTA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 1-192.jan./jun. 2012

Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSBSociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM

Curitiba PR2012

Copyright © 2004 by autoresQualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

FAE – Centro UniversitárioIFSB – Instituto de Filosofi a São BoaventuraSBFM – Sociedade Brasileira de Filosofi a MedievalO IFSB é mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR E-mail: [email protected] ou [email protected] http://www.saoboaventura.edu.br/

Reitor: Nelson José HillesheimDiretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos SiarcosPró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendePró-reitor administrativo: Regis Ferreira NegrãoDiretor do Instituto de Filosofi a São Boaventura: Dr. Jairo FerrandinEditor: Dr. Enio Paulo Giachini

a) Comissão editorialDr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJDr. Orlando Bernardi, IFANDr. Luiz Alberto de Boni, PUCRSDr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFGDr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSCDr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP)Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina)Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia)Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP)Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España)Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College Estocolmo (Suécia)Dr. Ulrich Steiner, FFSBDr. Jaime Spengler, FFSBDr. João Mannes, FFSB

b) Conselho editorialDr. Vagner Sassi, FFSBDr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEGDra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJRDr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PRDr. Joel Alves de Souza, UFPRDr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ

Revisão e editoração: Equipe internaDiagramação: Sheila RoqueCapa: Luzia Sanches

A partir de 2009 a Scintilla compõe o banco de dados da EBSCO – http://www.ebscohost.com/titleLists/hlh-coverage.htm

Catalogação na fonte

Scintilla – revista de fi losofi a e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofi a São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofi a Medieval, Centro Universitário Franciscano, v.1, n.1, 2004-SemestralISSN 1806-65261. Filosofi a – Periódicos 2. Medievalística – Periódicos. 3. Mística – Periódicos. CDD (20. ed.) 105 189 189.5

SUMÁRIO

EDITORIAL ......................................................................... 7

Enio Paulo Giachini

ARTIGOS ............................................................................. 9São Boaventura e as chagas do Cristo da fé ...................... 11

Emmanuel C. LeãoA criação humana a partir do nada - Refl exões sobre

o princípio de trabalho de Boaventura ............................. 17

Sérgio Wrublevski

A Ideia como exemplar para São Boaventura .................... 33

Paulo R. Martines“Veritas est lux”: los signifi cados de verdad en

San Buenaventura ............................................................. 51

Gerald Cresta

Antropologia e teologia em São Boaventura ...................... 67

António Rocha MartinsAutoridad y razón. gonzalo hispano una reacción franciscana ibérica a los retos del pensamiento

natural aristotélico ............................................................ 85Manuel Lázaro Pulido

Prologue as pilgrimage - Bonaventure as Spiritual

Cartographer .................................................................... 111Timothy J. Johnson

A teologia da história no De perfectione evangelica de

São Boaventura de Bagnoregio .......................................... 139

Fábio Cesar Gomes, OFM

TRADUÇÕES .......................................................................... 163Quaestiones disputatae de scientia Christi

Questão IV: Pergunta-se se tudo que pode ser conhecidopor nós com certeza é conhecido nas próprias

razões eternas ..................................................................165S. Boaventura

EDITORIAL

7Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2012

EDITORIAL

Enio Paulo Giachini

Apresentamos neste volume 9, n. 1 de Scintilla, artigos em torno

do pensamento de Boaventura de Bagnoregio, teólogo franciscano,

ministro geral da Ordem e mestre de Paris. Também traduzimos

um texto de sua epistemologia cristológica, a quarta das Quaestiones

disputatae de scientia Christi.

Boaventura de Bagnoregio foi considerado dentro da Ordem

Franciscana seu segundo fundador: teólogo, mestre, místico e mi-

nistro geral da Ordem por 16 anos. Estava inserido numa época de

convulsão no pensamento cristão medieval. O recente ingresso da

fi losofi a aristotélica e seu sucesso nas universidades européias criara

uma efervescência de discussões. Três eram as correntes principais

que disputavam na Universidade: O Averroísmo latino de Siger de

Brabant, o antigo agostinismo, que dominava o estudo acadêmico até

então, e o aristotelismo cristão, puxado sobretudo pelo grande mestre

Alberto Magno e por Tomás de Aquino. Apesar de adepto confesso

de Agostinho, Boaventura não estava interessado primariamente em

contendas e disputas ideológicas, mas na compreensão dos traços

do Deus trinitário humanado no Nazareno, na transmissão de seus

ensinamentos e os do poverello aos frades da ordem e aos estudantes

de teologia, e por consequência ao povo de Deus. Seu agostinismo

não era um apego à tradição, mas radicava-se na essência de um cris-

tianismo iluminado pela força do intelecto amoroso. A base de fundo

da teologia de Boaventura era a trindade divina e a fonte primeira de

leitura, a Sagrada Escritura.

Boaventura foi, então, uma grande personalidade no universo

acadêmico medieval. Teólogo importante, que combinou força

8

ENIO PAULO GIACHINI

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2012

ENIO PAULO GIACHINI

especulativa das verdades do intelecto com ardor místico; mestre,

que infl uenciou muitos discípulos; líder e organizador, que abriu

novos caminhos e missões à ordem franciscana; pastor, que traduziu

o ideal do Francisco pobre da cruz em mensagem para ser seguida

por muitos.

Em sua teologia, as criaturas são formadas à semelhança e são

imagens da perfeição divina. As criaturas não inteligíveis são vestígios,

as inteligíveis são imagem e as almas agraciadas são semelhança de

Deus. A essência da metafísica é para ele então a capacidade de ver

no fundo das criaturas seu verdadeiro ser, onde o fi nito e o infi nito

se tocam.

Na criação, a exemplo de Francisco, Boaventura vê espelhada a

indicação para a ascensão para Deus. Cunhado como exemplarismo e

simbolismo, seu pensamento traça um itinerário de subida para o alto.

A teoria da iluminação boaventuriana, a presença e brilho da irradiação

das ideias divinas na alma, presta-se para que o ser humano compre-

enda o universal e imutável em meio ao singular e passageiro. Como

o sol, com as coisas corpóreas, a irradiação divina ilumina, aquece e

fortalece a alma. “Aquilo que o seráfi co Francisco viveu, Boaventura

trouxe para dentro de um sistema teológico. Nele o espírito do pobre

de Assis se tornou no espírito da teologia seráfi ca”1.

Sua ciência era uma teologia afetiva, “que deduzia seu saber te-

ológico não apenas de um puro pensar, mas também da experiência

da oração e do exercício da virtude, fundamentando-o no pensar, no

querer e no ânimo, vendo a meta desses não apenas num conheci-

mento puramente teorético, mas também na cognitio soporativa e no

melhoramento da vida”2.

1 KAUP ofm, J. Introdução. em: BONAVENTURA. Itinerarium mentis in Deum – De reductione artium ad theologiam. München: Kösel, 1961, p. 23.

2 GUARDINI, R. Die Lehre des hl. Bonaventura von der Erlösung. Düsseldorf: L. Schwann, p. 1921.

ARTIGOS

SÃO BOAVENTURA E AS CHAGAS DO CRISTO DA FÉ

11Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 11-16, jan./jun. 2012

SÃO BOAVENTURA E ASCHAGAS DO CRISTO DA FÉ

Emmanuel Carneiro Leão*

São Boaventura nasceu em 1221 numa pequena aldeia entre Or-vieto e Viterbo, chamada de Bagno Regio, no Estado Pontifício de então. O pai, médico, tinha por nome de João e pertencia à família nobre dos Fidanza di Castello. A mãe, Ritella, dera-lhe o nome do Pai, João, embora posteriormente fi casse conhecido pela alcunha de Boaventura.

Foi para Paris estudar na Sorbonne, onde se tornou discípulo do mestre franciscano, Frei Alexandre de Halles. Por infl uência deste e de outros frades entrou para a Ordem dos Frades Menores em 1243. Além dos mestres franciscanos de Paris, como João de Parma e Ri-cardo de Cornuária, Boaventura freqüentou provavelmente os cursos dos mestres dominicanos, Hugo de Saint-Clair e Alberto Magno. Foi mestre regente em 1255-1256, após uma disputa entre a universidade e as Ordens Mendicantes, cujo desfecho exigiu a intervenção do Papa Alexandre IV. Foi a primeira vez que São Boaventura teve de enfrentar a questão da pobreza evangélica, da qual tratou nas Questões Dispu-tadas sobre a Perfeição Evangélica. A segunda vez se referia ao ideal de pobreza dentro de sua própria Ordem, e a terceira vez será em 1266, para enfrentar Gerardo de Abbeville, com o tratado, “Apologia dos Pobres”. Em sua atividade docente, comentando o Evangelho de São Lucas e as Sentenças de Pedro Lombardo, Boaventura pretendia apenas “continuar a obra de Frei Alexandre”.

* Professor do IFCS, UFRJ.

12

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 11-16, jan./jun. 2012

Seu ofício de mestre regente, porém, não durou muito. Em 1257, no Capítulo de Parma, Frei João de Parma renunciou ao cargo em meio a uma grave crise, provocada pela Cúria Romana em combate contra o místico e profeta calabrês, o abade Joaquim de Fiore, que gozava de grande conceito entre os franciscanos. Grassavam ainda muitas tensões internas acerca do ideal de pobreza evangélica, da necessidade de estudos e da organização da vida e conventos.

No Capítulo de Parma, presente o Papa Alexandre IV, frei João de Parma, religioso de grande perfeição e santidade de vida, indicou para sucedê-lo o jovem mestre Boaventura, dizendo que não conhecia em toda Ordem ninguém melhor para exercer a função de Ministro Geral. São Boaventura tinha então trinta e seis anos.

Nesta altura, a tarefa de administrar a Ordem dos Frades Menores impunha graves responsabilidades. Os problemas com a Cúria Roma-na por causa do Joaquimismo, as questões relativas ao ideal de pobreza e aos estudos com livros e conventos estáveis, achavam-se intimamente relacionados entre si e ameaçavam a paz, a unidade e sobrevivência da própria Ordem. São Boaventura enfrentou o Joaquimismo com um infeliz processo canônico contra João de Parma, que o havia indicado para sucedê-lo, defi niu o ideal da pobreza evangélica, narrando, na Legenda Maior, uma vida ofi cial de São Francisco, com o mandado de destruir todas as outras vidas e regulou a vida em conventos com as Constituições Narbonenses. Estas três medidas aplacaram a Cúria Romana.

São Boaventura não pertencia à primeira geração dos frades, nem vivenciara o modo de Ser e viver de São Francisco, o ideal evangélico dos primeiros Irmãos. Entrara na Ordem no fi nal do generalato de Frei Elias, primeiro sucessor de São Francisco, quando os estudos to-mavam poderoso surto pela entrada de professores universitários e os primeiros conventos de pedra iam sucedendo as humildes choupanas dos primeiros anos.

SÃO BOAVENTURA E AS CHAGAS DO CRISTO DA FÉ

13Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 11-16, jan./jun. 2012

O que impressionara São Boaventura no movimento franciscano era o grau de sua vitalidade histórica e as possibilidades de uma nova maneira de viver o Evangelho. Por isso também concebia de alguma maneira a vida dos irmãos menos como uma regra e mais como um espírito de revitalização do homem no mundo. A seus olhos a Ordem dos Frades Menores estava percorrendo o mesmo caminho seguido pela Igreja de Jesus Cristo.

Longe de considerar a entrada na ordem de sábios e doutores, de mestres e letrados de seu tempo, um desvio do ideal primitivo, São Boaventura via, no fato, repetir-se a mesma caminhada da Igreja primitiva e, assim, uma demonstração cabal da santidade evangélica e do caráter providencial da obra de São Francisco. Tal como a Igreja de Jesus Cristo, a Ordem Franciscana não tinha sido fundada por sábios e poderosos, mas por pessoas simples pobres e humildes, como eram os apóstolos. E assim como a Igreja primitiva acolheu em seu seio grandes fi lósofos, doutores e mestres insignes, assim também o movimento franciscano abrigou em si a fi na fl or da ciência e da teologia de seu tempo. Evoluir é o sinal das obras de Deus que não fazem senão progredir, em contraste com as obras dos homens, cuja evolução acarreta sempre corrupção e perda de cadência. É o que São Boaventura lembra na epístola De Tribus Quaestionibus: “Confesso diante de Deus que aquilo que me fez amar o modo de vida de São Francisco foi a semelhança com o início e a perfeição da Igreja que começou com simples pescadores para depois chegar a doutores fa-mosos e competentes”.

O Primeiro Capítulo Geral sob São Boaventura (1260), em Narbona, estabeleceu as primeiras “Constituições da Ordem”. Foi também a assembléia quem encarregou São Boaventura de escrever uma vida de São Francisco. São Boaventura partiu então para a Itália e foi procurar os companheiros ainda vivos de São Francisco para informar-se de todos os detalhes e das peripécias de vida e atividades

14

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 11-16, jan./jun. 2012

do Santo. No Monte Alverne, onde São Francisco tinha recebido os estigmas e, ele mesmo, um ano antes tinha escrito o Itinerarium Mentis in Deum, uma das obras da mística medieval, São Boaventura compõe a Legenda Maior.

Seguindo a mentalidade medieval e o espírito franciscano, São Boaventura não é nem mesmo pode ser um historiador no sentido da historiografi a moderna. Sua descrição da vida de São Francisco não segue a ordem cronológica dos fatos e sim o curso espiritual da santidade em que uma pessoa de escol, mas viva de carne e osso, de-senvolve o ideal evangélico de vida criando fatos, elaborando feitos, mas sempre de sentido espiritual. O espírito moderno é que tem grande difi culdade de aceitar que todo fato é sempre feito, e feito num processo sobredeterminado de fazer. O tão decantado método histórico crítico das ciências históricas não passa de uma linha de montagem de peças moldadas ao jeito de uma objetividade que se ignora como subjetividade.

As duas Legendas, a Maior e a Menor, fi caram prontas no início de 1263, tendo sido apresentadas e aprovadas no Capítulo Geral reunido em Pisa. Foram feitas trinta e quatro cópias, uma para cada Província. Foram declaradas a Vida Ofi cial de São Francisco de Assis. O seguinte Capítulo de 1266, além de aprovar defi nitivamente as duas Legendas como as únicas a serem seguidas por toda Ordem, decretou que todas as outras Legendas ou Vidas de São Francisco deveriam ser destruídas onde quer que se encontrassem. Ângelo Clareno, em sua História das Sete Tribulações, afi rma que este decreto foi uma proposta do próprio São Boaventura. E com isto, até o fi m do século XVIII só se conhecia o retrato de São Francisco traçado por São Boaventura nas suas Legendas.

Em 1226, Frei Elias era o vigário da Ordem dos Frades Menores. Por ocasião da morte de São Francisco, enviou uma Carta Encíclica, isto é, uma carta circular, aos Ministros das várias Províncias Franciscanas, espalhadas pela Europa, anunciando o passamento do santo fundador.

SÃO BOAVENTURA E AS CHAGAS DO CRISTO DA FÉ

15Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 11-16, jan./jun. 2012

A Carta Encíclica de Frei Elias é o testemunho escrito mais anti-go das Chagas e Estigmas de São Francisco. Não se dispõe do texto manuscrito da Carta. No entanto, o cronista Frei Jordão de Jano, admitido na Ordem pelo próprio São Francisco em 1219, se refere a ela em 1262.

No número 50 de sua Crônica, logo após registrar o dia e o ano da morte de São Francisco, Frei Jordão informa as providências tomadas por Frei Elias para lidar com as repercussões da morte. Escreve:

Depois da morte do Bem Aventurado Francisco, Frei Elias, que era o vigário, enviou à Ordem cartas de consolo aos irmãos perturbados com a morte de tão grande Pai. Anunciava a todos e a cada um que, tal como Bem Aventurado Francisco lhe tinha ordenado, abençoava a todos da parte dele e os absolvia de toda culpa. Dava, outrossim, notícia dos estigmas e de outros milagres que, depois da morte, o Altíssimo se dignara a realizar por meio do Bem Aventurado Fran-cisco. Por fi m, recomendava aos Ministro e Custódios da Ordem que se reunissem para eleger o Ministro Geral.

Da carta de Frei Elias se dispõe de uma cópia daquela enviada ao Ministro da Província da França, Frei Gregório de Nápoles. Trata-se de uma carta estilizada em que se tece o sentido da vida e morte de São Francisco com passagens das Escrituras que falam do dom de Deus. É que na visão de São Francisco o mistério da fé ilumina as experiências da vida e da morte de todo cristão. Para o espírito franciscano de todos os tempos não há separação entre céu e terra, desde quando a união pessoal, chamada pela teologia de União Hi-postática, fez aparecer no Cristo da Fé, Criador e criatura. Na vida de São Francisco a Encarnação do Verbo de Deus não é somente in-dividual. É maiúscula universal. Uma verdadeira singularidade. Esta singularidade de vida humana e divina levou a teologia franciscana do fi nal do século XIII a ver na Encarnação do Verbo o summum opus, a maior obra da Criação. A Encarnação ultrapassa em Graça e Verdade os limites do Jesus Histórico e transborda para a história de toda a

16

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 11-16, jan./jun. 2012

Criação. “Transfi gurando-se de glória em glória”, a Filiação Divina do Verbo Encarnado não atinge somente o homem, mas se estende do homem para todas as criaturas, na totalidade do real e no universo das realizações. É a Encarnação que São Francisco canta no Cântico das Criaturas e a proclama no martírio de sua vida e nas chagas de seu corpo. Para percebê-lo, porém, é preciso aceitar a admoestação de que a boa visão não é aquela que vê tudo que é visível. A boa visão é a que vê no visível o invisível. É o que nos lembra o próprio São Francisco na admoestação sobre o corpo do Senhor: Jesus não pode ser visto senão no espírito, porque o espírito é que vivifi ca, a carne por si só nada vale. E nem o Filho, no que é igual ao Pai, pode ser visto de forma diferente do Pai, nem de modo diverso do Espírito Santo. Por isso, foram danados aqueles que viram o senhor Jesus segundo a humanidade, mas não o viram segundo o espírito, nem creram segundo a Divindade, que é o verdadeiro Filho de Deus (Ad. 1,6-8),

Somente uma época de grande perda da cadência espiritual não sabe identifi car a própria decadência e por isso só consegue ver na Cha-ga de São Francisco “sintomas de lepra tuberculóide ou de fronteira”1. Somente uma época incapaz de avaliar a decadência como decadência poderá concluir que “nenhuma fonte antiga digna de crédito se referiu às chagas sangrentas nas mãos e nos pés de São Francisco”2.

Rio de Janeiro, 09 de maio de 2012.

Emmanuel Carneiro Leão

1 SCHATZLEIN OSF, J.; SULMASY OFM, D. P. The Diagnosis of St. Francis: Evidence for Leprosy, em: Fraciscan Studies, 47 (1987), p. 181-217.2 Cf. SCHMUKI OFM Cap., O. The Stigmata of St. Francis of Assisi: A Critical Investigation in the Light Thierteenth-Century Sources. St Bonaventure, NY, Franciscan Institute Publications, 1991, p. 324.

A CRIAÇÃO HUMANA A PARTIR DO NADA

17Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

A CRIAÇÃO HUMANA APARTIR DO NADA

Refl exões sobre o princípio de trabalhode Boaventura

Sérgio Wrublevski*

Quando nos ocupamos de uma fi gura histórica como a de S. Boaventura, nos deparamos com grandes difi culdades para encontrar o núcleo de seu pensamento, de sua ação, de sua personalidade. O século XIII, no qual viveu Boaventura, marca o ápice do pensamen-to escolástico, e é a própria situação espiritual que, no seu ápice, se torna turbulenta e complexa, exigindo respostas próprias do fi m de uma época e prenúncios de uma nova época. Em nenhum outro período da Idade Média houve a produção de tantos princípios de trabalho fi losofi camente signifi cativos como entre os anos 1250 e 13001. Embora a obra de Boaventura tenha sido preponderantemente interpretada dentro dos interesses religiosos institucionais, como uma grande fi gura da Igreja Católica e da Ordem Franciscana, ela tem suscitado interpretações não tão ortodoxas, interessadas em captar o núcleo desta fi gura não somente típica de seu tempo mas originária, indicadora de uma universalidade toda própria. Seria Boaventura uma boa demonstração de um “universal concreto”, ao lado de outros como Tomás de Aquino, Roger Bacon, Duns Scotus, sem que se possa falar da exclusividade de um princípio?

1 FLASCH, Kurt. Das philosophische Denken im Mittelalter. Stuttgart: Reclam, p. 401.

* Doutor em fi losofi a pela UFRJ, professor de Filosofi a no IFITEPS (Nova Iguaçu – RJ).

18

SÉRGIO WRUBLEVSKI

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

1 Introdução ao contexto histórico

1.1 Vida biográfi ca

João de Fidanza nasceu por volta de 1217 em Bagnoregio, vilarejo próximo à cidade de Orvieto, na região central da Itália. Seu pai era médico. Estudou junto do convento dos frades de Bagnoregio por dez anos, iniciando com 8 anos. Com 18 anos ingressou como estudante da Faculdade de Artes de Paris – o liceu daquela época concluído com o magistério. Com 26 anos, no ano de 1243 – vinte anos depois da morte de S. Francisco de Assis –, ingressou na ordem franciscana com o nome de Boaventura. De 1243 a 1248 estudou teologia na mesma universidade de Paris sob a orientação de Alexandre de Hales, João della Rochelle, Odo Rigaldi e Guilherme de Melitona. Nos anos 1248 a 1254 realizou os degraus acadêmicos culminando com a Licença para ensinar (Licentia docendi). De 1254 a 1257 exerceu o cargo de mestre regente da cátedra franciscana de teologia na Universidade de Paris. Com 40 anos, no ano de 1257 foi eleito ministro geral da Ordem dos Frades Menores, em cujo cargo parece ter permanecido por 15 anos, até 1272. Em 1265 Boaventura foi nomeado arcebispo de York, mas conseguiu que tal nomeação fosse suspensa. Como superior geral dos frades franciscanos, que neste momento já forma-vam um grupo de 30.000 frades espalhados por toda a Europa até o coração da Ásia, Boaventura permaneceu em grande parte do tempo próximo a Paris ou nas imediações, dedicando-se, antes de tudo aos problemas da Ordem Franciscana, mas sem se desligar da atividade universitária. Neste contexto tornou-se um homem de ação. Viajou muito para a Itália, França, Alemanha, Espanha e, provavelmente, também para a Inglaterra, sem deixar de trabalhar os questionamen-tos fi losófi cos colocados por seu tempo. No ano de 1273 foi eleito cardeal da Igreja Católica e bispo da cidade italiana de Albano, e consagrado no ano de 1273. No ano de 1274 participou de quatro seções do Concílio de Lyon, e veio a falecer em 15.07.1274 com a

A CRIAÇÃO HUMANA A PARTIR DO NADA

19Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

idade de 57 anos. Em 1482 Boaventura foi inscrito no catálogo dos santos da Igreja Católica.

1.2 Contexto histórico-cultural do século XIII

Três grandes matrizes culturais de origem patriarcal-monoteística dominavam o contexto espiritual da Idade Média: a cultura judaica, de origem patriarcal e fl orescente na diáspora desde a expulsão dos judeus da Palestina, a cultura muçulmana, também de origem patriar-cal, presente principalmente nos povos árabes, e a cultura ocidental-européia, de origem patriarcal, mas presente em solo europeu a partir do movimento cristão. Na Europa medieval dominava um sistema co-nhecido como cristandade, um sistema de mútua-interdependência no poder formado pelo papado (sacerdotium) e pelo imperador (Regnum). A idéia da liberdade (libertas) que a Igreja tinha conseguido alcançar na questão da investidura dos bispos, distinguia-se pela independência de toda violência mundana e pela autonomia no próprio âmbito e com isto signifi cava uma mais nítida limitação nas competências da potência mundana e espiritual. Se o poder (potestas) real e a autorida-de sacerdotal eram reconhecidos como autônomos e independentes em seu próprio âmbito de competência, ambos estavam remetidas a uma unidade de apoio mútuo obrigatório. Tanto a dominação da potência imperial era legitimada sacramentalmente, como também a dominação espiritual era marcada pelos rituais de poder. Ambos entendidos como refl exos do poder divino. Especialmente a partir do séc. XII/XIII, o império torna-se conhecido como sacrum Imperium (romanum), no qual o império se entendia realizando uma tarefa in-dependente da Igreja e do Papado, e imediatamente referida a Deus. Isto lhe dava tarefa tanto de santifi cação como de uma dominação fundada, em última análise, no sagrado.

A partir do século XI acentua-se o confl ito e a divergência entre o Reino e o Sacerdócio, marcado pela crescente dessacralização da

20

SÉRGIO WRUBLEVSKI

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

dominação mundana e pela crescente autonomia real das comuni-dades nacionais, consumando a divergência de dominação política e religiosa.

O século XIII, no qual atuou Boaventura, é propriamente o tempo em que se deu o ápice da crise entre o império e o papado. Inicialmente, afi rma-se sempre mais a autoridade de cada rei em contraposição à autoridade do imperador. Um rei é imperador no seu reino. O poder papal permanece num confronto cada vez mais direto com o imperador. O Papa (de Inocêncio III a Gregório X) tenta impor ao Ocidente a paz cristã. O imperador, especialmente na fi gura de Frederico II (de 1220 a 1250), reina sobre a Alemanha, Norte da Itália, Sicília e coloca difi culdades aos territórios sob a juris-dição direta do Papado. O papa se apóia na casa real dos Staufen, mas tenta infl uenciar diretamente na escolha do imperador. No início do próximo século, o Papa se tornará refém do Imperador, com a sede do Papado em Avignon.

Se a cristandade em solo europeu não dispunha de uma paz fácil nas relações internas, muito ameaçadoras eram as relações com os poderes externos à cultura européia. Os mongóis ameaçavam o mundo ocidental-cristão, tendo alcançado a Silésia e a Hungria, destruído as cidades de Kiev e Cracóvia, e aniquilado os Selgiuquidas em 1243. No sudoeste da Europa, a Espanha lutava contra a dominação mu-çulmana e retomava cidades como Valência e Sevilha. No sudeste, a Terra Santa, desde a primeira cruzada, devorava inúmeros jovens europeus, sem qualquer fruto. A quarta cruzada, realizada no ano de 1204 com o objetivo de conquistar Constantinopla e implantar um reino latino no Bósforo, conduziu a confl itos de muçulmanos na península ibérica. Em 1212, trava-se a batalha de Las Lavas de Tolosa, com a vitória do lado cristão, mas com estremecimento das relações. Jerusalém acabou caindo defi nitivamente sob jugo árabe no ano de 1244. A ruptura entre Bizâncio e Roma já estava em marcha,

A CRIAÇÃO HUMANA A PARTIR DO NADA

21Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

sendo selada pelo Concílio de Lyon. Por indicações deste concílio foram enviados monges e outras pessoas para implementar o diálo-go com o mundo do extremo-oriente. Ao mesmo tempo crescia a consciência da necessidade de diálogo com as culturas não-européias e da insufi ciência da concepção escolástica para a realização efetiva de um tal empreendimento. Inicia-se a preparação de um diálogo urgente com a cultura muçulmana. São Tomás de Aquino recebe a incumbência de preparar uma Summa Theologica própria para este diálogo (Summa contra Gentiles). Raimundo Lullo cria escolas para a aprendizagem da língua árabe. Se de um lado, após as extravagâncias predatórias da quarta cruzada em Bizâncio, a ruptura entre Ocidente e Oriente se tornava cada vez mais irreversível, culminando com a conquista de Bizâncio pelos Otomanos em 1453, crescia, nas zonas de contato entre o mundo cristão e muçulmano, especialmente na península ibérica e na Sicília, a cooperação na medicina, na fi losofi a e nas ciências naturais.

No interior do reino cristão, os sinais de fragilidade nunca foram tão grandes. A exigência de uma unidade de pregação e convicção, capaz de evitar desvios heréticos, levou ao fortalecimento do processo da inquisição. Tratava-se de um moderno processo de investigação, que buscava uma certeza baseada no direito positivo, certeza que pretendia ser mais forte do que as antigas formas de direito, como a fala da vontade de Deus ou do juramento de fi delidade. Ao mesmo tempo, a intolerância em relação à diversidade de concepções fazia cidadãos e monges imporem a seus próprios co-cidadãos e confrades anos de silêncio e proibição de ensinar e pesquisar, o que manifestava a crise de identidade que se intensifi cava e exigia ruptura e renovação.

Um outro componente histórico típico deste século é a extrema difi culdade em que vive a grande parte dos homens. A maioria dos homens não sabe ler nem escrever, mas busca viver e sobreviver, sem jamais saber o que seja abundância. As carestias eram numerosas e

22

SÉRGIO WRUBLEVSKI

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

letais, os remédios escassos ou inexistentes. As epidemias devasta-vam cidades inteiras. A vida era rude para aqueles que escapavam à catastrófi ca mortalidade infantil e que esperavam viver ao menos até os 35 anos. Os homens viviam a experiência da morte e do caminho frágil do nada em todo instante. A crise de identidade fazia surgir uma credulidade quase irrestrita na autoridade, de tal modo que esta parecia não ter limites nos confrontos com o indivíduo. O autorita-rismo das Instituições (Estado, Igreja) revelava o vazio de fundo de toda a experiência imperial2.

2. Experiência originária de ser

Em sua vida biográfi ca Boaventura se confronta antes de tudo com a experiência originária de vida que algumas grandes fi guras realizaram num modo extraordinário. Assim, ele buscou intuir a grandeza origi-nária de Jesus Cristo e de Francisco de Assis, bem como a experiência grega, da qual o evangelho de Jesus Cristo, a experiência originária cristã, é um refl exo. Boaventura busca auscultar criativamente no contexto histórico medieval esta “scientia Christri”, compreende-a numa diálogo de identidade e diferença com o aristotelismo, com o averroísmo, com a teologia patrística e mística, (Dionísio Aeropagi-ta, Ugo de S. Vitor), mas também com um diálogo de identidade e diferença com o pensamento de Parmênides, Agostinho.

Conta-se que Boaventura teria se retirado para o convento de La Verna, para, na solidão da montanha, escrever seu mais experiente tratado teológico-místico chamado Itinerarium Mentis in Deum. Depois de muito trabalho, Boaventura desce ao sopé da montanha, onde, num vilarejo encontra uma mulher cristã muito pobre. Quan-do esta mulher soube do grande trabalho teológico que Boaventura

2 Cf. HEIDEGGER, M. Parmênides, Petrópolis: Vozes, 2008, p. 74.

A CRIAÇÃO HUMANA A PARTIR DO NADA

23Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

estava realizando, expressou sua grande admiração a respeito de tão grandioso, complexo e signifi cativo empreendimento. Ao escutar as palavras elogiosas desta mulher, Boaventura se deu conta de que a experiência originária vivida por aquela mulher pobre na imediata intrepidez era uma experiência muito mais ampla, radical e direta do absoluto, frente à qual a experiência apreendida pela ciência teológica sempre já aparecia como secundária, derivada.

Colocar esta experiência originária de vida como referencial pri-meiro de vida, e guardá-la sem desfi gurações é o que um pensador oriundo do movimento originado por Francisco de Assis intenciona antes de tudo propor. Francisco de Assis, na radicalidade de sua imi-tação a Cristo e de sua intuição acerca do novo modo de ser cristão, resumira a medida essencial numa frase lapidar: “guardar em tudo, antes de tudo, o santo modo de o Senhor operar”3. Para a segunda geração do movimento franciscano, formada por tantos milhares de seguidores, empenhados na diversidade de tantas regiões e tarefas, Boaventura entrevê a necessidade de repropor a radicalidade da ciên-cia cristã, integrada às novas exigências históricas, a partir da força que unicamente a experiência originária de Cristo e de sua primeira comunidade consegue mostrar. Neste contexto, podemos entender que a evidência de espírito exigida pelos novos tempos já não pode contentar-se com polêmicas “espiritualistas” ou “especulativas-acadê-micas”, joaquimitas ou institucionalistas, averroistas ou aristotélicas, empiristas ou metafísicas.

Boaventura é um dos primeiros pensadores a entender que a redescoberta da experiência cristã ocidental num modo originário, a partir do seu enraizamento histórico complexo, só terá êxito se for preparada por um confronto mais radical de espírito com a gênese desta tradição espiritual, que é o pensar grego e cristão. Nem o pensar

3 FRANCISCO DE ASSIS, Admoestações, n. XII.

24

SÉRGIO WRUBLEVSKI

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

ocidental está em condições de compreender o espírito originário da Grécia, nem o pensar cristão da tradição consegue compreender a experiência originária de Cristo. Entre os medievais, Boaventura é um dos poucos pensadores que não se cansa de exercitar-se no pen-samento platônico-aristotélico, mas que ousa pensar a diferença de desafi o que signifi ca o pensar de Parmênides. Oriundo da tradição platônica-agostiniana, Boaventura exercita-se na interrogação oriunda dos diversos níveis de conhecimento idealista-místico (Agostinho, Dionísio Aeropagita, São Bernardo, Hugo de São Viktor) para poder colocar a questão da origem de toda a evidência da linguagem a partir do silêncio e do retraimento do mistério.

2.1. Experiência originária de ser da Grécia e do Evangelho

Como se manifesta o desafi o de pura diferença, pelo qual o espírito da Grécia pode levar a racionalidade da tradição ocidental a recordar-se de sua proveniência? Não é em consonância com este espírito originário da Grécia que fl oresceu o espírito do evangelho?

Recordemos apenas dois exemplares do pensamento originário da Grécia, presente em tantos pensadores do período originário como poetas do período trágico. Nos ateremos a indicar acenos que nos deixaram Homero e Parmênides.

Como despretensiosa e genialmente Simone Weil conseguiu mostrar4, a Ilíada de Homero nos apresenta o homem num direto confronto com uma força que o transforma, o torna uno, mas que pode destruí-lo. Não é somente a força que mata, mas também aquela sob a qual os homens estão suspensos e que pode matá-los de um momento ao outro. Tanto impiedosamente esta força estrangula como impiedosamente ela inebria quem a possui ou crê possuí-la,

4 WEIL, Simone. La source grecque, Paris: Gallimard, 1953.

A CRIAÇÃO HUMANA A PARTIR DO NADA

25Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

mas ninguém tem a sua posse defi nitiva, nem heróis nem deuses. Não há nenhum homem que, a partir de um certo momento, não seja constringido a curvar-se diante desta força. Ela tem um duplo poder de transformar o homem: ela pode paralisá-lo, petrifi cá-lo, como pode potencializar aquele que aprende a usá-la. Ninguém escapa ao império desta força; nem o forte, que se crê, presunçosamente, senhor dela. Também ele deverá sofrer, ou seja, experimentar a lei, a vigência desta força. Obcecados pela força, ou seja, pela sua posse momentânea, os homens perdem o sentido e se tornam incapazes de justiça e prudência. Decisivo para meditação homérica é o conceito de equilíbrio, de integração, medida, limite (péras), que usamos em múltiplos modos para a matéria, a técnica, a geometria, mas temos difi culdade em usá-lo em referência ao homem, ao espírito. No entan-to, aprendemos insistentemente com os gregos de que todo o abuso insolente desta força, toda a des-medida, toda insolência (hybris) será punida fulminantemente. Nesta experiência direta da força divina da natureza, a carência, a insufi ciência humana não deixava de ser sentida, mas derivava da cordialidade que se estende sobre todos os homens como o clarão do sol que resplende sobre todos. A carência humana não deixa de ser amarga, mas não se abaixa a um simples lamento. Esta subordinação de todos os homens a esta força da necessidade pode ser suportada como um grau de relacionamento criativo (areté, virtuosidade). Se ninguém pode subtrair-se a esta força, nenhuma coisa nem ninguém pode ser considerado supérfl uo. Tudo o que no interior do homem e nos relacionamentos humanos escapa ao império desta força é amado – amado através da dor – e isto traz a necessidade da experiência do nada como condição de possibilidade da criação humana, seja a de suspender a destruição, seja a de transformar o homem tornando-o ele próprio. Aqui, o nada possibilita que a alma, sob domínio desta força, se desperte pura e intacta, reencontrando-se a si mesma, e isto não através de algum sentimento ambíguo, com-plicado ou tumultuado, mas através da coragem e do amor, que exige esquecimento de si.

26

SÉRGIO WRUBLEVSKI

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

A partir desta leitura podemos compreender que foi esta expe-riência originária da Grécia que os evangelhos captaram, especialmente quando descrevem a experiência de um ser divino e humano, que busca antes de tudo e unicamente em tudo “o reino e a justiça de nosso Pai celeste”. E o faz captando um espirito divino, unido à carne, tremendo diante do sofrimento e da morte, sentindo-se no fundo de seu abandono, separado dos homens e de Deus. O sentimento da miséria humana dá a ele aquele acento de coragem sem dissimulação ou desprezo, onde nada é desprezado ou colocado acima da condição humana, mas tudo é lugar de transfi guração. Aqui entendemos tanto a idéia grega de imortalidade, como um evento heróico no limite da capacidade humana, mas não produzido pelo homem, como também a idéia cristã de ressureição da carne, transfi guração do sofrimento numa possibilidade signifi cativa que não despreza nada, mas tudo subsume e incorpora numa nova e positiva possibilidade.

O conhecimento desta força, o reconhecimento do domínio da necessidade, é somente possível através da generosidade e humilda-de, isto é, de um heroísmo disposto a morrer para que a condução divina se dê e traga – obliquamente – um alto sentido de si. Trata-se, portanto, de uma experiência de facticidade guiada pelo tempo da necessidade divina, mas cuidadosamente acolhido e sustentado pela condição humana singular. Trata-se de uma radical refutação de qual-quer miracolismo ou sobrenaturalismo, bem como uma radical recusa de toda a forma de idolatria. No evangelho, o demônio é considerado o pai da mentira, por se apresentar como quem adora esta força (Jo 8,42-44; Mt 4,1-10). O reconhecimento do domínio desta força é um conhecimento de algo que foge desta força, mas a entende como um domínio de si, que, no confronto com esta irrupção misteriosa, sustenta o confronto com o que, instantânea e gratuitamente envia possibilidades e, no todo, se subtrai a ser compreendido panorami-camente. A capacidade de confrontar-se com esta força se apresenta

A CRIAÇÃO HUMANA A PARTIR DO NADA

27Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

como um exercício de nitidamente sondar e vislumbrar esta força, reconhecendo-a, sem adorá-la, sem pretender encaixá-la em concei-tualizações e defi nições, como na fi losofi a muitas vezes costuma-se operar. Não é justamente esta a atitude que é destacada no centurião de Cafarnaum (Mt 8,5-13; Lc 7,1-10), em relação ao qual Jesus fi ca pasmo de admiração e ao qual atribui uma fé imensamente gran-de, da qual Israel não sabe dar testemunho? Humildade signifi ca a compreensão de que toda a nossa vida depende do determinismo, da sorte, das circunstâncias. Humildade é aqui a forma criativa do nada se mostrar. Mas faz-se necessário alcançar uma orientação que não nos faça adorar as circunstâncias, nos confundir com a factualidade, deixando entrar cálculos mesquinhos que destroem a orientação salvadora fundamental.

O reconhecimento radical e lúcido desta força somente se torna evidente se, nas suas imediatas exigências, nos empenhamos em su-perar o prejuízo consolidado da “mitologia grega”, como se ela fosse uma espécie de religiosidade fantástica, cheia de vitalidade mas no seu conjunto algo vão e infantil em confronto com a religiosidade bíblica séria e severa. Em verdade, os poetas gregos tentam nos pas-sar a profunda consciência da unidade de tudo, de tal modo que no destinar-se (moira) da necessidade reconhecemos o abrir-se e o retrair-se do divino. É esta experiência da divinitas como absoluta necessitas que nos abre o conceito de força divina na qual estão inseridos todos os seres, os próprios deuses gregos. Em diferença de uma concepção idolátrica de um Deus determinado e determinante, que divide a realidade em boa e ruim, pensada em vista do homem determinado por fi ns particulares, os gregos, através de seus pensadores e poetas, nos propõem uma concepção profunda da bondade do todo. Esta compreensão amorosa do todo se estende sobre todos e sobre tudo, não sendo mais necessário a pretensão de valorizar o próprio eu. Não adorar a origem de toda a vida, não trocar o necessário pelo bem,

28

SÉRGIO WRUBLEVSKI

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

signifi ca não adorar algo determinado e, junto, dialeticamente, reco-nhecer no todo o divino, o bem, na sua concretude singular.

Esta experiência originária dos gregos e do evangelho está no centro da meditação bonaventuriana. No contexto do séc. XIII, marcado por polêmicas metafísicas (averroismo, aristotelismo) e por colocações antimetafísicas (espiritualistas, joaquimitas), Boaventura entende ser muito esclarecedor o confronto com o pensamento de Parmênides5.

A experiência originária de Parmênides principia chamando atenção para a insufi ciência do caminho do Ser como do caminho do não-ser. O primeiro seria protagonizado pela colocação metafísica, privilegiando a pura determinação do Ser e esquecido do Nada. O caminho do não-ser é recusado por Parmênides por confundir-se com a derivação, sem conseguir pensar a gênese positiva de todo caminho signifi cativo. O caminho originário de ser se confronta com o que é a partir do Ser e não-ser, no confronto com a aparência no seu aqui e agora. É neste aqui-agora que se dá o real em pleno equilíbrio, decisão e completude, como instantânea abertura do eterno na circularidade otimal do tempo. O nada é o que possibilita ser e não-ser no aparecer como envio cada vez de um destinar-se divino de tudo.

2.2. Acenos da experiência originária de ser em Boaventura

Boaventura interroga o sentido do ser, do não-ser, em todo o concreto vir a ser de modo exemplar no seu opúsculo conhecido atual-mente como “Recondução das ciências à teologia”6. Trata-se de um pequeno texto escrito com 26 parágrafos, no qual Boaventura integra

5 Cf. Commentari al libro delle Sentenze, Opere de san bonaventura, Roma, 1992.6 Reductio artium ad theologiam. O título foi dado pelos editores de Quaracchi na primeira parte do séc. XX.

A CRIAÇÃO HUMANA A PARTIR DO NADA

29Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

todas as artes e ciências como originadas por um princípio primeiro e como exercícios desta dimensão primeira, de onde tudo parte e para onde se dirige todo conhecimento positivo do homem.

Trata-se, portanto, de uma interrogação típica de Boaventura, na qual podemos examinar o princípio de trabalho que perpassa toda a refl exão realizada exemplarmente neste texto. A primeira frase diz de forma sintética o princípio de leitura desta obra: “Toda a dádiva excelente e todo o dom perfeito vem do alto, descendendo do Pai das luzes. Nesta frase se toca (repercute) a origem de toda a iluminação e, ao mesmo tempo, ela faz compreender a liberalidade da emanação em múltiplas luzes a partir da luz fontal”.

Trata-se da recondução7 das artes e ciências para a experiência inaugural da verdade que é unicamente a origem e a plenifi cação de todo conhecimento humano. As artes, ou seja, os conhecimentos positivos, técnicos e científi cos, deverão ser investigados com o escopo de mostrá-los em sua proveniência a partir da experiência inaugural teológica e assim fazer surgir todo conhecimento – que inclui o fi losófi co-racional – a partir de sua fonte originária. A recondução das artes (e de todos os conhecimentos) para a fonte inaugural teo-lógica não deverá ser entendida como um reducionismo nem como uma derivação. O reducionismo é uma tendência simplifi cadora que entende os conhecimentos positivos de um determinado âmbito a partir da sua correspondente materialidade ou objetividade (Por ex. os processos da alma a partir dos processos materiais-objetivos). A recon-dução também não deve ser entendida como uma derivação de todos os conhecimentos positivos a partir da teologia. A multiplicidade das artes e ciências não poderá ser derivada da pura unidade constituída pela teologia, fundada na idéia última de Deus como fundamento

7 A palavra re-ductio, exemplarmente usada na fenomenologia de Husserl, diz a recondução de um sentido positivamente dado para o âmbito de sentido de maior evidência.

30

SÉRGIO WRUBLEVSKI

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

de todos os seres. As ciências e as artes são investigadas como tendo cada vez sua própria luz (lumen), e portanto como âmbitos únicos e não-deriváveis de fora deles mesmos.

Mas as artes e as ciências não são campos isolados, justapostos e evidentes uns ao lado dos outros, elas são conhecimentos que ilu-minam o homem segundo o seu grau diverso de perfeição, formam parte da tessitura irrenunciável do horizonte do conhecimento no qual o homem se acha colocado. Seguindo a tradição fi losófi ca greco-ocidental, a concepção fi losófi ca medieval entende de desenvolver uma concepção total do ente, no qual os princípios fundamentais buscam explicar a totalidade da criação. Estes princípios devem ter validade seja para o Criador, seja para a criatura, seja para o homem como para as coisas individuais. A concepção da alta escolástica é, portanto, consciente de dever estender a concepção na sua unidade e diferença a todos os entes, colocando-os numa total correspondência essencial. Esta correspondência essencial é realizada no todo com grande tensão e determinação, mesmo quando a sua realização concreta se torna nos seus detalhes não de tudo clara.

Para o homem medieval o fundamento do ser e do pensar se en-contra em Deus. Deus é o próprio ser, pois consegue ser de si mesmo e subsiste a partir da própria completude e força (Ipsum esse per se subsistens). Deus é aquele ente, que é ele mesmo, o que é. Isto não quer dizer que Deus seja uma ocorrência no contexto espacial da realidade, mas, antes, que ele é o fundamento de sua própria possibilidade, do seu espaço de realidade, do seu ser: “Eu sou aquele que sou”.

Para a experiência pré-científi ca medieval, se algo deve sempre ser, necessita ser a partir dele. Tudo o que pode ser denominado de “real” (ens) pode receber este conteúdo somente através da participação no ser ele mesmo. Se Deus é pensado como Criador, isto não quer dizer que somente Deus seja o produtor, o artesão da natureza. Deus Criador, entendido originariamente, quer dizer que ele é a super-abundância, a partir de cujo excesso no ser o ente surge.

A CRIAÇÃO HUMANA A PARTIR DO NADA

31Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

O que é o ente, pode ser, portanto, somente entendido a partir de Deus. Por isto, em todo ente se encontra a referência ao ser, e esta referência do ser dos entes atravessa a totalidade dos entes. Assim, S. Tomás pode dizer: “O ser é apreendido e compreendido princi-palmente como “o que o intelecto originariamente (primo) entende, como o que é o mais conhecido (notissimum), para o que todos os outros conceitos podem ser reconduzidos”8.

O entendimento do ser não é produzido pelo pensamento dis-cursivo sobre algo, pois não é produzido pelo homem. Se “ser” não é entendido, não se pode compreender nenhuma outra coisa. Ser diz, portanto, a super-abundância de Deus Criador que faz aparecer todo ente e, neste, a totalidade dos entes. Neste sentido, podemos com-preender a pergunta fundamental de Tomás de Aquino em relação ao ente, realizada através de essência (quid, quidditas) do ente, e ao mesmo tempo através da pergunta pela existência (existentia). O que é (ente) necessita ser compreendido a partir do próprio ser, necessita ser compreendido como criatura de Deus. Quando Deus cria, surge ser e surge não outra coisa que ser. Fundamentalmente existe na tota-lidade da Criação somente ser; é uma compreensão equivocada aceitar que sejam dados conteúdos essenciais fora do ser e que deveriam ser, então, acrescentados ao ser.

Deus cria não a partir da necessidade, mas a partir do excesso de sua bondade. Esta bondade é a sua própria essência, o seu ser. Agora podemos talvez compreender melhor a frase inicial e principial do texto: “Todo dado otimal, ou seja, já exemplarmente aperfeiçoado, e todo dom entendido como per-feição essencial pertencem à mesma dinâmica super-abundante, na qual cada dom é entendido”. Boaven-tura interpreta dizendo que nesta palavra repercute a origem de toda

8 Illud autem quod primo intellectus concipit quase notissimum, et in quo omnes con-ceptiones resolvit – Quaestiones disputatae de Veritate, q. I, a.1.

32

SÉRGIO WRUBLEVSKI

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 17-32, jan./jun. 2012

iluminação e que, ao mesmo tempo, através das múltiplas iluminações se dá a emanação abundante a partir desta luz fontal. Existe um dado, que embora sendo proveniente da super-abundância de Deus, é já perfeição absoluta, e, ao mesmo tempo, todas as diversas múltiplas iluminações resultam como emanações super-abundantes de Deus. E acrescenta Boaventura: Também se, então, toda iluminação é “interior à consciência (isto é, aconteça sempre no interno de um determina-do conhecer concreto, e seja deslanche de conhecimento a partir de um conhecimento dado, podemos distinguir racionalmente (através da ratio) 1. Uma luz externa (arte mecânica, a que ilumina através dos conhecimentos das formas produzidas pelo homem 2. Uma luz inferior (conhecimento sensível, a que ilumina os conhecimentos das formas naturais) 3. Uma luz interior (conhecimento fi losófi co, a que ilumina o conhecimento das verdades intelectuais. 4. Uma luz supe-rior (conhecimento da graça e da Sagrada Escritura, a que ilumina o conhecimento da verdade salutar, ou seja, da ciência da salvação.

Estas diversas estruturações do conhecimento têm sua origem, e surgem com êxito, quando plenifi cam a única experiência inaugural chamada de iluminação, da qual todos os seres participam, mas ao homem é dado participar quando, através da experiência do nada, se presentifi ca todo conhecimento como sendo Deus em tudo e em tudo Deus. Deus não é, então, pensado em contraposição ao mun-do. Deus é o totalmente outro, o tão radicalmente outro que, não sendo nada nem qualquer ente, é, através desta mediação, tudo. Um pensamento que Mestre Eckhart e Nicolau de Cusa irão frutifi car a partir das meditações de Boaventura.

A IDEIA COMO EXEMPLAR PARA SÃO BOAVENTURA

33Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

A IDEIA COMO EXEMPLARPARA SÃO BOAVENTURA

Paulo R. Martines*

Resumo: A questão de ideis de santo Agostinho (quaestio XLVI – De diversis quaestionibus octoginta tribus) teve repercussão expressiva na Idade Média latina, o que pode ser entrevisto pelo amplo tratamento do tema nos principais autores do séc. XIII. Proponho analisar neste artigo a interpretação oferecida por S. Boaventura ao tema das ideias divinas como similitudo expressiva. Tomarei como fi o condutor da análise passagens do Comentário às Sentenças, livro I (distinção 35) e das Questões Disputadas sobre a Ciência de Cristo, q. 4.

Palavras-chave: idéia, platonismo, exemplarismo, conhecimento.

A principal formulação de Boaventura sobre as ideias divinas apa-rece no seu Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, obra escrita entre 1250-52, fruto de sua atividade como bacharel sentenciário. O horizonte fi losófi co do tema das ideias aqui desenvolvido pelo mestre franciscano é dominado pelo platonismo, fundamentalmente pela autoridade de Santo Agostinho e, de forma indireta, pela posição de Anselmo formulada no Monologion. Agostinho entende o termo ideia como forma ou species1. As ideias são compreendidas como for-mas primeiras ou razões eternas das coisas, não sendo formadas nem dependentes de um arquétipo anterior e, pelo fato de serem eternas,

1 O texto referencial de Agostinho é a questão 46 do livro “Sobre as Oitenta e três questões diversas”; in: De ideis, quaestio XLVI, in De diversis quaestionibus octoginta tribus liber unus. Sancti Augustinini. Corpus Christianorum, Series Latina 44/A, 11-249. Brépols, 1975.

* Professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Este artigo é uma versão modifi cada do trabalho apresentado no XIII Congresso Internacional de Filosofi a Me-dieval, realizado em agosto de 2011, na Universidade Federal do Espírito Santo.

34

PAULO R. MARTINES

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

encontram-se na inteligência divina2. Elas são o exemplar ou paradig-ma segundo o qual os seres são formados. A doutrina desenvolvida nessa questão 46 é um bom exemplo do platonismo de Agostinho e, do ponto de vista da história da fi losofi a, teve ampla acolhida na fi losofi a medieval latina3. Anselmo formula, em seu Monologion, a concepção segundo a qual a criação instaura certa racionalidade que requer uma forma antecipadora da coisa a ser feita, um exemplo, melhor ainda, forma, semelhança e regra da coisa a ser feita4.

Sabe-se que o sentido primeiro do termo ideia, do ponto de vis-ta etimológico, refere-se ao aspecto visível com o qual uma coisa se apresenta. Seu sentido fi losófi co nos remete para a indagação sobre a sua natureza, seja para saber se ela pertence ao espírito humano ou existe em algo separado dele, como, por exemplo, na mente divina, seja para saber acerca de suas propriedades e funções. A refl exão de Boaventura é marcada pela questão “se há ideias em Deus”, pergunta de um teólogo que lê as sentenças de Lombardo, e da qual se pode vis-

2 Quanto ao conhecimento delas pela alma racional, só aquela que for “santa e pura”, diz Agostinho, através da sua parte mais excelente, a mente (mens) e a ra-zão (ratio), entendidas como seu olho próprio, interior e inteligível: “[...] anima vero negatur eas intuieri posse nisi rationalis, ea sui parte qua excellit, id est ipsa mente atque ratione, quasi quadam facie vel oculo suo interiore atque intellegibili” (Agostinho, op. cit.).3 Cf. GRBAMMAN, M. Des heiligen Augustinus Quaestio de ideis in ihrer in-haltlichen Bedeutung und mittelalterlichen Weiterwirkung, in: Mittelalterlichen Geistesleben. Münster: Max Huebar, 1936. Cf. BOLAND,V. Ideas in God according to saint Thomas Aquinas: sources and synthesis. Leiden: E.J.Brill, 1996. A primeira parte dessa obra apresenta a história da formação das “Ideias em Deus”. 4 Cf. ANSELMO, Monologion, 10: “Nullo namque pacto fi eri potest aliquid ratio-nabiliter ab aliquo, nisi in facientis ratione praecedat aliquod rei faciendae quasi exemplum, sive aptius dicitur forma, vel similitudo aut regula”. Sobre o exem-plarismo de Anselmo, cf. MAZZARELLA, P. Il pensiero speculativo di S. Anselmo d’Aosta. Padova, 1962, p. 206-242; idem, L’esemplarismo in Anselmo d’Aosta e in Bonaventura da Bagnoregio. In: Analaceta Anselmiana, Frankfurt/Main, 1969, p. 145-164; SCIUTO, I, La ragione dellla fede. Il Monologion e il programma fi losofi co di Anselmo d’Aosta. Genova: Mariotti, 1991, p. 167-172.

A IDEIA COMO EXEMPLAR PARA SÃO BOAVENTURA

35Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

lumbrar um aporte decisivo não só para elaboração de sua metafísica, como também de sua epistemologia, haja vista que o tema da cognitio certitudinalis (se aquilo que conhecemos com certeza, conhecemos nas razões eternas) tem como referência a teoria das ideias divinas. O termo dessa investigação empreendida pelo mestre franciscano é a doutrina do verbo encarnado, mediador da criação e recriação, causa exemplar de tudo o que foi feito. Nessa perspectiva, está Boaventura longe de atribuir às ideias o fundamento transcendente do conhecimento. Sua formulação é certamente um momento decisivo na investigação sobre o tema das ideias, ao longo da história da fi losofi a.

O nome de Boaventura veio à tona numa época recente pelo trabalho de G. Deleuze sobre o tema da expressão, que, ao recuperar historicamente esse conceito, reencontra Boaventura e faz dele o mais importante autor medieval a tratar desse assunto5. Deleuze destaca que as ideias divinas são compreendidas como semelhanças exemplares e as coisas criadas, como semelhanças imitativas6. Por um lado, Deus dispõe de ideias pelas quais criou os seres; e, por outro, a criação é tão-somente a imitação da causa.

Ao considerar as relações entre as criaturas e o que elas são em Deus, São Boaventura encontra o lugar para falar sobre as ideias divi-nas. Seu termo preferido é ideia exemplar. Atribui-se a exemplaridade a Deus, porque há nele formas ideais, as ideias das coisas pelas quais

5 G. DELEUZE, Spinoza et le problème de l’expression. Paris: Les Éditions de Minuit, 1968. Não se deve deixar de registrar que o trabalho de E. Gilson sobre Boaventura, La philosophie de saint Bonaventure, é de 1923, e que o trabalho de J. M. Bissen, L’exemplarisme selon saint Bonaventure, é de 1929, e ambos destacam o tema do exemplarismo e das ideias divinas.6 DELEUZE, G, op. cit. p. 162: “Cette voie fut tracée par saint Augustin. Or, là encore le concept d’expression surgit pour determiner à la fois le statut de la similitude exemplaire et de la similitude imitative. Saint Bonaventure, à la suíte d’Augustin, est celui qui donne le plus d’importance à cette doublé determination: les deux similitudes forment l’ensemple concrete de la similitude ‘expressive’”.

36

PAULO R. MARTINES

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

ele as conhece e as produz. Pretendo defi nir ideia para Boaventura e o que signifi ca conhecer nas razões eternas. O itinerário desta exposição tomará em grande parte os argumentos apresentados na distinção 35 do Comentário ao primeiro livro das Sentenças e, em menor parte, passagens da Questão disputada sobre a Ciência de Cristo7.

1. Ideia, para Boaventura, é a semelhança (similitudo) da coi-sa conhecida8. Assim é que esse termo é defi nido no Comentário às Sentenças. De um modo geral, quando aludimos à semelhança, queremos expressar a relação ou conveniência entre duas coisas, e o termo primeiro para recobrir o seu signifi cado é aquele de imagem. Quando afi rmamos que duas coisas se assemelham, queremos dizer que elas não são totalmente idênticas entre si, nem totalmente diver-sas. A semelhança descreve, no caso em que consideramos, a relação e o nexo entre as criaturas e Deus. O caminho a ser percorrido para o reconhecimento das ideias divinas passa pelo entendimento do termo semelhança. Boaventura leva em conta dois tipos de semelhan-ça: 1) a semelhança que indica a conveniência de duas coisas a uma

7 Cito os textos de Boaventura a partir da edição Quaracchi: Doctoris Seraphicis S. Bonaventurae. Opera omnia: edita, studio cura PP. Collegi a S. Bonaventura, Quaracchi. Abreviaturas utilizadas: I – IV Sent: Commentarius in I,II,III,IV librum sententiarum; Brevil: Breviloquium; Chr Mag: Christus, unus omnium magister; Hexaem: Collationes in Hexaemeron; Sc. Chri: Quaestiones disputatae de scientia christii; Itin: itinerarium mentis in deum. Foram consultadas as seguintes edições: São Boaventura. Obras escolhidas. DE BONI, Luis Alberto (Org.). Porto Alegre: EST, 1983; Saint Bonaventure. Les sentences. Questions sur Dieu. Trad. et introduc-tion de M. Ozilou. Paris: PUF, 2002; L’oeuvre de Saint Bonaventure. Les six jours de La création. Trad. et introduction M. Ozilou. Paris: Cerf, 1991. A distinção 35 (artigo único) do Comentário às Sentenças (livro I) é dividida em seis questões, assim formuladas: questão 1: se há ideias em Deus?; questão 2: se há uma pluralidade real de ideias?; questão 3: se há uma pluralidade de ideias pela razão?; questão 4: se há diversas ideias em relação às realidades que lhes correspondem?; questão 5: se em Deus as ideias são fi nitas ou infi nitas em relação ao número?; questão 6: se as ideias têm uma ordem? 8 Cf. I Sent. d.35, a.u, q.1: “Ideia dicitur similitude rei cognitae”.

A IDEIA COMO EXEMPLAR PARA SÃO BOAVENTURA

37Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

terceira, denominada semelhança de univocidade; 2) a semelhança na qual se diz semelhança de outro, isto é, quando algo se relaciona com outro como a seu modelo. Esta última se divide, por sua vez, em duas: 2.1) semelhança imitativa, que concerne ao criado; e 2.2) semelhança expressiva, que se encontra no verbo eterno, na mente de Deus. Em resumo, três são as semelhanças: de univocidade, imitativa e expressiva9.

Dessas três semelhanças, a primeira (univocidade) é excluída de qualquer relação entre Deus e as criaturas, já que afi rma a presença de uma qualidade comum para seres diferentes; a segunda, salienta Boaventura, é de pouca importância, porque o fi nito imita o infi nito de modo não apropriado, dada a infi nita diferença entre ambos, de modo que a dessemelhança será maior que a semelhança; a terceira é a mais elevada, porque é a verdade ela própria, possui o traço dis-tintivo da verdade. Esta semelhança exprime melhor a coisa. Pode-se dizer que há em Deus razões expressas (porque se encontram nele) e expressivas (porque dão a cada criatura uma forma determinada e um princípio de conhecimento). Ao termo exemplar corresponde aquele de imagem. Ao considerar a criatura racional, Boaventura afi rma que a alma é um espelho, e como espelho não é um meio de conheci-mento, mas o próprio ser da alma10, é simultaneamente expressão e

9 Cf. I Sent, d.35,a.u,q.1, resp. “[...] uno modo secundum convenientiam duorum in tertio, et haec similitudo secundum univocationem; alio modo est similitudo secundum quod unum dicitur similitudo alterius, secundum quod unum dicitur similitudo alterius; et haec similitudo non concernit convenientiam in aliquo com-muni, quia similitudo se ipsa est similis , non in tertio; et hoc modo dicitur creatura similitudo dei, vel e converso deus similitudo creaturae”. Na resposta à segunda objeção, precisa-se a subdivisão desta em dois momentos: “Similitudo imitationis est modica, quia in modico potest fi nitum imitari infi nitum, unde semper maior est dissimilitudo quam similitudo. Similitudo vero expressionis est summa, quia causatur ab intentionis veritatis, ut visum est, quae est ipsa expressio; ideo deus summe omnia cognoscit”. Idem, ,ad.2.10 Cf. OZILOU, M. Introduction, in: Les sentences. Questions sur Dieu, p. 19.

38

PAULO R. MARTINES

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

expressiva, ou seja, é imagem, e como toda imagem remete para o seu exemplar: “[...] quando a alma vê todos esses objetos (suas potências e

operações), como que voltando-se para si mesma, ela torna-se espelho

belo e claro, no qual vê tudo que é beleza, como se vê uma imagem

no espelho polido”11.

Boaventura aborda três modos de expressão do mundo (gradatio

entis), segundo o qual há distintos modos e graus de proximidade entre

as criaturas e o criador: vestígio, imagem ou semelhança; vestígio é

aquele que tem Deus por causa, imagem, aquele que conhece Deus,

semelhança aquele em que Deus habita12. Expressão é o nome próprio

da semelhança, sem a qual não há conhecimento.

O termo ideia, para Boaventura, se diz de modo mais completo

como semelhança de uma coisa, e como tal é princípio de conheci-

mento e serve de modelo para a produção das coisas, de modo que

o termo exemplar substitui para Boaventura aquele de ideia. Uma

passagem do Breviloquio a respeito da ciência divina reconhece que

ela não é apenas conhecedora, mas é razão de conhecer, e tudo o que

pertence ao previsto e disposto por Deus chama-se exemplar: “[...] ao exemplar refere-se a ideia, o verbo, a arte e a razão: a ideia enquanto ato de prever; o verbo enquanto ato de propor; a arte, enquanto ato

11 Cf, Hexaem. V,25. O homem é imago dei porque é sua semelhança expressiva. Cf. II Sent d.16,a.1,q.1).12 Trata-se de graus de analogia de proporção, que representam e interpretam a trindade criadora: “[...] a criação do mundo é como que um livro, no qual resplan-dece, representa-se e lê-se a Trindade criadora em três graus de expressão: como vestígio, como imagem e como semelhança”.Cf. Brevil, II,12. Numa passagem do Comentário às Sentenças, Boaventura enfatiza que as criaturas se agrupam em três categorias segundo seu modo de convir ou assemelhar-se a Deus: sombra, vestígio e imagem. Como sombra, a criatura é representação afastada e confusa; como vestígio, é representação afastada, mas distinta; como imagem, é representação próxima e distinta. Cf. I Sent, d.3,a.u, q.1.

A IDEIA COMO EXEMPLAR PARA SÃO BOAVENTURA

39Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

de prosseguir; a razão, enquanto ato de concluir, porque acrescenta a intenção do fi m”13.

Para Boaventura, as razões de todas as coisas criadas e a serem criadas encontram-se na inteligência divina. Enquanto formas pri-meiras, essas semelhanças não dependem de um arquétipo anterior (ou extrínseco), são eternas. A criação não implica desordem, mas criação segundo a razão: todos os seres, todas as coisas têm Deus como autor e a conservação delas e sua ordem são reguladas pela lei divina. Somente Deus possui em sua essência todas as perfeições, somente ele conhece as maneiras infi nitas com que pode imitar a sua essência ao criar outros seres: ele os exprime em sua essência sob a forma de ideias eternas. Assim, pode-se afi rmar que a inteligência divina exprime eternamente em si as semelhanças exemplares de todas as coisas sem que esses exemplares venham de fora; esses exemplares são as ideias. Ao examinar a questão do conhecimento divino na questão disputada sobre a ciência de Cristo, isto é, sobre o conhecimento de Cristo enquanto Deus (q.2), aparece a confi rmação de que Deus conhece nas razões eternas (ideias), tal como o ensinamento de Dionísio e Agostinho. Essas razões eternas não são as essências das coisas elas próprias, pois não são distintas no criador, mas elas são as formas exemplares, as semelhanças14.

Ideia é semelhança expressiva, e como tal está em função da verdade divina. A doutrina trinitária comanda a inteligibilidade do exemplarismo bonaventuriano. O exemplar eterno do ato criativo é o verbo ou a sabedoria do pai. O exemplar de todas as coisas, “[...] engendrou na eternidade o fi lho como semelhante a si mesmo [...]

13 Cf. Brevil, I,8,2: “Ad exemplar autem expectat idea, verbum, ars et ratio: idea secundum actum praevidendi; verbum, secundum actum proponendi; ars se-cundum actum prosequendi; ratio secundum actum perfi ciendi, quia superaddit intentionem fi nis”. 14 Cf. Sc Chri. Questão 2.

40

PAULO R. MARTINES

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

disse todas as coisas que poderia fazer e as que maximamente quis fazer e as expressou todas nele, isto é, em seu fi lho, neste meio como em uma arte”15. O Filho é autoexpressão de Deus, imagem e exemplar de todas as coisas, arte eterna do pai. Isso é um traço importante a frisar, visto que a doutrina da expressão não é determinada apenas pela criação, mas pela comunhão das pessoas na Trindade: “[...] o pai se exprime inteiramente no fi lho” e este, em razão da identidade que os defi ne, “[...] exprime o pai sob todas as formas”16. A divindade não se esgota com a expressão criada. O tema da expressio concentra toda a sua atenção na pessoa do fi lho, ato inteiro da manifestação trinitária: de uma parte, o pai “concebe” o fi lho não apenas como ato de intelecção antecipadora, mas como autoengendramento de tudo; e, de outra parte, o fi lho não é apenas “concebido” em vista da autocontemplação de Deus, mas em vista de proferir ao homem e ao conjunto da criação a paternidade do Pai que ele exprime. Uma passagem do Brevilóquio indica, numa linguagem estética, aquilo que convém ao fi lho: “[...] aquele que é sumamente belo e radiante possui a razão de exprimir (exprimendi) e de ser exemplar (exemplandi); é por isso que convém apropriar a exemplaridade ao Filho”17.

Dessa noção de ideia como exemplar, semelhança expressiva, convém reter que a semelhança é de um modo em nós e de outro em Deus. A semelhança em nós é a razão do conhecer e a verdade é aquilo que é conhecido. Essa semelhança é recebida de fora e o intelecto humano, a respeito do que é conhecido, é possível, torna-se, por sua vez, em ato por algo que conhece, melhor dizendo, pela semelhança da coisa conhecida. Em Deus, ocorre o contrário, porque

15 Cf. Hexaem, I,13.16 Idem, III, 5.17 Cf. Brevil., I,6,4: “[...] summe pulchrum et speciosum tenet rationem exprimendi et exemplandi (...) hinc oritur tertia ratio exemplaritatem fi lio”. Cf. FALQUE, E. Saint Bonaventure et l’entrée de Dieu en philosophie, Paris: Vrin, 2000, p. 151.

A IDEIA COMO EXEMPLAR PARA SÃO BOAVENTURA

41Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

a razão de conhecer é a própria verdade e, por isso, ela é sumamente expressiva18. E tudo o que é expresso sumamente assimila perfeita-mente o que conhece, sendo evidente que a própria verdade é “[...] semelhança expressiva e ideia (similitudo expressiva et idea)”19. Essa semelhança não é outra coisa senão a semelhança em si mesma, pró-pria do verbo. O entendimento divino é luz suprema, verdade plena e ato puro, sufi ciente para produzir todas as coisas, e também é luz para expressá-las. Se todo conhecimento é uma assimilação, destaca Gilson, o conhecimento divino não deixa de sê-lo, mas a relação de semelhança é no sentido inverso: “[...] la connaissance de Dieu ressemble aux choses, non parce que les imite, mas parce qu’elle les exprime, et comme la vérité divine s’exprime elle-même et toutes les autres choses dans un unique et souveraine expression, elle réalise du même coup la parfaite ressemblence de soi-même et des choses sans dépendre aucunement de ses objets”20.

Boaventura ao explicitar o conhecimento divino vale-se da analo-gia com o verbo humano. Este é uma semelhança expressa e expressiva, concebida pelo espírito quando se volta para si ou contempla outra coisa21. Nessa operação se distinguem o verbo interno e o verbo ex-terno (palavra). Do mesmo modo, em Deus ocorre um duplo verbo: ao conhecer-se, engendra uma semelhança idêntica a si e, também, expressa tudo o que é, pode e sabe. Assim, Deus gera o verbo interno e, ao mesmo tempo, expressa as diversas semelhanças como arquétipos

18 Cf. I Sent., d.35, a.u. q.1: “[...] aliter est in nobis, aliter in deo. In nobis quidem ratio cognoscendi est simmilitudo, cognitum est veritas. Nam in nobis est simili-tudo accepta et impressa ab extrínseco, propter hoc quod intellectus noster respectu cogniti est possibilis et non actus Purus; ideo fi t in actu per aliquid cogniti, quod est similitudo eius. In deo autem est e converso, quia ratio cognoscendi est ipsa veritas et cognitum est similitudo veritatis, scilicet ipsa creatura”.19 Ibidem.20 Cf. GILSON, E. La philosophie de Saint Bonaventure. Paris: Vrin,1953, p. 130.21 Cf. I Sent. d. 27, p. 2 au. q.3.

42

PAULO R. MARTINES

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

de todas as imitações possíveis. Deus, ao conhecer-se, conhece todas as coisas numa única e mesma visão, isto é, numa única ideia: no verbo. Tal conhecimento é independente da criação das coisas, uma vez que o verbo as exprime enquanto dispostas a serem criadas no tempo. Ora, a ideia exemplar não é apenas uma semelhança impressa nem expressa, mas similitudo exprimens, dinamicamente fecunda22. Essa noção de fecundidade e geração confere à teoria das ideias de Boaventura um traço distintivo, de forma que o termo próprio que lhe é atribuído é expressão23.

Traço distintivo na concepção das ideias exemplares para Boaven-tura está no modo de entender a mediação da veritas exprimens do verbo eterno com a mente humana e com as coisas. As coisas criadas – por participarem da semelhança com o verbo – se transformam em signos divinos, isto é, sombras, ressonâncias e vestígios daquele primeiro princípio, onipotente, sábio e ótimo24. Dessa maneira, da doutrina da veritas exprimens segue-se que as ideias não se acrescen-tam ou se sobrepõem às coisas, mas se incorporam nelas, tal como a palavra humana se encarna na voz. Assim, o mundo é mais rico de signifi cados que realidades, um mundo de formas simbólicas25.

22 Boaventura alude a ratio foecunditatio, para se referir às ideias como expressão ativa de Deus: “Na sabedoria eterna há a razão de fecundidade para conceber, produzir e parir tudo o que diz respeito à universalidade das leis (universalidade de todas as razões exemplares). Com efeito, todas as razões exemplares são concebidas eterna-mente no seio da sabedoria eterna” (Hexaem., XX,5). Cf. também I Sent, dist.35, q.2, sol.3; CABRERA,L. La teoría de las ideas en san Buenaventura. Dissertatio ad doctoratum. Pontifi cium Athenaeum Antonianum. Facultas Philosophiae. Romae, 1994, p. 34.23 Cf. GILSON, E. op. cit., p. 12424 Todos os entes são alusivos e dependentes de Deus: “[...] no espelho do mundo sensível podemos considerar Deus de dois modos: por meio dos seres que compõem o universo e que são como que vestígios do criador, ou nos mesmos pela sua essência, potência e presença” ( Itin., II,1).25 A esse respeito, ver GONÇALVES, J.F. Homem e mundo em São Boaventura. Braga: Editorial Franciscana, 1970, p. 238ss; CABRERA, L. op. cit., p. 36.

A IDEIA COMO EXEMPLAR PARA SÃO BOAVENTURA

43Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

Vem à luz o problema da unidade e pluralidade das ideias divinas quando se relaciona o verbo interior, eternamente presente em Deus, com o verbo exterior, pronunciado no tempo. Se as ideias em Deus não se distinguem por se identifi carem com sua essência, elas são, por sua vez, múltiplas por se referirem às coisas. A unidade está em relação estreita com o ser de Deus e a multiplicidade, à existência das coisas. Admitir o contrário signifi ca reconhecer uma ação necessária ou uma emanação mecânica.

Boaventura, ao enfrentar o problema da pluralidade das ideias em Deus, é forçado a voltar ao tema da semelhança. Se a ideia é semelhança que exprime inteiramente aquilo do qual é a ideia, e se houvesse uma única ideia para todas as coisas, estas seriam indife-renciadas. A solução da difi culdade passa pela clarifi cação da noção de semelhança. Uma é a semelhança conforme a constituição de um determinado gênero (similitudo quaedam est secundum proprietatis generis), a qual não pode ser única por causa das diversas coisas que estão sob esse gênero. Outra é a semelhança que está além do gênero (alia est similitudo simpliciter extra genus). Tal semelhança é a verdade divina e a ideia em Deus: todas as coisas que se reportam a ela são possíveis. Há uma só semelhança real de todas as coisas que podem ser conhecidas. Isso pode ser entrevisto, de algum modo, diz Boa-ventura, pelo exemplo da luz que, única, exprime todas as cores que são numerosas e variadas26.

Vejamos melhor a distinção acima mencionada. A verdade que se exprime é idêntica a si mesma e aquilo que é expresso é múltiplo. A ideia em Deus confunde-se com a verdade; para nós, apresenta-se como intermediária entre aquele que conhece e o que é conhecido27.

26 I Sent. d.35,q.2,ad.2: “Et potest poni exemplum in luce aliquo modo, quae una secundum numerum exprimit multa et varias species colorum”. A posição de Boaventura é clara a este respeito: ideae sunt unum secundum rem.27 Cf. I Sent, dist. 35, a.u, q.3: “Respectum medium inter cognocens et cognitum”; Gilson, E. op. cit, p. 128-129.

44

PAULO R. MARTINES

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

As ideias designam as expressões divinas, não em relação a Deus ele próprio, mas às próprias coisas, o que implica afi rmar a multiplicidade delas, reconhecidas pelo nosso modo de entender e falar. A pluralidade encontra-se nas ideias em razão daquilo que conotam: “pluritas est in ideis ratione connotatorum”28.

2. A certeza do conhecimento humano decorre da infl uentia29 reguladora e motriz das razões eternas, tese fundamental do pensa-mento de Boaventura que convém examinarmos com mais atenção, uma vez já adquirida a noção de semelhança. A teoria da iluminação recebe sua formulação mais pormenorizada na questão 4 das questões disputadas sobre a ciência de Cristo. Acima, fi zemos menção a respeito do conhecimento divino, de Cristo enquanto Deus (q.2), agora, a questão volta-se para o conhecimento de Cristo enquanto homem (q.4). Essa questão mostra (1) que o conhecimento incriado é o fun-damento do conhecimento certo e (2) que a alma racional alcança a certeza segundo as razões eternas das coisas. Tais razões não devem ser entendidas, observa A. Solignac, como essências imutáveis, pro-tótipos ou arquétipos das coisas, de modo que conhecer as coisas nas razões eternas nada mais seria do que apreender a essência imutável e absoluta, por exemplo, do homem em si ou do cavalo em si30. A

28 Cf. Boaventura, ibidem.29 O termo infl uentia é recorrente em Boaventura e serve, de um modo geral, para designar a ação de um ser sobre outro. Assim, pode-se falar da ação dos corpos celestes superiores sobre os inferiores ou da infl uência de Deus sobre a alma, pela graça ou iluminação. Cf. BOUGEROL, Lexique S.Bonaventure, verbete infl uentia; MAGNAVACCA, S. Léxico técnico de fi losofi a medieval, verbete infl uentia. Infl uir é, de um modo geral, por parte daquele que produz a ação, estar presente. A infl uentia de Deus sobre os espíritos não indica que ele está unido com o homem, mas que se trata de uma ação da qual se apreende tão-somente o seu efeito na criatura racional, que nada mais é do que o conhecimento. Cf. BOUGEROL, St. Bonaventure et la sagesse chrétienne, p. 84.30 SOLIGNAC, A. Connaissance humaine et relation a Dieu selon saint Bonaven-ture, in: Bonaventurae 1274-1974, II, p. 394. Sobre essa questão 4 das questões disputadas sobre a ciência do Cristo, ver também VIGNAUX, P. Note sur la considé-ration de l’infi ni dans la quaestiones disputatae de scientiae christi, in: Bonaventurae 1274-1974, II, p. 107-130; BOUGEROL, J.G. Introduction a saint Bonaventure. Paris: Vrin, 1988, p. 203-206.

A IDEIA COMO EXEMPLAR PARA SÃO BOAVENTURA

45Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

ratio não se refere a um determinado campo conceitual, não fala o que é a própria coisa, mas as suas relações com as outras coisas, relações de dependência: a ratio “implique toujours un jugement de valeur, la perception d’une conformité ou d’une non-conformité à un idéal, l’affi rmation d’une exigence”31. Todo conhecimento enquanto tal se ordena a um verum, que, por sua vez, pertence à veritas (englobante e fundadora), da qual o espírito humano participa, mas que o trans-cende e se identifi ca em Deus.

Conhecer nas razões eternas pode ser entendido de um triplo modo: 1) a razão eterna como a única e total razão de conhecer; 2) a razão eterna intervém apenas enquanto infl uência (infl uentia); 3) a razão eterna como reguladora e motriz (regulans et movens)32. As duas primeiras seriam descartadas por motivos diferentes – a primeira, por ser algo excessivo, uma vez que dessa forma não haveria conhecimento senão pelo verbo, não mais haveria diferença entre o conhecimento obtido nesta vida e aquele que é próprio da bem-aventurança; a se-gunda parece pouco condizente com o ensinamento de Agostinho, dirá Boaventura, caso se admita que as razões eternas sejam entendidas somente por sua infl uentia. A terceira é o meio termo entre os dois extremos, o que faz esse conhecimento não ser absoluto em sua clareza, mas adquirido segundo as condições do estado presente do homem, por espelho e como em enigma, uma vez que esse conhecimento não se dá a não ser através de imagens.

31 SOLIGNAC, A. ibidem.32 Cf. Sc Chri, q.4: “[...] uno modo, ut intelligatur, quod ad certutidinalem cogni-tionem concurrit lucis aeterna evidentia tamquam ratio cognoscendi tota et sola” [...] Alio modo, ut intelligatur, quod ad cognitionem certitudinalem necessario concurrit ratio aeterna quantum ad suam infl uentiam, ita quod cognoscens in cog-noscendo non ipsam rationem aeternam attingit, sed infl uentiam eius solum” [...] “Et ideo est tertius modus intelligendi, quase medium tenens inter utramque viam, scilicet quod ad certitudinalem cognotionem necessario requiritur ratio aeterna ut regulans et ratio motiva, non quidem ut sola et in sua omnimoda claritate, sed cum ratione creata, et ut ex parte a nobis contuita secundum statum viae. Et hoc est quod Augustinus insinuat”.

46

PAULO R. MARTINES

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

As razões eternas são o fundamento do conhecimento certo. A ratio enquanto regulans é a norma de todo conhecimento humano, conhecimento este que não é válido a não ser que se conjugue com conhecimento divino e se regre por ele, tal como uma conversão, e “[...] tal conversão requer uma lei que seja certa e que não possa ela própria ser julgada”33. Mas também ela é ratio movens e, enquanto tal, nos remete para o fundamento último da tese de Boaventura so-bre a doutrina da imagem de Deus: os seres criados são ou vestígio, imagem e semelhança, entendidos aqui como que graus em relação a Deus, e a cada um corresponde um tipo de cooperação de Deus à sua ação. Na criatura racional como imagem, Deus coopera per mo-dum rationis moventis, um infl uxo dinâmico do modelo divino sobre a imagem. A inteligência humana é posta em movimento pela ratio eterna e orientada por ela: é regulans, na medida em que é norma do conhecimento, e movens, enquanto luz que se refl ete na alma.

A certeza do conhecimento humano tem seu fundamento nas regras eternas, e enquanto conhecimento da criatura é, assim, um refl exo das verdades eternas. Essa terminologia de Boaventura defi ne a infl uentia divina e se distingue do conhecimento dos primeiros prin-cípios, que são alcançados desde o momento em que nos chegam do exterior os dados do conhecimento sensível; contudo, ambos se empe-nham conjuntamente na busca da evidência. Os primeiros princípios do conhecimento nos apontam que algo não pode ser de outro modo, e as razões eternas conduzem o espírito para a visão de uma verdade mais alta, que não conhece nenhuma obscuridade. Entre ambas, há relação de continuidade: a infl uência dos primeiros princípios não alcança seus efeitos a não ser que se prolongue na luz eterna.

Todavia, a imagem não é o termo último da criatura, já que ela deve se realizar enquanto semelhança, o que “[...] implica uma relação

33 BOAVENTURA, idem.

A IDEIA COMO EXEMPLAR PARA SÃO BOAVENTURA

47Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

mais íntima com Deus no conhecimento e no amor, e que comporta uma cooperação divina de modo sobrenatural e infusa”34. O conheci-mento humano nas razões eternas diz respeito a uma relação específi ca entre o homem e Deus, uma relação de imitação, pois ela exprime a natureza do homem enquanto imagem de Deus.

A mesma questão acerca do conhecimento nas razões eternas recebe em Tomás de Aquino formulação diferente, ainda que ambos considerem o problema pelo viés do conhecimento. A questão 84 da Suma de teologia (primeira parte) trata do conhecimento intelectual humano, mais especifi camente de como a alma conhece intelectual-mente os corpos. Depois de reconhecer que a alma intelige através de certas determinações inteligíveis (species) (a.2), de que estas não são inatas (a.3) e de que nem lhe advém de formas separadas (a.4), Tomás investiga se a alma não alcançaria a intelecção nas razões eternas (a.5). A resposta de Tomás refere-se a uma dupla forma de se entender “conhecer nas razões eternas”: a) “como no objeto conhecido”: a alma intelectual alcançaria a razão eterna e as coisas contingentes como alguém que vê no espelho aquilo cuja imagem ressalta no espelho, o que é rejeitado por Tomás; b) algo é conhecido em algo, “[...] como no princípio de conhecimento, assim como se dissermos que é visto no sol, o que é visto pelo sol”. Essa segunda opção indica que conhecer nas razões eternas refere-se ao princípio último do conhecimento intelectual humano. O complemento do raciocínio nos aponta para o modo desse conhecimento nas razões eternas: “[...] é necessário dizer que a alma humana conhece tudo nas razões eternas, por cuja participação conhecemos tudo. De fato, a própria luz intelectual que há em nós, nada é além de uma certa semelhança participada da luz incriada na qual estão contidas as razões eternas”35. Para Tomás, a solução do problema se funda sobre

34 SOLIGNAC, A. op. cit., p. 400.35 TOMÁS, Suma de Teologia, I, q.85,a.5, in corp. Trad. Carlos Arthur R. do Nas-cimento. Uberlândia: Edufu, 2004.

48

PAULO R. MARTINES

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

o intelecto humano, que se defi ne por participar da luz do intelecto divino; já para Boaventura, a solução passa pela doutrina do homem imagem de Deus36. São posições diferentes para os dois doutores, que resultam em parte de sua antropologia: para Boaventura, o homem é primeiramente imagem de Deus; para Tomás, ele é essencialmente e primeiramente uma natureza intelectual.

3. Sobre a doutrina das ideias divinas, cabe seguir a posição dos Santos, dos fi lósofos ([...] secundum sanctos et secundum philoso-phos), enfatiza Boventura, na solução que apresenta na questão 1 da distinção 35. Deus conhece pelas ideias e possui na inteligência as razões e semelhanças das coisas que conhece. Como foi mencionado acima, o pleno entendimento dessa solução recai sobre o sentido do termo semelhança, Cabe aqui, uma rápida menção aos termos sancti et philosophi.

A referência primeira do termo sanctus para Boaventura é, sem dúvida, Agostinho, mas com frequência são citados também Ambró-sio, Gregório, Anselmo e Bernardo, todos auctoritates para o doutor franciscano37. Nas objeções que fundamentam a existência das ideias na mente de Deus, aparece citado nominalmente Agostinho (fund. 1) e, indiretamente, Anselmo (fund. 2), com o argumento segundo o qual as coisas, antes de serem criadas, estão na mente Deus, nada mais são do que formas e exemplos pelos quais as coisas são criadas. É o que vemos no Monologion de Anselmo.

Para Anselmo, a fi gura do artífi ce instaura uma racionalidade própria do ato criação que requer uma forma antecipadora da coisa a ser feita: “[...] nada pode ser feito racionalmente por alguém se não proceder, na razão daquele que faz, como de um exemplo da coisa a ser feita, ou dito de um modo melhor, como de uma forma, uma

36 SOLIGNAC, A. op. cit., p. 402.37 Cf. BOAVENTURA. Hexaem, I,13.

A IDEIA COMO EXEMPLAR PARA SÃO BOAVENTURA

49Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

semelhança, uma regra”38. As coisas criadas são precedidas na razão suprema por uma forma, entendida por Anselmo como uma palavra, nada mais do que uma locutio intima, sem qualquer referência ao termo ideia. Tudo o que há, ainda que feito do nada, não era nada, na razão daquele que as fez. Reconhece-se nessa razão divina expli-cação da quididade, da qualidade e da modalidade das coisas, antes de serem feitas.

Entre os fi lósofos, sabe-se da predileção de Boaventura por Platão e, em certas ocasiões, da recusa das teses oriundas do aristotelismo, principalmente quando Boaventura é instado a tomar posição nos debates universitários, ocorridos alguns anos antes da primeira con-denação de 1270. Ambos os fi lósofos parecem tomar, na perspectiva de Boaventura, posições irremediavelmente diferentes e unilaterais no tocante ao exercício da fi losofi a, como parece sugerir uma pas-sagem bem conhecida do sermão 4: “[...] por haver reduzido todo conhecimento certitudinal ao mundo inteligível ou ideal, (Platão) foi merecidamente repreendido por Aristóteles, não porque tivesse feito mal em afi rmar a existência das ideias e razões eternas, visto que nesse ponto Platão é louvado por Agostinho, e sim, por ter pretendido re-duzir toda a certeza do conhecimento daquelas ideias, em detrimento do mundo sensível; com esta posição, embora parecesse estabelecer a via da sabedoria que se orienta pelas razões eternas, destruiu a via da ciência que se orienta pelas razões criadas. Esta foi, ao contrário, a via estabelecida por Aristóteles, mas em detrimento daquela outra, superior. E assim parece que, entre os fi lósofos, Platão recebeu a pala-vra da sabedoria, e Aristóteles, da ciência. Aquele visava as realidades superiores; este, porém, as coisas inferiores”39. Aparece nessa passagem

38 ANSELMO. Monologion, 9. In: L’oeuvre de saint Anselme de Cantorbery. Vol. I. Paris: Cerf, 1986.39 Cf. BOAVENTURA, Ch. Mag., 18 . Trad. de Raimundo Vier. O ideal bona-venturiano de sabedoria, in GARCIA, A. Estudos de Filosofi a Medieval. Petrópolis: Vozes, 1997.

50

PAULO R. MARTINES

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 33-50, jan./jun. 2012

de forma clara uma “crítica” à orientação intelectual dos dois fi lósofos. A conciliação das duas vias é assegurada por Agostinho: “[...] os dois discursos da sabedoria e ciência foram dados pelo Espírito Santo a Agostinho”40. De fato, não se trata de escolher entre o aristotelismo e o platonismo. Mesmo a via do platonismo conduzia a um caminho que ia para além de Platão, pois para Boaventura não se tratava de reconhecer o princípio transcendente das ideias, mas de descobrir sua raiz e perscrutar sua profundidade, um passo que nos conduz, como vimos, à doutrina do verbo encarnado, porta de entrada da sabedoria. Para Boaventura, na ausência da fé, a fi losofi a está fadada à incerteza e distante da verdade. Longe de qualquer fi deísmo, essa orientação remete ao ensino de Agostinho (e Anselmo), para quem a fé oferece apoio e orientação à razão, para que esta se afi rme como tal. Uma vez fi rme na fé, cabe à criatura buscar a clareza da razão, a fi m de chegar à suavidade da contemplação.

40 BOAVENTURA, idem.

“VERITAS EST LUX”: LOS SIGNIFICADOS DE VERDAD...

51Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

“VERITAS EST LUX”: LOSSIGNIFICADOS DE VERDAD EN

SAN BUENAVENTURA

Gerald Cresta (CONICET-UCA)

Abstract: A partir de la consideración del término verdad como

razón de conocimiento, el presente trabajo señala los modos en

que Buenaventura presenta la verdad en los ámbitos contingente y

trascendente, el primero dependiendo del segundo, a través de una

recepción de la teoría de la iluminación agustiniana que el pensador

franciscano completa en una sistematización lograda dentro del

marco de los conceptos trascendentales del ser. El análisis es llevado

a cabo a través de dos hilos conductores: el primero es el concepto

propio de luz, por la idea de luz formal y reguladora que acompaña

a la estructura ejemplarista en la que se origina y despliega su teoría

de la verdad, no ya solamente en el plano gnoseológico, sino también

en cuanto verdad ontológica y ética. El segundo, en relación con el

anterior, es el concepto de infl uentia, con el cual Buenaventura pro-

fundiza la modalidad fundamental de la comunicación divina dentro

del alma humana, asimilando y ampliando la noción agustiniana del

maestro interior.

Introducción: el conocimiento de las causas más elevadas como

instancia de fundamentación

52

GERALD CRESTA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

Para Buenaventura, el conocimiento de las causas más elevadas

nos puede descubrir los tesoros ocultos de la ciencia. Pero también,

esos tesoros nos son develados a partir del conocimiento de los principios y de las conclusiones de las demostraciones científi cas. En uno y otro caso, el hombre que quiera descubrir esos tesoros debe dedicarse al estudio de la verdad, y precisa tener acceso a la comprensión cabal de la verdad no sólo en un sentido lato que la opone a falsedad, sino eminentemente en un sentido valorativo más cercano a la ontología. No deja de contarse con los elementos de análisis propio de la lógica, con los que la razón se posa sobre el mundo inmanente de los entes físicos, pero el vuelo del conoci-miento está pensado desde su origen en una orientación metafísica que hace necesario pensar la trascendencia. De ahí la importancia medular de los conceptos trascendentales del ser. De ahí la inten-ción de una razón posada sobre el concepto mismo de verdad, para llevarlo a la tensión extrema de análisis que puede permitirnos esa cabal comprensión del mismo. Según Buenaventura, para esta tarea contamos previamente con la capacidad de comprender la verdad, una capacidad que proviene en parte de la luz exterior de la expe-riencia, en parte de la luz interior de la razón, y en parte de la luz superior que se presenta como manifestación de la luz divina, no ya sujeta a lo contingente, sino eterna en el Logos de Dios1.

La luz externa posibilita al hombre la adquisición de muchos co-

nocimientos. Aristóteles enseñaba que muchos actos de los sentidos

llegan a conformar una memoria y muchas memorias causan una

experiencia, de manera que a partir de muchas experiencias llega a

constituirse un universal, que es el comienzo mismo del arte y de la

1 De donis S.S., VIII, 12: “Iste intellectus, quid est ianua considerationum scientia-lium, partim est a dictamene naturae, id est a lumine interiori; partim ex frequentia experientiae, sicut a lumine exteriori; et partim ex illustratione lucis aeternae, sicut a lumine superiori”.

“VERITAS EST LUX”: LOS SIGNIFICADOS DE VERDAD...

53Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

ciencia2. La luz interior de la razón es una capacidad natural mediante

la cual el hombre puede comprender la verdad de las creaturas corpó-

reas y espirituales, tanto como la verdad de su Creador. Para alcanzar

este conocimiento participan los primeros principios de la verdad y

la luz natural de la razón, por medio de la cual el hombre conoce los

primeros principios. Pero es indispensable, señala Aristóteles, que

conozcamos primero los términos que refi eren a dichos principios:

debemos conocer antes el signifi cado de todo y de parte para luego

saber que el todo es mayor que la parte3. Aquí es donde interviene

la luz de la razón o luz interior. Solamente queda la pregunta por la

certeza que puedan garantizar los juicios racionales si la última luz

que los sostiene es la luz interior propia de un ente contingente con-

dicionado doblemente por la fi nitud y por la falibilidad.

La intención de Buenaventura se orienta hacia una instancia de fundamentación de las verdades alcanzadas por el entendimiento humano, en el sentido en que por más experiencias que pueda con-quistar el hombre y por más rica que sea su capacidad natural o luz de la razón, todo ello no es sufi ciente, nos dice, sin la infl uencia de la luz divina, para la justifi cación de certeza en los juicios sobre la realidad. Subrayo aquí el término “infl uencia” que analizamos más adelante,

2 Aristóteles, Anal. post., II, 19 (100a 4-8). Cf. el importante estudio de J.F. Quinn, The Historical Constitution of St. Bonaventure’s Philosophy, Pontifi cal Institute of Mediaeval Studies, Toronto, 1973, esp. pp. 523-663, en donde el autor analiza las relaciones entre iluminación y conocimiento natural, cuyos lineamientos generales se desprenden inicialmente de lo expuesto por Buenaventura en las Coll. de donis S.S, VIII, 12-14 (V, 496), y representa una guía para la comprensión del tema. Es de notar que la colación VIII a la que aquí se hace referencia trata justamente del don de entendimiento, a diferencia de la IV del mismo opúsculo, que versa sobre el don de la ciencia. En el apartado 14 Buenaventura aborda la cuestión de ‘la ilustración de la luz eterna’ en la perspectiva teológica de ‘Dios como razón de entender y sol de la inteligencia’.3 Aristóteles, op.cit., I, 10 (76a40-76b-22).

54

GERALD CRESTA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

como el modo propio de actuación y actualización constantes de la imagen de las razones ejemplares impresas en el alma humana, pero conservada en el Logos trascendente como en su fuente originaria, a la manera en que el sello deja su imagen en la cera pero permanece en la identidad formal de sí mismo4.

Esta luz superior es por tanto una suerte de medio activo en el cual el entendimiento accede a la verdad de su conocimiento del mundo porque participa de la verdad originaria o ejemplar contenida en el Logos divino. El camino de la experiencia le viene legado por Aristóteles y el de las ideas ejemplares por la doctrina de la ilumina-ción agustiniana. La gran tradición del agustinismo franciscano, que es la que ahondaremos aquí, abona en Buenaventura una posición metafísico-teológica que hecha raíces en los conceptos trascendentales del ser para acceder a partir de allí a una comprensión de las verdades del mundo y del hombre en consonancia con una perspectiva que considera a los trascendentales como apropiaciones trinitarias.

2. El alcance gnoseológico de la doctrina agustiniana del maestro interior

Los argumentos agustinianos que sustentan la doctrina del ma-estro interior presuponen la noción según la cual, si las ideas divinas son las razones eternas a partir de las cuales son creadas las realidades del mundo, entonces las ideas divinas son realmente indistintas en el intelecto divino, esto es, las ideas divinas son idénticas a la esencia divina. Al asumir esta línea de pensamiento, Buenaventura ahonda en la misma y presenta una serie de argumentos a favor, la mitad de los cuales son de factura agustiniana, para sostener que efectivamente

4 Cf. L. Bellofi ore, La dottrina dell’illuminaziones dell’intelleto in S. Bonaventura, en Sophia, 6 (1938), pp. 535-37.

“VERITAS EST LUX”: LOS SIGNIFICADOS DE VERDAD...

55Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

todo aquello que conocemos con certeza lo conocemos en y por las razones eternas. El resto de los argumentos tienen una base fi rme en diversas fuentes históricas, incluyendo a Aristóteles, y en la misma razón humana5.

El alcance del aporte agustiniano puede ser desbrozado consi-derando tres aspectos que encierran una misma perspectiva unitaria de criterio gnoseológico. El primer aspecto se refi ere al logro de la inmutabilidad y certeza en los conocimientos que son adquiridos por la razón natural. Para obtener esas notas a las que todo conocimiento aspira, sostiene Agustín que la razón natural debe depender de la luz y la verdad en Dios, puesto que ambas son en su origen infalibles y puesto que tanto la luz de la razón cuanto la luz de los objetos que conoce son en esencia de naturaleza mudable y contingente. El se-gundo aspecto se relaciona con la doble presencia de Dios en el alma humana, como verdad y como luz del entendimiento. Y fi nalmente el tercer aspecto es en realidad un corolario de los otros dos, porque se refi ere a la verdad y a la luz divinas que constituyen la ley de acuerdo a la cual nuestro entendimiento juzga todas las cosas con certeza. En lo que sigue analizaremos estas instancias argumentativas según son presentadas y ampliadas por Buenaventura6.

Para la primera cuestión, Buenaventura sostiene que todo aquello que es inmutable supera a lo que no lo es, es decir, a todo aquello que

5 Cf. J.F. Quinn, op. cit., p. 526 ss.6 Quaest. disp. de scient. Chr., q. 4, initio (V, 17a): “Supposito, quod rationes aeternae sint realiter indistinctae in divina arte sive cognitione, quaeritur, utrum sint rationes cognoscendi in omni certitudinali cognitione; hoc est quaerere, utrum quidquid certitu-dinaliter cognoscitur a nobis cognoscatur in ipsis rationibus aeternis”. Si bien las fuentes que Buenaventura menciona sólo refi eren los nombre de los textos de Agustín; los padres editores de Quaracchi indican en nota a pie las notaciones correspondientes, que transcribo aquí: De libero arbitrio, c. 9-15, n. 25-39; De vera religione, c. 30, seq. n. 54-59; De magistro, c. 11, seqq. n. 38; De musica, VI, c. 12, n. 35 seq.; De Trinitate, VIII, c. 3, n. 4, seq. et c. 6, n. 9.

56

GERALD CRESTA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

es mudable. Pero el principio según el cual el conocimiento humano alcanza la certeza es inmutable, porque lo que es verdadero es nece-sario; por tanto, si el entendimiento humano es mudable, entonces el principio a partir del cual él conoce con certeza es superior al en-tendimiento mismo. De ahí que este principio sea considerado como la eterna verdad de Dios, de modo que Su verdad -que es lo mismo que la razón eterna- es aquello por lo cual nuestro entendimiento alcanza verdades con certeza. De la misma manera puede trazarse un camino argumentativo con los pares de nociones contrarias como falible/infalible, necesario-ilimitado/contingente-fi nito, ser/no ser7. En este último par, la referencia al entendimiento divino como in-creado frente al entendimiento humano creado, lleva a la aceptación de una necesaria infl uencia de aquel sobre éste, en la medida en que un entendimiento creado no puede por sí mismo conocer en sentido fuerte, i.e., comprender en verdad una cosa, si no es a través de un entendimiento increado, por ser éste último el que aporta la verdad originaria que constituye la regla ejemplar o razón de verdad de todas las cosas. Como fuente de todo acto de comprender, la verdad tras-cendente mueve al intelecto creado hacia la operación del comprender manifestándole la verdad de las creaturas en sus razones ejemplares. En otras palabras, nadie -ningún intelecto creado- puede llevar a cabo la intelección de su objeto si no es asistido por la ilustración inmediata de una causa superior a sí mismo que es a la vez causa essendi, ratio intelligendi et ordo vivendi. La causa que produce la existencia del triple efecto: ser (existir), entender, y actuar. Los órdenes ontológico,

7 Quaest. de scient. Christ., q. 4, 19-20 (V, 19a): “Item, omne infallibile est superior fallibili; sed lux et veritas, qua cognoscimus certitudinaliter, est infallibilis, mens autem nostra falli potest: ergo lux illa et veritas est supra mentem nostram [...] Item, omne lumen certitudinale est incoarctabile, quia universis se ostendit et exhibet cognoscibile sub eadem certitudine; lumen autem incoarctabile necessario non est lumen creatum, sed increatum, quia omne creatum est limitatum et fi nitum et in diversis multiplicatur: ergo hoc lumen necesse est esse increatum”.

“VERITAS EST LUX”: LOS SIGNIFICADOS DE VERDAD...

57Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

gnoseológico y ético se funden en un sólo principio-fundamento, que desde su trascendencia absoluta como Unidad, Verdad y Bien posibilita toda unidad, verdad y bien de la inmanencia contingente de mundo8.

En relación con la segunda cuestión, dos son los textos agusti-nianos que rescata Buenaventura. Uno es un pasaje del De magistro; el otro pertenece al De civitate Dei. En el primero, Agustín se refi ere a la presencia de Dios en el alma humana bajo la forma de verdad y de sabiduría:

“De universis, quae intelligimus, non loquentem, qui personat foris, sed intus ipsi menti praesidentem consulimus veritatem. Ille autem, qui consulitur, docet, qui in interiore homine habitare dictus est, Christus, incommutabilis Dei virtus et sapientia sempiterna, quam quindem omnis rationalis anima consulit” (De magistro, 11, 38. PL, 32, 1216).

Para Buenaventura, esta relación de conocimiento entre el alma y su objeto no es otra que la triple dirección que la razón traza movida por el deseo de conocer, movida, diría Agustín, por el objeto de su amor: la razón se dirige hacia las cosas externas a ella, hacia las interio-res y hacia las superiores. Para las dos primeras, la orientación es hacia lo inferior, para la tercera, hacia lo superior a ella. Estas orientaciones se corresponden con dos partes del alma racional que son atraídas por las cosas temporales, y por las eternas, respectivamente. Pero como el alma es creada a imagen y semejanza del arquetipo eterno, el cono-cimiento de las realidades eternas es, en esta perspectiva, anterior al conocimiento de las temporales, y de ahí la argumentación de Buena-ventura señalando que es imposible para el alma conocer cualquiera de estas realidades sin no es asistida por las razones eternas en Dios.

8 Idem., q. 4, 24 (V, 19b): “Item, sicut Deus est causa essendi, ita est ratio intelligendi et ordo vivendi; sed Deus sic est causa essendi, quod nihil potest ab aliqua causa effi ci, quin ipse se ipso et sua aeterna virtute moveat operantem: ergo nihil potest intelligi, quin ipse sua aeterna veritate immediate illustret intelligentem”.

58

GERALD CRESTA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

Dicho de otra forma: desde el momento en que comprendemos que la verdad suprema es superior al alma, es imposible para ella, en con-secuencia, conocer nada sin el previo conocimiento de dicha verdad suprema, que se encuentra íntimamente presente en el alma misma, allí donde diferenciamos la porción superior del alma racional9.

El otro texto agustiniano indica una fuente que, sin decirlo, hace referencia a los fi lósofos platónicos, que señalaron la divinidad a par-tir de la cual fue generado el mundo como indistinta con la luz por medio de la cual nosotros aprendemos todas las cosas:

“Hi quos merito omnibus anteponimus lumen mentium esse dixerunt ad discenda omnia eundem ipsum Deum, a quo facta sunt omnia” (De civ. Dei, 8, 7. PL, 41, 232).

Este pasaje refuerza la adhesión de Buenaventura a la idea de que toda luz que otorga certeza a los conocimientos es de tal naturaleza que no posee restricciones, ya que se derrama sobre todas las cosas por igual y hace que todos los objetos que son conocidos lo sean con la misma certeza. Una luz así evidentemente no puede ser una luz creada, desde el momento en que la luz creada es limitada y restrictiva, además de multiplicarse en diversos intelectos. Por eso es que Buena-ventura insiste en la relación de prioridad de esta luz de las razones eternas y en que nuestro entendimiento debe consultar primero esas leyes a partir del ejercicio de su razón superior, para luego juzgar los entes temporales por medio de la razón inferior, pero ya pertrechado con una medida irrestricta que le posibilita la certeza buscada en el conocimiento. Y por eso también Buenaventura se anima a afi rmar que si todas las cosas creadas fueran destruidas, la razón aún conser-varía en sí misma el conocimiento de las ciencias, no debido al ser verdadero que las cosas hayan tenido en el universo o en su presencia

9 Cf. G. Bonafede, Il problema dell’illuminazione in S. Bonaventura, en Sophia, 4 (1936), pp. 78-82 y 5 (1937), pp. 48-55.

“VERITAS EST LUX”: LOS SIGNIFICADOS DE VERDAD...

59Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

en el alma, sino debido a la existencia de las mismas en las razones ejemplares trascendentes10.

En cuanto al tercer aspecto mencionado, Buenaventura se apoya en una serie de textos agustinianos. El primero hace referencia a la ley que se encuentra por encima del intelecto humano:

“Apparet, supra mentem nostram legem ese, quae veritas dicitur; nec iam illud ambigendum est, incommutabilem naturam, quae supra mentem humanam est, Deum esse. Nam haec est illa incommutabilis veritas, quae lex omnium artium recte dicitur et ars omnipotentis artifi cis” (De vera relig., 31, 55; PL 43, 147).

Con reminiscencias neoplatónicas, Agustín nos indica aquí que por encima de las verdades asequibles a nuestro entendimiento y con las cuales el mismo trabaja a diario, hay una Verdad superior que ofi cia de medida, de Idea reguladora y modélica a la cual debemos ajustar las nuestras para tener acceso a un criterio de certeza, de validez universal. Se trata de una Verdad que es divina porque forma parte de la esencia de Dios y porque no es humana, es decir, no es una de las verdades que nuestro intelecto concreta en el conocimiento de la realidad. No cabe duda, dice Agustín en otro pasaje del De libero arbitrio, que esta Verdad es inmutable y eterna, y que en ella hay una belleza –aquí la entrada en escena de otro trascendental- siempre pre-sente en el alma humana para guiarla exteriormente y enseñarle en la interioridad (foris admonet, intus docet). Una Verdad que nadie juzga, pero sin la cual nadie puede juzgar bien, de lo cual se desprende que esta medida es más poderosa que nuestras mentes, cada una de las cuales sólo llega a la sabiduría con su concurso. Todas las cosas que juzgamos, las juzgamos a través de esta Verdad. El texto es, además, de una sobria tonalidad poética:

10 De scient. Christ., q. 4, 33 (V, 20b): “Item, destructis omnibus creaturis, remanente solo spiritus rationali, remanet apud eum cognitio disciplinarum, utpote numerorum et fi gurarum; sed hoc non est propter verum esse, quod habeant apud ipsum, nec apud uni-versum: ergo necesse est, quod propter esse, quod habent apud summum artifi cem”.

60

GERALD CRESTA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

“Illa pulcritudo sapientiae et veritatis nec peragitur tempore nec migrat locis nec nocte intercipitur nec umbra intercluditur nec sensibus corporis subiacet; de toto mundo ad se conversis, qui diligunt eam, omnibus proxima est, omnibus sempiterna, nullo loco est, nusquam deest, foris admonet, intus docet. Nullus de illa iudicat, nullus sine illa iudicat bene; ac per hoc manifestum est, eam mentibus nostris, quae ab ipsa una fi unt singulae sapientes et non de ipsa, sed per ipsam de ceteris iudicant, sine dubitatione ese potiorem” (De libero arbitrio, 2, 14, 38; PL 42, 1050-51).

Y fi nalmente, a partir de dos textos más, Buenaventura continúa su adhesión a la doctrina agustiniana al sostener que una cosa es cono-cida de manera correcta y con certeza cuando ella es comparada con su parámetro, un parámetro que no podemos objetar. Pero como el parámetro de una cosa no es otra realidad que su esencial rectitud, y desde el momento en que esa rectitud sólo puede consistir en la verdad o razón eterna de dicha cosa, por consiguiente no podemos conocer nada con certeza a menos que lo comparemos con su parámetro eterno en Dios. Los textos corresponden al De Trinitate:

“Aliis omnino regulis supra mentem nostram incommutabiliter ma-nentibus, vel approbare, vel improbare convincimur, cum recte aliquid approbamus, vel improbamus” (De Trin., 6, 10; PL 42, 966).

“In illa aeterna veritate, ex qua temporalia facta sunt omnia, formam, secundum quam sumus et secundum quam vel in nobis vel in corpo-ribus vera et recta ratione aliquid operamur, visu mentis aspicimus” (De Trin., 9, 7, 12; PL 42, 967).

3. La noción de infl uentia como principio de comunicación iluminativa

Una primera defi nición general del concepto de infl uentia puede rastrearse en el siguiente texto de las Collationes, en donde Buenaven-tura dice que “… esta infl uencia no es simplemente algo increado, ni de esto se sigue que haya infl uencia de la infl uencia, porque esta

“VERITAS EST LUX”: LOS SIGNIFICADOS DE VERDAD...

61Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

infl uencia reduce a Dios, pues dice continuación con el primer Prin-cipio y reducción al mismo, no como una cosa distante. Por eso es verdadera infl uencia, que sale y vuelve […] Por eso dice [Dionisio] que es asemejada en la sagrada ordenación, en la ciencia y en la operación, porque “asciende, en cuanto es posible, a lo deiforme”11.

El fragmento se sitúa en el contexto de un comentario que Bue-naventura realiza sobre el tema de la jerarquía trinitaria siguiendo a Dionisio en su Hierarchia caelestis, 3, 1 (Dionys, 785), y aporta los elementos esenciales de la noción de infl uencia, elementos que se encuentran dispersos asimismo en todas las apariciones del térmi-no en Buenaventura. La ascensión, por ejemplo, es señalada como teniendo lugar por medio de la infl uentia, es decir, por medio de una intervención sobrenatural proveniente de una fuente originaria primera cuya naturaleza imprime en todo lo generado por ella misma una tendencia de retorno a sí que queda impresa esencialmente en todo ente creado.

A partir de este texto podemos caracterizar los elementos princi-pales de la infl uentia:

a) Un origen, es decir, la infl uencia es por tanto una realidad creada. Como lo señala Buenaventura en un pasaje de las cuestiones disputadas De mist. Trin. en donde trata de la simplicidad del primer Principio, la participación -dice- puede ser de dos maneras, por participación formal, como el género es participado por las especies, o por infl uencia,

11 Cf. In Hexaem., XXI, 18 (V, 434): Haec autem infl uentia non est simpliciter quid increatum; nec ex hoc sequitur, quod infl uentiae sit infl uentia, quia haec infl uentia reducit in Deum; dicit enim continuationem cum primo principio et reductionem in ipsum, non sicut res distans. Unde vera est infl uentia, quae egreditur et regreditur, ut Filius exivit a Patre et revertitur in ipsum. Unde dicit, quod est assimilata in sacra ordinatione, scientia et operatione per hoc, quod est “ad deiforme, quantum possibile est, ascendens”.

62

GERALD CRESTA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

como es participada la causa por sus efectos12. Esto indica que la noción representa para Buenaventura una instancia de vinculación participativa que sostiene la comunicación de la luz trascendente sobre el conocimiento efectivo.

b) Un movimiento procedente del origen que alcanza a quien lo recibe produciendo en él un efecto, esto es, una presencia secundum virtutem de la causa en el efecto correspondiente. Esta presencia no es otra que la que llega al objeto a través de la infl uencia13.

c) Un movimiento reductivo o de retorno al origen, que arrastra en su dinamismo a aquello que ha recibido la infl uencia.

d) Una continuidad que enlaza ontológicamente la totalidad de lo creado con su fuente originaria, porque la naturaleza de la infl uencia no queda limitada a su difusión expansiva, sino que lleva en sí misma una fuerza esencial que la orienta en su dinamismo de retorno, a ella y a todo ente sobre el que se derrama14.

Se trata de una alusión clara al origen a partir del cual desciende la infl uencia de iluminación y a la vez manifi esta la liberalidad y ne-cesidad con que las múltiples luces emanan de aquella luz primera, fuente de toda luz. Una infl uencia que comunica de esta forma tiene alcance a la totalidad de los entes en la manera de una impresión de

12 Cf. De mist. Trin., q. 3, a. 1, ad 11 (V, 73b): “… dupliciter dicitur aliquid parti-cipare, scilicet secundum formam, sicut genus participatur a speciebus; vel secundum infl uentiam, sicut causa participatur a suis effectibus”.13 Cf. I Sent., d. 37, p. 1, a. 1, q. 1, fund. 2 (I, 638a): “Omne quod infl uit in aliquid, est illi praesens secundum virtutem”.14 Cf. IV Sent., d. 3, p. 2, a. 1, q. 2, arg. 3 (IV, 78a): “Infl uentia dicit continuationem cum primo principio et reductionem in ipsum”.

“VERITAS EST LUX”: LOS SIGNIFICADOS DE VERDAD...

63Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

naturaleza conforme a la cual cada ente posee una esencial rectitudo, en términos anselmianos. Y esta presencia iluminativa asiste a quien conoce doblemente, por la infl uencia que encuentra en sí mismo como proveniente de una fuente superior pero a la vez inserta en la actualización de su entendimiento, por un lado, y por la presencia en el objeto a conocer. Así, más allá de que esta luz fontal es una por su origen, puede efectuarse una distinción de razón para constatar que hay una luz exterior, que Buenaventura llama la luz del arte mecánica; una luz inferior, la luz del conocimiento sensible; una luz interior o luz del conocimiento fi losófi co; y fi nalmente una luz superior o luz de la gracia. La primera se refi ere a fi guras u objetos artifi ciales, la segunda a la forma natural, la tercera a las verdades intelectuales y la última a la verdad de la salvación15. Cada una de estas luces no solamente constituye un término de referencia para la rectitud del conocimiento, sino que al imprimir su verdad ontológica genera la posibilidad real y efectiva de la presencia de una verdad óntica que es asimilada en el intelecto humano como verdad gnoseológica válida.

Esto signifi ca que en relación al alma humana, toda infl uencia irradiante de la verdad ejemplar sobre nuestra inteligencia se efectúa de una triple forma: o bien sobre ella misma absolutamente, y en-tonces corresponde al conocimiento de las realidades especulativas; o bien relativamente a nuestra potencia discursiva, con lo que resulta la verdad de las palabras; o bien en relación a nuestra potencia afectiva y motriz, con lo cual se trata entonces de la verdad de las acciones a

15 Cf. Red. art. ad theol., §1 (V, 319a): “In hoc verbo tangitur origo omnis illuminatio-nis, et simul cum hoc insinuatur multiplis luminis ab illa fontali luce liberalis emanatio. Licet autem omnis illuminatio cognitionis interna sit, possumus tamen rationabiliter distinguere, ut dicamus, quod est lumen exterius, scilicet lumen artis mechanicae; lumen inferius, scilicet lumen cognitionis sensitivae; lumen interius, scilicet lumen cognitionis philosophicae; lumen superius, scilicet lumen gratiae et sacrae Scripturae. Primum lu-men illuminat respectu fi gurae artifi cialis, secundum respectu formae naturalis, tertium respectu veritatis intellectualis, quartum et ultimum respectu veritatis salutaris”.

64

GERALD CRESTA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

realizar. Así, al extender la irradiación de la luz sobre todas las esencias posibles, Buenaventura pretendería reforzar la presencia de Dios en todas las cosas en la forma de esta infl uencia iluminativa, de modo tal que frente a las grandes transformaciones sociales e intelectuales de su momento histórico, el conocimiento de la realidad del mundo no privara al hombre de la fe en Dios. Porque en función de esta vía iluminativa, está siempre presente la cuestión última del conocimien-to de Dios. Al decir que el hombre posee de Dios una idea innata, Buenaventura no está haciendo referencia a que el hombre posea una visión inmediata de la realidad divina, una intuición de Dios a modo de ontologismo, sino precisamente que este conocimiento es la posibilidad primera de todo otro conocimiento. Dios sería la luz bajo cuya irradiación todos los entes son comprendidos y en esa comprensión se alcanza el conocimiento de Dios16.

Conclusión

Si bien la doctrina bonaventuriana de la iluminación aplicada a la teoría del conocimiento no es tan especial como la misma doctrina en su aplicación a la teoría de la gracia, sigue siendo un elemento conceptual de referencia en su noción de verdad, y proporciona un marco explicativo que, en conjunción con la estructura más amplia del ejemplarismo, nos ofrece una vasta y bien lograda continuidad entre los aportes de la tradición y el tratamiento de la verdad en el contex-to de las elaboraciones propiamente escolásticas. En este sentido, la infl uentia iluminativa en la teoría buenaventuriana del conocimiento puede defi nirse como un habitus mentis que imprime en el alma las

16 Cf. Conceição Solange Bution Perin, Boaventura e o desenvolvimento do intelecto no século XIII: um estudo de suas conferências, Tesis de Doctorado, Universidade Estadual de Maringá, Programa de pós-graduação em educação, Maringá 2010, p. 195 ss. (en prensa).

“VERITAS EST LUX”: LOS SIGNIFICADOS DE VERDAD...

65Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

similitudes de la verdad eterna. Se trata entonces de un hábito que es intermediario entre la verdad increada o verdad trascendental y la potencia cognoscitiva, disponiendo a ésta última en una esencial orientación hacia aquella. En todo conocimiento, por tanto, encon-traríamos esta infl uencia a la manera de un principium movens o de una ratio dirigens, mediante la cual la luz de la verdad transcendental encuentra su proporción y su inhabitación en cada uno de los entes de la naturaleza creada.

66

GERALD CRESTA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 51-66, jan./jun. 2012

ANTROPOLOGIA E TEOLOGIA EM SÃO BOAVENTURA

67Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

ANTROPOLOGIA E TEOLOGIA EM SÃO BOAVENTURA

António Rocha Martins (Universidade de Lisboa)*

«Quemadmodum Deus est nobis cognoscibilis, ita et effabilis et nominabilis; et qui melius cognoscit melius effatur et melius nominat et expressius.» S. Boaventura, I Sent. d. 22, a.1, q. 1 (I, 391a).

São Boaventura é habitualmente considerado um tradicionalista1. Ele próprio confessa não desejar ser um inovador2. O Santo, todavia, preserva momentos refl exivos de elevada inovação, susceptíveis de apreender em desenvolvimentos ulteriores do pensamento3. Salien-tamos: 1. a noção contuitiva de razão (intuição analógica de Deus); 2. o primado da causa exemplar sobre a causa efi ciente (interpretação da analogia segundo o modelo do expressionismo; e 3. uma equiva-lência entre teologia/ciência e Escritura (sobredeterminação poética do espírito humano).

Propomos aqui examinar especifi camente o papel que a metáfo-ra assume na ordem do pensar, segundo Boaventura. Veremos que, em sentido oposto à metafísica clássica, que havia desqualifi cado a

1 Cf. A. MENARD, «Une leçon inaugurale de Boanventure», Etudes Franciscaines, 21 (1971), p. 273.2 II Sent., Praelocutio (II, 1A).3 Entre muitos possíveis, veja-se: D. ANTISEREI: «La logica di un mistico e la mistica di un lógico. Bonaventura da Bagnoregio e Ludwig Wittgenstein», Doctor Seraphicus 28 (1981) 29-63); e também H. U. von BALTHASAR, Herrlichkeit. Eine Theologische Ästhetik, II (Fächer der Stille), Johannes Verlag, 1984, pp. 267-268.

* [email protected]

68

ANTÓNIO ROCHA MARTINS

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

metáfora, Boaventura joga a sorte da sua «verdadeira metafísica» na ordem poética do pensamento, constantemente assente no modelo da inteligência divina (Verbo). Ao harmonizar natureza e símbolo, o fi lósofo medieval não apenas articula o discurso metafórico e o discurso especulativo – quebrando posições absolutizantes acerca de ambos – como também reconstrói o signifi cado de ciência, respondendo assim, positivamente, à possibilidade do conhecimento de Deus.

1. Ser e pensar: uma teologia afi rmativa

Efetivamente, o santo fi lósofo, preferindo, mais do que outros, o método afi rmativo (modum positionis) ao método negativo (modum negationis), insistirá na perspetiva de que não é pensável uma razão pura (nuda cogitatio), tal como também não é pensável uma ciência inteiramente natural (nudus intelligere). Na atividade de conhecer com-prometerá todo o homem. Não por acaso distingue as ciências relevando o seu objeto4. Para ele, toda a ciência é essencialmente conhecimento da verdade (notitia veritas): Deus videtur ratione ostensiva5.

A ideia frequente de que Deus não existe, de que é um ídolo, ou de que é o que não é – de que não é um Deus justo, por exemplo – é mera consequência do nosso próprio pensamento, que assim mostra falhar no conhecimento da essência divina6. Conhecemos como pen-samos, sabendo evitar o «eclipse» que o erro e a presunção podem provocar («loucura»)7.

4 De donis IV, 6 (V 474b).5 I Sent. d. 2, a. un., q. 1 (I 50a-b)6 I Sent. d. 8, a. 2, q. 2 (I 154b).7 Recorde-se a imagem bonaventuriana, segundo a qual homem facilmente se eclipsa se não tomar cuidado com a cabeça e a cauda do dragão, exponde-se, desse modo, aos perigos da loucura: «[…] sed de facili eclipsatur nisi homo caveat sibi a capite et cauda draconis. Si aliquid interponatur inter ipsum et solem iustitiae, patitur eclipsim stultitiae.» (De donis IV, 12; V 475a).

ANTROPOLOGIA E TEOLOGIA EM SÃO BOAVENTURA

69Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

O santo fi lósofo não partilha a ideia de uma representação adequa-da de Deus, mas, também por isso, o motivo não é o da incognosci-bilidade do divino.

Eis, pois, a questão: O que signifi ca pensar? Ora, responde o nosso Autor: «Pensar nada mais é do que o que é, o que se diz, [ou seja] conhecer [inteligir]»8.

É também o Santo que o explica:

Se eu pensar que o homem é um burro sei que isso é falso. É deste modo que se pode pensar que a verdade do Ser divino não é. Se, pelo contrário, eu pensar que algo não é e crer que não é, isso é pensar «com assentimento». Mas, se assim for, pensar que não existe o que é, pode vir de um defeito da inteligência ou do inteligível. Com efeito, se eu pensar que uma coisa não é porque a ignoro, o que eu penso é forçosamente falso, e isso deve chamar-se cegueira ou ignorância, pois tal não nega que a coisa pensada seja aquilo que é9.

Por consequência, temos de conceder que a verdade do Ser divino é tal que não pode ser pensada, com assentimento, não ser, senão por ignorância daquele que a pensa e que ignora o que defi ne o nome Deus10. Pensar verdadeiramente não é, portanto, nada mais do que conhecer o que se diz.

8 I Sent. d. 8, q. 2 (I 154a): «[…] et hoc cogitare nihil aliud est quam quid est, quod dicitur, intelligere». (Sublinhado nosso). Costuma traduzir-se intelligere por «enten-der», reservando-se «conhecer» para o termo cognitio. Vd. A. BLAISE, Dictionnaire latin-français des auteurs chrétiens, Turnhout, Brepols, 1954, p. 461: art. intelligo. Preferimos manter «inteligir», ou vertê-lo por «conhecer», pois nos parece este termo corresponder mais adequadamente ao sentido e desenvolvimento do texto bonaventuriano. Isso será particulamente manifesto no contraste entre intelligere e comprehendere (Deus é incompreensível mas é cognoscível).9 BOAVENTURA, I Sent. d. 8, a. 2, q. 2 (I 154a).10 BOAVENTURA, I Sent. d. 8, a. 2, q. 2 (I 155a-b).

70

ANTÓNIO ROCHA MARTINS

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

Deus é o Ser (esse est primum Dei nomen) e que tudo quanto se disser de Deus se reduz ao Ser. O Ser divino é o primeiro objecto do pensamento, o ser que primeiramente cai no intelecto (primum cognitum) 11.

Pensar Deus não pode fazer transitar Deus para o pensamento, nem o pensamento para o objeto pensado. Sendo assim, como é que, então, a fi losofi a de São Boaventura se defi ne a respeito do conheci-mento do divino?

Em primeiro lugar, mediante a articulação metafórica da analogia, vai alterar as noções tanto de analogia como de metáfora. Não se trata de estabelecer uma superioridade de um dos termos sobre o outro (analogia ou metáfora). Trata-se, antes, do construir de um discurso no sentido forte do termo, discurso esse que é capaz de se libertar das malhas do intento redutor de uma racionalização integral, de con-tornos fechados e defi nitivos, e que articula e preserva novos termos, resultantes de inéditas relações, de modo a prolongar hermeneutica-mente a visada de verdade que habita a linguagem, sem a qual ele se dissolveria em simples fi guração. Só assim é possível vencer tanto a formalização petrifi cante como o vazio meramente fi gurativo. Deus não é referente a «verifi car» ou «infi rmar»; é por isso que a linguagem vale, não por si mesma, mas porque portadora de inteligibilidade e veículo da ontologia. «O verbo humano encontra-se com o verbo divino em todas as coisas»12.

Por outro lado, Boaventura não só teoriza explicitamente, como também identifi ca claramente a esfera de pertença da metáfora. Pode

11 Coll. in Hexaem. X, 10 (V 378b).12 Em todas as coisas reconhecemos um dúplice verbo, o verbo humano e o verbo divino: «Et duplex est verbum, quo recognoscimus omnina: verbum scilicet divinum et verbum humanum. Verbum divinum est omnis creatura, quia Deum loquitur; hoc verbum percipit oculus. Verbum humanum est vox prolata, et hoc percipit auris» (Comm. Eccl. c. I; VI, 16b).

ANTROPOLOGIA E TEOLOGIA EM SÃO BOAVENTURA

71Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

mesmo dizer-se que propõe uma doutrina acerca do bom uso da me-táfora – preferindo a afi rmação à negação –, tornando-se o processo de metaforização, epiforica e diaforicamente, o grande modelo da linguagem humana sobre Deus.

É visível que a interligação entre analogia e metáfora (e símbolo) obriga a pensar a questão da linguagem para além de mera questão estrutural de uma forma linguística específi ca. Trata-se de uma deslocação e mudança de nível, passando do humano para o que o possibilita.

2. Lugar(es) da metáfora

Não existe de Boaventura uma obra expressamente dedicada à doutrina da metáfora. Aparece, de forma direta, na questão IV da distinção XXXIV, artículo único do I Livro das Sentenças, que se in-terroga nos seguintes termos: Utrum in divinis ponenda sit translatio13. De forma mais indireta embora logicamente, aparece também na distinção XXII do mesmo Livro, acerca da nomeação de Deus («De nominibus divinis»)14, bem como na primeira parte do Breviloquium, onde o Santo mostra, pela equivalência metaphora/transsumptio, por que é que as cinco últimas categorias de Aristóteles se não atribuem a Deus senão de modo transpositivo e fi gurativo (non attribuntur Deo nisi transsumptivo modo et fi gurativo)15.

Uma tal indicação modelar da metáfora surge igualmente em alguns dos Sermões, presumivelmente redigidos na última fase da vida do Santo. A verdade explica-se metaforicamente: «[...] por convenientíssima metáfora explica-se no verbo a obra da criação [...]

13 BOAVENTURA, I Sent. d. 34, a.un., q. 4 (I 593-594).14 BOAVENTURA, I Sent. d. 22, a. un., qs. 1-4 (I 390-399).15 BOAVENTURA, Brevil. I, 4 (V 212b).

72

ANTÓNIO ROCHA MARTINS

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

por metáfora nobilíssima exprime-se a criação do homem quanto ao princípio efetivo, constituindo-se, assim [a criação], signifi cação metafórica para o homem»16. «Pela metáfora do arco íris ou celeste mostrou-se Deus à humanidade [...] o nascimento de Cristo diz-se arco íris ou celeste»17.

O processo de metaforização, que tradicionalmente fi gura nos capítulos da retórica, torna possível o dizer e pensar: nomeamos tal como conhecemos, de tal modo que o que não é possível conhecer também não é possível nomear. Explica-se assim que uma verdadeira compreensão da metáfora requer o fi m da rutura entre o especulativo e o poético, mas sem se cair na disseminação ou fusão de ambos os domínios. A insistência na metáfora não poderá fazer anular as distinções entre as coisas, entre nós e as coisas e entre nós e Deus.

Um duplo caminho segue a metáfora, quando dizemos de que modo se deve nomear o divino. Boaventura reconhece explicitamente a «excelência» da metáfora como modo de atribuição divina18. Inter-rogando-se sobre se a metáfora se pode aplicar a Deus, responde que a metáfora possui «uma dupla razão ou fi m»: 1. louvar Deus (laus Dei); e 2. conduzir o nosso intelecto (manuductio intellectus nostri)19.

A metáfora é, vinca o Santo, necessária para o louvor de Deus20; e porque Deus é maximamente louvável, para que esse louvor não cesse

16 BOAVENTURA, Serm. Dominica V. Post Epiphaniam, Sermo I (IX 192b): «[...] opus creationis hominis explicat in verbo proposito sub convenientissima metaphora [...] sub metaphora nobilissima exprimitur creatio hominis quantum ad principium effectivum in metaphorica hominis signifi catione». (Sublinhado nosso).17 BOAVENTURA, Serm., In Nativitate Domini, Sermo IV (IX 113a): «Sub meta-phora ergo iridis sive caelestis arcus Dei potentia nobis inclinata per humanitatem ostenditur [...] Christus natus dicitur arcus caelestis [...]». (Sublinhado nosso).18 BOAVENTURA, I Sent., d. 22, a. un., q. 3, (I 396b).19 BOAVENTURA, I Sent., d. 34, a.un. q. 4 ( I 594a).20 BOAVENTURA, I Sent., d. 34, a. un. q. 4 (I 594a): «Quoniam igitur fi nis imponit necessitatem his quae sunt ad fi nem, cum translatio sit ad laudem Dei».

ANTROPOLOGIA E TEOLOGIA EM SÃO BOAVENTURA

73Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

por falta de palavras – dir-se-ia, por penúria/impotência da linguagem – a Sagrada Escritura ensinou a transferir os nomes das criaturas para Deus21. Por isso, é em número indefi nido que é preciso usar metáforas (translationes), a fi m de que, tal como todas as criaturas louvam Deus, o Ser divino seja igualmente louvado a partir de todos os nomes das criaturas22. «Louvar Deus» constitui, assim, um modo denominativo – «descendente» – do Ser divino. «Louvar Deus» signifi ca dizer Deus a partir do próprio Deus.

Embora Boaventura não dedique à linguagem estudo especial, esta «razão ou fi m» da metáfora determina, nas suas propriedades semânticas, um certo modelo de discurso, e, simultaneamente, é determinada por uma indeclinável concepção da linguagem, no seu poder de apreender e de exprimir o mundo. Aliás, contrariamente às aparências, o Medievo possui uma relação reconhecidamente profunda e refl ectida com a linguagem23.

Por outras palavras, também para o Santo a linguagem não pode fazer-se coincidir com o objeto que ela diz. Tal «apropriação adequada» virar-se-ia contra a própria linguagem, pela impossibilidade de articu-lação e de acumulação progressiva de sentido; importa preservar uma «distância»24, fonte do próprio discurso, sem o que não é possível falar

21 BOAVENTURA, Ibidem: «Propter laudem Dei necessaria est translatio. Quoniam enim Deus multum est laudabilis, ne propter inopiam vocabulorum contingeret ces-sare a laude, sacra Scriptura docuit, nomina creaturarum ad Deum transferri […]».22 BOAVENTURA, Ibidem: «[...] et hoc in numero indefi nito, ut, sicut omnis creatura laudat Deum, sic Deus laudetur ex omni nomine creaturae».23 Vd. J. H. J. SCHNEIDER, «Dante Alighieri e a fi losofi a da linguagem», in: J. Antônio de C. R. de Souza, (Org.), Idade Média: tempo do mundo, tempo dos homens, tempo de Deus, Edições Est, Porto Alegre, 2006, pp. 297-307. 24 Vd. J.-L. MARION, L’idole et la distance: cinque études, Paris, Bernard Grasset, 1977, p. 230 sgs.

74

ANTÓNIO ROCHA MARTINS

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

com sentido25. Essa distância signifi ca, pois, não um afastamento, mas uma «proximidade fi lial», e dissolve toda e qualquer identidade.

P. Ricoeur foi o porta-voz da chamada viragem hermenêutica, sobretudo através da sua obra La métaphore vive. Com essa expressão pretende-se indicar que não se trata apenas de um aspeto entre outros, mas de um aspeto que decide a feição da cultura e do pensamento. Ora, a justa interpretação do fi lósofo francês é no entanto parcial, na medida em que, apontando as virtudes da transição da metáfora do campo da «teoria retórica» para o da «teoria semântica», negligencia muitas outras suscitadas por essa transição. Pois é bem possível en-contrar em São Boaventura indícios da transformação da metáfora aí subjacente.

Ricoeur distingue entre discurso descritivo e discurso não descri-tivo. A «literatura» (e, portanto, a metáfora) desenvolve-se em zonas não descritivas do discurso, por intensifi cação de múltiplos modos de pertença ao mundo26.

J.-L. Marion faz igualmente a destrinça entre discurso de predi-cação categórica e discurso do louvor. Construindo interpretações em termos de modelos, o discurso formal (i.e., a predicação categórica) nega à linguagem uma alternativa de discurso: o referente é atingido categoricamente ou não o é; não o sendo, o discurso deve forçosa-mente parar (não há alternativa)27. Ora, sobre Deus, essa predicação (discurso formal) é uma impossibilidade radical, por não ser possível atingir o Ser divino como se fora um referente que verifi caria ou infi rmaria uma proposição bem construída28. O discurso poético,

25 Cf. J. C. GONÇALVES, Fazer Filosofi a – Como e Onde? – Braga, 1990, p. 29.26 Vd. P. RICOEUR, «Entre philosophie et théologie II: nommer Dieu, in: Lectures 3. Aux frontières de la philosophie, Paris, Seuil, pp. 286ss.27 J.-L. MARION, Op. cit., p. 231.28 J.-L. MARION, Op. cit., p. 231.

ANTROPOLOGIA E TEOLOGIA EM SÃO BOAVENTURA

75Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

por sua vez, ao ser meramente emocional, seria privado de qualquer função referencial29.

Boaventura, nos antípodas quer do terminismo, quer do nomi-nalismo30, consuma uma nomeação poética. Para ele, tudo se resolve no bom uso da linguagem natural, cujos contornos, ao contrário dos das linguagens artifi ciais, jamais são fechados e defi nitivos.

Precisamente, a metáfora interpela radicalmente o discurso descri-tivo/categórico e interpreta a plasticidade da linguagem, fundindo-se com a capacidade de o homem se distanciar, pela razão, vontade e imaginação (as «potências da alma»31) do imediato, para gizar um projeto de mundo mais rico, integrando sucessivamente as instâncias de onde partiu32. O discurso poético não vive do mundo dos objetos mas não ignora o mundo. Refere-se às nossas múltiplas formas de pertencer ao mundo. Se nos tornarmos cegos a essas modalidades de enraizamento e de pertença, que precedem a relação de um sujeito a objetos, é porque ratifi camos de modo não crítico um certo conceito de verdade, defi nido pela adequação a um real de objetos e submisso ao critério da verifi cação e da falsifi cação empíricas33. Ora nada seria mais estranho do que isso ao sentir e pensar de Boaventura.

29 Cf. P. RICOEUR, «Entre philosophie et théologie II: nommer Dieu, in: Lectures 3. Aux frontières de la philosophie, Paris, Seuil, p. 287.30 «Et quid prodest nomen habere sine re?» (Serm., Dominica tertia in quadrage-sima; IX, 229b).31 Para Boaventura, a razão e a vontade, ou o intelecto e o afecto, são diversas potências, mas não diversas essências, isto é, as potências da alma não diferem es-sencialmente. Por exemplo, há tanta conveniência entre a inteligência e a vontade, quanta há entre a verdade substancial e a bondade. (Vd. II Sent, d. 24, a. 2, q. 1; II 558-563).32 Cf. J. C. GONÇALVES, Op. cit., p. 28.33 Vd. P. RICOEUR, Op. cit., pp. 287-288.

76

ANTÓNIO ROCHA MARTINS

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

3. A metáfora como manuductio

Em ligação com a razão ou fi m de louvor, a metáfora tem uma outra razão ou fi m: «conduzir pela mão» (manu-ductio) o nosso inte-lecto: alia ratio vel fi nis translationis est manuductio intellectus nostri.

Como manuductio, a metáfora refl ete igualmente a insufi ciência de uma noção restrita de ciência, que fi xaria o homem nas malhas de um universal elaborado pelo intelecto, e acentua o sentido da existência das criaturas como refl exo, impossível de deduzir da sua própria essência. O real não pode reduzir-se aos seus sinais. O homem «habita» Deus34, conduzindo-se pelos signos (medium manuductionis)35. Deus não se identifi ca com que sobre ele a linguagem diz – incluindo o próprio nome Deus. As metáforas possuem uma razão comum: falam de Deus segundo a experiência sensível; por exemplo, o brilho de uma estrela, o rosado de uma manhã, a força de um leão, a doçura de um cordeiro… Note-se, todavia, que «determinação sensível» não quer dizer «signifi cação sensível»: «o verbo da inteligência, que é insensível, reveste a voz sensível»36.

Posto isto, vê-se por que a metáfora se aplica às coisas divinas tanto quanto a multiformidade dos nomes, por cuja razão se diz que Deus se pode nomear por todos os nomes – e jamais por um só: a ciência humana atual só o alcança metaforicamente, não na sua determinação essencial. Ou seja, metaforizar não signifi ca «inventar» Deus; a metáfora aplicada a Deus não faz de Deus uma «recriação»: as metáforas do divino traduzem a manifestação expressiva da nossa contemplação de Deus.

34 Cf. BOAVENTURA, Brevil. I, 5 (V 214a).35 Cf. BOAVENTURA, Brevil. V, 9 (V 262b).36 BOAVENTURA, I Sent., d. 22, a. un., q. 1 (I 396b).

ANTROPOLOGIA E TEOLOGIA EM SÃO BOAVENTURA

77Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

São Boaventura associa, pois, teologia e metáfora. A teologia, cujo objeto é o credível, não enquanto credível mas enquanto inteligível (credibile ut intelligibile), compreende em si a metáfora como modali-dade de racionalidade, constituindo-se desse modo como resposta ao desafi o simultaneamente da cognoscibilidade e não-conceitualidade do divino. Deus não pode ser conceitualizado mas pode ser conhe-cido. Cremos que, deste modo, o Santo antecipa a redescoberta do valor cognitivo, heurístico e hermenêutico da metáfora, virando para a linguagem a consumação do pensamento37. Deus está sempre para além do seu próprio conceito.

4. Como podemos continuar a dizer Deus

Se, como laus Dei, a predicação metafórica é de sentido «descen-dente» (a parte Dei), já como manuductio essa predicação é de sentido «ascendente» (a parte creaturae). Ou seja, temos de o reconhecer: Boaventura atribui à metáfora um duplo movimento: 1. epifórico (descendente); e 2. diafórico (ascendente). No primeiro, a metáfora manifesta uma função heurística; no segundo, ela assume uma função cognitiva. O santo franciscano «entrecruza» duas modalidades predi-cativas, uma segundo a ordem descendente do ser (laus Dei) e outra segundo a ordem ascendente das signifi cações (manuductio), as quais, por sua vez, correspondem a duas vias para Deus (a parte Dei e a parte creaturae). A predicação metafórica consigna um «equilíbrio» entre ambas, constituindo-se assim como o grande modelo da linguagem humana sobre Deus.

No Breviloquium importa determinar um modo (modus), uma expressão (expressio) adequada, para dizer Deus: uma expressão cató-

37 Recorde-se que Boaventura jamais desqualifi ca a retórica: «Tertia irradiatio est, qua mens illustratur ad persuadendum vel inclinandum animum; hoc fi t per rhetoricam». (Hexaem. IV, 21; V 353a). E diz mais: «Certum est, quod rationalis philosophia in rhetorica consummatur». (De donis, IV, 12; V 475b).

78

ANTÓNIO ROCHA MARTINS

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

lica para traduzir a fé trinitária (De istius fi dei expressione catholica). Referindo-se aos «documentos dos santos doutores» e à classifi cação dos modos (modi) de P. Lombardo, Boaventura diz que tal expressão corresponde à determinação do modo de predicação (modus predi-candi) que melhor pode dizer Deus38.

Em Deus alguns nomes são metafóricos e outros não39. As coisas que são perfeitas devem dizer-se de Deus «própria e verdadeiramen-te»; mas as coisas que são imperfeitas não podem dizer-se, ou se se disserem, devem dizer-se segundo a assunção da natureza humana, ou metaforicamente40. Dizer própria e verdadeiramente é, pois, dizer de um modo perfeito, predicar propriamente o Ser divino. Tomando o exemplo das dez categorias de Aristóteles, segundo Boécio, só as cinco primeiras (substantia, quantitas, relatio, qualitas et actio) convêm verdadeiramente a Deus, como suas formas de ser, pelas quais também é conhecido41. As cinco últimas (passio, ubi, quando, situs et habere) só podem convir a Deus «por transposição e de modo fi gurativo», visto contemplarem propriamente as coisas corpóreas ou mutáveis (quinque

ultima proprie spectant ad corporalia seu mutabilia)42.

Assim, o que interdita a predicação própria de algumas cate-gorias a Deus é a corporeidade («paixão» e «haver», por exemplo) e a mutabilidade («lugar», «tempo» e «situação»). «Corporeidade» e «mutabilidade» convêm, em sentido próprio, somente ao ser fi nito: «somente por metáfora» (nisi forte transsumptiva) podem atribuir-se ao Ser infi nito.

38 BOAVENTURA, Brevil. I, 4 (V 212-213).39 BOAVENTURA, I Sent., d. 22, q. 3 (I 396b.40 BOAVENTURA, Brevil. I, 4 (V 212a).41 BOAVENTURA, I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 398a).42 BOAVENTURA, Brevil. I, 4 (V 212a-b).

ANTROPOLOGIA E TEOLOGIA EM SÃO BOAVENTURA

79Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

Propriamente falando, o nome Deus não tem plural, não é nome apelativo, porque não signifi ca uma forma multiplicável. O nome Deus é próprio da natureza divina. Deus não pode ser limitado, nem coarctado, nem composto: Deus está fora de todo o gênero43. Deus é incircunscritível, invisível e imutável44.

Note-se que, à semelhança do Pseudo-Dionísio, o Doutor Seráfi co preserva a noção de que um só nome não pode signifi car Deus. O Ser divino, por defi nição, transcende todos os nomes. Ou seja, os nomes divinos são os nomes das criaturas transferidos para Deus: metafo-ricamente (metaphorice), Deus é nomeável por todos os nomes das criaturas (Deus est omninominabilis) – excepto os das que importam deformidade, como diabo, sapo, raposa (ut diabulus, bufo, vulpes), que mais transfeririam vitupério do que louvor45. A metáfora, nota Boaventura, serve «para a nossa instrução»; é por essa razão que a semelhança sensível pode ser «via de conhecimento»46. Só os nomes que importam «deiformidade» podem predicar-se metaforicamente do Ser divino. A «diferença» que separa ambos os polos da relação é tão essencial à transferência signifi cativa como a sua «conferência» naquilo em que se aproximam (analogia). À predicação metafórica é essencial a analogia (similitudo alterius).

Para nós (pro nobis) a metáfora é o melhor meio de conhecer Deus em si (in rem). Tal como há dois modos de conhecer, há dois modos de dizer. Ao conhecimento de compreensão perfeita corresponde o que pode ser dito ou nomeado segundo a expressão perfeita. Aqui deve dizer-se que Deus é inteligível por si só, e assim também por si só pode ser dito e nomeado. Ao conhecimento imperfeito, por sua

43 BOAVENTURA, Brevil. I, 8 (V, 217b).44 BOAVENTURA, Brevil., I, 5 (V, 214a ).45 BOAVENTURA, I Sent. d. 34, a. un., q. 4 (I 594b).46 Ibidem.

80

ANTÓNIO ROCHA MARTINS

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

vez, corresponde o que pode ser dito ou nomeado num «discurso qualquer» – discurso imperfeito47.

O Doutor Seráfi co distingue, com toda a clareza, os nomes que Deus se impôs a si mesmo e os nomes que nós lhe impusemos. Se falarmos dos nomes que Deus se dá a si mesmo, esses nomes são próprios; se, porém, falarmos dos nomes pelos quais nós o nome-amos, esses nomes são metafóricos48. Contudo, Boaventura sabe bem que não poderia estender a metáfora indefi nidamente. Por isso, sublinha ele: «digo que tudo o que é dito impropriamente não é dito metaforicamente»49; ou seja, «também se nomeia por negação»50.

5. A lógica simbólica do pensar

Fica, pois, bem evidente que, para o Santo, a metáfora possui «propriedades de excelência» na nomeação de Deus e também por que, diversamente, recusa erigi-la como norma de toda a teologia. O melhor dos caminhos também comporta perigos, o maior dos quais seria a reifi cação de Ser divino. Boaventura não só, pois, teoriza, como defi ne o respectivo uso da metáfora, isto é, a sua esfera de pertença; propõe, pode dizer-se, uma doutrina sobre o bom uso da metáfora. O Santo intui aqui a hodierna questão dos limites da linguagem: não podemos sair da linguagem para vermos fora dela. Mas a linguagem não pode fazer transitar em linguagem aquilo que diz. Eu não sou aquilo que penso.

Deus tem forma, não forma acessível ao nosso intelecto, ao modo da forma que é imagem dos nossos sentidos, mas forma porque ele

47 BOAVENTURA, I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 391a).48 BOAVENTURA, I Sent., d. 22, a. un., q. 3 (I 395a).49 BOAVENTURA, I Sent. d. 22, a. un., q. 3 (I 396b).50 Ibidem.

ANTROPOLOGIA E TEOLOGIA EM SÃO BOAVENTURA

81Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

mesmo é a própria razão de conhecer. Deus dá-se-nos a conhecer na forma criada – as criaturas. É porque lhe impomos nomes a partir da forma criada que o conhecemos e vemos51.

E porque nas criaturas diferem maximamente «o que é» conhe-cido e «aquilo pelo qual» se conhece, o nome nas criaturas implica maximamente a diversidade das substâncias e das qualidades. No Ser divino, porém, não há essa distinção, pois o conhecido e a razão de conhecer são o mesmo; por isso o nome divino signifi ca essas duas coisas por indiferença real52. E assim Deus não é apenas conhecido pela diversidade das coisas, mas também por todas as suas formas de ser. Os nomes ditos de Deus, alguns dizem-se pelo modo da subs-tância, como quando se diz «Deus», outros dizem-se pelo nome da quantidade, como quando se diz «grande», e outros pelo modo da qualidade, como quando se diz «bom», e o mesmo se aplica a todos os outros nomes53, como imenso (immensus), simples (simplex) e infi nito (infi nitus) – nomes estes que coexistem no Ser divino54.

Deus manifesta-se e oculta-se simultaneamente: manifesta-se para o pensamento, mas oculta-se para a compreensão. E se se perguntar como é que Deus se conhece, se algo de seu está mais de um lado ou do outro, deve dizer-se que Deus está «integralmente» de ambos os lados, e só assim se dá a conhecer55.

Santo Agostinho distinguira, de modo claro, attingere de com-prehendere56. Uma coisa é ver, outra coisa é ver e compreender. O que se apreende (aspicio) não é totalmente apreendido. São Boaventura

51 BOAVENTURA, I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 391b).52 Ibidem.53 BOAVENTURA, I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 398a).54 BOAVENTURA, III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 301a).55 BOAVENTURA, III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 303a).56 AGOSTINHO, Sermo 117, c. 3, n. 5 (PL, 38, 663).

82

ANTÓNIO ROCHA MARTINS

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

recolhe essa distinção, que Anselmo igualmente assumira, separan-do pensamento (intelligere) e compreensão (comprehendere): Deus mostra-se integralmente, mas não é compreendido por nenhuma criatura, quer unida quer separada57. Deus é incompreensível, visto que o Ser divino jamais se pode fazer igualar/fechar nos termos que o conhecem58: conhecemos por semelhança e não por essência59. Ou seja, há um certo modo «positivo» e um certo modo «privativo» no nosso conhecimento de Deus; positivo, no que respeita à capacidade da nossa inteligência, e privativo no que respeita à mais íntima cons-tituição do próprio Ser divino60.

Sublinhe-se: pode conhecer-se Deus totus sed non totaliter61, isto é, a impossibilidade de conhecermos Deus «totalmente» não obsta que não o possamos conhecer sicuti est.

A incompreensibilidade, portanto, não se refl ete no conhecimen-to, uma vez que não torna Deus estranho ao pensamento.

Recorde-se a concepção bonaventuriana de pensar: «Pensar nada mais é do que conhecer o que se diz». Como acima vimos, o Doutor Seráfi co associa intimamente os conceitos de pensamento, linguagem e conhecimento – sem os considerar, contudo, numa exata equivalência. Propriamente falando, não se diz o que se não pensa, não se pensa o que se não conhece. Nada é possível nomear sem o conhecimento da coisa nomeada62. Ou seja, o conhecimento pertence à própria essência do pensamento, do qual a linguagem é manifestação.

57 BOAVENTURA, III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 301a).58 BOAVENTURA, III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 303b).59 BOAVENTURA, I Sent. d. 17, a. un., q. 4 (I 300a).60 Ibidem.61 BOAVENTURA, III Sent., d. 14, a. 1, q. 2 (III 302b).62 BOAVENTURA, II Sent. d. 23, a. 2, q. 1 (II 537a).

ANTROPOLOGIA E TEOLOGIA EM SÃO BOAVENTURA

83Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

Mas, como vimos também, o nosso Santo atribui à metáfora fun-

ções próprias na nomeação do Ser divino. Chega mesmo a repetir que

a metáfora possui uma dupla razão: uma é a semelhança expressa, a

outra é a nossa instrução63. Os modos simbólicos não são artifícios a

que a razão poderia recorrer por defeito de verdade. Constituem antes

o seu próprio espaço habitacional, o seu modo específi co de estar e de

fazer o mundo, pelo que ela não sai para fora de si. Metodologicamente

falando, está em questão menos o defeito de verdade – os limites da

razão – do que a natureza e constituição poética da própria razão – a

capacidade da razão. Teologicamente falando, estamos perante uma

doutrina que repousa no conceito positivo/afi rmativo (e não negativo)

do mistério – ou do «segredo» – de Deus. Filosofi camente falando,

São Boaventura considera que a razão é susceptível de múltiplas

racionalidades.

O discurso poético não é apenas uma alternativa ao discurso

científi co. A criação de sentido não faz sentido sem a transformação

do sentido dado. A poética («habitação»), consistindo nessa transfor-

mação, afeta e modifi ca o destinador (homem), e não o destinatário

(Deus): o sentido das palavras faz recolher os nossos pensamentos,

pois que a palavra assemelha e assemelha-nos ao seu destinatário64.

Deus é ineliminável do espírito humano. À pergunta se hoje ainda

é possível ao pensamento dialogar com as respostas que a tradição já

deu acerca do divino, Boaventura responderia que, como no-lo mostra

a própria lógica da razão, a possibilidade científi ca da teologia vive da

retomação da metáfora no seu dúplice movimento, epifórico e diafóri-

co. Sublinha ele: «O modo como conhecemos Deus é também o modo

63 BOAVENTURA, I Sent. d. 27, a. un., q. 4 (I 489a).64 BOAVENTURA, Brevil. V, 10 (V 264a).

84

ANTÓNIO ROCHA MARTINS

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 67-84, jan./jun. 2012

como falamos dele e o nomeamos, e quem melhor o conhece melhor o nomeia e expressa»65. Eis também por que a posição bonaventuriana constitui exemplo fi losófi co, não exclusivamente histórico.

65 BOAVENTURA, I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 391a).

AUTORIDAD Y RAZÓN...

85Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

AUTORIDAD Y RAZÓN. GONZALO HISPANO, UNA REACCIÓN

FRANCISCANA IBÉRICA A LOSRETOS DEL PENSAMIENTONATURAL ARISTOTÉLICO

Manuel Lázaro Pulido*

En la provincia de Santiago, la enseñanza reglada que existía dentro de la Orden exigía en fi losofía el conocimiento de la obra de Aristó-teles para la obtención del grado de Bachillerato, antes de adentrarse en los estudios teológicos fundamentados en la lectura de la Biblia y el comentario a la obra de las Sentencias de Pedro Lombardo. Poco a poco los franciscanos de la Península Ibérica iban ganando en ciencia y algunos de ellos pasaron por el Estudio de París. De entre el 1,6% que lo hicieron, lo que se materializa en 13 hermanos graduados, uno de ellos es Gonzalo Hispano1, quien llegó a regentar el estudio con 155 herma-nos, un número muy importante teniendo en cuenta que el estudio de

* Investigador do Instituto de Filosofi a da Universidade do Porto (Ciência 2008, co-fi nanciado pelo FSE e pelo POPH). Estudo do projeto desenvolvido no Gabinete de Filosofi a Medieval do Instituto de Filosofi a da Faculdade de Letras da Universi-dade do Porto (FLUP): The different Franciscan readings of Aristotle’s thought: their thematic and temporary development in the Iberian Peninsula, inserido no projeto de investigação: A fi losofi a escolástica ibérica nas encruzilhadas da razão ocidental: A recepção de Aristóteles e a transição para a modernidade (FEIARC) – Iberian Scholas-tic Philosophy at the Crossroads of Western Reason: The Reception of Aristotle and the Transition to Modernity (ISPCWR).

1 VÁZQUEZ, Isaac. Repertorio de franciscanos españoles graduados en teología durante la edad media, in Repertorio de Historia de las ciencias eclesiásticas en España, vol. III, Salamanca: Universidad. Pontifi cia de Salamanca, 1971, 235-320.

86

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

los dominicos por aquella época contaba con 132. Gonzalo Hispano encabeza, de esta forma, una lista cada vez más creciente de franciscanos peninsulares que harán frente a los retos teológicos (y fi losófi cos) de su tiempo. La razón de la ciencia, nacida de la fi losofía natural, se impone poco a poco en la mentalidad de los maestros franciscanos y modifi ca, en cierto sentido, la forma de entender la teología. El cambio que se opera conoce la inclusión de una problemática clave en las condenas que el obispo de París Esteban Tempier († 1279) realizó el 7 de marzo de 1277, donde prohibió la enseñanza de 219 tesis motivadas por los errores de los fi lósofos2. Este acontecimiento introduce una serie de dis-putas vivas e intelectuales muy interesantes que afectan a varios aspectos fi losófi cos y teológicos, y que tendrán una signifi cación que será muy variada, donde subyace la legitimidad de las formas de conocimiento y la jerarquía del acceso a la verdad y sus límites (fe-ciencia). La cuestión es importante porque dependiendo de cómo se resuelva, así afectará posteriormente a las diversas interpretaciones de las realidades concretas que se estudien, como, por ejemplo, el conocimiento que se tenga del ser humano y de su constitución.

En este contexto, el maestro franciscano Gonzalo Hispano († 1313)3 dedica la Cuestión IX a estudiar este tema que orienta otros posteriores, como, por ejemplo, la repercusión que tiene la elección

2 Chartularium vol. 1, pp. 544-555. Cf. LEÓN, Francisco. 1277. La condena de la fi losofía, estudio preliminar, traducción del syllabus, por F. León, Madrid: A parte rei Revista de Filosofía, 2007. Una bibliografía en las pp. 109-114. PICHÉ, David (ed.). La condemnation parisienne de 1277. Texte latin, traduction, introduction et commentaire, Paris: J. Vrin, 1999; HISSETTE, Roland. Enquête sur les 219 articles condamnés à Paris le 7 mars 1277, Louvain: Publications Universitaires, 1977; ID. Étienne Tempier et ses condamnations, in: Recherches de théologie ancienne et médiéval, Leuven, vol. 47, pp. 231-270, 1980; FLASCH, Kurt. Aufklärung im Mittelalter? Die Verurteilung von 1277, Frankfurt a. M.: Dietrich, 1989.3 Un retrato de su vida en LÁZARO, Manuel. Gonzalo Hispano, in Arqueología, historia y viajes sobre el mundo Medieval, Barcelona, n. 42, pp. 40-49, 2012. Cf. AMORÓS, León. Introductio Historico-critica, in GONZALO HISPANO, Qua-estiones Disputatae et de Quodlibet. Ed. L. Amorós con introducción histórico-crítica, Firenze: Quaracchi, 1935, pp. XVI-XVIII.

AUTORIDAD Y RAZÓN...

87Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

epistemológica subyacente a la ciencia teológica en la afi rmación esen-cial a la teología antropológica, como es la teoría de la pluralidad o unicidad de las formas en el alma (Cuestión X). Esta cuestió nos ayuda a observar el pensamiento franciscano en el momento en el que se están construyendo las diferentes respuestas y soluciones a las proble-máticas que se están viviendo en plena ebullición; problemas relativos a la sociología institucional –como es el caso de las posiciones entre facultades y las diferentes interpretaciones de las órdenes religiosas en París– y sus consecuencias intelectuales entre diversas visiones sobre el acercamiento epistemológico, así como sus corolarios metafísicos, relativos a la ciencia del hombre y la afectación de la antropología resultante en la especulación teológico-dogmática. En fi n, se trata de una mirada sobre la autoridad de la fe en cuestiones donde la ciencia impone una lógica de seguridades que compite en las formas univer-sales de su expresión con la universalidad fontal de la fe.

El hecho es que, como se afi rma en el syllabus de 1277, en la ciudad del Sena se expresan opiniones en forma de verdad cierta, y se ejecutan disputas de errores, al decir de los censores4. El punto de infl exión de las condenas supone, por una parte, el tránsito de las síntesis de los grandes maestros del siglo XIII a las grandes discusiones del siglo

4 Chartularium Universitatis Parisiensis, vol. 1, n. 473, p. 543: “Magnarum et gravium personarum, crebra zeloque fi dei accensa insinuavit relatio, quod nonnulli Parisius studentes in artibus proprie fi lcultatis limites excedentes quosdam manifestos et exacrabiles errores, immo potius vanitates et insanias falsas in rotulo seu cedulis, presentibus hiis annexo sell annexis contentos quasi dubitabiles in scolis tractare et dis-putare presumunt, non attendentes illud Gregorii: Qui sapienter loqui nititur, magno opere metuat, ne ejus eloquio audientium unitas confundatur, presertim, cum errores predictos gentilium scripturis muniant, quas, proh pudor! ad suam imperitiam asserunt sic cogentes, ut eis nesciant respondere”. Seguimos la traducción de esta “Carta escrita por el obispo Esteban Tempier de París en 1277”, en LEÓN, Francisco, 1277, p. 67. Cf. GRABMANN, Martin. I divieti ecclesiastici di Aristotele sotto Innocenzo III e Gregorio IX, Roma: Miscellanea Historiæ Pontifi ciae, 1941; GRANT, Edward. Note sur le syllabus ‘antirationaliste’ du 7 mars 1277, in Revue Philosophique de Louvain, Louvain, vol. 88, pp. 404-416, 1990.

88

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

XIV; y, por otra, la culminación de un momento de transmisión de saberes que cristaliza en la asunción de las tesis subyacentes a la in-tegración del Corpus aristotelicum. Esta dinámica se materializa en la tradición franciscana, en la evolución del pensamiento habido entre las consecuencias teológicas de las lecturas de la Summa halensis, ma-terializado en la brillantez de Buenaventura, y la fuerza especulativa que cimentará la apuesta ontológica posterior de Juan Duns Escoto. Y en ese camino que va del periodo anterior a 1277 a los primeros años del siglo XIV se encuentran diversas expresiones teológicas que van operando el cambio a partir del ejercicio racional de la discusión teológica y su bases fi losófi cas, no solo en las cátedras, sino también en el propio desarrollo de las tradiciones teológicas, es el caso especial de la franciscana, siendo como era, una Orden que se distinguía por la libertad ejercida por sus miembros (no sin problemas internos y externos). De esta transición conocemos de forma preferencial algu-nos ejemplos que son más mencionados: el caso de Pedro Juan Olivi (1248-1292), Ricardo de Mediavilla (c. 1249-c.1308) o Guillermo de Ware († después de 1305), autores de la primera generación tras el magisterio de Buenaventura y que bien dependen de las tesis seráfi cas, bien caminan por senderos alternativos (Olivi), pero que aún están a distancia de la enseñanza de Juan Duns Escoto (1266-1308).

Es preciso para comprender mejor el tránsito del agustinismo bonaventuriano, a la propuesta escotista de lectura teológica de las implicaciones aristotélicas, mirar a autores de una segunda generación como es el caso de Gonzalo Hispano y las indicaciones, que con la timidez de quien tiene un espíritu de conciliación franciscana (y que le llevarán a ser General de la Orden en un momento difícil), pero realizadas en el fragor de la disputa intelectual, es capaz de marcar senderos que la cabeza amueblada de Escoto en sus lecturas oxonienses y su formación parisiense se destaparán en una doctrina totalmente renovada y renovadora.

AUTORIDAD Y RAZÓN...

89Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

Gonzalo Hispano debate sus Cuestiones disputadas en el curso académico 1302-1303. En ese momento está en el Studium de Saint-Jacques y en esa época Dietrich de Freiberg y Juan Eckhart ocupan las cátedras de los dominicos. La actividad académica y la disputa no se realiza tanto entre los maestros de artes y los teólogos, cuanto entre los propios maestros de las cátedras de teología respecto al uso que las afi rmaciones epistemológicas básicas de los maestros de artes implican en la especulación teológico-dogmática. Es decir, si la razón afi rmada y enseñada –a partir de las consecuencias antropológicas, físicas y meta-físicas que implican– debe ser asimilada en la enseñanza teológica, con las derivaciones que suponen sus afi rmaciones para el desarrollo de una antropología teológica y sus lecturas cristológicas y sacramentales.

La cuestión se ve claramente, por ejemplo, en el abierto debate que se realiza respecto de las potencias anímicas y las facultades del intelecto y la voluntad, un debate que enfrentó al maestro franciscano con Godofredo de Fontaines († 1306), primero5 y con el Maestro Eckhard, después. Los debates conocen una gran variedad de fuentes y ayudan a comprender mejor si cabe, no sólo el contexto doctrinal que se vive en este tiempo, sino también el debate entre las órdenes y en el propio franciscanismo. Las fuentes utilizadas son múltiples: maestros de la Orden como Ale-jandro de Hales (c. 1185-1245), Buenaventura (c. 1218-1274), Pedro Olivi (c.1248-1298), Guillermo de la Mare († c. 1285) y Ricardo de Mediavilla (c. 1249-1308); maestros dominicos e interlocutores en las disputas del momento como Tomás de Aquino (c.1225-1274), Godo-fredo de Fontaines, Enrique de Gante (1217-1293), Maestro Eckhart, Juan de París (c. 1255-1306) o Pedro de Alvernia († 1304)…6 Todos ellos pasan por las líneas de las Cuestiones. Pero junto a los autores de la

5 Cf. VOS, Antoine. Duns Scotus at Paris, en BOULNOIS, Olivier; KARGER, Eli-zabeth; SOLÈRE, Jean-Luc; SONDAG, Gérard (eds.). Duns Scot à Paris, 1302-2002. Actes du colloque de Paris, 2-4 septembre 2002, Turnhout: Brepols, 2004, p. 17.6 AMORÓS, Introducción, p. LXV.

90

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

tradición, a los maestros, a los compañeros de la Orden y a sus interlo-cutores, un autor se hace presente de forma signifi cativa, porque es el transfondo de las querellas, se trata del Filósofo o mejor de la lectura de Aristóteles desarrollada en su tiempo. Gonzalo hace gala de un profundo conocimiento del contexto fi losófi co-teológico más signifi cativo y de las fuentes fundamentales utilizadas en la época.

Sabemos hoy en día de forma muy documentada, y aún en las di-versas interpretaciones que puedan hacerse, que más allá de los matices, la introducción de la fi losofía aristotélica supuso una revolución. La llegada del Corpus aristotelicum a través de los ensayos de asimilación árabes, judíos e hispanos7, y del Corpus dionysianum, provocan en el agustinismo una reacción al sentirse agredido por esta lectura y el carácter polémico que se desarrolla de modo especial en la Universidad que dura todo el siglo XIII.

Fe y ciencia; autoridad y razón

Gonzalo Hispano se pregunta sobre si el conocimiento científi co es compatible con el conocimiento que nace en la autoridad: Utrum cognitio habita per auctoritatem compatiatur secum cognitionem scien-tifi cam. La cuestión es una concreción del debate universitario sobre la importancia de la fe y el peso de la razón en el discurso teológico. La referencia a la autoridad se refi ere a la Sagrada escritura, como autoridad fundamental, la autoridad de la revelación en la discusión teológica que quiera determinarse como discurso de ciencia. Este debate no supone un olvido de la fuente revelada en la teología, sino una cuestión sobre las conclusiones que sobre objetos determinados nos lleva la ciencia, basada en la razón y, también, la teología, funda-

7 Cf. INGLIS, John (ed.), Medieval philosophy and the classical tradition: in Islam, Judaism and Christianity, Richmond: Curzon Press, 2002.

AUTORIDAD Y RAZÓN...

91Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

mentada en la autoridad de la fe, y si estas pueden ser compatibles o si, por el contrario, son en sí totalmente extrañas. En el ya conocido largo camino sobre la verdad única o la doble verdad que parece des-prenderse de estas dos formas de entendimiento, Gonzalo Hispano desarrolla su Questio IX. La cuestión se desarrolla con la metodología propia de una discusión universitaria.

La disputa inicia con la respuesta negativa, que niega la compati-bilidad entre ambas formas de conocimiento. Más tarde las rebatirá, por lo que Gonzalo se sitúa en una postura que intenta equilibrar las posiciones intelectualistas y místicas. Los horizontes fi losófi cos y teológicos son los delimitados de forma paradigmática por Enrique de Gante y Godofredo de Fontaines. Gonzalo Hispano no se sitúa, sin embargo, equidistante entre ambos. Y se sentirá más cercano al primero, si bien de forma crítica, que al segundo.

Godofredo de Fontaines se sitúa contra el equilibrio de la fi lo-sofía y la teología. Ambas ciencias no se relacionan, son disciplinas diferenciadas. Los fi lósofos, los artistas de la razón, realizan un gran esfuerzo por armar científi camente su disciplina, mientras que los teólogos olvidan con frecuencia el ejercicio de la razón, animados por la autoridad de la revelación. La teología es una ciencia demostrati-va, de esta forma Godofredo de Fontaines realiza una defensa de la racionalidad fi losófi ca. Aparece como un racionalista, los argumen-tos más importantes se los concede a la razón fi losófi ca, dejando el argumento teológico como una forma secundaria, si acaso necesaria para combatir otras posiciones. Esta forma de aristotelismo, que no solo es material, sino formal, se ve especialmente en la cuestión que está en la base de muchas polémicas: la de la pluralidad de las formas. Es la disputa que sucede en Gonzalo Hispano a la cuestión IX, y es la que obliga a hacer una pregunta sobre el equilibrio de la fi losofía y la teología, sobre sus fuentes (razón y autoridad), sobre sus posibles interferencias o retroalimentaciones, es decir, su compatibilidad.

92

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

Godofredo de Fontaines apuesta por la fi losofía, por la razón, por la pluralidad de formas, por el aristotelismo, y, por lo tanto, por una metodología especialmente racional(ista). No se niega la teología, sino una teología arbitraria, basada en la creencia común (la del vulgus), que determina lo que va “contra la fe”8. La teología se muestra así como un saber que depende de la adhesión de la fe a la autoridad revelada y aquí surge la cuestión que quiere rebatir Gonzalo Hispano y que muy bien defi ne Leonardo Sileo:

“Per Godoffredo la teologia è allora, semmai, scienza dei credibilia assunti come tali dall’ adesione di fede all’autorità del Rivelatore. Questo non signifi ca però che, così intesa, la teologia e la scienza dimostrativa siano di per sé incompatibili, nel senso che dove si dà l’una non vi possa essere l’altra. Godoffredo è convinto del contrario: verità credibili e verità dimostrabili né si escludono, né sono parallele; sono semplicemente modalità autonome del sapere e, in qualche modo, complementari”9.

Efectivamente es esta falta de encuentro en la equidistancia metodológica lo que subyace a las cuestiones concretas, sea de natu-raleza antropológica, sea de naturaleza teológica, en cualquiera de las cuestiones tratadas, como puede ser el de la pluralidad de las formas. Y lo que Godofredo constata es que la naturaleza estudiada por la fi losofía con las armas de la razón y la demostración adquiere un mayor conocimiento y una voz más autorizada que la de la “autori-dad” teológica, en cuanto que no contradice la naturaleza ni se basa en fi cciones alejadas de la ciencia10.

8 GODOFREDO DE FONTAINES, Quodlibet II, q. 7, pp. 125-127.9 SILEO, Leonardo – ZANATTA, Fabio, I maestri di teologia della seconda metà del Duocento, in: D’ONOFRIO, Giulio (dir.), Storia della Teologia nel Medioevo. III La teologia delle scuole, Casale Monferrato (AL): Ed. di Piemme, 1996, p. 81.10 “Et hoc est dicere contradictoria et multum derogare sacrae theologiae et doc-toribus ipsius, tales fi ctiones de ipsa theologia attractantibus ipsam propalare” (GODOFREDO DE FONTAINES, Quodlibet IV, q. 10, vol. 2, p. 262).

AUTORIDAD Y RAZÓN...

93Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

Gonzalo Hispano rescata las objeciones de Godofredo. Recuerda la separación que este autor realiza entre autoridad y razón. La autoridad se utiliza bien en la esfera de la opinión, bien en la esfera de la fe. Aquí se entiende la posición aristotélica frente a la dialéctica en el sentido platónico. Aunque no se cite, lo que se está poniendo en evidencia es la falencia aristotélica respecto de la éndoxa, es decir, de las opiniones que son probables, aquellas compartidas y nacidas desde el consenso. El criterio nace de la aceptación de la mayoría. La dialéctica platónica para Aristóteles es universal en cuanto que ayuda a argumentar, pero a costa de perder su estatuto científi co y su conocimiento puesto que no se limita a un ámbito o género determinado. Es útil para los principios en su generalidad, pero no en cuanto al establecimiento de un conocimiento a partir de los mismos. Esto se puede observar en la tercera objeción de Gonzalo Hispano, nacida de la naturaleza de la fe y de la ciencia respecto de la opinión. Las objeciones tienen su etiología en la afi rmación de que la fe es superior a la opinión formada en la autoridad humana. Lo que se afi rma es que la opinión fundada en la realidad se encuentra por encima de la razón y que fundamenta el conocimiento de las cosas evidentes, de modo que se presenta siendo más perfecta que la fe, que es siempre conocimiento enigmático [Ahora vemos en un espejo, confusamente. Entonces veremos cara a cara] (1 Co, 13,12). La objeción se fundamenta en la reserva que Aristóteles tiene sobre la éndoxa y, por lo tanto, en la opinión. Por eso concluye que siendo que la ciencia según Aristóteles (I Posteriorum) no tiene nada que ver con lo opinable ni la opinión, menos aún con la fe que nace de la autoridad11.

11 “Praeterea, licet opinio quae innititur autoritati humanae sit cognitio imperfectior fi de, tamen opinio quae fundatur super rationem, ex quo cognitionem evidentiae rei participat, videtur esse cognitio perfectior fi de, quae est omnino in aenigmate; sed secundum Philosophum, in fi ne I Posteriorum, opinio non stat cum scientia, cap. Illo: «scibile autem et scientia differt ab opinabili et opinione»; ergo nec fortius cum fi de, quae est ex auctoritate, non stabit scientia”.

94

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

En este sentido, la argumentación contraria a la compatibilidad de la autoridad y la razón de la ciencia ataca acaso el propio sentir de Tomás de Aquino.

Efectivamente, Tomás de Aquino había puesto negro sobre blan-co una posición de lectura de Aristóteles donde la autoridad de la Sagrada Escritura, la doctrina sagrada, ocupaba, como no podía ser de otra forma, un rango superior, de modo que guiaba el resto de las ciencias12. Y la utilización de la palabra “ciencia” no está puesta por casualidad ni al azar. El contenido de la revelación divina desarrolla-da como doctrina sacra se constituye una ciencia, una disciplina que tiene su especifi cidad científi ca. La teología, por su parte, desarrolla de forma más específi ca la fuerza del raciocinio, donde los artículos de la fe operan como principios, evidentes para Dios y no para el hombre, en su conocimiento imperfecto; pero que orgánicamente funcionan como los principios evidentes de las ciencias racionales. De esta forma, Tomás de Aquino propone, desde la articulación científi ca de Aristóteles, que es posible, desde la ordenación del saber conforme a la gracia de la naturaleza y su capacidad de perfección, el hecho de que la razón y la fe tengan una relación armoniosa, en concordancia, es decir, que sean compatibles. Ambas son distintas, pero no separadas:

“La doctrina sagrada es ciencia. Hay dos tipos de ciencias. 1) Unas, como la aritmética, la geometría y similares, que deducen sus conclusiones a partir de principios evidentes por la luz del entendimiento natural. 2) Otras, por su parte, deducen sus conclusiones a partir de princi-pios evidentes, por la luz de una ciencia superior. Así, la perspectiva, que parte de los principios que le proporciona la geometría; o la música, que parte de los que le proporciona la aritmética. En este último sentido se dice que la doctrina sagrada es ciencia,

12 “Imperat omnibus tamquam principalis” (TOMÁS DE AQUINO, Sententias, prol., a. 1, ed. Oliva, p. 313).

AUTORIDAD Y RAZÓN...

95Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

puesto que saca sus conclusiones a partir de los principios evidentes por la luz de una ciencia superior, esto es, la ciencia de Dios y de los Santos. Así, pues, de la misma forma que la música acepta los principios que le proporciona el matemático, la doctrina sagrada acepta los principios que por revelación le proporciona Dios”13.

La objeción que inaugura la Cuestión IX en Gonzalo Hispano

no está puesta, pues, por azar. Constituye una pieza clave de lo que

subyace en un diálogo de grandes cuestiones y análisis, y de no menores

consecuencias. La imposibilidad de la autoridad de la opinión para

fundar la ciencia, ni tan siquiera apelando a los principios, ocurre en

la opinión, pero también en la fe, aunque esta sea más perfecta que

aquella, pues en todo caso no llegan a conocer de forma clara como

la ciencia. Siendo así que son cosas diferentes, siguiendo al propio

Aristóteles, no se puede pretender pensar que llegan a las mismas

conclusiones, porque sería una contradicción. La ciencia, afi rma

Gonzalo Hispano señalando la opinión contraria, es un hábito más

perfecto que la fe, ya que nace de lo que se ve y no de lo que no se ve.

Y si el conocimiento por la autoridad fuera como el científi co, esto

implicaría una contradicción, ya que, por una parte afi rma nacer de

la fe, pero pretende tener la fuerza de la ciencia, lo que supondría la

no visión y la visión a la vez, lo que es contradictorio14.

Para los contrarios a la opinión de una posible conciliación, la

distancia de la fe con respecto a la estructura argumental de la razón

imposibilita una unión en la ciencia. Citando a Godofredo de Fontai-

nes15 que se apoya en la tradición del siglo XII (Hugo de San Víctor),

el maestro franciscano, señala la objeción a la teoría de la compatibi-

lidad desde la posición de que la autoridad de la Sagrada Escritura se

13 TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica I, q. 1, a. 2 resp.14 GONZALO HISPANO, Quaestio IX, non 3, p. 134.15 GODOFREDO DE FONTAINES, Quodlibet VIII, q. 7.

96

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

apoya en la fe. La fe no es opinión ni ciencia. Es un término medio que no puede tender a los extremos16.

Gonzalo Hispano recuerda otro argumento contrario de naturale-za epistemológica a partir de una glosa de san Pablo (1Co 13,10). Se refi ere al tipo de conocimiento de la razón y la ciencia, y de la fe. Su modo diverso imposibilita su adecuación. Ya mencionada antes en la referencia breve al Aquinate, se recuerda que el conocimiento científi co es conocimiento claro y perfecto, por que es conocimiento por causas. Mientras que el conocimiento que nace de la fe es incompleto ya que al nacer en un estado de imperfección provoca que el conocimiento actual, desde la fe, sea parcial. Gonzalo, recordando a Godofredo de Fontaines, de la mano de su discípulo, el gandavista Juan de Polliaco († después de 1321) que es la voz contemporánea de esta visión y que está en la retina del franciscano17, expresa lo que signifi ca e implica llevar a Tomás de Aquino y sus puntos de vista a consecuencias que van más allá en la apuesta por el entendimiento en una rígida apuesta interpretativa de la epistemología aristotélica.

Resulta interesante también el argumento que recuerda Gonzalo Hispano relativo a la ordenación de las ciencias. El objeto y la claridad del conocimiento difi ere entre la ciencia y la fe. El conocimiento por la fe implica una mayor gracia que el de la ciencia. Si tuviéramos en cuenta la fi nalidad diríamos que las ciencias se orientan a la fe en cuanto al objeto. Pero esta argumentación tiene en cuenta la claridad y evidencia epistemológica por lo que teniendo en cuenta la evidencia decimos que es la fe la que se ordena a la ciencia; de este modo en cuanto que

16 GONZALO HISPANO, Quaestio IX, non 2, p. 134.17 Cf. HÖDL, Ludwig, Die Unterscheidungslehren des Heinrich von Gent in der Ausein-andersetzung des Johannes de Polliaco mit den Gandavistae, in: GUL-DENTOPS, Guy – DECORTE, J., STEEL Carlos G. (eds.), Henry of Ghent and the Transformation of Scholastic Thought: Studies in Memory of Jos Decorte, Leuven University Press, 2003, pp. 371-386.

AUTORIDAD Y RAZÓN...

97Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

la fe se ordena a un conocimiento más objetivo posible, pero en cuanto que tenemos conocimiento de la ciencia cesa el de la fe.

La sexta objeción parte de una distinción de las ciencias respecto a la fuente de conocimiento. La distinción que implica una ordenación hacia la fe es dispuesta en forma contraria retorciendo dialécticamente el argumento de la tradición. En este caso se parte de la autoridad de Hugo de San Víctor (De Sacramentis18), quien señala expresamente la naturaleza diferente de la fe (secundum y supra racionem) que suponen la probabilidad y lo milagroso, y la ciencia (ex rationem) que nace de lo necesario. Este argumento que es utilizado por Mateo de Aquasparta19 sigue de cerca, de hecho, lo expuesto por Buenaventura, pero como hemos dicho alterando el sentido de la distinción. Buenaventura en las Quaestiones disputatae de scientia Christi, como en otras partes, señala la diferente forma de conocimiento apuntando a la fe como el lugar epistemológico que recibe el don de la gracia. Este texto ayuda a comprender el contexto doctrinal de esta objeción como de la anterior, como digo en un sentido contrario. Si efectivamente existe diferencia no pueden complementarse. El texto de Buenaventura dice así:

“Y que nuestra mente en el conocimiento cierto alcance en alguna manera aquellas reglas y razones inmutables, lo requiere necesaria-mente la nobleza del conocimiento y la dignidad del que conoce.La nobleza del conocimiento, digo, porque no puede haber conoci-miento cierto si no hay parte del objeto conocible inmutabilidad, e infalibilidad por parte del sujeto que conoce. Mas la verdad creada no es inmutable de manera absoluta, sino de manera condicional… Por tanto, si para el conocimiento pleno se recurre a la verdad totalmente inmutable y estable y a la luz totalmente infalible, es necesario que en este conocimiento se recurra al arte de Dios como a luz y verdad…Pues la creatura se refi ere a Dios como vestigio, imagen y seme-janza. En cuanto vestigio se refi ere a Dios como a su principio; en

18 HUGO DE SAN VICTOR, De sacramentis III, c.3.19 MATEO DE AQUASPARTA, Queastionem de fi de et cognitione, q. 5 de fi de.

98

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

cuanto a imagen se refi ere a Dios como a su objeto; pero en cuanto a semejanza se refi ere a Dios como a un don infuso…Por consiguiente, como el conocimiento cierto es propio del espíritu racional en cuanto es imagen de Dios, por eso en este conocimiento alcanza las razones eternas. Pero como en el estado de viador no es todavía plenamente deiforme, por eso no las alcanza clara y plena y distintamente, sino que, según se acerca más o menos a la deiformidad, así las alcanza más o menos, pero siempre las alcanza de alguna manera…Por otro lado, como el alma no es de por sí imagen entera de Dios, por eso alcanza, junto con las razones eternas, las semejanzas abstraídas de la imagen sensible como razones propias y distintas del conocer, sin las cuales la luz de la razón eterna no le basta para conocer mientras está en estado de viador, a no ser que casualmente transcienda este estado por revelación especial, como sucede en los que son arrebatados y en las revelaciones de algunos profetas”20.

20 “Quod autem mens nostra in certitudinali cognitione aliquo modo attingat illas regulas et incommutabiles rationes, requirit necessario nobilitas. Nobilitas, inquam, cognitionis, quia cognitio certitudinalis esse non potest, nisi sit ex parte scibilis immutabililitas ex parte scientis. Veritas autem creata non est immutabilis simpliciter, sed ex suppositione… Si ergo ad plenam cognitionem fi t recursus ad veritatem omnino immutabilem et stabilem et ad lucem omnino infallibilem, necesse est, quod in huiusmodi cognitione recurratur ad artem supernam et ad lucem et veritatem… Nam enim comparatur ad Deum in ratione vestigii, imaginis et similitudinis. In quamtum vestigium, comparatur ad Deum ut ad principim; in quantum imago, comaratur ad Deum ut ad obiectum; sed in quantum similitudo, comparatur ad Deum ut ad donum infusum… Quoniam igitur certitudinalis cog-nitio competit spiritui rationali, in quantum est imago Dei, ideo in hac cognitione aeternas rationes attingit. Sed quia in statu viae non est adhuc plene deiformis, ideo non attingit eas clare el plene et distincte; sed secundum quod magis vel minus ad deiformitatem accedit, sedundum hoc magis vel minus eas attingit, semper tamem aliquo modo… Rursus, quia non ex se nota est anima imago, ideo cum his attingit rerum similitudines abstractas a phantasmate tanquam proprias et disctinctas cog-noscendi rationes, sino quibus non suffi cit sibi ad cognoscendum lumem rationis aeternae, quamdiu est in statu viae, nisi forte per specialem revelationem hunc statum transcenderet, sicut in his qui rapiuntur, et in aliquorum revelationibus Prophetarum” (BUENAVENTURA, Quaestiones disputatae de scientia Christi, q. IV, resp., in Opera omnia, vol. V, ed. PP. Collegii a S. Bonaventura, Ad Claras Aquas: Quaracchi, 1889, 24a-b).

AUTORIDAD Y RAZÓN...

99Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

De nuevo en el siguiente argumento contra la sintonía entre fe (autoridad) y razón, parte del concepto de merecimiento de la fe y lo que la teología agustinista clásica de Buenaventura para dar la vuelta y es que existen dos conocimientos sea por el viador o por el biena-venturado, “de una manera por el científi co y de otra por el sabio, de una manera por el profeta y de otra por el que entiende de una manera corriente”21. Lo que supone una diferenciación en el orden, se lee como una separación. El argumento queda: Si la fe es un co-nocimiento merecido, entonces, al contrario, lo que no es merecido no puede compartir las características de la fe. Y como el mérito de la fe no permanece en el conocimiento científi co, porque la fe no nace del mérito de la razón que parte del experimento, o sea científi co, fe y ciencia son diferentes.

Pero por otro lado, existen otras opiniones, que también equilibra Gonzalo Hispano. Es el caso ejemplar de Enrique de Gante quien con-fía en la potencia fi losófi ca, racional de la teología. Pero su optimismo fi losófi co está a distancia de lo que está sucediendo en la Facultad de Artes, especialmente el prejuicio fi losófi co del olvido de la razón y la presunta incompatibilidad con la teología22. Enrique de Gante es un teólogo, un agustinista en tiempos de asentamiento del aristotelismo, un teólogo en un momento de reivindicación de los maestros de artes. La teología es una ciencia que unifi ca el saber, una ciencia general que apunta a la sabiduría diferente de la ciencia restrictiva, es una ciencia que se sitúa “por encima de las ciencias humanas” y que puede ser entendida de forma absoluta como ciencia23. La autoridad teológica

21 Ib.

22 ENRIQUE DE GANTE, Quodlibet XII, q. 2, ed. J. Decorte, en Opera omnia, XXII, Leuven: Leuven University Press 1987, pp. 20-21.23 “Absolute igitur dicendum quod theologia est scientia” (ENRIQUE DE GANTE, Summa quaestionum ordinariarum, q. 3, 1520, repr. Anastática, St. Bonaventure: New York, 1953, p. 114).

100

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

se impone a la razón como forma sapiencial del conocimiento, pero Enrique no sólo diferencia y ordena a la teología, sino que resuelve el conocimiento en teología, de modo que esta se presenta como una ciencia única, de forma que los objetos de las otras ciencias quedan, en parte, subsumidos en el objeto de la teología24. La variación de los términos expresados por los maestros (Buenaventura-Tomás de Aquino) operada por Godofredo de Fontaines tiene una fuente de inspiración en el tratamiento de Enrique de Gante, quien en su afán reductivo hacia la teología lleva a exagerar la ciencia in via, de modo que la teología, a su vez, se muestra superior a la fe, de modo que la ciencia del teólogo supera la fe del creyente. De esta forma asume en la autoridad la razón (teológica) como lugar intermediario hacia la visión de Dios. La autoridad es un camino de progresión que va de la Sagrada Escritura a los Padres de la Iglesia, pasando por los Apóstoles manifestando así la inteligencia de la fe. De esta forma la teología es en primer lugar autoridad: Sagrada Escritura25. Esta teoría parece estar presente en la argumentación contraria a la negación de la compatibilidad entre autoridad y ciencia (fe y razón) en Gonzalo Hispano cuando afi rma que efectivamente la luz mayor como la del sol parece obscurecer o ofuscar la menor como la de una candela cuando se ilumina un objeto. En ese momento, sigue con la metáfora el maestro franciscano, la luz en sí no se ofusca, sino que una conserva mejor la otra. De esta forma, por comparación a nuestros sentidos (recuerda aquí a Aristóteles) lo que es más sensible no aprehende de lo menos sensible y recíprocamente pasa con el intelecto. Luego de forma similar la luz espiritual, que se adquiere por medio científi co comparte con la luz menos clara que es la luz de la fe, y esto respecto del mismo objeto26.

24 “Absolute dicendum est quod primo modo subalternationis theologia omnes alias scientias sibi subalternat” (Ib., a. 7, q. 4, p. 132).25 Ib., a. 18, q. 3, p. 286.26 GONZALO HISPANO, Quaestio IX, ad op. 1, p. 137.

AUTORIDAD Y RAZÓN...

101Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

La segunda argumentación a favor, o mejor, en contra de la oposi-ción a la compatibilidad entre ciencia y autoridad también aprovecha la autoridad del Filósofo, aduciendo una diferente interpretación de la éndoxa aristotélica. Aquí, las autoridades y los testimonios de los antiguos son utilizados como argumentos de autoridad para confi rmar los propósitos de la ciencia teológica. A veces (Aristóteles) tiene que elegir entre demostrar las cosas por las autoridades o no hacerlo para comprender una cosa. Si no puede hacer una demostración entonces utiliza la opinión y establece consecuentemente la opinión como co-nocimiento científi co demostrativo, y siendo así que la fe es un hábito más perfecto que la opinión, podemos decir que es una ciencia27.

El pensamiento de Godofredo de Fontaines llevaba a la minus-valoración teológica y de la autoridad, fundado en dos saberes con dos objetos diferentes y casi incompatibles; el de Enrique de Gante a la imposibilidad real de un conocimiento fi losófi co, en cuanto que todo se reduce a un objeto que tiene como lugar de sabiduría el de la teología, donde la razón es razón teológica, alimentada por la fe. Por un lado, pues dos fuentes de saberes distanciadas, por otro dos fuentes de saberes reducidas. Estamos lejos de la separación agustinista de un saber sapiencial y una labor teológica y racional en Buenaventura, en lo que es la sabiduría cristiana; o la ordenación de las ciencias de Tomás de Aquino. Estas posiciones ya habían provocado reacciones como las de Egidio Romano y Giacomo de Viterbo, por citar algunas. Pero también en el seno de la Orden.

Por una parte existía una tendencia a la acogida de la fi losofía científi ca. En Oxford el Canciller Grosseteste imprime en el primer

27 “Sed forte diceret aliquis ad hoc, quod sicut medium dialecticum per se acceptum non demonstrat, tamem ipsum coniunctum cum medio demostrativo facit cogni-tionem scientifi cam, sic auctorias sive locus ab auctoritate, qui est locus dialecticus, licet infi rmus, cum demonstratione potest facere congnitionem scientifi cam, et ideo cum demonstrationibus suis Aristoteles adducit auctoritates antiquorum” (Ib.).

102

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

momento del siglo XIII un aire abierto a la razón natural en el seno de la Escuela franciscana de Oxford28, y, especialmente, en Rogelio Bacon. Se trata de alguien cuya genialidad es conocida en el mundo intelectual de su tiempo y que deja su impronta en el seno de la Orden franciscana. Su actividad en la Facultad de Artes infl uye decisivamente en el modo de ver la relación entre las fuentes y autoridades de la teo-logía. La Revelación, siendo esencial en cuanto lugar de conocimiento enciclopédico, “ilumina” todo conocimiento, pero esto no supone una reducción como la que hemos visto generaciones después a la teología, sino que implica que la Revelación, en su plenitud original, es el lugar de la iluminación original29 experimentada al principio de los tiempos, por los patriarcas y profetas (una explicación que ya nos suena, y que podríamos decir está en el debate posterior, al menos recogida por Gonzalo Hispano). La autoridad revelada tiene una dirección diferida en cuanto que nace de una misma fuente y va difuminándose y expresándose en diferentes realidades interpretativas en las que se hacen presentes: la ciencias de la fi losofía, la teología que apunta a los criterios del sentido de la Escritura como lugar de la Revelación, y, el derecho canónico como normatividad de la vida práctica de la verdad revelada. La inclusión de la fi losofía y la teología como elementos fundamentales de interpretación de la Escritura y comprensión, de la verdad nacen de su origen común en la misma iluminación divina30. Con esta posición optimista de la capacidad

28 Cf. LITTLE, A. G., The Franciscan School at Oxford in the Thirteenth Century, in: Archivum Franciscanum Historicum, vol. 19, pp. 803-874, (1926); CALLUS, D. A., The Oxford Career of Robert Grosseteste, in: Oxoniensia, vol. 10, pp. 42-72, 1945.29 Sobre las tres iluminaciones propuestas por R. Bacon (original, universal e in-terior) CARTON, Raoul, L’experience de l’illumination chez Roger Bacon, Paris: J. Vrin, 1924.30 TROTTMANN, Christian, Théologie et noétique au XIIIe siècle. A la recherche d’un statut, Paris : Vrin, 1999, p. 70.

AUTORIDAD Y RAZÓN...

103Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

cognoscitiva del ser humano, subraya la posibilidad cognoscitiva del individuo en la búsqueda de Dios y la autoridad de las Escrituras en cuanto que es lugar de revelación divina y encuentro con la Ver-dad. Pero esta “armonía” se hace de forma diferente a la fi losofía del continente, pues se apoya en un decidido encuentro con la fi losofía experimental como lugar práctico junto con el derecho canónico, lo que supone una revisión de la utilización de las autoridades. El hombre que busca la verdad, que posee una iluminación imperfecta, ha de indagar desde el individuo y proceder desde él para así asentar una vida desde lo singular31. Si bien no niega ni la autoridad revelada de la fe, ni la fuerza de la razón, su adscripción a lo empírico, y al lenguaje en adecuación a lo signifi cado hace que propugne una teo-rización del lenguaje y una semiótica, manifestada especialmente en De signis, que supone un salto diferencial respecto de la interpretación de la signifi catio de corte agustinista. Esto supone una búsqueda de la sabiduría que reformula la impronta racional al lado de la Revela-ción, que como señala Alain de Libera provoca que: “La crítica de la tradición, alimentada por una visión pesimista de la historia, lleva a una denuncia de las tres causas generales del error humano (la auto-ridad, el hábito y el simple buen sentido) y a una revisión del estilo lógico-positivista de los elementos de la semántica necesarios para la construcción de una teología racional”32.

Pero lo que pretendía Rogelio Bacon y, a pesar de las reservas claras y evidentes de los franciscanos del continente, especialmente el Doctor Seráfi co no supone una tal distonía, especialmente en relación

31 ROGERIUS BACON, Liber primus communium naturalium, en Opera hactenus in-edita (Vol. 1-XVI), ed. Steele, R., Oxford, Clarendon Press, 1909–1940, II, p. 94.32 “La critique de la tradition, alimentée para une vue pessimiste de l’histoire, aboutit à une dénontiation des trois causes générales de l’erreur humanie (l’autorité, l’habitude, le gros sens), et à une refonte de style logico-positiviste des éléments de sémantique nécessaires à la construction d’une théologie rationnelle” (DE LIBERA, Alain, La philosophie médiévale, Paris: PUF, 1993, p. 418).

104

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

a la búsqueda de la fi losofía desde un encuentro y no una separación de las ciencias, donde equilibrar el equilibrio del amor a la autoridad y el límite de la teología.

De otro lado, controversias más tarde, Pedro de Juan Olivi ve el peligro de la fi losofía aristotélica en una independencia de criterio sobre el orden de la naturaleza que pretenda una fi losofía de la razón completamente ajena a la teología. Quien fuera atento estudiante en las aulas de Buenaventura no siguió los pasos del maestro y general de la Orden. Pero su diferente perspectiva no supuso un olvido de las lecciones que se vertían en el De reductione artium ad theologiam, donde la formación y la búsqueda de la verdad se acompaña con la iluminación. En un tiempo donde el aristotelicismo se sitúa en un interrogante respecto de la fe teológica, el franciscano apostará por una vía alejada al intelectualismo que representa Aristóteles y la teología que intenta asimilarlo. El amor a la verdad de Olivi pasa por un abandono inequívoco a la iluminación divina. La afi rmación oliviana tiene un interés fi losófi co y sociológico, en los parámetros de la Orden, que no pasa inadvertido a un preocupado Gonzalo Hispano ante los excesos de los espirituales. Olivi es un franciscano culto, pero alejado de los círculos universitarios, un elemento “anti-institucional”33, un miembro del pueblo de Dios, de la comunidad simple de los franciscanos que, en esa coherencia, invita a la necesi-dad de una ciencia teológica práctica que se dirija a las altas cúpulas intelectuales, pero, sobre todo, que sepa rendir cuenta del acceso a la verdad para toda clase de gente. La posición de Olivi revela un amor

33 “Les destins, si différents soient-ils de ces deux hommes, concourent à montrer qu’à la fi n du XIIIe siècle et au début du XIVe siècle la recherche philosophique n’est plus seulement à l’Université mais en d’autres lieux” (DE COURCELLES, Dominique, Raymond Lulle (1235-1316) et Pierre de Jean Olivi (1247-1298): la “science divine”, les confl icts des savoirs et des institutions, in: BOUREAU, Alain – PIRON, Sylvain (eds.), Pierre de Jean Olivi (1248-1298). Pensée scolastique, dissidence spirituelle et société, Paris: Vrin, 1999, pp. 373-387.

AUTORIDAD Y RAZÓN...

105Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

a la verdad en el alejamiento de las lógicas de poder y dominación del saber e institucional.

Gonzalo Hispano se sitúa, así, en la búsqueda del equilibrio desde la tradición franciscana de los grandes maestros en una época en la que la interna disputa de la lectura del agustinismo y el aristotelismo, especialmente vivido en las décadas siguientes a la condenación de 1277, fuera de la Orden exige abrir espacios de encuentro que apun-tarán a ideas originales, sin duda las que posibilitarán la especulación de Duns Escoto. Pero Gonzalo Hispano no es Escoto. Él mantiene en su retina la apuesta de los discípulos de buenaventura y la reacción que viene desde Oxford.

Ya los discípulos de Buenaventura tendrán que afrontar el tema de la ordenación del saber en las fuentes: autoridad y razón. Mateo de Aquasparta afronta el tema teológico desde la pregunta de la razón fi losófi ca. El agustinismo bonaventuriano, hemos señalado ya, afi rma que el hombre tiene posibilidad de ordenarse hacia Dios, en una sín-tesis de esfuerzo por conocer la verdad a través del conocimiento de la realidad, la interpretación exegética y la gracia de la iluminación del conocimiento del Verbo. En este sentido señala la relevancia de reconocer la distinción entre el esfuerzo humano y la gracia de Dios en ese recorrido intelectual. Por eso, concediendo la doble posición frente al origen del conocimiento (platónica y aristotélica), intenta huir del exceso de iluminismo que con el deseo de preservar la sabiduría im-posibilita la ciencia34, al mismo modo que del exceso del naturalismo

34 “Plato enim cum suis sequacibus posuit totam rationem cognoscendi venire a mundo archetypo sive intelligibili et a rationibus idealibus; et posuit illam lucem aeternam concurrere ad certitudinalem cognitionem in sua evidentia et sicut totam et solam rationem cognoscendi, sicut Augustinus in pluribus locis recitat (…) Sed ista positio omnino erronea est. Quamvis enim videatur stabilire viam sapientiae, destruit tamen viam scientiae” (MATEO DE AQUASPARTA, Questiones disputatae de cognitione, q. II, resp., in Id., Quaestiones diaputatae de fi de et de cognitione, ed. PP. Colegii S. Bonaventurae, Fidenze, Quaracchi, 1957, 2ª ed., p. 231).

106

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

de la fi losofía natural aristotélica35. El hombre conoce de forma im-perfecta por medio de los sentidos naturales y el entendimiento hasta un punto que necesita ser iluminado para poder alcanzar algo más que un conocimiento verdadero que quede encerrado en la naturaleza36. En sintonía con ese equilibrio buscado por la Escuela franciscana la verdad no sólo implica adecuación de la mente a la realidad, es decir una verdad que resista la comparación a la naturaleza creada (sen-tido representativo objetivo), sino que ha de ser capaz de superar la representación del hombre (sentido subjetivo – razón de conocer) y, sobre todo, ha de poder expresar la realidad última, no natural, sino supranatural, en razón de imagen, es decir, superar la “comparación con el ejemplar del que emana37 (razón de manifestar).

Mateo de Aquasparta señala de nuevo, y lo vemos refl ejado en Gonzalo Hispano, que la búsqueda de la verdad es aceptable cuando se guarda el sentido gratuito, sobrenatural, del mismo. Ha de irse más allá de la ciencia de modo que es necesario el auxilio de la gracia. Mateo de Aquasparta propone acoger la razón en la completud de la gracia de forma que se pueda ver a Dios en su total claridad38.

Mateo de Aquasparta es un ejemplo de la posición franciscana de equilibrio de sabor bonaventuriano en un momento complicado

35 “(…) Alia positio fuit Aristotelis, ut videtur, qui totam rationem cognoscendi dixit causari et venire ab inferiori, via sensus, memoriae et experientiae, cum lumine naturali, nostri intellectus agentis abstrahentis species a phantasmatibus et facientis eas intellectas in actu. Et ideo non posuit lucem aeternam esse necessariam ad cog-nitionem certitudinalem, nec unquam de ea locutus est”. (Ib., p. 231).36 “nostra cognitio non esset naturale, sed supranaturalis” (Ib., p. 231).37 “Tertio possumus considerare veritatem per comparationem ad exemplar a quo emanat” (Ib., p. 232).38 “Quia igitur ex parte obiecti visibilis est improportionis excessus, ex parte videntis est infi rmitatis defectus, ex parte medii gratiae est insuffi cientia, ideo dico quod, quantum est de communi lege, per quantamcumque gratiam in vita ista intellectus deum videre sicut est in sua claritate non potest” (Ib., q. VII, resp., p. 347).

AUTORIDAD Y RAZÓN...

107Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

de tensiones, no ya en el mundo intelectual de su tiempo sino en la propia concepción del quehacer teológico de la orden franciscana. El maestro seguidor del pensamiento bonaventuriano apuntala la línea práctica del seguimiento de la verdad en la que a la especulación por el entendimiento se va marcando cada vez con más ahínco el afecto que ya apuntara Odón Rigaldo en lenguaje de Alejandro de Hales y de Buenaventura que afi rma que la teología “no debe ser llamada puramente especulativa, sino que se llama sabiduría, de sabor”39. Una posición que, sin duda, ilumina la solución de Gonzalo Hispano en la Questio IX de la que venimos hablando.

Gonzalo Hispano responde en este contexto en la búsqueda del equilibrio, y lo va hacer afi rmando una posición y rebatiéndola. Se sitúa en la posición de Tomás de Aquino para negar las correcciones exageradas de su posición y la negación de sus extremos iluministas. Algunos, afi rma, dicen que la fe y la ciencia no tiene conexión en sí en cuanto a su objeto, y aunque son diferentes en su objeto pueden complementarse40, no por su naturaleza sino por su mérito.

Su equilibrio nace en la argumentación contraria que es parte de la conclusión. Por una parte la razón nacida de la opinión no es concluyente. En este sentido Gonzalo Hispano propone el equilibrio de la opinión de la ciencia. Si la autoridad de la fe es disminuida por el componente de creencia, también hay que admitir que si en la ciencia hay visos de creencia debería ser también rechazada. Es decir, en la ciencia hay opinión, en el sentido en que no siempre se afi rma lo que los efectos indican. Siendo así que la ciencia es ciencia de causas (y efectos), luego existe una similitud en la opinión. Por lo que podemos señalar que si tenemos conocimientos parciales en la

39 MATEO DE AQUASPARTA, I Sent., prol q. 7, en ed. L. Amorós, en La teología como ciencia práctica en la escuela franciscana en los tiempos que preceden a Escoto, in: Archives d’historie doctrinale et litteraire du moyen age, vol. 9, p. 285, 1934.40 GONZALO HISPANO, Quaestio IX, sol. p. 139.

108

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

naturaleza e indicamos que hay ciencia, al hablar de Dios, aunque existan limitaciones desde la visión natural esto no implica que no haya ciencia. Por lo que la autoridad y la razón coinciden desde el conocimiento contingente desde ciencia. Ciencia y fe comparten cierta inestabilidad epistemológica que hacen que no sean contradictorias, si bien difi eren en la potencia cognoscitiva41. Resulta interesante esta limitación racional de la teología especulativa y la equidistancia con la fe.

Por otra parte Gonzalo Hispano hace coincidir la posibilidad de realizar ciencia y fe respecto del objeto de la teología: creer que dios es uno y trino puede ser mostrado por la ciencia demostrativa, pero tam-bién por el propio temor de Dios, por el amor a Dios en cuanto que “nisi amatur nisi cognitum, correspondens non est nisi cognitio per auctoritatem sacrae Scripturae; ergo cum scientia perfecte postes stare cognitio”, citando así la autoridad de Alejandro de Hales, la forma de la Visio Dei como forma de conocimiento humano. Gonzalo Hispano, tras las sistematizaciones de Alberto Magno y Tomás de Aquino y los comentarios posteriores de Gil de Roma o Godofredo de Fontaines y las reacciones de Enrique de Gante, y desde la tradición franciscana que nace de Buenaventura, en un camino cierto de equilibrio, pero en una equidistancia con una doctrina aristotélica ya, si bien condenada, en parte asentada (y por ello precisamente cuestionada), reutiliza la razón en una mirada desde la visio Dei, apuntando a elementos de fi losofía especulativa y de teología práctica, que lleva en lo profundo de su motivación de la defensa de la validez de la doctrina cristiana. De esta forma realiza una lectura del Halense que conduce hacia la voluntad, pues como señala Aleksander Horowski, si la gracia se refi ere principalmente al intelecto, la caridad lo hace, en el Halense, especialmente a la voluntad, teniendo en cuenta que la caridad (el amor) es entendida como “forma” de la virtud de la caridad. De esta

41 Ib., 140-142; p. 144.

AUTORIDAD Y RAZÓN...

109Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

forma la discusión de la razón y la fe, razón y autoridad, el acceso de la fe hacen en la voluntad lo que la gracia (de la visión) a la ciencia que nace del intelecto. Ambas comparten en diferentes facultades la capacidad de decir42. De esta forma Gonzalo Hispano va abriendo paso a la facultad de la voluntad como lugar de teología (especial-mente práctica).

Gonzalo prepara el camino que afecta a la función especulativa o práctica de la teología de una forma más fi rme, y dentro de la función contemplativa de la Verdad de Dios, a la fi nalidad de la misma. Se hace presente en el seno intelectual de la Orden franciscana como respuesta a la cuestión de fondo una síntesis que “Frente a los avances cada vez más profundos de la razón aristotélica en el campo de la teología, crecía el primitivo temor de que el muro de la ciencia se elevara «ultra coelum et coelestia», como había expresado ya, hacia mediados del siglo XIII, Juan de Parma, antecesor de San Buentaventura”43; se trata de que la ciencia teológica desde la revelación teológica que nos lleva a la contemplación como fi n o que sea capaz de mover al hombre a la fruición de Dios. Un episodio de amor a la verdad teológica en la escuela franciscana del siglo XIII, que tiene siempre en su fi delidad una suspicacia frente al intelectualismo y prepara la síntesis del Doctor Sutil, en un autor tan importante como frecuentemente olvidado, un franciscano que supone una contribución en la universalidad del pen-samiento desde la Península Ibérica, de la provincia de Santiago.

42 HOROWSKI, Aleksander, La Visio Dei como forma della conoscenza umana in Alessandro di Hales, Roma: Istituto Storico dei Cappuccini, 2005, p. 227.43 Andrés, M, Historia de la Teología Española I. Desde sus orígenes hasta fi nes del siglo XVI. Madrid, Fundación Universitaria Española, 1983, p. 475.

110

MANUEL LÁZARO PULIDO

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 85-110, jan./jun. 2012

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

111Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

PROLOGUE AS PILGRIMAGE*

Bonaventure as Spiritual Cartographer

Timothy J. Johnson, [email protected]

Summary – This article claims that Bonaventure’s Journey of the Mind into God, the Soliloquium and the Five Feasts of the Child Jesus evince a conscious attempt of the peripatetic Minister General to guide the interior spiritual journey of his confreres in an intimate, personal way, thereby bridging the exterior space that separates him from his pastoral charges. As Bonaventure scripts, or maps out this journey, he travels and appeals to a medieval sense of cartography, whereby itineraries are understood as participative, and not simply representative. This medieval approach, as noted by Michel de Cer-teau, will give way to a purely representative view that will impede later readers, such as Martin Luther, from entering into the journey proposed by Bonaventure

Resumo: O artigo sustenta que o Itinerarium mentis in Deum, o Soliloquio e as Cinco festividades do menino Jesus revelam uma tentativa ciente do ministro geral peripatética de orientar o caminho espiritual interior de seus confrades, de maneira íntima, pessoa, preenchendo assim o espaço que o afastava de seus empenhos pastorais. No modo como Boaventura escreve ou traça seu Itinerário, viaja e apela ao senso medieval da cartografi a, sendo que os itinerários são compreendidos como participativos e não apenas como representativos. Esse ensaio

* Artigo publicado originalmente na Miscellanea Francescana 106-107 (2006-2007) p. 445-464.

112

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

medieval, como notou Michel de Certeau, deixa trai, uma visão meramente representativa que impedirá aos leitores posteriores, por exemplo a Martinho Lutero, de percorrer o itinerário proposto por Boaventura.

Reading Bonaventure is not easy – just ask Martin Luther. Al-though the German reformer had great admiration for Bonaventure, evident in his claim «Bonaventura inter scholasticos doctores opti-mus est»1, Luther nevertheless struggled with the Seraphic Doctor’s synthesis of the rational and affective powers proper to his contem-plative hermeneutic. At a certain moment in the Tischreden, Luther confesses: «he [Bonaventure] drove me out of my mind, because I wanted to feel the union of God with my soul, as union of both the intellect and will»2. Contemporary readers, in search of Bonaventure’s avowedly rich spiritual theology, often echo the frustration of the German reformer as they plod through the Journey of the Mind into God and other similar, albeit less speculative texts like the Five Feasts of the Child Jesus and the Soliloquium. On the Four Mental Exercises.

1 M. LUTHER, Tischreden, 1, n. 683, Weimar Ausgabe, Ulm 2000, 330. On this text, see H. OBERMAN, The Two Reformations. The Journey from the Last Days to the New World, New Haven 2003, 31. I am grateful to the Franciscan Institute at Saint Bonaventure University for inviting me to be the Joseph A. Doino Visiting Professor of Franciscan Studies in the fall of 2006. This opportunity assured the resources required to complete this study. In particular, I would like to thank Ja-mes Fodor at Saint Bonaventure University for his insightful critique of an earlier version of this essay.2 Translation quoted in OBERMAN, The Two Reformations, 185, n. 41. See also «Simul gemitus et raptus. Luther and Mysticism», in H. OBERMAN, The Dawn of the Reformation. Essays in Late Medieval and Early Reformation Thought, Edin-burgh 1986, 136. For the critical Latin/German text, see Luther, Tischreden n. 644, 302. The quotation of the entire text brings to the surface Luther’s frustration as he moves from Latin to German and back again to Latin; «Speculativa scientia theologorum est simpliciter vana. Bonaventuram ea de re legi, aber er hett mich schir toll gemacht, quod cupiebam sentire unionem Deo cum anima mea (de qua nugatur) unione intellectus et voluntatis. Sunt mere fanatici spiritus».

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

113Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

This essay proposes the examination and retrieval of these challenging writings from the perspective of spatial practice, pastoral power, and affective engagement.

Appealing initially to Michel Foucault’s refl ections on space and pastoral power, and later to Michel de Certeau’s insights into the spatial dynamics of mystic prologues and cartography, this essay examines Bonaventure’s tripartite spatial project and how the Parisian professor turned pastor, constructs and cultivates an interior, primarily affective pilgrimage space for his second generation confreres amidst his own journeys across Europe. Preference here is accorded to three texts circa 1259-12603, the Journey of the Mind into God, the Solilo-quium. On the Four Mental Exercises, and the Five Feasts of the Child Jesus, where in their respective prologues Bonaventure offers readers brief, but tantalizing autobiographical insights into his motivations and methodology. The reception of these texts throughout the later medieval and early modern periods4 attests to his success behind and beyond the cloister walls. The continuing attraction of these fasci-nating, if not frustrating, texts to later readers undoubtedly remains, and indeed, promotes further inquiry.

As a result of just such a study, this essay asserts that Luther’s ap-proach to Bonaventure, as well as many later readers, may suffer from a shift in the perception of maps and travel itineraries in the Middle Ages as texts fostering participative interaction, to the modern, and even contemporary understanding of them as abstract cartographical

3 On the dating of these texts, see J. G. BOUGEROL, Introduzione generale. Opere di San Bonaventura, Roma 1990, 89-90. 4 On the extant manuscripts for the Journey of the Mind into God or Itinerarium mentis in Deum, see: prol 4 (5, XXVIa-XXIIIb); for the Soliloquium de quatuor mentalibus exercitiis, see prol 2 (8, XXV-XXXVIII); for the De quinque festivitatatibus pueri Iesu, see prol 4 (8, XLIX-LI). Unless noted otherwise, all references to the works of Saint Bonaventure will be taken from Doctoris Seraphici S. Bonaventurae Opera Omnia, 10 vols., Quaracchi 1882-1902.

114

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

coordinates devoid of affectivity. Bonaventure’s early generalate wri-tings do not propose a systematic medieval “MapQuest” for clueless brothers waylaid by choice or chance on the journey of life, but rather an invitation to an interior spatial pilgrimage of participative conver-sion and transformation, which is conceived, grounded, and embraced in a engaging, dynamic relationship with the entire cosmos, visible and invisible, material and spiritual. Although Bonaventure’s language adumbrates the path for many contemporary readers, it also draws them to his writings, with the hope of engagement and retrieval.

I Pastoral power and the construction of interior space

As Michel Foucault argued, the unique Judeo-Christian con-ception of governance required a pastoral perspective on power, which he refers to as the pastoral modality of power5. To be a pastor or shepherd of souls was to bind one’s very salvation inextricably to the eternal fate of each individual community member. If one of the sheep should perish, the shepherd would be liable before the judgment seat of God. The admittedly high stakes of pastoral care elicited strategies of governance, whereby those in authority expected, and indeed demanded obedience from their charges. Inclusive to this obedience is strict adherence to the will of the pastor and a personal transparency resulting in the recognition of guilt subsequent to the confession of sins. Once the boundaries of this pastoral relationship

5 M. FOUCAULT, Pastoral Power and Political Reason, in IDEM, Religion and culture (ed. J. R. CARRETTE), New York 1999, 135-152. See also Foucault’s (1978) Tokyo conference Sexuality and Power in Religion and culture 121-126; his (1980) lectures About the beginning of the hermeneutics of the self, ibidem, 169-181, and The Subject and Power (1983), in H. L. DREYFUS – P. RABINOW, Michel Foucault. Beyond Structuralism and Hermeneutics, Chicago 1983, 213-215. The implications of Foucault’s theory for contemporary pastoral theology are examined in H. STEINKAMP, Die sanfte Macht der Hirten. Die Bedeutung Michel Foucaults für die praktische Theologie, Mainz 1999.

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

115Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

are in place, shepherds can call their sheep to the particular expression of self-mortifi cation appropriate to each individual. As the seventh Minister General of the Minorite or Franciscan Order, Bonaventure was painfully aware of these pressing pastoral challenges and respon-sibilities, and thus alternates his pastoral travel with intense periods of writing and preaching, all of which are intended to guide his confreres to salvation and assure his own. Bonaventure’s literary efforts during his generalate evince not only the pastoral modality of power, but also the relationship between space and power identifi ed by Foucault, who claimed, «Space is fundamental in any form of communal life; space is fundamental in any exercise of power»6.

A close reading of the Seraphic Doctor’s literary corpus in the pas-toral period stretching from his election as minister general in 1257 to his death in 1274 as cardinal at the Second Council of Lyon, reveals a tripartite construction of space in the service of pastoral power. While this proposed reading and concomitant periodization is admittedly heuristic in intent and porous in parameter7, there is indeed ample evidence throughout Bonaventure’s ministerial corpus suggesting his sustained interest in spatial practice, and a concomitant intent to legitimize and exert pastoral power within the interior, institutional, and ecclesial spaces proper to second generation Minorites. The fi rst period, which is treated here, includes texts like the Journey, the Soliloquium, and the Five Feasts, where in 1259-1260 Bonaventure instantiates the identity of his confreres by constructing an interior space of pilgrimage accessible to them anywhere, be they traveling on the road like him, or back in their convents where he prefers

6 P. RABINOW (ed.), The Foucault Reader, Harmondsworth 1991, 252. On space and power in Foucault, see: S. ELDEN, Mapping the Present. Heidegger, Foucault and the Project of Spatial History, London 2001, 120-150. 7 On the inevitable attraction of periodization, see B. HOLSINGER, The Premodern Condition. Medievalism and the Making of Theory, Chicago 2005, 74.

116

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

them to remain8. The second period treats the institutional space of the fraternity evinced in writings like the Constitutions of Narbonne from 12609. Here Bonaventure encourages legislation that serves as a “disciplinary fence”10 to safeguard the brothers’ spiritual inheritance of evangelical poverty, just as the cloister walls he promotes protect their corporal sanctity. The third period of Bonaventure’s generalate writings, marked most notably by the Collations on the Six Days in 1272, is dedicated to ecclesial space as Bonaventure «stands in the midst of the assembly»11 to proclaim the Minorite identity within the Church against the backdrop of human history and the stigmatized Francis, who heralds the end of the ages.

8 On the Perfection of Life for Sisters is also dated to this period; however, Bonaven-ture does not appeal to the journey motif in this treatise which also emphasizes interiority. A comparison of the prologue of this text with the prologues of the three writings considered in this essay suggested a nuanced, gendered understanding of space is at work in Bonaventure’s early generalate writings.9 T. J. JOHNSON, Dispensations, Permissions, and the Narbonne Enclosure. The Spatial Parameters of Power in Bonaventure’s Constitutions of Narbonne, in S. BAR-RET – G. MELVILLE (eds.), Oboedientia. Zu Formen und Grenzen von Macht und Unterordnung im mittelalterlichen Religiosentum, Münster 2005, 363-382; IDEM, “Ground to Dust for the Purity of the Order”. Pastoral Power, Punishment, and Minorite Identity in the Narbonne Enclosure, FrSt 63 (2006) 293-318.10 Bonaventure writes in the prologue of the Constitutions of Narbonne, «Quoniam, ut ait Sapiens, ubi non est saepes, diripietur possessio, necessarium est volentibus caelestis regni possessionem praeclaram, in quam per spiritum paupertatis intra-tur, custodire illaesam, saepem illi circumdare disciplinae»; Prol., n. 1 in «Statuta generalia ordinis edita in capitulis generalibus celebratis Narbonae 1260, Assisii an. 1279, atque Parisiis an 1292», ed. M. BIHL, «Archivum Franciscanum His-toricum» 34 (1941) 37.11 Bonaventure begins the Collations,«In medio Ecclesiae aperietos eius et adimplebit eum Dominus spiritu sapientiae et intellectus et stola gloria vestiet illum, Ecclesiastici decimo quinto. In verbis istis docet Spiritus sanctus prudentem, quibus debet sermonem depromere, unde incipere, ubi terminare. Primo, quibus loqui: quia Ecclesiae; non dandum est sanctum canibus, nec margaritae spargendae, sunt ante porcos. Secundo docet, ubi debet incipere; quia a medio, quod est Christus; quod medium negligatur, nihil habetur. Tertio, ubi terminare: quia in plenitudine sive adimpletione spiritus sapientiae et intellectus»; Hex 1.1 (5; 329a).

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

117Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

The fi rst period of Bonaventure’s generalate writings are notewor-thy because their intense emphasis on interior pilgrimage mirror the peripatetic realities of his pastoral life12. Even when no longer on the road, he constructs a space within which the journey continues, and he works to maintain this spatial practice throughout his generalate. Writing from outside of Paris in the convent of Manes, sometime between April 24, 1267, and May 17, 1268, Bonaventure, worked alone or with his secretary, Marco da Montefaltro, to compose a sermon ex novo on the passage «Prepare the way of the Lord» from Luke 3:4 for the sermon collection known as the Sunday Sermons. This sermon, the Fourth Sunday of Advent is proper to the Minorite liturgical calendar, and indeed noteworthy. In addition to presenting an exquisitely crafted protheme on the art of preaching, Bonaventure offers readers an intriguing glimpse into how time spent traveling may have infl uenced his refl ections as minister general. Commenting on the phrase, “the way” in the Lucan pericope he writes:

Second, it includes the informative directive that we may take on the rule of good living when it adds: the way. Just as a material road is a particular rule that directs a person lest one deviate into error and leads one, instead, to his native city, so too, the spiritual way of penance is a particular rule pointing out misleading errors to a person, and guides him to the celestial homeland13.

In the intervening decade between his election as the seventh Minister General of the Minorites and this sermon, Bonaventure

12 Bonaventure’s journeys from a contemporary theological perspective, see T. J. JOHNSON, Dream Bodies and Peripatetic Prayer: Reading Bonaventure’s Itinerarium with Certeau, «Modern Theology» 21/3 (2005) 413-427.13 «Secundo addit informationem directivam ut regulam bene vivendi sumamus, cum subdit: viam. Sicut enim via materialis est quaedam regula rectifi cans hominem ne erret per devia, sed ducens ad habitaculum civitatis, sic spiritualis via poenitentiae est quaedam regula certifi cans hominem a deviis erroris, quosque perducat eum ad habitaculum patriae caelestis»; J. G. BOUGEROL (ed.), Sancti Bonaventurae Sermones dominicales, Sermo 5, n. 2, Grottaferrata 1977, 164.

118

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

crisscrossed Europe during a period in which expanding economic activity and warmer weather fostered a marked increase in general travel and, in particular, road building activity14. Despite such favo-rable conditions for the wayfarer, the winter months still impeded movement such that Bonaventure opted, as his literary corpus reve-als15, to remain in Paris and dedicate himself to preaching and writing. Thoughts of Advent and the proclamation of “the way” lead to literal and fi gurative images of the road. Preparation for the coming of the Lord requires his confreres to prepare an interior dwelling just as builders would construct a material road:

Third, the passage proposed notes the informative directive given that we might take on the rule of good living when it adds: the way. We prepare the way of interior dwelling, with great zeal, according the example of a material road. If the way of interior dwelling is not prepared well, Christ will not come to us nor will we be able to meet Christ. A material road is prepared well in three ways: fi rst, by removing waste; second, by laying down a covering; and third, by superimposing the fi nish. A spiritual way is prepared similarly: fi rst, by the cleansing and expulsion of fi lth in complete confession; second, by the laying down of bodily delights in discrete, necessary chastisement; and third; by the addition of the bouquet of chastity achieved in the supererogation of a pure mind and body16.

14 On Bonaventure’s pastoral travels and the roads of his day, see BOUGEROL, Introduzione generale, 20-22. On the variety of roads and construction activity du-ring the thirteenth century in France and elsewhere in Europe, see: J. VERDON, Travel in the Middle Ages, Notre Dame 1998, 15-28; esp. 24-26. 15 J. G. BOUGEROL (ed.), Saint Bonaventure. Sermons de tempore, Paris, 1990, 22. 16 Tertio notatur in verbo proposito informatio directiva ut regulam bene vivendi sumamus, cum dicit: viam. Summo studio viam mentalis habitaculi ad exemplar viae materialis praeparemus. Nisi enim via mentalis habitaculi sibi bene parata fuerit, nunquam Christus veniet nos, nec nos poterimus occurrere Christo. Sicut enim via materialis bene paratur, primo per sordium amotionem; secundo per vestium prostrationem; tertio per fl orum superpositionem; sic via spiritualis bene paratur, prima per immunditiam et foeditatis expulsionem in completa confessione; secundo per lasciviae carnis prostrationem, in discreta et debita castigatione; tertio per fl oridae castitatis supererogationem in pura mentis et corporis conservatione»; Sermones dominicales, Sermo 5, n. 11, 167-168.

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

119Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

By juxtaposing imagery of road construction and the body, Bo-naventure unites his peripatetic experience and ministerial concerns. As pastor, he is charged with the guidance of those given over to his care. Introspection and confession are mandatory not only for the spiritual welfare of the brothers, but also for Bonaventure as minister general, as his salvation is closely tied to theirs. The close examination of conscience followed by an acknowledgment of faults enables him to better direct the fl ock. Consequently, he notes that the fi rst step in preparing a way for the interior dwelling for the Lord is similar to removing the waste of past wrongdoing from the pathway. Confes-sion, compunction, and a commitment open the heart to the path of goodness. Corporal austerity and penance are to follow if the brothers hope to walk along the way God commands, for a body that is not responsive to the promptings of the spirit will wander. Discipline, in a manner similar to the preliminary covering laid over a newly cleared ground, confi rms the outlines of the proposed roadway. And fi nally, like the fi nish that both beautifi es and hardens the road, chastity decorates and conserves a pure exterior body, within which the affections are perfectly ordered.

II Scripting spatial practice within the soul

Corporal preparation is crucial if the brothers are to encounter Christ within the interior dwelling space he has identifi ed as an essen-tial element of Minorite identity. His efforts to script17 the movement within, both toward and together with Christ, began in earnest while traveling in Italy during the fall of 1259 and produced the Journey of the Mind into God. This work is both transitional and foundational,

17 On this notion of “scripting” and interiority, see: I. VAN ’T SPIJKER, Fictions of the Inner Life. Religious Literature and the Formation of the Self in the Eleventh and Twelfth Centuries, Turnhout 2004, 10-14.

120

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

for it signals Bonaventure’s initial steps toward a decidedly pastoral perspective that will dominate his subsequent writings. Coming off the road in search of peace in imitation of Saint Francis18, Bonaventure narrates his withdrawal to the quiet of Mount Alverna and contem-plative experience there in nuanced travel and spatial terminology:

Like a citizen of that Jerusalem of which this man of peace, who was peaceable with those that hated peace, says Pray for the peace of Jerusalem. He knew indeed that the throne of Solomon did not exist if not in peace, for it is written: his place is established in peace, and his dwelling place is in Sion. When after the example of most blessed Father Francis I sought this peace with a panting spirit – I a sinner, who, unworthy in all things, followed in the place of the most blessed father as the seventh Minister General after his transitus; it happened that around the time of the saint’s transitus, some thirty three years later, I turned aside with divine permission to Mount Alverna, as to a quiet place, out of a yearning love for peace of spirit, and staying there, I considered within the mind some mental ascensions into God19.

The physicality of his exterior ascent to the Tuscan heights is matched by a call for corporal preparation and by an invitation to prayer, which is an interior dynamic essential to the passage through

18 Itin., prol 2 (5; 295a).19 «Civis illius Ierusalem, de qua dicit vir ille pacis, qui cum his qui oderunt pacem, erat pacifi cus: Rogate quae ad pacem sunt Ierusalem. Sciebat enim, quod thronus Salomonis non erat nisi in pace, cum scriptum sit: In pace factus est locus eius, et habitatio eius in Sion. Cum igitur exemplo beatissimi patris Francisci hanc pacem anhelo spiritu quaererem, ego peccator, qui loco ipsius patris beatissimi post eius transitum septimus in generali fratrum ministerio per omnia indignus succedo; contigit ut nutu divino circa Beati ipsius transitum, anno trigesimo tertio ad montem Alvernae tanquam ad locum quietum amore quaerendi pacem spiritus declinarem, ibique existens, dum mente tractarem aliquas mentales ascensiones in Deum»; Itin., prol 1-2 (5; 295a-b). Although English translations of the Journey often render “declinarem” as “I withdrew”, a strong case could be made for “I turned aside”. This later translation underscores Bonaventure’s decision to leave the road for a time in order to enjoy a divinely sanctioned respite from travel.

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

121Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

the material and spiritual realities to the interior Jerusalem on high20. After considering how God is present in the exterior world as it enters the soul through sense cognition, readers are led by the hand, so to speak21, back within the soul beyond the inner atrium of the mind’s palace to the tabernacle. Here the powers of memory, intelligence, and will, transformed by grace, witness to the image and likeness of God within the soul. Then, reminiscent of thirteenth century cartographers who carefully situated Jerusalem at the center of their mappamundi22, Bonaventure proposes a further journey to his confreres through the door that is Christ, leading them upward to the inner central sanctum of the holy city, where the wayfarers gaze upon the Mercy Seat in the company of the Cherubim23. The mystery of God, who Bonaventure compares to a circle whose center is everywhere and circumference nowhere24, assures the pilgrim brothers that they stand at the center

20 Itin., 1.1-2 (5; 297a).21 Itin., 3.1 (5; 303a). The verb “manuducere” appears eleven times in the Journey, see: J. HAMESSE (ed.), Itinerarium mentis in Deum. De reductione artium ad theologiam, Thesaurus Bonaventurianus, CETEDOC, I, Louvain 1972, 46. On the medieval and contemporary theological import of manuduction, see P. M. CHANDLER, Theology, Rhetoric, Manuduction, or Reading Scripture Together on the Path to God, Grand Rapids 2006. What is particularly striking in Bonaventure’s writings is the communal dimension of manuduction.22 Cartographers during the thirteenth century display an increasing tendency to place Jerusalem at the center of their mappamundi; see: P. D. A. HARVEY, Cartography in Medieval Europe and the Mediterranean, in J. B. HARLEY – D. WOODWARD (eds.), Cartography in Prehistoric, Ancient, and Medieval Europe and the Mediterranean, 1, The History of Cartography, Chicago 1987, 340-342. On Jerusalem, maps, and medieval literature, see also: I. MCLEOD HIGGINS, Defi ning the Earth’s Center in a Medieval ‘Multi-Text’: Jerusalem in The Book of John Manderville, in S. TOMASCH – S. GILLES (eds.), Text and Territory. Geographical Imagination in the European Middle Ages, Philadelphia 1998, 29-53. 23 Itin., 5.1 (5; 308a-b). On the idea of the sacred “center” in the Journey and world religions, see: L. TURNEY, The Symbolism of the Temple in St. Bonaventure’s Itinerarium Mentis in Deum, MF 75 Supplement 2 (1975) 427-437. 24 Itin., 5.6 (5; 310a).

122

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

to the degree they encounter the divine within the soul. At this point the fi nal journey with the Crucifi ed, the transitus, ensues and the soul, in the footsteps of Francis of Assisi, is drawn into the dark fl ames of divine love in Jerusalem25. What is striking throughout this journey is that every step of the way, from observing the physical world as it enters the soul to returning within and rising above the soul, transpires within the interior, seemingly ever-expansive space of the soul.

After the Journey Bonaventure authors, in quick succession, a number of treatises in 1259-1260 where he demarcates an interior space for refl ection and spiritual pilgrimage within the soul. Shifting from the biblicalhistorical model of the Journey to a biblical-patristic model Bonaventure develops the soul as the interior locus of spatial movement in another meditation treatise from around 1259, the oft neglected Soliloquium. On the Four Mental Exercises. At fi rst glance the Soliloquium structure of a dialogue between the soul and interior man calls to mind Hugh of Saint Victor’s Soliloquium26, but Bonaventure’s interest in spatial practice quickly distinguishes his scheme from this esteemed twelfth century Parisian. As in the Journey and the Five

Feasts, the minister general constructs his own narrative space within the prologue, where he confesses the pastoral motivations behind his literary efforts, appeals as in the Journey and Five Feasts to the Father of lights, and urges readers to experience within the fi nite soul the paradoxical parameters of divine love in Christ27. This meditative

25 Itin., 7.6 (5; 313b). 26 Hugh of Saint Victor’s prologue evokes a spatial image in the beginning of his Soliloquium, «Dilecto fratri G. caeterisque servis Christi Hameris levae degenti-bus H. qualiscunque vestrae sanctitatis servus, in una pace ambulare, et ad unam requiem pervenire); Soliloquium et arraha animae, PL 173, prol, cc. 951-952. He does not utilize the image in the prologue to encourage the movement of the soul through the refl ective process.27 Solil., prol 1 (8; 28a).

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

123Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

practice, which leads to the end and completion of every desire in God28, requires a fourfold exercise whereby interior, exterior, inferior, and superior realities pass under the contemplative gaze of the soul29. Consideration of the interior leads to an understanding of how the soul was formed by nature, deformed by sin, and reformed by grace. Turning to the exterior, the soul sees how wealth, fame, and luxury proffer instability, fi ckleness, and misery in kind. The inescapable grasp of death, the strictness of the fi nal judgment, and the unbea-rable suffering of hell come next, since they concern inferiormatters. Gazing upward, the soul not only understands, but indeed tastes the inestimable value, inexpressible savor, and eternal perpetuity of heavenly joy. Although the vantage point of this fourfold exercise is the soul’s interior, it is by no means a static, sedentary activity. Bo-naventure proposes a dynamic spatial praxis in the Soliloquium, as he compares the interior, exterior, inferior, and superior movements of the contemplative soul to the four corners of the earth, and urges readers to traverse these regions daily:

These are those four regions, namely east, west, north and south, through which you, O soul, must enter daily to wander, and by exploring seek out and search after your most special beloved, so that you can say with the bride: On my bed at night I sought him whom my heart loves. The Apostle touches upon these four things when he adds: That you may be able to comprehend with all the holy ones what is the length, breadth, height, and depth30.

28 Solil., prol 4 (8; 29b).29 Solil., prol 2 (8; 28a-29a).30 «Haec est illa quadruplex regio, videlicet orientalis, occidentalis, aquilonaris et meridionalis, quam tu, o anima, quotidie debes peregrinando intrare et tuum dilec-tum specialissimum in ea speculando quaerere et investigare, ut possis dicere cum sponsa: In lectulo meo quaesivi per noctem quem diligit anima mea. Haec quatuor tangit Apostolus, cum subiungit: Ut possitis comprehendere cum omnibus Sanctis, quae longitudo, latitudo, sublimitas et profundum»; Solil., prol 2 (8; 29a).

124

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

Close in time and spiritual intent to the Soliloquium is the Five

Feasts of the Child Jesus. The autobiographical reference to this pre-

vious work in the Five Feasts, where Bonaventure speaks of leaving the

world’s distractions, confi rms the close chronological relationship of

the two works while underlining the corporal preparation prerequisite

to divine indwelling31. This succinct, frequently overlooked text is

directed to confreres or others among the learned: «O devout soul,

whether you are writing, reading, or teaching or whatever you are

doing»32. The intimate nature of pastoral care is revealed throughout

as the minister general speaks directly in the fi rst person to each reader

in the second person, just as a shepherd to the individual sheep in the

Judeo-Christian tradition. Bonaventure’s efforts are prefaced, as in

the Journey and the Soliloquium by the delineation of interior space,

which he has chosen and scripted for the reader to enter:

When I had the opportunity to withdraw for a short while from the commotion of assailing thoughts, I secretly pondered within my innermost self what aspect of the divine incarnation I might consider during this time, so that I might receive some spiritual consolation whereby I might taste the divine sweetness, as through a mirror, in this vale of tears, so that having tasted but a bit, I could keep myself more completely from passing and illusory consola-tions. Even more secretively it came to my mind that, by the grace of the Holy Spirit and virtue of the most High, the devout soul could spiritually conceive, bear, name, and, together with the blessed

31 «O anima, Deum Patrem in omnibus donis suis et bonis tuis glorifi ca, quia ipse est, qui te de saeculo per occultam inspirationem evocavit, dicens: Revertere, revertere, Sunamitis (cuius expositionem quaere supra in alio tractatu, meditatione prima); De quinque fest., fest 5.3 (8; 94b-95a). On the authenticity of this autho-biographical reference, see J. G. BOUGEROL – C. DEL ZOTTO – L. SILEO, Opuscoli spirituali. Opere di San Bonaventura, Roma 1992, 283, n. 18.32 «O anima, sive scribas, sive legas, sive doceas, sive quodcumque aliud facias»; De quinque fest., fest 3.1 (8; 92a-b).

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

125Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

Magi, seek, adore, and fi nally present the blessed Word of God and only-begotten Son of the Father happily to God the Father in the temple according to the Law of Moses. And thus the true disciple of the Christian religion would be able to celebrate with complete reverence the fi ve feasts the Church dedicates to the child Jesus33.

Bonaventure’s narrative movement inward functions as a scripted

invitation for others to follow after his example, and thus, he frames

their own refl ections with a series of Christological and Mariological

liturgical travel images taken from the Scriptures. As in the Fourth

Sunday of Advent, corporal preparation is integral to the pilgrimage

praxis as the soul travels the roads of Galilee into the hill country

with Mary to be purifi ed from distractions of the world. When the

interior dwelling is ready, the divine word is birthed within the soul,

and carried on a journey in the company of the Virgin Mother to

Jerusalem, where he is presented within the Temple precincts. As

is the case with the Journey, the passage transpires within the soul,

but in the Five Feasts the travel typology is biblical-liturgical, while

the other journey text favors the biblical-historical example of the

Poverello’s transitus.

33 Quod cum me a cogitationum incidentium tumultu paululum subtraxissem et intra memetipsum tacitus cogitarem, quid de divina incarnatione in hoc tempore pertractarem in mente, unde aliquam consolationem spiritualem reciperem, in qua divinam dulcedinem in hac lacrymarum valle per speculum degustarem, ut, illa aliquantulum degustata, temporalem ac phantascticam consolationem perfectius fastidirem: incidit menti meae secretius, quod anima Deo devota benedictum Dei Patris Verbum et Filium unigenitum mediante gratia Spiritus Sancti spiritualiter posset virtute Altissimi concipere, parere, nominare, cum beatis Magis quaerere et adorare et demum Deo Patri secundum Legem Moysi in templo feliciter prae-sentare, et sic tanquam vera christianae religionis discipula quinque festa quae de puero Iesu agit Ecclesia, mente devota cum omni reverentia valeat celebrare»; De quinque fest., prol (8; 88a-b).

126

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

The composition of the Five Feasts not only completes the

travel trilogy, but also signals Bonaventure’s return to France after

several months of transalpine pastoral ministry. As the rubrics in

Bonaventure’s Seasonal Sermons disclose, the minister general preached

to the Dominicans in the northern French city of Arras34 on July 27,

1259 and then departed on perhaps the longest singular trip of his

life for Mount Alverna, where after a minimum of two months on the

road, he composed the Journey. Returning northward then before the

onset of winter, Bonaventure arrived in the regions of Provence and

Languedoc35. Extant sermons indicated he preached in Montpellier36

on November 30, 1259 and in Arles37 on December 27, of the same

year. The subsequent winter and spring found him in Marseille38 on

January 1, Province de Provence39 on January 6, Marseille40 again on

January 13, Toulouse41 on April 5, Carcassonne42 on April 11 and back

in Toulouse43 on April 25. Finally, in the week preceding the general

chapter, Bonaventure preached in Narbonne44 on May 13.

34 BOUGEROL (ed.), Sermons de tempore, Sermo 250, 343-344. On the chronology of Bonaventure’s de tempore sermons, see 435-438. 35 On Bonaventure’s travels and preaching activity in this period, see J. PAUL, La prédication de Saint Bonaventure dans le Midi, in La prédication en Pays d’Oc (XIIe-début XVe siècle). «Cahiers de Fanjeaux» 32 (1997) 127-157, esp. 132-133.36 Sermo 4, Sermons de tempore, 50-51.37 Sermo 138, Sermons de tempore, 201-202.38 Sermo 145, Sermons de tempore, 208-211.39 Sermo 170, Sermons de tempore, 238.40 Sermo 182, Sermons de tempore, 249-250.41 Sermo 220, Sermons de tempore, 302-303.42 Sermo 223, Sermons de tempore, 305-306. 43 Sermo 227, Sermons de tempore, 312.44 Sermo 234, Sermons de tempore, 321-323.

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

127Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

An analysis of these sermons uncovers the thematic content of the

Five Feasts in Sermon 145 in Marseille on Luke 2:21 And after eight

days were accomplished, that the child should be circumcised, his name was

called Jesus, and in Sermon 170 in Province de Provence on Matthew

2:2 Where is he that is born king of the Jews? In the Marseille sermon

to his confreres, Bonaventure foregrounds an extended treatment of

the Savior’s name with a discussion of the circumcision from a literal,

allegorical, moral, and mystical perspective. What is more important

to him than the cultic event, however, is the polyvalent power of the

name Jesus, which is also a central concern of his in the Five Feasts45.

Although little remains of Sermon 170 to his brothers in Province

de Provence, what does confi rms the close association of this sermon

with the Five Feasts. Both texts appeal to the theme of governance46,

which was no doubt a crucial issue for Bonaventure as he drew near

to the Narbonne chapter and his incumbent legislative responsibi-

lities. Interestingly enough, after months of peripatetic ministry in

which he scripted the interior journey for his confreres, the minister

general turned once again to images of spatiality and pastoral power

when he chose, a few days before the chapter, to preach in Narbonne

on Psalm 102:19 The Lord has prepared his throne in heaven: and his

kingdom shall rule over all47. Soon after, Bonaventure and his confreres

undertook to demarcate the earthly boundaries of that kingdom for

the Minorite Order in the Constitutions of Narbonne.

45 De quinque fest., fest 3.1-3 (8: 92a-93b) and Sermo 145, Sermons de tempore, 208211, esp. 209-210. 46 De quinque fest., fest 4.4 (8; 94a-94b ) and Sermo 170, Sermons de tempore, 238.47 Sermo 234, Sermons de tempore, 322.

128

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

III Prologues, interior journeys, and pastoral affectivity

Careful consideration of the travel motif in the Journey, the Soli-

loquium, and the Five Feasts draws attention to a neglected aspect of

Bonaventure’s writings – his predilection for prologues. Prologues,

with their defi ned literary space, are for him privileged locations for

the scripted introduction to the interior journey and, as de Certeau

suggests, mirror the affective movement within the soul on the linguis-

tic level. The French Jesuit, whose life and work is deeply inscribed

by the peripatetic impulse48, observed in The Mystical Fable that mys-

tical discourse possesses a proper modus loquendi that is categorically

itinerant49. The analysis of this language uncovers a “mystical space”

instantiated by desire for the other, and recognizable in the volo, that

is to say, the “I want” of an individual. Such enunciative longing

is the initiation of the mystical journey, as the volo simultaneously

discloses, separates out, and sets the individual in motion, linguisti-

cally, spiritually and, as history often attests, even physically. The volo

evokes a sense of dissatisfaction and disquiet in the reader, whose own

desire is unearthed. Given a “way of proceeding” by the author, this

desire is consequently guided onward through the mediation of the

text50. The signifi cance of the authorial “I” of the volo is ever-present

48 In response to his request, Certeau’s funeral in Paris on January 13, 1986, included the public reading of the follow text of a Jesuit predecessor and mystic from the seventieth century, Jean-Joseph Surin, «Je veux aller courir parmi le monde, où je vivrai comme un enfant perdu; j’apris l’humeur d’une âme vagabonde après avoir tout mon bien répandu. Ce m’est tout un, que je vive ou je meure, il me suffi t que l’Amour me demeure»; quoted in F. DOSSE, Michel de Certeau. Le marcheur blessé, Paris 2002, 9. 49 M. DE CERTEAU, The Mystic Fable, Chicago 1992, 166-167.50 M. QUIRICO, La differenza della fede. Singolarità e storicità della forma cristiana nella ricerca di Michel de Certeau, Torino 2005, 118.

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

129Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

to the reader. Prefaces and prologues to mystical texts continually

underscore how the personal experience of the writer must both

establish and sustain the ensuing textual discourse. Case in point,

according to de Certeau, is the preface to Le science expérimentale of

Jean-Joseph Surrin from 1663, where the French Jesuit identifi ed

a fourfold pattern common among mystical authors51. De Certeau

notes prefaces or prologues have a distribution of pronouns that move

between the plural and the singular, semantic oppositions, appeals

to preceding historical experiences, and a progression of modalities

whereby readers are obliged to be attentive to the author’s intentions.

From beginning to end, the “I” takes the place of the other, desires

the other, and guides the other.

No stranger to Bonaventure’s literary corpus, de Certeau opens

up a way of proceeding in The Mystic Fable that assists the analysis

of Bonaventure’s three treatises under consideration here. Indeed,

the fourfold structure de Certeau identifi ed in Le science expérimen-

tale is found in the prologues of the Journey, the Five Feasts, and the

Soliloquium:

51 DE CERTEAU, Fable, 179-187.

130

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

Fourfold Structure

Distribution of Pronouns

This peace which between Plural to Singular

Semantic Opposi-tionns

Appeal to Preceding Historical Expe-riences

Progression of Modalities

Journey of theMind into God

This peace which the Lord Jesus Christ proclaimed and gave […] the preaching of which our Father Francis repeated […] I sought with a panting spirit52

[…] he may come to believe that mere reading would suffi ce without unction, speculation without devo-tion, investigation without admiration53

[…] while pondering on certain mental ascents to God, that miracle, which in this very place happened to blessed Francis himself54

I entreat the reader to weigh the intention of the writer rather than the work, the meaning of the words rather than their uncultivated style55

Five Feasts of the

Child Jesus

Since according to thought and doctrine of venerable men, who […], I secretly pondered within my innermost self… so that I might receive some spiritual consolation56

Should anyone conceive even a little devotionto-wards the sweetest […] however if not, he may impute and ascribe that to me, who writes with little ability and dignity57

Since according to thought and doctrine of venerable men, who in the Church of God, the divine light more fully enlightened58

[…] however, if not, he may impute and ascribe that to me, who writes with little ability and dignity […] or perhaps to himself, who reads with little devotion and humility59

Soliloquium. Onthe Four Mental

Exercises

I have compiled this tre-atise for the sake of the less sophisticated […] In order that we arrive at this inestimable contem-plation […] let us start from the beginning60

Thus the devout soul […] humbly knocks and wisely asks for the regu-lating wisdom of God the Son, lest, seduced by error, it deviates from the truth61

Paul, the apostle, a vessel of eternal election […] in the passage quoted above shows us the origin, object, and fruit […] of the mental exercises62

This is that blessed cross, bounded by four ends, upon which, O devout soul, you must hang continually, by medita-ting, with your sweetest spouse Jesus Christ63

52 «Quam pacem evangelizavit et dedit Dominus Iesus Christ […] cuius praedi-catione repetitor fuit pater noster Iesus Christus […] anhelo spiritu quaererem»; Itin., prol 1-2 (5; 295a).53 «Credat, quod sibi suffi ciat lectio sine unctione, speculatio sine devotione, in-vestigatio sine admiratione»; Itin., prol 4 (5; 296a). 54 «Dum mente tractarem aliquas mentales ascensiones in Deum, inter alia occurit illud miraculum, quod in praedicto loco contigit ipsi beato Francisco»; Itin., prol 2 (5; 295b).55 «Rogo igitur, quod magis pensetur intentio scribentis quam opus, magis dictorum sensus quam sermo incultus»; Itin., prol 5 (5; 296b). 56 «Cum secundum virorum venerabilium, quos […] intra memetipsum tacitus cogitarem […] unde aliquam consolationem spiritualem reciperem»; De quinque fest., prol (5; 88a). 57 «Si vel modicum devotionis ad dulcissimum Iesum quis legendo concipiat vel meditando… si vero nihil, vel mihi minus suffi cienter et digne scribenti»; De quinque fest., prol (8; 88b).58 «Cum secundum virorum venerabilium, quos in Ecclesia Dei divina irradiatio amplius illustravit»; De quinque fest., prol (8; 88a).59 «Si vero nihil, vel mihi minus suffi cienter et digne scribenti, vel forte sibi minus devote et humiliter legenti imputet et ascribat»; De quinque fest., prol (5; 88b).60 «Hunc tractatum […] propter simpliciores […] Ut autem preveniamus, ab exordio incipiamus»; Solil., prol 4 (8: 29b). 61 «Anima devota […] pulset humiliter et postulet sapienter […] Dei Filii regula-tricem sapientiam, ne errore seducta a veritate deviet»; Solil., prol 1 (8; 28a).62 «Paulus apostolus, vas aeternae electionis […] in verbis praemissis ostendit nobis mentalis exercitationis ortum, obiectum et fructum»; Solil., prol 1 (8; 28a).63 «Haec est illa crux beata, quatuor fi nibus terminata, in qua, o anima devota, cum tuo duclis-simo sponso Iesu Christo debes iugiter meditando pendere»; Solil., prol 2 (8; 29a).

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

131Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

Viewed from de Certeau’s perspective, each of these three Bona-

venturian prologues underscores the affective, itinerant volition the

minister general scripts for those in his pastoral charge. Affectivity,

signaled by the appeal to terms such as devotion, intention, sweetness,

unction, and consolation, plays a crucial role in motivating his con-

freres from the outset to the conclusion of their interior pilgrimage.

Since their happiness is ultimately found in a union with God, who is

love, it is essential that their wills be purifi ed and ordered through the

corporal preparation described earlier in the Fourth Sunday of Advent.

With an interior space prepared, a loving desire for the divine moves

the soul onward to embrace the highest good for as Bonaventure

explains, love is «the adhesion of affection in regard to an object»64,

and the ultimate object of the soul’s longing and salvation is God. In

the prologue of the Journey, Bonaventure speaks of his own intimate

yearnings for peace, which, he observes, can be reached only along

the road that leads, without exception, to an ardent love of Christ

Crucifi ed65. This road, according to the fi nal chapter, leads into the

darkness, where unction and affection is consumed in fi re of divine

love. Affection is paramount throughout the Five Feasts, where the

desire for consolation and delight in Jesus, the Word of God, move

the soul to embark on pilgrimage to the Temple and, if devotion

moves the soul closer to Jesus, elicit praise for the Divine Author of

the Word, who is the font and origin of all goodness66. Although at

fi rst glance the title, Soliloquium. On the Four Mental Exercises, hardly

evokes affective imagery, this treatise is grounded in love from the

very beginning as Bonaventure quotes Ephesians 3:14-19, where love

is lauded and readers are urged to experience the love of Christ that

64 I Sent., d. 10, dub (1; 205a).

65 Itin., prol 4 (5; 296a).

66 De quinque fest., prol (5.88b).

132

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

surpasses all knowledge. Love then is the epistemological foundation

of self-examination and culmination of the soul’s journey into the

length and breath, height and depth, of the divine mystery of which

the Pauline writer speaks, and the passionate lover of the Canticle of

Canticles exclaims67.

The immediacy and intimacy of these prologues assures

Bonaventure’s pastoral presence among his confreres. As de Certeau

notes, the practice of reading in the medieval period was essentially

corporal; it was visible in bodily movements of manducation and voca-

lized in audible murmurs. Reading itself was an act of interiorization,

as the text instantiated the author through the body of the reader68.

The close similarity of this recitation process with oral discourse allo-

ws Bonaventure to respond to the pastoral imperative in a uniquely

personal manner. With some 30,000 brothers in convents stretching

from Ireland to the heart of Asia, the obstacles to one-on-one spiritual

guidance are glaringly obvious; yet, the incumbent responsibilities

of the pastor remain. Through a reading of Bonaventure’s mystic

prologues, individual brothers take on the interior journey of the

minister general, and guided by his text, become themselves, pilgrims.

Indeed the imagery of the peripatetic brother who needed guidance

seems to have remained with Bonaventure to the end of his life. In

possibly the last extant sermon dating perhaps to four months before

his death on July 15, 1274, the now cardinal of Albano returned to

the pilgrim theme when he preached to his confreres in the Minorite

convent in Lyon. The text was Ephesians 5:8 May you walk as sons

of the light69.

67 Solil., prol 2 (8; 29a).

68 M. DE CERTEAU, The Practice of Everyday Life, Berkeley 1984, 175-176.

69 See BOUGEROL (ed.), Sermons de tempore. Sermo 207, 285. Bougerol suggests March 11, 1274, as the possible date for this sermon.

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

133Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

IV A few thoughts for the road

The language of volition allows Bonaventure to map out what de

Certeau describes as the inner country of the mystical journey70. As

the Seraphic Doctor readily admits and anticipates in his prologues,

readers who are preparing to embark must anticipate frustration

and disappointment. When he invites his confreres on the journey,

Bonaventure intends to accompany them every step of the way,

making use of their affective responses to lead them further through

the text – and through their lives as religious. As their pastor he is

obliged for their sake and his to guide them, yet he is unable to be

present in body to each individual. Bonaventure’s desire to bridge

this “pastoral gap” is the impetus for the interior itineraries he so

carefully scripted in the Journey, the Soliloquium and the Five Feasts,

and they are best considered in tandem with the exterior delineation

of space and practice in the Instructions for Novices and Constitutions

of Narbonne from 1260. Beginning in 1259 with the vir spiritualis

and homo interior of the journey treatises, Bonaventure constitutes an

interior subjectivity inscribed primarily by affectivity, which he swiftly

moves to safeguard within the walls of Minorite legislation dictating

gestures, postures, and disciplines inside and outside the cloister en-

closure. While cultivating interior movement within the soul with

evident passion, Bonaventure circumscribes and controls exterior

bodily movement, as he is convinced that the freedom of the former

is dependent on the custody of the later. Through the mediation of

the interior journey for his confreres gathered in communities across

Europe and beyond into Asia, Bonaventure succeeds in responding

to the pastoral imperative.

While lay and cleric throughout the Middle Ages avidly employed

Bonaventure’s scripted pilgrimage in the Journey, the Five Feasts, and

70 DE CERTEAU, Fable, 170.

134

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

the Soliloquium, a later reader like Martin Luther found this literary

style frustrating and indeed counterproductive71. Instead of providing

a way of proceeding, texts like Bonaventure’s became increasingly

insurmountable obstacles. Luther did not doubt the authenticity of

Bonaventure’s spiritual experience – quite the contrary. The volo is a

fundamental part of the German reformer’s vocabulary, nevertheless,

the contemplative itinerary Bonaventure maps in the thirteenth cen-

tury is barely intelligible in the sixteenth century due, perhaps at least

in part, to the shifting perception and experience of space refl ected in

many areas of European intellectual activity, including cartography.

Maps and travel have gone hand in hand since at least the dawn of

antiquity; yet the interplay between symbolic and literal representation

and participation has varied down through the centuries, as evident

when a medieval mappamundi is set next to a modern map drawn

up in the wake of European exploration. According to de Certeau,

the later perspective emerges from an external view of an observer

who wishes to control space, while the former suggests a discourse

of engaged, peripatetic participation72.

As de Certeau and others have noted, medieval cartographers,

who benefi ted enormously from the infl ux of geographical and cul-

tural information from countless pilgrims and crusaders, intended

to both inform and stimulate travelers73, and so promote an affective

71 Luther’s attempt to utilize mystical texts like the Journey of the Mind into God that spoke of spiritual union led to frustration and his adamant rejection of such writing as dangerous and hypocrical; «Neque enim fi des et Christianorum vita sunt hypocrisis, qualis monachorum est, qui etiam ad perfectionem conantur pervenire speculationibus istis unionis spiritualis, sicut ipsi vocant, sed sicut meo exemplo didici, fustra. Neque enim cum serio id agerem, ullum unquam gustum ex talibus speculationibus sensi. Sunt igitur nihil quam periculosae fabulae et hypocrisis»; In XV Psalmos graduum, Weimar Ausgabe, 40/3, 199.

72 S. MORRA, “Pas san toi”. Testo, parola e memoria verso una dinamica della espe-rienza ecclesiale negli scritti di Michel de Certeau, Roma 2004, 37.

73 HARVEY, Cartography in Medieval Europe and the Mediterranean, 288.

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

135Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

participation in the spiritual and temporal realities represented in

their maps. Without denying their material signifi cance, these maps

often represented an interior, spiritual journey74. Bonaventure, the

well-seasoned wayfarer, is also something of a spiritual cartographer,

who drew up a participative journey through the vestiges, images, and

similitudes representing the divine in this world. Both Bonaventure

and his confreres, assured they were capax dei in their graced humanity,

united personal participation and traditional representation75, or the

oratio and ratio as de Certeau maintains76. Martin Luther, who expe-

rienced the growing fi ssure between immanence and transcendence

on the threshold of modernity77 found Bonaventure’s theology incre-

asingly problematic. In this period of transition, itineraries lost their

affi nity to orality78, and so interior journey texts no longer “speak” to

readers, but are read by some as attempts to control others by naming

spiritual realities for them. For Luther, the Seraphic Doctor’s appeal to

affectivity or theologia affetiva, in tandem with the cognitive powers

of the soul, no longer mapped out an interior pilgrimage, but instead,

unmasked this contemplative hermeneutic as a sophistic “elevator

of the intellect”79 leading nowhere. Consequently, experience was

increasingly divorced from institutional expressions of spirituality,

the legibility of every creature as a verbum divinum was questioned,

and the Journey and other spiritual itineraries resembled maddening

mazes rather than cathedral labyrinths.

74 P. ZUMTHOR, La Mesure du monde. Représentation de l’espace au moyen âge, Paris, 1993, 322.

75 On participation and representation, see CHANDLER, Theology, 30-40.

76 DE CERTEAU, Fable, 121-122. See also JOHNSON, Dream Bodies, 416.

77 VAN ’T SPIJKER, Fictions of the Inner Life, 8.

78 MORRA, “Pas san toi”, 37.

79 OBERMAN, The Two Reformations, 185, n. 41.

136

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

Bonaventure’s successful integration of the participative and repre-

sentative elements of medieval cartography in his spiritual itineraries

presupposes a unity that is perhaps beyond the reach of contemporary

readers, as it was for Luther. Nevertheless, the classical status of his

literary corpus, contemporary pastoral concerns, and the on-going

interest in the Seraphic Doctor’s theological synthesis suggest a her-

meneutic of retrieval grounded in de Certeau’s reasoned, disciplined

reading of the mystics. He offers two insights of import here, the

fi rst concerns the art of reading as poaching80, and the second is the

difference between reading strategies and reading tactics81. The dis-

tancing of the reader from the text that creates situations of detached

poaching, instead of reading, cannot be overcome in an anachronistic

return to the past that is neither possible nor desirable. Nevertheless,

Bonaventure’s journey writings are bodily, participative texts that re-

main open to a contemporary rereading on the corporal level through

tactics of engagement. If the “good journey” is not to become a “bad

trip” for interested readers, elucidative pedagogical and pastoral stra-

tegies in the classroom and the chapel, which often further alienate

readers from texts, need to yield to tactics of personal involvement.

At this point the intriguing, unexpected appeal Bonaventure makes

to his own experience entreats contemporary readers, and those who

guide them, to enter his corpus to uncover their volo.

While Bonaventure’s writings remain opaque for many, they

offer possibilities for those who look to engage him “on the road”

of personal encounter and refl ection. Perhaps a story attributed to

Bonaventure’s own life best illustrates this proposed paradigm of

engagement and retrieval. When obstacles impeded a brother in

Foligno from conversing with Bonaventure, the persistent confrere

80 DE CERTEAU, Practice, 165-176; esp. 174-176.

81 Ivi, 34-39. See also CHANDLER, Theology, 30-40.

PROLOGUE AS PILGRIMAGE

137Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

discovered the best way to encounter the minister general was not

through the usual strategies of religious life, but instead, to devise a

new tactic – to leave the convent and the crowd behind and meet his

pastor on the open road:

A brother, who was unable get close to him in a convent in Foligno due to a crowd of religious, waited for him on the road. «Father», he said, «I need to speak with you». Bonaventure stopped immediately and the two of them sat down together on the side of the road. After the discussion, the minister general rejoined the others, who were rather irritated. «Could I have acted otherwise? Am I not his servant? Is he not my master?»82.

82 «Un fratello, non avendo potuto avvicinarlo in convento a Foligno, per la resa dei religiosi, lo attese sulla strada. “Padre, disse, ho bisogno di parlarti”. Bonaventura si fermò subito e si sedettero tutti e due sull’orlo della strada. Dopo il colloquio, il Ministero Generale raggiunse i compagni, piuttosto spazientiti. “Potevo fare altri-menti? Non sono il suo servo? Non è lui il mio padrone?», quoted in BOUGEROL, Introduzione generale, 22, n. 21.

138

TIMOTHY J. JOHNSON

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 111-138, jan./jun. 2012

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

139Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA DE SÃO

BOAVENTURA DE BAGNOREGIO

Fábio Cesar Gomes, OFM**

Resumo: No nosso estudo trataremos do tema da teologia da história de São Boaventura de Bagnoregio em uma sua obra bem de-terminada: o opúsculo teológico Quaestiones disputatae de perfectione

evangelica, cujas questões mais relevantes sobre o tema consistem na centralidade histórica do evento da encarnação e no forte senso esca-tológico de Boaventura. Tal senso, por sua vez, desdobra-se em dois grandes sentidos: o primeiro, de uma clara consciência do iminente fi m dos tempos; o segundo, de uma plena realização da vocação humana a participar da vida divina. É destas questões que nos ocuparemos, procurando verifi car como elas explicam o modo todo próprio de os mendicantes, particularmente os franciscanos, conceberem a perfeição evangélica.

Palavras-chave: teologia, história, Boaventura, Cristo, encarnação, escatologia.

Abstract: This study discusses the subject of Theology of History of Saint Bonaventure of Bagnoregio in his well-established theologi-cal literary work, Quaestiones disputatae de perfectione evangelica that raised relevant questions on the historical centrality of the Incarnation

* Doutor em teologia com especialização em Espiritualidade pela Pontifícia Uni-versidade Antoniana de Roma. É membro da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil e vice-mestre dos Frades Menores de profi ssão temporária em Campo Largo/PR. E-mail: [email protected]

140

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

and the strong eschatological nature of Bonaventure. This nature, moreover, follows two main directions: the fi rst showing a clear awareness of the imminent end of times; and the second, of the full realization of human vocation in participating in divine life. These issues will be discussed in order to better understand the unique man-ner in which the Mendicants, especially the Franciscans, conceived evangelical perfection.

Key words: Theology, history, Bonaventure, Christ, incarnation, eschatology.

Introdução

O nosso estudo se desenvolverá em três momentos. Primeiramen-te, faremos algumas breves considerações gerais sobre a teologia da história em São Boaventura de Bagnoregio. Em seguida, apresentare-mos, ainda que sinteticamente, o seu opúsculo teológico que tem por título: De perfectione evangelica – sobre a perfeição evangélica – e que tomaremos com fonte primária do nosso estudo. Por fi m, trataremos da teologia da história no referido opúsculo, questão esta que, por sua vez, se desdobra em duas grandes temáticas: a da centralidade histórica da encarnação de Cristo e a da escatologia. Para tanto, nos fundamentaremos especialmente no estudo de Joseph Ratzinger1 so-bre o tema da teologia da história em Boaventura e no nosso estudo a propósito da contribuição boaventuriana à teologia dos conselhos evangélicos no De perfectione evangelica2.

1 RATZINGER, Joseph. La teologia della storia. A cura di L. Mauro. Assisi: Ed. Porziuncola, 2008.2 GOMES, Fábio Cesar. Os tria consilia evangelica no De perfectione evangelica de São Boaven tura de Bagnoregio. A contribuição da refl exão boaventuriana à teologia dos conselhos evangélicos. Dissertatio ad doctoratum (pars dissertationis). Roma: Pontifi cia Universitas Antonianum, 2010.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

141Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

1 A teologia da história em Boaventura de Bagnoregio

Partindo de uma expressão do próprio opúsculo boaventuriano De

perfectione evangelica, começamos dizendo que a história, para o Dou-tor Seráfi co, é conduzida “segundo a disposição da divina sabedoria”3 em um movimento de “egressus et regressus”, ou seja, de saída e de retorno, no centro da qual coloca-se a pessoa de Jesus Cristo. Deste modo, todos os acontecimentos históricos pertencem a um amplo movimento circular que parte de Deus e para Ele retorna4.

Dentro deste movimento, o tempo não é concebido simplesmen-te como medida de duração, ou, como em Aristóteles, um simples “acidente do movimento”5, mas, como “tempo da criação” e “tempo da salvação”. Assim, para Boaventura, a história é sempre considerada a partir de uma perspectiva de fé, em outras palavras, como história da Salvação, de modo que a sua refl exão sobre a mesma constitui-se numa verdadeira e própria teologia da história.

Esta teologia boaventuriana da história apresenta-se, porém, como um tema bastante amplo, uma vez que o mesmo foi sendo desenvolvi-do pelo Doutor Seráfi co ao longo da sua vasta produção literária. Nos Comentaria in Sententiarum (1250-1252), por exemplo, tal teologia coincide propriamente com àquela dos Padres, cujo núcleo essencial consistia na ideia de que a encarnação se deu no fi m dos tempos6.

Já no Breviloquium (1257), ele afi rma que a história, pensada assim teologicamente, deriva do comprimento próprio da Sagrada Escritura que se estende deste o início do mundo até o dia do juízo, ao longo de três tempos e sete idades:

3 BOAVENTURA DE BAGNOREGIO. De perfectione evangelica. Quaracchi: studio et cura pp. Collegii a S. Bonaventura, 1891, p. 147b.4 RATZINGER, La teologia della storia, pp. 192-197.5 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, p. 192.6 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, p. 155.

142

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

Esta Escritura Sagrada possui também um comprimento, que consiste na descrição dos tempos e das idades: isto é, do início do mundo até o dia do juízo. De fato, descreve o decurso do mundo através três tempos: ou seja, o tempo da lei da natureza, da lei escrita e da lei da graça e, dentro destes três tempos, distingue sete idades. Dentre essas, a primeira vai de Adão a Noé; a secunda, de Noé a Abraão; a terceira, de Abraão a Davi; a quarta, de Davi até o exílio na Babilônia; a quinta, do exílio até Cristo; a sexta, de Cristo até o fi m do mundo; a sétima, decorre com a sexta, que inicia do repouso de Cristo no sepulcro até a ressurreição universal, quando iniciará a oitava idade da ressurreição. E, assim, a Escritura é longuíssima, pois, colocando o Gênesis no princípio, começa a tratar do início do mundo e do tempo e, colocando o Apocalipse no fi nal, chega ao fi m do mundo e dos tempos7.

Note-se que esta periodização da história proposta por Boaventura permanece ainda basicamente fi el ao esquema tradicional agostiniano (pré-joaquimita), com exceção da introdução de uma sétima idade à qual sucede uma oitava. Aqui, deve-se atentar para a afi rmação de que a sétima idade decorre com a sexta e abarca a história de tantos quantos, já inseridos no estado de graça, participam da beatitude divina, na espera da ressurreição dos corpos.8 Além disso, ainda de acordo com o Breviloquium, as diversas fases da história do mundo são comparadas aos diversos períodos da vida do ser humano: a pri-meira, com a infância, a segunda, com a meninice, a terceira, com a adolescência, a quarta, com a juventude, a quinta, com a velhice e, a sexta, com a decrepitude9.

A refl exão boaventuriana sobre a história, no entanto, atinge o seu apogeu nas Collationes in Hexaëmeron, ou seja, as Conferências sobre a obra dos seis dias da criação proferidas pelo Doutor Francis-

7 BOAVENTURA DE BAGNOREGIO. Breviloquium. Quaracchi: studio et cura pp. Collegii a S. Bonaventura, 1891, p. 203b. 8 Cf. BOAVENTURA, Breviloquium, p. 203b.9 Cf. BOAVENTURA, Breviloquium, p. 204a-b.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

143Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

cano na Universidade de Paris em 1273, portanto, a apenas um ano da sua morte.

Um estudo completo sobre o tema, com especial atenção para as Collationes in Hexaëmeron, foi publicado em 1959 por Joseph Rat-zinger, por ocasião da defesa da sua tese de habilitação para a livre docência em teologia e que levava propriamente o título de “Die Ges-

chichtstheologie des heiligen Bonaventura”: A teologia da história de São Boaventura. É a tal estudo que mais frequentemente nos referiremos ao longo do nosso texto, remetendo sempre à sua ultima edição em língua italiana, de 2008.

Assim, em virtude da vastidão e complexidade da temática da teologia da história nos escritos do Doutor Seráfi co, concentraremos nossa atenção sobre um período bem delimitado de sua vida – os primeiros anos da sua atividade magisterial, ou seja, a partir de 1253, quando obteve a licentia docendi com as Quaestiones disputatae de

scientia Christi – e sobre uma obra bem determina deste período: o opúsculo teológico “De perfectione evangelica”, cuja apresentação, ainda que necessariamente incompleta, julgamos oportuna.

2 O opúsculo teológico De perfectione evangelica

O opúsculo teológico boaventuriano “De perfectione evangelica” consiste fundamentalmente de quatro questões disputadas que tratam respectivamente sobre a humildade, a pobreza, a castidade e a obedi-ência. Este representa a terceira das suas três questões disputadas que, depois da De scientia Christi e da De Mysterio Sanctissime Trinitatis, como Mestre Regente do Studium Franciscanum, Boaventura insti-tuiu na Universidade de Paris a partir do primeiro trimestre do ano escolar de 1255-1256.

Trata-se, portanto, de uma obra publicada pouco antes da sua eleição como Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores ocorrida

144

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

em 02 de fevereiro de 1257 e que pertence àquela que Yves Congar classifi cou como a segunda das cinco fases da controvérsia universitária parisiense entre as ordens mendicantes e o clero secular10.

De fato, este conjunto de questões disputadas representou a res-posta boaventuriana aos diversos escritos do principal opositor das ordens mendicantes, Guilherme de Saint’Amour – canônico de Ve-auvais e, desde 1247, professor de fi losofi a e teologia na Universidade de Paris –, sobretudo àquele intitulado “De periculis novissimorum

temporum”11. Assim, o próprio terminus ad quem do De perfectione

evangelica é determinado pela data de condenação do De periculis – pela bula Romanus Pontifex de Alexandre IV – ocorrida no dia cinco de outubro de 125612.

Vale lembrar que um denominador comum caracteriza os escritos de Guilherme: a rejeição dos elementos teóricos fundamentais da opção de vida franciscana, de modo que, o De perfectione evangelica representa – ao lado do tratado Manus, que contra Omnipotentem

10 Segundo a classifi cação de Congar, a primeira fase da controvérsia, de 1252 a 1254, consistiu em uma discussão de caráter acadêmico sobre o lugar dos mendi-cantes na universidade; a segunda, de 1254 a 1266, girou em torno da questão da legitimidade do ministério dos religiosos; na terceira, de 1268 a 1271, tratou-se de questões pertinentes à perfeição dos religiosos e dos cura d’almas e sobre a en-trada de crianças na vida religiosa; a quarta, de 1282 a 1290, consistiu na oposição episcopal ao ministério dos religiosos; a quinta, de 1304 a 1321, disse respeito ao período posterior à bula Inter cunctas com a qual Bento XI concedeu aos mendi-cantes o direito de pregarem e de ouvirem confi ssões sem a jurisdição dos bispos. Sobre estas fases da disputa e para uma cronologia da produção literária que nelas se deu, veja-se: CONGAR, Yves. Insegnare e predicare. Aspetti ecclesiologici della disputa tra Ordini Mendicanti e Maestri Secolari nella seconda metà del secolo XIIIº e l’inizio del XIVº. Tradução di L. Dal Lago. Padova: Ed. Messagero di Sant’Antonio, 2007, pp. 43-53.11 Cf. GUILHERME DO SANTO AMOR. De periculis novissimorum temporum. In: Opera Omnia. Paris: Alithophilius, 1632, pp. 17-72.12 Cf. ALEXANDRE IV, Romanus Pontifex (05.10.1256). In: Bullarium Francis-canum, Tomo 2, pp. 160b-163b.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

145Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

tenditur do seu confrade Tomás de York13 e do Liber contra impug-

nantes Dei cultum et religionem do Mestre Dominicano Tomás de Aquino14 – a contribuição boaventuriana nesta fase da disputa pari-siense entre mendicantes e seculares que Roberto Lambertini, muito apropriadamente, qualifi ca como disputa sobre a possibilidade da opção franciscana15.

Ao longo do opúsculo, Boaventura considera as seguintes questões a propósito dos temas supracitados. No tocante à virtude da humilda-de, verifi ca se, quanto ao ato que lhe é próprio, ou seja, o autodesprezo por amor a Cristo, ela pertença à perfeição evangélica. Os conselhos de pobreza, castidade e obediência são, por sua vez, respectivamente considerados sob três aspectos. A pobreza, quanto à renúncia total dos bens, à mendicância e à maior ou menor obrigatoriedade do tra-balho manual para os pobres em boa saúde. A castidade, enquanto referida aos cônjuges, aos viúvos e às virgens. A obediência, quanto à sua conformidade ao direito natural, à necessidade de ser assumida através de um voto e à submissão de todos os cristãos à autoridade do Sumo Pontífi ce.

Portanto, a perfectio evangelica da qual Boaventura fala consiste fundamentalmente na prática dos três conselhos que caracterizam a forma de vida franciscana e que, no século XV, serão considerados

13 O texto se encontra em BIERBAUM, Max. Bettelorden und weltgeistlichkeit an der Universität Paris. Münster: Aschendorff Verlag, 1920, pp. 37-168. 14 Cf. TOMÁS DE AQUINO. Liber contra impugnantes Dei cultum et religionem. Cura et studio Fratrum Praedicatorum. Roma: Ed. Saint Thomas Aquinas Foundation, 1970, pp. a49-a166.15 Cf. LAMBERTINI, Roberto. Momenti della formazione dell’identità francesana nel contesto della disputa con i secolari (1255-1279). In: Dalla sequela Christi di Francesco d’Assisi all’apologia della povertà. Convegno della Società Internazionale di Studi Francescani e del Centro Interuniversitario di Studi Francescani, V. 18. Assisi/Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1992, pp. 123-172.

146

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

como a fórmula identifi cadora da vida religiosa como tal16. Funda-mento desta perfectio evangelica é a virtude da humildade, considerada tanto como pressuposto quanto, num certo sentido, como a própria fi nalidade da prática dos três conselhos evangélicos.

Chegamos agora ao terceiro e central momento do nosso estudo, quando trataremos mais propriamente da teologia da história no De

perfectione evangelica.

3 A teologia da história no De perfectione evangelica

A partir de quanto dissemos a respeito do conteúdo do De per-

fectione evangelica, pode-se facilmente intuir que, falar da teologia da história a propósito desta obra consiste basicamente em estabelecer a relação entre tal temática e os conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência. Mais especifi camente, consiste em relacioná-los a duas questões pertencentes à teologia da história boaventuriana predominantes no opúsculo: a centralidade histórica da encarnação de Cristo e a escatologia.

É disso que, a partir de agora, nos ocuparemos.

3.1 A centralidade histórica da encarnação e a vida segundo os conselhos evangélicos

Como bem observa Ratzinger, ao contrário de todo o Novo Tes-tamento, que jamais entendeu o evento Cristo como “centro”, mas, sempre e somente como plenitude – ou seja, substancialmente como fi m dos tempos – e também do esquema agostiniano das seis idades

16 Cf. TILLARD, Jean-Marie Roger. Consigli evangelici. In: PELLICCIA, G.; ROCCA, G. (dirs.) Dizionario degli Istituti di Perfezione. Roma: Ed. Paoline, 1975, 10 v., pp. 1630-1685, V. 2., p. 1653.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

147Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

predominante na Idade Média, segundo o qual, com Cristo, iniciou-se a última idade na qual o ciclo histórico fechou-se sem possibilidades de ulteriores desenvolvimentos, Boaventura acentua a centralidade histórica da encarnação17.

De fato, no Breviloquium, o Doutor Seráfi co esclarece que o nascimento de Cristo aconteceu na plenitude dos tempos, não no sentido de que os tempos teriam chegado ao seu momento terminal, mas, no sentido de que, com Cristo, os mistérios do tempo teriam atingido a sua plenitude:

Cristo não podia ter vindo no princípio dos tempos porque a sua chegada teria sido apressada. Mas, do mesmo modo, não podia tê-la adiado até o momento fi nal, porque teria sido muito tarde. Convinha, porém, que o Salvador colocasse o tempo da cura entre o tempo da doença e do juízo. Convinha que o Mediador precedesse muitos dos seus membros e a muitos seguisse18.

Deste modo, vem afi rmado que a “plenitude do tempo” é, con-temporaneamente, o “centro do tempo”. Tal raciocínio atingirá o seu ápice nas Collationes in Hexaëmeron onde Cristo será apresentado como o medium absolutum de todas as ciências19.

Ainda segundo Ratzinger, essa impostação foi favorecida pela abertura do Mestre Franciscano ao esquema septenário duplo de Joaquim de Fiore que, de acordo com a sua Concordia Veteris et Novi

Testamenti, consistia num paralelismo dos Testamentos, vale dizer, num confronto entre Antigo e Novo Testamentos considerados como as duas metades de um mesmo tempo histórico que se relacionam, segundo quanto se pode ler nas Collationes in Hexaëmeron: “(...) como árvore a árvore, como letra a letra, como semente a semente. E como

17 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, p. 38, nota 62.18 BOAVENTURA, Breviloquium, p. 245a. 19 Cf. BOAVENTURA DE BAGNOREGIO. Collationes in Hexaëmeron. Quarac-chi: studio et cura pp. Collegii a S. Bonaventura, 1891, pp. 330b-335b.

148

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

a árvore se origina da árvore, a semente da semente e a letra da letra, assim também o Testamento do Testamento”20.

Deste modo, não somente se estabelece uma correspondência entre os sete dias da criação com as sete épocas de Adão a Cristo como tinha ensinado Agostinho, mas, também entre a história do Antigo e com aquela do Novo Testamento, refutada pelo bispo de Hipona21.

Portanto, ao esquema septenário simples de Agostinho, Boaventu-ra prefere o esquema septenário duplo de Joaquim de Fiore, de acordo com o qual o axioma que fala que a sétima idade decorre junto com a sexta já não serve. Aqui, é previsto um sétimo período no interior da própria história, de modo que a sexta idade do esquema unitário agostiniano abarca as sete idades da Igreja presentes no esquema boaventuriano bipartido22.

Note-se, porém, uma diferença fundamental entre Boaventura e Joaquim. Enquanto que para o abade calabrês a idéia de uma idade do Espírito acabava por suprimir a posição central histórica de Cris-to, reduzindo-o a um ponto de articulação ao lado de outro, para o doutor seráfi co, porém, Cristo representa o eixo dos acontecimentos do mundo, o centro da história a partir do qual o curso do mundo inicia-se ainda uma vez, por assim dizer, num plano mais elevado23. Em todo modo, uma vez eliminada a idéia de um tempo autônomo do espírito, o esquema histórico do abade calabrês oferecia ao doutor franciscano uma representação muito vivaz da posição central de Cristo na história24.

20 BOAVENTURA, Collationes in Hexaëmeron, p. 401b.21 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, p. 32.22 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, p. 39.23 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, pp. 166; 151.24 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, p. 157.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

149Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

Em poucas palavras, da consciência histórica de Joaquim de Fio-re, Boaventura assume a concepção do Antigo e Novo Testamentos como as duas respectivas metades do tempo histórico, cujo momento decisivo é representado pela pessoa de Jesus Cristo. Tal constatação, observa Ratzinger, ainda que para nós se apresente como óbvia, foi estranha a todo o primeiro milênio cristão para o qual, longe de ser o eixo central da história, a encarnação de Cristo representava o início do fi m25.

Um indício muito claro deste papel central na história conferido a Cristo podemos perceber já no De perfectione evangélica através da importância fundamental que, ali, o Doutor Seráfi co atribui ao modus

vivendi da condição terrena da vida de Cristo. Realmente, o evento da encarnação do Verbo Divino na forma de uma existência terrena substancialmente vivida em humildade, pobreza, castidade e obedi-ência, enquanto representa o eixo-central de onde partem todas as outras realizações históricas, torna-se, no opúsculo, a medida absoluta da perfeição evangélica.

De fato, no opúsculo, a prática dos três conselhos aparece, sobre-tudo, como expressão concreta de um seguimento de Cristo que se manifesta como imitação/conformação à condição concreta da Sua existência terrena. Daí porque a grande preocupação do nosso autor em mostrar como, ao longo da Sua vida sobre a terra, Cristo viveu em humildade, pobreza, castidade e obediência. Além disso, a prática dos conselhos fundamenta-se nas próprias palavras de Cristo, naquilo que Ele explicitamente disse. Isso explica por que, ao longo do opúsculo, Boaventura recorre constantemente às passagens evangélicas em que Cristo recomenda tal prática.

A propósito do conselho da pobreza, é importante assinalar, antes de tudo, que este não representa um valor em si mesmo, mas que

25 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, pp. 151-152.

150

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

é considerado em função do seguimento de Cristo, a fi m de que se possa segui-lo mais livremente, como bem o evidenciam certas expres-sões, tais como: “pro Christo nihil possidere in mundo”, “mendicare pro

Christo”, “pro Christo semper devovit mendicare”, “pro Cristo mendicat

maxime se ipsum contemnit et abiicit”26.

Deste modo, assim como o seu confrade Tomás de York e o Mes-tre Dominicano Tomás de Aquino, o Doutor Franciscano defende que a pobreza que é condição de perfeição evangélica encontra a sua razão primeira de ser na pobreza de Cristo – “eius paupertatem” – ou seja, na Sua condição terrena de pobreza e miséria.27 Daí porque é importante afi rmar que Cristo, enquanto Verbo encarnado, não pos-suiu absolutamente nada28, nem mesmo um albergue29 e nem como pagar tributos30.

Quanto à mendicância evangélica, esta constitui-se como fator de imitação do exemplo de Cristo especialmente no que se refere a três importantes aspectos do mesmo: o desapego de si, o amor ao próxi-mo e o culto de Deus31. Por isso, o Mestre Franciscano se esforça em provar que Cristo viveu como mendigo – por mendigar aos homens os bens materiais: hospedagem, bebida e comida32 – e que, de acordo com a Glossa do versículo do Salmo 39,18 que diz: “Eu, pois, sou um pobre e mendigo”, se autodefi niu como tal33.

26 BOAVENTURA, De perfectione evangelica, pp. 129b; 134a; 139a.27 BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 126a.28 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, pp. 125-126a.29 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 125b.30 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 125b.31 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, pp. 140b-141a.32 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, pp. 137b-138a.33 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 137b. Trata-se da Glossa ordi-naria atribuída a Cassiodoro em Estrabone e Lirano.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

151Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

Por fi m, também a partir de Cristo justifi ca-se que nem todos os pobres em boa saúde estejam obrigados ao trabalho manual. Sobretudo porque, ao longo da Sua vida terrena, pela qual cumpriu perfeitamente a Lei e nos deu um perfeito exemplo Ele, mesmo que vivendo radicalmente como pobre e em boa saúde, nem sempre tra-balhou manualmente34.

Também o conselho da castidade, nas suas diversas modalidades, está estreitamente associado com a pessoa de Jesus Cristo. Com re-lação aos cônjuges, por exemplo, as palavras inequívocas dele sobre a indissolubilidade da união conjugal: “Aquilo que Deus uniu o homem não separe” (Mt 19,4), não deixam dúvidas de que a mesma e, consequentemente, o tipo de castidade que lhe é inerente, sejam de instituição divina35. Além disso, a própria presença de Cristo em uma festa de matrimônio onde, de acordo com o Evangelho de João (cf. Jo 2,2), realizou o seu primeiro milagre, atesta por si mesma a alta estima que ele tinha por tal instituição36.

Porém, Cristo não somente aprova a união conjugal. Segundo a teologia paulina, esta possui no amor de Cristo pela Igreja – que é, de acordo com a expressão da Carta aos Efésios, “segundo um amor castíssimo” (cf. Ef 5,25) – o seu modelo por excelência, ao mesmo tempo em que encontra a sua verdadeira grandeza no fato de ser um sacramento deste amor37: “Este mistério é grande. Quero referir-me a Cristo e Sua Igreja” (Ef 5,32).

Já a castidade conservada pelos viúvos é implicitamente aprovada por Cristo quando Ele se refere aos que se fazem eunucos pelo Reino dos Céus (Mt 19,12), pois: “O fazer-se eunucos pelo reino dos céus

34 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 159b.35 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 166a.36 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 166a.37 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 166b.

152

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

acontece principalmente pelo voto de castidade e isso é proposto a todos os que o queiram assumir. Portanto, quem o queira pode, segundo a lei evangélica, fazer voto de castidade”38.

Por fi m, o fundamento cristológico da virgindade consagrada, mais do que sobre uma palavra específi ca do Senhor, é colocado sobre o Seu próprio exemplo de virgindade, tida como evidente: “segundo consta, Cristo se manteve virgem”39. À virgindade de Cristo, Boaven-tura ainda acrescenta aquela de Maria – que foi conservada mesmo depois da sua maternidade –, bem como aquelas de João evangelista, de João Batista e de Abel40.

Também o conselho da obediência, considerado no seu aspecto concreto de submissão de uma pessoa a outra, possui um sólido fundamento cristológico. Antes de tudo porque, enquanto imitação/conformação àquela submissão à vontade do Pai que caracterizou o modo de o Filho estar no mundo, pertence ao próprio seguimento de Cristo. Além disso, a submissão demonstrada por Cristo também aos seus próprios pais terrenos – Maria e José (cf. Lc 2,51) – legitima a obediência devida pelos fi lhos aos pais já prescrita, antes que pelo direito divino, pelo próprio direito natural41. E ainda que por possuir uma vontade confi rmada no bem, que não voltava atrás, Cristo não tenha emitido um voto de obediência, esse encontra nele o seu modelo fundamental, uma vez que Ele praticou a submissão ao ser humano ao qual o voto obriga em máximo grau, submetendo-se, inclusive, a quem lhe era inferior42.

38 BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 171a.39 BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 175a.40 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, pp. 175a-b.41 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 185a.42 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica. p. 186a.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

153Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

Outro aspecto cristológico da obediência diz respeito ao fato de que a mesma não somente é expressão da imitação/conformação ao exemplo de Cristo, mas, também de atenção àquela sua palavra dirigida de um modo todo especial ao apóstolo Pedro, em virtude da qual lhe foi conferido o primado sobre os outros apóstolos e, à igreja de Roma, onde se encontra a sua cátedra, o primado sobre todas as outras igrejas católicas: “E eu te digo: tu és Pedro e sobre esta pedra edifi carei a minha Igreja e as portas do inferno nunca prevalecerão sobre ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,18-19)43.

Assim, se de uma parte, a Pedro é exigida a obediência à ordem de Cristo de apascentar todas as Suas ovelhas (cf. Jo 21,17)44, de outra, a todas as ovelhas de Cristo é exigida a obediência ao seu vigário, ou seja, a Pedro e a seus sucessores. Portanto, de acordo com o princípio da reductio ad unum, os diversos laços de obediência que na Igreja existem devem ser reconduzidos a um único princípio universal de autoridade45, mesmo porque, assim a Igreja foi divinamente instituída pelo próprio Senhor46.

Portanto, também a obediência devida ao Papa possui um caráter eminentemente cristológico, derivado do lugar central da encarnação do Verbo na história, uma vez que o mesmo exerce o seu ministério em nome de Cristo, no lugar de Cristo, a fi m de que, por Cristo, o ser humano – e através dele toda a criação – possa atingir o fi m para o qual foi criado: a plena comunhão com Deus, o retorno defi nitivo à casa o Pai.

43 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, pp. 190a-b.44 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 190a.45 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 193b.46 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 189b-190a.

154

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

3.2 Escatologia e vida segundo os conselhos evangélicos

Outra questão referente à teologia da história presente no opúsculo e que determina a refl exão boaventuriana a propósito dos conselhos evangélicos é o tema da escatologia que, por sua vez, desdobra-se em dois grandes sentidos. O primeiro, de uma clara consciência do iminente fi m dos tempos – fi nis saeculorum; o segundo, de plena realização da vocação humana a participar da vida divina: in patria. É disso que agora trataremos.

3.2.1. O fi m dos tempos: Finis saeculorum

Um primeiro sentido de escatologia no De perfectione evangelica é aquele ligado à consciência do iminente fi m dos tempos que, segundo o estudo de Ratzinger, até a conclusão dos quatro livros dos Commen-

taria in Sententiarum ainda não tinha emergido em Boaventura47.

A partir da polêmica com Guilherme de Saint Amour, no entanto, as coisas mudam: paralelamente à idéia de Cristo como medium da história, à qual já nos referimos, cresce sempre mais em Boaventura a consciência do iminente fi m dos tempos48. Consciência presente de alguma forma também em Guillherme, o qual acreditava já estar vivendo na sexta e última idade da história, segundo quanto diz no De

periculis novissimorum temporum: “(...) esta idade já durou mais do que as outras que duraram por mil anos, porque esta durou 1255 anos; é provável, pois, que estejamos próximos do fi m do mundo”49.

Porém, se para Guilherme eram os mendicantes que representa-vam o verdadeiro perigo do último tempo, o tempo da Igreja, com o

47 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, p. 157.48 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, p. 160.49 GUILHERME DO SANTO AMOR, De periculis novissimorum temporum, p. 19.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

155Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

qual se iniciou o fi nis saeculorum50, analisando alguns dos seus escritos posteriores ao De periculis, Josef Ratzinger conclui que o apelo que ele faz a uma escatologia iminente representa somente um instrumento estilístico de polêmica. Em Boaventura, porém, tal polêmica libera uma autêntica consciência do tempo último51.

Realmente, para o nosso doutor, as ordens mendicantes tinham sido suscitadas pelo Espírito Santo justamente naquele momento de iminente fi m dos tempos para assinalar, tal como o anjo do Apocalipse, a fronte dos eleitos com o selo do Deus vivo (cf. Ap 7,3), “chamando à penitência e à graça do Espírito Santo”52.

Esta afi rmação revela-nos uma concepção de história no De

perfectione evangelica marcada por traços muito claros de uma inter-pretação joaquimita/escatológica da Ordem Franciscana, na qual já se adverte aquela teologia apocalíptica de Francisco de Assis que, nas Collationes in Hexaëmeron, tornar-se-á o centro mesmo da refl exão boaventuriana.

Aliás, diante da objeção de que seria mais perfeito e seguro seguir homens mais sábios e autorizados em matéria de vida religiosa como Basílio, Bento, Agostinho53, Boaventura apela para uma ordenação temporalmente articulada em mais estágios por parte da divina sabedo-ria – um tempo primeiro, um tempo intermediário e um tempo último – a fi m de explicar, através da diversidade dos tempos, a diversidade de formas de vida religiosa, como atestam as seguintes palavras:

(...) Deus dispõe e ordena todas as coisas no seu tempo, razão pela qual, como no primeiro tempo da Igreja suscitou homens poderosos em milagres e sinais – (...) – e no tempo intermediário

50 Cf. GUILHERME DO SANTO AMOR, De periculis novissimorum temporum, pp. 37-38.51 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, pp. 159 e 16052 BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 164b.53 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, pp. 136a; 147b-148b.

156

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

homens dotados da inteligência das Escrituras e das razões vitais, assim, neste último tempo, suscitou homens que mendigam por livre vontade e que são pobres de coisas mundanas54.

Por isso, assim como em cada tempo da história da Igreja o Espí-rito Santo suscitou pessoas para combater um mal predominante, no tempo fi nal, ele suscitou as “Ordens pobrezinhas”55 que, com a sua pobreza e mendicância voluntárias, devem fazer frente ao principal mal que nele impera: a avareza, a cobiça dos bens materiais56.

De fato, de acordo com o princípio da coincidência dos opostos, já enunciado por Jerônimo na fórmula “Omega revolvit ad alpha”57, assim como no seu estado inicial, ou seja, na era apostólica, vigorava na Igreja a pobreza, essa deve também caracterizar o seu estado fi nal, no qual reina a avareza58.

Esse é o motivo por que Boaventura pergunta: “Se essa forma (de vida) foi conveniente na Igreja primitiva, porque não deveria sê-lo, do mesmo modo, naquela dos últimos tempos, sobretudo no que diz respeito àqueles que, desta maneira, querem imitar os apóstolos?”59.

Portanto, é a partir da consciência do iminente fi m dos tempos que se entende a radicalidade com a qual os conselhos evangélicos são propostos, especialmente aquele da pobreza.

54 Deste modo, franciscanos e dominicanos são considerados as duas últimas ordens enviadas por Deus à terra para imprimir o selo do Deus vivo (cf. Ap 7,3) na fronte dos servos de Deus: cf. Perf.ev., q.2, a.3, add.12 (V, 164b). Esta teologia apoca-líptica de Francisco se desenvolverá sempre mais e se tornará o centro da refl exão boaventuriana nas Collationes in Hexaëmeron: cf. RATZINGER, La teologia della storia, p. 161.55 BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 164b. Entenda-se os Franciscanos e os Dominicanos.56 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, pp. 147b-148a.57 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, p. 160.58 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 148a.59 BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 150a.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

157Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

Realmente, já não é sufi ciente uma pobreza in privato – individual – como aquela até então praticada pelos monges. Torna-se necessária uma pobreza tam in privato quam in communi – tanto individual como coletiva –, em outras palavras, que seja expressão de uma renúncia total dos bens terrenos, cuja transitoriedade e efemeridade aparecem ainda mais claramente no último período da história.

Daí se entende também o porque da insistência em se preferir, ao trabalho manual, aquele tipo de obras mais úteis neste tempo fi nal da Igreja, as chamadas obras espirituais: a contemplação, a pregação da Palavra de Deus, a administração dos sacramentos e o culto divino, razão pela qual quem a elas se dedica, ainda que fi sicamente capaz, está dispensado de realizar as obras manuais, além de ter o direito de viver de esmolas60.

Também a conservação da continência por parte dos viúvos e a consagração da virgindade são mais úteis ao bem comum do que o matrimônio, justamente porque é sobretudo por elas que a cidade celeste é preenchida de fi lhos espirituais, o que contribui para que seja completado o número dos eleitos e, consequentemente, para que o fi nal dos tempos seja antecipado61.

Mais ainda, a consciência do fi m dos tempos solicitava uma forma de obediência mais perfeita. Já não bastava aquela praticada pelos

60 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 163b.61 A este propósito, sobre a continência dos viúvos, se diz: “Quia igitur haec conti-nentia – licet videatur facere ad diminutionem hominum in civitate terrena – quia facit ad accelerationem numeri electorum, plus utilitati communi consonat, quam repugnet, maxime cum plus abundet in terrenis numerus virorum carnalium quam spiritualium, ex quibus repleri valeat paradisus”: BOAVENTURA, De perfectione evangelica, pp. 174a-b. E com relação à virgindade consagrada, o seguinte: “(...) virginitas autem est bonum spirituale et quodam modo perpetuum, faciens ad consummationem civitatis supernae; et ideo merito coniugio anteponitur, sicut caelestia temporalibus, pro eo quod coniugium replet mundum, et virginitas paradisum” (BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 179b).

158

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

monges que, por causa da sua stabilitas loci, era restrita ao mosteiro em que habitavam e do qual tinham em comum a posse. Tornava-se necessária aquela forma de obediência própria dos mendicantes que, por não possuírem nenhuma propriedade, lhes permitia de serem enviados por toda parte: “(...) é mais perfeita a pobreza que é acompanhada da mais perfeita obediência. Ora, aqueles que têm a propriedade em comum não podem ser separados dela por obediên-cia se não pecando; ao contrário, quem nada possui está obrigado a obedecer em qualquer lugar do mundo”62.

3.2.2. Destino último do ser humano: a sua condição in patria

A esta altura da nossa refl exão, devemos recordar que a escatolo-gia boaventuriana representa, em última análise, um desdobramento da sua visão do ser humano. Como bem afi rma Francisco de Asís Chavero Blanco, em Boaventura, “la escatologia, más que un tratado de las realidades últimas, se convierte en un coefi ciente de interpre-tación del problema antropológico”63. Isso porque, do fato mesmo de o ser humano ter sido criado como capax Dei, como um projeto aberto, deriva a tensão escatológica da sua existência, pois, somente participando plenamente da vida divina, é que ele encontrará a sua plena realização. Esse é o motivo por que verifi ca-se no opúsculo uma referência constante à imagem apocalíptica da Jerusalém celeste, a ci-dade escatológica, espaço da harmonia, da justiça e da paz, entendida como destino último do itinerário do homem peregrino que parte de Babilônia: espaço da confusão e da desordem.

Assim, falar da escatologia no De perfectione evangelica ou, mais propriamente, da dimensão escatológica dos conselhos evangélicos

62 BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 128a.63 BLANCO, Francisco de Asís Chavero. Imago Dei. Aproximación a la antropología teológica de San Buenaventura. In: Serie Mayor, V. 12. Murcia: Publicaciones del Instituto Teológico Franciscano, p. 102.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

159Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

signifi ca não somente referi-los ao fi nis saeculorum, mas, também, verifi car como os mesmos são colocados em relação a esta plena par-ticipação do ser humano da vida divina, na sua condição in patria, na Jerusalém celeste.

De fato, é tal relação com a realidade última que faz da renúncia to-tal dos bens o “fundamento sublime da perfeição evangélica”, uma vez que, por ela, a pessoa coloca o fundamento da própria existência nos céus, tornando-se, deste modo, mais apta à vida contemplativa64.

Porém, a referência à dimensão escatológica se faz sentir sobretudo com relação ao conselho da castidade, especialmente no que diz res-peito à virgindade consagrada. Em primeiro lugar porque, de acordo com a impostação agostiniana da qual Boaventura compartilha, este tipo de castidade evoca a incorruptibilidade escatológica – “na carne corruptível perpétua meditação da incorruptibilidade”65 – enquanto remete-nos todos àquela condição futura na qual não mais seremos sujeitos a nenhuma forma de corrupção. Mais ainda, ela encontra a sua razão de ser última na cidade celeste, onde somente os que a tiverem conservado receberão o prêmio da auréola e gozarão, de acordo com o que diz o Livro do Apocalipse, de uma prerrogativa toda especial: aquela de seguir o Cordeiro onde quer que Ele vá e de cantar o cântico novo (cf. Ap 14,3-4)66.

E contra a objeção de que a preservação da espécie deve ser preferida a um bem individual, o Nosso responde que a virgindade consagrada é mais excelente do que as outras formas de castidade, pois, mais do que contribuir para a conservação da espécie humana,

64 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 129b.65 AGOSTINHO DE HIPONA. De sancta virginitate. Tradução, introdução e notas de M. Palmieri, V. Tarulli e N. Cipriani. Roma: Città Nuova Editrice, 1978, p. 88; Per. ev., q.3, a.3, cl. (V, 176b). 66 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 177a.

160

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

contribui para o preenchimento da cidade escatológica, uma vez que, “enquanto a união conjugal enche o mundo, a virgindade enche o paraíso”67.

A propósito da obediência, no entanto, a idéia defendida pelo oponente de que quando formos introduzidos na cidade escatoló-gica este voto não terá mais razão de ser68 – uma vez que, in patria, já não serão mais necessários intermediários entre a alma humana e Deus – serve sobretudo para evidenciar o quanto, na condição do ser humano in via, o mesmo seja necessário. Aliás, segundo a impostação eclesiológica de Dionísio Areopagita, da qual Boaventura é devedor, a própria hierarquia eclesiástica – que supõe os diversos graus de obe-diência – provém da Jerusalém celeste e a ela se conforma69. Portanto, também o conselho de obediência possui como referência última a realidade escatológica.

Conclusão

De tudo o que dissemos, podemos concluir que a maior radica-lidade da prática dos conselhos evangélicos proposta por Boaventura no De perfectione evangelica deriva de duas grandes vertentes da sua refl exão teológica sobre a história, presentes no opúsculo: por um lado, da centralidade histórica da encarnação do Verbo que confere à Sua forma de vida terrena – substancialmente vivida em pobreza, castidade e obediência – um valor exemplar absoluto; de outro, da iminência do fi nal dos tempos e da própria concepção boaventuriana do ser humano como chamado à plena participação da vida divina, a partir do que assume conotações eminentemente escatológicas.

67 BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 179b.68 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, p. 188b.69 Cf. BOAVENTURA, De perfectione evangelica, pp. 192a; 194a.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA NO DE PERFECTIONE EVANGELICA ...

161Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

Aqui, é importante dizer que estas duas vertentes não estão em contradição, como pode parecer à primeira vista, mas entre elas existe uma grande coerência lógica. Realmente, como observa Ratzinger, ao situar o evento da encarnação do Verbo Divino no tempo central da história, Boaventura dissipa a falta de clareza que derivava do fato de se designar toda a história cristã como tempo último, de tal modo que a realidade da espera escatológica passa a adquirir, assim, uma nova urgência70.

Referências

AGOSTINHO DE HIPONA. De sancta virginitate. Tradução, intro-dução e notas de M. Palmieri, V. Tarulli e N. Cipriani. Roma: Città Nuova Editrice, 1978, pp. 73-159.

BIERBAUM, Max. Bettelorden und weltgeistlichkeit an der Universität Paris. Münster: Aschendorff Verlag, 1920, pp. 37-168.

BLANCO, Francisco de Asís Chavero. Imago Dei. Aproximación a la antropología teológica de San Buenaventura. In: Serie Mayor, V. 12. Murcia: Publicaciones del Instituto Teológico Franciscano, 1993.

BOAVENTURA DE BAGNOREGIO. Breviloquium. Quaracchi: studio et cura pp. Collegii a S. Bonaventura, 1891, pp. 201a-291b.

Collationes in Hexaëmeron. Quaracchi: studio et cura pp. Collegii a S. Bonaventura, 1891, pp. 229a-449b.

De perfectione evangelica. Quaracchi: studio et cura pp. Collegii a S. Bonaventura, 1891, pp. 117a-198b.

Bullarium Franciscanum Romanorum Pontifi cum. Constitutiones, episto-las ad diplomata continens, tribus Ordinibus Minorum, Clarissarum et poenitentium a Seraphico Patriarca Sancto Francisco institutis concessa. Roma: 1759 ss.

70 Cf. RATZINGER, La teologia della storia, pp. 161-162.

162

FÁBIO CESAR GOMES, OFM

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 139-162, jan./jun. 2012

CONGAR, Yves. Insegnare e predicare. Aspetti ecclesiologici della disputa tra Ordini Mendicanti e Maestri Secolari nella seconda metà del secolo XIIIº e l’inizio del XIVº. Tradução di L. Dal Lago. Padova: Ed. Messagero di Sant’Antonio, 2007.

GOMES, Fábio Cesar. Os tria consilia evangelica no De perfectione evangelica de São Boaventura de Bagnoregio. A contribuição da re-fl exão boaventuriana à teologia dos conselhos evangélicos. Dissertatio ad doctoratum (pars dissertationis). Roma: Pontifi cia Universitas Antonianum, 2010.

GUILHERME DO SANTO AMOR. De periculis novissimorum tempo-rum. In: Opera Omnia. Paris: Alithophilius, 1632, pp. 17-72.

LAMBERTINI, Roberto. Momenti della formazione dell’identità fran-cesana nel contesto della di sputa con i secolari (1255-1279). In: Dalla sequela Christi di Francesco d’Assisi all’apologia della povertà. Conve-gno della Società Internazionale di Studi Francescani e del Centro Interuniversitario di Studi Francescani, V. 18. Assisi/Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1992, pp. 123-172.

RATZINGER, Joseph. La teologia della storia. A cura di L. Mauro. Assisi: Porziuncola, 2008.

TOMÁS DE AQUINO. Liber contra impugnantes Dei cultum et reli-gionem. Cura et studio Fratrum Praedicatorum. Roma: Ed. Saint Thomas Aquinas Foundation, 1970, pp. a49-a166.

TILLARD, Jean-Marie Roger. Consigli evangelici. In: PELLICCIA, G. e ROCCA, G. (dirs.) Dizionario degli Istituti di Perfezione. Roma: Ed. Paoline, 1975, 10 v., V. 2., pp. 1630-1685.

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

163Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

TRADUÇÕES

164

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

165Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI*

Questão IV: Pergunta-se se tudo que pode ser conhecido por nós com certeza é conhecido nas

próprias razões eternas

S. Boaventura

Supondo-se que as razões eternas sejam realmente indistintas na arte e no conhecimento divino, pergunta-se se em todo conhecimen-to certo há razões cognoscitivas; ou seja, perguntar-se se tudo que é conhecido por nós de forma certa, é conhecido nas próprias razões eternas. Que é assim pode ser visto através de diversas autoridades.

1. Agostinho, De magistro1: “De todas as coisas que compreen-demos, não consultamos ao que fala a partir de fora, mas à verdade que preside no interior da própria alma. Mas aquele que é consulta-do ensina, aquele que se diz habitar no interior do homem, Cristo, imutável virtude de Deus e sabedoria sempiterna, à qual toda alma racional consulta”.

2. O mesmo se diz no De vera religione2: “Parece que acima de nos-sa mente há uma lei chamada de verdade; tampouco se deve duvidar de que a natureza imutável que está acima da mente humana seja Deus.

* Texto tirado de Obras de San Buenaventura. Edicion Bilingüe. Tomo segundo (Ed. Fr. Leon Amoros; Fr. Bernardo Aperribay; Fr. Miguel Oromi). Madrid: BAC, 1946, pp . 172-212. Tradução de Enio Paulo Giachini.

1 Cap. II, n. 38.2 Cap. 30 ss, n. 56ss.

166

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

Isso porque essa é aquela verdade imutável chamada corretamente de lei de todas as artes e arte do artífi ce onipotente”.

3. O mesmo no livro II do De libero arbitrio, de Agostinho3: “Aquela beleza da sabedoria e da verdade não se esvai com o tempo nem muda de lugar, não é interrompida à noite, não é ocultada pela sombra, tampouco está sujeita aos sentidos corpóreos; está próxima de todos os que se voltam a ela provindos de todo o mundo e que a amam, é sempiterna a todos, não está em parte alguma e não está ausente de nenhum lugar, admoesta fora, dentro ensina. Ninguém pode julgá-la, ninguém nada pode julgar bem sem ela; com isso fi ca demonstrado que ela é indubitavelmente mais poderosa que nossas mentes, que se tornam sabedoras só por ela, e não julgam a ela mas através dela”. – Se afi rmas que disso não se segue que não vemos na

verdade e nas razões, mas a partir, temos contra isso Agostinho no livro XII das Confi ssões4: “Se ambos vemos ser verdadeiro o que tu dizes, e ser verdade o que eu digo, pergunto onde vemos isso? Nem eu vejo em ti nem tu em mim, mas ambos naquela verdade imutável que está acima de nossas mentes”.

4. O mesmo no livro VIII do De civitate Dei5, falando dos fi lósofos, diz que “aqueles que, por mérito, antepomos a todos afi rmaram que a luz das mentes, que tudo ensina, é o próprio Deus, que tudo fez.

5. Idem, no livro VIII, cap. 3, do De trinitate6: E uma vez que a alma nos agrada de tal modo que a preferimos a toda luz corpórea, ela não nos agrada em si mesma, mas naquela arte pela qual foi feita. Assim, um fato é aprovado quando se vê que houve um feitor, este é a verdade e a bondade simples”.

3 Cap. 14.4 Cap. 25, n. 35.5 Cap. 7.6 N. 5.

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

167Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

6. O mesmo se vê no livro 9, cap. VI do De Trinitate7: “Quando aprovamos ou reprovamos algo retamente, somos convencidos a fazê-lo através de todas as normas que residem imutavelmente acima de nossa mente”.

7. Idem, no mesmo, cap. VII8: “Naquela verdade eterna, a partir da qual foram feitas todas as coisas temporais, vislumbramos com a visão da mente a forma pela qual somos e seguindo a qual, através da razão verdadeira e reta, operamos algo em nós ou nos corpos”.

8. O mesmo no livro 14, cap. 15, do De Trinitate9: “Os ímpios, quando vêem as regras segundo as quais qualquer um deve viver, onde as vêem? Não em sua natureza, uma vez que a sua mente é mutável, enquanto que essas regras são imutáveis; nem no hábito de sua mente, uma vez que essas regras são de justiça. Donde concebe, uma vez que tem um ser que eles mesmos não têm? Onde estão escritas, portanto, a não ser no livro de luz daquele que se diz a verdade, onde está des-crita toda lei justa?” Se dizes que se retratou, tens contra isso o livro primeiro das Retratações de Agostinho10: “É de se crer também os que não são peritos no assunto possam responder verdadeiramente a qualquer disciplina quando podem compreender a luz da razão eterna onde vislumbram verdadeiramente essas coisas imutáveis, não porque antes soubessem e tenham esquecido, como opina Platão”. Idem11: “A natureza intelectual não está conectada apenas às coisas inteligíveis, mas também às imutáveis, é criada de tal ordem que ao se mover para as coisas com as quais está conectada ou na direção de si mesma, enquanto as vê, responde verdadeiramente a respeito delas.

7 N. 10.8 N. 12.9 N. 21.10 Cap. 4, n. 4.11 Lib. I Retract. C. 8, n. 2.

168

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

Desses argumentos de Agostinho, fi ca evidente que tudo se sabe nas razões eternas.

9. Do mesmo modo Ambrósio12: “Por mim mesmo nada vejo a não ser coisas vãs, fl uentes e caducas”: portanto, se vejo algo de certo, vejo-o por algo que está acima de mim.

10. Ademais, Gregório a respeito de João, cap. 14, que diz: Ele vos

ensinará tudo13. “Se o próprio Espírito não assiste ao ouvinte, inútil é o sermão do que ensina; tampouco atribua ao que ensina aquilo que compreende o ouvinte, pela boca do mestre, porque não foi assistido quem ensina, a língua do doutor trabalha externamente no vazio”.

11. Ainda, id. ibid.: “Eis que escutais todos igualmente uma voz que fala, mas nem por isso apreendeis todos igualmente o sentido do que ouvis. E uma vez que a voz não é diversa, não será que em vossos corações a voz da inteligência é díspar, porque além da voz de quem fala admoestando de forma comum, há um mestre interior que ensina um sentido especial da voz da inteligência?” Mas se nosso intelecto fosse sufi cientemente capaz a compreender por si através da luz da verdade criada, não precisaria de um doutor superior; mas uma vez que dele precisa, fi ca evidente que etc.

12. Além disso, Anselmo, no Prologo, cap. 14: “Quanta é a luz donde provém todo verdadeiro, que ilumina em toda mente racional! “Que amplidão tem essa verdade, na qual está tudo que é verdadei-ro, e fora da qual nada há a não ser o nada e o falso!” Portanto, se o verdadeiro não é visto a não ser onde está, nada se vê a não ser na verdade eterna.

13. O próprio Orígenes: “Mesmo que não pecasse, a natureza humana não poderia luzir por suas próprias forças”. O entender,

12 Essa passagem se encontra, antes, em Agostinho: Soliloq. cap. último.13 Lib. Ii Homil. In Evang., homil. 30, n. 3.

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

169Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

porém, é certo luzir; portanto, mesmo que não pecasse, por suas próprias forças não poderia compreender, e precisa, portanto, de um agente superior.

14. Novamente sobre isso, cf. Salmo14: “Foram tuas mãos que me fi zeram e me plasmaram, dá-me inteligência”; glosa: “Só Deus doa o intelecto; Deus, portanto, por si mesmo, sendo luz, ilumina as mentes pias”.

15. Novamente Isaac tratando desse salmo: disse, “em tua luz vi-mos a luz”; “Como sol sai aquilo que torna possível ver o sol, e assim o que mostra o sol não abandona o sol; do mesmo modo em Deus, a luz que dele sai, irradia a mente para que veja primeiramente esse relampejar, sem o qual não veria, e nele veja o restante das coisas”; Portanto, segundo isso, tudo é visto na luz divina.

16. O mesmo, o fi lósofo, no livro 6, cap. 3 de Ethicorum, segundo a nova versão: “Todos imaginamos que o que sabemos não costuma dar-se de outro modo; mas as coisas contingentes, uma vez que devêm fora de nossa mirada, ocultam se são ou se não são. Pode-se saber com necessidade portanto o eterno; por necessidade pois todas as coisas eternas são simplesmente; as coisas eternas portanto são ingênitas e incorruptíveis”; portanto, de modo algum pode haver conhecimento certo a não ser que ali entre a razão da verdade eterna. Mas isso não está a não ser nas razões eternas; portanto etc.

Do mesmo modo, pode-se demonstrar o mesmo a partir de argu-mentos, e o primeiro é tirado das palavras de Agostinho, o segundo dos outros argumentos. Agostinho indica pois esses argumentos no livro segundo do De libero arbitrio, no De vera religione, no De magistro, no livro 6 do Musicae e no livro 8 do De Trinitate.

17. Tudo que é imutável é superior ao mutável; mas o que é conhecido com certeza é imutável, pois verdadeiro é necessário; mas

14 Sl 118,73.

170

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

nossa mente é mutável; portanto, aquilo que conhecemos está acima de nossas mentes. Mas o que está acima de nossas mentes não é senão Deus e a verdade eterna; portanto, aquilo por que há conhecimento é a verdade divina e a razão sempiterna.

18. Do mesmo, tudo que é injulgável é superior ao julgável; a luz por que julgamos é injulgável, mas nossa mente é julgável. O que conhecemos e julgamos está acima de nossa mente. Mas isso não é senão a verdade e a razão sempiterna; portanto etc.

19. O mesmo, tudo que é infalível é superior ao falível; mas a luz e a verdade, pelas quais conhecemos com certeza, é infalível. Nossa mente porém pode ser falível. Portanto, aquela luz e verdade estão acima de nossa mente. Mas essas são a luz e a verdade eterna; portanto etc.

20. Do mesmo, toda luz certa é incoartável, porque se mostra a todos e exibe o cognoscível sob a mesma certeza, mas uma luz incoartável, por necessidade, não é luz criada, mas incriada, pois todo criado é limitado e fi nito, e multiplicado em diversos sujeitos; portanto, essa luz é necessariamente ser incriado; mas conhecemos essa luz certa, portanto etc.

21. Ademais, todo necessário é interminável, pois de modo al-gum pode nem poderia se haver de outro modo; mas o que sabemos com certeza é o verdadeiro necessário, portanto, interminável. Mas tudo que é tal está acima de todo criado, uma vez que toda criatura progride do não ser ao ser, e no que toca a si poderia ser convertida em não-ser; portanto, tudo que conhecemos supera todo verdadeiro criado, sendo assim verdadeiro incriado.

22. Do mesmo modo, todo criado, no que toca a si é compreensí-vel; mas as leis dos números, das fi guras e das demonstrações, aumen-tando ao infi nito, são segundo o fi lósofo incompreensíveis ao intelecto humano; portanto, essas leis, sendo vistas pelo intelecto humano, é

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

171Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

necessário que sejam vistas em algo que ultrapassa todo criado. Mas isso não é senão Deus e a razão sempiterna; portanto etc.

23. Uma vez que esse mesmo homem conhece a justiça, ou a conhece por sua presença, ou pela semelhança recebida de fora ou por algo superior; ora, não é por sua presença, uma vez que ela não lhe está presente; não é por semelhança recebida de fora, não tendo semelhança abstraível pelos sentidos, portanto é necessário que a co-nheça por algo outro acima de seu intelecto; a mesma razão se aplica a todo outro conhecimento espiritual que conhece. Portanto, se o ímpio conhece nas razões eternas, tanto mais os outros. Se afi rmas que a conhece por seus efeitos, objeta-se a isso que aquilo que não se conhece de nenhum modo, não se sabe o que seja efetivado por ele – se não sei portanto o que seja o homem, jamais saberei o que provém do homem; portanto, se antes já não tenho notícia da jus-tiça, jamais se saberá se isso ou aquilo provém dela. Resta portanto que é conhecida na razão eterna. Do mesmo modo pode-se argüir de qualquer outra forma substancial inteligível, e pela mesma razão de todo conhecimento certo.

24. Do mesmo modo, assim como é causa do ser, Deus é também razão do inteligir e ordem do viver. Mas Deus é causa de ser, de tal modo que nada pode vir a ser de outra coisa, ao contrário, por si mesmo e por sua virtude eterna move ao que opera, portanto, nada pode ser compreendido, a não ser que ele mesmo ilumine diretamente o que compreende por sua verdade eterna.

25. Do mesmo modo, nenhum ente defeituoso, quanto a si, pode ser conhecido a não ser pelo ente perfeito; ora, todo ser verdadeiro criado, quando a si, é trevas e defeito, portanto, nada incide no inte-lecto a não ser por aquele sumo verdadeiro.

26. Ainda, nada se conhece reta e certamente, a não ser aplicando-lhe a regra que de modo algum pode ser torcida; mas essa regra não é

172

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

nada além dessa mesma certeza essencial, que não é senão a verdade e a razão eterna; portanto, nada se conhece certamente a não ser aplicado à regra eterna.

27 Assim, visto que as partes da alma são duas, superior e inferior, a razão inferior tem seu lugar determinado pela superior e não o con-trário. Mas se chama de superior a razão enquanto se volta para as leis eternas, mas a inferior, enquanto dirige-se às temporais; portanto na alma encontra-se primeira e mais naturalmente o conhecimento das coisas eternas do que das temporais; portanto é impossível que por ela se conheça algo de certo a não ser com a ajuda dessas razões eternas.

Todas essas razões aludidas são extraídas de palavras de diversos livros de Agostinho. Do mesmo modo, vê-se essas coisas a partir de outras razões.

28. O conhecimento sensível do mesmo objeto não pode se dar por diversas pessoas ao mesmo tempo e a uma vez a não ser por algo comum, e pela mesma razão o conhecimento de algo inteligível; mas algo uno verdadeiro, de modo algum multiplicado, pode ser compre-endido e enunciado por diversos indivíduos; é necessário portanto que seja compreendido através de algo uno de modo algum multiplicado em diversos indivíduos. Mas uno em diversos, de modo algum mul-tiplicado, não pode não ser Deus; portanto a razão de compreender qualquer coisa é a própria verdade, que é Deus.

29. Desse modo, como o afeto se atém ao bem, o intelecto se atém ao verdadeiro , e como todo bem se atém à suma bondade, todo ver-dadeiro, à suma verdade; é impossível então que nosso afeto se refi ra diretamente ao bem, sem de algum modo atingir a suma bondade; portanto, é impossível que nosso intelecto conheça com certeza algo verdadeiro, sem atingir de algum modo a suma verdade.

30. Ademais, não se conhece o verdadeiro a não ser pela verda-de, e não qualquer verdade, mas a verdade notória e principalmente

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

173Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

aquela verdade maximamente notória; mas essa verdade é a que não se pode pensar não ser; essa não é a verdade criada, mas incriada; portanto o que quer que seja conhecido com certeza o é na verdade e na razão eterna.

31. No mais, a alma é nata para voltar-se para o inteligível, que está no exterior, para o inteligível que está no interior e para o inteligível que está no superior. O voltar-se ao inteligível exterior é minimamente simples; mas ao inteligível interior é mais simples; ao inteligível superior é maximamente simples, pois esse é mais íntimo a ela do que ela a si mesma; quanto mais simples algo, tanto mais primordial; portanto, a alma volta-se primordialmente para a própria verdade, mais íntima a ela do que ela a si mesma ou às coisas verda-deiras exteriores; é impossível que conheça qualquer coisa, portanto, sem ser através do conhecimento prévio daquela suma verdade.

32. Ademais, todo ente em potência é conduzido ao ato por algo em ato existente no gênero daquele; mas nosso intelecto é em potência, como o intelecto na criança; portanto para que se torne inteligente em ato é necessário tornar-se por aquele que tudo sabe em ato. Mas este é apenas a sabedoria eterna portanto etc. Se afi rmas que esse é o intelecto agente, pergunto então se o intelecto agente compreendia em ato aquilo que esse aprende ou não; se sim, portanto ou este que aprende compreende e ignora simultaneamente ou o intelecto agente não é algo da alma, mas acima da alma; resta portanto que aquilo que a alma inteligente aprende, o apreende por algo que é superior à alma. Mas o agente não é dito superior à alma porque compreende em ato mas porque faz compreender. Contra isso: todo inteligente é superior e melhor que o não inteligente; portanto, se o intelecto agente não compreende, não podendo fazer algo melhor e superior a si, jamais fará a si mesmo ou alguma outra coisa inteligente em ato. Logo, se torna algo inteligente em ato, é necessário que o faça através de algo que está acima de si. Mas isso é apenas supor a razão e a verdade eterna; portanto etc.

174

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

33. Ademais, pela destruição de todas as criaturas, se permanecer apenas o espírito racional, junto a ele permanece também o conhe-cimento das disciplinas, como o conhecimento dos números e das fi guras; e isso não é por causa do ser verdadeiro que têm junto ao espírito nem junto ao universo; é necessário portanto que seja por causa do ser que têm junto ao sumo artífi ce.

34. Ademais, segundo todos os santos, Deus é dito como o doutor de toda ciência; portanto, porque coopera de modo geral em todo intelecto, assim como em todas as criaturas, ou porque infunde o dom da graça ou porque, conhecendo, o intelecto atinge a ele. Se é porque coopera em geral, assim diria que ensina os sentidos como o intelecto, o que é absurdo. Se porque infunde o dom da graça, portanto, todo conhecimento seria gratuito ou infuso, e nada seria adquirido ou inato, o que é absurdíssimo. Resta portanto que se diz tal porque nosso intelecto o atinge como o lume da mente e a razão que conhece todo verdadeiro.

Contra isso:

Mas contra isso objeta-se em primeiro lugar a partir de argumentos de autoridades, em segundo da razão; as da autoridade, assim:

1. Na primeira carta de Paulo a Timóteo, último capítulo, se diz de Deus: só quem tem imortalidade e habita numa luz inacessível,

quem nenhum homem vê nem pode ver. Mas tudo aquilo pelo qual ou no qual conhecemos é acessível ao que conhece, portanto aquilo pelo qual ou no qual conhecemos não pode ser a luz da razão ou da verdade eterna.

2. Ademais, Agostinho no livro primeiro do De Trinitate15: O ápice da mente humana é incapaz de fi xar-se em luz tão excelente a não ser

15 Verso 16.

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

175Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

que seja purifi cado pela justiça da fé. Portanto, se a luz da verdade eterna fosse a razão de conhecer de tudo que é verdadeiro, nenhuma alma conheceria o verdadeiro a não ser purifi cada e santa. Mas isso é falso; portanto, também aquilo do que se segue.

3. Ademais, no nono livro do De Trinitate16: “essa mesma men-te, portanto, assim como recolhe a notícia das coisas corpóreas pelo sentido do corpo, assim recolhe as incorpóreas por si mesma”; vê-se portanto que para o conhecer não é necessário conhecer alguma coisa pelas razões eternas.

4. Ademais, no livro 13 do De Trinitate, de Agostinho17: “Há que se crer que a natureza da mente intelectual tenha sido formada de tal modo que, por disposição do criador, está naturalmente subordinada às coisas inteligíveis, de tal modo que esta vê as coisas incorpóreas em certa luz, do mesmo modo que o olho da carne vê aquilo que circumjaz nessa luz corpórea”. Vê-se portanto que como para conhecer as coisas sensíveis é sufi ciente a luz criada da natureza corpórea, do mesmo modo para conhecer as coisas inteligíveis é sufi ciente a luz espiritual criada do mesmo gênero, com a potência cognitiva.

5. Ademais, no Moralibus, de Gregório18: “Uma vez que na con-templação a mente é suspensa, o que quer que veja perfeitamente não é Deus”; mas a razão do conhecer é vista perfeitamente no conheci-mento certo, portanto esse modo de razão não é Deus nem algo em Deus; portanto etc.

6. Do mesmo modo, Dionísio, na Epistola ad Caium: “Se alguém vendo Deus compreende o que vê, não vê a ele, mas algo daquelas coisas que são dos entes e das coisas que se conhecem; mas este está

16 Cap. 3, n. 3.17 Cap. 15, n. 24.18 Lib. V, c. 36.

176

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

estabelecido acima do intelecto e da substância”. Portanto, conhecendo nossa mente na vida presente não se atinge o verdadeiro incriado.

7. Ainda, o fi lósofo, no livro 3 do De anima, diz que “nosso com-preender se dá com continuidade e tempo”; mas aquelas razões eternas estão completamente acima do tempo; portanto, compreendendo, nosso intelecto de modo algum atinge aquelas razões.

8. Ainda o mesmo diz: Assim como em toda natureza há algo pelo qual se devem fazer todas as coisas, e algo pelo qual todas as coisas devêm; assim em relação ao intelecto há que se compreender o que é o intelecto agente e o intelecto possível; mas esses são sufi cientes para um conhecimento perfeito, portanto não é necessário o auxílio da razão eterna.

9. Ademais, a experiência ensina que “de muitos sentidos se faz uma memória, de muitas memórias se faz um experimento, de muitos experimentos, uma idéia universal que é princípio da arte e da ciên-cia”, uma vez que perdendo um sentido, perdemos a ciência daqueles objetos relativos a esse sentido. Portanto, o conhecimento certo no estado de via provém das coisas inferiores, mas o conhecimento nas razões eternas vem do superior, portanto uma vez que estamos no estado de viandantes não nos compete um conhecimento através da luz das razões eternas.

10. Ainda, o conhecimento imaginativo não precisa da luz supe-rior, antes, basta apenas a força da potência imaginativa para imaginar algo; portanto, se o intelecto é mais potente que a imaginação, com mais razão é sufi ciente por si para conhecer algo com certeza sem iluminação superior.

11. Ademais, o conhecimento certo pode dar-se no sentido sem a certeza racional sempiterna; portanto, se o intelecto é mais poderoso que os sentidos, com muito mais razão poderá conhecer e compreen-der com certeza sem aquela luz.

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

177Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

12. Ademais, para um conhecimento integral não se requer mais que o cognocente e o cognoscível abstrato e o voltar-se daquele sobre esse; mas tudo isso pode dar-se pela potência intelectual nossa, sem razão eterna; portanto etc.

13. Ademais, em qualquer coisa a potência pode algo livremente e não precisa de auxílio alheio; “compreendemos quando queremos”; portanto para conhecermos algo certo não precisamos da luz das eternas razões.

14. Ademais, o mesmo são os princípios do ser e do conhecer; portanto, se os princípios do ser próprio e intrínsecos a cada criatura não são a não ser criados, o que quer que se conheça sabe-se por razões criadas, e não por razões e luzes sempiternas.

15. Ainda, a cada cognoscível corresponde sua própria razão de conhecer, para se ter um conhecimento certo desse; mas aquelas razões de conhecer não são recebidas distintamente de qualquer intelecto viandante; portanto nada nelas se pode conhecer de forma própria determinada.

16. Ainda, Se algo conhecido com certeza o fosse pela razão eterna; “por causa disso, cada coisa, também ela seria mais do que é”; portanto também aquelas razões eternas nos seriam mais conhecidas, o que é manifestamente falso, sendo para nós maximamente ocultas.

17. Ademais, é impossível vermos algo no espelho, sem ver o próprio espelho; portanto, se algo conhecido com certeza é visto naquelas razões eternas, é necessário ver-se a luz primeira e a razão eterna; mas isso é falso e absurdo, portanto também o primeiro.

18. Ademais, suponhamos que se conhece algo de certo através daquelas razões eternas; ora, aquelas razões são igualmente certas tanto em relação às coisas contingentes quanto com às necessárias, com as coisas futuras quanto as presentes, portanto assim teremos um conhe-cimento certo das coisas contingentes e das necessárias, das futuras como das presentes; o que é falso; portanto, também o primeiro.

178

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

19. Assim, suponha-se que conhecemos nas razões eternas; ora, as razões eternas são causas altíssimas, e a sabedoria é o conhecimento das causas altíssimas; portanto, qualquer um que conhece algo de forma certa é sábio. Mas isso é falso, portanto etc.

20. Ademais, supondo-se que o conhecimento da pátria celeste é o conhecimento por razões eternas, nas quais os bem-aventurados vêem o que vêem; ora, se todo conhecimento certo se desse por aquelas razões eternas, todos os que conhecem com certeza seriam bem-aventurados, e só os bem-aventurados conheceriam com certeza; mas isso é falso.

21. Ademais, se tudo que é conhecido é visto nas razões eternas, sendo que o espelho das razões eternas é voluntário, também aquilo que se conhece no espelho voluntário é conhecido por revelação, conclui-se que tudo que é conhecido desse modo é conhecido de modo profético ou por revelação.

22. Ademais, supondo-se que tudo que é conhecido o é nas razões eternas, isso se dá de forma velada ou desvelada. Se velada, nada se conhece claramente; se desvelada, todos veriam a Deus e ao exemplar eterno sem qualquer enigma; mas segundo o estado em via, isso é falso; portanto etc.

E ainda, contra as razões de Agostinho, objeta-se desse modo:

23. Ademais, se toda verdade imutável é superior à alma e por isso eterna e Deus; uma vez que toda verdade do princípio demonstrativo é imutável, toda essa verdade seria Deus, e portanto nada saberia a não ser Deus.

24. Portanto, se toda verdade imutável é verdade da ciência eterna, sendo essa una, toda verdade imutável não seria a não ser uma; mas sobre qualquer ente é possível descobrir alguma verdade imutável, como é claro; pois essa é uma verdade imutável: Se corre, Sócrates se move – portanto, segundo isso, todos os entes são um.

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

179Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

25. Ademais, se tudo que é Deus deve ser adorado com culto de adoração e toda verdade do princípio imutável é Deus, então, todas as tais verdades devem ser adoradas; portanto, a verdade dessa proposição “dois mais três são cinco” deve ser adorada.

26. Ademais, se toda verdade imutável é Deus; então, quem quer que veja claramente alguma verdade imutável, vê claramente a Deus; mas os demônios e os condenados vêem claramente algumas verdade imutáveis; portanto, vêem claramente a Deus. Mas isso signifi ca ser bem-aventurado, portanto os condenados são bem-aventurados; mas esse é o maior dos absurdos; é portanto absurdíssimo afi rmar que o que é conhecido o é nas razões eternas, quando conhecido com certeza.

Conclusão

Para o conhecimento certo do intelecto, exige-se também do viandante que de algum modo toque a razão eterna como razão reguladora e moti-va, não porem, enquanto só e em sua claridade, mas junto com a razão própria criada e conhecida como que em espelho e enigma.

Respondo:

Para a compreensão do que se disse acima, note-se que, ao dizer que tudo que se conhece com certeza, se o faz na luz das razões eter-nas, isso pode ser compreendido de três modos: de um modo, para compreender que para o conhecimento certo concorre a evidência da luz eterna assim como total e única razão de conhecimento. E essa interpretação é menos correta, uma vez que segundo ela não haveria conhecimento das coisas a não ser no Verbo; e então não haveria distinção entre o conhecimento em via e o conhecimento na pátria celeste, nem entre conhecimento no Verbo e o que se dá no próprio gênero, entre conhecimento da ciência e o da sabedoria, entre conhe-cimento da natureza e o da graça, nem entre conhecimento da razão e o da revelação; e uma vez que tudo isso é falso não se deve seguir por

180

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

essa via. A partir dessa sentença, alguns afi rmaram que nada de certo poderia ser conhecido a não ser no mundo arquetípico e inteligível, como o caso dos acadêmicos primeiros, donde nasceu o erro, como disse Agostinho no livro segundo de Contra acadêmicos, que os aca-dêmicos novos teriam afi rmado que absolutamente nada se chegaria a saber, pois aquele mundo inteligível é oculto às mentes humanas. E assim, querendo manter a primeira sentença e seu posicionamento, incidiram em erro manifesto, uma vez que “um erro pequeno no princípio se torna grande no fi nal”.

De outro modo, para se compreender que é necessário o concurso da razão eterna para o conhecimento certo, quanto à sua infl uência, de modo que, ao conhecer, o que conhece não toca a própria razão eterna, mas só sua infl uência. E esse modo de dizer é insufi ciente, segundo S. Agostinho, quem mostra com palavras e razões expressas, que no conhecimento certo a mente tem de ser regulada por regras imutáveis e eternas, não por intermédio do hábito em sua mente, mas pelas coisas que estão acima de si na verdade eterna. E assim afi rmar que, ao conhecer, nossa mente não se estende além da infl uência da luz incriada é dizer que Agostinho se enganou, uma vez que não é fácil expor seus argumentos e levá-los a esse sentido; e é absurdo afi rmar isso de tão grande padre e doutor, maximamente autêntico entre todos os expositores da Sagrada Escritura.

Além do mais, aquela infl uência de luz ou é geral, como quando Deus infl ui em todas as criaturas, ou é especial, quando Deus infl ui pela graça. Se for geral, então Deus não deveria ser chamado mais de doador de sabedoria do que de fecundador da terra, nem que dele proviesse mais a ciência do que o dinheiro; se especial, como é a da graça, segundo isso, então, todo conhecimento é infuso e nenhum adquirido ou inato; coisas todas absurdas.

E assim há um terceiro modo de compreender, como que deten-do um lugar intermédio entre essas duas vias, a saber, que para um conhecimento certo requer-se uma razão eterna como reguladora e uma razão motiva, mas não só e em sua claridade total, porém junto

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

181Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

com a razão criada, como em parte, vista por nós segundo o estado de via.

É o que insinua Agostinho no livro 14, cap. 15 do De Trinitate19: “relembra-se o ímpio para que se converta ao Senhor como que àquela luz pela qual, mesmo quando dela se desvia, é de certo modo por ela tocado. Pois é por isso que também os ímpios pensam a eternidade e apreendem retamente muitas coisas e também as louvam retamente nos costumes dos homens”. Ali acrescenta que fazem isso pautados em normas, “escritas naquele livro da luz chamado de verdade”. Mas para que nossa mente, de algum modo, atinja, num conhecimento certo, aquelas normas e razões imutáveis, requer-se necessariamente a nobreza do conhecimento e a dignidade de quem conhece”.

Disse a nobreza do conhecimento, porque não pode haver co-nhecimento certo a não ser havendo imutabilidade da parte do que é sabido e infalibilidade da parte de quem sabe. Mas a verdade criada não é imutável de forma absoluta, mas por suposição; do mesmo modo, tampouco a luz da criatura é totalmente infalível por força própria, visto que ambas são criadas e passaram do não ser ao ser. Ora, supondo-se que para se atingir o conhecimento pleno se recorra à verdade totalmente imutável e estável e à luz totalmente infalível, é necessário que em tal conhecimento se recorra à arte suprema como à luz e à verdade; a luz, disse, que dá infalibilidade ao que conhece, e verdade que dá imutabilidade ao conhecível. E uma vez que as coisas tem ser na mente, no próprio gênero e na arte eterna, para o conheci-mento certo, não é sufi ciente para a mente a verdade das coisas, pelo qual têm ser em si, ou pelo qual têm ser no próprio gênero, uma vez que ambos estes são mutáveis, a não ser que de algum modo, sejam atingidas enquanto são na arte eterna.

Mas isso também requer a dignidade de quem conhece. E uma vez que o espírito racional tem uma porção de razão superior e uma inferior, como para o pleno juízo da razão deliberativa no agir não

19 N. 21.

182

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

basta a porção inferior sem a superior, também para o juízo pleno da razão na especulação20. Essa porção superior, porém, é aquela onde está a imagem de Deus, a qual inhere também nas normas eternas e por elas julga e defi ne o que quer que defi na com certeza. E isso compete a ele enquanto é imagem de Deus.

A criatura se compara a Deus, portanto, na relação de vestígio, imagem e semelhança. Enquanto vestígio, compara-se a Deus como ao princípio; enquanto imagem, compara-se a Deus como ao objeto; mas enquanto semelhança, compara-se a Deus como que ao dom infuso. E assim, toda criatura é vestígio que provém de Deus; toda criatura é imagem que conhece a Deus; toda criatura é semelhança e só é seme-lhança aquela em que habita Deus. E de acordo com esse grau tríplice de comparação, é tríplice também o grau de cooperação divina.

Nas obras, que a criatura faz em modo de vestígio, Deus coopera ao modo de princípio criativo; mas nas obras que provém das criatu-ras ao modo de semelhança, como as obras meritórias e agradáveis a Deus, este coopera ao modo de dom difuso; mas nas obras que vêm da criatura ao modo de imagem, Deus coopera ao modo de razão movente; e essa é a obra do conhecimento certo, que porém não provém da razão inferior mas da superior.

Assim, uma vez que o conhecimento certo convém ao espírito racional enquanto é imagem de Deus, nesse conhecimento atinge as razões eternas. Mas visto que estando em via ainda não é plenamen-te deiforme, não as alcança de forma clara, plena e distinta; mas de acordo com o grau maior ou menor de acesso à deiformidade, assim também alcança-as, mas sempre de algum modo, pois jamais pode separar dele o caráter de imagem. Como no estado de inocência a imagem se fazia presente sem deformidade da culpa, embora ainda não possuindo a deiformidade da glória, atingia-a em parte, mas não entre enigmas. Mas no estado da natureza decaída carece de deiformidade e tem deformidade, atingindo-as assim em parte e em enigmas. Mas no

20 Ou seja, quando conhece primeiramente os princípios e os universais.

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

183Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

estado de glória carece de qualquer deformidade, tendo deiformidade plena, atingindo-as assim de forma plena e perspícua.

Novamente, uma vez que a alma não é imagem totalmente por si, por isso, ou seja, sendo atingida pelas semelhanças abstratas e os fantasmas abstraídos das coisas e as razões de conhecer próprias e distintas, sem as quais não é capaz por si de conhecer a luz das razões eternas, enquanto está em via, a não ser, talvez, que transcenda esse estado por uma revelação especial, como naqueles que sofrem raptos ou nalgumas revelações dos profetas.

Assim, segundo demonstram as razões e asseveram expressamente as autoridades de Agostinho há que se conceder que em todo conhe-cimento certo aquele que conhece alcança aquelas razões de conhecer, embora de um modo para o viandante e de outro para o que com-preende, de um modo para o cientista e de outro para o sábio, de um modo para o profeta e de outro para o inteligente comum, como já fi ca evidente e fi cará evidente na solução das objeções.

Solução das objeções

1. Ao que se objeta por primeiro, que habita numa luz inacessível, há que se dizer que está falando daquele acesso àquela luz em sua ple-nitude da claridade e em seu fulgor, e por esse modo não se tem acesso a ela pela potência da criatura mas pela deiformidade da glória.

2. Ao que se objeta que o ápice da mente humana é incapaz de fi xar-se em luz tão excelente etc., responde-se que, para conhecer pelas razões eternas, não é necessário que se fi xe naquelas, a não ser enquanto conhece como sábio. O sábio alcança aquelas razões de um modo, o cientista de outro. O cientista alcança-as enquanto moventes, o sábio enquanto aquietantes; e ninguém chega a essa sabedoria “a não ser que antes seja purifi cado pela justiça da fé”.

3. Ao que se objetou, que a mente tem notícia por si mesma das coisas incorpóreas, há que se dizer que, como nas obras das criaturas

184

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

não está excluída a cooperação do Criador, na razão cognitiva criada não está excluída a razão cognoscitiva incriada, ao contrário, está nela incluída.

4. Ao que se objetou, que vê pela luz de seu gênero, pode-se dizer que, em sentido amplo, a luz de seu gênero é toda luz incorpórea, seja criada ou incriada; se essa for interpretada como luz criada, nem por isso se exclui a luz incriada; nem segue-se que não conheçamos na verdade eterna, mas não apenas nela, mas verdadeiramente tam-bém na luz da verdade criada; e isso é verdade e não contraria a tese anterior.

5-6. Ao que se objeta de Gregório e Dionísio, há que se dizer que ambos negam que aquela luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo seja alcançada por nossas mentes, mas que nesta vida não é plenamente vista.

7-8-9. Ao que se objeta do Filósofo, que compreendemos dentro de uma continuidade e do tempo, tendo intelecto possível e intelecto agente, e sobre a experiência do conhecimento humano, há que se dizer que isso supõe que concorrem para nossa inteligência a luz e a razão da verdade criada; mas, como foi dito no artigo precedente, não exclui a luz e a razão da verdade eterna, pois é bem possível que, seguindo sua porção inferior, alcance as coisas inferiores, e mesmo assim pela porção superior se atinja as coisas superiores.

10. Ao que se objeta ao conhecimento imaginativo há que se dizer que este não vem ao caso, porque ele não tem certeza e desse modo não recorre ao imutável.

11. Ao que se objeta do sentido, há que se dizer que a certeza do sentido e do intelecto não é a mesma. A certeza do sentido provém do liame da potência operante, pela via natural, a cerca de algo deter-minado. Mas a certeza do intelecto não pode provir dessa parte, visto ser uma potência livre para compreender tudo; e assim é necessário provir através de algo que não tem liame de dependência, mas que tem liberdade sem os defeitos da mutabilidade e da falibilidade; e isso

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

185Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

é a luz e a razão da verdade sempiterna; e assim recorre-se a ela como sendo a fonte de toda certeza.

12. Ao que se objeta que para dar-se o conhecimento nada mais se requer a não ser o objeto a ser conhecido e quem conhece e o voltar-se deste para aquele, há que se dizer que esse voltar-se implica juízo; mas o juízo certo não se faz a não ser por lei certa e injulgável; segundo isso, no livro De vera religione e no De libero arbitrio, Agostinho afi rma que “ninguém julga a verdade, e ninguém julga bem sem a verdade”; e assim implica a razão e a verdade eterna.

13. Ao que se objeta que compreendemos quando quisermos, portanto, não dependemos de auxílio alheio, há que se dizer que o auxílio alheio é duplo: um, sempre pronto, outro que é ausente e distante. Aquela razão não diz respeito ao primeiro auxilio, mas ao segundo, como fi ca evidente; pois se a luz corpórea sempre estivesse presente no olho como a luz espiritual está sempre presente na mente, então veríamos quando quiséssemos, assim como compreendemos quando queremos.

14. Ao que se objeta que os princípios do ser e do conhecer são os mesmos, há que se dizer que, assim como os princípios intrínsecos de ser não são sufi cientes para ser, sem aquele primeiro princípio extra, que é Deus, assim também se dá com o conhecer pleno. E embora aqueles princípios, de algum modo, sejam razão de conhecer, nem por isso excluem de nosso conhecimento aquela primeira razão de conhecer, assim como não excluem a criação no ato de ser.

15. Ao que se objeta que a cada objeto cognoscível corresponde sua razão própria de conhecer, há que se dizer que por não vermos aquelas razões em si, totalmente distintas, não são toda a razão de conhecer; mas com elas, requer-se também a luz dos princípios criados e semelhanças das coisas conhecidas, a partir dos quais se tem a razão própria de conhecer a respeito de qualquer objeto conhecido.

16. Ao que se objeta que “por causa disso, cada coisa, também ela seria mais”, há que se dizer que, como já fi cou evidente, a razão

186

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

eterna não move sozinha para o conhecimento, mas junto com a verdade dos princípios, não de modo específi co a partir de si, mas de modo geral estando em via; não se segue então que a mesma nos seja conhecida por si, mas enquanto brilha em seus princípios e em sua generalidade; e assim de certo modo é para nós certíssima, porque de modo algum nosso intelecto pode cogitar que ela não seja; o que não se pode dizer, porém, de qualquer outra verdade criada.

17. Ao que se objeta do espelho, há que se dizer que isso condiz verdadeiramente ao espelho, que tem uma função de representar própria e distinta, e que junto com a função de representação tem uma razão de determinação; como fi ca evidente ali no espelho ma-terial, que representa de maneira própria e distinta a forma visível e dá determinação ao visto. Esses condicionamentos competem ao espelho eterno no que diz respeito às coisas compreendidas, como fi ca evidente do que se disse antes.

18. Ao que se objeta que aquelas razões são igualmente certas no que diz respeito às coisas contingentes e quanto às coisas necessárias, há que se dizer que aquela razão tiraria boa conclusão se aquelas razões fossem toda razão de conhecer e se a visão que se tem nelas fosse plenária; mas não é o que se dá no estatuto do tempo presente, pois junto com elas precisamos das semelhanças próprias e dos princípios das coisas recebidos determinadamente, os quais, porém, não são encontrados nas coisas contingentes mas só nas necessárias.

19. Ao que se objeta que se conhecemos naquelas razões, todo aquele que conhece é sábio, há que se dizer que isso não se verifi ca, pois alcançar aquelas razões não torna sábio, a não ser a quem aquiesce nelas e sabe tê-las alcançado, pois isso aguarda o sábio. Mas esse tipo de razões são alcançadas pelos intelectos dos cientistas como condutivas, mas pelos intelectos dos sábios como recondutivas e quietativas. E uma vez que são poucos os que as atingem desse modo, são poucos também os sábios, embora haja muitos que têm a ciência; na verdade, são poucos os que sabem alcançarem aquelas razões; ao contrário, é mais comum, serem poucos os que querem crer nisso, porque é

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

187Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

difícil ao intelecto, que ainda não foi elevado a contemplar as coisas eternas, ver que assim tem Deus presente e próximo, muito embora no capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos, Paulo afi rme que ele não está longe de cada um de nós.

20. Ao que se objeta do conhecimento da pátria celeste, a res-posta é clara, pois é grande a diferença entre o conhecimento que é parcial e em enigmas e aquele que é perfeito e distinto, como se viu mais acima.

21. Ao que se objeta que o espelho das razões eternas é voluntário etc., há que se dizer que, conforme disse o Apóstolo em Romanos cap. I, que o que é conhecido em Deus, nelas é manifesto; muito embora Deus seja simples e uniforme, aquela luz eterna e exemplar, represen-ta algumas coisas como externas e abertamente, outras porém mais profunda e ocultamente. As primeiras são as que devêm segundo a ordenação necessária da arte divina; mas as segundas são as que devêm segundo a disposição da vontade oculta. E o que se diz do espelho voluntário não diz respeito aos exemplos do primeiro modo, mas do segundo; e assim nas razões eternas as coisas naturais são conhecidas pelo juízo natural da razão, mas as superiores e as futuras, só com o dom da revelação superior; e assim, aquela razão não contradiz à tese proposta.

22. Ao que se objeta que o que nela se conhece, se o faz velada-mente ou não veladamente, há que se dizer que, estando em via, não se conhece naquelas razões eternas sem velamento e por enigmas, por causa do obscurecimento da imagem divina. Mas disso não se depre-ende que nada se conhece de certo e claro, uma vez que os princípios criados, que são de certo modo meio de conhecimento, embora não sem aquelas razões, podem ser vistos por nossa mente de forma pers-pícua e sem velamento. Mas se se dizer que nessa vida nada se conhece de forma plenária, isso não estaria totalmente inconveniente.

23-24-25-26. Ao que se objeta contra os raciocínios de Agostinho, se a verdade imutável é Deus, então a verdade do princípio demons-

188

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

trativo seria Deus e que todas as verdades seriam um, que deveriam ser adoradas, e que os demônios veriam a Deus; a isso tudo há que se dizer que a verdade imutável é dita de dois modos, a saber, de forma absoluta e a partir de suposição. Ao se dizer, portanto, que a verdade imutável está acima da mente e é Deus, isso se diz da verdade que é imutável de forma absoluta. Mas ao se dizer que a verdade do princípio demonstrativo é imutável; se aquela verdade nomeia algo de criado, note-se que não é imutável absolutamente, mas por suposição, pois toda criatura começa do não ser e ao não-ser pode ser revertida – E se for objetado que aquela verdade é absolutamente certa para a mesma alma por si mesma, há que se dizer que, muito embora o princípio demonstrativo, pelo qual se expressa algo complexo, seja criado, a verdade por ele signifi cada pode ser signifi cada pelo que está na ma-téria, segundo aquilo que está na alma, segundo aquilo que está na arte divina ou certamente em todos esse modos simultaneamente. Mas a verdade expressa no signo exterior é signo da verdade que está junto à alma, porque “as vozes são notações daquelas paixões que estão na alma”. Mas a alma, segundo sua parte superior respeita às coisas superiores, segundo sua porção inferior, às inferiores, uma vez que é medium entre as coisas criadas e Deus; e assim, a verdade na alma respeita àquela verdade dupla, como um meio entre dois extremos, de modo que recebe do inferior uma certeza segundo a coisa, ou relativa, e do superior uma certeza absoluta. E desse modo a verdade está estabelecida acima da alma enquanto absolutamente imutável, como demonstram os argumentos de Agostinho. Mas as razões opostas procedem da verdade imutável por suposição, a qual propriamente é considerada pelo demonstrador, a qual se multiplica em diversas e não é adorável, sendo passível de ser vista pelos demônios e os danados. Isso porque aquela verdade absolutamente imutável só pode ser vista perspicuamente por aqueles que podem entrar no silêncio íntimo da mente, onde nenhum pecador alcança chegar, mas apenas aquele que é sumo amante da eternidade.

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

189Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

Normas para publicação

Os artigos devem ser formulados obedecendo às normas téc-•

nicas de publicação da ABNT, e encaminhados à nossa editoria em modelo eletrônico e com cópia impressa.

A editoria da Revista se reserva o direito de, após criteriosa •

análise consultiva, publicá-los ou não. Os artigos não publicados não serão devolvidos.

Os autores articulistas receberão três exemplares da revista •

em que tiver sido publicado seu artigo, abdicando, com isso, em favor da revista, dos direitos autorais dos artigos.

Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus •

autores e não precisam coincidir com o pensamento da Facul-dade.

O idioma de publicação é o português, não estando excluída •

a publicação ocasional de textos ou artigos em outras línguas. Os artigos deverão conter no mínimo 15 e no máximo 25 laudas (1 lauda = 2.100 toques) e vir acompanhados de um resumo de no mínimo 8 e no máximo doze linhas.

Em folha de rosto deverão constar o título do trabalho, o(s) •

nome(s) do(s) autor(es) e breve currículo, relatando experiência profi ssional e/ou acadêmica, a instituição em que trabalha atual-mente, endereço, número do telefone e do fax e e-mail.

A editoria agradece qualquer contribuição, no sentido de melhoria da revista, sejam comentários, sugestões, críticas...

190

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

Pedimos aos colaboradores da Revista encaminhar seus artigos e contribuições para endereço logo abaixo:

Scintilla – Revista de fi losofi a e mística medievalBR 277 KM 112Bom Jesus Remanso 83607-000 Campo Largo – PR

Ou: [email protected] ou [email protected]

A revista aceita permuta – We ask for exchange, on demànde

l’èchange.

Assinatura anual (2 por ano - semestral): R$ 25,00; Número avulso R$ 15,00

Pedidos: enviar cheque em nome de ASSOCIAÇÃO FRANCISCANA DE ENSINO SR. BOM JESUS, para:

Scintilla – Revista de Filosofi a e Mística MedievalBR 277 KM 112Bom Jesus Remanso 83607-000 Campo Largo - PR

Ou depósito bancário

HSBCAg 0099CC 22431-14Cod. Id. 300669-4Contrato 130176 [Mandar comprovante por e-mail]

Contato: [email protected] ou [email protected] - Fone: (41) 2105-4568

QUAESTIONES DISPUTATAE DE SCIENTIA CHRISTI

191Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012

Scintilla – Revista de Filosofi a e Mística MedievalPÁGINA DE PEDIDOS E ASSINATURAS

Nome: _____________________________________________

Endereço: ___________________________________________

____________________________________________________

____________________________________________________

Telefone: ____________________________________________

E-mail: _____________________________________________

Outras informações ____________________________________

VALORES E FORMAS DE PAGAMENTO

Assinatura anual (2 por ano – semestral): R$ 25,00; Número avulso: R$ 15,00

Pedidos: enviar cheque em nome de ASSOCIAÇÃO FRAN-CISCANA DE ENSINO SR. BOM JESUS, para: Scintilla – Revista de Filosofi a e Mística Medieval BR 277 KM 112 Bom Jesus Remanso 83607-000 – Campo Largo – PR

Ou depósito bancário HSBC Ag 0099 CC 22431-14 Cod. Id. 300669-4 Contrato 130176 [Mandar comprovante por e-mail]

Contato: [email protected] ou [email protected] Fone: (41) 2105-4568

192

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 165-188, jan./jun. 2012