santos, rogerio dultra dos. o conceito de totalitarismo em azevedo amaral final

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O CONCEITO DE TOTALITARISMO EM AZEVEDO AMARAL 1 Rogerio Dultra dos Santos 2 Resumo: Reputa-se até hoje ao livro de Karl Loewenstein, Brasil under Vargas (1942) a diferenciação entre autoritarismo, fascismo e totalitarismo. Este artigo tem por objetivo demonstrar que o jornalista político Azevedo Amaral (1881- 1941), intelectual ligado ao Estado Novo brasileiro (1937-1945), construiu uma argumentação que, ligando a análise da história e da realidade brasileiras à situação européia do início do século XX, já fazia recurso a um sofisticado conceito de totalitarismo, vinculando-o à questão econômica das corporações, para criar a distinção entre modelos de Estado autoritários, fascistas e totalitários, por ele desenvolvida em primeira mão no seu livro O Brasil na crise atual (1934). Isto situa o autor brasileiro e suas contribuições intelectuais como responsáveis por uma das definições mais importantes da teoria política do século XX. Abstract: Until today, the differentiation between authoritarianism, fascism and totalitarianism is reputed to the book Brazil under Vargas (1942) by Karl Loewenstein. This article objectives to demonstrate that the political journalist Antonio José Azevedo Amaral (1881-1941), an intellectual linked to the Brazilian regime New State (1937-1945), built an argument that connects the analysis of Brazilian history and reality to the situation of early twentieth century Europe. The author uses a sophisticated concept of totalitarianism, linked to the economic question of corporatism, as a resource to create the distinction between models of authoritarian, fascist and totalitarian rules, that he developed in first hand in his book The current crisis in Brazil (1934). This analysis places the Brazilian author and their intellectual contributions as being responsible for one of the most important definitions of the political theory of the twentieth century. 1 Artigo originalmente apresentado no 34º Encontro Anual da ANPOCS em Caxambu, no Grupo de Trabalho “Intelectuais, Cultura e Democracia”, coordenado pelos professores Luiz Werneck Vianna e Rubem Barboza Filho. Aproveito para agradecer a avaliação generosa e as sugestões precisas do professor José Murilo de Carvalho. Agradeço também as ricas sugestões dos professores Ricardo Benzaquem de Araújo, César Guimarães, Nísia Trindade e Fabio Gentile. Por fim, agradeço a revisão crítica do texto a Gisele Silva Araújo. Na medida do possível, tentei incorporar tudo o que foi sugerido. Este trabalho foi desenvolvido dentro de projeto de pesquisa vinculado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). 2 Graduado em Direito pela Universidade Católica de Salvador (UCSal), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Ciência Política pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ); Professor Adjunto do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito e Coordenador do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected] .

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Reputa-se até hoje ao livro de Karl Loewenstein, Brasil under Vargas (1942) a diferenciação entre autoritarismo, fascismo e totalitarismo. Este artigo tem por objetivo demonstrar que o jornalista político Azevedo Amaral (1881-1941), intelectual ligado ao Estado Novo brasileiro (1937-1945), construiu uma argumentação que, ligando a análise da história e da realidade brasileiras à situação européia do início do século XX, já fazia recurso a um sofisticado conceito de totalitarismo, vinculando-o à questão econômica das corporações, para criar a distinção entre modelos de Estado autoritários, fascistas e totalitários, por ele desenvolvida em primeira mão no seu livro O Brasil na crise atual (1934). Isto situa o autor brasileiro e suas contribuições intelectuais como responsáveis por uma das definições mais importantes da teoria política do século XX.

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Page 1: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

O CONCEITO DE TOTALITARISMO EM AZEVEDO AMARAL1

Rogerio Dultra dos Santos2

Resumo: Reputa-se até hoje ao livro de Karl Loewenstein, Brasil under Vargas

(1942) a diferenciação entre autoritarismo, fascismo e totalitarismo. Este artigo

tem por objetivo demonstrar que o jornalista político Azevedo Amaral (1881-

1941), intelectual ligado ao Estado Novo brasileiro (1937-1945), construiu uma

argumentação que, ligando a análise da história e da realidade brasileiras à

situação européia do início do século XX, já fazia recurso a um sofisticado

conceito de totalitarismo, vinculando-o à questão econômica das corporações,

para criar a distinção entre modelos de Estado autoritários, fascistas e

totalitários, por ele desenvolvida em primeira mão no seu livro O Brasil na crise

atual (1934). Isto situa o autor brasileiro e suas contribuições intelectuais como

responsáveis por uma das definições mais importantes da teoria política do

século XX.

Abstract: Until today, the differentiation between authoritarianism, fascism and

totalitarianism is reputed to the book Brazil under Vargas (1942) by Karl

Loewenstein. This article objectives to demonstrate that the political journalist

Antonio José Azevedo Amaral (1881-1941), an intellectual linked to the Brazilian

regime New State (1937-1945), built an argument that connects the analysis of

Brazilian history and reality to the situation of early twentieth century Europe.

The author uses a sophisticated concept of totalitarianism, linked to the

economic question of corporatism, as a resource to create the distinction

between models of authoritarian, fascist and totalitarian rules, that he developed

in first hand in his book The current crisis in Brazil (1934). This analysis places

the Brazilian author and their intellectual contributions as being responsible for

one of the most important definitions of the political theory of the twentieth

century.

1 Artigo originalmente apresentado no 34º Encontro Anual da ANPOCS em Caxambu, no Grupo de Trabalho “Intelectuais, Cultura e Democracia”, coordenado pelos professores Luiz Werneck Vianna e Rubem Barboza Filho. Aproveito para agradecer a avaliação generosa e as sugestões precisas do professor José Murilo de Carvalho. Agradeço também as ricas sugestões dos professores Ricardo Benzaquem de Araújo, César Guimarães, Nísia Trindade e Fabio Gentile. Por fim, agradeço a revisão crítica do texto a Gisele Silva Araújo. Na medida do possível, tentei incorporar tudo o que foi sugerido. Este trabalho foi desenvolvido dentro de projeto de pesquisa vinculado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). 2 Graduado em Direito pela Universidade Católica de Salvador (UCSal), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Ciência Política pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ); Professor Adjunto do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito e Coordenador do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected].

Page 2: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

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1. Introdução

O conceito totalitarismo se estabelece no pós-Segunda Guerra como uma

categoria interpretativa central, forma privilegiada de acessar o entendimento

mais preciso não só em relação ao holocausto, mas sobre a dinâmica inusitada de

opressão política do Estado nacional-socialista. Uma boa parte das reflexões

sobre o totalitarismo foi acusada de reificá-lo e abordá-lo numa perspectiva a-

histórica. O termo tornou-se uma categoria geral da ciência política, culminando

num conceito abstrato, com o estudo de Carl J. Friedrich e Zbigniew Brzezinski

Ditadura totalitária e Autocracia (1956). Este processo de abstração conceitual

teria sofrido—desde sua gênese — uma oposição em direção à pesquisa

histórica, segundo a bibliografia especializada, com o livro de Hannah Arendt, As

Origens do totalitarismo (1949) (Cf. Roberts, 2005). Nesta obra, a idéia de

totalitarismo como regime de governo que não diferencia as esferas privada e

pública, e que redunda na eliminação da espontaneidade — ou da humanidade

— adquiriria contextualidade. Assim, o totalitarismo ligar-se-ia não somente a

uma manifestação temporal de organização do Estado, mas igualmente a uma

reconfiguração do espaço político moderno. O núcleo desse movimento de

reorganização teria como característica central a necessidade de controle das

massas urbanas, seja para fins de legitimação política, seja para operar a

continuidade do poder pela própria dinâmica do controle, sem que as massas

participassem do processo relativo às decisões políticas fundamentais.3

3 As massas urbanas passam a integrar, portanto, o centro das preocupações políticas desde meados do século XIX, com a ampliação da população eleitoral da Inglaterra, fenômeno que gerou conseqüências não apenas políticas, mas que inaugurou, inclusive, a temática das massas eleitorais para o debate da teoria política e social no resto da Europa. Vários fatores determinaram a alteração radical do cenário político da Inglaterra Vitoriana. Em especial, dois conjuntos de fatores: o primeiro referente a alterações econômicas e institucionais, como os atos de reforma político-institucional entre os anos de 1832 (Primeiro ato de Reforma) e o Ballot Act de 1872 (que instituiu o voto secreto), a ampliação do eleitorado, o crescimento e a dominação global da economia inglesa (especialmente a partir do incremento das indústrias de jornais e ferroviária). O segundo conjunto de fatores é de natureza propriamente política, como a predominância dos partidos nas eleições, a nacionalização da idéia de representação, o processo de regulação dos votos dos membros do parlamento e a relação dos líderes partidários com o Gabinete de governo. Segundo Gary Cox, esse movimento político-institucional representou o momento histórico em que eleitores distritais deixaram de votar em pessoas e passaram a votar em partidos. As conseqüências desse processo extremamente complexo foram o incremento do Poder Executivo em definir os rumos das disputas eleitorais – em detrimento da força individual do Membro do Parlamento –, a verticalização da hierarquia partidária e a redução das

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Muito antes deste debate — e incluído aí o conceito de totalitarismo —,

uma proposição de tipologia dos Estados contemporâneos ficou conhecida

através da publicação do livro Brasil sob Vargas (1942), de Karl Loewenstein,

reputado até hoje como o autor da diferenciação entre autoritarismo, fascismo e

totalitarismo. A já clássica distinção proposta naquele livro sobre o Estado Novo,

no qual o jornalista político Azevedo Amaral4 é explicitamente citado, virou

ponto pacífico no debate internacional, especialmente entre autores da esquerda

jurídica vinculados à denominada Escola de Frankfurt, como Otto Kirchheimer e

Franz Neumann.

Tanto Loewenstein quanto Arendt argumentam que a distinção que

realizam deriva da avaliação sócio-histórica de elementos empíricos. O primeiro

autor determina que a sua abordagem sociológica o faz privilegiar o campo de

pesquisas e entrevistas, conscientemente desprezando o “material descritivo e

interpretativo” encontrado nos livros jurídicos e políticos sobre o regime

estadonovista, a maioria considerada laudatória. A segunda, afirma produzir a

sua tese ao examinar a experiência humana nos campos de concentração,

dotando o totalitarismo de concretude histórica imediata. A hipótese levantada

por este artigo é que, especificamente em Loewenstein — embora esta hipótese

possa naturalmente ser estendida à própria Hannah Arendt — encontra-se

claramente um conjunto de elementos que podem ser derivados da

diferenciação homônima realizada por Azevedo Amaral quatro anos antes, no

seu livro O Estado autoritário e a realidade nacional, ainda em 1938.

Este artigo tem por objetivo demonstrar que Azevedo Amaral, durante a

década de 1930, construiu uma argumentação que, ligando a análise da história e

da realidade brasileiras à situação européia do início do século XX, já fazia

recurso a um sofisticado conceito de totalitarismo para a distinção entre

modelos de Estado autoritários, fascistas e totalitários, por ele desenvolvida em

dissidências internas, bem como a centralização geral do processo eleitoral. (Cf. COX, 1987; OSTROGORSKY, 1902; MICHELS, 2001). 4 Antônio José Azevedo do Amaral (1881-1941) nasceu no Rio de Janeiro e formou-se em Medicina em 1903 exercendo, na sua vida pública, basicamente o papel de jornalista político. Foi correspondente político de vários jornais brasileiros na Inglaterra entre 1906 e 1916. Escreveu os livros Ensaios Brasileiros (1930), O Brasil na crise atual (1934), A aventura política no Brasil (1935), Renovação nacional (1936), O Estado autoritário e a realidade nacional (1938), A verdade sobre a Espanha (1938) e Getúlio Vargas, Estadista (1941).

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primeira mão. Seu viés peculiar, enfaticamente, recai sobre a questão econômica:

as formas variadas das corporações estão no cerne da oposição, talvez mesmo

radical, entre um Estado totalitário, que invadiria de maneira absoluta a esfera

privada, e um Estado autoritário, que seria democrático e produziria

positivamente a nacionalidade. Nota-se, enfim, que as teses de Lowenstein

resenham em grande medida os conceitos estipulados por Azevedo Amaral, o

que é reforçado pelo contraste em relação às fontes utilizadas por Franz

Neumann na construção de sua noção de Estado totalitário, no famoso livro

Behemoth, estrutura e prática do nacional-socialismo (1942). Conclui-se, ainda,

que o conceito de totalitarismo não se forja, como pretende Hannah Arendt, a

partir da experiência do campo de concentração: embora tenha sido

tragicamente experimentado ali, ele já povoava o pensamento ocidental, não só

pelos autores propriamente ligados ao fascismo, como pelas mãos do próprio

Azevedo Amaral.

Se os debates acerca dos termos autoritarismo, totalitarismo e fascismo

ainda detém relevância, o de totalitarismo, sem sombra de dúvida, levanta um

volume extraordinário de análises. É nas origens intelectuais do fascismo

italiano que ele encontrou a sua formulação primeira. Sua definição é atribuída

pela historiografia ao filósofo italiano Giovanni Gentile (1875-1944), Ministro de

Instrução Pública de Mussolini entre 1922 e 1924. Em março de 1925, Gentile

fez uma anotação do termo, que foi utilizado publicamente por Mussolini num

discurso do mesmo ano. Desde a sua ascensão em 1922, Mussolini desejava

determinar um formato político ditatorial que ultrapassasse a idéia do regime de

transição que as forças aliadas viam como tolerável, e encontraria no conceito

cunhado por Gentile a substância de seu projeto político.

Intelectual ligado emocionalmente ao período do risorgimento italiano da

primeira metade do novecentos, Gentile retomava a idéia de que a Itália, mesmo

após a unificação, carecia de uma “renovaç~o”, todavia irrealizada. Acreditava

que no século XX, por conta da ascensão do individualismo e do secularismo, o

país ainda não havia encontrado o seu heroísmo e sua fé, necessitando de uma

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espécie de “redenç~o” (Cf. Gregor, 2004a).5 Para ele, o Estado deveria ser

coletivista, “a organizaç~o e a vontade da comunidade”, submetendo a si as

aspirações de todos. O fascismo, então, precisaria angariar a total aderência ao

nacionalismo, penetrando em todas as esferas da sociedade. Ao Estado caberia

incutir valores morais nas pessoas, a importância dos indivíduos derivando de

sua condição de componentes do Estado. A partir de Gentile, Mussolini cunha o

conteúdo do conceito — “tudo dentro do Estado, nada fora do Estado, nada

contra o Estado” — e o nomeia: “Um partido governar o Estado ‘totalitariamente’

é um novo começo na história. Não existem pontos de referência ou de

comparação. Por sob as ruínas das doutrinas liberais, socialistas e democráticas,

o Fascismo extrai aqueles elementos que ainda são vitais” (Neville, 2003, p. 68 e

ss.).

A ascensão das massas populares ao cenário político e seus levantes

vitoriosos ou não — Comuna de Paris (1871), Revoluções Russas (1905 e 1917),

Revolução Húngara (1919) e, em outra chave, a República de Weimar (1919) —

teriam ameaçado a centralidade das elites econômicas e políticas, provocando

uma reação. Tais elites alegariam a incapacidade das massas de se comportar de

acordo com um entendimento racional da política e de suas instituições. A

resultante teria sido a forte crítica aos desdobramentos políticos do

racionalismo — ao parlamentarismo e às instituições de tradição política liberal,

como partidos, eleições, sufrágio e parlamento — que têm lugar na passagem do

século XIX ao XX. Consideradas essas instituições incapazes de controlar os

arroubos das massas por independência e autonomia, procurou-se, então, por

outras tecnologias políticas, sedimentar a necessidade de coordenar o irracional

e o emocional, sobressaindo-se a propaganda, o carisma e o mito como

instrumentos centrais de composição dessa nova realidade.6

Nessa “Era dos extremos”, no dizer de Hobsbawn, um dos pólos da

contenda política se constituiu pelos movimentos operários organizados em

5 A figura exemplar do risorgimento foi Guiseppe Mazzili, que desenvolveu uma doutrina integral da política, indistinta da moralidade, da religião ou de concepções de vida e interesses essenciais da humanidade (Cf. Gregor, 2004b, p. 21). 6 Nesse sentido, e dentre muitos outros, Campos, 1940; Le Bon, 2000; Schmitt, 1994; Schmitt, 1996; Schmitt, 1998; Sorel, 1992; Tarde, 2006.

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busca de autonomia política e direitos. A “ameaça comunista” daí derivada, o

medo do avanço da Quinta Coluna, gerou extremismo no pólo oposto, o da

conservação da situação dominante. Numa sociedade em que o caráter social dos

conflitos é a tônica do momento, não só a necessidade de se atribuir poderes

legislativos à autoridade administrativa é nuclear. Igualmente central na

estratégia de neutralização das possíveis revoluções políticas em marcha é a

coordenação da vida social em todos os seus aspectos. Assim, a crença de que as

normas e as instituições jurídicas vinculadas à dinâmica parlamentar deveriam

ocupar o lugar central na estrutura de justificação política do Estado foi,

paulatinamente, transformando-se em quimera.

O fenômeno totalitário, ao eclodir na realidade social e política européia,

não deixou de repercutir na elaboração de outros modelos políticos, em especial,

pelo seu caráter de universalização. O capitalismo monopolista, a

internacionalização do mercado financeiro e da organização dos sindicalismos

socialista e comunista, a influência doutrinária de caráter autoritário, por conta

de inúmeros outros motivos, se disseminaram pelo ocidente, atingindo

realidades sócio-políticas distintas, como foi o caso da América Latina e,

particularmente, do Brasil. Isso significou que países de outros continentes

tiveram que interpelar intelectualmente a nova situação social e política dos

países centrais da Europa. Tiveram, em especial, que desenvolver tecnologias

institucionais locais de barragem da possível e premente ascensão das massas,

instados em especial pelo medo da onda comunista, dentre outros fatores. É

assim que o conceito de totalitarismo aparece de forma quase que natural, num

contexto cultural distinto da sua origem histórica, como possibilidade real de

conformação de formas políticas diversas. Embora não se possa universalizar os

elementos sociais, culturais e históricos que estimularam a gênese do fenômeno

totalitário, resta avaliar até que ponto a contribuição original e elaborada de

Azevedo Amaral pode ter influenciado — de forma subterrânea — no debate

sobre o mesmo.

O texto a seguir se divide da seguinte maneira. Na primeira parte é

desenvolvida a distinção entre os modelos de Estado totalitário e autoritário no

livro Brasil sob Vargas de Karl Lowenstein. Na segunda parte é apresentada a

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formulação de Azevedo Amaral sobre a mesma diferenciação conceitual,

destacando-se o processo intelectual de sua construção, através do vínculo que o

autor produz entre realidade histórica, política e econômica brasileira e os

modelos de Estado que poderiam alcançar ou não a produção de um sentido

histórico para a nacionalidade. Por último é apresentada a perspectiva do jurista

alemão Franz Neumann, como alternativa analítica à compreensão dos motivos e

fundamentos da ascensão dos Estados autocráticos. A obra de Neumann reforça

a idéia de que a construção do conceito de totalitarismo se deve às

características do desenvolvimento histórico da economia capitalista na

Alemanha, o que reforça a tese de Azevedo Amaral, desenvolvida em torno da

análise dos diversos modelos de corporativismo e de suas conseqüentes

repercussões econômicas e políticas.

2. A distinção conceitual entre Estado Autoritário e Estado Totalitário

em Karl Loewenstein

O primeiro relato realmente minucioso escrito por um jurista — no caso

um constitucionalista conhecido pelo viés sociológico de suas obras — sobre o

Estado Novo brasileiro foi o livro Brasil sob Vargas (1942), de Karl Loewenstein.7

Em janeiro daquele ano, alguns dias após o ataque japonês à base norte-

americana de Pearl Harbor, o Presidente Getúlio Vargas aceita assinar a entrada

do Brasil nas Nações Unidas. Este tardio e vacilante alinhamento não passou

despercebido às agências do Ministério da Guerra dos Estados Unidos da

América, que designou Loewenstein para produzir um relatório detalhado sobre

o Brasil, com o fito de determinar o alcance daquele alinhamento. Neste mesmo

ano — entre os meses de fevereiro e maio —, esse autor visitou o país e conviveu

7 O constitucionalista alemão Karl Loewenstein, radicado nos EUA desde 1932 (primeiro em Yale (1934-36) e depois em Ahmherst) é, sem sombra de dúvidas, um dos mais influentes constitucionalistas do século XX com a edição de sua Teoria da Constituição (1957), sendo classificado, depois da publicação de seu livro Direito e realidade constitucional dos Estados Unidos (1959) de jurista antípoda ao Carl Schmitt da Teoria da Constituição (1928). Discípulo direto de Weber, Loewenstein foi um dos autores mais preocupados com a classificação tipológica das formas de governo, sendo considerado —erroneamente— o primeiro autor a realizar uma distinção corrente entre governo autoritário e governo totalitário, conforme discussão a seguir, que tenta devolver o lugar de precedência devida a Azevedo Amaral (sobre Loewenstein, conferir Anabitarte, 1979).

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diretamente com os seus mais proeminentes atores políticos e, em especial, com

o então Ministro da Justiça e Negócios Interiores Francisco Campos e o Ministro

das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha.

O tempo urgia. Loewenstein sabia das limitações profundas de uma

pesquisa empírica realizada em uma realidade cultural pouco conhecida. Tinha

consciência da precariedade das análises realizadas até então — lacunosas e

partidárias, a maioria. Apesar de ter optado expressamente pela pesquisa de

campo, obviamente conheceu a relevância estratégica dos ideólogos do regime e

travou contato com as obras principais de sustentação e crítica do mesmo.8

Tendo apresentado, três anos antes, uma pesquisa semelhante sobre a

organização político-jurídica e social da Alemanha, A Alemanha de Hitler (1939),

Loewenstein sentia-se apto para, pelo menos, traçar um retrato detalhado sobre

a estrutura jurídico-institucional brasileira. A partir de uma avaliação sócio-

jurídica do regime varguista em comparação com o nacional-socialismo, utilizou

uma distinção funcional que lhe permitiu conceituar de forma consistente dois

tipos ideais: os regimes totalitário e autoritário. É no estudo do regime de Vargas

que a questão conceitual se coloca pela primeira vez de forma mais clara neste

autor e alguns indícios — em especial, a comparação com a argumentação de

Azevedo Amaral — apontam para o fato de que ele esteve em contato direto com

o texto do ideólogo brasileiro sobre o tema e sorveu dali as idéias decisivas para

a realização da tarefa (Loewenstein, 1939).9

8 “Em primeiro lugar, há uma lacuna a ser preenchida. Por mais surpreendente que seja, nenhum livro objetivo sobre o regime de Vargas foi ainda publicado em Inglês, ou em qualquer outra língua, sobre essa matéria. Nenhum advogado ou cientista político brasileiro iria realizar uma tarefa que, por força do material controverso, poderia envolver uma boa dose de censura dos Poderes constituídos. Os franceses, normalmente os primeiros quando se trata de analisar um novo sistema de governo, foram impedidos na sua missão pela guerra. Para a ciência política na Alemanha nazista, o Brasil não parecem ter oferecido muito apelo. Os americanos, em virtude da sua proximidade geográfica e de colaboração no hemisfério, deveriam estar mais interessados do que outros no Brasil de hoje, mas somos estranhamente pouco dispostos a quebrar o nosso provincianismo arraigado e dedicar esforços científicos para uma tarefa que exige para a sua conclusão com êxito um entendimento da mente Latina, bem como familiaridade com os processos governamentais baseadas na tradição européia.” (Loewenstein, 1942, p. 1). 9 A síntese dessa classificação está em Loewenstein, 1957, pp. 75 e ss. Para uma genealogia da discussão terminológica acerca do conceito de totalitarismo, ainda nos anos 1960, ver Friedrich et alli, 1969. Como dito na introdução, Loewenstein pretende construir uma interpretação do regime a partir da legislação e dos dados oficiais produzidos e através de entrevistas e reuniões com figuras proeminentes do regime, com jornalistas e políticos da situação e da oposição. Despreza em nota metodológica, os escritos políticos nacionais, por adjetivar neles a qualidade

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No Brasil, os estudos da época tendiam a classificar o Estado Novo —

muitas vezes de forma depreciativa — como fascista.10 Para o autor, o fascismo e

o bolchevismo são espécies de totalitarismo, caracterizados genericamente por:

a) uma forma autoritária de governo; b) um controle totalitário da vida privada;

c) um partido único fascista que auxilia neste controle e; d) uma “discriminaç~o

arbitr|ria contra classes, grupos sociais e indivíduos” — inclusive no acesso a

funções burocráticas no corpo do Estado, o que gera ao final a substituição das

classes dominantes tradicionais por novos estratos que governam sem a

restrição dos valores da tradição. Sua classificação analítica do Brasil sob o

governo Vargas como ditadura autoritária destaca, em contraposição aos

regimes totalitários, a permanência das classes tradicionais no controle político,

a inexistência de partidos e a ausência de controle da vida privada (Loewenstein,

1942, pp. 370-1). Esta distinção entre Estado totalitário e Estado autoritário, a

partir da comparação básica entre as realidades da Alemanha e do Brasil, é a

contribuição que lhe dá destaque internacional nos anos 40.11 Para Loewenstein,

tecnicamente o Brasil sob o Estado Novo não é um Estado totalitário, mas uma

ditadura plenamente desenvolvida, já que

as regras jurídicas que governam a sociedade política não são aprovadas pelo povo, mas são sobrepostas de cima pelo governo. Se uma contraposiç~o apropriada ao termo “democr|tico” est| em quest~o, o regime deve ser dito “autorit|rio”. Mas n~o é nem totalit|rio nem

de positivistas e propagandistas do regime. Dentre as obras (a maioria citando com grafia errada os autores) está o livro de Azevedo Amaral O Estado Autoritário e a realidade nacional (Cf. Loewenstein, 1942, p. 41 e ss.). Como se verá, antes de Loewenstein, Azevedo Amaral já trabalhava esta distinção conceitual entre autoritarismo e totalitarismo, em 1938. Citado pelo autor alemão como fonte histórica para se entender o Estado Novo, Azevedo Amaral, entretanto, não é considerado como a origem da tipologia desenvolvida. É importante ressaltar que a interpretação de Loewenstein sobre o regime varguista, bem como a determinação de suas características e funções, podem ser hoje alvo fácil de inúmeras contestações. Para os objetivos deste artigo ser~o delimitados t~o somente os aspectos relativos { construç~o de seus “tipos ideais” de regimes políticos. Todas as descrições produzidas sobre o Estado Novo a partir da referência ao livro de Loewenstein devem padecer desse pressuposto, isto é, da não preocupação com a precisão das análises e interpretações daquele autor, mas apenas com seus resultados heurísticos relativos ao tema deste artigo. 10 É fato que os discursos de Francisco Campos e do próprio Getúlio Vargas colaboravam com esta apreciação. Mas, como anota Loewenstein (1942, pp. 121 e ss.), seguindo aqui um diagnóstico de Azevedo Amaral, o Estado Novo e, em especial, a Constituição de 1937, prescindiram de um background ideológico preciso (Cf. Amaral, 1938, pp. 147-9). 11 Conforme observação de Alfredo Gallego Anabitarte, em nota de rodapé no livro de Loewenstein Teoria da Constituição, este é o primeiro registro da distinção. (Cf. Loewenstein, 1957, p, 75, n. 3).

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“semitotalitario” — se há uma coisa como um total que seja somente metade do total. É imperativo esclarecer estes termos usados frouxa e indiscriminadamente. “Autorit|rio” refere-se à forma de governo, ao tipo e técnica de configuração política do poder. “Totalit|rio”, por outro lado, refere-se a um modo de vida, a fatores sociais. Isto implica que a esfera privada da vida do cidadão ou do sujeito individual está subordinada às políticas de interesse público do Estado ao ponto da obliteração. Um Estado totalitário é sempre um Estado autoritário; o controle totalitário da vida privada pode ser realizado somente por um comando autoritário. Mas um Estado autoritário não precisa de ser totalitário. O Brasil é um caso em questão. Nada está mais afastado da verdade do que a suposição de que a vida social no Brasil sob Vargas é totalitária no sentido preciso do sacrifício da esfera privada do indivíduo ao Leviatã do Estado. A vida privada, o direito privado, a família, os negócios, a recreação e as atividades culturais permanecem não afetados pelo regime sob a circunstância de que não obstruam políticas públicas. Qualquer influência que o Estado possa exercer em tais manifestações da vida privada somente toca a superfície. Se há qualquer coisa que é compartilhada pelo povo brasileiro é sua entranhada aversão a todas as formas da intrusão totalitária sobre sua privacidade (Loewenstein, 1942, p. 370).

O modelo de ordem política que Loewenstein percebe na organização

constitucional brasileira, a partir de 1937, é o de um Estado autoritário. O Brasil

sob Vargas, diferentemente dos Estados com uma organização totalitária ou

fascista da vida social, não criou nem voltou o aparato estatal para o controle da

esfera privada. A vida social dos indivíduos, seu cotidiano, sua cultura, suas

regras de convivência, em não estando subordinadas a controles e a políticas

públicas sofisticados o suficiente e centralizados, não poderiam ser classificadas

de totalitárias ou fascistas. Ainda: a própria decantação da legislação — sua

estabilidade e eficácia — dependia, em grande parte, de sua funcionalidade, isto

é, da capacidade de impor aceitação prática daqueles a quem se destinava. Nesse

sentido, como sustenta no trecho acima, o termo autoritarismo fica

exclusivamente vinculado { forma de governo, “ao tipo e técnica de configuraç~o

política do poder”. Apesar de Loewenstein lembrar que a estrutura jurídica do

Estado Novo poderia, facilmente, ser classificada de fascista, a maioria de sua

legislação não teria sido aplicada ipisis literis, sendo direcionada, quando

efetivada, contra uma pequena e dispersa oposição política, dominada por

remanescentes do movimento integralista e pela organização de fascistas e

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nacional-socialistas nas colônias italianas e alemãs (Idem, pp. 141 e ss; 155 e ss;

372).12

O regime do Estado Novo não destoaria, portanto, dos governos que se

estabeleceram pela América Latina, sob uma oligarquia dominante, como “uma

ditadura autoritária para a qual a teoria constitucional francesa cunhou o hábil

termo régime personnel” (Idem, p. 373). Usando uma interpretaç~o muito

próxima à de Azevedo Amaral – como se verá a seguir –, Loewenstein sustenta

que, como o golpe derivou de uma conciliação complexa de interesses — e

mesmo ideologias — geralmente divergentes, o nível de aceitação popular foi

suficiente para que se prescindisse dos instrumentos usuais de controle social

das ditaduras da época. A própria existência da Constituição, seguindo a tradição

do modelo de ditadura positivista delineado pelo castilhismo, resultaria em

reconhecimento de princípios básicos de conformação da comunidade política

que impedem a direção da vida privada.

Ao mesmo tempo em que alinha o regime estadonovista ao caudilhismo,

Loewenstein traça uma descrição pormenorizada da estrutura político-

administrativa do Estado Novo, utilizando como baliza os desdobramentos

institucionais de uma Constituiç~o “fantasma”, e cuja existência seria uma

“realidade virtual”. Na verdade Loewenstein localiza imediatamente a fonte da

organização institucional de um Estado que se moderniza sob o controle

centralizado de Vargas: os Decretos Legislativos do Poder Executivo. A

Constituição não representaria, assim, um poder direto na organização do

Estado Novo, embora tenha previsto e permitido a constante dilação do estado

de emergência, tenha funcionado no que respeita à legitimação do poder político

do Presidente e em relação à determinação dos direitos sociais — que a

equiparam, exclusivamente neste ponto (o capítulo “Da Ordem Econômica”, art.

12 Interpretações radicalmente diversas sobre a real interferência do aparelho repressivo do Estado Novo sobre os seus opositores são inúmeras. O importante, para os limites deste artigo, é marcar que a observação de Loewenstein sobre a realidade sociológica do Estado Novo, correta ou equivocada, serviu para que o autor diferenciasse funcionalmente o modelo de Estado fascista do modelo de Estado autoritário. A possibilidade de que esta conclusão do autor seja derivada de uma observação sociológica imprecisa ou equivocada reforça a tese do presente artigo de que a sua tipologia dos Estados pode ter se configurado à priori – por influência da leitura de Azevedo Amaral –, independentemente da realidade empírica estudada por Loewenstein.

Page 12: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

12

135 a 155), à Constituição de Weimar (Idem, pp. 49; 341). A questão, para o

autor, é que

Uma vez no poder, autocracias est~o pouco interessadas em “legalizarem-

se” por uma constituiç~o formal. Seu objetivo primordial é estabelecer o

maquinário de compulsão através do qual estarão aptas a manterem-se

no poder contra possíveis ataques de oponentes políticos e uma defecção

perigosa da opinião pública (Idem, p. 133).

Em seu livro sobre a estrutura jurídico-administrativa do Terceiro Reich,

Loewenstein já indicava que a eventual formalização de atos governamentais

através de legislação ou de regulações estatutárias muitas vezes se processa de

forma “intencionalmente equívoca” ou mesmo “desonesta, por razões

oportunistas”. O comum nos governos autocr|ticos da época, é que qualquer

formalização seja considerada limitante para o exercício arbitrário do poder

político. A modernização de um aparato burocrático, a organização de pelo

menos uma estrutura partidária, geralmente controlada pelo governo e

“medidas legislativas e administrativas para a ‘Defesa do Estado’” s~o as ações

que garantiriam, nesses casos, a manutenção do poder político, em especial, o

controle político dos Estados brasileiros pela cassação dos governadores e pela

instituição da estrutura burocrática capitaneada pelos interventores estaduais

(Idem, pp. 27-8; 133). 13

De qualquer sorte, Loewenstein identifica os elementos institucionais

que, no Brasil, possibilitaram uma diferenciação em relação aos modelos

13 Para o autor, o Estado Brasileiro inovou da duplicação do controle e da produção de regras da administração pública. A Constituição de 1937 previa a substituição dos Governadores eleitos que não tivessem seus mandatos confirmados pelo Presidente em 30 dias. Em seu lugar, eram nomeados os Interventores, administradores/políticos de confiança de Vargas. Segundo Loewenstein, o poder dos Interventores foi a expressão do domínio político através da confiança privada no Presidente, o que manteve em uma espécie de invisibilidade a ascendência das forças armadas e da polícia. Mas ao lado dos poderes de intervenção nos Estados, vigia as funções dos Presidentes Estaduais dos Departamentos Administrativos. Nomeados igualmente pelo Presidente, esses departamentos funcionavam como corpos legislativos e de supervisão dos Interventores e dos municípios. Os Presidentes dos Departamentos Administrativos fiscalizavam os atos dos Interventores e — com exceções importantes como Minas Gerais — tinham mais poderes que estes, que eram mais visíveis publicamente. Vale a citação que analisa esse sistema de duplo controle da administração implementado pelo Estado Novo. Para o autor, o sistema “Golpeia o observador estrangeiro como um dos mais originais e melhor organizados aspectos técnicos do Estado Novo, tão genuíno e bem sucedido em aproximação (quanto em qualquer lugar) ao Estado administrativo que em muitas partes do mundo toma lentamente a forma nas ruínas do Estado legislativo”. (Loewenstein, 1942, pp. 59-60; 66). O Decreto-Lei 1.202 de abril de 1939 regulamentava a atividade administrativa dos Interventores.

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13

“típicos” de ditaduras autorit|rias: a) houve a outorga de uma Constituiç~o no

momento do golpe de Estado; b) não permaneceu de pé sequer uma estrutura

partidária; c) o regime varguista instalou-se no poder com ampla aquiescência

pública e; d) dispensou, portanto, a construção de um aparato para moldar e

orientar a opinião pública para além do controle da imprensa. Restaram as

legislações de Defesa do Estado e de estímulo à nacionalidade e ao patriotismo,

como antídotos a atitudes contrárias à segurança do Estado. Chama essas

medidas de controle legislativo do extremismo político, isto é, a confecção

coordenada de medidas legislativas contra atividades consideradas

“subversivas”: a “legislaç~o emocional”, um conjunto de medidas destinadas a

conter manifestações políticas inspiradas no estrangeiro, de natureza

insurrecional (nacional socialismo, fascismo e falangismo) (Loewenstein, 1942,

p. 134 e ss.). Os focos definidos por esta legislação foram a imprensa escrita e as

comunidades estrangeiras instaladas no país.

A questão colocada — a avaliação, por Loewenstein, do regime varguista

enquanto ditadura autoritária —, é que o termo autoridade, no autor alemão,

abarca elementos que não transparecem, ou não são incluídos quando o mesmo

termo se coloca nos autores brasileiros — em especial, por Francisco Campos,

Oliveira Vianna e Azevedo Amaral. Se em Francisco Campos o regime defendido

é antiliberal, plebiscitário, cesarista e visa em tese uma sociedade massificada

(Cf. Santos, 2007), em Azevedo Amaral chamam atenção os instrumentos de

controle social e econômico da massa (sistema corporativo), idealizados para

cumprir exatamente o que esse autor evitava publicizar: o aparelhamento

político dos movimentos trabalhistas pela burocracia do Estado. Já Oliveira

Vianna, por outro lado, vê a democracia e a representação política vinculadas à

capacidade legislativa dos conselhos técnicos, que passam a figurar como

instituições centrais para a organização do Estado, no lugar do Parlamento (Cf.

Santos, 2010). Embora estes autores se refiram a um Estado autoritário, o termo

figura em todos eles como um adjetivo que representa, pura e simplesmente, a

fortificação da autoridade pública, como se verá a seguir.

Page 14: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

14

3. O conceito de Totalitarismo em Azevedo Amaral

Toda a abordagem teórica de Azevedo Amaral tem como estrutura

discursiva a comparação entre a realidade brasileira e a conjuntura ocidental.

Em se tratando de uma época em que a Europa está vivendo uma onda

autoritária, não surpreende que o objetivo maior de um autor antiliberal no

Brasil seja o de alinhar o país ao momento histórico presente. Assim, não é por

acaso que no livro O Brasil na crise atual (1934), Azevedo Amaral pretende

avaliar as conseqüências políticas, econômicas e sociais do processo de

“sincronismo” entre o desenvolvimento histórico brasileiro, “a marcha do

progresso brasileiro” e o “ritmo geral do mundo civilizado”. Para o autor, as

forças que determinam a vida social dos povos “evoluídos” est~o repercutindo

imediatamente na realidade nativa e não temos mais a possibilidade de

figurarmos como meros expectadores, numa situaç~o de transiç~o na qual “os

problemas brasileiros s~o os problemas mundiais” (Amaral, 1934, pp. 7 e ss.).

A partir desse confronto entre realidades diversas, porém

complementares, Azevedo Amaral almeja determinar a singularidade da

experiência brasileira, recuperando os fundamentos, princípios e condições de

plasmagem histórica e institucional do que chama de “personalidade nacional”.

Motiva-lhe a repercussão, na vida institucional pátria, da força das tendências

universais, preservando, no processo, a identidade da fisionomia nacional (Idem,

pp. 173 e ss.). Como vários autores da época, desaprova a resultante oligárquica

estimulada pelo federalismo da Constituição de 1891. O seu objetivo é identificar

quais elementos que, estimulados a emergir durante a Revolução de outubro de

1930, poderiam permitir a harmonização entre a forma institucional e política

do Estado Brasileiro com a “realidade nacional”, impedindo o “desmembramento

do Brasil”. O diagnóstico se coaduna com a tese do idealismo utópico de Oliveira

Vianna — as instituições políticas até então importadas da França, Inglaterra e

América do Norte não são adaptáveis à realidade da vida social nacional — na

sua crítica aos mecanismos e instituições da democracia liberal transplantados

para o Brasil pela Primeira República (Cf. Vianna, 1927). Para o autor, a unidade

territorial e política do país repousa sobre essa base precária, que demanda

superação urgente (Cf. Amaral, 1934, p. 199). Azevedo Amaral remete a questão

Page 15: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

15

do idealismo utópico não só ao período republicano, mas também ao momento

da Independência, tomado por ele como exemplo de “reação anti-nacionalista”:

Emancipamo-nos politicamente, afirmando a nossa soberania, mas ao mesmo tempo começamos a nos distanciar da trajetória normal do nosso desenvolvimento histórico, iludidos pela miragem dos modelos estranhos que uma pequena minoria culta ou semi-culta encarava como tipo de perfeição adaptável a todos os povos da terra. A este propósito não é inoportuno lembrar aqui que a elite intelectual (...) era toda mais ou menos influenciada pela ideologia francesa do século XVIII e comungava o credo de Rousseau sobre a perfectibilidade humana e era inclinada a não prestar atenção às peculiaridades de psiquismos nacionais, encarados como passos efêmeros no curso de uma progressiva fraternização dos homens (Amaral, 1934, p. 179).

Esse programa intelectual e político das elites brasileiras teria marcado,

na apreciação de Azevedo Amaral, a incorporação de uma filosofia da história

progressista de natureza artificial. O “intelectualismo europeizante” possuía,

assim — para além da “crosta de verniz europeu lançada pela classe dirigente ao

país” — um desdobramento institucional marcado pelo democratismo: ao lado

da independência política, a colonização espiritual gerou um modelo de Estado

dissonante com o “Brasil real”. Em livro anterior, Ensaios Brasileiros (1930), o

autor já criticara o sistema político liberal como sendo datado historicamente,

incitado pela articulação de um Estado laissez-faireano. Esse Estado neutro

estimularia privilégios dos grupos dominantes e seria incapaz de fazer frente ao

desenvolvimento das forças econômicas, tornando-se “órg~o quase inútil como

centro coordenador daquelas atividades” (Amaral, 1930, pp. 202 e ss.). O

resultado consistiria na ameaça constante do desmembramento.

3.1. A formação do Brasil e a necessidade de centralização política

Em se olhando para o processo de formação política do país desde a

situação colonial, o autor considera — já no seu livro de 1930 — a preocupação

da metrópole em manter a divisão territorial e populacional em unidades

administrativas distintas. A Província é organizada como um “compartimento

estanque” que desde sua formaç~o colabora para evitar a uni~o do Brasil e

manter o domínio de Portugal, pelo uso político que a Coroa portuguesa faz de

sua configuração burocrática e meramente administrativa (Amaral, 1930, pp.

Page 16: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

16

212 e ss.). Tal movimento de coordenação exterior da unidade provincial não só

evitou a formaç~o de vínculos que permitissem a “trama” de uma “nacionalidade

coesa”, como estimulou o “desenvolvimento de um particularismo regionalista”,

ou seja, a oligarquização. Em sentido diverso, a unidade infra-provincial, o

município, era autônomo politicamente e crítico das regras e limitações

administrativas emanadas de Portugal. Surgia naturalmente como unidade

política anti-portuguesa e, portanto, como célula de formação da nacionalidade

(Cf. Amaral, 1930, p. 214).14

Nesse momento da argumentação fica patente a proximidade do

diagnóstico relativo ao excessivo poder provincial, inaugurado por Paulino José

Soares de Souza, o Visconde do Uruguai, no seu Ensaio sobre o Direito

Administrativo (1862). Este aponta, já sob o Império, e exatamente como

Azevedo Amaral, a necessidade de que a Província esteja limitada às funções

administrativas e não políticas, questionando como problemática a extensão

política de suas atribuições.15 A crítica às interpretações equivocadas do Ato

Adicional de 1831 alinha Azevedo Amaral a este autor, mas o primeiro insiste

que depois da Constituiç~o de 1824 “o Brasil deixou de ser um Império unit|rio,

para transformar-se em uma virtual monarquia federativa” (Amaral, 1934, p.

217-8). Fica também claro que a análise realizada por Karl Loewenstein se nutre

desta avaliação profundamente arraigada na tradição intelectual brasileira: a

preponderância da burocracia sobre a política na coordenação dos órgãos

estaduais de governo, gerando submissão ao centro político, seja ultramarino,

seja o poder centralizado na União.

14 “Assim, o patriotismo brasileiro teve uma formaç~o caracteristicamente centrípeta, irradiando para a convergência de uma idéia nacional não das províncias que permanecem como simples divisões administrativas, mas dos municípios que são os núcleos ativos de uma consciência política gradualmente evoluída.” (Amaral, 1930, p. 214). 15 “Que tivesse o poder provincial faculdade para legislar sobre a nomeação e demissão de empregos provinciais e municipais relativos a objetos da competência das Assembléias Provinciais, nada mais justo e regular, e é essa a única inteligência razoável que pode ter o Ato Adicional [de 1831]. Entendeu-se porém que o poder provincial podia legislar sobre a criação, supressão e nomeação para empregos relativos a objetos da competência do poder geral, ao passo que este não podia, e com razão, legislar e nomear para empregos relativos a objetos da competência das Assembléias Provinciais. //Tal era a descentralização anárquica e desordenada que trouxe a inteligência que a opinião democrática exagerada daqueles tempos dava ao Ato Adicional. Cortava, cerceava, reduzia a nada a atribuição essencial e constitucional, conferida ao Poder Executivo pelo Art. 102, § 4, da Constituiç~o.” (Uruguai, 2002, p. 464).

Page 17: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

17

Se, para Azevedo Amaral, o Império consolida e aprofunda a

“europeizaç~o” do país e de suas elites, o movimento republicano nacionalista

que se insurge contra a “dinastia ultramarina” n~o evita o desvirtuamento do

sentimento nacional, em funç~o da “aç~o perturbadora” dos modelos

democr|ticos que lhes servem de inspiraç~o. A “press~o das aspirações

federalistas” impôs a sedimentação da situação administrativa que a

Constituição de 1891 só pôde fazer frente de forma tímida e limitada. Assim, o

problema posto pelo autor é o de definir até que ponto a eliminação do papel

político das Províncias e a elevação do protagonismo dos Municípios podem

evitar que o Brasil deixe de ser uma simples Confederação de Estados para se

consolidar como uma verdadeira União Federativa, nos moldes já experienciados

pelos EUA pelas mãos de James Madison. A solução passa, evidentemente, pela

centralização administrativa da Província, pela terminação dos seus elementos

de autonomia política e pelo controle político das regiões administrativas do

Brasil pela União.

O programa político de afirmação da autoridade nacional passa a ser, no

autor, um programa de enfeixamento dos poderes do Estado nas mãos do

Executivo. Depende, em Azevedo Amaral, não só do município, mas do processo

de centralização política que se vincula ao desenvolvimento histórico das nações

européias. Para ele, esta situação era negada historicamente pela realidade

brasileira até mesmo sob a Constituição de 1934, a qual repetiria os postulados

da Constituiç~o de 1824: “Subsiste uma estrutura de entidades hier|rquicas — o

Município, a Província e a Nação — a cada uma das quais cabem

promiscuamente funções políticas e administrativas” (Amaral, 1934, p. 222).16

16 Note-se que Azevedo Amaral aparentemente destoa, na sua crítica à europeização das elites imperiais, de autores comumente alinhados à tradição que vê na centralização política do Estado brasileiro o leitmotiv da civilização e da construção da solidariedade nacional, do espaço público na sociedade, evitando a dissolução do Brasil em uma miríade de repúblicas caudilhescas. Ressalte-se, no entanto, o objetivo político nuclear de Azevedo Amaral, que certamente é o de centralização política. Assim, o próprio Visconde do Uruguai, bem como Tavares Bastos, Oliveira Vianna, dentre outros, recuperam o Império como o momento histórico que consolida a superação do privatismo e dos interesses oligárquicos. Apesar de uma distinção situacional, que indica a recepção das elites dos ideais demo liberais, Azevedo Amaral pode ser alinhado, inclusive, ao diagnóstico posterior de um Florestan Fernandes, para quem, em leitura de Luiz Werneck Vianna: “O processo de diferenciaç~o dos interesses entre colônia e metrópole, de onde surgira o espírito nativista e a adesão ao liberalismo dos homens que realizaram a Independência, teria importado uma forma particular de internalização da ideologia liberal, em

Page 18: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

18

A Revolução de 1930 tem precisamente o papel de recuperar essa

inteligência e operar a consolidação do Município como núcleo unificador de

onde provém a “consciência homogênea da nacionalidade” (Amaral, 1934, p.

226). E, estabelecido deste modo o problema, cabe então determinar a

identidade histórica entre o Brasil e a Europa na conformação da unidade

nacional. Para este fim ressalta-se, em síntese, a oposição que Azevedo Amaral

estabelece entre Estado Político (democracia liberal) e Estado Técnico (Estado

Administrativo ou Ditadura). É na generalização teórica produzida no começo do

livro que o autor analisa as formas tomadas pelos Estados contemporâneos —

em especial, o modelo autocrático e os fenômenos sociológicos e políticos a ele

subjacentes —, e as alinha através de uma filosofia da história. Para ele, a

configuração política do ocidente está determinada pela prevalência de

princípios intelectuais orientadores da ação humana, condensados em sistemas

doutrinários que se sucedem no tempo histórico. Duas correntes

caracterizariam, assim, a passagem do século XIX para o século XX, dando origem

a modelos de Estado, atitudes práticas e a pontos de vista diferenciados: o

evolucionismo (ou conservantismo) e o revolucionismo (ou progressismo).

3.2. Revolução e decadência das instituições políticas liberais

O evolucionismo, calcado nos ideais biologicistas do século XIX,

representaria o juízo ilusório de uma continuidade homogênea do tempo

histórico e das relações humanas, redundando num desenvolvimento social de

natureza dialética e progressiva (Hegel). Já o revolucionismo, que se consolidaria

na segunda década do século XX, configurar-se-ia por uma ideologia

revolucionária, que concebe a ação social como criadora e transformadora,

marcando o caráter descontínuo do avanço social (Sorel) e dos períodos

históricos propriamente ditos (Spengler). Para o autor, tanto o evolucionismo

quanto o revolucionismo apresentam uma orientação intelectual, uma avaliação

institucional e uma concepção política orientadora da ação social. Esses três

elementos que compõem ambos os sistemas doutrinários apontam, na passagem

que ela viria a expressar mais os anseios ‘de emancipaç~o dos estamentos senhoriais da 'tutela colonial'’ do que os de ‘emancipaç~o nacional’” (Vianna, 1999).

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19

histórica de um a outro, um padrão específico de Estado. Assim, a prevalência da

ideologia revolucionista no século XX permite compreender os fundamentos da

consolidaç~o de um modelo de “Estado onipotente”, que concentra poder

político, questiona os fundamentos do governo representativo e se manifesta

como autoridade discricionária cujo horizonte de sentido pode ser a violência.

Azevedo Amaral argumenta que, após a experiência da 1ª Guerra

Mundial, países como França e Inglaterra estavam “desembaraçados para o

exercício de uma ditadura, cuja autoridade se foi acentuando à medida que os

problemas militares e diplom|ticos se tornavam mais complexos e difíceis”.

Nesse sentido, a realidade da administração ditatorial, que durante a Guerra era

considerada excepcional e extrema, foi se acomodando ao espírito de renovação,

rompendo, portanto, com a experiência advinda da tradição, especialmente no

que concerne à estrutura político-administrativa organizada segundo os moldes

da democracia liberal. O Estado moderno, reproduzindo um jurisdicismo

originariamente feudal, estava interessado apenas em garantir vantagens e

privilégios da classe burguesa, colocando em segunda ordem a organização da

vida social. No entanto, a partir da experiência das mobilizações militares de

massa, da importância social adquirida pelas classes trabalhadoras, dos conflitos

que envolviam “uma intensificaç~o geral de todas as atividades sociais”, houve a

necessidade dram|tica “de substituir o Estado político pelo Estado técnico”,

caminho esse que, “n~o se opera por uma evoluç~o imperceptível, mas pela

substituição brusca de processos e de instrumentos que novas descobertas e

inventos vêm tornar obsoletos” (Amaral, 1934, pp. 46 e ss.).

No limite, o problema em relação aos processos de natureza

revolucionária — que geram transformações bruscas — é a ausência de

orientação doutrinária de caráter racional. O conceito de revolução, ao contrário

do que compreende o senso comum — continua a argumentar o autor — não

tem direç~o preordenada, sendo uma manifestaç~o “passional”, uma “reaç~o das

forças ininteligentes do subconsciente coletivo” na direç~o da destruiç~o das

“organizações sociais e políticas obsoletas, dentro de cujas configurações n~o

seria mais possível conter um estado de alma coletivo”. É esse, inclusive, o

diagnóstico dele em relação aos desdobramentos imediatos da Revolução de

Page 20: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

20

outubro de 1930. Pelo fato de que as massas não traduziriam no interior desse

movimento revolucionário uma capacidade de ação deliberada, Azevedo Amaral

entende — numa espécie de crítica à idéia de que as lideranças desses

movimentos apenas repetiriam as suas tendências, não sendo então

propriamente chefes, mas “expoentes” — a prevalência do domínio intelectual

das elites. Assim, o processo revolucionário, intrinsecamente irracional, é

estimulado de fora pelo interesse calculado dos pequenos grupos, sem

identidade com o psiquismo popular.17 A partir dessa avaliação, o autor define o

seu conceito de revolução, base a partir da qual passará a analisar o movimento

histórico de consolidação dos Estados totalitários:

Impõe-se, portanto, preliminarmente, uma diferenciação rigorosa entre verdadeiras revoluções, que são movimentos de natureza essencialmente construtora nos quais se traduz a realização prática de uma elaboração ideológica, processada por uma minoria em geral muito pequena de indivíduos privilegiados, que traçam novos rumos ao desenvolvimento sociogênico e impõem pela ação da sua vontade de domínio às massas uma atitude de rebeldia contra a ordem existente, vindo a demoli-la por este meio e lançar ulteriormente com a cooperação passiva e mais ou menos dócil das multidões os alicerces de uma nova estrutura política e social, e os simples movimentos insurrecionais de caráter exclusivamente popular, que em geral pouco destroem e nunca edificam novas formas de existência coletiva (Idem, p. 59).

Este diagnóstico severo em relação à esterilidade dos movimentos

populares marca indelevelmente o elitismo de Azevedo Amaral e o alinha com

um conjunto de autores da época claramente simpáticos aos movimentos

políticos coordenados “por cima”. Nesses termos, considera que o conceito de

revoluç~o n~o deve ser associado necessariamente { idéia de “expans~o do

poder das multidões”, mas sim a que reforça o “predomínio das minorias

superiores”. A sua conclus~o, dado o argumento acima, é que “a ascendência do

17 “As massas, embora contendo em si em estado potencial as energias passionais da sociedade, caracterizam-se por uma inércia psíquica, que as condena a permanecerem indefinidamente em posição de equilíbrio espiritual estável, do qual espontaneamente apenas se afastam momentaneamente sob a influência de estímulos instintivos, para retornarem a ele imediatamente após uma série de oscilações de pequena amplitude e sem consequências sobre a estrutura geral da sociedade. Para que as forças passionais potencialmente contidas nas massas se expandam em tempestades violentas e capazes de subverter a ordem estabelecida na sociedade, é preciso que sobre elas se exerça a ação deflagradora da inteligência e da vontade de domínio, que só se encontram como elementos do psiquismo das minorias, que em tempos normais constituem os grupos privilegiados e dirigentes das coletividades.” (Amaral, 1934, p, 56.).

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poder político das massas n~o passa de uma ilus~o”. Para Azevedo Amaral, as

democracias legam às massas trabalhadoras um poder político usualmente

equiparado às sociedades tradicionais e quando são revolucionariamente

alteradas, essas sociedades modernas restringem radicalmente o acesso às

questões políticas da maioria da população, relegando as decisões fundamentais

a oligarquias diminutas e sem vínculo com a tradição. Quanto mais radical é a

revolução social, tanto menos direito às decisões políticas têm as massas (Cf.

Amaral, 1934, pp. 63 e ss.).

A ascensão do modelo de Estado Técnico na Europa demonstra, para o

autor, que o desdobramento revolucionário representa a oligarquização do

poder político e, portanto, a conformação de uma autoridade discricionária.

Rússia e Alemanha, diferentemente da Itália, trariam a característica mais

desenvolvida desse novo espécime político. Vale a citação:

As finalidades traçadas pelo gênio de Lênin à revolução russa envolviam, como postulado fundamental da gigantesca transformação nacional, concebida pelo formidável estadista, a organização de um Estado que estendesse as suas atividades a todos os aspectos da vida coletiva e cuja direção fosse centralizada em um aparelho inequivocamente autocrático (Idem, p. 73).

É indelével a vinculação de uma autocracia que irá se denominar

totalitária à influência do marxismo. O individualismo liberal será oposto ao

coletivismo, { subordinaç~o do indivíduo ao todo social, “consciência coletiva

dominadora e ditatorial”, conforme o diagnóstico de Karl Marx trazido pelo

autor. O coletivismo da teoria marxiana, segundo ele, não encontra reflexo

concreto na realidade russa. Ali prevalece o controle político da elite partidária,

dominada pela “personalidade única de Lênin” (Amaral, 1934, p. 100-1).

Azevedo Amaral não só antecipa o conflito mundial, mas também caracteriza

Rússia, Alemanha, Japão e Itália como países organizados de forma totalitária. Os

alinha, em termos de perspectiva política, contra as nações responsáveis pela

manutenção de um projeto econômico ainda centrado no indivíduo. Entretanto,

não avança na formulação de uma análise que explicite a idéia de uma política

calcada na eliminação da espontaneidade. Tal movimento teórico virá, no

entanto, de forma indelével, pouco tempo depois, no seu livro de maior

repercussão, O Estado autoritário e a realidade nacional (1938).

Page 22: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

22

No que concerne à inserção da dinâmica brasileira no cenário

internacional, nota Azevedo Amaral a expansão sem limites das prerrogativas do

Poder Executivo, a ponto do mesmo solapar completamente, no final da Primeira

República, a autoridade e as funções do Poder Legislativo. O autor aponta o

processo de delegação legislativa como uma característica importada pelo

Estado brasileiro do exemplo dos países centrais (Amaral, 1938, pp. 72 e ss.). A

falta de orientação ideológica e de programa político definido fizeram com que

as correntes revolucionárias de 1930 ficassem abertas à influência do exterior.

Patentearam-se, assim, a absorç~o do “exemplo russo, como o caso do fascismo

italiano”. Mais uma vez, como j| indicara anteriormente, os revolucion|rios de

1930 demonstravam a sua debilidade em termos de afirmação da nacionalidade,

sucumbindo à europeização (Idem, p. 83). Não haveria possibilidade de

sustentar nenhuma revolução meramente por elementos políticos — como

estava acontecendo por aqui —, sem que esta se transformasse em revolução de

natureza econômica e social.

Como mais um exemplo das revoluções pátrias, o caso de outubro de

1930 teria mostrado que os revolucionários não tiveram nenhuma dificuldade

em derrubar o regime anterior, que caiu decomposto depois de se arrastar

“patenteando os mais inequívocos sinais de avançada senilidade” (Amaral, 1938,

p. 105). A orientação difusa das forças revolucionárias se articulou em torno da

idéia segundo a qual o Estado deveria ser governado de forma impessoal. Essa

teoria de combate ao personalismo, sustentada desde cedo pela Aliança Liberal

— num reforço retórico ao regime democrático — não tinha, segundo o autor,

uma conformação prática palpável, sendo previsível o resultado contrário,

tendo-se em vista a forte personalidade do chefe do governo provisório:

O advento do novo regime, que havia sido anunciado como tendo por finalidade precípua o combate ao personalismo, caracterizou-se logo pela concentração da política nacional na pessoa do ditador civil, investido de ilimitado poder discricionário (Amaral, 1938, p. 115).

Esse movimento de consolidação de uma feição ditatorial do governo

provisório era espontâneo, no entender do autor, tendo em vista a harmonização

entre o perfil pessoal de Getúlio Vargas e a natureza excepcional dos problemas

surgidos da revolução. Liga ele os fatos de outubro de 1930 ao processo

Page 23: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

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autêntico de evolução histórica da nacionalidade brasileira. A discricionariedade

do poder político de Vargas casava, portanto, com a necessidade de controlar a

sedimentação do novo regime, no refrear dos extremismos e implantando o

velho conservar mudando.18 A escolha de Vargas, no processo de acirramento

ideológico que antecede o golpe de 10 de novembro de 1937, é a implantação de

uma “nova ordem baseada nas realidades do meio brasileiro” e capaz de salvar a

nação dos extremismos fascista e soviético (Cf. Amaral, 1938, p. 139 e pp. 156 e

ss.).

3.3. Autoritarismo, Totalitarismo e fascismo

É nesse momento que o autor começa a delinear a sua avaliação do

conceito de Estado Totalitário e, conseqüentemente, de totalitarismo. O faz,

portanto, em antagonismo com o desdobramento político do Estado brasileiro

sob Vargas, o qual denomina de Estado autoritário — inclusive, com o mesmo

sentido da comparação feita posteriormente por Loewenstein, como se verá a

seguir. O motivo da oposição entre o modelo brasileiro e os demais é a

submersão do integralismo fascista e bolchevista num Estado caracterizado

como “órg~o de express~o” e “instrumento de atuaç~o da vontade ditatorial” do

grupo social dominante. Tanto a Rússia comunista quanto a Itália de Mussolini

são governos de classe, ditaduras nas quais, nos dois casos,

O conceito de Estado totalitário aparece como expressão inequívoca da compressão das iniciativas e da liberdade do indivíduo pela força coercitiva de uma organização estatal absorvente e que se torna a única razão de ser da própria nacionalidade (Amaral, 1938, p. 160).

A definição de Azevedo Amaral de totalitarismo flerta diretamente com a

idéia de subsunção do indivíduo à atividade estatal, mesmo que aparentemente a

questão possa estar restrita à capacidade individual para atuar na economia.

Entretanto, quando determina que o Estado torna-se a razão da nacionalidade,

abre semanticamente a possibilidade de se interpretar de forma mais elástica o

18 “Benito Mussolini exprimiu uma vez, de modo lapidar, essa miss~o do estadista revolucion|rio, dizendo que não bastava ter coragem para reformar, mas que era também preciso a coragem para conservar. (...) No caso da revolução brasileira de 1930, o ditador investido do poder discricionário viu-se defrontado por um problema muito mais complexo que a simples defesa dos elementos vitais da tradição nacional contra a onda renovadora a cuja impetuosidade era preciso opor os diques de um conservantismo construtor.” (Amaral, 1938, p. 117-8)

Page 24: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

24

conceito. De qualquer sorte, é a partir desta afirmação que ele concebe a

possibilidade de distinguir com clareza o modelo de Estado totalitário e do

Estado autoritário. O autoritarismo é compreendido como uma característica

intrínseca ao exercício do governo político, condiç~o para a atuaç~o “eficiente”

do Estado (Cf. Amaral, 1938, p. 166). Não haveria oposição, portanto, entre a

autoridade do Estado e a essência dos regimes democráticos — e democrático-

liberais, inclusive.19 O Estado autoritário caracterizar-se-ia pela capacidade de

demarcar “a esfera intangível de prerrogativas inalien|veis” dos indivíduos.

Nesse modelo de Estado distinguem-se, portanto, esfera pública e privada.20

Nesses termos, não é o elemento autoritário que determina a distinção dos

regimes fascista e bolchevista do regime do Estado Novo, mas o seu caráter

totalitário (Cf. Amaral, 1938, p. 170).

Assim, o Estado totalitário não é aquele que se imiscui somente na

organização da vida social e econômica — como, obviamente, era o caso do

Estado Novo, alicerçado na legitimidade formal das corporações profissionais,

caracteristicamente voltado para a intervenção na economia. Para Azevedo

Amaral, a questão eleva-se também ao plano “espiritual”, e a compress~o que um

Estado totalitário é capaz de produzir pode facilmente reduzir a coletividade

nacional “a uma massa de escravos”.21 O ponto nodal,

19 “Certamente os enxertos que se fizeram na doutrina da democracia, principalmente desde a revolução francesa, desvirtuaram e corromperam, no chamado regime democrático-liberal, o conceito da autoridade. Mas ainda sob a influência mais acentuada das correntes do liberalismo, a noção da autoridade governamental sobreviveu, afirmando-se de modo particularmente característico em todas as ocasiões de dificuldade política ou de sérios problemas nacionais.” (Amaral, 1938, p. 166). 20 A citaç~o completa é esclarecedora: “O Estado autorit|rio baseia-se na demarcação nítida entre aquilo que a coletividade social tem o direito de impor ao indivíduo, pela pressão da maquinaria estatal, e o que forma a esfera intangível de prerrogativas inalienáveis de cada ser humano Assim, enquanto o Estado fascista, igualando-se nesse ponto essencial ao Estado comunista, encara os indivíduos como meras unidades a serem, utilizadas na organização estatal como elementos destituídos de iniciativa e de liberdade, o Estado autoritário do tipo instituído entre nós pela Constituição de 10 de Novembro obriga apenas o cidadão a entregar-se à coletividade no que deve e não pode deixar de pertencer a ela, mas deixa-lhe intacta a órbita em que impera soberana a sua consciência pessoal e na qual se concentram os interesses especiais que só a ele dizem respeito.” (Amaral, 1938, p. 171-2). 21 “A diferença que daí decorre entre um Estado totalit|rio, fascista ou comunista, é um Estado autoritário é profunda e inconfundível. No primeiro caso, a coletividade nacional reduz-se a uma massa de escravos. Hitler há pouco exprimiu com admirável sinceridade esse ponto de vista, dizendo em um comício de lavradores alemães que o nacional-socialismo não visava fazer homens livres, mas apenas um Estado livre. Na Rússia e na Itália, Stalin e Mussolini, sem porem

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25

O que define o totalitarismo, no sentido peculiar que a essa expressão lhe deu o fascismo, não é portanto a extensão do poder estatal, mas a natureza compressiva, absorvente, aniquiladora da personalidade humana, que imprime às instituições fascistas um aspecto repelente, tornando-as tão incompatíveis com todos que prezam a dignidade do espírito. A submissão dócil à autoridade do Estado não repugna, nem pode repugnar aos indivíduos normais, que intuitivamente compreendem que um povo, para se transformar em uma nacionalidade, precisa organizar-se em uma estrutura hierárquica, cuja solidez e funcionamento eficiente exigem a atuação de uma autoridade capaz de tornar-se a força coordenadora e orientadora dos elementos que se justapõem na sociedade. Mas esse conceito do Estado autoritário, decorrente das condições naturais da plasmagem das sociedades, não envolve o aniquilamento da personalidade humana acarretado pelo totalitarismo fascista.

Configuração conceitual polêmica esta — ou seja, definição por

comparação negativa —, que Azevedo Amaral faz com o objetivo de questionar a

propalada identidade entre o regime corporativo da economia estadonovista e o

corporativismo fascista italiano. Como Oliveira Vianna, Azevedo Amaral vai

buscar a inspiração para a defesa do novo modelo econômico brasileiro nas

corporações medievais, fundadas na solidariedade econômica coletiva e

obliteradas por séculos, segundo ele, pela exacerbação do individualismo liberal

laissezfaireano (Cf. Amaral, 1938, p. 176-7). O objetivo aqui é demarcar a

distinção entre o modelo econômico pátrio e a origem conceitual do

totalitarismo, que vai encontrar a sua gênese no processo de expansão

capitalista de caráter internacional, isto é, na transformação da ação do capital

das forças humanas para “um plano de cooperaç~o corporativista, de que o trust

se tornou o órg~o característico”. Nesses termos, o “capitalismo corporativo” se

diferencia do corporativismo de Estado, pelo fato deste vincular-se à organização

sindical e à representação social dos interesses. O capitalismo corporativo, pelo

contrário, se desumaniza, exigindo das organizações políticas limites radicais

para a concorrência individualista, sujeitando a sociedade ao jugo da burocracia

totalitária (Cf. Amaral, 1938, pp. 180 e ss.).22

em palavras a coisa tão clara, têm, cada um pelos seus métodos peculiares, realizado na prática a fórmula do Führer germ}nico.” (Amaral, 1938, p. 172). 22 Idem, p. 180 e ss: “Na It|lia, a índole ditatorialista do sr. Mussolini e a fisionomia ultra-estatista da organização fascista inverteram o sentido do corporativismo. Em vez do Estado ser a expressão orgânica e dinâmica da nação, que nele atua através dos órgãos representativos das

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26

Assim, a origem do conceito de totalitarismo em Azevedo Amaral provém,

além da idéia de compressão da espontaneidade dos indivíduos, também das

distinções funcionais entre um corporativismo brasileiro de caráter

representativo, e corporações fascistas italianas, planificadoras e burocráticas.

Trata-se, aqui, de uma definição da dinâmica “org}nica” e “nacional” da

economia brasileira, em contraposição às feições nefastas e redutoras das

liberdades que teria tomado o capitalismo internacional, em especial na Europa.

O Estado autoritário nacional é para o autor, nesse sentido, perfeitamente apto a

ser considerado também uma democracia, dado o caráter representativo das

instituições corporativas nos moldes estabelecidos pela Constituição de 1937 e

dada a ampliação natural das funções estatais diante da realidade social e

econômica cambiante, segundo o autor (Cf. Amaral, 1938, pp. 180 e ss.).23 O

Estado autoritário surge, portanto, como um instrumento de realização das

aspirações nacionais e como um meio-termo entre os “conceitos extremos” de

Estado: o democrático liberal e o “totalit|rio, comunista ou fascista”. Essa

comparação entre modelos de Estado, embora mais detalhada e exata que a

realizada posteriormente por Karl Loewenstein em 1942, é precisamente a

mesma.

Azevedo Amaral tinha claramente a necessidade retórica de determinar

as diferenças entre o Estado Novo e os Estados totalitários. Tinha por objetivo

afastar as volumosas críticas segundo as quais Getúlio Vargas estaria

fascistizando o Brasil. Não havia ainda a pressão internacional que os Estados

suas atividades econômicas e espirituais, torna-se a única realidade o propulsor exclusivo do dinamismo nacional, que é apenas um reflexo da vontade despótica do detentor da maquinaria estatal. O sindicato não é o núcleo donde promana para o Estado a energia da vontade nacional. E apenas um tentáculo burocrático, por meio do qual o Estado exerce o seu poder arbitrário dos múltiplos setores da nacionalidade comprimida e asfixiada nas malhas da organização totalit|ria.”. Mais adiante, afirma: “Realmente, o que caracteriza a organizaç~o econômica do Estado totalitário é o postulado da negação implícita do direito dos indivíduos ou dos grupos formados na sociedade a desenvolver qualquer forma de atividade produtora fora da órbita traçada pelo Estado. Em uma sociedade submetida ao comunismo ou ao fascismo, toda a atividade econômica pertence virtualmente ao Estado e o que é deixado como campo da ação individual o é a título precário. De fato, as liberdades concedidas ao indivíduo e às organizações privadas representam apenas uma tolerância, uma situação transitória admitida como conseqüência da incapacidade temporária do Estado de ocupar-se diretamente daquele setor particular da economia.”. Idem, p. 216. 23 Sobre o conceito antiliberal de democracia no constitucionalismo do Estado Novo, ver Santos, 2007.

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27

Unidos da América iriam fazer em 1942 para definir o alinhamento do país no

conflito mundial. A pressão era exercida no sentido de afastar o governo Vargas

dos extremismos do integralismo e do comunismo. E é com este objetivo em

mente que Azevedo Amaral vai esposar os argumentos que delimitam as

diferenças fundamentais do Estado autoritário em relação às alternativas

radicalizadas da Europa.

O argumento definitivo, para ele o mais impactante, certamente foi a

questão da liberdade individual. A autonomia do indivíduo, mesmo sob a

autoridade do Estado Novo, deveria ficar claramente garantida na interpretação

da Constituição de 10 de novembro de 1937, realizada pelo autor no livro O

Estado autoritário e a realidade nacional. É por isso que não soa artificial ou

espantoso o desenvolvimento do argumento, que certamente sofistica

incrivelmente a conceituação do totalitarismo, ligando-o inclusive à dimensão

econômica, de forma semelhante às análises dos pesquisadores da Escola de

Frankfurt nos anos 30 na Alemanha, embora considerando que o que é contexto

local dos autores lá signifique, aqui, uma realidade universal. Este fato estende

automaticamente a possibilidade de transmissão e amplificação do conceito a

experiências políticas diversas. Vale à pena a transcrição dos trechos nodais do

conceito de totalitarismo no autor afim de que se perceba a consciência do

mesmo de todos os desdobramentos de uma realidade política e social

totalitária, muito antes da mesma se tornar clara — nas dimensões estabelecidas

por Azevedo Amaral —, inclusive para os intelectuais europeus. Ante o exposto,

o texto basta-se por si só:

Dentro de uma organização totalitária de qualquer daqueles dois tipos [fascista e bolchevista], o equilíbrio político e a ordem social dependem implicitamente da subalternização completa dos componentes individuais da sociedade ao ritmo ditado pelo interesse coletivo e cuja manutenção invariável constitui a suprema finalidade do aparelho estatal. (...) No totalitarismo bolchevista ou fascista, não surge nem pode surgir o problema da liberdade individual. O Estado dirige a Nação e atende a tudo que aparece no seu dinamismo, obedecendo apenas às injunções de uma consciência coletiva cuja existência é teoricamente postulada e cujas expressões perceptíveis se traduzem através do pensamento, das emoções, das aspirações e das tendências do indivíduo ou indivíduos que exclusivamente no momento personificam a organização estatal. Se é

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28

certo que na prática uma atenuação relativa desse ponto de vista fundamental tem forçosamente de ocorrer sob a pressão irresistível das realidades da natureza humana, que contradizem violentamente esse conceito extremo do absolutismo estatal, em teoria, pelo menos, o que dissemos corresponde ao conceito ideológico do Estado totalitário. Na Rússia Soviética e na Itália Fascista — formas gêmeas em que se polariza a idéia totalitária — o ditador, como personificação do organismo estatal, tem virtualmente o monopólio da liberdade. Dele, e somente dele, promanam as volições que movimentam as engrenagens da maquinaria governamental e, através destas, irradiam, como tentáculos compressores, sobre cada indivíduo integrado no corpo social. Qualquer divergência do ritmo imposto por essa vontade dominadora envolve uma rebeldia pessoal contra o funcionamento predeterminado do sistema orgânico da nação (Amaral, 1938, p. 276-7). (...) Nos regimes totalitaristas, o Estado assume a posição de entidade monopolizadora, não apenas de todas as iniciativas políticas, econômicas e sociais, como também do privilégio de organizar, manter e dirigir as atividades espirituais da Nação. O pensamento torna-se uma função estatal nos regimes totalitários. Está, portanto, na lógica da ideologia dessas organizações determinar os limites além dos quais o indivíduo não pode ir, no exercício das prerrogativas do espírito. Não dispondo de meios para perseguir os refratários à disciplina espiritual, dentro do reduto inexpugnável da consciência de cada um, o Estado totalitário impede a irradiação das idéias que julga inconvenientes comprimindo todas as manifestações do pensamento e submetendo as que tolera a um processo rigoroso de vigilância e censura. Isto, ninguém ignora, é o que se passa na Rússia Soviética, na Itália fascista e na Alemanha nazista, para não citar imitadores secundários e terciários do totalitarismo (Amaral, 1938, p. 296). Não só a liberdade física, cultural e econômica são obliteradas, mas em

especial, a liberdade de pensamento. O Estado totalitário realiza este processo

de compressão das identidades eliminando o processo de representação

político-econômica corporativa, vinculado aos sindicatos profissionais (Cf.

Amaral, 1938, p. 179). Ao se concluir a apresentação das idéias centrais que

compõem a construção do conceito de totalitarismo e a distinção entre Estado

totalitário e Estado autoritário na obra de Azevedo Amaral nota-se a clara

identidade entre esta análise e a conceituação e as distinções produzidas anos

depois pelo jurista alemão Karl Loewenstein, menos no que respeita ao

detalhamento das questões econômicas e mais no que concerne ao

esfacelamento da distinção entre espaço público e espaço privado. Já em 1938,

Page 29: SANTOS, Rogerio Dultra Dos. O Conceito de Totalitarismo Em Azevedo Amaral Final

29

Azevedo Amaral não se furta em descer aos detalhes e avaliar detidamente as

características do sistema intelectual e institucional do totalitarismo e os seus

desdobramentos na vida cotidiana no que concerne à perda da liberdade.

Loewenstein, em contato direto com a intelectualidade nativa achou

pronta e acabada no Brasil não só a análise sobre a realidade política brasileira

do Estado Novo mas os motivos teóricos, políticos e constitucionais do não

alinhamento do Brasil às potências do Eixo. Como se disse acima, na sua missão

ao Brasil ele tinha por dever de ofício exatamente a necessidade de produzir

uma avaliação sobre o alinhamento internacional do país para as agências de

Estado norte-americanas. Loewenstein tinha apenas alguns meses para produzir

um resultado consistente o suficiente sobre o perfil e as intenções políticas dos

dirigentes brasileiros para informar as autoridades dos EUA. Enviesada ou não

— a existência de viés utilizada como desculpa para não utilizar Azevedo Amaral

como fonte declarada —, a obra O Estado autoritário e a realidade nacional

apontava com clareza para as mesmas conclusões que chegou Loewenstein no

seu relatório final. No último tópico do livro Brasil sob Vargas, denominado Os

Estados Unidos e o Brasil, escrito logo após o país declarar adesão às Nações

Unidas, Loewenstein conclui que Vargas fora bem sucedido em navegar entre as

trevas do totalitarismo e o mar profundo da desintegração dos partidos, ameaças

constantes das democracias de massa. Sua escolha pelo alinhamento do Brasil

com os estados Unidos reforçava, então, uma longa tradição de amizade, além de

garantir a posição militar estratégica dos EUA na base de Natal e afiançar a

solidariedade do hemisfério sul através da afirmação de um modo de vida

comum. Em resumo, o constitucionalista alemão, sem lançar mão de argumentos

substancialmente diversos dos já esposados por Azevedo Amaral, assevera por

fim ser a posição do Brasil a de um alinhamento substantivo e não efêmero às

Forças Aliadas.24

24 “Depois de muitas mudanças na política, o que às vezes levantou dúvidas substanciais sobre

onde o regime giraria ultimamente, Vargas alinhou seu país com os Estados Unidos na luta

contra a dominação totalitária do mundo.” (Loewenstein, 1942, p. 371-2).

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4. O conceito de Ditadura Totalitária em Franz Neumann

Se a construção teórica de Karl Loewenstein centra foco nas

características estritamente jurídico-políticas da distinção entre Estados

autoritários, fascistas e totalitários, o que destoa da complexidade do tema

quando desenvolvido por Azevedo Amaral, outros autores, na mesma época

compreenderam perfeitamente a necessidade de se alinhar o fenômeno de

mutação político-institucional à abordagem econômica. O jurista e cientista

político Franz Neumann (1900-1954), da geração fundadora do Instituto de

Pesquisas Sociais, também conhecido como “Escola de Frankfurt” foi o

responsável por uma das primeiras e mais contundentes avaliações do

fenômeno nazi-fascista na Alemanha. Em seu livro Behemoth: estrutura e prática

do nacional-socialismo (1942) estabeleceu de forma crítica os fundamentos

políticos, doutrin|rios, sociais e econômicos do que chamou de “capitalismo

monopolista totalit|rio”, num sentido muito próximo da idéia de corporativismo

capitalista de Azevedo Amaral. Foi, igualmente, um incisivo crítico das reformas

constitucionais que acabaram levando a Alemanha ao jugo de Hitler. Os estudos

deste autor não só esclarecem o processo de erosão das instituições econômico-

jurídico-políticas da democracia de Weimar, como também exteriorizam uma

sofisticada explicação das características das ditaduras totalitárias em

comparação com outras formas de regimes de natureza autocrática.

Segundo Franz Neumann, num dos primeiros textos de avaliação crítica

sobre o definhar de Weimar, A Decadência da democracia alemã (1933), a

situação política de um sistema constitucional que balançava entre liberalismo e

socialismo era a de um equilíbrio tênue. A democracia coletivista que havia

implantado os direitos trabalhistas não chegou a criar um Estado corporativo

porque o poder político pertencia exclusivamente ao Parlamento. O poder não

era, portanto, dividido com partidos ou sindicatos que, aliás, não estavam

subordinados legalmente ao Estado, já que o Conselho Econômico Nacional não

participava da legislação. A aparente trégua na luta de classes através da

incorporação de direitos sociais na Constituição, combinados com uma estrutura

liberal, devia-se ao fato de o objetivo político primordial do Reich ser “evitar o

bolchevismo”. Enquanto perdurava a situaç~o de estabilidade econômica, o

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31

sistema capitalista poderia suportar em silêncio o conjunto de direitos sociais

reconhecidos e implementados através da Constituição de 1919. Quando os

lucros começaram a escassear, o movimento contra a organização social do

trabalho — que originalmente havia sido criada a fim de abafar as reivindicações

socialistas e comunistas — intensificou-se. O alvo passou a ser o sistema

democrático liberal-parlamentar que, em funcionamento, representava a

“plataforma da emancipaç~o trabalhista” (Cf. Neumann, 1996, pp. 29-43).

Para Neumann, havia um problema na estrutura constitucional que

ajudou a enterrar rapidamente a República de Weimar num governo com

poderes concentrados no Executivo. Enquanto a Constituição garantia a

existência de inúmeros direitos sociais, que necessitavam da imediata e às vezes

constante regulamentação, o Parlamento, desenhado nos moldes do liberalismo,

não desenvolveu — nos anos da República — uma dinâmica eficaz em sua

prática legislativa. A conseqüência foi o rápido deslocamento da competência de

regulamentação legislativa para o Gabinete de Ministros, vinculado ao Executivo,

e a auto-limitação do Parlamento, que passou a legislar exclusivamente sobre

princípios gerais, “deixando a sua aplicaç~o para os ministros

(Blankettgesetze)”.25 Um enorme poder foi transferido, portanto, para instâncias

burocráticas vinculadas ao Poder Executivo o que, no entender de Neumann: a)

fragilizou o controle parlamentar da produção legislativa; b) eliminou a

dissidência política dentro do parlamento (a formação do Gabinete era de

coalizão); e c) deu um status de governo de fato à burocracia.

Tanto na configuração dos poderes emergenciais contidos originalmente

no art. 48 da Constituição de Weimar, quanto nos derivados da incapacidade

política e legislativa do Parlamento em operar sob uma situação de aguda crise

política, “o desejo por um executivo forte e a demanda por poderes de

emergência adequados eram, ent~o, dois elementos para o mesmo problema”

(Rossiter, 1963, p. 35). Tratava-se da necessidade genética da República de

resolver suas aporias através de um sistema jurídico que incorporasse e

25 O termo Blankettgesetze significa norma em branco, ou seja, uma norma que necessita ser preenchida com o conteúdo de outra para adquirir sentido e ter aplicação. No caso, o Executivo passou a se encarregar administrativamente do problema, numa corrupção gritante do princípio de divisão dos poderes (Cf. Neumann, 1996, p. 35).

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legitimasse medidas de natureza emergencial. Um movimento constitucional

antiliberal, capitaneado por Carl Schmitt, passou a suprir com doutrina uma

necessidade que remontava ao Império Prussiano e ao seu paradigmático estado

de guerra (Kriegszustand).

A força da interpretação schmittiana do art. 48 da Constituição de

Weimar, relativa ao estado de emergência — condicionado pelas características

do estado de guerra prussiano — está em sua capacidade de permitir a

reconfiguração completa do modelo de governo sob a égide de uma mesma

Constituição. Como a maioria dos modelos legislativos de estado de guerra, de

beliger}ncia, de emergência ou de “comoç~o intestina”, o art. 68 da Constituiç~o

Imperial Prussiana, em oposição aos inúmeros limites atribuídos pela clássica

legislação liberal do estado de sítio, era uma autorização de fato ilimitada para o

exercício antiliberal do poder político. As indefinições temporal, espacial e

material de uma declaração de guerra deixam a seu promotor a liberdade de

utilizá-la da maneira que melhor entender. Esta fórmula, claramente distanciada

da idéia de norma jurídica de corte liberal, foi a inspiração dos parlamentares

alemães em geral, e de Hugo Preuss em especial, para contornar a crise pela qual

passava a Alemanha à época da reunião da assembléia constituinte weimariana,

em 1919. 26

A “republicanizaç~o” de um instituto imperial n~o conseguiu, contudo,

garantir a estabilidade econômica demandada pela situação crítica da Alemanha

derrotada após a 1ª Guerra Mundial. No momento em que o art. 48 da

Constituição de Weimar passou a ter como função dar ao Poder Executivo

competência legislativa, as novas responsabilidades constitucionais limitaram a

autonomia dos sindicatos que perderam, gradualmente, suas funções originais

por conta do processo de centralização política. As lideranças sindicais passaram

a representar os trabalhadores em um sem número de organismos estatais,

tornando-se politicamente fracas e dependentes de um Estado cada vez mais

26 “Art. 68. O Kaiser pode, se a segurança pública no território federal estiver ameaçada, declarar o estado de guerra em qualquer parte dele. Até a promulgação de um estatuto imperial regulando as condições, a forma de proclamação e os efeitos de tal declaração, as provisões que se aplicam s~o aquelas do estatuto Prussiano de 4 de Junho de 1851”. Nenhum estatuto imperial foi promulgado, e a lei de 1851 ficou valendo até o fim do Império (Cf. Rossiter, 1963, p. 36).

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fascistizado e corporativista. Segundo Neumann, a alternativa impossível era a

guerra civil. O Decreto de emergência, suspendendo indefinidamente os direitos

civis no começo de 1933, foi o fiat constitucional para a instauração de uma

ditadura que durou até 1945 (Cf. Neumann, 1996, p. 37-9).

Em resumo, para Neumann, conforme o seu artigo A Mudança da função

do direito na sociedade moderna (1937), essa estratégia jurídica de erosão dos

elementos democrático-liberais da Constituição de Weimar — em especial das

limitações formais e materiais para a instituição do estado de emergência —

surge na Alemanha como um programa de natureza conservadora. Configura-se

como uma necessidade política para restringir o poder do parlamento, que não

mais representa, no processo de formulação legislativa da República de Weimar,

os interesses do grande latifúndio, do capital, do exército e da burocracia. A

generalidade da lei, que sob a configuração de princípios gerais do direito passou

a ser — sob a influência teórica de Carl Schmitt — a única forma de expressão do

Parlamento, deslocou para a burocracia administrativa a regulação dos casos

concretos, transformando o Poder Executivo em gestor da livre concorrência e

em legislador de fato da ordem econômica e social. Para Neumann, a

Constituição de Weimar, sob esse influxo interpretativo, viu renascer

disfarçadamente um “direito natural que passa ent~o a exercer funções contra-

revolucion|rias” (Cf. Neumann, 1937, pp. 47 e 52-3). O autor resume as

conseqüências de tal abordagem jurídica indicando que

O período de 1918 a 1932 foi caracterizado pela quase universal aceitaç~o da doutrina da escola do “direito livre”, pela destruiç~o da racionalidade e calculabilidade do direito, pela restrição do sistema de contratos, pelo triunfo da idéia do comando sobre aquela do contrato e pela prevalência dos “princípios gerais” sobre normas jurídicas genuínas. Os “princípios gerais” transformaram todo o sistema jurídico. Mas a sua dependência numa ordem de valores extra-legal nega a racionalidade formal, gerando uma imensa quantidade de poder discricionário para o juiz e eliminando a linha de divisão entre o Judiciário e o Executivo, de modo que as decisões administrativas — isto é, decisões políticas — tomam a forma de decisões de cortes civis ordinárias (Idem, p. 54-5).

Essas transformações político-institucionais são interpretadas in totum

por Neumann no seu Behemoth, de 1942. Lá, critica a avaliação de Ernst

Fraenkel, segundo a qual a estrutura jurídica do Estado Nazista seria dual: de um

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lado, um conjunto de leis que representam o Estado Normativo, de outro, a

arbitrariedade e a violência do Estado de Prerrogativa (Cf. Fraenkel, 2006). Para

Neumann, esta dualidade simplesmente não existe. O Estado nacional-socialista

teria implodido o Estado Democrático de Direito em todas as suas facetas.27 Um

dos elementos que assevera a radicalização da distinção entre o Estado

Nacional-Socialista e outras realidades políticas e jurídicas é o papel sócio-

político e econômico da propaganda.

Para Neumann, a propaganda é um instrumento de violência que tira

proveito de um corpo social enfraquecido pela luta de classes, por antagonismos

raciais e religiosos e, no geral, pela política terrorista do regime, que transforma

a cultura em mercadorias negociáveis. A versatilidade e eficácia da propaganda

nazista — inalcançável numa democracia — deriva do seu descolamento

absoluto da verdade e, igualmente, pelo fato da cultura do regime ser destituída

de uma teoria política racional e, portanto, ser unicamente constituída de

impulsos publicitários (Cf. Neumann, 1942, pp. 356 e ss.). O resultado é que a

maioria absoluta da população pode ser reduzida a ferramentas controladas pela

propaganda. Derivando desses elementos outros objetivos políticos, a

propaganda, segundo o autor,

através da sincronização de todas as atividades culturais (...) submete o povo alemão a tensões incessantes. A insistência sobre o ativismo no lugar do pensamento significa que os homens podem nunca ter liberdade e tempo para pensarem por si sós. Ação sem pensamento só é possível se existe direção e controle da ação, com exceção de curtos períodos de espontaneidade genuína das massas (Idem, p. 358).

Neumann defende, assim, que a propaganda Nacional-Socialista é “a destruiç~o

do que quer que remanesça de espontaneidade”, além da incorporaç~o da maioria da

população numa espécie de super-máquina guiada pela providência, ou por uma força

irresistível da natureza, ou mesmo pelo destino, que levará a Alemanha à vitória

definitiva (Cf. Neumann, 1942, p. 358). Esta idéia de um Estado que, através da

27 Para Neumann, a lei, sob o nacional-socialismo, ao fim e ao cabo, é apenas uma manifestação política da vontade do Estado ou da comunidade, representada pelo Füher. Não garante a estabilização das expectativas nem a certeza jurídica, já que tudo que é manifesto na forma da lei é considerado justo, isto é, possível, eliminando a calculabilidade e racionalidade características do Estado de Direito, de um Estado limitado por lei e que funciona através da lei: a teoria do direito sob o Estado nazista é “nada mais que um arcanum dominationis, i. é, um meio para a estabilizaç~o do poder.” (Cf. Neumann, 1957, p. 58 e ss.).

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propaganda de massa leva 90% da população a uma situação de repetição mecânica de

sua vontade, gerando perda de espontaneidade, idéia que é central para o argumento

desse texto, Neumann a desenvolve a partir de Serge Chakotin, discípulo de Pavlov, que

a desenvolve no famoso Estupro das massas (1940).

Ao lado da propaganda, da manipulação intencional do domínio

carismático com o fito de submeter a população ao desespero e ao terror,

Neumann alinha no seu Behemoth um conjunto de elementos de natureza

política, social e econômica que fazem eco às análises desenvolvidas quatro anos

antes por Azevedo Amaral no Brasil no que respeita ao fenômeno do

totalitarismo.

5. Considerações Finais

Em Azevedo Amaral não é só possível identificar uma descrição precisa e

pormenorizada do fenômeno totalitário como também nesse autor se clarifica a

distinção entre totalitarismo — visto como a materialização orgânica do

fascismo e do comunismo — e o autoritarismo, entre a aniquilação radical da

individualidade e o que chama de organização nacional da autoridade. Garante-

se, com a prática do Estado autoritário — que identifica como sendo o Estado

Novo —, uma possibilidade de organização social em que a liberdade individual,

de natureza não-política, pode ser preservada sem atentar contra a segurança da

coletividade. Com a distinção entre espaço público e privado, a consciência

cívica, que derivaria de uma certa freqüência do processo de consulta popular,

sob bases plebiscitárias, dá origem a um tipo de legitimidade social que não

redunda em dissolução das individualidades, pois marcada pela identidade

laboral do sindicalismo corporativo-representativo.

Obviamente, Azevedo Amaral parte de uma concepção antiliberal de

democracia, considerando possível a subtração de direitos políticos — como o

de formação de partidos, o de sufrágio e o de representação política parlamentar

— sem que a nação perca, no seu entendimento, a capacidade de influenciar nos

destinos do país. Compartilhou esta perspectiva com os ideólogos centrais do

Estado Novo e funcionou como organizador dos argumentos que ajudaram a

justificar o regime. Seu papel fundamental, nesses termos, foi o de produzir um

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forte conjunto de argumentos que ajudaram a proteger — de forma mais ou

menos eficaz — a acusação de ser o Brasil sob Vargas um Estado totalitário ou

fascista. Tal objetivo pôde ser alcançado, em especial, no momento em que seus

textos serviram de base para que representantes diplomáticos — como o

próprio Loewenstein — entendessem ter o país uma configuração política que

não se afastava do modelo centralizador e não radicalizado de lugares como

Estados Unidos da América e Inglaterra, inclusive. Assim, apesar dos protestos

de vários intelectuais contrários ao regime, o Estado Novo conseguiu se firmar

frente à comunidade internacional como uma ditadura “democr|tica” nos

moldes antiliberais, como Estado autoritário que paradoxalmente preservou o

espaço da iniciativa privada e permitiu o desenvolvimento do processo de

industrialização e complexificação da economia nacional. Firmou-se aqui

igualmente como Estado corporativo, que organizaria as classes economicamente

ativas num processo de incorporação via juridicização dos direitos sociais. Para

Azevedo Amaral, estes caracteres do Estado Novo permitiram preservar os

elementos civilizacionais específicos da nacionalidade brasileira.

Para além deste objetivo de defesa e justificação, que cobriu de sucesso o

ideólogo e que posteriormente fomentou uma leitura maniqueísta tanto do

ideólogo quanto do regime, pode-se dizer que Azevedo Amaral foi além de suas

pretensões estratégicas conjunturais. Produziu, antes mesmo da maioria dos

textos que enfrentaram a questão na Europa, um arcabouço conceitual sólido o

suficiente sobre o modelo de Estado totalitário não só permitindo, mas

realizando em seus pormenores as diferenciações nucleares em relação ao

modelo de Estado autoritário. Por necessidades derivadas de uma conjuntura

política específica, cunhou uma aproximação a um dos temas centrais da teoria

política do século XX. Antecipou-se, inclusive, àquela que é considerada a maior

expoente sobre a temática totalitária, condensando a bibliografia mais festejada

da época e formatando uma compreensão sofisticada e detalhada sobre a perda

da espontaneidade e a destruição do indivíduo sob o terror totalitário.

Nesse sentido, a rápida comparação com a obra de Loewenstein é, por si

só, um instrumento de análise contundente o suficiente para se defender a tese

de que o jornalista político brasileiro foi um dos pioneiros na determinação e

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análise do próprio conceito de totalitarismo e de como este veio a ser conhecido

no decorrer da segunda metade do século XX. A produção de trabalhos

posteriores sobre este tema poderá corroborar não só o fato de que se está

diante de uma obra suficientemente importante para o entendimento da

evolução da teoria política, mas igualmente, confirmar que não se poderá mais

estudar o a teoria política no século XX e o tema do totalitarismo e do

autoritarismo sem levar em conta as idéias e as análises realizadas por Azevedo

Amaral nos seus textos da década de 1930.

6. Referências Bibliográficas

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