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JOÃO GAUDÉRIO A JOÃO PEÃO -VIDA E PAIXÃO - Texto de Aparício Silva Rillo

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JOÃO

GAUDÉRIO

A

JOÃO PEÃO

-VIDA E PAIXÃO - Texto de Aparício Silva Rillo

PERSONAGENS

MÚSICOS (Dois violonistas)

CANTORES (Três)

NARRADOR

JOÃO

INVERNO – SEU NICÁCIO

OUTONO – CIDÃO

VERÃO – GAVIÃO

PRIMAVERA – RITINHA

JOSÉ FRAGOSO

DON MORENO

ZÉ BICA

COÊIO

VADICO

ZORRILHO

PRIMEIRA PARTE

Músicos e Narrador. Dois violões e três vozes. Vestes de

gaúcho contemporâneo, em seu essencial: camisa, lenço,

bombacha, botas. Faixa na cintura o invés de guaiaca, para

melhor efeito cênico.

MÚSICOS (Tocam e cantam) – Gaúcho sou, / Nasci feliz, /

Nesta terra formosa no sul / Do meu país... / (Continuam a

canção, pianíssimo, durante todas as intervenções do

narrador.).

NARRADOR – Do meio agreste e semibárbaro da campanha, a

que Espanha e Portugal se dirigiam em busca do gado, vai

surgir o Gaúcho – mescla de raças e costumes que se cruzam

obscuramente, ao Deus dará do instinto e da aventura. A

história não saberia dosar-lhe os componentes. O que afirma de

positivo a seu respeito é que foi mais uma expressão econômica

do que um tipo étnico. (Guilhermino César, em “Raízes

Históricas do Rio Grande do Sul”.).

MÚSICOS (Tocando e cantando) – Gaúcho sou, / Nasci feliz, /

Nesta terra formosa no Sul / Do meu país... /

NARRADOR – O Gaúcho nasce, portanto, mestiço. Nasce do

ventre fácil da índia com o pai peninsular, dono das tradições

árabes, que vinha à América, fosse português ou espanhol,

trazendo a indumentária, o cavalo e os meios de vida que o avô

oriental lhe ensinara, por quase um milênio de ascendência

direta. (Manoelito de Ornellas, em “As Origens Remotas do

Gaúcho”.).

MÚSICOS (Tocando e cantando) – Filho de alguém com

ninguém, / Quando o Rio Grande nascia, / Com ele nascia

também... / Sangue de bugra com branco, / Quem teu nome

saberá?... / Se João não foi o teu nome, / João aqui te

chamarás. / João que foste e João que és, / E amanhã João que

serás. / Mesmo sangue noutra estampa, / Noutro João

renascerás... /

VOZ (Chamando de fora) – João!... (Apagam-se as luzes

sobre os cantores, que se retiram. Foco individual sobre

João, que adentrou em cena, com o palco às escuras.).

JOÃO (Vestido como Gaúcho primitivo) – Um dia me

disseram que eu me chamava João. Lembro-me que era uma

mulher e que era triste como um dia de fome. Lembro-me que

havia um rancho, e que havia um cavalo, e que o cavalo era

mais negro do que a noite. Alcei-me sobre o seu lombo, e

perguntei: “pra onde?” E disse-me a mulher: “os caminhos do

vento serão os teus caminhos. Tu estás maduro para ti e para a

terra, para o sol e para o sangue...” Colocou-me nas mãos uma

garrucha, um polvorinho e uma lança de meia-lua, e me disse

que haviam sido de meu pai, um gaudério que a tirara do rancho

onde nascera, na redução dos padres, nas Missões. E me disse

que o gaudério morrera numa guerra muito antiga, quando eu

recém pegava a engatinhar. Bati na anca do cavalo e ele voou

comigo. No tope da coxilha voltei-me para ver: era um rancho na

imensidão dos campos largos, portas e janelas de couro cru,

batendo ao vento. À sua frente, o vulto franzino da mulher,

vincha de couro a lhe prender as crinas escorridas. Nunca me

chamara de ‘filho’, de ‘meu filho’ – mas eu adivinhei que ali

ficava minha mãe. Nunca me acariciara - como a jaguatirica do

mato, que lambe o pelo da cria -, mas eu adivinhei que ali ficava

minha mãe. Nunca me disse, mas eu adivinhei de nascera de

suas entranhas magras, que seu leite me amamentara e que

seu olhar de bugra semibárbara me assistira crescer e amadurar

como um fruto do campo. Cerrei pernas no cavalo e me mandei

a La Cria. Para onde? Os caminhos do vento seriam meus

caminhos. Meu nome era João, e eu me fizera homem. Tinha

uma garrucha e uma lança de meia-lua. E o instinto me dizia o

que fazer com elas... (Apaga-se o foco de luz sobre João, que

se retira. Reacendem-se as luzes da cena. Adentra o palco

os componentes do TEMPO, representados Inverno, Verão e

Outono por homens, e a Primavera por uma mulher. Vestem

túnicas longas com as cores características de cada

estação. Posição inicial: em linha lateral, ao comprimento

do palco.).

TODOS (Em uníssono) – Nós o vimos partir em seu cavalo

negro como a noite. O mesmo João que conhecemos desde

quando nasceu, num rancho de taipa, nas Missões. Nossos

olhos tudo vêem, porque somos o Tempo: Tropeiro de Ronda

que não dorme nunca!

INVERNO – Inverno, a mim me chamam...

OUTONO – E a mim me chamam de Outono.

VERÃO – Por Verão chamam-me os homens...

PRIMAVERA – E Primavera é meu nome.

TODOS (Em uníssono) – Nós o vimos partir em seu cavalo

negro como a noite. O mesmo João que conhecemos desde

quando nasceu, num rancho de taipa, nas Missões... Nossos

olhos tudo vêem, porque somos o Tempo: Tropeiro de Ronda

que não dorme nunca!

INVERNO – Eu o fiz rijo e rude, com o meu frio. Eu o ensinei a

sofrer e a resistir à geada e ao Minuano; a não ter medo do

ribombo do trovão ou do laçasso do raio.

OUTONO – Eu o fiz compreender que, como as folhas que

caem, os anos passam e repassam – e que, portanto, também

um dia chegaria o seu fim. E, por tê-lo feito entender esta

verdade, teve consciência da morte e jamais a temeu.

VERÃO – Eu lhe dei as madrugadas frescas e os poentes, cor

de fogo. Mas também lhe sequei a garganta e lhe queimei os

músculos, para que soubesse dar valor às águas de uma fonte à

sombra de uma planta.

PRIMAVERA – E eu tapisei de flores o pasto onde estendia a

manta para o sono. Mostrei-lhe que a Natureza renasce a cada

ano; que da raiz queimada pelo inverno brota o mistério da flor a

cada Primavera – para que compreendesse que um homem que

morre, renasce no seu filho, e que o sangue deste filho é o

sangue do seu pai...

TODOS (Em uníssono) – Nossos olhos tudo vêem, porque

somos o Tempo: Tropeiro de Ronda que não dorme nunca!

(Intercalando vozes, usando umas e outras, para melhor

efeito.) E iremos contar a tua história, João, / E a história de teu

filho, / E a história do filho do teu filho, / E todos serão o mesmo

João que és / - A projeção em carne e sangue de ti mesmo, / No

roteiro do tempo e na cancha da vida. / E todos serão sempre o

mesmo João / Na mesma terra bruta onde nasceste bruto / Para

domesticá-la com teu braço e teu suor, / Com teu riso e teu

pranto... / A tua terra – João / O Velho Continente de São Pedro,

/ Hoje a gleba gaúcha do Rio Grande!.../

MÚSICOS (Tocando e cantando) – Gaúcho sou, / Nasci feliz, /

Nesta terra formosa no Sul / Do meu país.../

SEGUNDA PARTE

NARRADOR – A rápida colonização do Rio Grande do Sul, a

instalação das primeiras estâncias e, antes de 1732, as grandes

incursões lagunistas/paulistas, deve-se ao gado Chimarras, na

sua concepção de bravio e de xucro. Verdadeiro ouro ambulante

da época, este gado encheu de cobiça todas as classes sociais

de então, formando um tipo à parte, totalmente sui generis: o

Gaúcho-Soldado-Povoador – legítimo fronteiro, autêntico herói

na luta contra os invasores e na manutenção das linhas

brasileiras no extremo meridional. (Walter Spalding, em “Gênese

do Brasil Sul”.).

JOÃO (Postura de cena idêntica a da primeira parte) – “Os

caminhos do vento têm sido o meu caminho...” As patas do meu

cavalo fizeram rufar como um tambor de guerra, os campos

largos deste continente. A lança de meia-lua que foi de meu pai,

um gaudério que morreu numa guerra muito antiga, cortou como

um dente de tigre o garrão de muito xucro. Sacava-lhes o couro

e a graxa, que me compravam a peso de bom ouro, uns

barbudos contrabandistas que vinham não sei de onde.

Empandilhado: é claro – que são sem conta os gaudérios como

eu, que vivem desta faina... Mas nem rei e nem patrão que me

diga o que fazer ou que rumo tomar, porque um gaudério é seu

rei e seu patrão. Por onde me leve o vento, com meu cavalo me

mando. Um dia, longe - já muito longe dos pagos de onde eu

vinha -, um capitão barbaçudo me perguntou se eu me animava

a pelear. Me disse que Portugal precisava de gaudérios como

eu, que conhecessem a terra, o rio e os arreios, e conhecessem

os vaus e passos desses rios. Pouca diferença fazia entre

abater um homem e abater um touro... Por aventura no más, me

fiz soldado. E os castelhanos melenudos da outra banda,

conheceram o fio de minhas armas e o peso de macho de meu

braço...

NARRADOR – A larga faixa fronteiriça da campanha constituía

uma área indivisa, espécie de terra de ninguém, largo

compáscuo de caçadores de gado, onde se encarniçavam

desde muito, as avançadas lusas e castelhanas. Nestas

campinas operavam os campeadores no trabalho da courama –

índios e gaudérios de procedência vária, preadores espanhóis e

também portugueses, aventureiros mais ou menos apátridas...

(Moisés Velinho, em “Formação Histórica do Gaúcho Rio

Grandense”.).

TODOS (Em uníssono) – Nossos olhos tudo vêem, porque

somos o Tempo: Tropeiro de Ronda que não dorme nunca...

(Intercalando vozes, para melhor efeito.) Ao tranco do cavalo,

campo afora... / Melena ao vento e horizonte à frente, / João

Gaudério descobre o Continente / Que não passa de uma terra

por fazer. / Qual seu rumo? / Qual sem norte? / Qual seu fim? /

Nem ele o sabia... / O vento o levava / Por léguas e léguas / De

campos abertos / Cortados por rios. / Gaudério sem norte, / Sem

rei e sem roque, / Com outros gaudérios / Formando pandilhas /

À caça dos touros... / A carne pra fome... / E a peso de ouro / A

graxa e o couro / Que vinham buscar, / Por cobiça e ganância, /

Audazes propostos / Dos reis da mercância / Das fímbrias do

mar. / Era um trabalho bruto e divertido! / Ao touro que

escapasse à meia-lua / As boleadeiras a zunir no espaço / Iam

mais longe lhe truncar o passo / Num tombo feio na coxilha nua./

Era o campeiro a se formar no tempo, / Moldando aos poucos a

futura estampa / Do que seria mais tarde o construtor / Da

economia pastoril do pampa! / (Toque de clarim – avançar! –

executado à meia surdina, dando impressão de distância.)

Nós o vimos, depois, / No Sul do Continente, / Lá, misto de

gaudério e de soldado / - Espada à mão e cabeleira ao vento, /

Como um duende guerreiro da campanha, / A rechaçar as

ambições de Espanha, / Nos fortins da legendária Sacramento. /

Peleou em Santa Tereza, / Na Vila do Rio Grande e em São

Miguel. / D. Juan Salcedo conheceu-lhe as manhas / Quando o

grande capitão Pinto Bandeira / Passou como um tufão pelas

campanhas / Retomando os bastiões de Portugal! / Conquista

das Missões, anos depois... / Aventureiro e soldado,

acompanhou / Pedroso e Borges do Canto nesta gasta, /

Exemplo de bravura às gerações! / E não seriam mais que

quarenta valentes / Os que deram a Portugal o quase

Continente / Que é o território lendário das Missões! / Era o

velho Rio Grande de São Pedro / Que se esboçava nos mapas e

na história. / João e a terra se plasmavam juntos / Irmãos de

mesma seiva e mesma glória. / Da simbiose do gaudério e do

soldado / - Acabada expressão do trabalho e da guerra / Um

novo tipo social então surgia / Quando o Século Dezenove

amanhecia / Nos horizontes desta nova terra! (João adentra a

cena, vindo do fundo do palco. Abre-se o Conjunto

integrante do Tempo: dois para cada lado. A luz diminui o

foco de João, enquanto o Tempo continua a narrativa. João

dirige-se, lentamente, do fundo para a boca de cena.) Botas

garrão de potro e xiripá. / Faixa de pano forte na cintura /

Cingida ao couro cru das boleadeiras. / Camisa de algodão e

cincha nas melenas / E um bichará de lã para quebrar o frio. /

Valente e destabocado, / Independente e solito, / Amando,

acima de tudo, / Armas, cavalo e mulher. /

JOÃO (Cantando como trova) – Sou valente como as armas, /

Sou guapo como leão, / Índio velho sem governo / Minha lei é o

coração. / Só três coisas neste mundo / Quem é gaúcho requer,/

Bom cavalo e boas armas / E depois delas – Mulher! /

TODOS (Em uníssono) – Amando acima de tudo, / Armas,

cavalo e mulher! /

TERCEIRA PARTE

NARRADOR – Assim, este imenso espaço verde transformou-

se, graças ao gado e à Estância, no mais resistente bloco, que

enfrentaram nesta região, os espanhóis. E não haveria mais

força capaz de destruir aquele foco de resistência, que foram as

Estâncias multiplicadas, dia a dia, não mais ‘simples fogão

perdido no espaço imenso’, mas como núcleo de fixação – O

Lar. (Walter Spalding, em “Gênese do Brasil Sul”.).

INVERNO e PRIMAVERA (Intercalando vozes) – Já se

formava a primitiva Estância / - Um rancho grande na coxilha

rasa, / Misto de lar e misto de fortim. / E João, o andarengo, o

aventureiro, / O miliciano dos acampamentos, / O João que não

tinha rincão / Nem media distâncias, / Também plantou esteios –

com a Estância / Que seu braço levantara aos quatro ventos. /

INVERNO – Foi a Estância, João, que te incutiu no espírito

acostumado ao nomadismo, o sentido do lar e da querência.

PRIMAVERA – Foi a Estância, João, que te ensinou o doce

convívio da Mulher – não apenas o da Mulher na estrita

condição de fêmea, mas a Mulher companheira, esposa e mãe.

VERÃO – Foi a Estância, João, que te ensinou o espírito de

comunidade. Aprendeste com ela que um homem não vive só,

por mais que o queira...

OUTONO – Foi a Estância, João, que te ensinou que, embora

os campos sejam largos, é preciso que elejamos um dia, um

chão para morrer...

NARRADOR – Em oposição à tendência das populações

campeiras para a dispersão e o bandoleirismo, sob o estímulo

das arreadas, já destacamos a ação disciplinadora da Estância,

como fator de aglutinação social. Essa mesma ação se tornava

ainda mais eficiente, em momentos de perigo, quando o

estancieiro, a serviço do Rei ou na guarda de suas terras e

rebanhos, reunia a sua gente e improvisava-se em chefe de

milícias, pronto para o que desse e viesse... (Moisés Velhinho,

em “Capitania d’El Rey”.). (Acende foco de luz sobre João.).

JOÃO – Meu capitão nas guerras de fronteira recebeu - de seu

Rei -, a imensa sesmaria. Meus braços ajudaram a levantar a

Estância, esteio por esteio, pedra em cima de pedra. Meu

capitão guardou a espada e se fez estancieiro. Eu descansei

minha lança e me tornei peão. À noite, no galpão onde a graxa

da carne gorda pingava no brasedo, os mais antigos contavam

causos e acontecidos: guerras e mercancias, cavalos e

mulheres, assombrações e lendas de taperas. Um missioneiro,

que andava com Borges do Canto, na conquista daquele

território, que vira a ruína das igrejas e a ruína dos índios,

relatou, certa vez, a história de um selvagem, muito triste, que

se chamava Angüera. História linda, seu, que eu jamais esqueci!

Quando nasceram meus filhos, naquela mesma Estância, me

tocou a vez de lhes contar, numa noite de frio e chuva, aquele

mesmo causo: “Angüera era um índio muito triste, que vivia nas

Missões... (Apaga o foco de luz sobre João, que sai. Acende

luz de cena, em vermelho, enquanto entram os músicos.).

MÚSICOS (Cantando) - Angüera / Era um índio triste que vivia

nas Missões. / Ele não ria, / Não cantava, / Não dançava. / Ele

era triste, parecia um urutau. / Porém, certo dia, chegaram às

Missões / Uns padres de longe a fundar Reduções... / E

Angüera foi, / Foi batizado e Generoso se chamou. / Angüera, o

selvagem, depois de cristão, / Virou fandangueiro, pachola e

pimpão. / Agora ria, / Sapateava, / Fandangueava, / De riso

aberto e coração sempre feliz. /

UMA VOZ (Recitando) – Angüera, o Generoso, envelheceu e...

morreu, certo dia, num fim de fandango, e, por bueno que era,

se foi para o céu. Conta a lenda, porém, que o Generoso volta a

divertir-se pelos rincões, onde nasceu. Sopra a chama das velas

e candeeiros; faz estalar os forros e janelas, e tinir o encordoado

das violas, como se o vento bordoneasse nelas... Nos

fandangos do rincão faz-se presente, e intromete-se nas

danças, divertido. E, se o gaiteiro do baile é bom do ouvido,

pega o verso de sempre que ele canta: “eu me chamo Generoso

/ Morador no Pirapó, / Gosto de dançar co’as moças, / Nos

bailes de paletó...” (Apaga a luz. Saem os músicos. Entra o

Tempo.).

TEMPO (Intercalando vozes) – E os anos foram passando... /

Gente morria e nascia. / Só a Estância continuava / Nos campos

da sesmaria. / Fortim plantado no campo, / Fez do soldado um

peão, / E do peão um soldado / Quando houvesse precisão. / E

o Tempo que tudo sabe, / Deixa de graça a lição: / João-peão

nasceu da Estância, / E a Estância de João-peão... (Apagam-se

as luzes.).

TODOS (Em uníssono, no escuro) – Nossos olhos tudo vêem,

porque somos o Tempo: Tropeiro de Ronda que não dorme

nunca!

TEMPO (Intercalando vozes) – João é peão e soldado! / João

é soldado e peão! / Nessa incrível contradança / De eterno

mudar de passo, / Cambeia tiros de laço / Por contra-cargas de

lança! / Campanha da Cisplatina. / Guerra Grande dos

Farrapos./ E a Guerra do Paraguai / Levando os homens dos

ranchos, Deixando as mulheres sós. / E um dia – noventa e

três,/ Lançando irmão contra irmão, / Família contra família, /

Querência contra rincão... /

UMA VOZ (Solo) – E os chefes, quando voltavam / Do fumo

dessas batalhas, / Tinham no peito medalhas / Cunhadas em

prata e ouro... / Enquanto João só mostrava / Entre risadas

felizes / O rasgão das cicatrizes / Cunhadas no próprio couro. /

João notava a diferença / Entre ser chefe ou peão. / Só recebia

medalha / Quem ostentasse galão!... /

TODOS (Em uníssono) – Nossos olhos tudo vêem, porque

somos o Tempo: Tropeiro de Ronda que não dorme nunca!...

PRIMAVERA – João-peão: no complexo da Estância, tua

cancha e teu mundo era o galpão...

INVERNO – Sala-de-estar, cozinha e dormitório... Sob a quincha

do Santa Fé, bordado a picumã, faziam patas-largas tuas

melhores horas de lazer...

VERÃO – Depois do trabalho diário, depois da doma e da

esquila, depois da marcação, após a recorrida – o chimarrão a

passar de mão em mão...

OUTONO – Irmão da mesma confraria xucra, campeiros como

tu, vestindo os mesmos panos, rindo e chorando pelas mesmas

causas... E a prosa larga brotava entre risadas, para morrer bem

longe, na fralda da última coxilha, onde a luz do Boi-tatá

luciluzia...

TODOS (Em uníssono) – Boi-tatá!

MÚSICOS (Cantando) – É boi, é boi, é boi-tatá! / Donde vem, o

que será? / É cobra não sendo cobra, / É fogo, fogo não é, /

Assombra não sendo sombra, / Caminha, mas não tem pé. / É

boi, é boi, é boi-tatá! / Donde vem, o que será? / Não chores

china medrosa, / Corta teu pranto, piá / Que ao chegar a luz do

dia, / Vai s’embora o boi-tatá...?

QUARTA PARTE

Os integrantes do Tempo despem as túnicas, todos de

costas para a platéia, próximos à boca de cena. Deixam as

túnicas sobre o palco. Voltam-se, um a um, para a platéia.

Inverno e Verão, de bombachas, botas e demais peças do

gaúcho contemporâneo. Outono de xiripá, ceroulas de

crivo, bota-forte, vincha. Primavera de saia longa de chita,

estampada, e blusa branca, sem decote.

TODOS (Em uníssono) – Somos o Tempo transformado em

Homens, para vivermos com João a sua história.

INVERNO – A mesma carne de João.

OUTONO – O mesmo riso de João.

VERÃO – O mesmo pranto de João.

PRIMAVERA – E eu: a que lhe dei vida, a que lhe dei amor,

mãe de João, mulher de João.

TODOS (Intercalando vozes) – E a tua história continua João,/

Noutro espaço do Tempo e noutra estampa, / Já que a

bombacha e o xiripá do pampa / Passeavam juntos pelo teu

rincão... / Enquanto a ‘garrão de potro’, no desuso, / Só voltava

quando em quando num refrão:

SOLO – Botas de potro é pra quem tem garrão!

TODOS (Em uníssono) - E como tu gostavas de refrões, de

frases feitas e patacoadas!

SOLOS - - Não há bagual pescoceiro quando se ganha um tirão!

- Claro: e quem se mete a avestruz que lhe agüente o

ovo!

- Quem quer a moça, mexe o pé e a bolsa...

- Coisa muito oferecida, ou está velha ou ardida!

- La putcha! Se não me agacho, me pega este raio

guaxo!

- La fresca! Se não me apeio, que tombo me dá o

‘vermeio’.

- É como diz o ditado: quem não agüenta corcovo, que

não monte o redomão!

TODOS (Vozes intercaladas) – Aficionado à viola, / Nela vias,

João, / A anca cheia, a cinturinha fina / Do corpo quente da

china / Gostoso de acariciar... / E as Décimas te brotavam da

garganta / Como aquela que contava de um andejo, / José

Fragoso, por nome, que chegara / De cavalo aplastado numa

Estância... (Breve apagar de luz. Seu Nicácio (Inverno) à

esquerda, fazendo um cigarro de palha. Cidão (Outono) e

Ritinha (Primavera) conversando à altura do meio do palco.

Gavião (Verão) nos bastidores, para entrar oportunamente.

Sobre o pano de fundo, é colocado um perfil em madeira

branca de uma frente de rancho. Bancos e cepos à frente.

Acende-se luz geral.).

CIDÃO (Para Ritinha) – Tá lindo este sábado de aleluia, não? E

como é que tu te sentes pro baile de hoje, Ritinha?

RITINHA (Dengosa) – Não sei: depende dos moço que vié...

CIDÃO (Magoado) – Ué: e eu não sou ninguém, minha prima?

GAVIÃO (Entrando em cena e dirigindo-se ao Seu Nicácio) –

Vem gente aí, Seu Nicácio. E pelo jeito não é avestruz destes

campos.

SEU NICÁCIO – Ué: não convidei ninguém de fora pr’esse baile.

É só gente da vizinhança. Quem será?

CIDÃO (Olhando na direção de onde vem o estranho) – E

não estou conhecendo o cavalo. Pangaré e marchador. É

forasteiro mesmo...

SEU NICÁCIO (Levantando-se, preocupado) – Deus queira

que não seja algum bandoleiro desgarrado da gente do João

Francisco, lá do Cati. Depois da Revolução se dispersaram e

andam fazendo barbaridades por aí...

GAVIÃO (Insolente) – É, mas aqui ele vai enfrená mal a égua

dele. Touro em rodeio alheio é vaca, e eu não uso adaga só pra

comer goiabada.

RITINHA (Penalizada) – Credo, Gavião! O homem pode ser

bom...

GAVIÃO (Levando a mão ao cabo da adaga) – Não tem credo

nem Padre Nosso. Comigo é no chanfrai!...

CIDÃO (Calmo) – Tá todo mundo imaginando coisa. Vai vê que

é algum andejo de passagem, louco de fome e de sede.

RITINHA (Esperançosa) – Ou então algum moço de fora, que

chegou para o baile...

SEU NICÁCIO (Enérgico) – Toca pra dentro, Ritinha! E diz pro

mulherio pra ficar lá dentro. (Ritinha se retira, amuada.).

CIDÃO – Tá chegando o homem. Bem pilchado, viola nos

tentos...

GAVIÃO – Vai vê que a viola é pra disfarçá, mas eu não vou em

baile de cobra sem levar porrete.

JOSÉ FRAGOSO (Dos bastidores) – Ô de casa!...

SEU NICÁCIO – Pelo berro o touro é xucro! (José Fragoso

veste xiripá, botas pretas, lenço vermelho a meia-espalda,

esporas. Ao cantar o primeiro verso, está nos bastidores.

Ao convite de “Chegue!” do dono da casa, entra em cena,

cantando o segundo verso, acompanhando-se à viola.).

JOSÉ FRAGOSO (Cantando, de fora) – Ô de casa, ô de casa,/

Todos senhores, bom dia. / Como passaram a noite, / Deus vos

guarde a bizarria. /

SEU NICÁCIO – Chegue, Seu!...

JOSÉ FRAGOSO (Entrando) – Não senhor, eu não me chego, /

Sem me dar uma pousada, / Eu venho de muito longe / E meu

cavalo está cansado. / (Cena de total movimento, com

avanços e recuos de José Fragoso, cantando, e Cidão e

Gavião que o cercam.).

SEU NICÁCIO – Desencilhe e solte!

JOSÉ FRAGOSO – Não senhor: não desencilho, / Desculpe o

atrevimento. / Eu soube por diz-que-diz-que / Que hoje havia um

divertimento. /

SEU NICÁCIO – E bom: amigo!

JOSÉ FRAGOSO – E hoje é sábado de aleluia, / Dia primeiro de

abril. / Quero saber se um viajante / Poderá se divertir... /

SEU NICÁCIO – Quem sabe...

JOSÉ FRAGOSO – Eu danço polca e danço valsa / Marcas bem

compassadinha. / Também gosto e aprecio / O xote de

carreirinha. /

SEU NICÁCIO – É. Mas não dança...

JOSÉ FRAGOSO – Eu fui nascido e criado / Freqüentando a

sociedade. / Me dêem a gaita na mão, / Quero mostrá mi’a

habilidade. /

SEU NICÁCIO – Não dêem a gaita!

JOSÉ FRAGOSO – Eu cheguei em sua casa / Muito bem

agasalhado. / Havendo um divertimento, / Pobre estranho

desprezado. /

SEU NICÁCIO – Isso mesmo que acontece amigo!

JOSÉ FRAGOSO – Isso mesmo que acontece, / Isso mesmo,

eu não duvido. / Pobre estranho desprezado / Só por não ser

conhecido. /

SEU NICÁCIO – Como é teu nome?

JOSÉ FRAGOSO – Eu vou para o Paraná, / Que lá não é

perigoso. / Saudades aqui não deixa / O pobre do José

Fragoso./

SEU NICÁCIO – Que dele a tua portaria?

JOSÉ FRAGOSO – E eu me chamo José Fragoso, / Morador da

Vacaria. / A desgraça me acompanha, / Que eu perdi mi’a

portaria. /

SEU NICÁCIO – Tá preso, então!

JOSÉ FRAGOSO – Tá preso o José Fragoso, / Preso por

intimação. / No meio dos inimigos / Que de mim eles farão?

SEU NICÁCIO – Mate!

JOSÉ FRAGOSO – Não devo pena nem glória, / Bem pode

mandar matar. / Mas um sentimento eu levo, / É morrer e não

brigar. /

SEU NICÁCIO – Morre igual!...

JOSÉ FRAGOSO – Bem estou vendo e conheço, / Que a vida

me estão tirando. / Me dêem a espada na mão / Que eu quero

morrer brigando. /

SEU NICÁCIO – Pois lhe dêem a espada! (A mando do dono

da casa atiram uma espada a José Fragoso, que a apanha

com a mão direita, ficando com a viola na esquerda.).

JOSÉ FRAGOSO – Quando eu pego no baralho / Jogo só com

os quatro ás. / O pobre do José Fragoso / Agora não morre

mais!

GAVIÃO – Morre mesmo! (Ataca José Fragoso com uma

adaga e saem os dois peleando, de cena, com armas

brancas. Apaga-se a luz.).

NARRADOR – No seu insulamento nas imensas distâncias; nos

ranchos reunidos aqui e ali pela campanha; nos postos de fundo

de invernada, a diversão daquela gente era o baile – cadenciado

pela viola e pela gaita. O vizindário, embora as grandes

distâncias afluía alegre ao acontecimento. Começando o baile

logo que o sol entrava, estendia-se, às vezes, pela manhã

seguinte, e havia quem cerrasse as janelas, para que o gaiteiro

não notasse que o dia já vinha clareando. (Aparício Silva Rillo,

em Tese “O Peão da Estância e os Centros de Tradições

Gaúchas”.). (Cena idêntica a do quadro anterior. Ritinha

sentada num cepo, trançando os cabelos. Levantava a

cabeça ao pressentir a chegada de um grupo.).

RITINHA (Chamando para dentro de casa) – Pai! Tão

chegando os moço que vão tocá no baile! Ô, pai!

SEU NICÁCIO (Arreliado, vindo de dentro) – Com essa briga

de já hoje, já perdi a influência pr’esse baile... (Mais alto, para

os que chegam.) Vão chegando, minha gente, que o rancho é

de pobre, mas é dos amigos! (Entram os ‘tocadores’, em

número de quatro. Dois com viola e um com a gaita numa

mala de garupa, de pano branco. D. Moreno, Zé Bica, Coêio

e Vadico. Após os cumprimentos.) Vão se abancando, que já

vem o mate. O pessoal não há de demorar. O mulherio tá lá por

dentro, e a rapaziada na sanga. Foram se lavá...

ZÉ BICA – Não se incomode Seu Nicácio! E, se dá permissão, a

gente vai afinando os instrumentos. Com o tranco dos cavalo

não há viola que agüente.

COÊIO (Retirando a gaita da mala de garupa, por uma das

alças, arreliado) – É muito potra, a minha! Minha gaita furou o

fole... (Saindo.) Já é a segunda vez que esta bicheira fura os

fole. Dá licença, Seu Nicácio, que eu vou lá dentro vê se

conserto a roncadeira... (Sai.).

DON MORENO (Curioso) – E a peleia que andou saindo por

aqui, Seu Nicácio? Me contaram no bolicho...

SEU NICÁCIO – Pois é! São dessas coisas! Chegou um

desconhecido aqui em casa, e eu fiz uma pegada no índio. O

Cidão e o Gavião lhe deram uma corrida. Sabe: a gente que tem

família tem que tá de olho aberto com essas barbaridades que

os bandoleiros do João Francisco andam fazendo por aí...

DON MORENO – Saiu alguém lastimado, Seu Nicácio?

SEU NICÁCIO – Não, felizmente, não! E bem no fim, o moço

era gente buena e acabamos amigos. Comeu uma carne, tocou

mais um pouco de viola e se foi. Tudo na santa paz. Mas é a tal

coisa, Seu Moreno: o prevenido nunca foi vencido!

ZÉ BICA – Ah, isso é verdade!

SEU NICÁCIO – Mas, mudando de assunto: algum toque novo

que o velho aqui não conheça?

DON MORENO – Aprendemos uma lindaça, Seu Nicácio! Pena

tê estragado a gaita do Coêio! Mas, enquanto ele arruma aquela

bicheira, a gente vai de viola mesmo... (Prepara-se para cantar,

enquanto Zé Bica e Vadico, sentados, afinam as violas.).

RITINHA (Chegando com o mate, entusiasmada) – Como eu

gosto de baile e de viola! Cante logo, Seu Moreno!

SEU NICÁCIO – Cala a boca, guria enxerida! (Para Don

Moreno.) E o que é que vai, minha gente?

DON MORENO – Uma vanera nova, Seu Nicácio: uma tal de

Ciganinha! (Inicia o canto.) Encilhei o meu cavalo / E pra

fronteira fui viajando / No cruzar de uma picada / Tinha gente se

acampando / Pensei que era os engenheiro / Que os campo

andavam cortando. / Pensei que era os engenheiro / Que os

campo andavam cortando / E era um bando de cigano / Que ali

estava se acampando. / E era um bando de cigano / Que ali

estava se acampando. / Dei rédea no cavalo / E pra lá fui me

chegando / Dei de rédea no cavalo / E pra lá fui me chegando, /

Fui tirar a minha sorte / Que elas andavam tirando. / Fui tirar a

minha sorte / Que elas andavam tirando. / Já vi a ciganinha /

Que estava me namorando / Já vi a ciganinha / Que estava me

namorando. / Tornou ela e me disse: / Tua sorte é morrer

cantando. / Se a minha sorte for esta / Não quero outra sina

igual / Faço o trem correr na linha / E os telefone falá. / Faço o

trem correr na linha / E os telefone falá / Faço os branco ficá

preto / E faço os preto branqueá / Faço os branco ficá preto / E

faço os preto branqueá / Faço o sul correr pro norte / e as

maretas se trompá. / Faço o sul correr pro norte / E as maretas

se trompá / E acabou-se a Ciganinha / E a viola vamos pará... /

SEU NICÁCIO – Flor de vanera, minha gente! Com esta o

fandango encorpa! (Apaga-se a luz.).

JOÃO (Vestido como gaúcho contemporâneo, levando o

tirador sobre a bombacha; chapéu; lenço ao pescoço e

esporas) – Quem me vê taludo e forte, barba na cara, homem

feito e afeito às más volteadas da sorte, nem pode imaginar que

um dia eu fui piá – e piá fraquito, seu! Criado a chá de erva e

mingau de farinha. Sorte que peguei um patrão bom. E, à força

de muita bóia, botei corpo. Mas não vem ao caso... Hoje dei pra

lembrar meu tempo de guri. Oigalê tempo lindo! Tudo é várzea...

A gente não entende certas coisas, que só mais tarde vai viver e

aprender. Não se faz conta de riqueza, de pilcha melhor ou pior,

de ter ou não ter plata na guaiaca. Nem de candonga de china

um menino faz conta! É no mais ter liberdade para capetear e o

resto é como Deus manda! Gadinho de osso, boleadeiras de

sabugo, pescaria pelos arroios e açudes, rodeios de faz de

conta e, ariscos cavalos de mentira... De noite, cansado das

capetagens, já quase pegando no sono na quentura boa do

catre, a voz mansa e quente da avozinha, velhita, contando uns

causos mui lindos para o piá dormir... Estórias do tempo em que

os bichos falavam: como aquela de uma briga muito feia entre

um Gavião venta rasgada e um Zorrilho mais esperto do que

filho de cigano... Oigalê estória linda! Parece até que eu estou

vendo, com meus olhos de piá... (Apaga-se a luz. Sai João.

Imediatamente, ainda com a cena às escuras, adentra o

personagem Gavião, caracterizado como esta ave. Ao

acender-se a luz está em posição de vigilância, procurando

caça... Entra o Zorrilho, caracterizado como tal, em

passinhos miúdos. Estaca ao dar com o Gavião.).

GAVIÃO (Interpelando) – Aonde vai, senhor zorrilho? (Fora de

cena, os violões executam uma ‘polca de cantar’. Desce o

Gavião de seu poleiro e canta como trova.) Aonde vai, senhor

zorrilho, / Em tamanha galopada? / Vai buscar água de cheiro /

Para a sua namorada? / Vai buscar água de cheiro / Para a sua

namorada? /

ZORRILHO – Seu moço das calças brancas, / Desculpe a minha

confiança, / Me diga todo o seu nome / Que eu quero ter na

lembrança. / Me diga todo o seu nome / Que eu quero ter na

lembrança.

GAVIÃO – Me chamo Gavião Mouro, / Moro no Cerro Travessa,/

Te como a carne por dentro, / Te viro o couro às avessa. / Te

como a carne por dentro, / Te viro o couro às avessa... /

ZORRILHO – Há muito cuera largado / Que é pura charla no

más. / Comer mi’a carne por dentro / Isto sim não é capaz... /

Comer mi’a carne por dentro / Isto sim não é capaz... / (A trova

vai se desenvolvendo com os contendores, em passo de

quase dança, avançando e recuando, conforme o verso.).

GAVIÃO – Te quebro a cana do braço, / Te chupo todo o

tutano,/ Te deixo a cabeça oca, / Te curo do desengano. / Te

deixo a cabeça oca, / Te curo do desengano. /

ZORRILHO – Não é o primeiro taura / Que fica na pretensão, /

Corto o maço e dou as cartas / E ainda jogo de mão. / Corto o

maço e dou as cartas / E ainda jogo de mão. /

GAVIÃO – Não sou viciado no jogo / Nem gosto de brincadeira,/

Num tiro de três-marias / Te faço comer poeira. / Num tiro de

três-marias / Te faço comer poeira. /

ZORRILHO – Me chamo Zorrilho Negro / Da Serra do Caverá /

Te arreio coxilha arriba / C’um relho de enchiqueirar. / Te arreio

coxilha arriba / C’um relho de enchiqueirar. /

GAVIÃO – E eu fui nascido e criado / Bem longe deste rincão, /

Te maneio as quatro patas, / Te risco o couro a facão. / Te

maneio as quatro patas, / Te risco o couro a facão. /

ZORRILHO – Se é para haver entrevero, / Não vou na lei do

gaúcho / Não quero tinir de ferros, / Vou logo queimar cartucho! /

Não quero tinir de ferros, / Vou logo queimar cartucho! / (O

Zorrilho gira o corpo, dá com as mãos anteriores ao chão e

expele um jato de ‘perfume’ na cara do Gavião, que,

tardiamente, se cobre com as asas, emitindo o guincho

característico desta ave, quando atacada. Sai o Zorrilho, em

corrida miúda. Apaga-se a luz. Luz no Narrador.)

NARRADOR – As técnicas da zootecnia moderna e o

melhoramento dos rebanhos – causas extrínsecas da

valorização do solo -, outra fisionomia vieram emprestar ao

nosso meio rural. Assim, o chapéu de abas largas vai aos

poucos cedendo lugar à boina e ao boné; os aramados e os

bretes docilizaram o gado xucro. As festas campeiras: a

marcação, os fandangos, a cordeona e as cantigas, a ronda das

grandes tropeadas, as comitivas de carretas, a indumentária

típica, vão desaparecendo na luz crepuscular do passado. É a

cultura em transição. O gaúcho andante ou o excedente das

estâncias, tostado pelo sol e surrado pelo sofrimento, deixa o

rancho cair em tapera na ‘terra de ninguém’ dos corredores

apertados. Segue para o ‘povo’, alberga-se noutro rancho de

feição urbana, formando os cinturões de miséria das grandes

cidades pastoris. (João Pedro dos Santos, em “O Rancho no Rio

Grande do Sul”.). (Luz geral.).

TODOS (Em uníssono) – Nossos olhos tudo vêem, porque

somos o Tempo: Tropeiro de Ronda que não dorme nunca.

(Intercalando vozes.) E os anos vão / E os anos vêm... / E os

anos vão / E os anos vêm... / E os anos vão / E os anos vêm... /

E de repente a mudança inexorável!... / O campo se transforma./

O trabalho se transforma. / O patrão se transforma. / As

mulheres e os homens se transformam. / É o alambrado que

chega. / É o potreiro que chega. / É o brete que chega. / É a

estrada que chega. / É o trem de ferro que chega. / É o moinho

de vento de chega / E se põe a girar, / A girar / E a girar, / Como

a vida girou / Para o João que passou / De peão a pião / João-

brinquedo a rodar, / A rodar e a rodar, / A rodar e a rodar... /

SOLO – Os campos largos de outrora / Foram ficando

invernadas. / E assim, mermando o espaço, / Virando tudo a

potreiro, / Não tinha mais o campeiro / Sol e cancha para o laço./

Quanto mais pra boleadeira / Que acabou virando enfeite / No

escritório do patrão! / E a marcação campo afora / Com pialos

de sobre-lombo, / Também foi de tombo a tombo / Como olho

d’água em verão... / E o teu braço, que era tudo / Na rude lide

campeira, / Foi sendo posto de lado, / Perdendo quase a

função./ E essa tal de evolução, / Sendo por si necessária, / Fez

do peão quase um pária, / Roubando seu ganha-pão. / Veio

afinal o trator / Para a glória da lavoura, / Trazendo as cara

loura/ Para a invernada do boi. / E o velho peão se foi / Caindo

pro anoitecer... / Ele que fez a querência / Se encontra na

contingência / De transformar-se ou morrer! /

JOÃO (Volta à cena, como gaúcho pobre: de chinelos,

chapéu amarfanhado, bombacha e camisa judiadas, lenço

desbotado no pescoço) – Quem me viu e quem me vê... Meu

bisavô, meu avô, meu pai ajudaram a fazer este Rio Grande.

Pelearam em 35, no Paraguai, em 93 e 24. Foram de tudo um

pouco: domador, tropeiro, carreteiro, esquilador, contrabandista,

mascate, dono de bolicho, corredor de carreira... E, neste

entremeio, quanta vez foram soldado! Mas sempre no lombo do

cavalo, de mais perto ou mais longe na lida com o gado e com

os animal. Parecia que ia ser sempre assim... Ninguém ficava

rico nesta vida – a não ser um ou outro mais esperto -, mas de

fome não morria ninguém. Os patrões eram bons, na maioria.

Um que outro carne de cobra, mas gente ruim existe em

qualquer classe... Claro que faltava escola, que faltava

medicina, muita coisa... O mais que se aprendia era assinar o

nome para votar em eleição. Mas não faltava trabalho e se

comia regular e os filhos se criavam bem. Sobrava plata até

para envidar num truco ou numa carreira, num jogo de primeira

ou num fandango... Mas de repente, num ligeirão de corredeira

de rio cheio, tudo foi mudando, e pra gente – mudando pra

pior... As máquinas foram fazendo nosso trabalho, os campos

encolhendo, as estradas cortando tudo. Até a bombacha foi

desaparecendo, as botas se agringalharam. E o trabalho

escasseando, escasseando... Pra que tropeiro – se o trem de

ferro leva o boi nos carro? Pra que carreta – se o caminhão leva

o couro e leva a lã? Pra que domar cavalo – se quase mais

ninguém já monta um pingo? Veio o tal de trator e as invernadas

se fizeram lavouras. E, quem nasceu - como eu - para o lombo

do cavalo, não tem jeito para lidar com motor. Isso é ofício para

outra gente, pra gente que já tem no sangue a semente do trigo

e as cantigas da colheita. A gente pega, por necessidade, mas

muito sem jeito, assim como um peixe fora d’água... Quem me

viu e quem me vê... Vendi meus arreios, fiz um rancho mais

perto da cidade, minhas filhas se empregaram pelo ‘povo’. Meu

guri foi sentar praça e não voltou pro rancho. E eu, eu que fui de

tudo um pouco – bom no laço, bom na doma, bom na esquila –

ando agora changueando por aí... Nem cavalo tenho mais – e

isso é o que mais me dói. Não há tristeza maior do que um

gaúcho a pé... (Baixa a intensidade da luz. João vai saindo,

lentamente, enquanto, aos primeiros acordes dos violões,

entram - do fundo -, os músicos.).

MÚSICOS (Tocando e cantando) – Peão, peão, peão, /

Esqueceu-te o Rio Grande, meu irmão! / Peão, peão, peão, / Só

te resta lugar numa canção! / A Estância de outrora / Hoje é

Cabanha, / Nesta imensa campanha / Onde o touro berrava, /

Hoje corta o arado, / Hoje ronca o trator... / (Estribilho) Peão... /

A velha invernada / Lavoura se fez, / E tu que nasceste / Para o

lombo do pingo, / Perdido em ti mesmo / Morreste de vez. /

Perdido em ti mesmo / Morreste de vez. / (Quase ao final do

número, entram em cena os integrantes do Tempo – já

despidos das túnicas, com as indumentárias do gaúcho

antigo e contemporâneo. Terminada a música, saem os

músicos.)

SOLO – Senhores da terra!

OUTROS TRÊS – Lembrai-vos de João!

SOLO – Senhores do gado, do trigo e da lã!

OUTROS TRÊS – Lembrai-vos de João!

SOLO – Homens de gabinete!

OUTROS TRÊS – Lembrai-vos de João!

SOLO – Homens do Direito!

OUTROS TRÊS – Lembrai-vos de João!

SOLO – Homens da Razão!

OUTROS TRÊS – Lembrai-vos de João!

SOLO – Homes da Saúde!

OUTROS TRÊS – Lembrai-vos de João!

SOLO – Homens da Educação!

OUTROS TRÊS – Lembrai-vos de João!

SOLO – Homens do Crédito!

OUTROS TRÊS – Lembrai-vos de João!

SOLO – Homes da decisão!

OUTROS TRÊS – Lembrai-vos de João!

SOLO – Homens de coração!

OUTROS TRÊS – Lembrai-vos de João!

SOLO – Homens do Rio Grande!

OUTROS TRÊS – Lembrai-vos de João!

TODOS (Agrupando-se e apontando para a platéia, com

maior intensidade de voz) – E vós, todos vós, todos vós – seus

irmãos!... Lembrai-vos de João!

FIM