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MÉDICO À FORÇA Texto de Molière Adaptação de Antonio Carlos Brunet PERSONAGENS MARTINHA - Esther

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MÉDICO

À

FORÇA Texto de Molière

Adaptação de Antonio Carlos Brunet

PERSONAGENS

MARTINHA - Esther

Page 2: MÉDICO À FORÇA - ieacen.files.wordpress.com – Assim a mudança fica mais fácil! MARTINHA – E o que é que eu faço meu Deus, ... À parte.) Você me paga! ... está em cena)

SGANARELLO - Padilha

ROBERTO -

VALÉRIO - Odirlei

LUCAS - Eder

GERONTE - Leonir

JAQUELINA - Suzi

LUCINDA - Tamires

LEANDRO - Notli

NA MATA

SGANARELLO – Chega mulher! Já disse que quem manda

aqui sou eu, e está acabado.

MARTINHA – E você tem de viver do jeito que eu quero, porque

eu não me casei para agüentar as suas maluquices.

SGANARELLO – Oh, meu Deus do céu: como é duro um sujeito

ser casado! Tinha razão Aristóteles quando dizia que mulher é

pior que o diabo!

MARTINHA – Olhem só os dois sábios: esse daí e o pateta do

Aristóteles!

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SGANARELLO – Sábio! Isso mesmo! Vê se encontra outro

rachador de lenha, que saiba falar um pouco de tudo, que nem

eu! Não se esqueça que eu fui, durante seis anos, criado de um

grande médico, e aprendi muita coisa boa. E tem mais: quando

menino cheguei a estudar latim!

MARTINHA – Maldita seja a hora em que caí na asneira de te

dar o sim!

SGANARELLO – Maldito é o chifrudo do Tabelião que me fez

assinar a minha desgraça!

MARTINHA – O quê?...

SGANARELLO – Olha aqui, ó: vamos encerrar o assunto. Já

chega de saber o que já sabemos, ou seja, que você foi uma

felizarda de me encontrar.

MARTINHA – Felizarda de te encontrar? Um debochado, um

tratante, que me bate, e ainda por cima come todo o meu

dinheiro.

SGANARELLO – Mentira! Não como: bebo!

MARTINHA – E que vai vender tudo o que a gente tem!

SGANARELLO – Isso é o que se chama ‘viver do que se tem’.

MARTINHA – Até a cama: até a cama que eu tinha esse

bandido vendeu!

SGANARELLO – E fiz muito bem. Foi o único jeito que

encontrei para você levantar antes do meio-dia.

MARTINHA – Não vai me sobrar móvel nenhum em casa!

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SGANARELLO – Assim a mudança fica mais fácil!

MARTINHA – E o que é que eu faço meu Deus, com as minhas

quatro crianças, sendo que dois ainda são de colo?

SGANARELLO – Tira do colo e bota no chão.

MARTINHA (Furiosa) – Seu bêbado! Então você pensa que

isso vai continuar sempre assim? Que eu não procure te botar

na linha?

SGANARELLO – Minha querida esposa: você sabe que eu não

tenho o gênio lá muito bom, e que o meu braço é braço mesmo.

MARTINHA – Acho até graça!

SGANARELLO (Como quem dá um aviso de que algo ruim

poderá acontecer) – Mulherzinha, vidinha: você já está com

comichões, como de costume...

MARTINHA – Chega para cá! Vou mostrar que não tenho medo

de você.

SGANARELLO – Minha cara metade: seu corpinho anda

pedindo pancada.

MARTINHA – Não adianta que essa conversa não me assusta!

SGANARELLO – Doce objeto dos meus amores: você quer

uma fricçãozinha nas orelhas?

MARTINHA – Bêbado!

SGANARELLO – Olha que eu te amasso a cara!

MARTINHA – Garrafão de pinga!

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SGANARELLO – Eu te desmonto!

MARTINHA – Desgraçado!

SGANARELLO – Eu te arrebento!

MARTINHA – Bandido, vadio, sem-vergonha, porco, covarde,

besta, burro, cavalo, estúpido, sujo e ladrão!

SGANARELLO – Então você quer mesmo, não é? (Pega um

pedaço de pau e bate nela.).

MARTINHA – Ai, ai, ai!...

SGANARELLO – Só assim que você sossega! (Continua

batendo nela, freneticamente.).

ROBERTO (Entrando) – Mas o que é isso? Que vergonha! O

que é isso? Que brutalidade! Bater assim na sua mulher?

MARTINHA (Com as mãos na cintura, fazendo-o recuar) – E

se eu quiser que ele me bata?

ROBERTO – Ah, nesse caso, que bata à vontade!

MARTINHA – O que é que o senhor tem a ver com isso?

ROBERTO – Desculpe.

MARTINHA – É da sua conta?

ROBERTO – Não.

MARTINHA (Para a platéia) – Vejam só, esse metido, que não

quer deixar os maridos baterem nas suas mulheres!

ROBERTO – Não está mais aqui quem falou.

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MARTINHA – O senhor é mesmo um atrevido! Quem mandou

vir xeretear onde não deve? (Dá-lhe uma bofetada.).

ROBERTO (Dirige-se ao marido) - Compadre: eu vos peço

desculpas de todo o coração. Bata, espanque, meta a lenha na

sua mulher, que eu o ajudarei: se quiser.

SGANARELLO – Ah, isso é que não, porque se eu quiser, eu

bato, e se eu não quiser, eu não bato! A mulher é minha! Não é

sua, entendeu?

ROBERTO – Tá certo.

SGANARELLO – Você não tem nada que mandar em mim.

ROBERTO – É isso mesmo.

SGANARELLO – Eu não preciso de sua ajuda.

ROBERTO – Muito bem!

SGANARELLO – É uma pouca vergonha meter-se nos

negócios dos outros. Fique sabendo que Cícero, o grande

Cícero, disse: “em briga de marido e mulher, ninguém mete a

colher”. (Bate em Roberto e o empurra para fora. Para

Martinha.) Bom, agora vamos fazer as pazes. (Estende-lhe a

mão.) Toca!

MARTINHA (Irônica) – Sim, depois da surra que eu levei!

SGANARELLO – Ah, mas isso não foi nada: toca!

MARTINHA – Não quero!

SGANARELLO (Suplicante) – Ah!...

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MARTINHA – Não! Ainda mais depois da surra que você me

deu!

SGANARELLO – Tá bom, vai? Eu te peço perdão! Agora, toca!

MARTINHA (Contrariada) – Está perdoado. (Aperta-lhe a mão.

À parte.) Você me paga!

SGANARELLO – Bobinha: isso é bom que aconteça de vez em

quando. Nada como uns trancos para avivar as labaredas do

amor. (Recolhendo suas coisas.) Bom, agora vou pro mato.

Prometo trazer cem feixes de lenha, hoje! (Sai.).

MARTINHA – Por boa cara que te faça não me passará o

ressentimento. Enquanto eu não me vingar das pancadas que

levei, não sossego. Sei que uma mulher tem sempre certos

meios de se vingar de um marido. Mas isso é muito pouco.

Quero uma vingança que doa. (Senta-se a um canto, num

tronco, matutando. Entram, pelo lado oposto, Lucas e

Valério.).

LUCAS (Para Valério. Os dois não percebem que Martinha

está em cena) – Que diabo! Estamos num beco sem saída!

Como é que nós vamos fazer?

VALÉRIO (Para Lucas, sem ver Martinha) – Meu pobre Lucas:

temos que fazer o que o patrão mandou. E, se não fosse por

isso, seria pelo interesse que temos pela saúde da filha, que é,

também, nossa patroa. Você vai ver que o casamento dela, que

foi adiado por causa da doença, vai nos render alguma coisa.

Olha que Horácio é generoso e é ele quem vai acabar casando

com ela. Essa história dela ter amizade por um tal de Leandro,

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não quer dizer nada, pois o patrão nunca quis aceitar esse moço

como genro.

LUCAS – Mas, afinal de contas, que diabo de doença terá ela, a

ponto dos médicos perderem todo o seu latim?

VALÉRIO – Às vezes, depois de muito procurar, a gente acaba

achando aquilo que não achou, logo no começo. E, muitas

vezes, de onde menos se espera. (Pausa.) Enfim, cada qual

tem os seus problemas nesta vida. (Vendo Martinha.) Ei moça:

nós estamos procurando alguém que não encontramos.

MARTINHA – Se é alguma coisa que eu possa ajudar...

VALÉRIO – Quem sabe? Estamos procurando um homem

entendido, um médico particular, que possa curar a filha do

nosso patrão, que está doente e ficou sem fala. Uma porção de

médicos já foi lá, e não conseguiu nada. Mas, muitas vezes,

acontece que tem gente que conhece segredos para curar, com

remédios particulares, e consegue o que os outros não

conseguiram. É isso que nós estamos procurando!

MARTINHA (À parte, exultante) – Ah, é o próprio céu que me

inspira para a vingança! (Para Lucas e Valério, ardilosa.) Não

podiam ter batido em melhor porta. Tenho aqui, um homem, o

homem mais maravilhoso do mundo, para a cura das doenças

inesperadas.

VALÉRIO – Que felicidade! Onde é que ele está?

MARTINHA – Ele está por aí, rachando lenha.

LUCAS – Um médico rachando lenha?

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VALÉRIO – Na certa ele está procurando ervas medicinais, não

é?

MARTINHA – Não! Ele é um homem muito esquisito. Se diverte

rachando lenha, mesmo. Tem umas manias esquisitas. Parece

lunático e cabeçudo. Os senhores nunca iriam perceber quem

ele é de verdade. Está com uma roupa meio extravagante, e se

finge de ignorante. A ciência está trancada dentro dele. Evita

exercer os maravilhosos talentos que o céu lhe deu.

VALÉRIO – É esquisito! Mas todos os grandes homens têm

suas manias!

MARTINHA – Mas ninguém tem a mania que ele tem: às vezes,

é preciso bater nele para que ele concorde que tem capacidade.

Eu já vou avisando: se hoje ele cismar, vai dizer que não é

médico. Daí, cada um de vocês tem que pegar num pau, e

descer a lenha nele, até que ele confesse que de fato é médico.

É assim que a gente faz quando precisa dele.

VALÉRIO – É uma mania um pouco esquisita!

MARTINHA – Isto é verdade, mas depois vocês verão os

milagres de que ele é capaz!

VALÉRIO – Como é o nome dele? Como ele se chama?

MARTINHA – Sganarello! É fácil saber quem é: tem um barrigão

bem grande e usa uma roupa amarela e azul.

LUCAS – Roupa amarela e azul? Então ele é médico: mas de

araras!

VALÉRIO – Mas é verdade que ele é tão entendido assim?

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MARTINHA – Entendido? Faz milagres! Seis meses atrás, uma

mulher foi desenganada pelos médicos. Todo o mundo pensava

que ela estava morta, e já iam dar-lhe o enterro. Daí levaram

esse tal homem! Ele botou na língua dela uma gota de não sei o

quê, e a mulher, no mesmo instante, levantou da cama e

começou a andar pelo quarto, como se não tivesse acontecido

nada.

LUCAS (Admirado) - Ah!...

VALÉRIO – Então, eu acho que era ouro em gotas!...

MARTINHA – Pode ser, pode ser... Não faz três semanas, um

menino de doze anos caiu lá da torre da igreja, e esmigalhou no

chão, os braços, as pernas e a cabeça. Mas daí levaram lá o tal

homem, e o moleque pulou da cama para ir brincar de

amarelinha.

LUCAS (Boquiaberto) – Ah!...

VALÉRIO – Esse homem descobriu o remédio dos remédios!

MARTINHA – Que dúvida!

LUCAS – Puxa! É esse o homem que nós precisamos!

VALÉRIO – Muito obrigado pela ajuda!

MARTINHA – Não há de quê! E quando ele aparecer, lembrem-

se das recomendações que eu fiz.

LUCAS – Deixe por nossa conta! (Ouve-se a voz de

Sganarello, cantando, fora de cena.).

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VALÉRIO – Estou ouvindo alguém cantando! (Martinha sai,

sorrateiramente, enquanto pelo outro lado, entra Sganarello

com uma garrafa na mão e um feixe de lenhas nos ombros,

sem ver Lucas e Valério.).

SGANARELLO – Bom, já trabalhei bastante, agora posso tomar

uma pinga. Vou respirar um pouco. (Bebe um trago.) Oh, lenha

salgada! Dá uma sede!... (Beijando a garrafa.) Garrafa: minha

querida!

VALÉRIO (Para Lucas) – Deve ser esse!

LUCAS – Parece que sim.

SGANARELLO (Abraçando a garrafa) – ah, peste: como eu te

quero, danada! (Canta. Ao perceber Valério e Lucas, vai

baixando a voz. Fala, consigo mesmo, desconfiado.) Que

diabo! O que é que aqueles estão olhando pra mim? (Coloca a

garrafa no chão. Valério se abaixa para saudá-lo, mas ele

pensa que este deseja tomá-la. Coloca-a, então, do outro

lado. Em seguida, Lucas faz o mesmo. Sganarello retoma-a

e a coloca contra o estômago.) Por que vocês ficam me

espiando e cochichando? O que é que vocês querem comigo?

VALÉRIO – O senhor é que se chama Sganarello, não é

verdade?

SGANARELLO (Sem entender) – Ahn?...

VALÉRIO – Pergunto se o senhor é que se chama Sganarello?

SGANARELLO (Olhando para um e para o outro) – Sim e

não, conforme o caso.

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VALÉRIO – Nós pretendemos prestar ao senhor Sganarello

todas as honras de que ele é digno.

SGANARELLO – Nesse caso sou eu que me chamo

Sganarello.

VALÉRIO – O senhor não imagina o prazer que temos em

encontrá-lo. Estamos aqui, porque viemos suplicar o seu auxílio.

SGANARELLO – Se é coisa que depende aqui, do meu

negócio, estou pronto a servir.

VALÉRIO – É muita gentileza sua. E o senhor não deve achar

estranho que a gente o venha importunar: as pessoas

habilidosas são sempre ocupadas, e nós sabemos de sua

grande capacidade.

SGANARELLO – Bom: isso é verdade! Ninguém faz um feixe

de lenha, como eu faço.

VALÉRIO (Repreendendo-o) – Ah, senhor!

SGANARELLO – Os meus são de primeira. Não tapeio

ninguém.

VALÉRIO – Não é isso!

SGNARELLO – É verdade: eu vendo a cento e dez o cento e...

VALÉRIO (Interrompendo) – Não falemos disso, faça o favor!

SGANARELLO – Mais barato é impossível...

VALÉRIO – Nós já sabemos de tudo. Ouça...

SGANARELLO (Interrompendo) – Se já sabem, já sabem o

preço!

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VALÉRIO – O senhor está brincando!

SGANARELLO – Brincando nada. Mais barato não posso.

VALÉRIO – Vamos deixar esse assunto, por favor.

SGANARELLO – Podem encontrar mais barato em outro lugar.

Mas acontece que há feixes e feixes, e os meus feixes...

VALÉRIO (Interrompendo, já perdendo a paciência) – Pelo

amor de Deus, senhor! Não falemos mais nisso!

SGANARELLO – De jeito nenhum. Não posso fazer nem um

tostão mais barato!

VALÉRIO – Deixe disso.

SGANARELLO – Se quer fazer o negócio: é assim! Não sou

homem de dois preços!

VALÉRIO – Será possível, que um homem como o senhor se

divirta, com tão grosseiros fingimentos, e se rebaixe a falar

desse modo? Será possível, que um homem tão sábio, um

médico tão famoso queira ocultar-se aos olhos do mundo, e

conservar enterrado o talento que tem?

SGANARELLO (À parte) – É maluco!...

VALÉRIO – Por favor: não finja mais!

SGANARELLO (Sem entender) – Ahn?...

LUCAS – Não adianta: nós não somos tontos! Nós bem

sabemos o que sabemos.

SGANARELLO – O que é que sabem? O que é que querem

dizer com isso? Quem estão pensando que eu sou?

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VALÉRIO – Um grande médico.

SGANARELLO – Médico é você. Eu é que não sou e nem

nunca fui.

VALÉRIO – Não adianta negar o que a gente já sabe.

LUCAS – Não venha com desculpas, porque não adianta!

SGANARELLO – Disse e repito: não sou médico!

VALÉRIO – Não é médico?

SGANARELLO – Não.

LUCAS – Não é médico?

SGANARELLO – Não: já disse!

VALÉRIO – Bom, já que o senhor quer... (Olha para Lucas,

com cumplicidade, e ao mesmo tempo, os dois agarram um

pedaço de pau e batem em Sganarello.).

SGANARELLO – Ai, ai, ai!... Ai, ai, ai!...

VALÉRIO – Por que obrigar a gente a praticar violências?

LUCAS – Para que dar este trabalho a gente?

VALÉRIO – Eu garanto que sinto - de todo o coração!

LUCAS – Eu também fico com muita pena!

SGANARELLO – Mas que diabo é isso, meus senhores?

Querem se divertir às minhas custas? Ou estão malucos ou

cismaram de me fazer médico à força!

VALÉRIO – Como? Ainda continua negando que é médico?

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SGANARELLO – O diabo que me carregue se sou médico.

LUCAS – Ainda embirra que não é médico?

SGANARELLO – Não sou médico! (Os dois continuam a

bater-lhe.) Ai, ai, ai!... Ai, ai, ai!... Sou. Sou, sou médico, sou

médico, meus senhores! Sou tudo o que vocês quiserem. Até

veterinário, se for preciso...

VALÉRIO – Até que enfim, meu senhor. Sinto-me satisfeito por

ver que é uma pessoa de juízo.

LUCAS – Sinto uma alegria aqui no coração, só de ouvir o

senhor falar assim.

VALÉRIO – Eu peço, encarecidamente, que o senhor me

desculpe.

LUCAS – Eu também, pela liberdade que eu tomei.

SGANARELLO (À parte) – Será que me diplomei, virei médico

e nunca percebi isso?

VALÉRIO – Senhor: nunca se arrependerá de ter dito a nós,

quem é. Há de ficar, certamente, satisfeito.

SGANARELLO – Mas me digam uma coisa: os senhores não

estão enganados? Têm certeza de que eu sou médico?

LUCAS – Certos de toda a certeza: o senhor é um médico, que

curou um montão de pessoas.

SGANARELLO – Ahn?...

VALÉRIO – Uma mulher morta - que ia para a cova - com uma

gota não sei do quê, ressuscitou e saiu andando!

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SGANARELLO – Puxa!

LUCAS – Um menino de doze anos, que caiu do alto da torre da

igreja, quebrou a cabeça, as pernas e os braços, o senhor

passou um remédio, e o menino saiu pulando para ir brincar de

amarelinha.

SGANARELLO – Puxa!

VALÉRIO – O senhor vai ficar contente! Vai ganhar quanto

quiser! Só precisa ir para onde a gente o levar.

SGANARELLO – E ganho quanto eu quiser?

VALÉRIO – Sim, senhor!

SGANARELLO – Então, eu sou médico: sem discussão! Eu

tinha esquecido, mas agora me lembrei. Muito bem: qual é o

caso? É preciso ir até lá?

VALÉRIO – Sim, senhor. A gente leva o senhor. Trata-se de

visitar uma moça que perdeu a voz.

SGANARELLO – Mas e onde é que eu vou encontrar a voz da

moça?

VALÉRIO – Ele gosta um pouco de brincar. Vamos senhor!

SGANARELLO – Sem roupa de médico?

VALÉRIO – No caminho arranjamos uma.

SGANARELLO (Dá a garrafa a Valério) – Tome: é aí que

guardo os meus calmantes. (Cospe. A Lucas.) E você: esfregue

o pé aí, para não escorregar. Receita o médico. (Lucas

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obedece, desconfiado. Abraçam-se e saem, bebendo e

conversando, como se fossem velhos amigos.).

NA SALA DA CASA DE GERONTE

VALÉRIO – Acho que o patrão vai fica bastante satisfeito:

trouxemos o maior médico do mundo.

LUCAS – Depois desse não tem mais ninguém. Não vai

encontrar nenhum que mereça lamber a sola de seu sapato!

VALÉRIO – É um homem que tem feito curas maravilhosas.

LUCAS – Que curou um defunto que estava morto.

VALÉRIO – É meio maníaco, e, às vezes, até parece que

perdeu o juízo. E não parece só, não. De vez em quando, perde

mesmo, mas no fundo, é um poço de sabedoria. Às vezes diz

coisas que a gente fica bobo!

LUCAS – Quando começa a falar, fala, fala, fala, que até parece

um livro!

VALÉRIO – A fama dele já se espalhou por aí. Todo o mundo

vem procurar esse médico!

GERONTE – Estou impaciente por vê-lo. Mandem buscar,

depressa, esse homem!

VALÉRIO – Vou imediatamente! (Sai.).

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JAQUELINA – Eu acho que isso é conversa. Esse daí vai ser a

mesma coisa que os outros. São todos da mesma laia. Eu acho

que o melhor remédio, para a sua filha, é um bom marido.

GERONTE – Sabe de uma coisa, Jaquelina? Acho que você

está se metendo onde não foi chamada. Desde quando ama-de-

leite dá palpite?

LUCAS – Cala a boca, Jaquelina! Deixe de ser xereta! É isso

mesmo: ama-de-leite não dá palpite!

JAQUELINA – Eu digo e redigo que esses médicos não vão

conseguir nada. Não é de sangria nem de ventosas, que a sua

filha precisa: mas de um marido – o remédio que cura todas as

doenças das mocinhas!

GERONTE – Quem vai querer, agora, essa menina, no estado

em que está? Além disso, quando eu quis que ela se casasse,

ela não se opôs à minha vontade?

JAQUELINA – Engraçado! O senhor queria dar pra menina um

homem de quem ela não gostava. Por que não deu a ela o

Senhor Leandro, por quem ela tinha um bom xodó? Desse: e ia

ver como ela obedecia. E eu garanto que agora, doente mesmo,

ela não deixava ele escapar.

GERONTE – Esse Leandro não é o homem que lhe convém.

Não tem fortuna como o outro.

JAQUELINA – Mas tem um tio que é podre de rico, e de quem

ele vai herdar tudo.

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GERONTE – Todos esses bens que devem vir parecem-me

histórias. Arrisca-se a morrer de fome aquele que, para viver,

espera a morte de alguém.

JAQUELINA – Seja como for, eu sempre ouvi dizer que, no

casamento, como em tudo, coração contente não precisa da

bolsa recheada. Deste mundo só se leva o que se goza. Eu, por

mim, dava a minha filha, para o homem que ela gostasse.

LUCAS – Cala a boca, mulher! Não seja intrometida! O patrão

sabe o que faz. (Jaquelina faz um muxoxo, e fica num canto,

emburrada.).

VALÉRIO (Entrando) – Senhor: prepare-se! Eis o nosso médico

que entra! (Entra Sganarello, vestido de médico.).

GERONTE – Caro Senhor: tenho muito prazer em vê-lo aqui. E

grande é a necessidade que temos de seus serviços!

SGANARELLO – Senhor Doutor: vim a saber de coisas

maravilhosas!

GERONTE – Com quem o senhor está falando?

SGANARELLO – Com o senhor.

GERONTE – Mas eu não sou médico!

SGANARELLO – Não, mesmo?

GERONTE – Não, senhor!

SGANARELLO - Mas não, mesmo? O senhor tem certeza?

(Pega um pau e bate em Geronte, como bateram nele.).

GERONTE – Ai, ai, ai!... Ai, ai, ai!...

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SGANARELLO – Agora já é médico! Eu, por mim, o único

diploma que recebi, foi esse!

GERONTE (A Valério) – Que diabo de homem é esse que

trouxeram à minha casa?

VALÉRIO – Eu bem lhe disse que era um médico meio

esquisito!

GERONTE – Estou vendo. Mas vou mandá-lo passear com as

suas esquisitices!

LUCAS – Não faça caso, patrão! É para fazer graça!

GERONTE – Não gosto dessas graças.

SGANARELLO – Peço desculpas, senhor, pela liberdade que

tomei!

GERONTE – Não falemos mais nisso, e vamos ao que

interessa: tenho uma filha, que foi tomada por uma doença fora

do comum, senhor...

SGANARELLO – Fico muito contente em saber que sua filha

precisa de meus serviços. Desejaria até, que o senhor, e toda a

sua família precisassem deles, para lhes dar prova do desejo

que tenho de servi-los. Como se chama sua filha?

GERONTE – Lucinda.

SGANARELLO – Lucinda! Ah, que lindo nome para se fazer

receitas: Lucinda!

GERONTE – Vou ver onde ela está! (Faz menção de sair.).

SGANARELLO – Quem é aquela mulher, lá?

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GERONTE – É a ama-de-leite de meu filho caçula! (Sai,

acompanhado por Valério.).

SGANARELLO (À parte) – Oba: que pedaço! (Para ela.) Ah,

ama do meu coração: minha medicina é uma humilde criada de

vossa leiteria! Se eu fosse nenê, verias como eu mamava.

(Tenta pegar-lhe os seios.) Os meus remédios, toda a minha

ciência, toda a minha capacidade estão ao seu serviço...

LUCAS – Com sua licença, senhor médico: largue da minha

mulher!

SGANARELLO – O quê? Ela é sua mulher?

LUCAS – É, sim, senhor!

SGANARELLO – Ah, mas eu não sabia! Estimo, porém, pela

amizade que tenho por um e pelo outro. (Faz como que

querendo abraçar Lucas, e abraça Jaquelina.).

LUCAS (Puxando Sganarello e interpondo-se entre ele e a

mulher) – Devagar: faça o favor!

SGANARELLO – Garanto que fico muito satisfeito em saber

que estão unidos um ao outro. Dou aos dois os meus parabéns.

A ela, por ter um marido como o senhor; e, ao senhor, por ter

uma mulher tão bonita, tão séria, tão... (Repete a manobra do

abraço.).

LUCAS (Puxando, outra vez) – Não é preciso tanta gentileza!

SGANARELLO – Então, não quer que eu me regozije convosco

por um enlace tão feliz?

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LUCAS – Comigo pode se regozijar à vontade: mas deixe a

minha mulher sossegada!

SGANARELLO – É que eu compartilho da felicidade dos dois, e

se eu o abraço para demonstrar a minha satisfação, tenho que

abraçar a ela, para a minha satisfação demonstrar. (Repete a

mesma manobra.).

LUCAS – Vamos parar com esses abraços de uma vez?

GERONTE (Entrando) – Minha filha não tarda, doutor!

SGANARELLO – Eu estou esperando-a com toda a minha

medicina em prontidão!

GERONTE – E onde está ela?

SGANARELLO (Apontando a testa) – Aqui dentro!

GERONTE – Muito bem.

SGANARELLO – Mas, como tenho interesse por tudo o que

pertence à sua família, eu quero, antes de qualquer coisa,

examinar o seio e o leite da ama. (Aproxima-se de Jaquelina.).

LUCAS (Puxando-o, fazendo-o girar em torno de si mesmo)

– Não precisa examinar nada!

SGANARELLO – É dever dos médicos examinarem as amas!

LUCAS – Não é dever, coisa nenhuma!

SGANARELLO – O senhor tem a ousadia de se opor aos

deveres de um médico? Saia daí!

LUCAS – Não saio, não!

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SGANARELLO (Ameaçando) – Hei de te aplicar um purgante,

em dose dobrada.

JAQUELINA (Agarra Lucas pelo braço, fazendo com que ele

dê uma reviravolta) – Sai daí! Você pensa que eu sou tão

criança assim, que não vou saber me defender, se ele quiser

bancar o atrevido comigo?

LUCAS – Não quero que te ponha as mãos em cima!

SGANARELLO – Que vergonha: ter ciúmes da mulher!

GERONTE (Anunciando) – Senhores: eis a minha filha! (Entra

Lucinda.).

SGANARELLO – Essa aí é que é a doente?

GERONTE – É: não tenho outra filha, e sentiria muito se essa

morresse.

SGANARELLO – Não se deve morrer, sem a autorização do

médico. (Lucinda senta, enquanto Sganarello a examina.)

Ora: aqui temos uma doente que não é das piores. Ainda agrada

a qualquer homem são!

GERONTE – Ela já está sorrindo.

SGANARELLO – Ótimo! Quando um médico faz a doente rir, é

o melhor sinal do mundo. Bom, vamos ver! (Examinando

Lucinda.) De que se trata? O que é que você tem? O que está

sentindo?

LUCINDA (Responde por sinais, indicando a boca e a

garganta) – Han, hin, han, han.

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SGANAELLO – Como é que é?

LUCINDA – Han, hin, han, han.

SGANARELLO – Ahn?...

LUCINDA – Han, hin, han, han.

SGANARELLO (Repete os mesmos gestos de Lucinda) –

Han, hin, han, han? Que diabo de língua é essa?

GERONTE – É a doença dela, doutor! Ficou muda, e, até hoje,

ninguém sabe o por que. Esse acidente é que lhe atrasou o

casamento.

SGANARELLO – Por quê?

GERONTE – Aquele, com quem minha filha vai se casar: está

esperando que ela se cure, para depois acertar o negócio.

SGANARELLO – Mas quem é esse burro, que não quer que a

mulher dele seja muda? Ah, quem me dera que a minha mulher

pegasse essa doença! Eu é que não ia tratar dela!

GERONTE – Senhor: suplicamos que empregue toda a sua

sabedoria na cura dessa doença.

SGANARELLO – Ah, meu senhor: não se preocupe! Faz muito

tempo que ela está doente?

GERONTE – Sim, senhor.

SGANARELLO – Mas, que ótimo! (Recompõe-se.) Ela sente

dores?

GERONTE – Muito fortes.

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SGANARELLO – Formidável! (Geronte começa a ficar

impaciente.) Ela tem ido naquele lugar que o senhor sabe?

GERONTE – Tem.

SGANARELLO – Muitas vezes?

GERONTE – Ah, isso eu não sei.

SGANARELLO – E o resultado é satisfatório?

GERONTE – Oh, eu não entende dessas coisas, ora!

SGANARELLO (À doente) – Me dá o seu braço! (Mede-lhe o

pulso. Para Geronte.) Esse pulso diz que a sua filha está

muda.

GERONTE – É exatamente a doença que ela tem! Puxa: o

senhor acertou logo de primeira!

SGANARELLO – Ahn, ahn...

JAQUELINA (Já encantada com Sganarello) – Como ele

adivinhou logo, a doença?

SGANARELLO (De peito estufado) – Nós - os médicos de

fama - conhecemos bem o assunto. Um ignorante ia ficar meio

atrapalhado: ia dizer que isto era aquilo, mas eu não! Acerto

logo no ponto: sua filha está muda!

GERONTE – Bom, mas eu gostaria de saber qual é a causa.

SGANARELLO – Nada mais fácil: é porque ela perdeu a fala!

GERONTE – Muito bem! Mas a causa, por favor, a causa de ter

perdido a fala.

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SGANARELLO – Todos os nossos bons autores lhe dirão que é

porque a língua não funciona.

GERONTE – Mas, repito: por que a língua não funciona?

SGANARELLO – Ah... Aristóteles, sobre o assunto, diz...

(atrapalhado.) coisas... admiráveis!

GERONTE – Acredito.

SGANARELLO – Foi um grande homem.

GERONTE – Sem dúvida.

SGANARELLO (Erguendo o braço) - Grande homem mesmo:

bem mais alto do que eu! (Percebendo que Geronte não

gostou muito da piada.) Bom, mas voltando ao nosso assunto,

eu acho que a língua não funciona, por causa de certos

humores, que nós – sábios – chamamos pecantes... Pecantes

quer dizer... Humores Pecantes! Tanto mais é, que os vapores

formados pelas exalações das influências que se elevam na

região das doenças, vindos... por assim dizer... Sabe latim?

GERONTE – Não, senhor!

SGANARELLO – Nem um pouquinho?

GERONTE – Não.

SGANARELLO – Cachorrias, arci Tum, catalamus, singularitus,

nominativo, haeo musa, abusa bonus, bona bonum, Deus

sanctus este arorario latinas? Etiam porque quaro, ninguém quia

substantivo et adjetivum concordat in generi, numerum et casus.

GERONTE – É nestas horas que eu sinto não ter estudado!

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JAQUELINA (Encantada) – Esse sim é que é homem

inteligente!

LUCAS (Enciumado) – Eu não pesco patavina!

SGANARELLO – Ora: esses vapores de que estou falando -

passando do lado esquerdo, onde está o fígado, para o direito,

onde está o coração, resulta no pulmão – que em latim

chamamos armyan –, tendo comunicação com o cérebro, que

em grego chamamos nasus, por meio da veia cava, que em

hebreu se chama cubile - topam no caminho com os vapores

que enchem os ventrículos da omoplata... (Para Geronte.)

Procure compreender bem o que estou dizendo, por favor. E,

como os ditos vapores têm certa malignidade... (Chamando a

atenção de Geronte.) Preste atenção, por que...

GERONTE (Compenetrado) – Sim, senhor.

SGANARELLO – E como os ditos vapores têm certa

malignidade, que é causada pela... (Batendo palmas,

repreendendo Geronte.) Ora: preste atenção! Vamos!

GERONTE – Estou prestando.

SGANARELLO – Que é causada pela acidez dos humores

engendrados na concavidade do diafragma, acontecendo, que

esses vapores... ossabandus, nequeys, nequer, potarinum,

quipsa milus! Aí está, portanto, o porquê de sua filha estar

muda!

JAQUELINA – Mas tudo o que ele disse é formidável!

LUCAS – Que bom se eu soubesse falar assim!

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GERONTE – Uma coisa só parece novidade: a posição do

fígado e do coração! O senhor trocou de lado, porque o coração

está no esquerdo e o fígado no direito!

SGANARELLO – É verdade! Antigamente era assim mesmo,

mas nós já mudamos isso tudo! A Medicina agora é muito

diferente da antiga!

GERONTE (Muito admirado) – É mesmo?... (Mudando de

tom.) Mas, o que o senhor acha que se pode fazer com a

doente?

SGANARELLO – O que eu acho que se deve fazer?

GERONTE – É.

SGANARELLO – Bom: a minha opinião é a de que ela deve ir já

para a cama, e comer muito pão ensopado de vinho.

GERONTE – Por quê?

SGANARELLO – Porque o vinho e o pão, quando misturados,

têm a virtude de fazer falar. O senhor sabia que os papagaios

gostam muito de pão com vinho, e é por isso que eles aprendem

a falar?

GERONTE – Ah, isso é verdade! Que grande homem! (Para os

criados.) Depressa! Depressa! Vamos fazer um caldeirão de

pão com vinho! (Saem Valério e Lucas, afobados.).

SGANARELLO – À noite voltarei a examinar a minha paciente.

Só um momentinho, senhor: gostaria de lhe informar que sua

ama está precisando, urgentemente, de uns remediozinhos

meus!

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JAQUELINA (Saindo) – Ah não! Eu é que não vou deixar o meu

corpo virar farmácia ambulante! (Sai.).

SGANARELLO (Gritando) – Muito bonito! É rebelde aos

remédios, é? (Para Geronte.) Vou dar um jeito nessa rebeldia.

Adeusinho! (Faz menção de sair.).

GERONTE – Um momento, senhor.

SGANARELLO – O que o senhor deseja?

GERONTE – Dar-lhe dinheiro, senhor.

SGANARELLO (Com as mãos para trás, enquanto Geronte

está abrindo a bolsa) – Não posso aceitar meu senhor.

GERONTE – Senhor!...

SGANARELLO – Impossível.

GERONTE – Um momento, senhor...

SGANARELLO – De maneira nenhuma!

GERONTE – Por favor!

SGANARELLO – O senhor só pode estar brincando.

GERONTE – Apenas isso!... (Mostra-lhe um monte de

dinheiro.).

SGANARELLO – Já disse que não.

GERONTE – Ora...

SGANARELLO – Não é o interesse que me move.

GERONTE – Acredito.

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SGANARELLO (Depois de pegar o dinheiro) – Eu não sou

desses médicos mercenários, que andam por aí... (Entra

Leandro, sorrateiramente, e esconde-se a um canto,

observando a cena.).

GERONTE – Eu sei disso.

SGANARELLO – Não é o dinheiro que me governa.

GERONTE – Longe de mim tal pensamento! Agora, se me

permite... (Sai, acompanhado por Lucinda. Sganarello fica

em cena, contando o dinheiro.).

SGANARELLO – A coisa vai indo muito bem. E depois, parece

que...

LEANDRO (Sai de onde estava escondido, e entra em cena)

– Meu senhor: estou escondido aqui há muito tempo, esperando

um momento para lhe falar e implorar o seu auxílio.

SGANARELLO (Tomando-lhe o pulso) – O seu pulso está

mal, muito mal...

LEANDRO – Eu não estou doente, meu senhor, e não é por

doença que eu vim incomodá-lo.

SGANARELLO – Ora, se não está doente, por que não disse

logo?

LEANDRO (Falando baixo e controlando para ver se não

entra ninguém em cena e o descubra) – Vou dizer, em duas

palavras, o que desejo: eu sou Leandro, namorado de Lucinda,

aquela que o senhor veio visitar. Por causa do mau gênio do pai,

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não posso falar com ela, por mais que me esforce. Por isso é

que me atrevo a pedir que me auxilie...

SGANARELLO (Interrompendo) – Com quem é que o senhor

pensa que está falando? Que atrevido ousa dirigir-se a mim,

para auxiliá-lo no seu amor, rebaixando a minha dignidade de

médico a funções dessa espécie?

LEANDRO – Por favor: não faça barulho!

SGANARELLO (Empurrando-o) – Pois eu faço: está ouvindo?

O senhor é um desaforado!

LEANDRO – Por favor!

SGANARELLO – Não pense que sou um homem que se sujeita

a essas coisas. É uma insolência inaudita...

LEANDRO (Puxa um maço de dinheiros do bolso) – Senhor...

SGANARELLO – Querendo me corromper... (Pega o dinheiro.)

Não digo por sua causa, porque o senhor parece ser um bom

rapaz, e eu gostaria muito de lhe ser útil. Mas é que neste

mundo, tem tanta gente impertinente, que pensa que todo o

mundo é aquilo que não é. E isso me dá uma raiva!

LEANDRO – Peço desculpas pela liberdade que tomei.

SGANARELLO – Imagine! Bem, de que se trata?

LEANDRO – Fique sabendo, doutor, que a doente de quem o

senhor veio tratar é uma doente de mentira! Os médicos

discutiram muito, por causa dela. Uns diziam que a doença

vinha do cérebro, outros do baço, outros do fígado, mas, o amor

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é a verdadeira causa de tudo! Lucinda se fingiu de doente para

escapar de um marido que o pai queria dar-lhe à força!

SGANARELLO – Pois eu estou comovido com a sua história,

rapaz! Por isso, empregarei toda a minha Medicina: ou o senhor

fica com a doente, ou eu arrebento com ela! Agora temos que

traçar um plano! Espere um momento aqui neste canto, que eu

já volto. (Leandro esconde-se. Sganarello sai e volta em

seguida, com uma peruca e um avental, que veste em

Leandro.) Pronto: esta peruca e este avental de farmacêutico,

os criados trouxeram para mim, mas acabei não precisando

deles. Agora encontramos uma utilidade para os mesmos.

LEANDRO – Até que como farmacêutico eu não estou nada

mal! E, já que o pai não me conhece bem, acho que esta roupa

e esta cabeleira já chegam para me disfarçar.

SGANARELLO – Sem dúvida!

LEANDRO – Eu gostaria de saber uma meia dúzia de palavras

difíceis sobre Medicina, para enfiar no meio da conversa, e

bancar o entendido.

SGNARELLO – Não se preocupe: a roupa só já chega! O

senhor entende do assunto tanto quanto eu!

LEANDRO – Como assim?

SGANARELLO – O diabo que me carregue se eu entender

alguma coisa de Medicina!

LEANDRO (Impressionado) – O quê?... Então o senhor não é

efetivamente...

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SGANARELLO – Não. Foram eles que me fizeram médico à

força! Mandei ao diabo as conseqüências e a minha fama

correu, e todo o mundo acabou acreditando que eu sou uma

sumidade. Todos me procuram. Se a coisa continuar assim, me

grudo à Medicina e não largo mais. Acho que é a melhor

profissão que existe. Estando o serviço bem feito ou mal feito, o

dinheiro sempre entra. Nunca temos culpa do serviço mal feito.

A gente recebe o pano e mete a tesoura à vontade, sem dar

satisfação. Um sapateiro, por exemplo, sempre paga o couro

que estraga. Nós liquidamos um homem e ninguém diz nada. A

burrada nunca é do médico, mas do doente, que morreu. E,

além de tudo, mais uma vantagem: os defuntos são muito

educados, nunca se queixam aos médicos que os mataram.

(Percebendo que vem gente.) Acho que aí vem gente: vamos

lá para dentro, antes que lhe descubram! (Saem. Jaquelina e

Lucas atravessam o palco carregando um caldeirão

fumegante de vinho com pão. Atrás deles, entra Geronte.).

GERONTE (Chamando) – Lucas! (Lucas entra.) Você não viu

por aqui, o nosso médico? Sabe, por acaso, onde ele está?

LUCAS – Não sei, mas queria que estivesse no inferno!

GERONTE – Vai lá dentro ver o que a minha filha está fazendo.

(Sai Lucas. Entram Sganarello e Leandro.) Oh, senhor: estava

justamente perguntando pela sua pessoa.

SGANARELLO – Como vai a doente?

GERONTE – Um pouco pior, depois do seu remédio.

SGANARELLO – Isso é bom! Sinal de que está fazendo efeito.

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GERONTE – Mas eu tenho medo de que, fazendo efeito, o

remédio acabe sufocando a minha filha.

SGANARELLO – Não tenha medo! Meus remédios riem das

doenças.

GERONTE (Vendo Leandro) – Quem é esse homem aí?

SGANARELLO (Gesticula, procurando mostrar que é um

boticário) – É um...

GERONTE – Um o quê?...

SGANARELLO – É... o boticário! Sua filha vai precisar muito

dele. (Entra Jaquelina, acompanhando Lucinda.).

JAQUELINA – A menina quer andar um pouco, patrão!

SGANARELLO – Ah, isso é ótimo! (Para Leandro.) Senhor

farmacêutico: vá tomar o pulso da menina, para que possamos

falar sobre a doença! (Sganarello vai para um canto, levando

Geronte. Conversa com Geronte, mantendo-o de costas

para os outros. Sempre que Geronte tenta olhar para trás,

Sganarello não deixa, segurando-o pelo queixo.) Entre os

doutores, há muito tempo que se debate a questão de se saber

se as mulheres são ou não são mais fáceis de curar, que os

homens. Preste atenção, por favor! Uns dizem que não, outros

dizem que sim e que não. Fundo-me em que a incongruidade

dos humores opacos que se encontram no temperamento

natural das mulheres, como sendo causa da parte brutal em

querer sempre tomar império sobre a sensitiva. Vê-se que a

desigualdade de opiniões depende do movimento oblíquo do

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círculo da lua, e, como o sol, que dardeja os seus raios na

concavidade da Terra. Acha...

LUCINDA (Para Leandro) – Não! Nunca mudarei de

sentimentos!

GERONTE (Espantadíssimo) – Minha filha está falando! Oh,

remédio maravilhoso! Oh, médico admirável! (Joga-se de

joelhos, aos prantos, aos pés de Sganarello.) Quanto lhe

devo por esta cura milagrosa? Como poderei pagar esse

serviço?

LUCINDA – Sim, meu pai: recuperei a fala, mas recuperei-a

para dizer-lhe que nunca hei de ter outro marido que não seja

Leandro, e que é inútil pretender que eu me case com Horácio...

GERONTE – Mas...

LUCINDA – Ninguém mudará a resolução que tomei...

GERONTE – O quê?

LUCINDA – Não me interessam as razões que apresentar...

GERONTE – É que...

LUCINDA – Tudo o que disser, não adiantará nada...

GERONTE – Eu...

LUCINDA – É coisa decidida...

GERONTE – Mas...

LUCINDA – Não há poder paterno que possa obrigar-me a

casar contra a vontade...

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GERONTE – Eu...

LUCINDA – Por mais que o senhor faça...

GERONTE – Ele...

LUCINDA – O meu coração nunca se submeteria a tal tirania...

GERONTE – A...

LUCINDA – Eu prefiro, antes, me meter num convento, do que

casar com um homem de quem não gosto...

GERONTE – Mas...

LUCINDA (Ensurdecedoramente) – Não! De modo nenhum!

Nunca! O senhor perde seu tempo! Nunca, nunca e nunca! Está

decidido!

GERONTE – Puxa: que matraca! (Para Sganarello.) Senhor:

pelo amor de Deus faça essa mulher ficar muda outra vez!

SGANARELLO – Isso é impossível! Não posso! O mais que

posso fazer, é deixar o senhor surdo, se quiser...

GERONTE – Não, muito obrigado! (Levanta-se. Para Lucinda.)

Então você pensa...

LUCINDA – Não. Seus argumentos nada conseguirão.

GERONTE – Você se casará com o Horácio ainda hoje.

LUCINDA – Prefiro casar-me com a morte!

SGANARELLO (A Geronte) – Esperem: eu arranjo um médico

para esta questão. É uma doença, que está deixando com que

ela fique assim. Eu sei o remédio!

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GERONTE – Será possível que o senhor tenha remédio para as

doenças do espírito?

SGANARELLO – Eu tenho remédio para tudo! (Dá uma olhada

para Jaquelina.) E, o nosso farmacêutico vai nos ajudar no

tratamento. (Para Leandro.) Uma palavrinha: como vê; a paixão

que ela tem pelo tal de Leandro, é completamente contrária à

vontade do pai. Também vê que não temos tempo a perder,

porque os humores estão muito azedos, e que é preciso achar,

prontamente, o remédio para curar essa doença, e que toda a

demora é um perigo. E, por mim, acho que só existe um

remédio: a fuga purgativa! Vá com ela, dar uma volta pelo

jardim, para lhe preparar os humores. Enquanto isso, eu

entretenho o pai. Sobretudo, não perca tempo! Ao remédio:

depressa! Ao remédio! (Saem Leandro e Lucinda.).

GERONTE – Que remédios são esses que o senhor acaba de

receitar? Parece que nunca ouvi falar neles.

SGANARELLO – São remédios que só servem para casos

urgentes.

GERONTE – Já se viu insolência igual?

SGANARELLO – As mocinhas costumam ser um pouco

peitudas mesmo. (Faz gestos, como se estivesse ajeitando

os peitos, de olho em Jaquelina.).

GERONTE – O senhor não imagina como ela anda doida por

esse tal de Leandro!

SGANARELLO – É o calor do sangue, nessa idade!

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GERONTE – Mas eu, quando descobri a coisa, tranquei minha

filha a sente chaves.

SGANARELLO – Agiu prudentemente.

GERONTE – E tomei as providências para que eles não

pudessem se falar.

SGANARELLO – Muito bem feito!

GERONTE – Porque se eles se encontrassem, poderia

acontecer alguma besteira.

SGANARELLO (Olhando para Jaquelina) – Sem dúvida.

GERONTE – Seriam capazes até de fugir.

SGANARELLO – O senhor pensou com muito juízo.

GERONTE – Me disseram que ele anda tentando por todos os

meios falar com ela!

SGANARELLO (Já com a pulga atrás da orelha) – Que

tratante!

GERONTE – Mas ele está perdendo seu tempo.

SGANARELLO – Ah, ah! Deve estar!

GERONTE – Farei tudo para que ele não a veja!

SGANARELLO – É isso mesmo! Ele não está tratando com

nenhum tonto. O senhor é mais esperto do que ele pensa. Para

ser mais esperto do que o senhor, é preciso não ser um burro!

LUCAS (Entra agitado, juntamente com Valério) – Meu

senhor! Ah, meu senhor: que desgraça! Sua filha fugiu com o

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senhor Leandro. Era ele quem estava disfarçado de

farmacêutico e (aponta para Sganarello.) foi este senhor

doutor, que fez essa beleza de operação. (Agarra-se

ostensivamente em Jaquelina, como que provocando

Sganarello.).

GERONTE – O quê? Querem me matar? Depressa: vamos,

mexam-se! Polícia! Polícia! (Sganarello tenta fugir.) Não o

deixem escapar! (Lucas e Valério seguram Sganarello.) Ah,

traidor! A Justiça te castigará! (Para Jaquelina.) Jaquelina:

traga uma corda! Vamos! (Jaquelina sai e volta com uma

forca, que Lucas, com muito prazer, enfia no pescoço de

Sganarello, que foge para fora de cena, onde fica aos gritos,

pedindo socorro. Lucas mantém-no preso pela corda. Neste

ínterim, entra Martinha, esbaforida.).

MARTINHA – Puxa: como custei a achar esta casa! (Para

Lucas.) E que tal o médico que lhe recomendei?

LUCAS – Olhe e tire as suas conclusões! (Puxa a corda,

trazendo Sganarello arrastado.).

MARTINHA – Meu Deus: o que é isso? Vocês vão enforcar o

meu marido? O que foi que ele fez?

LUCAS – Raptaram a filha do patrão, com a ajuda do doutor!

MARTINHA – Ai, maridinho da minha vida: será verdade que

vão te enforcar?

SGANARELLO – Tudo indica. Já estou sentindo a corda no

pescoço. Sai daí, porque você me faz doer o coração.

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MARTINHA – Isso é que não! Eu quero ficar para te encorajar

na morte. Não arredo o pé antes de te ver enforcado!

SGANARELLO – Você é um anjo!

GERONTE (A Valério) – Valério: vá buscar a polícia, para tratar

esse doutor com todas as honras que merece. (Valério sai.).

SGANAELLO (De joelhos) – Será que não dava para dar um

jeitinho de trocar isso tudo por algumas lambadas?

GERONTE – Não senhor! A Justiça decidirá! (Entram, num

rompante, Lucinda e Leandro, acompanhados de Valério.)

Mas o que significa isso?

LEANDRO – Senhor: venho trazer Leandro à sua presença e

devolver Lucinda ao seu poder. (Tira a peruca e o avental.)

Pretendíamos fugir juntos, e casar em seguida, mas, ao invés

disso, resolvemos tomar uma atitude mais digna. Não pretendo

roubar sua filha: é de sua mão que desejo recebê-la! Outrossim,

desejo comunicar que acabo de receber uma carta, que

participa a morte de meu tio, deixando-me herdeiro de todos os

seus bens! (Jaquelina dá um soluço, e cai em prantos.).

GERONTE (Arranca a carta das mãos de Leandro e a lê.

Depois, devolve-a) – Senhor: seu modo de proceder é-me

muito grato, e por isso, concedo-lhe a mão de minha filha, com a

maior alegria e satisfação. (Jaquelina soluça copiosamente.).

SGANARELLO (À parte) – A Medicina está salva!

MARTINHA – Bem, já que não te enforcam mais, venha me

agradecer, porque se você agora é médico, fui eu quem te deu o

diploma!

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SGANARELLO – É: e uma porção de cacetadas!

LEANDRO (A Sganarello) – Mas, como tudo acabou bem,

deixemos de lado os ressentimentos.

SGANARELLO – Está bem! (À Martinha.) Perdôo-te pelas

lambadas que tomei, levando em conta a alta dignidade que me

conferiu. Mas você prepare-se para tratar com muito respeito um

homem de minha categoria, não se esquecendo nunca de que

deve tomar muito cuidado, quando o médico ficar com raiva!

(Martinha dá-lhe uns tapas, mantendo-o preso à corda. Os

dois começam um bate-boca infernal. Jaquelina soluça,

loucamente. A música vai subindo, enquanto todos

começam uma grande discussão. Fecha o pano.).

FIM