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SAUDADE DE NÓS MESMOS:
VISÕES SOBRE A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA
E A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA NA OBRA DE
MACHADO DE ASSIS
Mariana da Silva Lima1
RESUMO: O ensaio visa analisar o modo como Machado de Assis abordou em sua obra dois eventos
fundamentais para a História do Brasil: a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República.
Ocorridos no biênio de 1888-1889, esses acontecimentos nos remetem de imediato para o romance
Memorial de Aires, cuja ação se desenrola nesse período, e para a série de crônicas intitulada “Bons
dias!”, redigida nesse intervalo e registrando os eventos, por assim dizer, no calor da hora.
Palavras-chave: Machado de Assis; crítica e interpretação; literatura e história.
1. Considerações iniciais
Este ensaio visa analisar o modo como Machado de Assis abordou em sua obra
dois eventos fundamentais para a História do Brasil: a Abolição da Escravatura e a
Proclamação da República. Ocorridos no biênio de 1888-1889, esses acontecimentos
nos remetem de imediato para o romance Memorial de Aires, cuja ação se desenrola
nesse período, e para a série de crônicas intitulada “Bons dias!”, redigida nesse
intervalo e registrando os eventos, por assim dizer, no calor da hora.
Se o contexto histórico e político do período é bastante evidente nas crônicas –
como espero demonstrar na segunda parte deste texto –, o mesmo não costuma ser dito
a respeito do romance em questão. Com a óbvia exceção da parte do enredo relacionada
ao barão de Santa Pia, a crítica tem sido unânime em dissociar os acontecimentos do
Memorial de Aires da história brasileira. Essa relação foi iluminada por um excelente
ensaio de John Gledson, integrante do livro Machado de Assis: ficção e história, em
cujos argumentos me baseio para a presente análise.
Ocupando a posição especial de último trabalho na obra de Machado de Assis, o
Memorial de Aires é em geral tido como o “canto do cisne” do escritor, como o livro em
que o autor se reconciliaria com a existência. Assim, o fato de o romance ter sido
publicado em 1908, ano da morte de Machado, acabou influenciando suas apreciações
críticas, a ponto de se identificar o autor ora com o personagem Aguiar, ora com o
1 Doutoranda em Literatura Comparada na UFRJ e bolsista da FAPERJ.
narrador Aires. No primeiro caso, a associação se deve ao retrato de um casal de idosos
sem filhos, Aguiar e Carmo, e ao fato de o próprio Machado ter confessado a Mário de
Alencar que sua esposa Carolina havia sido a fonte de inspiração para a personagem de
Carmo. Desse modo, a harmonia e a felicidade do casal representariam “a contrapartida
de uma excessiva preocupação com o pessimismo de Machado” (GLEDSON, 2003, p.
248).
No segundo caso, a identidade entre autor e narrador deriva principalmente da
narração em primeira pessoa (que leva o leitor a acreditar em tudo o que o narrador diz),
sendo reforçada pela semelhança talvez proposital entre as iniciais dos sobrenomes do
autor Joaquim Maria Machado de Assis e do narrador José da Costa Marcondes Aires.
Além disso, o fato de o narrador ser um diplomata sexagenário suscita aproximações
com a cultura de Machado de Assis e com o fato de que ele estava no fim da vida.
Em ambos os casos, a tentativa de aproximar pontos de vista internos à obra aos
do autor expressariam “o desejo de preencher, com material dos romances, as muitas
lacunas em sua biografia”, como afirma John Gledson (2003, p. 248), e remeteria àquela
leitura que faz ver no Memorial de Aires o sinal de sua “reconciliação com a
existência”.
Contudo, o ensaio de Gledson é elaborado no sentido de refutar essas visões.
Partindo de uma abordagem que, como o título de seu livro de ensaios aponta,
estabelece ligações entre a literatura e a história, o crítico afirma que pretende
apresentar uma nova visão do último romance de Machado. Após observar que o livro
foi relativamente negligenciado em parte devido à monotonia do enredo, ele defende
que o romance é não só interessante mas também importante, e isso devido a três
elementos principais: primeiro, pela época em que decorre a ação (1888-1889);
segundo, pelo caso amoroso de Tristão e Fidélia, que é mais interessante do que parece
à primeira vista; terceiro, pelo fato de os dois aspectos estarem interligados.
2. A abolição no Memorial de Aires
Gledson inicia sua reflexão questionando os motivos que teriam levado
Machado a situar a ação do romance nos anos de 1888 e 1889, elemento em geral
ignorado pela crítica. As anotações do conselheiro têm início no dia 9 de janeiro de
1888 (quando completa um ano de regresso da Europa, aposentado da carreira
diplomática) e se estendem até aproximadamente 30 de agosto de 1889 (após a partida
do casal Tristão e Fidélia para a Europa). Desse modo, a ação abrange a Abolição da
Escravatura, em 13 de maio de 1888, e é interrompida cerca de três meses e meio antes
da Proclamação da República, ainda que a História pouco pareça se relacionar com o
enredo. Essa aparente falta de ligação entre os acontecimentos do enredo e os da história
brasileira levam Gledson a afirmar (2003, p. 249): “O romance – neste sentido, como
Dom Casmurro ou as primeiras quatro obras – parece tratar quase exclusivamente de
assuntos domésticos”.
Segundo Gledson (2003, p. 249), os acontecimentos do Memorial dão lugar a
uma pergunta óbvia que, no entanto, está longe de ter uma resposta fácil: “qual era a
opinião de Machado sobre a abolição?”. A opinião do Conselheiro a respeito seria
bastante clara: “é melhor que a liberdade venha tarde do que nunca, e deveríamos nos
alegrar moderadamente”. Gledson lembra que a posição do narrador como diplomata
“não lhe permitiu tomar partido na questão e, mesmo em maio de 1888, seus 'costumes
diplomáticos' o impedem de participar das celebrações”. Muitos encerram a questão
nesse ponto, considerando que “as opiniões de Machado são as de Aires, moderadas e
equilibradas, mas, no fundo, do lado certo”. Entretanto, essa solução deriva do equívoco
de se acreditar na identidade entre autor e narrador (equívoco muito presente nas
análises críticas dos três outros romances escritos na primeira pessoa – Memórias
Póstumas, Casa Velha e Dom Casmurro), e “equivale a ignorar uma parte muito
importante do enredo, a referente ao Barão de Santa Pia”. Além desses motivos, de
ordem literária, há outro que, de imediato, desautoriza a leitura das opiniões do
Conselheiro como sendo as do autor: sabe-se hoje que Machado tomou parte nas
comemorações do treze de maio desfilando em carro aberto na companhia de Ferreira
de Araújo.
No que se refere ao Barão de Santa Pia, portanto, a situação apresentada é a de
“um fazendeiro tradicional, a favor da escravidão, numa área extremamente dependente
do trabalho escravo – o Vale do Paraíba do Sul”. Ele liberta seus escravos antes do treze
de maio, mas apenas como uma maneira de reafirmar seu direito à propriedade: “Quero
deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de
um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque
assim o quero e posso” (10 de abril de 1888). Como veremos, Machado criou uma
situação muito parecida em uma famosa crônica de “Bons dias!”, mas nesse caso faz
uso de uma ironia ferina para criticar pessoas que transformavam algo inevitável em
virtude. No caso do Barão de Santa Pia, ele se mostra até relativamente sóbrio. O Barão
morre logo depois (em 20 de junho), o que não encerra – antes inicia – a questão da
libertação dos escravos. Gledson comenta (2003, p. 250):
Até este ponto, simplesmente seguimos um processo paradigmático. Se
acreditarmos, baseados na História, que a Abolição trará “o desmantelo... às
fazendas” (10 de abril de 1888), então é difícil evitar a conclusão, a que já
deve ter chegado, anteriormente, mais de um leitor, de que o grito do
vendedor ambulante, no início do romance – “Vae vassouras!” (...) –
significa “Ai de Vassouras!” (a mais importante cidade da área do Paraíba),
bem como “Vendem-se Vassouras!”. A morte do Barão talvez até simbolize
esse processo. Quando Fidélia herda a fazenda, no entanto, as coisas se
tornam mais problemáticas. Porque a moralidade e o altruísmo parecem
impedir a marcha desembaraçada da inevitabilidade econômica.
A análise dessa parte do enredo implica acompanhar as ações de Fidélia em
relação aos escravos, com o objetivo de apreender seu sentido. Quando fica sabendo do
ato do pai, sua vontade é “ir ter com ele, não para invectivá-lo, mas para abraçá-lo; não
lhe importam perdas futuras” (11 de abril de 1888). Ao herdar a fazenda, Fidélia
considera a possibilidade de ficar lá de vez e administrar a propriedade, mas a refuta,
dizendo a Aguiar que ficaria “se fosse útil, mas parece-lhe que a lavoura decai, e não se
sente com forças para sustê-la” (02 de julho de 1888). Sua atitude para com os ex-
escravos se torna mais clara no trecho a seguir, que Aires anota no dia 10 de agosto de
1888, quando Fidélia retorna de uma visita à fazenda:
Fidélia chega da Paraíba do Sul no dia 15 ou 16. Parece que os libertos vão
ficar tristes; sabendo que ela transfere a fazenda pediram-lhe que não, que a
não vendesse, ou que os trouxesse a todos consigo. Eis aí o que é ser formosa
e ter o dom de cativar. Desse outro cativeiro não há cartas nem leis que
libertem; são vínculos perpétuos e divinos. Tinha graça vê-la chegar à Corte
com os libertos atrás de si, e para quê, e como sustentá-los? Custou-lhe muito
fazer entender aos pobres sujeitos que eles precisam trabalhar, e aqui não
teria onde os empregar logo. Prometeu-lhes, sim, não os esquecer, e, caso não
torne à roça, recomendá-los ao novo dono da propriedade.
A passagem deixa claro que Fidélia se desincumbe de qualquer responsabilidade
concreta quanto ao destino dos ex-escravos, e que tudo o que pode oferecer são
palavras, como a última frase o atesta. Gledson (2003, p. 251) chama atenção para o
jogo com “cativar” e “cativeiro”, que expressaria, segundo ele, no mínimo,
insensibilidade, já que a beleza e o encanto de Fidélia teriam pouco a ver com o caso, e
“o que os escravos tentam fazer é forçar Fidélia a reconhecer sua dívida para com eles:
se a fazenda for vendida, é claro que eles não serão beneficiados”. Ela, por sua vez,
“está cada vez mais firme na ideia de vender Santa Pia” (1o. de agosto de 1888).
Dois meses depois, a verdade se torna mais clara, quando o desembargador
Campos diz a Aires que “os libertos, apesar da amizade que lhe têm ou dizem ter,
começaram a deixar o trabalho, e ela quer ver como está aquilo, antes de concluir a
venda de tudo” (03 de outubro de 1888).
Depois do casamento com Tristão, Fidélia acaba dando a fazenda aos libertos, e
fica claro que ela não faz isso por não poder vendê-la: “Já não se vende Santa Pia, não
por falta de compradores, ao contrário: em cinco dias apareceram logo dois” (15 de abril
de 1889). O verdadeiro motivo não é tão claro, mas pode-se ter uma ideia dele quando
Dona Carmo conta a Aires que Fidélia decidiu-se pela dádiva seguindo um conselho
“insinuado” por Tristão, e que acha “possível que o principal motivo fosse arredar
qualquer suspeita de interesse no casamento”. Quanto a essa motivação, diz Gledson
(2003, p. 254): “Não seria a primeira vez, na ficção de Machado, em que a satisfação
pessoal, de um tipo relativamente trivial, está ligada da maneira mais cínica a questões
públicas mais amplas”, lembrando que o paradigma pode ser descoberto em Brás
Cubas.
Os comentários de Aires a respeito da decisão lançam ainda outra luz sobre a
questão. Ele aplaude a mudança de plano (“Se eles não têm planos de ir viver na roça, e
não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos”), mas em seguida lança
uma pergunta fundamental: “Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa
vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há
muita coisa neste mundo mais interessante” (15 de abril de 1888). Como Gledson
aponta (2003, p. 254), basta que o leitor pergunte a si mesmo sobre os verdadeiros
resultados da doação para obter uma resposta: “Claro que os escravos seriam incapazes
de operar a fazenda: sem nenhum capital, nenhum hábito de autonomia, uma herança de
subserviência forçada e da ignorância, como se poderia esperar deles algo diferente?”.
Neste ponto, portanto, Aires partilha da indiferença de Fidélia para com os libertos, e
“sua esperança caridosa de que eles possam superar a herança da História é, suspeita-se,
destinada a confortar sua consciência”. Gledson conclui assim sua análise da parte do
enredo relativa à libertação dos escravos:
Três coisas, todas elas fundamentais para uma interpretação correta e frutífera
do Memorial de Aires, surgem dessa análise. Em primeiro lugar, o romance
mostra a verdadeira história da Abolição, e não (como antigamente pensava
eu que fosse) revela uma exceção à história geral. (...) Em segundo lugar, ele
introduz dúvidas sobre as motivações reais que estão por trás do casamento
de Tristão e Fidélia (...). Em terceiro lugar, e acima de tudo, esta análise
deveria ensinar-nos a desconfiar de Aires como narrador. (GLEDSON, 2003,
p. 254-5)
Em relação ao primeiro ponto (o modo como o processo da abolição é retratado
no romance) ele escreve:
As ações de Fidélia são, em última instância, não menos típicas que as de seu
pai (que foi, afinal, aparentemente generoso também, ao libertar seus
escravos um mês antes da lei). Nada existe de excepcionalmente perverso
aqui (mesmo no caso do Barão), mas tampouco há virtude verdadeira, exceto
nas palavras. As ações seguem simplesmente os ditames da necessidade
econômica, com resultados que serão desastrosos para os escravos: nem, da
parte de Fidélia ou Aires, existe qualquer sinal real de que o desastre os
preocupa. Poderíamos resumir isso citando as palavras, para mim
inesquecíveis, de um historiador – “A abolição libertou os brancos do fardo
da escravidão, e abandonou os negros à sua própria sorte”.
Até aqui, no entanto, a análise de Gledson detém-se na parte do enredo cujas
relações com a História são mais ou menos evidentes. A grande contribuição de sua
leitura reside nas partes subsequentes, em que destrincha o romance até captar nele um
sentido alegórico para a história do Brasil. Voltaremos ao exame do romance no final
deste texto; por ora, vejamos como a Abolição e a Proclamação da República foram
vistas nas crônicas.
3. A abolição em uma crônica de “Bons dias!”
Na crônica da semana em que a lei da Abolição foi assinada, o cronista (2003,
pp. 150-152) ironiza que tinha previsto o treze de maio, “tanto que na segunda-feira,
antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha (...). Alforriá-lo era
nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar”. No
meio do jantar,
levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que, acompanhando as
ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu
escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as
mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um
dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.
A nova condição dos negros alforriados é retratada com maestria no modo como
o cronista comunica o fato a seu escravo: diz-lhe que é livre para ir para onde quiser,
mas que também pode ficar; afinal, já conhece a casa, e ainda terá um ordenado – “Um
ordenado pequeno, mas que há de crescer. (...) uns seis mil-réis; (...) No fim de um ano,
se andares bem, conta com oito. Oito ou sete”. O cronista completa: “Pancrácio aceitou
tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as
botas; efeitos da liberdade”. Ele lhe explica que o peteleco era um ‘impulso natural’,
que não anulava ‘o direito civil adquirido pelo título que lhe deu’. “Ele continuava livre,
eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos”. Assim, Machado
reproduz, por meio da voz narrativa, atitudes recorrentes em boa parte da elite brasileira.
“Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns
pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho
do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até
alegre”. Próximo ao fim da narrativa, revela sua intenção:
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos
meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa,
na modéstia da família, libertava um escravo (...); que esse escravo tendo
aprendido a ler, escrever e contar (simples suposição) é então professor de
Filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e
verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se
antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes
públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na
terra, para satisfação do céu.
Nesse texto, o cronista assume um ponto de vista comum na classe dominante
para melhor evidenciar o absurdo de suas atitudes. A situação de Pancrácio ilustra o
destino que se abriu a muitos dos escravos libertos pela nova lei: sem ter para onde ir e
sem conhecer outras funções que não aquelas relacionadas ao trabalho nas lavouras,
famílias inteiras se viram, da noite para o dia, nas ruas e sem perspectivas de trabalho.
Lembre-se das palavras do Barão de Santa-Pia, com a carta de alforria de seus escravos
na mão: “Estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo,
ganhando o salário que vou lhes marcar, e alguns até sem nada, – pelo gosto de morrer
onde nasceram” (10 de abril de 1888).
O ano seguinte ao da Abolição da Escravatura testemunhou a Proclamação da
República, e a relação entre esses dois eventos é o tema da crônica que analisarei a
seguir.
4. Da Abolição à Proclamação da República
A crônica de 27 de maio de 1888 é composta por um diálogo imaginário entre
um meteorito que havia caído no interior da Bahia mais de um século antes e o oficial
da Marinha José Carlos de Carvalho, chefe da expedição responsável por trazê-lo para o
Rio. Quando a expedição chega à Bahia, contudo, dois vereadores locais tentam impedir
que o meteorito saia do estado, argumentando que ele pertence à Bahia, já que caiu ali2.
A pedra pergunta pelo motivo da objeção:
– Mas por que é que aqueles dois votaram pelo embargo?
– Questão de federalismo...
E o nosso amigo explicou o sentido desta palavra, e o movimento federalista
que se está operando em alguns lugares do império. Mostrou-lhe até alguns
projetos discutidos agora, para o fim de adotar a constituição dos Estados
Unidos, sem fazer questão do chefe de Estado, que pode ser presidente ou
imperador.
Aqui o meteorólito, sempre vagaroso e científico, piscou o olho ao Carvalho.
– Carvalho, disse ele, eu não sou doutor constitucional nem de outra espécie,
mas palavra que não entendo muito essa constituição dos Estados Unidos
com um imperador...
Cheio de comiseração, explicou-lhe o nosso amigo que as invenções
constitucionais não eram para os beiços de um simples meteorólito; que a
suposição de que o sistema dos Estados Unidos não comporta um chefe
hereditário resulta de não atender à diferença do clima e outras. Ninguém se
admira, por exemplo, de que lá se fala inglês e aqui português. Pois é a
mesma coisa.
Entretanto, confessou o nosso amigo que, por algumas cartas recebidas, sabia
que o que está na boca de muitas pessoas é um rumor de república ou coisa
que o valha, que esta ideia anda no ar...
– Noire? Aussi blanche qu'une autre.
– Tiens! Vous faites des calembours?
– Que queria você que eu fizesse, retorquiu o meteorólito, metido naquelas
brenhas de onde você foi me arrancar? Mas vamos lá, explique-me isso pelo
miúdo.
E o nosso amigo não lhe ocultou nada; confiou-lhe que andam por aí ideias
republicanas, e que há pessoas para quem o advento da república é
certíssimo. Chegou a ler-lhe um artigo da Gazeta Nacional, em que se dizia
que, se ela já estivesse estabelecida, acabada estaria há muitos anos a
escravidão.
Nisto, o meteorólito interrompeu o companheiro, para dizer que as duas
coisas não eram incompatíveis: porque ele antes de ser meteorólito fora
general nos Estados Unidos, – e general do Sul, por ocasião da guerra de
secessão, e lembra-se bem que os Estados Confederados, quando redigiram a
sua constituição, declararam no preâmbulo: “A escravidão é a base da
constituição dos Estados Confederados”. Lembra-se também que o próprio
Lincoln, quando subiu ao poder, declarou logo que não vinha abolir a
escravidão...
Ao que o oficial replica: “Mas é porque lá falam inglês”. Novamente Machado
brinca com as diferenças do clima para justificar o fato de que ideias estrangeiras se
deturpam quando são importadas para o Brasil. Para os que defendiam que o
2 John Gledson afirma que, ao tomar conhecimento dessa crônica, pensou que a objeção dos dois
vereadores fosse uma invenção de Machado, mas que depois verificou a veracidade do fato, que havia
sido noticiado em um telegrama publicado no Jornal do Comércio no dia 23 de maio de 1888.
Federalismo e a República vinham juntos, Machado lança a pergunta: “mas que tipo de
Federalismo? Que tipo de República?”. E a resposta vem em forma de trocadilho – no
ar/ noire; ou seja, essa não será uma república negra, mas tão branca quanto qualquer
outra.
Não apenas isso mas, como a pedra convenientemente nos lembra, a
Confederação do Sul, durante a Guerra Civil, era uma República baseada na
escravidão. As lições deprimentes a serem tiradas da História incluem até
Lincoln. Ninguém pode deixar de ver com que mistura de indiferença e
desespero Machado viu o inevitável advento de uma República branca,
dominada por uma oligarquia “federal” – isto é, com base local, nos Estados
– ainda apoiada numa versão da escravidão. (GLEDSON, 2003, p. 167)
Desse modo, ele mostra a maneira como o sentido da palavra federalismo pode
variar, conforme esse federalismo se dê no Brasil ou nos Estados Unidos. Como observa
John Gledson (2003, p. 169-170),
Machado dava mais crédito às interpretações históricas dos acontecimentos
do que às puramente ideológicas: 'Monarquias' e 'Repúblicas' significavam
pouco para ele, abstraídas de suas raízes sociais e históricas. Esta perspectiva
também está na base de sua oposição ao federalismo (uma repetição das
mesmas forças destrutivas que produziram, por exemplo, a revolta
'farroupilha') e do ceticismo com que ele encara os casamentos
constitucionais de parlamentarismo e republicanismo, ou de federalismo e
Monarquia.
É, portanto, a precisão no modo como diferencia as ocorrências históricas de
fenômenos semelhantes que leva Machado a observar que, no Brasil, a vinda da
República se conciliaria com a estrutura baseada no latifúndio.
5. O significado alegórico do Memorial de Aires
Cabe agora retornarmos ao romance com o fim de extrair algumas conclusões
sobre a visão que Machado apresenta sobre o biênio de 1888-1889 em sua obra.
Gledson (2003, p. 278) defende da seguinte maneira a necessidade de se considerar o
enredo do Memorial paradigmático ou alegórico:
Aqui, as principais chaves para a descoberta do significado alegórico são a
traição em si (que ocorre, como deveríamos lembrar, também em nível social,
com a traição dos escravos por Fidélia) e suas origens em Lisboa (“Em
Lixboa, sobre lo mar...”). Fundamentalmente, os dois jovens traem seu país,
tanto de maneira literal, pois partem para Portugal com o dinheiro ganho no
Brasil (e com a escravidão), como no plano metafórico, com o abandono dos
pais postiços, Aguiar e Carmo. O processo, Machado parece dizer, é
contínuo: a história do pai de Tristão, um comissário de café que se casa com
uma brasileira de uma região cafeicultora (...) e depois vende tudo, voltando
para sua terra, é igualmente sintomática em termos de realismo histórico.
Então, sugiro que em seu derradeiro romance, como em obras anteriores,
Machado aborda o condicionamento do Brasil por seu passado colonial,
gerador de hábitos que se prolongaram por muito tempo depois da
Independência oficial.
Como Gledson aponta, “os mais complexos significados e possibilidades do
romance giram em torno de Fidélia, da mesma maneira como ela é, no plano
psicológico, o personagem mais complexo e misterioso”. Ele menciona a luta
despropositada entre os pais de Fidélia e Eduardo, seu primeiro marido, e considera a
tentativa de Fidélia de fazer na morte o que não pôde fazer em vida, colocando os
retratos deles juntos na sala, como algo que seria, como seu próprio casamento, um ato
teatral, sem base sólida na realidade. Nesse sentido, a tentativa de conciliação de Fidélia
apontaria para o projeto conciliatório do Império para o Brasil: “Machado associou
conciliação, acima de tudo, com o projeto político do Império, um projeto destinado ao
fracasso por não ter base suficiente na realidade social” (GLEDSON, 2003, p. 279). Outro
exemplo é o sonho que Fidélia conta em uma carta de 1o. de agosto de 1888:
Contou-lhe em carta um sonho que teve ultimamente, a aparição do pai e do
sogro, ao fundo de uma enseada parecida com a do Rio de Janeiro. Vieram as
duas figuras sobre a água, de mãos dadas, até que pararam diante dela, na
praia. A morte os reconciliara para nunca mais se desunirem; reconheciam
agora que toda a hostilidade deste mundo não vale nada, nem a política nem
outra qualquer.
O fato de que as duas figuras aparecem em “uma enseada parecida com a do Rio
de Janeiro”, e “sobre a água” (não em terra firme), associado ao dado de que é no Rio
que Fidélia e Eduardo se encontram pela primeira vez, no teatro, parece sugerir que a
Corte “é o cenário natural da conciliação artificial, de acertos políticos com raízes
duvidosas na realidade”. Daí Gledson amplia a alegoria, afirmando que “o acerto
político do Império, baseado na conciliação (mas escondendo o conflito infrutífero,
estéril) está prestes a enfrentar seu teste supremo, a abolição da escravidão”.
Gledson retoma uma figura aparentemente secundária na trama, o Dr. Osório, que
“simboliza a possibilidade de um casamento brasileiro para Fidélia e, o que é bastante
significativo, com um representante de outra área econômica importante, o Norte”. Para
o ensaísta, uma união com ele representaria um acordo interno, o que no entanto não
acontece. O que acontece é o contrário: “acima de tudo, trata-se de uma história
externa”, já que, com todas as probabilidades foi concebida em Lisboa e “Tristão é um
estrangeiro cujas tentativas de parecer brasileiro simplesmente enfatizam sua
hipocrisia”. O casamento com Fidélia e a volta a Portugal representam
mais um exemplo de traição, que se repete em toda a História do Brasil, mais
dramaticamente, talvez, no período entre 1808 e 1831, que terminou com a
partida forçada do Imperador do Brasil e pretendente ao trono português,
Pedro I e IV, para Lisboa, de onde viera a Corte em 1808. (GLEDSON, 2003,
p. 281)
Desse modo, Machado faz um julgamento pessimista do Segundo Reinado nesse
romance. Gledson (2003, p. 281) afirma que “como sempre, o ideal da conciliação é a
chave, e suas falsas imitações ou as consequências do seu fracasso jazem em torno de
nós do romance, que começa num cemitério”. Ele lembra que
O casamento de Fidélia com Eduardo e sua 'conciliação em efígie' entre seu
marido e o pai estão do lado da falsidade e do auto-engano. O casamento com
Osório é um ideal autêntico, mas impossível. Assim, e da maneira mais
trágica, é o casamento de Carmo e Aguiar – autenticamente harmonioso e
claramente modelado no do próprio Machado, mas estéril e, em última
instância, atraiçoado e abandonado, apesar de todos os esforços deles.
Gledson descreve ainda outra possível sugestão de leitura do enredo, relacionada
à suposta coincidência entre a primeira notícia de Tristão e o anúncio da Abolição. Ele
lembra que “as duas coisas são deliberadamente relacionadas por Aires” (“Não há
alegria pública que valha uma boa alegria particular”) e propõe a seguinte interpretação:
Aqui, pelo que me parece, Machado muito possivelmente mostra a
reencenação de uma síndrome comum na História do século XIX no Brasil: a
aprovação de uma medida liberal visando a modernizar o Brasil que conduz a
um grau de euforia e esperança de um futuro luminoso, atraindo
investimentos estrangeiros que, por sua vez, conduzem a um boom, e depois
a uma quebra, com seus inevitáveis ganhadores e perdedores. (...)
A última frase do livro – 'Consolava-os a saudade de si mesmos' – representa,
também nesse nível alegórico, toda a escala do desastre. O inverso de
contínua traição é a contínua e patética busca de uma identidade. Como diz
Machado na crônica da Imprensa Fluminense, 'o melhor, acrescento eu, é
possuir-se a gente a si mesmo'. Esta traição é, em última instância, um roubo
do eu, cujas origens remontam, sem dúvida, às do próprio Brasil como
colônia”. (GLEDSON, 2003, p. 281-2)
Talvez traição seja de fato a palavra-chave para a interpretação de Machado do
país. Se ela paira soberana sobre aquele que talvez seja seu romance mais lido e
discutido, Dom Casmurro, as análises de Gledson vêm revelando que, ao fim de uma
leitura histórica de sua obra, a traição também pode ser, em grande medida, um
elemento definidor da relação dos brasileiros com o Brasil.
6. Referências bibliográficas
ASSIS, Machado de. Melhores crônicas/ Machado de Assis. Seleção de Salete Almeida
Cara. São Paulo: Global, 2003.
____. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2a. ed. rev. São Paulo: Paz e
Terra, 2003.