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Santidade Texto de Zé Vicente

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Santidade Texto de Zé Vicente

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PERSONAGENS

IVO

40 anos, homossexual paulista, dono de uma

boutique.

ARTHUR

22 anos, ex-seminarista, que vive com Ivo.

NICOLAU

30 anos, diácono, irmão de Arthur.

CENÁRIO

Um quarto de um apartamento em São Paulo, no

centro da cidade. Há uma cama de casal com

dois travesseiros, poltronas, e, no canto, há

uma mesa pequena, com um vaso de rosas.

Supõe-se que existam outras dependências no

apartamento.

AÇÃO

A ação desta peça pede, e deve ser

identificada, com o delírio dos anos 60, tendo

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os hippies e o movimento hippie como pano de

fundo.

ARTHUR – Você fica deitado enquanto eu tomo banho, tá? IVO – Tá! (Arthur continua deitado) Você não vai? ARTHUR – Tá quentinho aqui...

IVO – Arthur, eu estive pensando... Você podia arrumar emprego no Banco. ARTHUR – Banco? Você tá louco! Ficar fechado oito horas por dia, ouvindo barulho de máquina, de gente? O dia inteiro mexendo com papéis, dinheiro, assinar, dar satisfações pra chefe, ter que agüentar colega... não. Não sou louco. Banco não! IVO – Eu tenho um amigo que pode arrumar para você. ARTHUR – Não. Banco, não. Eu conheço o serviço e não dou para isso. Banco não. IVO – Por que você não pega aula particular? ARTHUR – Só se fosse pra ensinar a fazer a vida! IVO – Não, você pode muito bem dar história, português... latim você pode dar! Você não foi seminarista? ARTHUR – Só se eu ensinasse latim... “Introibo ad altare Dei, de Deum qui laetifcat juventutem meam”. IVO – O que significa isso? ARTHUR – “Entrarei no Altar de Deus, de Deus que alegra a minha juventude”. IVO – Que bonito. Você foi seminarista oito anos, não foi, Arthur? Ou sete? ARTHUR – Oito. Mas chega dessa conversa. Fora o latim e a vida, o quê é que eu posso fazer?

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IVO – Por que você não gosta de falar que foi seminarista? É uma experiência muito boa, meu querido, uma experiência, seu bobinho. (Pausa) Já pensou se dos padres lá do teu seminário entrassem aqui, agora, e te vissem deitado comigo, o quê não iam pensar? ARTHUR – Não iam pensar nada, lógico, desde que você não levantasse e começasse a dar a pinta... IVO – A arrogância do bofe! ARTHUR – Já pensou? Se o Reitor me visse, se o Bispo me visse? Se o meu irmão me visse?

IVO – Vê que horas são! ARTHUR – Meio-dia e meia. IVO – Seu relógio parou, meu querido. É muito mais. Vai lá no relógio da sala, vai. (Arthur levanta mal-humorado e atravessa o quarto. Está só de cueca.) O que a gente vai fazer hoje, Arthur? ARTHUR (Voltando da sala) – Olha, são duas e meia. IVO – Meu Deus, duas e meia? Que desperdício! ARTHUR (enfiando-se novamente entre as cobertas) – A gente podia dormir mais um pouquinho. IVO – Meu Deus! Mais um sábado perdido! Eu tinha de ir à boutique até o meio-dia. Oh, meu Deus! É tanta preocupação. Eu tenho que fazer tudo sozinho! ARTHUR – A que horas fomos deitar? IVO – Ah! Isso eu não sei. Umas cinco. ARTHUR – Cinco... seis... seis e sete, treze, mais uma... dormimos umas sete horas. IVO – Que mania você tem de controlar as horas!

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ARTHUR – Ainda estou com o gosto daquela sopa de cebola...Você ainda vai à boutique? IVO – Às três horas da tarde? Não tem mais ninguém na rua! O pior é que eu tinha de ver o negócio das camisas... Eu devia ter montado uma loja de mulher – de mulher mesmo! – já cansei desta variação de cores pra moda masculina. Que excesso de efeminação! Com essa invenção de ácido lisérgico, então...

ARTHUR – Eu te contei a conversa que tive ontem à noite lá no Barba Azul? IVO – Eu vi você conversando com a bicha pintora. ARTHUR – Queria saber se ainda somos caso. IVO – E você? Garanto que você ficou atacado com alguma proposta dele. ARTHUR – Ele queria que eu fizesse casa com aquela bicha, amiga dela. Aquela bicha jornalista, que já foi até da Igreja dos Mórmons e tem mania de Inglaterra. Ela arruma o apartamento da bicha e arruma homem para ela. IVO – A audácia da imperialista! (Pausa).

O seu irmão já é padre? ARTHUR – Ainda não. IVO – Mas você me contou o ano passado, que ele tinha terminado o curso de... de... ARTHUR – Teologia. IVO – E então? O que falta ainda? ARTHUR – Um ano de experiência, ou coisa parecida. IVO – Experiência em quê? ARTHUR – Sei lá, experiência...

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IVO – Será que ele sai na rua, vai à zona, essas coisas? Será que é isso? ARTHUR – Não sei! IVO – Mas você que foi seminarista não sabe? ARTHUR – Em meu tempo não tinha disso. IVO – Mas o seu irmão... Escute: ele é... bonito? ARTHUR – Ah, já vem você! Ele é o máximo! Tem uma cara de anjo barroco! IVO – E por que você não fala pra ele desistir? Imagina ser padre! Que falta de imaginação! ARTHUR – Isso é problema dele! Ninguém falou comigo. Ele que se vire! E depois, isso aqui não é o paraíso! Pelo menos lá, ele não tem que trabalhar, dar o duro, pensar no que comer, no que vestir... essa loucura de todo o dia! IVO – Como se você desse o duro todo o dia! Até parece! (Pausa).

Arthur, você podia ser manequim! É fácil, e você tem o tipo que serve! ARTHUR – Você tinha que vir com esta história! Manequim! IVO – Não tem nada demais, meu anjo! Eu conheço muito manequim que é casado, tem filho e tudo! ARTHUR – E daí? Eu conheço muito homem casado que tem filho e tudo e vive dando o rabo por aí! IVO – Você é muito fresco mesmo! Você quer sombra e água fresca! Ser manequim não tem nada demais. Você tem é a mentalidade de padre: é isso. Seminarista! Você ainda é um seminarista! ARTHUR – Pelo amor de Deus, não vem com essa conversa outra vez. Sempre que você quer ter razão, você apela pra esse argumento: seminarista! Fui seminarista, e daí?

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IVO – Ah! Por mim, você faça o que quiser! Vai ser ladrão, assassino, bandido, soldado da força pública! Eu só estou pensando no meu futuro! Depois, não vai dizer que eu não pensei no seu. (Pausa).

Arthur: você está com raiva de mim, está? ARTHUR – Me deixa pensar um pouco... me deixa ficar sozinho... IVO – Você pensa, é?... Você pensa... em que você pensa, Arthur? (Arthur não responde) Engraçado, faz cinco meses... ARTHUR – Seis!!! IVO – Seis! É já faz seis meses! Seis meses que estamos juntos, e eu ainda não te entendi! Você vive tão longe, que eu, às vezes, ponho a mão em você, para ter certeza que você está aqui. ARTHUR – Eu já sei disso! IVO – Ah! Como você é azedo! ARTHUR – E você é uma sexomaníaca! A vida pra você se resume em sexo, sexo, sexo! Você não pode ter contato com uma pele! Tudo pra você é sexo. Você não sabe pensar em outros termos. Faz muito tempo que você já ganhou a taça, Ivo! (Pausa.) Me diz uma coisa Ivo: você pensa? IVO – Pensar pra quê? ARTHUR – Vai. Esquece!

Acho que vou levantar! Agora estou acordado! IVO – Então levanta. Anda, levanta! ARTHUR – Não tenho coragem... IVO - Você só quer dormir, dormir, dormir... ARTHUR – Às vezes me dá vontade de ficar só assim, na cama, sem fazer nada, pensando, dormindo, pensando, sem ter que fazer nada...

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IVO – Não vai me dizer que você concorda com essa onda psicodélica que está por aí? ARTHUR – Onda psicodélica? IVO – Os hippies! ARTHUR – Os hippies? IVO – Esses de cabelos compridos! Essa história de protesto, ficar sem tomar banho, sei mais lá o quê. Eu entendo muito bem o que esta gente está querendo. Eu dou duro desde criança, e sempre fui pela ação. A vida pra mim é ação! ARTHUR – Deixa de ser burra e vulgar! IVO – Vulgar? Hum... vulgar! O que te falta, meu bem, é pegar um trabalho. No duro, é isso o que te falta! Comida e tudo! ARTHUR – Não me interessa. IVO – Porque eu sou uma mãe pra você, Arthur! Tenho certeza que nem a sua mãe faz por você o que eu te faço. Imagina: comida, roupa, cinema, teatro e ainda por cima, dinheiro! Que mais que você quer? Sou uma mãe pra você! ARTHUR – Em compensação, eu não faço à minha mãe o que eu te faço... IVO – Só faltava essa! (Pausa) Mas você não faz nada meu bem! Você só entra com a pele e a idade. Só isso! ARTHUR – E é pouco? Eu sou um objeto teu! Um objeto! IVO – Você tem que reconhecer que você fica comigo porque você sente prazer! ARTHUR – Ah, prazer, prazer! Se eu ficasse impotente agora, acho que seria até melhor! IVO – Se você ficasse impotente, você passava fome, Arthur! (Pausa) Eu adoro o sexo! O sexo é praticamente tudo na minha vida! Como é bom fazer sexo! Eu fico imaginando aquele suor...

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aquela fraqueza... aquele suor, Arthur... a pele da gente molhada, toda aquele entrega... de tudo! Eu... eu sinto ainda o mesmo desejo e a mesma loucura de quando eu tinha... vinte anos! ARTHUR – Você me dá nojo! IVO – Você é caso de psicanálise, Arthur! Você é um caso típico! ARTHUR – Vigarice! IVO – Você diz que não gosta de sexo. Não gosta, mas pratica, e eu sei como! Enfim... você vive disso! (Pausa).

Não quer trabalhar, não trabalha. Não trabalha de jeito nenhum. Não move uma palha dentro deste apartamento: te deixo na cama, te encontro na cama. Você nunca foi comigo à boutique. Bem... eu também não exijo: você só ia atrapalhar. Não lê, não estuda, não faz nada. Diz que está pensando, pensando. Você é filósofo? ARTHUR – Como você é pobre!

IVO – Me diz uma coisa: você teve algum trauma na infância? ARTHUR - Trauma? O seu psicanalista deve viver botando essas palavras... abjetas, mortas, na tua cabecinha! IVO – Não faço mais análise, meu amor. Já sou analisada! Sou uma pessoa normal! ARTHUR – Normalíssima! IVO – Essa reação é típica... você tem milhões de complexos e frustrações! ARTHUR – Traumas! Complexos! Frustrações! Todo o mundo sabe que isso é palavreado de fresco, de veado! IVO – Seminário! Quem passa por Seminário não escapa... É claro que você tem que ser uma pessoa... desajustada! ARTHUR – E você é um cafajeste, vai!

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IVO – Claro que sou. Trabalho o dia inteiro. A boutique vai indo cada vez mais para frente. Estou comerciando na elite! Já tenho dois empregados, dirijo tudo, sei muito bem me portar em qualquer ambiente, sei freqüentar qualquer lugar da sociedade – qualquer lugar! – e não tenho problemas sexuais! ARTHUR – Ivo: eu não sei com quem você aprendeu, mas você é a realização! (Pausa. Longo silêncio entre os dois.).

IVO – Arthur, e se eu te mandasse embora? ARTHUR – Tem milhões por aí... Tem até gente de boa família, o que não é o teu caso. IVO – Eu conheço muito bem essas que andam por aí. Queimam qualquer um. Nenhuma delas ia te tratar como eu te trato. Imagina! Deixar morar junto, dormir na mesma cama! ARTHUR – Conheço muito bem essa raça, minha flor! Conheceu uma, conheceu todas! IVO – Você tem vinte e poucos anos. Você sabe muito bem que, daqui a algum tempo, ninguém vai te querer mais. Isto é certo como dois e dois são quatro. Até que eu não faço muita exigência! O Cláudio, por exemplo, que é O Bofe, não pega mais ninguém! ARTHUR – Não pega mais ninguém porque cansou! Com o mercado do jeito que anda: a oferta – todo o mundo sabe – é muito maior do que a procura! IVO – Ouça a voz da experiência: qualquer bicha inteligente exige, no máximo, vinte anos. No máximo... ARTHUR – E no mínimo? IVO – Eu, o mais novo foi dezessete. Dezessete aninhos! ARTHUR – Você tem certeza? (Batem à porta).

IVO – Vai abrir, vai Arthur! ARTHUR – Eu não estou! Não tenho saco pra ver a cara viciada da sua gente!

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IVO – Vai abrir, vai Arthur! ARTHUR – Por que tem que ser eu? (Batem novamente.). IVO – Eu tenho que fazer tudo sozinho nesta casa! (Arthur levanta-se subitamente). ARTHUR – Deixa, eu vou abrir. Fica sentado. IVO – Você vai abrir? ARTHUR – Fica sentado! IVO – Então eu vou tomar banho. ARTHUR – E não demora, porque você sabe que eu não tenho papo com os seus amigos. (Arthur e Ivo saem de cena, cada um por um lado).

(Depois de algum tempo, entra Arthur acompanhado de Nicolau. Nicolau está de terno e traz uma pasta na mão, com livros). ARTHUR – Eu morei lá naquele hotel, algum tempo... NICOLAU – O rapaz me deu o endereço. Ele disse que encontra você, muito. ARTHUR – É meu amigo. Anda sempre por aí. NICOLAU – Desde o meio-dia que estou te procurando. Eu não conheço São Paulo. (Pausa.) Você ficou mais bonito, mais forte. ARTHUR – Faz quanto tempo que você está aqui? NICOLAU – Tivemos um encontro para fazer um estudo sobre O PENSAMENTO SOCIAL DA IGREJA, entre padres seminaristas. Visitamos fábricas, vilas, tivemos contato com estudantes...

Bonito o seu apartamento. ARTHUR – Não é meu. NICOLAU – O outro rapaz... o...

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ARTHUR – Ivo! NICOLAU – Isso, Ivo! Ele não está? ARTHUR – Ele está tomando banho. Levantamos agora. NICOLAU – Vocês dividem o apartamento? ARTHUR – Mais ou menos. Eu não esperava mais ver você. Foi uma surpresa.

E a mamãe? NICOLAU – Quando vim para São Paulo, estive lá. A mamãe está vivendo da aposentadoria do papai. Você não voltou lá e nem deu mais notícias! ARTHUR – Você não quer tirar o sapato? Senta aí, na poltrona. (Nicolau senta-se na poltrona e tira os sapatos) A mamãe falou de mim? NICOLAU – Muito! Ela falou de você o tempo inteiro. Ela me intimou a te localizar. Foi ela quem conseguiu o endereço do hotel onde você morava. ARTHUR – Com quem que ela conseguiu o endereço? NICOLAU – Com um rapaz que morou com você no mesmo quarto. Ele passou por lá e levou notícias suas. O nome dele é... Evandro... ARTHUR – Yvandro, com Y. NICOLAU – A mamãe disse que ele estava com um senhor, um advogado.

IVO (do banheiro) – Quem é que está aí, Arthur? ARTHUR – Meu irmão! IVO – O seu irmão? O padre? ARTHUR – É, o padre.

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IVO – Ih!!! Vai ser hoje!!! NICOLAU – O que ele disse? IVO – Eu já estou saindo, Arthur!!! Que barra!

ARTHUR – Como está a Soninha? NICOLAU – Agora ela está trabalhando. ARTHUR – Parou de estudar? NICOLAU – Precisou ajudar em casa. ARTHUR – Ela trabalha em escritório? NICOLAU – Não, de balconista numa loja. ARTHUR – De balconista? NICOLAU – Eu conheci a dona, é muito simpática. ARTHUR – Então ela desistiu da música? A Soninha sempre falava que ia estudar piano. NICOLAU – Você não ajudou mais em casa! ARTHUR – Estou desempregado! NICOLAU – Você está desempregado? Como é que você faz? ARTHUR – Me viro de qualquer jeito. Você veio para quê? NICOLAU – Eu não sabia que você estava desempregado. Eu sabia que você tinha saído daquele laboratório farmacêutico. Uma vez eu escrevi uma carta para você, no endereço do laboratório, mas não tive resposta. Então você está desempregado!? Eu preciso conversar com você.

ARTHUR - Você veio aqui para quê? (Pausa.). NICOLAU - Eu preciso conversar com você. ARTHUR – Conversar, comigo?

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NICOLAU – É... Você já tem muita experiência de vida... e você passou pelo mesmo problema que eu... ARTHUR – Você está em dúvida? NICOLAU – Estou em dúvida! (Arthur começa a vestir-se).

ARTHUR – Me passa a camisa. (Pausa.) Você não mudou muito, Nicolau! NICOLAU – Fiquei muito mais velho. Tenho dormido pouco. ARTHUR – Não. Você está com a cara muito boa. (Pausa.) Escuta, a mamãe mandou você falar em dinheiro comigo? NICOLAU – Bem, ela falou. Você sabe como está a situação... ARTHUR – É, o papai... a mamãe... a Soninha... passa tudo muito depressa, não é Nicolau! NICOLAU – Parece que foi ontem que nós estávamos juntos, no seminário, contando os dias pras férias, ajudando na Missa, recebendo a batina. ARTHUR – Você não usa mais batina? NICOLAU – Você viu? Os padres agora não precisam mais usar batina. (Pausa) Você fuma? ARTHUR – Deixa eu filar um, do futuro Sacerdote de Cristo... Esta pasta aí, tem livros? NICOLAU (Abrindo a pasta e mostrando) – Uns livros de sociologia e economia. Você se interessa por política? ARTHUR – Sou alienado!

IVO (entrando) – Muitos segredinhos entre os dois maninhos? (Nicolau se levanta e cumprimenta Ivo, bastante formal e com timidez). NICOLAU – Você é o Ivo?

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IVO – O Arthur fala muito de você. (Olhando.) Você está descalço? NICOLAU – Cheguei um pouco cansado... IVO – Não, não põe o pé no chão, não, que faz mal! Aqui. Põe este chinelinho! (Calça os chinelos em Nicolau.) Senta aí, fica à vontade. Sabe que vocês dois se parecem? Parecem sim. O Nicolau é mais velho, a gente nota, só que o Arthur tem a cara mais... mais vivida, sabe como é, que o Nicolau não tem. Como é que você descobriu o apartamento, Nicolau? Eu posso chamar você de Nicolau? NICOLAU – Claro que pode. IVO – Engraçado, eu com o Arthur falamos de você agora há pouco. Não foi Arthur? NICOLAU – Foi mais difícil localizar... eu fui num hotel ali na rua... e pedi informações... IVO (Abrindo um maço de cigarros) – O primeiro dos três maços que ainda tenho de fumar hoje... NICOLAU – Você fuma muito? IVO – Demais, meu querido, demais! E, se paro um pouquinho, começo a engordar. ARTHUR – Você quer tomar um banho, Nicolau? IVO – Toma um banho, sim! Você descansa. NICOLAU – Escuta... eu... eu não sei se posso ficar aqui até amanhã... IVO – É claro que pode. Tem o sofá lá na sala. Pode ficar sossegado. ARTHUR – Você está onde?

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NICOLAU – Na casa de um padre, amigo meu. Mas eu avisei que não ia voltar. É meio longe daqui... vocês não tem compromisso não, tem? IVO – Não, meu querido, não fica pensando muito na gente, não. Pronto: se a gente descuida um pouquinho, o apartamento vira zona! (Tempo.) Deixa eu levar você até ao banheiro. Vem. Vem. Você está descalço? NICOLAU – Cheguei um pouco cansado... IVO – Não, não põe o pé no chão, não, que faz mal! Aqui. Põe este chinelo. Isso, agora, vem! (Ivo sai, levando Nicolau. Arthur acende um cigarro e olha os livros de Nicolau. Depois de algum tempo, Ivo volta).

O meu apartamento hoje virou a sede da Igreja Católica! ARTHUR – Você tinha que soltar uma pluma antes da hora! IVO – O apartamento é meu, queridinho! Eu solto as plumas onde eu quero! ARTHUR – Então solta! Mostra os vestidos, põe o sutiã, dá o show completo! IVO – Imagina se eu vou ficar tímido perto do seu irmão, só porque ele é padre! ARTHUR – Ele ainda não e padre! IVO – Para mim tanto faz! Além do mais, o seu irmão é entendido! Eu percebi logo. ARTHUR – Para você, todo o mundo é entendido. Acho que até o prefeito da cidade pra você, é entendido.

IVO – Pode ficar sossegado, Arthur. Seu irmão não faz o meu tipo. Pode ficar sossegado. Não precisa ficar preocupado... ARTHUR – Eu, preocupado? Ele pra mim não passa de um estranho, como qualquer outro. Você acha que a virgindade dele me preocupa?

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IVO – Ele é cabaço... vi ele tirando a roupa no banheiro... não quis tirar a cueca perto de mim...até fechou a porta quando eu saí... ARTHUR – Lógico, com você do lado, medindo tudo... IVO – Ele não é o meu tipo! ARTHUR – Isso você diz de todos!

IVO – Então você pensa que eu sou de ir com o primeiro que aparece? ARTHUR – Isso é porque não depende só de você! IVO – Nossa! Como você ficou agressiva comigo depois que o seu irmão chegou! Como você ficou agressiva! ARTHUR – Esse seu exibicionismo diante de estranhos, me irrita! Não estou te suportando mais, é isso! Você me dá nojo, com essa cara! IVO – A minha cara tá muito acabada, Arthur? Muito acabada? ARTHUR – Qualquer pessoa te dá quarenta e cinco, quarenta e seis, por aí afora... IVO – Você está brincando... Eu conheço quando você quer me destruir... ARTHUR – Então se olhe num espelho! Você está cheio de barrancos, enrugado, barrigudo, cheio de pelancas. IVO – Não, não é verdade! Eu sei que não é verdade! ARTHUR – Então não é verdade. IVO – Arthur... fala que minha cara não está acabada. Não pode ser verdade! Você está brincando... fala: eu estou muito velho? ARTHUR – Chega dessa conversa. E eu vou sair e comer qualquer coisa. Já são quase seis horas! IVO – Não senhor! Você não vai sair!

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ARTHUR – Eu não vou morrer de fome! IVO – Você não vai sair! ARTHUR – Por quê? IVO – E eu vou ficar sozinho com o teu irmão?... Ficar conversando com ele sobre santos, religião, Igreja... não, senhor! ARTHUR – Ele sabe conversar sobre política. IVO – Você sabe que eu detesto política. Imagina você sair agora. Nós descemos os três juntos! ARTHUR – Você fica com ele...

Por que você não fica com ele? IVO – Ficar com ele? ARTHUR – É. Fica com ele... ele é um tipo interessante... fica com ele... IVO (passando a mão no rosto) – Não. Eu não vou fazer uma coisa dessas! ARTHUR – Ele está atrás de experiência, não está? E não é um tipo de jogar fora... IVO – Você acha que ele vai se interessar por mim? ARTHUR – Bem, isso depende de você... IVO – Eu não sei se devo... ARTHUR – Você nunca foi disso! IVO – Não é pecado? ARTHUR – Não existe mais pecado... IVO – Então... uma hora!

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ARTHUR – Uma hora é para casos mais simples. Esse é excepcional. Duas horas. (Arthur sai).

(Ivo arruma a cama, ajeita a roupa, as sobrancelhas. Passa a mão nervosamente nas faces. Depois, vai à sala, põe um disco e volta. Senta-se na poltrona. Acende um cigarro e espera.).

NICOLAU (entrando) – Gostoso o seu banheiro. Eu usei o seu colírio. IVO – Claro, meu querido, claro. NICOLAU - E o Arthur? IVO – Desceu. Foi comprar alguma coisa pra gente comer. Você deve estar com fome, não está? NICOLAU – Não. Eu almocei antes de vir. IVO – Você gosta de jazz? NICOLAU – Eu não entendo muito de música. (Pausa) Confortável o seu apartamento. IVO – A sala é muito cafona. Mas até o fim do ano eu mudo. NICOLAU – Você não gosta do apartamento? IVO – Não, do lugar. NICOLAU – O lugar não é bom? IVO – Muito escroto! NICOLAU (fingindo entender) – Ah, sei... IVO – Meio zonificada... Você entende? NICOLAU – Aqui é zona de prostituição? IVO – São Paulo inteira é uma zona de prostituição! (Nicolau ri. Pausa).

Senta Nicolau. Senta aí na cama. Deixa eu guardar a toalha. (Ivo tira a toalha do pescoço de Nicolau e leva até ao banheiro.

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Volta fumando um cigarro, nervoso e senta-se na poltrona. Pausa.).

Você vai ser padre, não é? O Arthur fala muito de você... NICOLAU – Não decidi ainda. Faz quase um ano que estou parado. IVO – Você não faz nada? NICOLAU – Estou procurando. IVO – Você já terminou o curso de... de... filosofia? NICOLAU – Teologia. Filosofia é antes. IVO – Eu não sou estudado. (Pausa) O Arthur me disse que agora você está em... experiência... NICOLAU – Os padres agora não se ordenam como antigamente, sem contato prévio com o mundo onde vão trabalhar. O Cristianismo está inserido no mundo atual, e pretende estar junto com o homem, como de fato é a mensagem de Cristo. IVO – Faz muito tempo que não vou à Missa, mas eu fiz a primeira comunhão e tudo. Freqüentei a Igreja. (Pausa).

Eu vou arrumar um conhaque pra você. Você gosta de conhaque? NICOLAU – Não, não precisa. IVO – Você não gosta de conhaque? Eu disse conhaque, porque está fazendo frio, e conhaque esquenta. Mas eu tenho outras bebidas. NICOLAU – Então traz conhaque mesmo. IVO - Tá gelado! Inverno em São Paulo é uma coisa terrível! Eu tenho birra de inverno! Bebo muito... (Sai, e volta com dois cálices de conhaque.) Mas, você fuma sem parar, não é Nicolau? NICOLAU – Sou um pouco nervoso.

A sua família é daqui?

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IVO – Do interior. NICOLAU – A minha também é do interior. IVO – O Arthur me disse. NICOLAU – Você ainda tem pais? IVO – Só pai. Minha mãe morreu faz muito tempo. Essa cadeira aqui, foi ela quem me deixou. Coitada, morreu de câncer. Ela gostava muito de mim, a minha mãe. O interessante é que ela morreu, e eu só fiquei sabendo quando já estava enterrada. (Pausa)

Como você tem as pernas fortes, Nicolau! NICOLAU – Eu jogo muito futebol! IVO – Você gosta de futebol? NICOLAU – Muito. Gosto muito. No seminário tem campo, e a gente joga quase todos os dias. IVO – Eu, engraçado, nunca me interessei por futebol. Você torce por algum time? NICOLAU – Ah, sim! Ouça, quando eu tenho oportunidade, gosto de ir ao campo.

IVO – O Arthur jogava futebol no seminário? NICOLAU – Não. O Arthur, que eu me lembre, jogava basquete e ia muito à piscina.

IVO – Escuta... o Arthur, ele foi... expulso do seminário? NICOLAU – Não. Foi aconselhado. O Reitor me disse que tinha aconselhado ele a sair, porque ele não tinha vocação. É difícil a gente explicar isso. Ele criava muito conflito. Não admitia muito a comunidade. Era muito solitário dentro do seminário. Era muito revoltado, muito estranho. Mas ele é uma pessoa de muito valor, Ivo.

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IVO – Eu gosto muito do seu irmão, sabe? Ele é muito agressivo. Demais! Mas ele é diferente dos outros... ele é mau, muito mau, mas também é terno... Ele é muito terno quando está na cama... NICOLAU – Você disse, quando está na cama?

IVO – Quando está na cama! Você tem os olhos de Arthur, Nicolau! Os mesmos olhos dele! Escuta... você tem namorada? NICOLAU – Não... IVO – Ah, lógico! Eu já tinha até esquecido que você é... Como é mesmo que se chama quando uma pessoa chega até onde você chegou, e não é padre? NICOLAU – Eu sou diácono. IVO – Diácono? E diácono celebra Missa? NICOLAU – Não. Diácono dá comunhão, mas não celebra. IVO – E você não gostou de ninguém? Nunca? NICOLAU – Tem uma menina que vai à Missa das sete. Todo o dia ela vai. Ela sempre comunga comigo. Ela não é bonita. É meio ruiva. Os outros acham que ela é feia, mas eu não. Quando ele comunga comigo, a gente olha um para o outro... eu acho que gosto dela, mas, é lógico, que não existe nada... às vezes, a gente conversa.

O que foi mesmo que você disse do Arthur... quando ele está... na cama? IVO – Você acha que eu estou muito velho? Que idade você me dá? NICOLAU – Quarenta? IVO – Você me dá quarenta? NICOLAU – Por aí. Acertei? (Pausa.). IVO – Vou buscar mais um conhaque pra você. (Ivo sai com os cálices vazios.).

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(Nicolau caminha pelo quarto. Sobre uma mesinha com um vaso de rosas, ele se detém, observando as rosas. Ivo retorna).

Eu trouxe a garrafa. É mais prático. NICOLAU – É você quem gosta de rosas? IVO – Gosto. Eu gosto muito de rosas. Sempre que passo por uma floricultura, eu compro. NICOLAU – Você tem muita sensibilidade... (Pausa. Ivo está olhando o corpo de Nicolau. Pausa. Ivo se aproxima. Arruma a gola da camisa de Nicolau e em seguida segura a sua mão. Pausa. Nicolau olha por um instante para Ivo. Deixa a mão um instante, e depois a retira. Pausa. Ivo ajeita as rosas no vaso. Deixa Nicolau e acende um cigarro.).

Toma mais um conhaque, eu vou sair. (Ivo vai até a sala. Nicolau fica encostado na mesa, perto das rosas, sem saber o que fazer. Ivo volta com um blusão e apaga o cigarro no cinzeiro.) Você não quer mais conhaque? NICOLAU – Não, não, muito obrigado! IVO – Você guarda lá dentro para mim? O Arthur vai chegar logo. Depois, se vocês quiserem se encontrar comigo, estou no Barba Azul. O Arthur sabe onde é. Eu estou bem assim? NICOLAU – Ótimo. Você está ótimo assim. IVO – Olha, a chave fica na porta. NICOLAU – Certo, certo. Eu abro a porta pra você. IVO – Não precisa meu querido! O Arthur vai chegar logo. (Sai).

(Nicolau fica alguns instantes diante do vaso das rosas, nervoso. Tira uma das rosas, gira nos dedos e a deposita novamente no vaso. Depois, volta-se, enche um cálice de conhaque e bebe de uma vez. Depois, acende um cigarro e anda pelo quarto. Abre a janela, e um ruído insistente de carros entra pela janela. O ruído cessa. A porta abre e fecha com um estrondo. Entra Arthur).

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NICOLAU – Como é alto este apartamento. Estamos no alto de São Paulo. ARTHUR – Você está sozinho? Eu vi ele indo para o lado da Avenida Ipiranga, de casacão. (Arthur deita-se displicentemente na cama. Pausa).

NICOLAU – O Ivo, ele é... hermafrodita? ARTHUR – Hermafrodita? Que palavra é essa? NICOLAU – Ele é... invertido? ARTHUR – Bicha! Ele é bicha! Veado, pederasta, homossexual. O nome genérico pra tudo isso, é bicha! (Pausa). NICOLAU – Você tem alguma ligação com ele? ARTHUR – Eu durmo com ele! Onde ele foi? NICOLAU – Disse o nome... Barba Azul. ARTHUR – Ah, foi caçar! Hoje é sábado, dia de caça coletiva! Hoje, aqui no centro da cidade, elas estão todas em bando, como os hippies. Hoje é sábado... muita cara nova, gente do interior, rapazinhos de subúrbio. Você não quer sair para caçar, Nicolau? No inverno fica mais complicado, mas tem mais veludo, é mais europeu. Esse europeu, que inventaram pra São Paulo. Dei uma olhada, e já está começando a ferver... Você não fala nada? NICOLAU – Entre você e o Ivo... ele saiu sozinho... Não tem problema? ARTHUR – Mas o que e isso? Somos marido e mulher, quando estamos na cama. Aqui, cá entre nós, não existe fidelidade conjugal. No começo existia. Depois ele começou a me trair, com tipos mais garanhões, dizendo que com ele é preciso ser muito homem! Ficamos assim, um se encostando ao outro, pra não acabar os dois sozinhos... NICOLAU – Não pensa mal, é que eu estou assustado, Arthur!

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ARTHUR – Você está assustado? NICOLAU – Foi tudo tão de repente! Eu estou muito assustado! É São Paulo? (Pausa). ARTHUR – São Paulo... São Paulo... Aqui, em São Paulo, você é surdo e todos são surdos. É um mundo sem som, onde você vai morrendo sozinho e vê os outros morrendo sozinhos. A cada minuto. Todo o dia repetindo a mesma coisa. A palavra em São Paulo não denuncia, não tem repercussão, não fere, não mata. Os atos também são surdos: em São Paulo, os atos não têm nenhuma repercussão! (Levanta-se).

Por que você não vai embora? Vai, vai embora! Vai pro Seminário! NICOLAU – Eu não estou no seminário! ARTHUR – Eu sei onde você está! Na casa de um padre amigo seu. Vai embora! NICOLAU – Não, eu vou ficar. Eu quero ficar. ARTHUR – Pra quê? NICOLAU – Eu devo ficar. ARTHUR – Ah, você tem a cabeça dura, como todo o padreco idealista, que pensa que pode salvar todo o mundo. NICOLAU – Eu não penso que sou capaz de salvar todo o mundo, eu sei que devo ficar. E vou ficar. ARTHUR – Eu aconselho você a ir-se embora daqui! Você pode dizer lá no seminário, que conheceu uma bicha de carne e osso, que ela passou uma cantada em você, e um... pervertido sexual, que vive do dinheiro dela! Um gigolô! Vai! Vai embora! NICOLAU – Não, eu vou dormir aqui. Eu quero dormir aqui. Já escureceu. ARTHUR – Tá bom! Então tá bom! Eu te dei uma chance... você não quis.

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Sabe Nicolau, a barra aqui é diferente. Aqui você atua também, e aqui, você não é diferente de ninguém. Você paga o seu preço e cobra o que é seu! NICOLAU – Eu não tenho medo. ARTHUR – Foi aqui que eu aprendi a ver que nesse país inteiro, só existe uma pessoa que conheceu a santidade. Ela é uma mulher, e é a nossa mãe, que mandou você falar em dinheiro comigo. NICOLAU – Por que você fala em santidade? ARTHUR – Porque é o que a Igreja Católica deixou morrer. (Pausa.) Ela é uma santa. Não vai merecer nunca as pompas da Igreja, porque se a Igreja conhecesse a sua vida e o sacrifício que fez para criar nós todos, teria rancor. NICOLAU – Mas por que falar em santidade? ARTHUR – Não é o caminho da Igreja Católica? NICOLAU – Claro!

ARTHUR (mudando o tom) – Você conhece mulher? NICOLAU – Eu? ARTHUR – Mulher. Lógico. NICOLAU – Eu já fui uma vez num Night Club... ARTHUR – Zona! Você já esteve na zona uma vez? NICOLAU – Eu fui uma vez, sim... pra conhecer! ARTHUR – “Pra conhecer”... Eu entendo. Trepou ou não? É... você pegou alguma mulher e foi pra cama com ela? NICOLAU – Não, eu fui só pra conhecer... fui pra fazer apostolado! Para... para levar Cristo até eles! ARTHUR – E agora? E aqui?

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NICOLAU – Agora eu não sei. Agora eu fiquei perdido. ARTHUR – O Cristo não vem até aqui? NICOLAU – Não sei! (Pausa).

ARTHUR – Pode perguntar! NICOLAU – Qual o tipo de relação que você tem com o Ivo? ARTHUR – Relação normal. NICOLAU – Você é como... como é que se diz... o... ARTHUR – O ativo! NICOLAU – Vocês... vocês dormem os dois... juntos? ARTHUR – Juntos. NICOLAU – Nessa cama de casal? ARTHUR – Lógico, na cama. Por que não tem de ser na cama? NICOLAU – É porque a idéia de ser numa cama – e de casal – não sei,... me parece... ARTHUR – Eu também não admitia a cama, no começo. A cama era uma espécie de consentimento. Eu achava que tinha de ser, como essa espécie de amor, na rua, numa construção, de pé. Deitado, nunca! Eu não sabia que aqui, em São Paulo, isso era verdade! (Pausa).

Você sente desprezo por mim, Nicolau? NICOLAU – Nunca, eu te respeito como ser humano, do mesmo jeito. Eu não tenho nada com isso... ARTHUR – Mas você preferiria me ver namorando, pensando em casamento, ou mesmo casado já, talvez noivo. NICOLAU – Eu preferiria sim!

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ARTHUR – Então você sente um pouquinho de desprezo por mim, não sente? Um pouquinho sente sim... Fala a verdade... NICOLAU – Sinto. Sinto um pouco, sim. ARTHUR - Ah, eu sabia! É lógico! Eu sou um veado, também. Veado sim. É terrível ter um irmão veado, não é Nicolau? É terrível! Pode dizer. Imagina o quê os seus amigos, os seus conhecidos, os padres, o quê não vão dizer quando souberem que você tem um irmão veado! Ex-seminarista e veado! NICOLAU – Mas nunca ninguém vai saber, Arthur. A menos que você conte! ARTHUR – Pode ser que um dia eu conte... pelo simples capricho de contar! NICOLAU – Mas você não é o que come? ARTHUR – É claro que sou veado! Trepou com homem, é veado! NICOLAU – Mas você e o Ivo... ele é tão... tão... ARTHUR – Bicha! Muito bicha! Mas mesmo assim, não é como você imagina... NICOLAU – Eu não entendo... ARTHUR – Não é como você imagina. Tem um ritual. A palavra é essa: ritual!

NICOLAU – Que ritual? ARTHUR – Para usar a imagem que você está habituado: a Missa, a Santa Missa! NICOLAU – A Santa Missa? ARTHUR – Você conhece de cor os Mistérios da Sagrada Liturgia. Você conhece a riqueza da Sagrada Liturgia... Você sabe que o essencial custa a chegar. O quê que é o essencial na Santa Missa? O essencial na Santa Missa é a Consagração e a Comunhão. O essencial é isso. Você sabe. O canto inicial é: “entrarei no Altar de

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Deus, de Deus que alegra a minha juventude...”. Depois vem uma prece de compaixão: “Senhor, tende piedade de nós. Senhor tende piedade de nós...”. Depois tem um Hino de Louvor: “Glória a Deus nas alturas, e paz na Terra aos homens de boa vontade...”, e o ato de fé – “Creio em um só Deus, Pai Todo Poderoso...”. (Pausa). NICOLAU – E aí? ARTHUR – Depois, o Ofertório. O Canto do Ofertório é a doação de tudo o que existe, em cada um, de mais precioso. Só depois se iniciam os Mistérios da Sagrada Liturgia: “esse é o meu corpo, comei. Esse é o meu sangue, bebei.” Você come o corpo de Cristo e você bebe o sangue de Cristo! Depois, vem o Canto de Ação de Graças. A Missa inteira é ação. Você agradece a Deus por ter dado o seu corpo para comer e o seu sangue para beber. Que mistério insondável, Nicolau! Você termina recitando o Evangelho Segundo São Mateus: “no princípio era o verbo e o verbo era Deus. E o verbo estava com Deus.” A Sagrada Liturgia da Missa é um longo processo de... realização! NICOLAU – Eu não sei se estou conseguindo entender... ARTHUR – Não. Você não está. Você quer trocado em miúdos. Bom, trocado em miúdos, significa: ______________________________________________________ A Sagrada Liturgia da Missa. Em primeiro lugar, você é bem vestido e bem apessoado, para ser apresentado à classe. A classe é chic, tem touché, um termo que traduzido, não é inglês e nem francês direito: é próprio. Mas o ritual mesmo, começa no sofá da sala. O Introibe ad altare Dei continua no sofá, não ao som de um Canto Gregoriano, mas, habitualmente, de um jazz. Primeiro tira a camisa, depois o sapato, depois a meia... Estamos longe da Consagração e da Comunhão, mas você já pressente o gosto na boca. O gosto do corpo, o gosto do vinho. Às vezes, Nicolau, é um gosto de noite inteira mastigada, com cheiro azedo de conhaque, um cheiro não exalado, um gosto e um cheiro que vem da língua amarela de tanto cigarro, de tanto café e cigarro e vício, um gosto que vem suplicante da boca, da língua, e você come esse gosto, você engole esse gosto, e você está apenas no início... Depois, o ritual continua, se desenvolve, passa para a mesa do sacrifício, que é a cama, e você compreende que você se veste e se diverte e vive e morre nessa Santa Missa!

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NICOLAU – Você compara isso à Santa Missa? ARTHUR – É o que eu tenho desempenhado! NICOLAU – Você tem coragem...? ARTHUR – É como eu ganho o meu pão de cada dia! NICOLAU – Como tudo isso é irreverente e sufocante! ARTHUR – Você queria saber. Aliás, todos querem saber. Depois se absolvem. Mas dessa vez, não vou absolver ninguém!

NICOLAU – Você me deixou sozinho com ele... Você quis me perverter! Por que você fez isso, Arthur? Eu sempre te quis tanto! ARTHUR – O que foi que eu te fiz? NICOLAU – Você me deixou sozinho com ele pra... me perverter! Você organizou tudo, eu sei, você organizou tudo! Você quis me fazer mal! Vai ver que eu nunca percebi você. Passamos a vida inteira juntos e eu não percebi você. Quando você ainda não tinha recebido a batina – eu fazia parte dos mais velhos enquanto você fazia parte dos mais novos, e havia uma divisão entre nós. Eu ficava impaciente para acabar o recreio de domingo de tarde, pra gente não ter que continuar conversando. Nós só conversávamos, nós dois juntos, no domingo de tarde, lembra? Eu ouvia você falar e eu também falava, mas nunca nós dois nos ouvimos tanto como nesta noite. Eu não te ouvia e você não me ouvia. Sempre fomos dois estrangeiros. E depois que você recebeu a batina, e nós ficávamos juntos, então, não conversamos nunca mais. Você me dava as cartas que recebia, e eu te dava as cartas que eu recebia, eu te arrumava livros e você me arrumava livros... Nós fomos sempre dois estranhos, foi por isso! Eu não estou te entendendo! Arthur, eu não consigo te entender... Estou me sentindo mal aqui. Agora sim eu devo ir embora!

(Nicolau pega a pasta com os livros, e decide ir-se embora). ARTHUR – Você vai embora? NICOLAU – Acho que é melhor. Eu vou embora! ARTHUR – Já é tarde, Nicolau.

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NICOLAU – Não é muito tarde, ainda. Eu tomo um táxi. É melhor eu ir embora. ARTHUR – Você veio para ficar! NICOLAU – Mas agora eu vou embora. ARTHUR – Nicolau! Espera! Eu quero te mostrar uma relíquia que eu tenho. NICOLAU – Relíquia? ARTHUR – Espera um pouco, na cadeira... espera...

(Nicolau senta-se e espera. Arthur vai até à sala, demora um instante e volta vestido com uma batina).

Minha batina. Lembra do nosso tempo de filosofia? Você lembra? Eu recebi a batina depois de você. NICOLAU – Eu lembro, sim. Você até foi para as férias comigo, no vagão de primeira. ARTHUR – É verdade. Antes da batina, nós viajávamos de segunda. Depois da batina, de primeira. Eu sentia um certo orgulho disso. Nós íamos de primeira... uma vez, você resolveu ir de segunda. De batina e de segunda, no meio daquela gente pobre, mal vestida e que fedia. Você tinha vocação de pobreza, Nicolau. Você gostava de viver no meio do povo, da gente pobre. NICOLAU – Eu pensava que não era justo que a gente, pobre, vivêssemos separados dos outros. Eu pensava que não era justo. ARTHUR – Você era justo, Nicolau! Eu nunca tinha pensado em justiça. Você conversava com a gente pobre, você ia à igreja todo o dia, você dava aula nas escolas pobres, durante as férias.

Você era santo, Nicolau. NICOLAU – Por que você insiste na santidade? ARTHUR – Faz parte do meu destino! NICOLAU – Eu não trabalhava! Eu só estudava, com bolsa, eu não era justo!

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ARTHUR – Eu sempre achei que você era... santo! A mamãe, os padres, as mulheres da paróquia... os colegas, todo o mundo tinha orgulho de você, porque você era santo. Você era santo, e pobre, como... como São Vicente de Paula! Você era procurado para resolver os problemas dos outros. NICOLAU – É que eu levava a sério a vocação. ARTHUR – Você levava a sério, sim. Eu entrei pro seminário, por causa de você. NICOLAU – Por causa de mim? ARTHUR – Vou contar uma coisa pra você: eu tinha inveja de você, porque você era santo. NICOLAU – Mas eu não era santo! ARTHUR – Eu tinha inveja de você... Você era chamado sempre para ajudar nas cerimônias religiosas, no seminário e na catedral. Você ajudava na Semana Santa, nas ordenações dos padres, nas procissões. Eu não! Você era sempre chamado para ajudar nas cerimônias, e eu não era! NICOLAU – Eu era mais velho. É porque eu era o mais velho. ARTHUR – Tinham outros da minha idade, e até mais novos, que eram escolhidos, também. Você era sempre escolhido! Eu nunca era escolhido... A mamãe não tinha orgulho de mim. Quando você recebeu a batina, ela foi ao seminário assistir. NICOLAU – Agora eu me lembro: você cantava no coro! ARTHUR – Eu cantava no coro! NICOLAU – É por isso que você não ajudava nas cerimônias! É por isso que você nunca era escalado! Você cantava no coro... ARTHUR – Eu não tinha voz nenhuma! Eu cantava porque – sabe Nicolau – porque eu tinha medo de não ser escalado! Se eu não cantasse no coro e não fosse escalado, eu tinha que ficar no meio dos outros, só assistindo. Eu cantava no coro, por causa de você.

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NICOLAU – Você tinha voz! O regente do coro me dizia que você tinha voz. Uma vez, você fez um solo... você! Na Catedral, lembra? ARTHUR – Eu fiz um solo? NICOLAU (Cantando) – “Réquiem eternum, dona eis, domine, et lux perpetus luceat eis”. ARTHUR – Na morte do Bispo! NICOLAU - Na morte do Bispo, você fez o solo! ARTHUR – Na morte do Bispo, você entrou como oficiante na... na cripta, onde ele foi enterrado! Você teve esse privilégio, lembra? Você entrou na cripta e ficou a noite inteira ao lado do corpo. De batina e sobrepeliz. E de Evangelho na mão, rezando com os padres. NICOLAU – Nem me lembro. ARTHUR – Você era tão respeitado no Seminário. (Pausa. Longa pausa.) Sabe que eu nunca mais fui à igreja depois que saí do seminário? Nunca mais. Nem no Seminário eu gostava de ir à igreja. A não ser na Missa de Páscoa. Era a Missa que eu gostava. Eu só gostava de ir à igreja, de dia, quando não tinha ninguém... Eu ficava vendo as andorinhas voando no teto, e eu gostava de ver as cores dos vitrais nos bancos vazios... no mármore do altar... nas telhas e nas flores... NICOLAU – Estou me lembrando agora: na morte do Bispo, o regente do coro falou comigo, sobre o solo ia dar para você. Ele disse que você tinha voz, e uma voz que podia ser aproveitada para este solo. ARTHUR – Ele disse que eu tinha voz? NICOLAU – Você tinha talento, sim. Ele disse que você podia fazer discursos. Lembra que você fazia poesias e recitava nas sessões da academia?

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ARTHUR – Você, uma vez, na Semana Santa, segurou a capa e o arminho do Bispo, na entrada da Catedral! Você era considerado piedoso, e eu não era. NICOLAU – Eu não era piedoso. Você sabe que no Seminário havia muita pieguice. ARTHUR – Você não era piedoso! Você era o santo que eu não era! NICOLAU – Você ficava um padre quando punha a batina! ARTHUR (Olhando-se vestido com a batina) – Não... Eu não ficava bem...Eu tinha vergonha da batina... eu não era piedoso como você... Você cuidava da batina, como quem cuida de uma roupa de gala! Eu não. Você cuidava da batina, porque você era sempre escalado para as cerimônias religiosas... Eu não cuidava da minha. Eu andava assim, sem faixa e sem colarinho. Eu não tinha entusiasmo com a batina. O Reitor me chamava a atenção, porque eu andava assim, sem faixa e sem colarinho... Eu nunca fui escalado para as cerimônias religiosas...

NICOLAU – Uma vez você foi! Agora eu me lembro! ARTHUR – Quando? NICOLAU – Na paraliturgia sobre a missa. ARTHUR – Na paraliturgia? NICOLAU – Na representação litúrgica da Missa. Você fazia uma coisa, eu não sei bem, não consigo lembrar... eu te vi. Eu sei que eu te vi. ARTHUR (Solene) – Eu levava o pão ázimo na bandeja de madeira. NICOLAU – Isso! Você levava o pão ázimo! Você entrava com a procissão, pela nave da capela do seminário... você levava o pão, ao lado do outro, que levava o vinho... Depois vinham os outros que levavam as velas, o turíbulo, o linho. E você levava o pão! Você lembra agora? Você levava o pão do Ofertório!

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ARTHUR – Eu estava com uma alva de linho e um cíngulo! Eu estava limpo. Como eu estava limpo! Todos estavam limpos... era noite... a capela estava limpa e iluminada... o coro cantava, e estavam todos de batina, e de pé... e eu entrava com o pãozinho ázimo na bandeja de madeira. E você, você desempenhava o oficiante, no altar. Eu caminhava ao seu encontro. Foi nessa noite, eu me lembro. O céu se abriu para mim, durante um instante. Um céu católico, e por um instante eu vi os montes de Deus nesse céu. Estavam vivos e participando da Comunhão de Cristo no céu. De repente, esse céu se fechou, e eu vi, no altar, sobre a sua cabeça, Nicolau. A Igreja Católica estava vazia! Nunca mais ia ter santos! Tinha perdido o poder! Desempenhava um teatro morto, sem espírito, pusilânime! Perdera a santidade e mergulhara no abismo sem saída e profano deste século! Foi quando eu decidi zombar desse simulacro, sem alma, embriagado de uma pompa ridícula.

(Arthur ajoelha-se diante de Nicolau, como quem quer se confessar) Nunca mais, Nicolau! Nunca mais vou me confessar assim, diante de você! Agora você é um homem! Agora você não tem mais nenhum poder! Meus pecados, todos, fazem parte dessa imensa, dessa insuportável época, dentro da qual já não existe lugar para... para a santidade! Eu vi como o altar da capela do seminário estava profanado, e morto, para o sacrifício! NICOLAU – Eu tinha vocação... eu acreditei no Cristo...eu acreditei que pudesse comunicar Cristo aos outros... ARTHUR – Você aprendeu a acreditar nele, assim como eu, assim como os outros. Ele representava para nós, estudo, comida, roupa e honestidade! E posição social! NICOLAU – Eu acreditava! Eu achava que ia poder fazer alguma coisa... se eu não tivesse medo! Eu acreditei no Cristo! ARTHUR – Mas o Cristo estava morto lá! NICOLAU – O Cristo não está morto. O Cristo não morre! ARTHUR – O Cristo morreu sufocado pela Igreja. A Igreja matou o Cristo! Você não quer ver... eu também não queria ver... Eu não queria ficar sozinho... Eu aprendi, com aquela noite, a ter desprezo pela Igreja!

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NICOLAU – Mas eu não estou falando da Igreja oficial! Você não compreende? Eu estou falando da Igreja viva! ARTHUR – Mas a Igreja que existe é a Igreja oficial, e o Cristo que existe é o Cristo oficial! NICOLAU – A Igreja... ARTHUR – A Igreja virou rock!

(Arthur levanta-se) Para mim, o Cristo da Igreja Católica estava morto, quando eu me senti na rua, eu me lembro... era de madrugada, era como quando a gente ia para as férias... eu tinha juntado tudo o que era meu, meus livros, minhas roupas, minhas coisas, os santinhos com dedicatórias, as cartas... tudo! Eu estava sozinho com as minhas malas, lá fora, sem ter me despedido de ninguém, sozinho. Então, eu olhei para o prédio do seminário. Estava apagado. Fiquei parado, olhando durante muito tempo. Tinha acabado tudo. Tinha acabado o medo dos padres, dos colegas, a campainha da manhã, as férias, as filas, a piscina, o campo, as cartas de casa, os conselhos, as confissões. Tinha acabado tudo, Nicolau! Tinha acabado a batina, aquele prédio escuro, os ofícios religiosos, tinha acabado tudo! E, como a minha adolescência, que tinha se consumido durante todo aquele tempo, naquele prédio sombrio, eu compreendi que o Cristo da Igreja Católica estava morto. Não! Eu não quero mais lembrar essas coisas. Eu não quero mais sentir esse cheiro de incenso queimando!

(Arthur foge para a sala. Ele dialoga com Nicolau, de fora). NICOLAU – O que você vai fazer? ARTHUR – Vou sair! NICOLAU – Você vai sair? ARTHUR – Vou encontrar o Ivo, lá fora! NICOLAU – Vai me deixar sozinho aqui? ARTHUR – Você fica dormindo no sofá. NICOLAU – Não estou com sono! E não quero ficar sozinho!

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ARTHUR – Então você vem comigo. NICOLAU – Aonde vamos? ARTHUR – Vou levar você para conhecer a Classe. NICOLAU – É uma e meia da manhã! ARTHUR – Agora é que está bom! Você vai conhecer travestis, prostitutas, filhos de família pervertidos, muito lamê, muito teatro. Tem de tudo, Nicolau. Para você, que está atrás de experiência, vai ser uma forte. Com a moda desses hippies, virou uma flor só! Depois, eu levo você no bar, para você ver homem dançando com homem, homem beijando na boca de homem e outras coisas assim. NICOLAU – Eu não quero ir! ARTHUR – Você está com medo? NICOLAU – Eu não quero conhecer este mundo! Ele só me dá nojo. ARTHUR – Não precisa ter nojo, ele faz parte de toda a cidade grande! NICOLAU – Quero ficar aqui, bebendo com você. ARTHUR – Você quer beber? NICOLAU – Podemos beber juntos. ARTHUR – Você vai conhecer as bruxas de São Paulo! NICOLAU – Não quero! ARTHUR – São elas que comandam o gosto do povo! NICOLAU – Quero ficar aqui! ARTHUR – Tem gente rica. NICOLAU – Não!

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ARTHUR – Dizem até que não dá outro poder em São Paulo! NICOLAU – Quero beber, com você, aqui. ARTHUR – Você não vai perder o que São Paulo tem! (Silêncio de Nicolau. Pausa).

(Depois de um tempo, Arthur volta, ainda de batina, mas agora, desabotoada) Então nós ficamos aqui. Nós bebemos aqui. Vamos tomar o vinho importado. Ele tem a mania de vinho importado de Marseille. Vinho importado e rosas! Você percebeu que ele tem mania de rosas? NICOLAU – Ele me disse que gosta muito de rosas. (Arthur abre a garrafa de vinho e serve Nicolau) É muito caro? ARTHUR – Ele disse que é. Ele sempre faz questão de dizer que as coisas são caras. Os sapatos, as camisas, as roupas. Tudo é caríssimo! NICOLAU – Sobe esse vinho? ARTHUR – Sobe um pouquinho (os dois bebem).

Sabe que ele é mesquinho? NICOLAU – O Ivo? ARTHUR – O Ivo... ele é estranho... eu não consigo entender muito ele... ele tem coisas esquisitas. Às vezes, ele chega de tarde, triste. Eu estou sentado numa dessas poltronas, quando eu estou em casa, e ele não me cumprimenta e nem fala comigo... é como se eu não existisse aqui dentro. Então, ele tira a roupa, e fica só de cueca... aí ele senta na cama assim, e fica chorando, sem fazer o menor ruído... À noite, ele reza antes de deitar... ele reza... eu disse uma vez a ele, que rezar é um vício, mas ele não respondeu nada... ele me acariciou a cabeça até dormir, como se eu fosse filho dele. Eu faço crueldade com ele: ele tem horror de ser mesquinho, mas eu demonstro pra ele que ele é. É ele quem paga tudo. Ele diz que me dá dinheiro, mas me deixa sem, porque assim eu não fico livre... ele acredita que a minha liberdade depende dele, mas no fundo, ele sabe que não é. Então ele me segura de todos os modos possíveis. Eu tenho um pouco de necessidade dele, porque nós aprendemos a viver juntos, um agredindo o outro. Eu magôo ele, até onde não é mais possível. E ele também me magoa. Ele, às vezes, sai pra

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caçar, e me leva junto... então ele caça, e eu fico esperando num bar... aí, ele volta, senta junto comigo, e me conta tudo direitinho, como foi com o outro, detalhes, e nós ficamos rindo e bebendo até de madrugada. E quando a gente volta Nicolau, é como se a gente fosse dois irmãos... Dentro de casa, quando a gente não tem nada pra fazer, ele fica imitando como as bichas caçam e como os entendidos vivem. Ele faz travesti pra eu me divertir, e me seduz aqui dentro, brincando. (Pausa).

Mas, às vezes, eu tenho medo que ele me mate! NICOLAU (Assustado) – Ele é capaz disso? ARTHUR – Ele é! Às vezes eu tenho medo que ele me mate! NICOLAU – E você não tem medo? ARTHUR – Eu tenho a impressão de que se algum dia eu resolvesse trabalhar e me realizar, ele iria atrás de mim, e me mataria... Ele acredita que eu sou uma pessoa completamente perdida, e então, ele me ama... Mas, eu tenho medo que um dia, eu acabe com a vida dele! Eu tenho medo! Eu tenho medo que um dia, eu acabe matando ele! (Barulho fora, de porta de elevador.). NICOLAU – É o Ivo? ARTHUR – Não. É a vizinha! Enquanto o Ivo não chega podemos continuar bebendo aqui. NICOLAU – Eu fiquei com medo agora. Ele é capaz de te matar? ARTHUR – Existe este clima entre nós dois. Nossa relação virou um perigo, para os dois... NICOLAU – E você? ARTHUR – Não sei como tudo isso vai acabar. Fomos longe demais. Ele conhece tudo sobre mim, e eu conheço tudo sobre ele. Criamos uma cumplicidade perigosa. (Pausa.) Mas não se preocupe... NICOLAU – E se eu fosse embora? ARTHUR – Agora você fica! (Pausa.).

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NICOLAU - Você não tem medo de viver aqui, sabendo que pode ser assassinado de uma hora para a outra? ARTHUR – Faz parte da minha profissão.

NICOLAU – Mas e qual é a sua profissão? ARTHUR – Mas você não percebeu ainda? NICOLAU – Você vive disso...? ARTHUR – É o meu ganha pão! NICOLAU – Você não faz mais nada? ARTHUR – Não faço mais nada... (Pausa) Eu decidi assim. (Pausa) Faz muito tempo que eu decidi assim. NICOLAU – Mas isso não é profissão! ARTHUR – É a minha! NICOLAU – O que você faz? Você não faz nada, além disso? ARTHUR – De dia, eu passeio pela cidade... encontro com gente que vive o mesmo tipo de vida que a minha... O apartamento fica livre, nós nos encontramos aqui no apartamento e ficamos aqui. NICOLAU – À toa? ARTHUR – Conversando... esperando a noite! NICOLAU – E todos vivem como você? ARTHUR – Todos vivem como eu. (Pausa.). NICOLAU – E ele? ARTHUR – De noite ele vem. Jantamos juntos, conversamos, vamos a algum bar. Ele tem as amigas dele. (Pausa.) O tempo passa assim.

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NICOLAU – Por que você escolheu isso? ARTHUR – Não tinha outra saída. NICOLAU – Você era tão limpo! Até eu tinha inveja de você! ARTHUR – Conheci um tipo que me levou para isso. NICOLAU - Quem? ARTHUR – Um ator de teatro! Um pervertido sexual! NICOLAU – E você entrou nessa? ARTHUR – No fundo, era o que eu merecia... Sabe, Nicolau, existe sempre um que nasceu destinado a estar lá... sozinho e abandonado! E esse era eu... (Pausa.) Às vezes, eu vou ao cinema com ele. NICOLAU – Ele paga você? ARTHUR – Nossa vida até que é divertida. Ele me sustenta. É uma sociedade à parte. Mas é divertida. É mais interessante do que a sociedade verdadeira. NICOLAU – Você vai continuar nisso? ARTHUR – Eu não tenho mais saída. Já fui longe demais. (Pausa.) Eu fiquei conhecendo a sociedade verdadeira, vivendo nessa, daqui. Tem cada história, Nicolau! NICOLAU – Não quero saber sobre isso. ARTHUR – Não sei como vai ser o desfecho. Ainda não sei. Pode ser que não aconteça nada. E pode ser que aconteça tudo. (Pausa) Têm muitos problemas. O principal deles, é que você começa a ficar marcado na praça. NICOLAU – E você já é? ARTHUR – Ainda não, mas já estou próximo! (Pausa). NICOLAU – E daí?

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ARTHUR – Aí: sabe como é, a barra pesa. Você começa a ser discriminado. Mas, eu já vi que comigo, não vai ter esse problema. Eu tenho sorte. Sabe por que isso não vai acontecer comigo? Porque eu não tenho o estilo dos outros. NICOLAU – E qual é o estilo dos outros? ARTHUR – É aquele estilo que você conhece, Nicolau! NICOLAU – Que estilo? ARTHUR – Aquele estilo... NICOLAU – Ah! Sei... ARTHUR – Eles acham que eu sou um espião do sistema. NICOLAU – E como você disfarça, Arthur? ARTHUR – Finjo que sou fã das atrizes americanas, que entendo da vida da Carmem Miranda, e por aí afora... NICOLAU – Você não vai viver muito tempo, Arthur. ARTHUR – Não vou? NICOLAU – Claro que não! ARTHUR – É uma aventura, um jogo (sinal de campainha). O Ivo!

(Arthur vai abrir a porta. Demora alguns instantes. Depois volta sozinho) Ainda não era ele. Era um conhecido meu, pedindo pra dormir aqui. (Pausa. Arthur bebe um cálice de vinho, de uma só vez.).

Você lembra daqueles quartos divididos com duratex, aqueles quartos todos vazios do Seminário? NICOLAU – A ala abandonada do prédio velho. ARTHUR – A ala abandonada do prédio velho! Tudo cheio de pó... restos de camas, cobertores e colchões. Tudo desabitado... mofo... Ninguém mais ia lá! Eu ia lá, de tarde.

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NICOLAU – Você ia para lá? ARTHUR – Depois das cinco da tarde, depois do banho, quando estava todo mundo estudando, eu fugia e ia para lá... NICOLAU - Sozinho? ARTHUR – Sozinho. Eu ia para lá, sozinho e sem batina... NICOLAU – Sem batina? ARTHUR – Eu gostava de ficar sem batina... Eu andava sem batina e sozinho, por aquele lugar. Eu andava pelos corredores, entrava naqueles quartos vazios... sozinho. Eu não sentia calor lá. Fazia frio, e estava tudo em silêncio. Estava tudo em silêncio na ala abandonada do prédio velho! (Pausa.). NICOLAU – E você? O quê você fazia? ARTHUR – Eu... conversava com Deus... ARTHUR – Você conversava com Deus? ARTHUR – Não. Eu estava sufocado pela tristeza. É isso... Eu não conversava com Deus. Eu estava sufocado de tristeza. Eu recordava a vida que eu tinha vivido no mundo... NICOLAU - Como? Mas você nunca tinha vivido no mundo! ARTHUR – Eu recordava a vida que eu tinha vivido no mundo... Eu recordava o calor de gente – o calor de gente que eu não tinha vivido -... Eu recordava e sentia... saudade, Nicolau! Eu estava sufocado de tristeza e de saudade. Eu chorava sozinho naqueles corredores vazios, no meio daquelas coisas abandonadas... Depois, eu corria para a sacada e olhava, durante muito tempo, os corpos lá longe... Minas! Minas por todos os lados!... Em agosto, estava tudo asfixiado! De fumaça! Os campos estavam todos queimados, e havia muita fumaça! Fazia muito calor, o calor de agosto e o calor que vinha dos campos queimando! Estava tudo silencioso, seco e... sufocante. E esse calor que sufoca, esse calor que sufoca, esse calor que sufoca! Não tinha chuva nem ar! Mas, como era bonito, assim mesmo! Horrível assim, como era bonito! Eu não conversava com Deus, eu estava sufocado, sozinho, eu estava sendo asfixiado sozinho! (Pausa.) Eu via, da sacada, os outros seminaristas

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andando lá fora... no jardim. A grama do jardim estava toda seca. Eu via aqueles seres... dispersos. Como figuras sem corpo, eram como figuras sem corpo, em silêncio, se locomovendo... Eu não falava com Deus, eu já tinha possuído Deus, eu tinha possuído Deus para sempre. Eu não podia tirar Deus de mim, nunca mais. Eu nunca mais podia tirar Deus de mim, apagar Deus de mim! (Pausa.). NICOLAU – Você não continua? ARTHUR – Não. Quer mais uma bebida? NICOLAU – Não. Não quero mais! Estou ficando bêbedo! ARTHUR – Toma mais um pouquinho! Eu tomo mais um pouquinho e você toma mais um pouquinho. NICOLAU – Eu quero continuar ouvindo você contar. ARTHUR – Sobre o quê? NICOLAU – Sobre a ala abandonada do prédio velho... ARTHUR – Eu inventei essa história. Eu fui lá uma, ou duas vezes, para me preparar para os exames. NICOLAU – A ala abandonada do prédio velho foi demolida o ano passado. ARTHUR – Demoliram a ala? NICOLAU – Vão construir um prédio novo, no lugar. ARTHUR – Demoliram a ala... NICOLAU – O que foi que aconteceu com você? ARTHUR – Não, não foi nada! Eu acho que o vinho me fez mal... (Nicolau ampara Arthur, segurando-o.). NICOLAU – Você está se sentindo mal?

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ARTHUR – Não! Eu estou bem. Me deixa! Eu vou tomar um copo de água, lá dentro. (Arthur se desfaz de Nicolau e sai.).

(Nicolau fica sozinho. Arthur volta, e se detém no fundo da sala. Está sério e silencioso.). NICOLAU – Você está bem? ARTHUR – Estou bem. NICOLAU – Você não quer dormir? ARTHUR – Não podemos dormir, ainda. NICOLAU – Por quê? ARTHUR – O Ivo ainda tem que chegar... Enquanto ele não chegar, não podemos dormir, porque ele pode chegar acompanhado! NICOLAU - Acompanhado? ARTHUR – Acompanhado de um homem, é lógico! NICOLAU – Sempre que ele sai, ele... ele volta acompanhado? ARTHUR – Ele não sai faz tempo. Saiu hoje, porque você apareceu e não quis ir para a cama com ele. NICOLAU – Por causa de mim? ARTHUR – Mas não se sinta culpado. Isso é assim mesmo! Eu também já deixei de ir para a cama com muita gente. Eles sempre ficam bonzinhos na cama. Depois é que recuperam o machismo, e aí ficam exigentes, querendo nos dar porrada. NICOLAU – E, quando eles vêm, eles costumam dormir aqui? ARTHUR – Às vezes, sim. Mas, se vierem hoje, é claro que não vão dormir. NICOLAU – Não seria melhor eu ir embora?

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ARTHUR - Agora? Você ficou até agora: fica até o desfecho! Depois, você dorme comigo no sofá. Eu fecho a porta da sala e dormimos nós dois juntos. Bebe mais um pouco de vinho! NICOLAU – Não. Eu não quero mais! ARTHUR – Você está nervoso, bebe mais um pouco. (Arthur serve mais vinho a Nicolau.) Deixa eu ver que horas são: ainda não são três. Podemos ficar sossegados. Antes das quatro, ele não chega. (Pausa.). NICOLAU – Arthur, eu quero te ajudar! Eu queria ir embora, mas depois eu fiquei pensando: eu não posso te deixar aqui.

Você vai comigo! ARTHUR – Pra onde? NICOLAU – Eu te levo comigo. ARTHUR – E aí você me deixa onde? NICOLAU – Você fica na casa desse padre, amigo meu. Eu não posso te deixar aqui. ARTHUR – E aí? NICOLAU – Aí nós arrumamos um emprego pra você. ARTHUR – Que tipo de emprego? NICOLAU – Banco, escritório, qualquer coisa! Nós te arrumamos qualquer coisa! ARTHUR – Eu não sei trabalhar, Nicolau. Sou incompetente para o trabalho. NICOLAU – Alguma coisa você sabe fazer. ARTHUR – Sou incompetente. Ninguém me aceita! NICOLAU – Você trabalhou no laboratório.

Você não se saiu bem?

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ARTHUR – No começo qualquer um se sai bem. NICOLAU – Você não foi bom vendedor? ARTHUR – Não. Fui péssimo! Não consegui vender nada. O laboratório tentou me expulsar várias vezes! NICOLAU – Vou te levar comigo embora disso aqui, e você vai trabalhar! ARTHUR – Ninguém mais me aceita Nicolau! NICOLAU – Por quê? ARTHUR – Ninguém mais me aceita pra trabalhar. Em lugar algum! (Pausa). NICOLAU – O que você fazia no laboratório? ARTHUR – Eu fazia de tudo. Propaganda, venda e cobrança. Fazia a propaganda de produtos para os médicos, depois ia à farmácia e vendia para os farmacêuticos. Depois eu ia receber fácil. O esquema da Firma era esse. Facílimo. A vida pra mim, sempre esteve resumida nisso: vender para sobreviver. Eu estava mês por mês marcado por isso. Eu tinha que vender. Era a firma que marcava o que eu tinha que vender! Eu tinha que obrigar os médicos a receitar os produtos, senão eu não vendia. Era isso todo o mês. Isso, de segunda a sábado. O negócio ficava repetindo de mês em mês. E o tempo ia passando, e eu ia produzindo, produzindo, produzindo... NICOLAU – E como é que você queria que fosse? ARTHUR – Eu queria que fosse humano! NICOLAU – Eu nunca trabalhei como você para sobreviver. Mas não posso deixar você ficar aqui! Você tem que voltar ao trabalho. ARTHUR – Eu vivi com eles... eu conheço eles: eu conheço a raça que compra televisão e carro a prestações mensais, que vai à escola de noite, vai para Santos com a família no fim-de-semana... Eu conheço essa raça, que assina ponto na hora certa, e sai do serviço na hora certa. Eu fui despejado aí. Assim como fui

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despejado no seminário. Eu sempre fui despejado. Eu nunca pude escolher nada. Eu era honesto e dedicado. Eu trabalhava nas horas certas, mesmo quando não era fiscalizado. Eu tinha medo. Eu levantava com medo. Eu tomava banho com medo, eu pegava a minha pasta com medo. Eu trabalhava com medo. Eu dormia com medo! Eu fui introduzido num mundo de medo inexplicável, quando saí do Seminário. Tinha começado o meu processo de sobrevivência. De repente, eu comecei a ter medo, Nicolau. As pessoas começaram a me dar medo! Os meus colegas me davam medo. Os meus chefes me davam medo. Um dia, eu entrei na sala do chefe, que tinha sido promovido por merecimento – o filho-da-puta tinha sido promovido por merecimento! -, tinha sido vendedor, e agora era chefe! Todos os meus colegas queriam ser promovidos por merecimento, às custas de você, Nicolau, às custas de todos e às custas de produzir e produzir. O filho-da-puta não pensava: ele só produzia e se promovia... Ele estava fumando cigarros americanos. Eu entrei com medo, para falar com ele. Ele não sabia a cor dos pentelhos dele, mas sabia de cor os gráficos de venda. E ele era honesto: os filhos dele estavam estudando, a filha ia se casar, a mulher dele ia à igreja aos domingos. Aí, eu cheguei e fiquei em pé, com medo, e falei pra ele que eu estava esgotado, estava doente, e precisava de uma semana para me tratar. Ele sorriu, mandou-me sentar, falou a respeito de vendas, de propaganda, do progresso da Firma e aí ele me disse que os meus problemas particulares não interessavam à Firma. Aí, eu descobri que os meus problemas particulares, não interessavam a nenhuma firma. O que é preciso é ser pontual, honesto, e produzir, produzir e produzir. É assim. É a regra do jogo. Produzir e se promover. Depois, vestir um terno e pôr uma gravata, e repetir para os outros a mesma coisa: produzir, produzir e produzir. É isso. O que é preciso é produzir e produzir. (Pausa. Arthur caminha até o vaso de rosas e tira uma delas) Então, eu vi que todos estão com as mãos cheias de merda. Esse bando de vira-latas que faz piqueniques no fim-de-semana está com as mãos cheias de merda! Eles guardam a moral dos outros, e fincam os pés no que eles chamam de honestidade e justiça, se produzindo e se promovendo, ajoelhando e se promovendo. Eu conheço essa raça. Essa raça que não tem esperma para modificar e nem para fazer tudo explodir, essa raça que assassina todo dia, mas que não tem esperma para modificar e nem para fazer explodir. Eu cheirei essa raça na cara! Um dia, eu peguei um pacote de amostra de um produto revolucionário... um produto com cinco anos de pesquisa... (Arthur gira a rosa na mão e a contempla) Eu examinei bem aquele

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milagre. E peguei e esmaguei o milagre com as minhas próprias mãos! (Esmaga as rosas com as mãos) Eu joguei o milagre no chão e pisei no milagre! Eu esmaguei o milagre debaixo dos pés! Eu esmaguei, e eu tomei verdadeiro horror de todos os milagres! Eu estou sozinho, Nicolau... Agora eu sei que estou sozinho... Eu fiquei sozinho depois que eu roubei o dinheiro das duplicatas da Firma... NICOLAU – Você roubou da Firma? ARTHUR – Foi o meu gesto de despedida! Fiquei sozinho na praça da biblioteca, sentado num banco... eu estava livre. Como eu estava livre. Sabe, Nicolau, eu quis ser um santo! Eu pensava que a santidade era o bem. No seminário eu passei o tempo inteiro tentando fazer o bem, mas de noite, alguns demônios ficavam andando na minha cama e por dentro do meu pijama azul... foram eles que me ensinaram o outro caminho... foram eles que me ensinaram que já apodreceu, Nicolau! NICOLAU – A polícia nunca foi atrás de você? ARTHUR – Não. A polícia nunca veio atrás de mim. Lá, na praça da biblioteca, eu de repente queria que a polícia viesse para me torturar, e acabar de vez com tudo. Mas nunca, nunca veio ninguém... Eu fiquei muito tempo sentado num banco, vendo as pessoas passando e eu já estava longe delas, como fiquei longe dos padres do Seminário! Eu tinha aprendido a ver no mundo, como vi lá! O chão estava coberto de folhas secas. Eu fiquei sentado lá a tarde inteira... Eu tinha sido vomitado do estômago! Eu sentia assim: que eu tinha sido vomitado! Eu tinha saído para respirar Deus, Nicolau! Deus é hediondo! O Deus que me perseguia, em silêncio, como se eu fosse um filho que não queria nascer. Deus é hediondo! O Deus que eu tinha que comer e respirar no vômito, é hediondo! E eu era hediondo como Deus, sentado lá no banco, sozinho... NICOLAU – Eu estou aqui! ARTHUR – Hoje você veio. Mas você não pode fazer mais nada por mim! Meu Deus, como é alto este apartamento! Estamos no alto de São Paulo! (Arthur fecha a janela. O ruído de carros cessa.) Está chovendo. (Pausa. Silêncio.) Uma vez, num sábado de noite, como hoje, eu saí na rua e encontrei uma moça que estava perdida, como eu, no centro de São Paulo. Era do interior, e tinha vindo para

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procurar emprego na cidade. Foi na rua. Nós nos vimos, e foi como se já tivéssemos nos conhecido, um ao outro, há muito tempo. Andamos nós dois juntos pela rua, e ficamos juntos até de madrugada... O meu sangue ferveu, e ela me fazia sentir como um animal selvagem... Depois, fomos a um hotel, nós dois juntos. As ruas estavam desertas e já era quase de manhã, em São Paulo. Era como se nós estivéssemos saindo de São Paulo... indo embora de São Paulo, de manhã... saindo de São Paulo... indo embora de São Paulo... (Barulho de elevador.) Você ouviu? Agora é ele. O Ivo! NICOLAU – É ele quem está chegando? ARTHUR – Agora é ele! (Os dois esperam em silêncio e a campainha começa a tocar ininterruptamente.) Está sozinho! Se está de mau-humor é porque não caçou ninguém! Eu vou abrir a porta. (Arthur sai para abrir a porta. Nicolau aguarda. Volta Arthur, com Ivo, que está bêbedo e agressivo.).

IVO – O que é isso? De batina? Que brincadeira é essa? ARTHUR – Você está todo molhado! IVO – Que frio! Que porra de cidade é essa que faz frio e chuva de madrugada! Ah, eu estou tremendo! Me dá um conhaque! ARTHUR – Não. Você já está bêbado. Você não vai querer beber conhaque agora! IVO – Me dá conhaque! Eu bebo quando eu quero! ARTHUR (para Nicolau) – Garçom, um conhaque! (Nicolau serve um conhaque. Pausa.).

IVO – Por que você não foi me encontrar? Eu fiquei sozinho a noite inteira... Vocês dois aqui, brincando de padre, e eu me estrepando aí na rua, sozinho! ARTHUR – Quem mandou você sair? Você podia muito bem ter ficado. IVO – Você me deixou sozinho a noite inteira: sozinho!

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ARTHUR – Mas o que é que é isso? Você pensa que me manda? IVO – Mando sim! Eu te pago pra você ficar junto comigo! Eu te pago pra isso! ARTHUR – Ninguém manda em mim! Ninguém me dá ordens! Eu quero ver quem é que vai me dar ordens! IVO – Eu fiquei sozinho a noite inteira, no meio daquelas bichas, caçando... ARTHUR – Azar! E se não caçou ninguém, pior pra você! IVO – O apartamento é meu, e você não tem o direito de falar comigo assim, aqui dentro! ARTHUR – O apartamento é seu, tudo isso aqui é seu, mas eu não sou seu ainda, tá bom? Ninguém me dá ordem! Você não me dá ordem! Eu vou onde eu quero, eu fico com quem eu quero e faço o que eu quero! (Pausa).

IVO – Ah, eu estou cansado! Estou cansado disso tudo! Sozinho a noite inteira. Eu tenho quase quarenta anos, e ter que ouvir os outros me chamando de bicha, de boneca... Aquela mesma gente encostada nos bares, aquela gente passiva, que não serve pra nada! As mesmas caras todas as noites! Aquela gente apodrecida e vazia, que nunca vai ser ninguém na vida! As mesmas caras iguais todas as noites! Todo o mundo é a mesma coisa nessa porra de cidade! Maldito vício! Por que eu não acabei com esse maldito vício? Isso já é uma doença! Por que é que eu tenho que procurar homem, ainda? Por que é que eu não consigo acabar com isso de uma vez por todas? (Pausa) Quero mais um conhaque!... Isso já é uma doença! Não é uma pessoa que eu estou procurando aí, na noite! Nem um homem! Isso já é uma doença! Virou uma doença! Tem qualquer coisa nessa cidade que faz a gente ficar assim. Eles vêm me pedir cigarros todas as noites! Por que é que eu tenho que dar cigarros para eles e pagar cafezinho e bebidas para eles? Por que é que eles têm que vir pedir cigarros para mim? É como se eu fosse lá, toda noite, ainda. Se eles pudessem ainda ter nojo! Mas eles não têm mais nojo! Ninguém mais tem nojo de mais nada!

E ainda por cima, aqueles chantagistas! ARTHUR – Quem fez chantagem com você?

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IVO – A polícia! ARTHUR – Mas... a polícia? IVO – Fizeram chantagem comigo... Eu ia descendo a Avenida Ipiranga, e aí eu vi um menino, que eu nunca tinha visto antes... aí ele me olhou, e eu parei pra conversar com ele... ele tinha uma carinha assim de anjo loiro, puro e meigo... aí, eu fiquei conversando com ele, e ele ficou olhando para os lados. Depois me convidou para descer com ele até à esquina. Quando eu cheguei lá, tinham dois homens esperando... dois tiras! E eu entrei nessa! Vieram comigo até aqui na porta e apresentaram a carteira da polícia! Eu tive que dar dinheiro pra eles e ainda me ameaçaram com prisão! O menino ficou com a mesma cara loira, olhando pra mim, sem fazer nada, sem mover um músculo na cara! ARTHUR – Imagina se a polícia vai entrar nessa história! Foram marginais! (Ivo cambaleia e cai).

ARTHUR – Não fica aí assustado. Isso sempre acontece, mesmo sendo tipos como o Ivo, e decidem os destinos da nação. São os senhores dessa terra. NICOLAU – O que vamos fazer? ARTHUR – Botar a boneca na cama! NICOLAU – Vai ser preciso carregar? ARTHUR – É lógico! Você acha que ele é capaz de andar ainda? (Arthur e Nicolau carregam Ivo até à cama, e cobrem-no, tendo antes tirado o seu sapato, o seu casaco e a calça. Sinistro.) Eu sei o quê eu vou fazer! NICOLAU – O quê você vai fazer? IVO – Nós vamos varrer a coisa de São Paulo... Vamos deixar São Paulo branca... limpa... surda... Mas sem a coisa. NICOLAU – O quê você vai fazer? ARTHUR – É muito simples... Nós varremos a coisa. (Pausa.).

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IVO (Da cama) - Eu vou vomitar...! ARTHUR – Eu vou trazer o teu remédio... espere um pouquinho... IVO – Acho que vou vomitar... Amanhã eu vou dar queixa! Ah, acho que vou vomitar! E você, eu vou te mandar embora da minha casa! ARTHUR – Onde foi que ele guardou o gardenal? Ah, está lá no armário (sai).

IVO – Não quero mais ver a tua cara! Você já é igual a eles! Amanhã, você pode pegar as suas coisas, e se mandar daqui! E eu não quero ver este teu irmão padre aqui no meu quarto!

(Arthur volta trazendo um vidro de gardenal). NICOLAU – O que você vai fazer? Você vai dar o gardenal pra ele? ARTHUR – Ele toma gardenal pra dormir quietinho, não é Ivo? Você não toma gardenal pra dormir quietinho? NICOLAU – E ele vai tomar gardenal bêbado assim? ARTHUR – Ele vai tomar... ele vai tomar com vinho importado de Marseille! Traz a garrafa de vinho importado de Marseille! (Arthur pega a garrafa de vinho e despeja num cálice) Você vai tomar vinho importado de Marseille! E, com música! Eu vou pôr um disco para você. Vou botar aquele disco dos hippies, que você gosta. Sabe qual? Eu vou botar para você. (Arthur vai até a sala e põe um disco de rock.). IVO – Vou falar com os meus amigos, e aí você vai ver o que vai lhe acontecer! (Arthur despeja todos os comprimidos do vidro, na mão) Você vem dormir comigo, Arthur? ARTHUR – Não. Vou deixar você quietinho, sozinho... andando na avenida Ipiranga... andando na avenida Ipiranga, de dia, com sol! A Avenida Ipiranga está cheia de rapazinhos e você vai andando sozinho... só você e eles! E todos querem você! Eles todos querem só você! IVO – Eu quero que você venha dormir comigo!

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ARTHUR – Só você, sozinho... na avenida Ipiranga, de dia, com sol! E os meninos todos, olhando só para você! IVO – Você vai me deixar sozinho... ARTHUR – Vou te deixar sozinho... IVO – Mas eu não quero! ARTHUR – Você quer!

(Nesse instante, Nicolau empurra os comprimidos da mão de Arthur. Segura-o e empurra-o contra a parede). NICOLAU – Você! Você não tem esse direito! Você passou de todos os limites! Você queria assassinar! (Nicolau continua segurando Arthur. Arthur se deixa assim, sem qualquer reação. Ivo se levanta um instante na cama, olha pra os dois, depois se volta para o canto e se cobre. Nicolau solta Arthur) Você ia cometer um assassinato! E você ia me envolver num... assassinato? (Pausa. Nicolau contempla a cena. Ele está acuado, agora) Tudo continua igual! Tudo tem que continuar igual! (Pausa) Tudo continua igual! Eu vim visitar você, porque tudo estava igual que antes. Foi você quem entrou no caminho errado, porque tudo continua igual! Tudo tem que continuar igual! Não, tudo continua igual... (Pausa. Silêncio) E eu, eu vou ser padre! Agora eu vou! Para provar a você que a Igreja não faliu, que a sociedade não faliu! Tudo continua igual... (Pausa. Gritando) Tudo continua igual!!! (Pausa) Como sempre foi. É o certo. O Estado continua, a Igreja continua, a sociedade continua. Como sempre foi... Eu estou no caminho certo. Tudo continua igual... Como sempre foi... tudo continua igual... (Arthur tira a batina. Silêncio entre os dois) Sempre foi assim! Não vai ser por causa de um, que o edifício vai desmoronar. Sempre foi assim. Ordem, rigor, tudo continua igual. Tudo tem que continuar igual! (Silêncio).

(Arthur abre a janela. Ele sobe na janela para tentar o suicídio). ARTHUR – Consumatum est! NICOLAU – Arthur! Foi você quem escolheu este caminho! ARTHUR – Não vem até aqui... eu estou sozinho! Eu me tornei uma coisa monstruosa e tenho que morrer!

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NICOLAU – Eu te absolvo! ARTHUR – Por que, se você já não tem nenhum poder? NICOLAU – Você vem comigo! ARTHUR – Não queria dizer a você, mas já estou marcado! NICOLAU – Eu encontro a solução! ARTHUR – É impossível! NICOLAU – Desce daí! ARTHUR – Vai ser rápido e definitivo! NICOLAU – O Cristo... O Cristo está com você! (Nicolau vai até à janela e toma Arthur nos braços. Os dois se abraçam durante muito tempo. Arthur se desfaz de Nicolau).

ARTHUR – São quase cinco da manhã... NICOLAU – Nós vamos... dormir? ARTHUR – Não. Eu vou abrir a porta pra você. NICOLAU – Você vai me mandar embora? ARTHUR – Eu vou te deixar ir embora. NICOLAU – Você me tira tudo e me manda embora... sozinho? ARTHUR – Eu te dou São Paulo de presente! (Pausa). NICOLAU – Quer me dizer que... que eu não posso dormir aqui? ARTHUR – Não. NICOLAU – Nem no sofá? ARTHUR – Nem no sofá. NICOLAU – Mas está chovendo lá fora.

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ARTHUR – Fica esperando chegar o sol, num bar... Toma alguma coisa quente! Fica esperando debaixo de uma marquise... Essa hora já tem ônibus. Toma um ônibus. (Nicolau prepara-se para sair. Pausa. Fica ainda algum tempo olhando Arthur, parado.). NICOLAU – Eu não posso deixar você sozinho! Sou teu irmão! ARTHUR – Você sabe que pra mim, já não tem jeito de voltar atrás! NICOLAU – O que vai ser de você, Arthur? ARTHUR – Vem, eu vou te abrir a porta. NICOLAU – E a nossa família? ARTHUR – Eles estão salvos! (Nicolau e Arthur saem. Pausa. Depois de algum tempo, Arthur volta. Vai até à janela e fica olhando a rua, do alto, durante muito tempo). IVO (da cama) – Arthur, você vem ou não vem dormir? (As luzes começam a baixar).

FIM