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As Hortênsias Texto de Aldo Calvet

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As

Hortênsias Texto de Aldo Calvet

PERSONAGENS

KITEN (Kit)

Garota de 17 anos, geração píer. É inteligente, curiosa,

elegância descuidada, ultramoderna no comunicar-se,

dinâmica.

NORMA

Moça de mais ou menos 44 anos, bela, alegre, mãe de

Kiten e esposa de Aníbal; é inteligente, superior na

conduta sentimento, viva, moderna, perspicaz; veste-se

com requinte de elegância e no maior rigor da moda.

MARILENA

Serviçal de ambiente familiar abastado.

ROMÃO

Jardineiro, homem prático, rústico.

ANIBAL

Homem jovial, de meia-idade, cabelos levemente

grisalhos com corte moderno e bem arrumados, boa

aparência física; é marido de Norma e pai de Kiten; está

com 55 anos presumíveis, mas ninguém dirá que tem

mais de 45.

HORTÊNSIA

Mulher de uns prováveis 42 anos, é charmosa, de

semblante sofrido, mas de uma atração feminina

perturbadora; traja-se com simplicidade, dentro, porém,

do máximo bom-gosto, pois em tudo observa o jogo da

moda atual; é inteligente, culta, independente e

emancipada; de tudo isso, possui orgulho só possível

numa personalidade obsessiva.

LUCIANO

Jovem de 19 anos, belo, educado, com traços fisionômicos

que lembram uma mistura de Aníbal e Hortênsia em

pleno ardor da mocidade; é super-inteligente e amável;

tem nas faces e nas expressões do olhar algo que o define

como um destino em busca de um comedimento.

AÇÃO

Acontece numa residência de luxo em Petrópolis.

Atualidade.

CENÁRIO

Sala de estar com janelão ao fundo e uma porta em arco

à esquerda, dando ambas, respectivamente, para um

pomar e um jardim; uma outra porta à direita baixa,

saída para o interior da morada.

QUADRO ÚNICO

Palco iluminado. Marilena está entrando pela porta em

arco à esquerda, vinda do jardim. Traz uma cesta com

flores.

NORMA (Vendo Marilena e reparando nas flores) -

Não, Marilena. Será que eu tenho de ir? Eu

falei hortênsias.

KITEN (A um gesto de Marilena e reparando nas flores)

- Falou! Mamãe falou hortênsias.

NORMA - Pois não é, Kiten? Eu falei hortênsias, você

ouviu, e Marilena me vem com rosas, lírios,

cravos, orquídeas...

KITEN (Interrompe. Para Marilena) - Hoje é só

Hortênsias, bicho!

NORMA (Diante da desolação de Marilena) - Bem...

bem... Você, Marilena, me parece tão

desolada...

MARILENA (Corta) - Não senhora, Dona Norma. Eu

vou apanhar hortênsias. Tem muitas hor...

NORMA (Corta) - Eu sei que há bastante: rosas, lilases,

brancas...

MARILENA (Corta) - Dona Norma quer de que cor?

NORMA (Mesmo jogo, pois Norma e Marilena falam

quase ao mesmo tempo) - Das três: lilás,

rosa e branca. Mas pede para o Seu Romão

colher. Ele sabe melhor... (A um olhar de

Marilena) Melhor que nós, naturalmente...

é jardineiro... Vamos pôr as hortênsias

todas aqui nesta sala.

KITEN - Mamãe está vidrada nas hortênsias. Hoje,

vamos curtir hortênsias.

NORMA (Para Marilena) - Deixa essa cesta na sala de

jantar. Um ambiente bem decorado exige

flores ornamentais.

KITEN (Para Marilena) - De flores nós entendemos

paca. Mete isso na cuca, bicho.

NORMA (Com um sorriso, estranhando o plural) - Nós?

KITEN - Então, mamãe? Você já esqueceu as aulas de

horticultura com que me encheu a cuca?

NORMA - Aulas?

KITEN (Esclarece a Marilena) - As aulas eram um

barato. Saca: logo que papai comprou esta

casa, a curtição única era jardinagem.

Cada bicho queria curtir jardinagem

mais...

NORMA (Corta) - Um mais do que o outro.

KITEN (A um ar de descrença de Marilena) - Cascata?

Não é cascata não, tá? No duro.

NORMA - É verdade. A horticultura contagiou toda a

família.

KITEN - Até os empregados que já se mandaram... Todo

mundo na mesma curtição.

NORMA - Marilena não estava ainda aqui. Não sabe.

KITEN - Horticultomania...

NORMA - Isso é teu pai com os neologismos dele.

KITEN - Curso de jardinagem, livros, tratados, revistas

especializadas, leituras diárias

obrigatórias...

NORMA (No mesmo embalo) - Conselhos e dicas de

Cecília Beatriz...

KITEN - Arranjos de flores de Maria Luisa Figueiredo...

Aulas teóricas pelos que estavam mais por

dentro...

NORMA - Por dentro, não, minha filha. Modéstia à

parte, mas eu sempre sabia mais, sempre

explicava melhor... Estava mais por dentro

que você, ah, isso estava.

KITEN (Corta) - Por isso mesmo passamos todos, e até

papai, a te chamar (com ênfase) de

professora de arte de cultivar hortas e

jardins. (Riem todas).

NORMA - Marilena, fala a Seu Romão para apanhar as

hortênsias das cores que tiver no jardim,

entendido?

MARILENA (Ao sair) - Sim, senhora. (Sai com a cesta

pela porta da direita baixa).

KITEN - Hortênsias!

NORMA - Vamos encher esta sala só de hortênsias.

KITEN (Gesto) - A sala vai ficar cheia! (Outro tom) Vinte

anos de amarração... E tome hortênsias!

NORMA - Então? Vinte anos de casamento pleno de

felicidade. Kiten, não é todo o mundo que

faz e nem sempre se faz.

KITEN - Plena felicidade... Escuta, mamãe, o que você

considera plena felicidade?

NORMA - Kiten, um casal unido, vivendo sempre um

para o outro, participando dos mesmos

instantes de alegria como de tristeza e

sobretudo pertencendo um ao outro...

KITEN (Corta) - Ligados...

NORMA - Fiéis ao juramento conjugal diante do altar

de Deus...

KITEN (Interrompe) - Legal! A transa não é nada fácil...

você tem razão. Você e papai estão se

mantendo...

NORMA - Teu pai adora hortênsias. Quando casamos

viemos passar a lua-de-mel aqui em

Petrópolis.

KITEN - Hum! Que bacana! Que esnobação!

NORMA - Nada de esnobação. Passamos nossa lua-de-

mel num hotelzinho barato.

KITEN - Barato?

NORMA - Barato que não é um "barato".

KITEN - Mamãe, você não vai querer me fundir a

cuca... com essa de hotelzinho pra gente

pobre...

NORMA - Éramos pobres. Ainda éramos pobres. Teu

pai, um simples funcionário da carreira

diplomática. Ganhava uma miséria.

KITEN - Vocês estavam sucumbindo...

NORMA - Só prosperamos depois de Aníbal deixou o

emprego público.

KITEN - Legal!

NORMA - Nossa lua-de-mel foi passada entre

hortênsias... O dormitório todo era só

hortênsias... Claro! Estávamos na "cidade

das hortênsias". Quando completamos dez

anos de casados...

KITEN (Corta) - Nova curtição com muitas hortênsias.

NORMA - Dessa vez, teu pai chegava naquele dia de

uma pequena viagem. Não se lembrava da

data. Ornamentei a sala com hortênsias...

KITEN (Mesmo jogo) - Aí o bicho lembrou!

NORMA - Que bicho, menina?

KITEN - Papai.

NORMA (Entre risos) - Foi instantâneo: (imita)

aniversário de casamento! Espere. Deixe

ver. Disse: dez anos!

KITEN - Sacou! Que romântico! Hoje, os casais não

chegam a cinco...

NORMA - Essas coisinhas aparentemente

insignificantes...

KITEN (Interrompe) - Insignificantes... ?

NORMA - Românticos como entendem as novas

gerações, a geração píer... são essas

coisinhas, Kiten querida, que em vinte anos

de matrimônio alimentam o amor,

fortificam os laços de amizade, unem e

tornam a vida do casal repleta de

felicidade. Assim, graças a Deus, tem sido a

minha vida com teu pai. (Outro tom) Ah,

vamos falar de flores, plantas... O passado

já era...

KITEN - Esse jardineiro...

NORMA (Completa) - Seu Romão.

KITEN - Sabe que ele está por dentro dessa transa de

planta, jardim...

NORMA - Também se não conhecesse o ofício...

KITEN - Outro dia, eu manjei. Ele pintou um papo com

um coroa lá no portão, só a senhora vendo:

intelectual, é. Parecia até a mamãe numa

daquelas tuas aulas.

MARILENA (Entrando pela porta em arco à esquerda,

acompanhada de Romão, que coça a cabeça

e traz uma cesta com hortênsias de várias

cores) - Dona Norma, Seu Romão já tinha

apanhado as hortênsias.

NORMA - Ótimo, Marilena. Deixe ver. (Aproxima-se).

ROMÃO (Coçando a cabeça) - Dona Norma, não leve a

mal. Eu tenho reparado que tanto a

senhora como o patrão sempre que passam

pelo jardim param no canteiro das

hortênsias.

NORMA (Estranhando) - Eu também?

ROMÃO (Coça a cabeça com leve sorriso) - Bem... o

patrão é mais vidrado nas hortênsias que a

senhora. As hortênsias, neste tempo, tão

que é uma beleza. Veja só isto! (Mostra).

KITEN (Que se aproximou) - Esta branca é jóia. Linda de

morrer.

ROMÃO - Dona Norma viu como tá o gramado?

NORMA (Que começa a pôr as flores nos vasos) - Ah,

deve estar todo ressecado. Assim fica todos

os anos. Eu não sei que se possa fazer para

ele ficar sempre verde, viçoso?

ROMÃO (Sempre coçando a cabeça) - Perdão, Dona

Norma. O gramado não está ressecado, não

senhora.

NORMA - É verdade?

ROMÃO - Verdade. A senhora porque não vai na

piscina faz tempo. (Coça a cabeça) Olha,

Dona Norma, assim como a gente no

inverno pede cobertor, a grama também

pede.

KITEN - Cobertor? Que barato!

NORMA - Não estou entendendo...

ROMÃO (Coçando a cabeça) - Vá ouvindo: cobertor de

grama é terra vermelha e terra preta

jogando uns punhado por cima dela...

KITEN - A grama da piscina tá jóia mesmo. Verdinha,

verdinha.

ROMÃO (Coçando a cabeça) - Nas vorta da piscina,

prantei grama forquinha, porque a grama

forquinha é forte, é muito forte mesmo,

pode a gente pisar em cima dela toda vida

que ela não murcha. A gente pode até jogar

futebol por cima dela, é a mesma coisa, ela

não morre.

NORMA - Eu sei é que nunca tivemos bons gramados.

Parece um castigo.

ROMÃO (Coçando a cabeça) - Não, Dona Norma, agora

os gramado tão jóia mesmo, podes crer...

NORMA - Pois olhe, Seu Romão, o senhor tem dado

sorte.

ROMÃO (Coçando a cabeça) - Não é sorte, não senhora.

É trato bão. Cada qualidade de grama deve

ter o trato dela. Pra começo de conversa, o

primeiro corte deve ser com tesoura...

KITEN (Corta) - Seu Romão, por que tesoura e não

aquele carrinho de aparar grama... ?

ROMÃO - Pra não arrancá as muda, Dona Kiten. Com

estrumo virei o terreno todo. Joguei salito

nele pra conservá a frescura. Regá também

só nos dia certo. A prantação só vinga nos

tempo de chuva. (Coçando a cabeça) Tudo é

questão de trato...

KITEN (Corta) - Por quem mora no assunto...

ROMÃO (Sem entender) - Mora no assunto... Pois eu

moro e tou por dentro, Dona Kiten. Meu

serviço é meu serviço... Tou anos na

profissão...

NORMA (Que esteve arrumando as flores nos vasos

juntamente com Marilena, devolvendo a

cesta a Romão, no propósito de encerrar a

conversa que já se alonga) - Mais tarde,

vou dar uma olhada nessas gramas.

ROMÃO (Recebendo a cesta e coçando a cabeça) - Pois

não, Dona Norma. Daqui mais dois mês,

vou precisar de adube e estrumo de boi

curtido e de mudas nova também.

NORMA - Sim. Aníbal já encomendou as sementes.

ROMÃO (Coçando a cabeça) - Perdão, Dona Norma.

Não é semente, não senhora. É mudas.

Semente demora pra crescer. Quero mostrá

pra senhora o entuio que arretirei do

terreno, era pedras, pedaço de pau, latas

velha, tubo de pasta de dente, vidros vazio,

cacareco que tinha que vê...

NORMA (Corta) - Deixe que eu vou ver... Sobre as

sementes ou as mudas, Aníbal depois falará

com o senhor. (Volta a colocar as flores nos

vasos).

ROMÃO - Sim, senhora. (Coça a cabeça) Com sua licença.

(Sai pela porta de arco à esquerda).

NORMA (Entre dentes) - Gosta de uma conversa...

KITEN - Um bate-papo é com ele... (Observando a

arrumação das flores e a disposição das

jarras) Tá ficando bacaninha. Muito

bacaninha.

NORMA - Kiten, você vai perdoar a vaidade de sua

mãe, mas estou bem por dentro nessa

transa de arrumação de flores e disposição

de vasos. E você, Marilena, está gostando?

MARILENA - Estou, Dona Norma. Tá ficando legal.

NORMA (Arrumando as hortênsias) - A arte está em

saber combinar as flores, as jarras e o

ambiente.

KITEN - Lá no centro da mesa a senhora via pôr...

NORMA (Corta) - Nada. Nunca se consegue uma boa

disposição de flores em centros de mesa.

Não gosto.

KITEN - Quer dizer que em centro de mesa...

NORMA (Intercede) - Centro de mesa é sempre liso,

muito plano, raso. Nunca se obtém um bom

arranjo.

KITEN - Mamãe, me dê uma idéia para um ambiente

com flores que não sejam hortênsias.

NORMA - Deixe ver se me lembro ainda... Espere...

KITEN - Escuta, você acredita que os vegetais são

capazes de sentir emoções... ?

NORMA - Algumas pesquisas científicas recentemente

feitas em Buffalo provaram a sensibilidade

das plantas.

KITEN - É. Eu também li.

NORMA - Agora, isso são outros estudos. Para

ornamentar sua casa com flores você

precisa ter gosto e criatividade. Uma coisa:

não esqueça que rosas e orquídeas merecem

vasos de prata.

KITEN - Vasos de prata? Só em vasos de prata? E se eu

não tiver vaso de prata, como vai ser?

NORMA - A gente pode usar também vaso de cristal,

vaso de opalina; pode variar; prata, cristal,

opalina.

KITEN - Eu adoro margarida, tulipa, alfazema... O

perfume...

NORMA - Para flores do campo, vasos rústicos.

KITEN - De cerâmica.

NORMA - Pois é, cerâmica, barro, vasos de ferro, de

cobre... Ah, uma observação: use vasos

baixos, porque nos vasos altos melhor é pôr

rosas, cravos, gladíolos...

KITEN (Estranha) - Gladíolos... ? Que troço de flor é essa

que a mamãe aqui neca, não manjou

bulhufas?

NORMA - É a palma de Santa Rita.

MARILENA - Ah, eu conheço, sim.

NORMA - Outro detalhe, Kiten, importante, tome nota:

o feitio do vaso. Vaso redondo, em cima de

mesa redonda. Vaso de saliência curva,

bojudo...

KITEN (Corta) - Gordinho. Vaso que precisa fazer

Cooper.

NORMA - Como fazer Cooper... ?

KITEN - Barrigudinho.

NORMA (Ri) - Pois é, mesa retangular ou oval pra ele.

Mas tudo isso, Kiten, você vai aprendendo

com o tempo. Não adianta esse plá sem

compromisso.

KITEN - O pai do Luis Fernando...

NORMA - Aquele teu coleguinha do Brasileiro de

Almeida?

KITEN - Meu amigo. O pai dele, sabe, se amarra em

jardim. Espera... Como é que se chama esse

negócio...

NORMA (Interrompe) - Ih, Kiten, você abusa de gíria.

Quem cultiva jardim é horticultor. Vem de

horticultura.

KITEN - Bacana! (Outro tom) O cara, mamãe, mora em

Barbacena. A transa dele é só com rosa.

Planta rosa. Colhe rosa. Vende rosa.

Manda rosa pro mundo todo.

NORMA - É exportador de rosas.

KITEN - É a curtição dele. Luis Fernando fala que o pai

vendeu não sei quantos mil dólares de rosa.

Descola a maior nota... Vou te contar...

(Outro tom) Sou vidrada numa rosa.

MARILENA (Que termina de auxiliar na arrumação

das hortênsias) - Ah, Dona Kiten, vi uma

rosa ali do lado do portão grande que é

jóia... Como a senhora gosta.

KITEN - Pô! Marilena, bem onde está... vem me mostrar,

agora mesmo, vem logo. Te manda.

MARILENA (Ameaça sair) - Agora mesmo. É bom que a

senhora veja ela no pé... (Marilena e Kiten

vão saindo).

NORMA - Kiten, não se demore muito. Preciso de você

daqui a pouco...

KITEN (Que volta até junto de Norma correndo) - Sim,

bicho. (Beija Norma e sai acompanhada

por Marilena pela porta em arco à

esquerda).

NORMA (Alteando a voz para que Kiten escute) -

Kiten, não fique muito tempo de papo no

jardim. (Espirra) Os sprays de inseticida da

vizinhança chegam até aqui. Sou alérgica a

esse cheiro. Não sabem que os melhores

inseticidas...

ANÍBAL (Que entra pela direita baixa, a tempo de

ouvir as últimas palavras de Norma,

completa) - São os passarinhos!

NORMA (Intencional) - Passarinho-ave, porque há

muito passarinho-homem por aí que não

serve nem pra comer inseto. (Ri. Riem).

ANÍBAL - A natureza é sábia. Os pássaros são os

melhores comedores de insetos.

NORMA (Ainda em risos) - Isso é que se pode chamar de

uma mentalidade ecológica dentro do seu

tempo.

ANÍBAL - Aposto como você não conhece algumas

espécies de pássaros insetívoros.

NORMA - Para mim, são todos eles, exceto os que, com o

diminutivo, rastejam ao convívio do

homem. (Ri).

ANÍBAL - Sim, de modo geral. Você tem razão. O Tico-

Tico, que brinca pelo chão do nosso jardim,

come mais de 120 insetos por dia.

NORMA (Gozação) - Que comilão o Tico-Tico! Isso é uma

devastação! Olha, Aníbal, no reino do

artrópode, garanto, há perfeito equilíbrio

larval...

ANÍBAL (Ri) - Toda essa enrolação é pra me dizer: nada

de excesso de população de insetos. Li sobre

o assunto uma publicação, um livro ou

artigo, de Leonardo Fróes. A Andorinha e o

Bem-Te-Vi são também comedores de

insetos. (Só agora reparando) Mas... que é

isto... ?

NORMA (Querendo avivar a memória de Aníbal) -

Hortênsias!

ANÍBAL - Sei que são hortênsias! Estou vendo. Mas só

hortênsias... (Num estalo) Já sei: vinte anos

de amarração!

NORMA (Abrindo os braços) - Vinte anos de casados.

ANÍBAL (Que corre a abraçar e beijar Norma) - Vinte!

Uma geração!

NORMA - Parece que foi ontem.

ANÍBAL - Parece que foi hoje.

NORMA (Rindo) - Hoje?

ANÍBAL - Ainda agora. A viagenzinha pobre de lua-de-

mel... Lembra?

NORMA - Num hotelzinho pobre... (Outro tom) Naqueles

tempos um funcionário do Itamarati ainda

podia... Hoje, não pode mais... Nenhum

funcionário...

ANÍBAL - Ninguém...

NORMA - Nada mudou...

ANÍBAL (Precipitação) - Nada?

NORMA - No nosso íntimo, no íntimo dos nossos

corações...

ANÍBAL - Ah, sim. Nos nossos sentimentos.

NORMA - Nas nossas virtudes, no nosso querer bem.

ANÍBAL - Bacano. Bacaninho como diz Kiten.

NORMA - Isto é amor, e deste amor se vive e deste amor

se morre... Olha o poeta.

ANÍBAL - Falou. (Ri).

NORMA (Beijando Aníbal) - Meu querido, vamos

esperar as bodas de prata.

ANÍBAL (Beijando Norma) - As bodas de ouro, as bodas

de brilhante. (Outro tom) Ah, você

ornamentou a casa para festejarmos...

NORMA (Corta) - Não devemos esquecer... Para que não

te esqueças...

ANÍBAL (Interrompe) - Esquecer? É... Talvez... Tantas as

preocupações nesta nossa sociedade de

consumo...

NORMA - Preocupações... ?

ANÍBAL - Às vezes mais com os outros... Temos tudo em

ordem.

NORMA (Corta) - Graças a Deus.

ANÍBAL - Nossos negócios. Nossas finanças. Tudo está

garantido, tudo é sólido. É a incerteza do

futuro. É cuidar do patrimônio de nossa

filha. De você... (Outro tom) Mas vamos

comemorar e bebemorar a data. Vou ao

centro descobrir uns bons vinhos.

NORMA - Ah, é mesmo. Era para te falar. De vinho,

meu filho, estamos falidos.

ANÍBAL - Você prefere...

NORMA (Corta) - Não tenho preferências especiais.

Compra do teu agrado, daqueles do

costume.

ANÍBAL - Ótimo. (Beijando Norma) Até já, querida.

NORMA - Tchauzinho. (Aníbal sai pela porta em arco à

esquerda).

KITEN (Entra pela porta da direita baixa, com uma

linda rosa vermelha amarrada na cabeça,

lendo um livrinho) - As plantas são seres

conscientes. Elas reagem emocionalmente

como as criaturas humanas. Ficam

temerosas quando são ameaçadas e se

mostram agradecidas diante das

manifestações de carinho. Herbert

Kretzmer conta a experiência sui generis...

(Interrompe a leitura) Mamãe, que quer

dizer sui generis?

NORMA - Específico. Especial de uma coisa ou de uma

pessoa. A que vem isso... ?

KITEN - Escute só e não vai fundir a cuca. A observação

está aqui. (Lê) Numa escola dos Estados

Unidos um professor pediu aos alunos de

uma turma que levassem para casa duas

tigelas de vidro contendo três grãozinhos

de feijão em cada tigela com um pouco

d'água. Recomendação: os feijões de uma

tigela devem ser cuidados com muito amor,

enquanto os feijõezinhos da outra tigela

devem ser tratados de modo comum com

luz e calor. Uma semana mais tarde, o

resultado dos tratamentos diferentes ficou

evidente nos pezinhos trazidos de volta

para o colégio pelos alunos: os feijõezinhos

da tigela cuidada com amor lançaram

raízes e brotos viçosos, enquanto os feijões

tratados sem amor tinham aparência

miserável, eram enrugados, raquíticos e

estavam quase todos afogados na água da

tigela.

NORMA (Curiosa) - Kiten, onde você comprou esse

livrinho? (Estende a mão) Deixe ver...

KITEN - É emprestado. Luis Fernando me emprestou...

NORMA (Examina o livro em leitura baixa depois de

breve pausa) - É muito interessante. (Lê

alto trechos esparsos) A consciência no

mundo vegetal... Percepção primária...

Sobre a moderna pesquisa, o primeiro que

se dedicou ao estudo foi Cleve Backster... As

plantas são capazes de sentir emoções... A

sensibilidade está provada...

KITEN - Mamãe, a senhora sabe que o Luis Fernando é

muito inteligente...

NORMA (Corta) - Se você acha, é porque é mesmo... Eu

não o conheço... Nunca conversei com ele...

KITEN (Corta) - Ele ficou muito amarrado na leitura

deste livrinho. Lia trechos quando a gente

saía do colégio, nos intervalos das aulas,

sabe? Queria que todo mundo lesse...

NORMA (Lendo) - Backster afirma que pode ativar o

crescimento de uma planta distante

quilômetros só pensando nela...

KITEN - Ah, mamãe, não enche... Presta atenção. Lê

depois.

NORMA - Fala. Vai falando. Eu escuto.

KITEN - Luis Fernando fez uma comparação entre o

feijão criado com amor e um feijão criado

sem amor.

NORMA - Sei. E daí?

KITEN - Daí é que o feijão criado com amor...

NORMA (Corta) - Criou raízes vigorosas, nasceram

brotos fortes... Ah, Kiten, você já falou.

KITEN - Espera. Deixa eu completar. O feijão...

NORMA (Corta) - Sem amor tinha uma cara de

apavorar, cara de miserável, de marginal...

KITEN (Intercepta) - Marginal! Pintou! Nasceu

revoltado, agressivo, violento...

NORMA (Brincando) - Feijão brigão. Devia querer

bater em todo mundo... (Em estado de

reflexão) Fenômeno psíquico... A

semelhança... A sensibilidade das plantas...

KITEN - Pois é como fala Luis Fernando: se as plantas

sabem o que estamos pensando delas, muito

mais que o embrião que é um ser humano...

(Hesita).

NORMA (Admiração, procurando completar) - Em

formação. (Outro tom) Quem falou tudo isso

pra você, foi o Luis Fernando?

KITEN - Ele é bacana paca. É um cara bom de chinfra.

Mas também, não é vantagem nenhuma.

Luis Fernando tá na dele. Vai ser botânico.

Ele faz uma enrolação com plantas e as

pessoas...

NORMA - Pessoas, não. Ele deve se referir a marginais.

KITEN - É isso! É... os marginais só são marginais porque

não tiveram amor... Essa eu não engulo.

Você entende?

NORMA - Entendo e te explico: ele quer dizer que a

violência e a agressividade que se vê por aí,

esses assaltos, roubos, estouro de bombas,

crimes de toda a ordem, que tudo isso,

Kiten, é conseqüência da falta de amor

entre os homens...

KITEN (Maquinalmente) - Falta de amor... O que mais

se vê por aí é amor... não vai me dizer que

antigamente não matavam...

NORMA - Não contando as guerras, nunca mataram

como agora. Parece imperativo da (irônica)

sociedade de consumo... Sociedade

tecnológica...

KITEN - Eu acho o papo do Luis Fernando muito legal...

Mas estou sempre discutindo com ele.

NORMA (Interrompe) - Bom... discordar é um direito.

Mas o papo dele é excelente. Profundo.

(Entregando o livro para Kiten) Tome. E

pensam que a nossa mocidade é só bolinha...

(Outro tom) Depois você me empresta. Eu

quero ler.

ROMÃO (Aparecendo na porta em arco à esquerda) -

Dona Norma. (Aponta para fora) Aqui

está esta moça que procura o patrão.

HORTÊNSIA (Aparece acompanhada de Luciano) -

Minha senhora, vim para falar com o

doutor Aníbal. Já sei que ele não está.

Voltarei noutra ocasião.

ROMÃO - Me desculpe, Dona Norma... Quando a moça

falou que veio de São Paulo só para falar

com o patrão...

NORMA - Claro. Aníbal não deve demorar. Espere um

pouco. (Reparando) Entrem. (Romão retira-

se).

HORTÊNSIA - Preferia voltar em outra oportunidade...

É que as viagens hoje em dia são

cansativas...

NORMA - E dispendiosas... Perde-se tempo e dinheiro...

HORTÊNSIA - Um minuto longe do escritório

representa prejuízos às vezes

incalculáveis...

NORMA - Sei. É advogada. Tem que estar ali à testa de

tudo.

HORTÊNSIA - Não. Sou arquiteta.

NORMA (Leve desconfiança) - Bom... é quase a mesma

coisa... E depois... Há assuntos às vezes

inadiáveis...

HORTÊNSIA - Inadiável, inadiável... (Hesita).

NORMA - Parece que ouvi o jardineiro falar que a

senhora veio de São Paulo especialmente

para se encontrar com Aníbal...

HORTÊNSIA - Parece-lhe um pouco estranho...

NORMA - Não... Porque, meu marido, ao que eu saiba,

não tem nenhuma espécie de negócio em

São Paulo...

HORTÊNSIA (Intencional) - Agora...

NORMA - Ah, já teve... Pois a senhora pode falar com a

maior franqueza. Meu marido não tem

segredos para mim. (Dentro de uma breve

pausa, observando a curiosidade de Kiten

em torno da conversa, apontando Luciano)

Kiten, você poderia... (À Hortênsia) É seu

filho?

HORTÊNSIA - Oh, desculpe. Sim. Luciano.

LUCIANO (Que se aproxima, apertando a mão de

Norma) - Minha senhora, perdoe.

NORMA - Ora...

LUCIANO - Sou muito comunicativo. Conversei um

pouco com o jardineiro...

NORMA - Seu Romão...

LUCIANO - Pude saber como me devia conduzir sem

cometer gafes... E cometi a que mais torna

o homem inferior, isto é, não o distingue do

irracional, a do mutismo.

NORMA - Esteja à vontade, meu jovem. (Apresentando)

Esta é Kiten, minha filha.

LUCIANO - Kiten?

KITEN (Beijando Luciano e, em seguida, Hortênsia) - Ou

apenas Ki...

NORMA - É como a chamamos na intimidade.

HORTÊNSIA - Apelido de afeto.

LUCIANO - Interessante. (Rindo) Ki! É breve.

Pequenino. Um pingo feminino. (Riem).

KITEN (A Luciano, procurando intimidade) - E você

bicho, tem apelido?

LUCIANO (Rindo) - Não, bicho. Eu sou Luciano mesmo.

NORMA - Ki, convide o jovem Luciano para um passeio

pelo jardim...

KITEN - Vamos, Luciano.

LUCIANO - Sim, Ki. Obrigado. (A sair, à Norma)

Madame, encantado com a gentileza. Com

licença. (À Kiten) Gosto de mato. Do cheiro

de mato. Adoro animais. Curtir uma

paisagem é comigo. Você também? (Kiten

sacode apenas a cabeça e sai com Luciano

pela porta em arco à esquerda).

NORMA - Como tinha dito, meu marido não tem

segredos para mim. Somos assim desde que

casamos há vinte anos atrás.

HORTÊNSIA (Leve susto) - Vinte anos?

NORMA - Que lhe parece, muito ou pouco?

HORTÊNSIA - Não parece...

NORMA - Há quem diga que vinte anos é o prazo

máximo para um casal começar a pensar

em desquite ou divórcio.

HORTÊNSIA (Mesmo jogo) - Desquite?

NORMA - Essa coisa sem sentido que só servia para

anular os cônjuges pela vida afora...

HORTÊNSIA - Anular... Por ouvir a senhora falar em

anular, sabe que corre no Congresso um

projeto de anulação de casamento... ?

NORMA - Casamento civil. (Enumerando)

Homossexualismo, alcoolismo, sadismo,

perversão sexual...

HORTÊNSIA (Leve traição do inconsciente) - Ciúme

também é uma das causas...

NORMA - Ciúme mórbido, bem entendido. Ciúme, uma

pontinha de ciúme, todo mundo tem. Não

vai me dizer que não tem ciúme de seu

marido.

HORTÊNSIA (Sincera) - Não. Não tenho.

NORMA - Não tem ciúme?

HORTÊNSIA - Não tenho marido.

NORMA - Não diga... Não casou...

HORTÊNSIA (Soberba. Superior) - Sou solteira. Sou livre.

Acredito no amor livre. Sou independente.

Emancipada. Sempre fui assim. Por

temperamento. Por formação. Pertenço ao

Movimento de Independência e

Emancipação da Mulher.

NORMA (Respeitosa) - Rompeu com todos os

preconceitos na nossa sociedade burguesa...

HORTÊNSIA - Todos. Todos os tabus. Amo o amor.

Cultuo a verdade.

NORMA - Quer dizer que esse rapazinho...

HORTÊNSIA - É meu filho.

NORMA - Sim, seu filho Luciano...

HORTÊNSIA (Peremptória) - Luciano é filho de seu

marido.

NORMA - De Aníbal? Não acredito. Me perdoe. Não

acredito. (Breve pausa) É uma chantagem?

HORTÊNSIA (Calma) - Não, minha senhora. Chantagem

seria esconder a verdade em troca de

vantagens.

NORMA (Nervosa) - A paternidade de qualquer modo é

uma vantagem.

HORTÊNSIA (Corta) - Desde que reconhecida...

NORMA - Conte como aconteceu... Conte-me tudo...

HORTÊNSIA - Tudo? Como tudo? Pede...

NORMA (Corta) - Exijo. Não peço. Tenho direitos.

HORTÊNSIA - Direitos de esposa.

NORMA - Naturalmente, de esposa do pai do seu filho.

De esposa, são direitos: de amante, são

fatos.

HORTÊNSIA (Orgulhosa) - Amante. Aí está dito tudo. A

palavra é uma síntese da mulher que tudo

faz pelo amor exclusivo.

NORMA (Desdenhosa) - Pelo amor exclusivo... Tem

graça! Muita graça. As piranhas andam

por aí aos descuidos da polícia apanhando

os maridos das mulheres honestas e depois

passam a falar em amor exclusivo...

HORTÊNSIA (Revoltada) - Pelo fato de ser eu mãe de

um filho de seu marido nem por isso a

senhora tem o direito de me faltar com o

respeito.

NORMA - Respeito...

HORTÊNSIA - Respeito, sim, que se deve a qualquer

criatura humana.

NORMA - Lembre-se, minha senhora, a afronta que me

fez em minha própria casa.

HORTÊNSIA - Afronta? Como? De que modo?

NORMA - Confessando um adultério do qual é cúmplice.

HORTÊNSIA - Fala em adultério... ?

NORMA - Atribuído a meu marido com sua

cumplicidade confessa.

HORTÊNSIA (Calma) - Minha senhora, bem observo sua

pouca experiência de vida.

NORMA - A senhora confunde experiência de vida com

aventura amorosa... (Irônica) Realmente,

quem tem muitas aventuras amorosas há

de ter (frisando) maior experiência... de

homem e de cama...

HORTÊNSIA - Suas ofensas não me ofendem, senhora...

(Outro tom) O seu nome... ?

NORMA - Norma. E o seu é...

HORTÊNSIA - Hortênsia.

NORMA (Surpresa incontida) - Hortênsia! (Lança um

olhar significativo pela sala repleta de

hortênsias; sofre um ligeiro choque

emocional, mas logo se recompõe) É...

Hortênsia... Quem sabe, a experiência da

vida... Por favor, sente-se.

HORTÊNSIA - Prefiro ficar de pé... Me permita...

NORMA (Que foi até a porta em arco à esquerda, onde

esteve por instante a olhar para fora, de lá

mesmo) - Reparo que seu filho é educado,

cheio de atenções talvez até com certa

afetação.

HORTÊNSIA - Luciano é muito estudioso. Não me deu o

menor trabalho nem despesas nos estudos.

NORMA (Reparando) - Agora, lá vão os dois para o

pomar. Ele sempre gentil. Pouco comum

entre os moços de sua idade.

HORTÊNSIA - Quer seguir a carreira diplomática.

NORMA (Observação reflexiva) - Não sabem que são

irmãos...

HORTÊNSIA (Surpresa agradável pela admissão de

Norma) - Irmãos! A senhora disse irmãos?

NORMA (Natural) - Luciano e Kiten... (Outro tom)

Diplomacia... Quer ser diplomata...

HORTÊNSIA (Corta) - Vocação...

NORMA (Ainda sob o efeito do constrangimento,

aproxima-se de Hortênsia) - Como o pai,

que depois desistiu...

HORTÊNSIA - O entrechoque entre as pessoas muita vez

resulta de conceituação diferente sobre

princípios morais, religiosos, políticos...

NORMA - Qual seu propósito em vir... ? Quem sabe...

Talvez eu possa solucionar tudo sem que

Aníbal sequer suspeite...

HORTÊNSIA (Categórica) - Não. A senhora não pode...

NORMA - É questão de dinheiro... ?

HORTÊNSIA (Mesmo jogo) - Não.

NORMA (Antes que Hortênsia termine) - Oh, não se

ofenda. Apenas estou tentando poupar a

Aníbal uma situação de constrangimento...

HORTÊNSIA - Não... Só ele pode resolver...

NORMA - A senhora está sendo intransigente... Não

compreende... Deve dizer por quê,

Hortênsia, permita que a chame assim...

HORTÊNSIA (Fala ao mesmo tempo) - Porque não...

NORMA - Me chame também de Norma... Nada de

cerimônias...

HORTÊNSIA (Mesmo jogo) - Oh, por Deus. É muita

gentileza...

NORMA (Corta) - Hortênsia, você sabe que as plantas

são sensíveis, possuem sensibilidade...

HORTÊNSIA (Corta) - Sensibilidade?

NORMA - Sim. Sensibilidade. Sentem emoções. Uma

experiência com feijão numa escola dos

Estados Unidos mostrou que as plantas

criadas com amor crescem viçosas, fortes...

HORTÊNSIA (Admiração) - É mesmo?

NORMA - A conclusão é que, se as plantas necessitam de

amor, muito mais nós...

HORTÊNSIA (Falando ao mesmo tempo que Norma) -

Pobres seres humanos... Pois é, Dona

Norma. Para vivermos já dependemos de

tantas coisas, estamos sujeitas a tantas

dificuldades, a tantas imposições... Proibir

está na crista da onda... Tudo agora é

proibido, já reparou?

NORMA - Por isso é que eu insisto: se nós duas

pudéssemos poupar um desgosto a Aníbal...

HORTÊNSIA (Corta) - Desgosto?

NORMA - Talvez até fatal...

HORTÊNSIA - Oh, não! Não!

NORMA - O impacto... Ele nunca vai admitir que eu

saiba que ele tem um filho com outra

mulher. O inesperado... Pode sobrevir um

enfarte...

HORTÊNSIA (Apreensiva) - O senhor Aníbal sofre de

algum problema de coração...

NORMA (Antes que Hortênsia termine) - Não, não...

Graças... Até agora, é claro...

HORTÊNSIA (Sincera) - Norma, eu e o senhor Aníbal,

deixe que te fale assim, tivemos um

encontro inconseqüente...

NORMA (Precipitada) - Inconseqüente? Com um filho e

você ainda chama isso inconseqüente?

HORTÊNSIA (Sem argumento) - Bem... Seria, se os

cromossomos, o "Y" de Aníbal não se

encontrasse com o "X" meu...

NORMA - Pois é, os cromossomos são perigosos, fujões,

rebeldes...

HORTÊNSIA - Questão de menor ou maior atividade do

hormônio FSH. Independente da vontade

da gente... Nosso encontro foi uma atração

instintiva...

NORMA - Puro instinto, compreendo.

HORTÊNSIA - Puro instinto. Desejo. (Outro tom) Por

simples inclinação, participamos do

Women's Lib...

NORMA (Corta) - Idéias de Betty Friedam.

HORTÊNSIA - Desde mocinha, estranhava a

desigualdade salarial entre o homem e a

mulher; estranhava a desigualdade sexual.

Entendo que a mulher deve dispor do seu

próprio corpo, assim como o homem dispõe

do dele, sabe?

NORMA - Só isso? Não lhe parece pouco para tanta

onda de publicidade?

HORTÊNSIA (Convicção) - Batalhamos pelos direitos

civis das mulheres. Empunhamos a

bandeira da anti-guerra. Lutamos pelo

controle da natalidade sem os

anticoncepcionais de efeitos colaterais.

(Outro tom) Ainda há pouco, você falou da

falência do desquite...

NORMA (Corta) - Ah, não vale nada mesmo. O desquite,

eu sempre considerei o desquite assim

como... como...

HORTÊNSIA (Completa) - A oficialização do

concubinato.

NORMA - Exato. Casal separado que não podia mais

legalizar um novo matrimônio.

HORTÊNSIA (Visionária) - Lutamos pela oficialização

do divórcio. Conseguimos. Queremos a

legalização do aborto. Creches públicas

para os filhos das trabalhadoras de todas as

categorias. Nos batemos pela organização

dos bordéis públicos. Dos prostíbulos

ambulantes. Com pessoal qualificado para

atendimento de necessitados nos hospitais,

casas de detenção, asilos e também a

particulares vítimas de solidão. Com a

criação de corpos de samaritanos eróticos,

partiremos para a instituição de um

sistema industrial humanitário com

abertura de novos empregos nessa área da

antiga profissão.

NORMA - Isso é mudar totalmente o status jurídico da

mulher. Nem toda mulher concorda com a

luta de vocês...

HORTÊNSIA - Claro. Pelas que combatem estas

reivindicações as do Woman's Lib são

chamadas de homossexuais reprimidas...

NORMA - Lésbicas. É. Já ouvi falar isso mesmo.

HORTÊNSIA (Rindo) - Chamam de titias frustradas.

Inimigas do útero.

NORMA - Bom... Nada se conquista sem sacrifício, isso

também é verdade.

HORTÊNSIA - Depois dessa aventura entre... Oh,

perdoe...

NORMA - Você bem disse - aventura.

HORTÊNSIA - Como emancipada tenho direito de

praticar aventuras. Já lhe disse. O encontro

foi puramente de interesse instintivo.

Instinto maternal, quem sabe? Você

entende, não é mesmo?

NORMA - Entendo. Como não?

HORTÊNSIA - Confesso que só comecei a amar Aníbal

quando percebi que estava grávida dele...

NORMA (Monossilábica face à surpresa da confissão) -

Oh!

HORTÊNSIA (Serena) - Intento criador na teoria da

libido.

NORMA - Curioso e original...

HORTÊNSIA - Freudiano. Ambivalência afetiva.

NORMA (Um pouco mais aliviada) - Conflito de ódio e

amor... Você odiava e amava Aníbal...

HORTÊNSIA - Sim... Os dois pólos do equilíbrio da vida...

Talvez problema de transferência segundo

a psicanálise... Eu devia ter um sentimento

de frustração de infância... Não sei

precisar... Alguém da minha família que

queria ter filho e fracassou... Não me

lembro quem... Como eu era uma moça

independente...

NORMA (Corta com intenção de ferir Hortênsia) -

Irresponsável... (A um olhar de Hortênsia)

Moça absoluta... livre...

HORTÊNSIA - Aquele homem que me dera um filho...

NORMA (Corta) - Sem saber...

HORTÊNSIA - Claro. Passou a ter de mim um afeto

diferente...

NORMA (Irônica) - Sublimado... Agora é a vez da

sublimação...

HORTÊNSIA - Não importa que não acredite. Eu

amava Aníbal no embrião que se criava no

meu ser.

NORMA - Aníbal nunca soube de nada, nem por carta,

por um amigo... ?

HORTÊNSIA (Corta) - De nada. Suponho. No dia em que

aconteceu o encontro, eu soube por ouvir

ele falar a uns amigos na boate, que estava

fora de casa havia dois meses.

NORMA - Em São Paulo... Lembro... Foi na ocasião de

um negócio imobiliário, o primeiro, por

sinal bastante rendoso... Estávamos casados

de pouco tempo: dois anos, menos de dois

anos. (Outro tom) A senhora... (arrepende-

se) você faz questão de falar com Aníbal?

HORTÊNSIA - O assunto só ele pode solucionar...

NORMA - O assunto...

HORTÊNSIA - Luciano quer fazer a inscrição para o

exame vestibular do curso de preparação

da carreira diplomática...

NORMA (Corta) - Curso do Instituto Rio Branco...

HORTÊNSIA (Mesmo jogo) - Exato...

NORMA (Idem, idem) - Sei, precisa de algum dinheiro...

HORTÊNSIA (Idem) - Não. Não. Para Luciano falta

apenas um documento.

NORMA (Acentuada estranheza) - Um documento... ?

HORTÊNSIA - Importante... Um documento muito

importante para ele.

NORMA - Só pode ser a certidão de nascimento no

Registro Civil.

HORTÊNSIA - Luciano concluiu a segunda série da

Faculdade de Direito...

NORMA - Está adiantado.

HORTÊNSIA - Pois é, de modo que quer se inscrever no

curso de preparação para diplomacia...

NORMA (Corta) - No exame vestibular...

HORTÊNSIA - Luciano estudou bastante. Pode me

chamar mãe coruja. Não faz mal. Mas não

é por ser meu filho, Luciano conhece bem

todas as matérias.

NORMA - Português, inglês, francês, conhece?

HORTÊNSIA - Conhece. Direito. História Universal.

História do Brasil. Geografia.

NORMA - Olhe, ele está preparado para o vestibular.

Um espantalho para qualquer estudante...

E os documentos...

HORTÊNSIA (Corta) - Todos em ordem... Só falta

mesmo...

NORMA (Corta) - O registro de nascimento só falando

mesmo com Aníbal... Não sei como ele vai

reagir diante do caso.

HORTÊNSIA - Entendo... Ele pode irritar-se com minha

visita... Não tinha outro remédio... Eu

tinha que vir...

NORMA - É... Você compreende... Aníbal é homem de

princípios rígidos...

HORTÊNSIA - Ortodoxos, sei como são homens assim,

não transigem...

NORMA - A mim parece pouco provável que ele ceda...

Depois... Somos hoje...

HORTÊNSIA - Do melhor conceito na sociedade, ricos...

NORMA - Diferente de tempos atrás... (Intencional)

Tempos em que Aníbal freqüentava certos

lugares...

HORTÊNSIA - É pena que a senhora não possa

interferir...

NORMA (Corta) - Pois é... Aníbal é durão...

Conservador... Não se afasta um milímetro

de certas tradições... Eu bem que queria

poupar a ele um constrangimento...

HORTÊNSIA - Eu também, acredite. Mas a legitimidade

paterna vale todo sacrifício...

NORMA (Corta) - É importante para aquilo que os

diplomatas chamavam antigamente com

justo orgulho, a carrière... (Outro tom)

Luciano sempre adotou o nome do pai?

HORTÊNSIA (Peremptória) - Sempre. Sempre fomos

muito francos. Somos como dois amigos.

Não temos segredos. Praticamos a religião

da verdade.

NORMA - Que bom! Quer dizer então que Luciano sabe

tudo...

HORTÊNSIA (Interrompe) - Tudo. Sabe tudo.

NORMA (Suspirando) - Ainda bem!

HORTÊNSIA (Estranha) - Ainda bem... ?

NORMA - Bem... A senhora sabe... Luciano e Kiten são

jovens... Andam pelo jardim e pelo pomar...

Em ambiente bucólico e numa sociedade

permissível como a nossa, um namoro pode

criar novo problema...

HORTÊNSIA - Luciano, antes de tudo, é um jovem

cavalheiro.

NORMA - E Kiten, uma dama adolescente. Responsável.

Por isso, merece do pai confiança total.

(Riem).

HORTÊNSIA - Mais ou menos dois meses passados,

Luciano falou comigo sobre esse

reconhecimento... Considerou os prós e os

contras... Concluiu por não acreditar em

fracasso.

NORMA - Creio que se engana. Aníbal é difícil de torcer.

É de uma intransigência para certas coisas

que às vezes me põe nervosa.

HORTÊNSIA - É pena! Dificilmente Luciano suportaria

uma recusa... do pai. Luciano é ultra-

sensível. Deus me livre que ele fique com

recalques...

NORMA - Qual! Ele é moço. Cheio de força de vontade.

Provavelmente há de saber superar

qualquer decepção.

HORTÊNSIA - Espero. Até hoje não se deixou abater.

Não tem preconceitos nem tabus. É de uma

liberalidade e de uma tolerância

impressionantes.

NORMA - Resultado da criação que recebeu... Da

educação... Aníbal, ao contrário, é homem

de outra época. Ele diz que não. Nada de

quadradismo com ele. Fica por conta,

quando Ki, às vezes, o chama de quadrado.

Mas no fundo, no fundo, é apegado a

conceitos bolorentos. A filha diz: isso já era,

papai.

HORTÊNSIA - A certidão com o reconhecimento só da

mãe não satisfaz Luciano...

NORMA - Como não satisfaz? E nos outros cursos por

onde esteve não satisfez? Ora essa!

HORTÊNSIA - No curso de preparação para a carreira

diplomática ele mesmo diz que quer um

documento jurídico perfeito. Luciano

entende que tem pai e o pai deve reconhecê-

lo como filho.

NORMA - Mas sem esse (repete com destaque)

documento jurídico perfeito ele fez toas as

séries do primeiro e do segundo graus e está

estudando Direito.

HORTÊNSIA - Não é mesmo? (Outro tom) E há outro

problema, agora me lembro: o

consentimento do pai para que Luciano

habite na mesma residência com a mãe.

NORMA - A lei exige?

HORTÊNSIA - Exige.

NORMA - Mesmo sem o reconhecimento de legitimação?

HORTÊNSIA - Ainda assim. Exatamente por eu haver

reconhecido sozinha, é necessário o

consentimento do pai para o filho morar

com a mãe... É do Código.

NORMA - É uma enrolada dos demônios...

HORTÊNSIA - É um saco!

NORMA - Calculo a ginástica que você tem feito nestes

anos todos... Seu embaraço agora...

HORTÊNSIA - Nenhum. Prometi a meu filho vencer

qualquer vexame para conseguir... a

(hesita).

NORMA (Completa em tom irônico) - Uma

documentação jurídica perfeita...

HORTÊNSIA (Suplicante) - Preciso da sua ajuda. Já tive

a compreensão...

NORMA (Corta) - E então... ?

HORTÊNSIA - Magnânima, reconheço. Necessito de

mais esta ajuda. Não da mulher. Da mãe.

NORMA - Se dependesse de mim exclusivamente... Não

entendo muito bem de leis... Não sei das

complicações futuras em caso de divisão de

bens, herança, direitos de legitimações...

Estão pretendendo iguais direitos até para

a legitimação adotiva.

HORTÊNSIA - O que menos nos interessa é participação

em lucros ou vantagens...

NORMA - Não é simples questão de interesse, entende?

São direitos inalienáveis das leis.

HORTÊNSIA (Reflexão) - Os tentáculos das leis... Seu

marido...

NORMA (Corta) - Aníbal, não! Aníbal sabe; ele conhece,

ele entende, até descobre detalhes nas

entrelinhas. Olhe, é mais uma barreira

para as suas pretensões.

HORTÊNSIA - É... Sou arquiteta... Entendo de

arquitetura... Se fosse advogada... De

advocacia...

NORMA (Interrompe) - Minha ajuda se torna difícil...

Não posso discutir com ele sobre matéria

que ignoro. Discutir leis com ele é uma

parada. Está por dentro de tudo. Olhe,

procure falar com Aníbal sozinha. Vá por

mim, é melhor; fale aqui, fora daqui, mas

sozinha.

HORTÊNSIA - Na sua presença, se permite.

NORMA - Na minha presença... ?

HORTÊNSIA - Na presença da senhora, da esposa. Faço

questão.

NORMA - Minha presença poderá ser um desafio...

HORTÊNSIA - Desafio... ?

NORMA - Sim, aos brios de Aníbal, às suas

responsabilidades de esposo.

HORTÊNSIA - Sim. Não pensei nisso. Agora,

compreendo. (Irônica) A senhora se refere

aos interesses comerciais do matrimônio...

NORMA - Ora, os interesses comerciais do matrimônio...

Esses interesses são os legítimos da família

que Aníbal, como cabeça, é obrigado, por

lei, a defender.

HORTÊNSIA (Reflexão) - A família... As leis...

NORMA (Prossegue) - A família, como sabe, não é

apenas a que nós constituímos. A família

continua através dos filhos, dos netos...

HORTÊNSIA (Interrompendo) - Bisnetos, tetranetos...

(Outro tom) Fique certa, nós não pensamos

um minuto sequer em vantagens...

NORMA (Corta) - Nós, quem?

HORTÊNSIA - Eu e Luciano.

NORMA - Creio. Sobretudo Luciano. Entendo que minha

presença será uma espécie assim de

provocação para que Aníbal não atenda a

senhora...

HORTÊNSIA - Com o risco da provocação, prefiro sua

presença no diálogo.

NORMA - Veja bem. É assunto delicado e constrangedor.

Será que você, Hortênsia, não percebe?

HORTÊNSIA - Sua presença cria um clima assim de

confiança...

NORMA - Confiança?

HORTÊNSIA - De entendimento mútuo. O senhor

Aníbal logo compreenderá que existe entre

nós duas conscientização sobre o problema,

respeito de sentimentos.

NORMA - E isto adiantará para um homem durão como

é o Aníbal?

HORTÊNSIA - É justamente diante dessa comunicação

recíproca que o senhor Aníbal deixará de

ser inflexível. (Súplice) Oh, peço-lhe.

Fique... Norma.

NORMA (Falando fora espalhafatosamente) - Seu

Romão, você que é petropolitano, fique

contente. Petrópolis está ficando

novamente cheia de hortênsias que deram

fama à cidade.

ROMÃO (Fora) - Tá bão, dotor Aníba?

ANÍBAL (Fora) - Leve isso aí pra despensa. Faz favor.

HORTÊNSIA (À meia voz) - Fique, por favor.

NORMA - Bem... Já que insiste... Não estou a fim...

ANÍBAL (Que entra pela porta em arco à esquerda, com

o mesmo tom de voz) - Norma, minha

querida, Petrópolis se renova! (Vendo

Hortênsia) Oh, desculpe. (À Norma) Romão

não falou que tínhamos visita.

NORMA - Não conheces esta senhora... ?

ANÍBAL (Reparando) - Não. (Examina melhor) Deixe

ver... Os traços me lembram levemente

alguma criatura distante... (Ri) Curioso.

(Reflexão) Alguém que me foi de certo

modo agradável...

NORMA (Uma pontinha de despeito) - Um encontro

sensorial agradável... Refresque a

memória...

ANÍBAL (Inocente) - Norma, você diz sensorial assim

como se diria uma sublimação perdida no

tempo...

NORMA - Perdida, perdida não sei... Há um laço forte...

ela tem um filho...

ANÍBAL (Corta) - Ah, casada.

HORTÊNSIA - Solteira.

ANÍBAL (Desconcertado) - Solteira? Eu sempre quis ter

um filho homem... (À Hortênsia) É homem?

HORTÊNSIA - Luciano.

ANÍBAL - E a senhora, sua graça é...

HORTÊNSIA (Corta) - Hortênsia.

ANÍBAL (Rindo) - Hortênsia...

NORMA - Nesta data é uma terrível coincidência...

Estamos cheios de hortênsias...

ANÍBAL - É petropolitana, por acaso?

HORTÊNSIA - Não. Sou paulista. Da capital.

ANÍBAL (Procurando recordar) - Hortênsia,

Hortênsia... Paulista... O nome não me é

estranho...

NORMA - Ela está com um grave problema.

ANÍBAL - Problema? Não é doença, creio.

NORMA - O filho quer seguir a carreira diplomática...

ANÍBAL - É um problema realmente. Um problema

sério. Muito sério. Eu não o aconselharia.

HORTÊNSIA - Ele quer... É vocação...

ANÍBAL - Também eu. Eu também tinha vocação. Me

atirei aos livros. Estudei. Ingressei no

Instituto Rio Branco. (A meio tom) Hoje,

então... Não aconselho ninguém.

HORTÊNSIA - E fez todo o curso?

ANÍBAL - Todo. Inteirinho. Completo. (Depois de breve

pausa) Desisti.

HORTÊNSIA - Do curso?

ANÍBAL - Como tinha tempo, saí para a aposentadoria.

Desgostoso. Fomos rebaixados.

NORMA - Vocês foram humilhados. O que fizeram com

vocês foi uma sujeira.

ANÍBAL - Exato. Sujeira. É o termo. Do símbolo 2-C,

descemos para o símbolo 7-C. Isto significa

que de mil e setecentos e pouco cruzeiros,

quase mil e oitocentos, em 1964, fomos

rebaixados a mil e trezentos e poucos, em

1967.

HORTÊNSIA - Que horror! Parece perseguição. Em lugar

de aumentar...

ANÍBAL - Pois é, diminuiu... Uma tragédia no

orçamento doméstico de tanta gente.

(Baixa a voz) Eu não aconselho ninguém.

Instituto Rio Branco! Quando o Governo

quer faz embaixador por decreto sem o

Instituto Rio Branco.

HORTÊNSIA - Luciano não acredita em nada que o

senhor está falando.

ANÍBAL - Ainda bem...

NORMA - O rapaz está entusiasmado pela carreira e

acabou-se. Ninguém o demove. Vai

inscrever-se agora para exame vestibular.

ANÍBAL - É... Ele é jovem... Ainda bem. Talvez em

presença dele, eu preferisse calar.

HORTÊNSIA - Luciano é muito estudioso e esforçado. Ele

acredita no surgimento de uma nova

estrutura política baseada na justiça social

e liderada, por valores autênticos.

ANÍBAL (Reflexão) - Valores autênticos... Justiça

social... Como disse, ele é moço. Deve

sonhar. Eu e outros como eu, já não podem

mais sonhar...

KITEN (Entra pela porta em arco à esquerda,

acompanhada de Luciano) - Papai, tenho

um plá diferente hoje... Uma surpresa que é

um barato pra você.

ANÍBAL (Que beija Kiten também) - Surpresa que é um

barato?

KITEN (Aponta Luciano) - Este é Luciano.

ANÍBAL (Rápido) - Muito prazer, meu jovem.

KITEN (Intempestiva) - Luciano é teu filho.

ANÍBAL (Rindo) - Meu filho? ô, lá, lá! Não vai me dizer

que o garotão já te pediu em casamento...

KITEN - Não enche. Te manca. Luciano não tá a fim de

se amarrar em mim porque é meu irmão.

NORMA (Velada repreensão) - Ki!

KITEN (A Aníbal) - Luciano é teu filho. No duro.

(Aponta Hortênsia) Teu filho com esta

senhora.

ANÍBAL (Rindo e com intenções de escusas) - Dona

Hortênsia, não repare. Ki é criança,

criança...

HORTÊNSIA (Corta) - Ki está falando sério.

ANÍBAL (Sério) - Hortênsia... Paulista... ?

HORTÊNSIA - De São Paulo...

ANÍBAL - Como o tempo passa... Agora me lembro bem...

A voz... A cor da voz... A mesma...

KITEN - Fique calma, tia Hortênsia. Papai topa o

negócio que a tia tá querendo. (A Luciano)

Como é mesmo?

LUCIANO - A certidão de nascimento.

ANÍBAL (Tonto) - Certidão... ?

LUCIANO - De acordo com o Artigo 357 do Código Civil,

o reconhecimento voluntário de filho

ilegítimo pode ser feito no próprio termo de

nascimento ou mediante escritura pública.

NORMA (A Hortênsia ao mesmo tempo que fala Kiten) -

A senhora trouxe a certidão?

HORTÊNSIA - Está com Luciano.

KITEN (Que apanha das mãos de Luciano a certidão,

entregando-a a Aníbal) - Toma, papai.

Sapeca aí aquela assinatura com outros

babados. Vá.

ANÍBAL (Meio confuso. Meio atordoado. Mal

conseguindo equilibrar-se em pé, passa os

olhos na certidão) - Não sei se para o meu

reconhecimento agora... (Hesita. Olha

significativamente para Norma) Norma, lê

isto...

NORMA - Aníbal, você terá apenas que pagar alguma

multa... Não sei bem...

LUCIANO - Um registro de nascimento depois de cinco

anos paga multa. Tenho certeza.

ANÍBAL - Então, como vai ser... ?

LUCIANO (A Aníbal) - Não se preocupe. A multa fica

por minha conta.

NORMA - Ora, Luciano! Essa é a primeira despesa do

papai!... Aníbal!

ANÍBAL (Espantado, a Norma) - Norma... Quer dizer

que você...

NORMA (Corta, abraçando Aníbal, intencional) - Como

diz Ki, eu também sou gamadona por

hortênsias.

FIM