saúde e participação popular em questão - o programa saúde da família

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537 Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.20, p.537-9, jul/dez 2006 A finalidade da ciência é aliviar a miséria da existência humana. Esta frase de Brecht, citada no livro Saúde e participação popular em questão, dá o tom apaixonado da escrita do tema por Líria Maria Bettiol, assistente social, pesquisadora e docente de uma pequena cidade do noroeste paulista. Poderia ser, inclusive, a epígrafe dessa obra de 155 páginas, dedicadas ao estudo do processo, das possibilidades e dos limites da implantação do SUS no nível da atenção básica no pequeno município de Estância Turística de Santa Fé do Sul, parte da realidade da imensa maioria dos pequenos municípios brasileiros. O livro, referente a uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UNESP, Campus de Franca, Estado de São Paulo, está organizado em três capítulos: a história das políticas de saúde no Brasil; o Programa Saúde da Família; a participação e a atenção básica. A proposta de pesquisa, desenvolvida com o objetivo de avaliar a participação popular e a atenção básica nas ações de saúde no âmbito do município de Santa Fé do Sul, enraíza-se nas preocupações da autora como assistente social atuante no Programa Saúde da Família daquele município. De fato, a perspectiva orientadora da profissão serve para a tomada de posição diante das contradições entre teoria e prática e discurso e política com que a autora se depara em sua prática. No primeiro capítulo, “A história das políticas de saúde no Brasil: da revolta da vacina (1904) ao programa Saúde da Família – PSF (1994)”, a autora expõe a história da luta popular pela saúde e, ao mesmo tempo, situa seu referencial teórico, ao evidenciar a impossibilidade de uma teorização neutra diante dos processos sociais e políticos. Para ela, a participação popular está intimamente vinculada à questão do poder, isto é, da dominação e resistência no contexto de relações de classes sociais. A participação popular direta e concreta é uma forma de distribuir esse poder, o que não ocorre sem disputa e conflito. Somente há distribuição desse poder sob a forma de políticas sociais garantidas por direitos quando há mobilização da classe trabalhadora, afirma a autora numa passagem ao usar as palavras de Potyara Pereira. Na realidade, as dificuldades da efetivação dos princípios do SUS estão relacionadas, em boa medida, à desmobilização política da classe trabalhadora numa época de controle neoliberal da máquina do Estado. Embora não seja propósito do trabalho analisar este processo, vale observar a pertinência do conceito histórico de classe social proposto pelo historiador inglês Edward Thompson na importante obra A formação da classe trabalhadora na Inglaterra, referida pela autora, para entender fases de organização e desorganização da classe trabalhadora, as dificuldades e possibilidades para a assunção de uma posição de classe. No segundo capítulo, confronta o slogan do PSF, como “porta de entrada para o SUS”, com a realidade local ao lembrar, num chiste provocativo, da canção A Casa, de Vinícius e Tonga, cantada pelo grupo Boca Livre: “Era uma casa/ muito engraçada/não tinha teto/não tinha nada/...” As razões desta situação estão relacionadas, do seu ponto de vista, ao processo político nacional (o PSF teve uma “arrancada” na gestão de Serra, usada por ele na campanha à presidência da república) e à cultura política centralizadora vigente em nosso país. As conseqüências aparecem em vários níveis de organização dos sistemas locais de saúde analisados no trabalho, a exemplo da baixa arrecadação própria frente ao aumento dos BETTIOL, L. M. Saúde e participação popular em questão: Saúde e participação popular em questão: Saúde e participação popular em questão: Saúde e participação popular em questão: Saúde e participação popular em questão: o Programa Saúde da Família. São Paulo: Editora UNESP, 2006. livros

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  • 537Interface - Comunic, Sade, Educ, v.10, n.20, p.537-9, jul/dez 2006

    A finalidade da cincia aliviar a misria da existncia humana.

    Esta frase de Brecht, citada no livro Sade eparticipao popular em questo, d o tomapaixonado da escrita do tema por Lria MariaBettiol, assistente social, pesquisadora e docentede uma pequena cidade do noroeste paulista.Poderia ser, inclusive, a epgrafe dessa obra de155 pginas, dedicadas ao estudo do processo,das possibilidades e dos limites da implantaodo SUS no nvel da ateno bsica no pequenomunicpio de Estncia Turstica de Santa F doSul, parte da realidade da imensa maioria dospequenos municpios brasileiros.

    O livro, referente a uma dissertao demestrado do Programa de Ps-Graduao emServio Social da UNESP, Campus de Franca,Estado de So Paulo, est organizado em trscaptulos: a histria das polticas de sade noBrasil; o Programa Sade da Famlia; aparticipao e a ateno bsica.

    A proposta de pesquisa, desenvolvida com oobjetivo de avaliar a participao popular e aateno bsica nas aes de sade no mbito domunicpio de Santa F do Sul, enraza-se naspreocupaes da autora como assistente socialatuante no Programa Sade da Famlia daquelemunicpio. De fato, a perspectiva orientadora daprofisso serve para a tomada de posio diantedas contradies entre teoria e prtica e discursoe poltica com que a autora se depara em suaprtica.

    No primeiro captulo, A histria das polticasde sade no Brasil: da revolta da vacina (1904)ao programa Sade da Famlia PSF (1994), aautora expe a histria da luta popular pelasade e, ao mesmo tempo, situa seu referencialterico, ao evidenciar a impossibilidade de umateorizao neutra diante dos processos sociais epolticos. Para ela, a participao popular est

    intimamente vinculada questo do poder, isto, da dominao e resistncia no contexto derelaes de classes sociais. A participaopopular direta e concreta uma forma dedistribuir esse poder, o que no ocorre semdisputa e conflito. Somente h distribuio dessepoder sob a forma de polticas sociais garantidaspor direitos quando h mobilizao da classetrabalhadora, afirma a autora numa passagemao usar as palavras de Potyara Pereira.

    Na realidade, as dificuldades da efetivao dosprincpios do SUS esto relacionadas, em boamedida, desmobilizao poltica da classetrabalhadora numa poca de controle neoliberalda mquina do Estado.

    Embora no seja propsito do trabalhoanalisar este processo, vale observar apertinncia do conceito histrico de classe socialproposto pelo historiador ingls EdwardThompson na importante obra A formao daclasse trabalhadora na Inglaterra, referidapela autora, para entender fases de organizaoe desorganizao da classe trabalhadora, asdificuldades e possibilidades para a assuno deuma posio de classe.

    No segundo captulo, confronta o slogan doPSF, como porta de entrada para o SUS, com arealidade local ao lembrar, num chisteprovocativo, da cano A Casa, de Vincius eTonga, cantada pelo grupo Boca Livre: Era umacasa/ muito engraada/no tinha teto/no tinhanada/... As razes desta situao estorelacionadas, do seu ponto de vista, ao processopoltico nacional (o PSF teve uma arrancada nagesto de Serra, usada por ele na campanha presidncia da repblica) e cultura polticacentralizadora vigente em nosso pas. Asconseqncias aparecem em vrios nveis deorganizao dos sistemas locais de sadeanalisados no trabalho, a exemplo da baixaarrecadao prpria frente ao aumento dos

    BETTIOL, L. M. Sade e participao popular em questo:Sade e participao popular em questo:Sade e participao popular em questo:Sade e participao popular em questo:Sade e participao popular em questo:o Programa Sade da Famlia. So Paulo: Editora UNESP, 2006.

    livros

  • LIVROS

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    gastos estimulados pelos incentivos federais combase na cobertura populacional; do aumento darotatividade dos mdicos e a sobrecarga detrabalho dos demais profissionais de sade ameaas universalizao do acesso e ao direito sade.

    Outro problema apontado o risco de ofinanciamento do PSF, apoiado pelo BancoInteramericano de Desenvolvimento (BIRD) pormeio do PROESF Projeto de Implantao eConsolidao da Sade da Famlia, reforar aorientao neoliberal de polticas focalizadas nosproblemas de sade considerados mais graves dapopulao mais pobre.

    Um tpico interessante o das experinciasinternacionais em Sade da Famlia, no qualassinala o carter no originrio da propostabrasileira e a compara com as encaminhadas noCanad, em Cuba e na Colmbia.

    O captulo conclui com uma espcie de raio-Xdo sistema de sade em Santa F do Sul. Comono podia deixar de ser, as informaes oficiaissobre o sistema de sade local deixam a desejar,mas a apresentao dos dados disponveispoderia dar lugar a uma caracterizao domunicpio de um ponto de vista demogrfico,econmico, social e, sobretudo, poltico caracterizao esta, a meu ver, fundamentalpara o entendimento do terceiro e ltimocaptulo, dedicado avaliao do sistema desade local.

    A avaliao considera as opinies deprofissionais de sade, lideranas comunitrias eusurios dos servios a respeito do modelo deateno, do SUS e da participao popular. Odesconhecimento sobre o sentido do PSF, a nfaseno tratamento das doenas em detrimento dapreveno, o problema das filas no atendimento,as dificuldades na referncia aos serviosespecializados compem o quadro da baixacapacidade resolutiva das unidades do programapara lidar com os problemas de sade dapopulao. Ser a participao popular asoluo?

    Neste ltimo tpico do livro, impressiona osenso crtico e o realismo das opinies de algunsprofissionais de sade sobre o pequenoenvolvimento das comunidades em cada local demoradia, bem como de seu prprio papel naimplementao da estratgia da Sade daFamlia. De fato, tudo fica muito distante damisso das equipes de Sade da Famlia de

    elaborar, com a participao da comunidade,um plano local para enfrentar os determinantesdo processo sade-doena, conforme definiooficial constante na pgina do Ministrio daSade relativa ao ano de 2003. Assim como ficaigualmente distante a possibilidade de osconselhos de sade representarem de fato osinteresses dos diferentes segmentos dapopulao devido interferncia do poderpoltico local em todo o processo.

    A autora no analisa a dinmica dosconselhos, mas se detm na anlise dapreparao das conferncias de sade em cadaunidade do PSF de Santa F do Sul, realizada pelaSecretaria Municipal de Sade em 2003. Resta aperseverante vontade de que o controle pblicoseja, de fato, exercido pela populao em algummomento. Neste ponto, percebe-se que a falta deuma reviso bibliogrfica sobre o tema docontrole social/pblico na rea da sadediminuiu o alcance dos resultados da suapesquisa acadmica. Isso se deve, a meu ver, aoprivilgio concedido aos autores do ServioSocial, na interlocuo sobre o tema com asreas da Sade Coletiva e das Cincias Humanas.Neste sentido, vale assinalar a importantepolmica sustentada entre otimistas epessimistas sobre as possibilidades e limites deos conselhos de sade exercerem de fato ocontrole social do SUS (Cortes, 1998), queatravessa boa parte das publicaes dedissertaes, teses, artigos e livros escritos desdeento. Vale ressaltar as contribuies deMachado (1999) e de Gazeta (2004) a respeitoda autonomia dos conselhos de sade, analisadasob o ngulo da gesto local em governos deorientao poltico-partidria oposta.

    O ltimo autor salienta o fato de estarmosdiante de um controle meramente formal dofundo pblico pelos conselhos de sade. Isso abreuma discusso importante: ser realista esperaro controle do SUS exercido mediante afiscalizao dos gastos, ou seja, no mbito dagesto, no qual a participao popular quasesempre se restringe a carimbar despesas e,assim, a legitimar o sistema de sade e a ordempoltica vigentes? Ou, alternativamente, aparticipao popular no ser efetiva apenasquando relacionada dinmica da vida social, naidentificao dos problemas de sade, de seusdeterminantes e dos meios mais adequados paraenfrent-los com o que se desloca o mbito do

  • LIVROS

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    Referncias

    CORTES, S. V. Conselhos municipais de sade: apossibilidade dos usurios participarem e os determinantesda participao. Cinc. Sade Col., v.3, n.1, p.5-35, 1998.

    GAZETA, A. P. Democracia e participao social: aexperincia dos Conselhos Municipais de Sade no interiorde So Paulo. Em Tese, v.1, n.2, p.1-19, 2004. Disponvelem: . Acesso em: 6 out. 2006.

    MACHADO, H. O. P. Controle social e agenda polticado SUS no municpio do Cabo de Santo Agostinho-PE.1999. Dissertao (Mestrado) - Centro de Pesquisas AggeuMagalhes, Fundao Oswaldo Cruz, Recife.

    controle social/pblico da gesto para o daformulao da poltica de sade? Se este passodecisivo for dado, ento, quem sabe asconferncias de sade podero vir a ser espaosdemocrticos, nos quais a mais amplaparticipao popular ter como resultadodeliberaes a favor da sade da populao, aserem encaminhadas em cada nvel deorganizao do sistema de sade.

    Eduardo StotzEduardo StotzEduardo StotzEduardo StotzEduardo StotzDepartamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola

    Nacional de Sade Pblica, Fundao OswaldoCruz, Rio de Janeiro.