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Saint Germain 1

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Saint Germain

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MARCELLO SALVAGGIO

Saint Germain

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Saint Germain

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Copyright © 2015 by Marcello Salvaggio

Todos os direitos reservados.

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O tempo, no seu perpétuo e irresistível escorrer, arrastaconsigo todas as coisas criadas, aprofundando-as nos abismosda escuridão, sejam estas ações de nenhum valor ou, pelocontrário, ações grandes e dignas de serem celebradas.Portanto, como diz o poeta trágico, ele “traz à luz o queestava escondido e encobre com as trevas aquilo que émanifesto”. Contudo, a narrativa da história fornece-nos uma válidabarreira contra o fluir do tempo. De certo modo constitui umobstáculo contra seu fluxo inexorável, permitindo-nos reter omáximo do que boia sobre a superfície, impedindo que ascoisas escorreguem para longe e se percam no abismo dooblívio.- Trecho do prefácio da Alexíada, de Ana Comnena.

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I

3 de maio de 1700

Carta do agente da coroa inglesa Timothy Stealth, enviada deuma pequena cidade da Transilvânia, à sua jovem esposa emLondres

Minha doce e querida Emily,

Imagino que esteja preocupada comigo por todo este tempoque não lhe escrevi. Fique tranquila, pois estou bem, emboratenha passado dias difíceis. A situação na Transilvânia estábastante agitada. E creio que, para seu alívio, minha missãocomo observador esteja chegando ao fim. Os últimosacontecimentos são favoráveis à Inglaterra. Há alguns dias, o príncipe Francisco Rákoczi II foi preso e jáse encontra em uma fortaleza ao sul de Viena. Ele havia sidocontatado pelos franceses para a causa da independênciahúngara, mas um espião austríaco interceptou suacorrespondência e apresentou-a ao imperador, o que significousua ruína. Tive a oportunidade de conversar ontem com esse espião, queme confirmou o interesse do imperador, precioso aliado denosso rei Guilherme, de intervir na Espanha caso o rei Carlos IImorra sem deixar herdeiros. O que ao que tudo indica iráocorrer, pois ele é fraco, doente e, segundo alguns dizem,incapaz de consumar um ato de amor. Por mais que hajamalícia e maldade nas línguas de muitos homens e mulheres,como bem sabemos, não se trata de um tipo de informação quedevamos negligenciar. O povo já lhe deu o cognome de “oAmaldiçoado”, o que para muitos é evidência de superstições e

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ignorância, mas os recentes fatos que me ocorreram melevaram a concluir que não devemos subestimar certas crençaspopulares e que há muito mais espectros, magia e coisasestranhas no mundo do que nossa vã filosofia pode supor. Não quero que fique perplexa com esta minha últimaobservação, embora eu acredite que vá ficar muito mais quandotiver terminado de ler esta carta. Sabe o quanto sempre fui cético e ponderado. Por isso, eobservando o tom de minhas palavras, que perceberá que é omesmo que sempre empreguei, saberá que continuo são, quenão enlouqueci. Não desejo assustá-la com os fatos que irei lheexpor, por mais que pareçam inverossímeis e estranhos. Só lhepeço que não mostre esta carta a mais ninguém. Que seja umsegredo nosso, para que não desperte boatos e rumoresinfundados. Adoeci seriamente há sete dias, após um horrível pesadelo queexperimentei. Neste, ratos e baratas enchiam meu quarto e ummorcego entrou, permanecendo imóvel no teto, a observar-me.Não conseguia me mover do leito. Havia uma luz frágil queprovinha do lado de fora. E de repente os insetos começaram aescalar a cama e a andar pelo meu corpo. Continuava preso,como se correntes estivessem em meus braços e em minhaspernas, e foi em vão tentar gritar, enquanto os olhos domorcego se tornavam vermelhos, de um rubor aterrador esangrento. Despertei suando, sentindo como se a alma estivesseespancando meu peito, desesperada para fugir dele, com umaforte dor de cabeça e um incômodo estomacal. Fui conduzidopelos gentis funcionários da hospedaria a um hospital local,mas minha condição não melhorava e os médicos acharampreferível me transferir para um hospital maior, emHermannstadt.

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Colocaram-me numa carruagem e partimos. Pensei quefossem meus últimos momentos. Nessa hora, não conseguiaparar de pensar em você, minha doce esposa, cujas feições,porém, de forma abrupta, se turvaram em minha mente. Ao nãoconseguir mais recordar seu belo rosto carregado de ternura,apenas seu nome a martelar-me o coração, fui tomado de umaselvagem angústia, que me levou a urrar seguidas vezes. Oshomens generosos que estavam me conduzindo ao hospitalmaior se esforçaram de todas as maneiras para me acalmar,consolando-me ora com palavras gentis, ora fazendo orações,até que um deles energicamente colocou a mão grande e pesadaem minha boca. Foi nesse momento que me dei conta queestava sendo desrespeitoso com aquela boa gente e silenciei. Senão fossem cristãos sinceros, da melhor qualidade, poderiamsimplesmente ter me jogado na estrada, e não pense que naTransilvânia as coisas são como na Inglaterra: no percursoentre uma cidade e outra, os caminhos montanhosos sãoásperos, há poucos habitantes e nas florestas densas uivamlobos e outras criaturas que sequer os nativos sabem definir. O pior é que muitos destes seres são agressivos e um, antesque alcançássemos Hermannstadt, se atirou sobre a carruagem.O cocheiro, após um grito, caiu enquanto o veículo revirava.Os cavalos relinchavam apavorados, mas mesmo eles logo secalaram naquele silêncio que sabemos ser o definitivo. Fui retirado por um dos meus amigos. Além do mal-estar quesentia, o medo. Todos estavam muito assustados. E ao sairmosnos deparamos com o cocheiro, ainda no chão, apontando paraa criatura que se banqueteava da carne dos animais. Não sei como descrevê-la: minha visão não estava clara e opavor talvez a tenha feito parecer ainda maior e mais escura,quase fundida à noite. O que se destacava eram suas asas. Davaa impressão de ter tanto penas como pêlos. Seus dentes eram

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extremamente afiados. O sangue de suas vítimas escorria porsua boca. Seu tamanho correspondia ao de um grande ursoadulto de pé. Meus acompanhantes berraram palavras aterrorizadas emhúngaro e puseram-se a correr. Um tentou me arrastar.Justamente esse foi agredido pelo monstro, que não devia estardisposto a perder duas presas de uma só vez. Acrediteisinceramente que era o meu fim, enquanto a barriga do homemque tentara me salvar era aberta e suas entranhas devoradas.Minha náusea, à qual se somava o odor de morte a meu lado,só podia crescer. Ainda assim, realizando um considerável esforço, imploreialto por socorro em húngaro, romeno e inglês. Os outros jádeviam estar longe, dando-me como morto. Mas quiçá umacaravana que estivesse passando por ali, com homens armados,me escutasse e agisse. Algo improvável, em que eu na verdadenão acreditava, mas tinha que tentar, por respeito à minhaprópria vida e ao nosso amor. Ainda que sua imagem tivesse sedesvanecido, não a esqueci sequer por um instante, minhaadorada Emily. Lutar era impossível. Porém, fazendo ainda mais esforço,procurei me levantar para tentar fugir. Talvez o demônioestivesse saciado e me deixasse em paz. Era uma últimaesperança. Contudo, quando fiquei de pé, minha cabeça ardendo, meuspés com muito pouca firmeza, o olhar do monstro deu aentender que eu não iria longe. Era quase que inteiramentenegro, com um ínfimo contorno branco. Sua crueldade nãoconhecia limites. Estava pronto para abandonar o cadáver doque tentara ser meu salvador para dilacerar meu corpo doente. Só que um outro ser veio da floresta; e para meu alíviodiscerni formas claramente humanas. Não consegui ver o rosto

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com nitidez, mas se tratava de um vulto loiro, de estaturaelevada, usando uma armadura e uma espécie de mantocerimonial vermelho. Em sua mão direita, uma espada. Cogiteique devia estar delirando, mas não estava: o que poderiaparecer meu anjo da guarda partiu na direção do demônio, queresolveu parar de me encarar para avançar sobre odesconhecido. Tive a impressão que em volta desse homemhavia uma luz, uma claridade dourada que não se costuma vernas pessoas. Algo semelhante à aureola dos santos. Só que nãoera algo constante: às vezes eu a via, às vezes não. Por issoacreditei que fosse apenas uma impressão, causada por meuestado febril...Ou não? Independentemente do que existia ao redor dele, era rápido ehábil, esquivando-se das garras do monstro, até conseguircravar nele a espada. A criatura cambaleou e, após mais umgolpe, que acredito que tenha sido no coração, despencou paranão mais se levantar. Eu continuava vivo! Estava sinceramente surpreso com isso.Olhei para as minhas mãos; abri e fechei os dedos. Depoisfechei os olhos; tentei respirar fundo, por mais difícil edolorido que fosse, pois minhas narinas ardiam. Ao reabri-los,tudo estava extremamente enevoado. Quase tudo era de umbranco disperso e embaçado. Mas senti o homem à minhafrente, e discerni seu vulto, o dourado de seus cabelosproduzindo um agradável efeito luminoso. Seria porque algumaluz misteriosa de fato o cercava e eu estivesse percebendo maisdo que meramente cabelos? E se fosse mesmo um anjo? Ouvi ele me perguntar se eu estava bem. Como não respondi,ele riu e comentou algo como “que pergunta estúpida queacabei de fazer! Claro que você não está bem!”, com um bomhumor e uma tranquilidade que me irritaram um pouco. Talveztenha sido essa irritação que me fez perder os sentidos. Como

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alguém podia estar tão calmo e falar num tom tão alegre numasituação como aquela? Ao acordar, com a sensação que desparecera e deixara deexistir para voltar à existência só anos depois, não havia maisnenhuma raiva. Estava muito tranquilo, a despeito de não terideia de onde me encontrava. Havia a discreta claridade de umavela e estava deitado em uma maca. Voltava a enxergar comclareza. Nenhuma manifestação de dor ou febre. Nada dedoença. Estaria na casa do meu misterioso salvador? Caso tudotivesse sido real, não um pesadelo provocado pelo mal-estar,não via a hora de agradecê-lo. Levantei-me e empurrei a portado quartinho, que era pequeno e estreito. Apesar do queocorrera de terrível, da morte de um dos homens que tentarame ajudar e da aparição do monstro, estava torcendo para quenão tivesse sido um delírio, para que não estivesse no hospitalem um dia como qualquer outro, após ser devidamentemedicado. Espero que não pense que eu havia enlouquecido,mas só conseguia pensar que tinha que ser um dia diferente! Deparei-me com o que me pareceu ser um laboratório. E umhomem em trajes comuns trabalhava em seus experimentos.Parecia ter trinta anos, pouco menos ou pouco mais, a barba eos cabelos loiros curtos. Seria quem eu pensava? Sorriu emminha direção e, diante de minha paralisia, falou primeiro:“Bem-vindo de volta à Terra, amigo!”, reconheci a voz: era oespadachim que salvara a minha vida. Deveria em primeiro lugar tê-lo agradecido. Mas ainda mesentia frágil e inseguro. Tive que lhe perguntar: “Aquilo foireal?”, e ele me respondeu com outra pergunta, um sorrisolevemente atrevido se formando em seu rosto: “Aquilo o quê?Você está se referindo à criatura?”, nessa hora, não tinha maisdúvidas que a experiência fora real. Senti a tentação de retornar ao estado de pavor. Meu coração

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bateu alto. Mas não era possível: não na presença daquelehomem, que se levantou do banquinho onde estava sentado eveio para mais perto de mim, tocando-me os ombros e dizendo:“Você não está louco. Pode ficar tranquilo e seguro quanto aisso. Se estiver é só um pouco, na medida em que todos nós osomos.”, havia em sua voz e em sua expressão uma bondade euma alegria ímpares, de amplitude e serenidade inexplicáveis. “A total ausência de loucura é a ignorância absoluta, acegueira em relação ao que de invisível nos cerca.”, continuoufalando e pronunciou essa frase, da qual não irei me esquecertão cedo, sobre a qual, estou certo, poderiam ser escritos livrose mais livros, tratados e mais tratados; o que no entanto,provavelmente, corromperia seu sentido mais íntimo,verdadeiro e profundo, entregue apenas por meio da síntese aopensamento que não pode ser transcrito. Depois que enfim manifestei minha gratidão, ia me apresentare lhe dizer quem era. Senti-me tentado a lhe revelar tudo.Confiava totalmente naquele desconhecido. Mas ele meinterrompeu, afirmou que isso não era necessário, que já sabiao bastante sobre mim. Perplexo com tal afirmação, indaguei-lhe então sobre suaidentidade. Mal havia me dado conta que estávamosconversando em inglês, e que o inglês dele era perfeito.Afirmou ser o conde de Saint Germain. Perguntei-lhe se erafrancês, e ele me respondeu que sim, mas que tinha posses eparentes na Hungria e na Romênia. Alegou estar ligado à casados Rákoczi, o que me causou embaraço, afinal minha missãoem grande parte consistia em observar os movimentos deFrancisco Rákoczi, suas ações no governo e investigarpossíveis relações suas com os franceses. Talvez percebendomeu desconforto, as palavras involuntariamente ausentando-se,e devo ter ficado cabisbaixo, ele voltou a sorrir e me tocou o

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ombro, afirmando que estava feliz e satisfeito pela minhamelhora, e que esperava que nunca mais eu ficasse em umacondição tão deteriorada. Perguntei-lhe se era médico. Respondeu-me que praticava sima arte da medicina, mas de uma forma desconhecida pelasmassas, utilizando conhecimentos reservados a uma pequenaparcela de sábios, pois se mal utilizados poderiam causar aruína do mundo. Nessa hora ficou bastante sério e me deu ascostas. Permaneceu em silêncio. Observando o laboratório aomeu redor, acabei por indagá-lo se era um alquimista. Seu semblante, ao tornar a me encarar, ainda era bondoso,mas continha uma severidade que eu desconhecia por inteiro. Já tinha ouvido falar antes sobre alquimistas e lido algo arespeito. Mas sempre com ceticismo e até com um certoescárnio. Já tinha rido muito com as desventuras de John Dee eEdward Kelley. A história de Nicolas Flamel sempre meparecera interessante, mas com doses excessivas de lenda.Quanto ao imperador Rodolfo II, célebre patrono da alquimia,sua obsessão pelas ciências ocultas aparentava ser somentemais uma de suas excentricidades. Quem não gostaria de fazerouro a partir do chumbo? De todo modo, já sabia que alquimistas sérios estão longe deser charlatões vulgares. Podem estar equivocados aoacreditarem na existência de um elixir da imortalidade ou deum pó que transforme metais comuns em ouro, mas realizaramnotáveis descobertas na medicina e na química. E os maisdedicados certamente conhecem muito mais sobremedicamentos do que qualquer médico comum. O misterioso conde de Saint Germain - em minhas idas àFrança nunca tinha ouvido falar dele - é uma prova disso. Eapós quase ter me arrependido da pergunta tendo em vista aenigmática expressão com que me fitou, confirmou-me ser um

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praticante de alquimia e um estudante de ciências ocultas.Mostrou-me inclusive o remédio que me dera, e que me curarade minha péssima condição anterior: pingara sobre minhalíngua sete gotas de um líquido vermelho, da cor do fogo maisvivo, e eu me restabelecera inteiramente em poucas horas.Negou-se a me revelar do que era feito, sequer um ingredienteda composição. Logo desisti de insistir. Não iria adiantar. Masfalou sobre a origem de meu mal e da criatura: eu, comopoderia ter ocorrido a outro habitante dos arredores, tinha sidoafetado pelas experiências de magia negra de um feiticeiro daregião. O mesmo que, após evocar um duque do inferno sem odevido preparo, entregando-se à ebriedade do mal, terminarasendo agredido por um outro espírito infernal, que semanifestara em seu lugar. Um espírito de menor força eexpressão, mas ainda assim terrível para o ser humano. Após ser possuído pelo demônio, transformara-se naaberração que nos atacara, com a racionalidade obliterada. Ametamorfose ocorrera em decorrência da perda de controle e dafalta de conhecimento sobre os efeitos mágicos. Para você talvez tudo pareça absurdo, mas para mim fez e faztodo o sentido. Só ficou a pergunta “por que comigo?”, e oconde me explicou que, apesar de minha ignorância, souespiritualmente mais sensível do que a média das pessoas,portanto suscetível a experiências involuntárias com osobrenatural. Senti-me tentado a pedir que ele me instruíssesobre esse mundo, mas tive medo e silenciei. Ele voltou asorrir, e me aconselhou a orar com mais frequência, a pedirproteção a Deus e a meu anjo da guarda. Confessou com certa melancolia que lamentava não terconseguido salvar meu acompanhante, pois quando sentira apresença e a ação do mal infelizmente já era muito tarde paraisso.

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Salvara ao menos uma vida, um tesouro que jamais pode sercontado. E oramos juntos pela alma da vítima do feiticeiro, para sobreela os demônios não terem nenhum poder. O conde de Saint Germain é um homem de extraordinária fé,de intensa religiosidade. Mas após me restabelecer não vi emvolta dele nenhuma auréola. E me esqueci de perguntar algo arespeito disso. Espero contudo que haja uma oportunidade, pois aindapretendo reencontrar esse homem que alega falar com anjos, oque não duvido, e que percebe e desvenda a atuação dos maisvariados espíritos. Por isso o convidei para que venha àInglaterra, que nos visite em breve, e lhe dei nosso endereço.Espero que não tenha nada contra isso, minha linda Emmy,afinal se não fosse por ele eu estaria morto, nunca maispoderíamos nos abraçar, e talvez sequer meu cadáver seriaencontrado, apenas pedaços de carne dispersos em uma florestaescura na Transilvânia. Você sequer teria um túmulo onderezar. Não é dele que você deve ter medo, e nem de mim, se poracaso está pensando que enlouqueci, ou que o mal que meafetou ainda não passou por completo. Tema apenas os homense os espíritos realmente malignos. Guarde esta carta comcuidado até o meu retorno, e após nos abraçarmos novamenteconversaremos muito sobre ela. Não sei se o conde de fato virá. Fiquei um dia inteiro com ele,que não me confirmou nada, apenas sorriu e agradeceu. Oconde vive em um pequeno castelo cercado por árvores, numlugar que para muitos deve passar totalmente desapercebido. No retorno à hospedaria, reencontrei os sobreviventes doincidente com o monstro, que ficaram pasmos por eu tambémter sobrevivido. Mantive minha palavra ao conde, que me

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pedira para não falar sobre ele a ninguém que eu nãoconhecesse tão bem quanto a mim mesmo. Aleguei que por algum milagre de Deus a criatura meignorara. E que depois fora socorrido por um competente ebondoso médico viajante, que se negara a revelar suaidentidade, entregando-me um medicamento que me fizeraperder os sentidos. Ao recuperá-los, ele já se fora. Em parte euestava dizendo a verdade...E todos afirmaram que só podia tersido a ação de um anjo. Oficiais responsáveis pela segurança local tinham interrogadoa todos eles sobre o desparecimento da vítima do endemoniado,em resposta a uma queixa dada pela esposa do pobre sujeito.Alegaram que haviam sido agredidos no caminho paraHermannstadt por bandidos armados com facas. Mantive essaversão quando vieram até mim, justificando minhasobrevivência com a alegação que, após perder os sentidosdevido às minhas condições críticas, haviam acreditado que euestava morto e me deixado para trás. Também aos oficiais faleisobre o médico, e me pareceu que desconfiaram um pouco dahistória, mas não levaram nenhuma investigação adiante. Encontraram posteriormente os restos dilacerados dos cavalose do pobre homem, a condição dos corpos atribuída não só àsfacas dos bandoleiros como a lobos famintos. Isso talvez soeegoísta, mas agradeci a Deus por não estar no lugar deles emais uma vez orei pela alma do inocente. Agora conto as horas para meu retorno à minha amadaInglaterra, para os braços de minha amada mulher. A vida emviagens e missões pode ser incrível, mas a existência comum,do amor sereno e da família, é muito mais valiosa e especial. Talvez o que tenha escrito lhe pareça demasiado, mas muitomais haveremos de conversar.

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Agora me despeço.

Com carinho e saudades,

Seu Timothy.

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Excertos do diário da Sra. Stealth

Londres, 21 de junho de 1700 – Confesso que, depois de ler ereler diversas vezes aquela carta do Tim, receei por suasanidade. Mas ele chegou ontem à noite e, depois da longaconversa que tivemos, agora me arrependo do que pensei e merecrimino por ter duvidado do seu relato. Por sorte me mantivefiel a seu pedido e não mostrei a ninguém a carta, nem sequer àmamãe e à Lucy. Foram longos dias de angústia aguardando seu retorno.Graças a Deus não cedi à tentação de desabafar com ninguém.Paciência, muita paciência: era como se um bom anjo merepetisse isso todos os dias. E talvez tenha mesmo repetido. Senão tivéssemos anjos da guarda, provavelmente nenhum de nóspassaria da infância, a única idade de real pureza, em quesomos imunes à voz do Demônio. Quando crescemos, nossasbrincadeiras se tornam gananciosas, perdem a espontaneidade,e nisso ficamos vulneráveis ao inimigo. Se não fosse pornossos anjos, seríamos devorados. A experiência do Tim me levou a pensar que preciso rezarmais. Tenho negligenciado Deus. Sorte minha e de muitasoutras pessoas que Ele não se esquece de nós. Tive um pesadelo recente em que via alguns conhecidosabertos e apodrecendo. Foi asqueroso, fico arrepiada ao me

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lembrar, mas não consegui arrancar essa imagem da minhamente. Pensei que sem colocá-la por escrito poderia me livrardela com mais facilidade, mas não adiantou. Talvez o contrárioseja melhor e por isso resolvi escrever a respeito. Ainda nãocontei para o Tim, até poque ele já tinha coisas demais para mecontar e falar comigo. Não quis perturbar ainda mais seupensamento e seu coração. Quero o coração dele batendo beme tranquilo, perto de mim. Se o Conde de Saint Germain virá, tenho minhas dúvidas. Porum lado, desejo sua vinda; minha curiosidade é grande e meatiça. Por outro, tenho medo. Como posso ter medo de um homem que parece ser tão bom,daquele que salvou a vida do meu marido? O que sei é que nãoconsigo controlar esse medo, que aumenta quando imagino asfeições do Conde relendo a carta do Tim. É mais do que receio.É um medo que arrasta, que angustia e ao mesmo tempo atrai.Não devo ser a primeira pessoa que sente terror e atração pelodesconhecido, pelo mistério, simultaneamente. O Tim não acredita que ele seja um imortal, como dizem arespeito de alguns alquimistas lendários. Acha que é apenas umexcepcional cientista, que certamente será longevo, se nada deerrado e extremo lhe ocorrer, graças a seus conhecimentos demedicina. Contudo, é um cientista não só das coisas do mundo materialcomo das do outro mundo. Será plenamente seguro para gentecomum como nós ficarmos em sua presença? A Bíblia condenaa magia. Mas estou ciente que existiram e existem inúmerosmagos e alquimistas cristãos. Tudo isso só me confunde. Alguém como Saint Germain parece apenas fazer o bem.Seria possível que Deus o condenasse ao inferno por querersaber demais? Por que a árvore do Conhecimento deveriapermanecer inacessível aos homens? O conhecimento em

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excesso infla os corações para o orgulho desmedido? Satã éalguém que sabe muito mais do que deveria? Provável que sim,e que ele conheça com perfeição a natureza humana. Por que o Conde viria visitar gente como nós? Ou serápossível que ele, um homem excepcional, venha apenas porvalorizar a amizade? Isso supondo que ele tenha passado aconsiderar o Tim como um amigo em potencial, alguém emquem pode confiar. Talvez a vida de um verdadeiro alquimista,se imortal ainda mais, seja a mais solitária que se possaconceber. Todos desejariam seu conhecimento para produzirouro e prolongar a vida. Como se preservar dos poderososcruéis sem se isolar do mundo? Estou confusa. É melhor parar por hoje. De escrever e depensar.

20 de setembro de 1700 – O Conde enviou-nos uma carta,anunciando sua vinda. Tim parece entusiasmado com isso.Confesso que, assim que li as palavras do Conde, um misto desurpresa, temor e ansiedade curiosa tomou conta de mim. Jáestou há tempos convencida da realidade da história do Tim.Mas vê-la materializada na presença do Conde será algo bemdiferente, concreto, sem as restrições da esfera do pensamento.A imaginação, por mais expansiva que pareça, está confinadaao que conhecemos, aos conceitos que já temos formados emnossas mentes. A realidade, ao contrário, é o que é,independentemente do que sabemos sobre ela, e nuncachegamos a saber tudo. É por isso que há surpresas que nãoconseguimos evitar e que podem ser assustadoras. O medo só éuma proteção, na maior parte das vezes falsa e falha, contraaquilo sobre o qual temos um certo conhecimento, ainda quemínimo. O que no Conde me parece mais ameaçador? Andeipensando, e o que é certo é que a rotina da casa irá mudar

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muito. Já recebemos alguns hóspedes, mas nunca umalquimista ou coisa parecida. Talvez tenha recebido algum nãodeclarado? Duvido muito. Conhecemos muitas pessoas. Massão gente medíocre. Pessoas como eu e o Tim. Será uma oportunidade para confirmações e novosentendimentos. Andei pensando se gostaria de ser imortal, casoo famoso elixir dos alquimistas exista realmente. Concluí quenão. A vida eterna aqui na Terra seria algo muito cansativo esolitário, acabaria se tornando um fardo. Mas se ele me oferecesse o elixir, será mesmo que eu nãotitubearia? Não iria desejar a beleza e a juventude perenes, ouno mínimo muito longas, para além de qualquer vida humanacomum? Será isso o que eu tanto receio, alguma proposta dotipo, mesmo que na realidade se trate de algo menor? E se formais incrível e surpreendente do que a minha imaginaçãoconsegue especular? A caligrafia do Conde transmite para mim uma impressão demeticulosidade, de profunda organização. É uma letra bonita,limpa, harmoniosa. Suas frases são elegantes. Estou muitocuriosa para vê-lo e ouvi-lo falando. O Tim disse que o inglêsdele é impecável. Tinha minhas dúvidas, pensei que ele poderiaestar exagerando devido à admiração pelo Conde, que noentanto provavelmente escreve até melhor do que eu. Isso é umindício de que eu estava equivocada ao imaginar um homemnão tão refinado, alguém que teria perdido a sofisticação apósmuito tempo enfurnado em laboratórios ou confrontandodemônios. Uma nova ordem, muito superior à sua antecessora, tende atrazer desordens. Ouvi isso uma vez. Onde não me lembro.Mas está me parecendo, por alguma razão, uma frase adequadaao meu momento espiritual. A luz excessiva pode cegar,trazendo a ansiedade das trevas para os que procuravam pelo

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sol.

12 de outubro de 1700 – O Conde chegou ontem, quando nãotive tempo para escrever, entretida com nosso novo hóspede.Veio com alguns pertences inesperados para nós, como umviolino. Com a barba feita, parece um homem de pouco maisde vinte anos. Imaginava alguém de fisionomia mais madura. Éalto e muito elegante na fala e nos gestos, econômico nestes.Conversa sobre todas as artes, ciências e está bem informadosobre a política europeia. Longe de ser um rato enfurnado emseu laboratório, que não conhece nada do que se passa fora.Sobre como consegue se informar, ainda não nosaprofundamos a esse respeito. Desconfiamos que seja pelamagia. Voltando ao violino, hoje à tarde tocou para nós. Em um dadomomento precisei fechar os olhos e me senti transportada paraum outro mundo. Para uma terra de sátiros e outras criaturasque não sei bem como definir. Telúricas talvez. Dançantes. Emjardins que se movimentavam. Quando o Conde parou de tocar, tive que reabrir os olhos.Mas ainda estava encantada. Via o Tim, só que o Conde era muito mais nítido. Como seestivesse cercado de fadas, que faziam cair sobre ele um brilhoinaudito. Hoje estou indo dormir muito mais leve. Parece que asmesmas fadas vão me carregar para longe. Rumo a sonhos emparagens que ainda não consigo imaginar. Ou não devo. Osseres feéricos devem ser grandes apreciadores de surpresas.

22 de outubro de 1700 – Há alguns dias que não paro desonhar com o Conde, o que está se tornando insuportável.Pensei que não registrando-os terminaria por esquecê-los, ou

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que ao menos cessariam, mas não é o que está ocorrendo.Talvez por isso mesmo seja melhor escrever sobre eles,aliviando o peso que venho sentindo em minhas costas. Não é aprimeira vez que me acontece algo dessa espécie. No primeiro sonho, enquanto ele tocava uma de suascomposições com o violino, sua sombra começou a se movercom independência e me puxou para dançar. Seus movimentoseram firmes e graciosos, conduzindo-me de uma maneira que,quando acordei, a música continuava em meus ouvidos edesejei que ao voltar a dormir o sonho continuasse. No segundo, estávamos em um jardim e pássaros cantavam aonosso redor. Não via o rosto do Conde, mas sabia que era ele.Estávamos de mãos dadas. Sentia o toque quente e acolhedorda mão dele, exatamente como o imagino. As flores tambémpareciam entoar uma melodia doce e cálida, que não só meenvolvia como penetrava em meu ser. Houve um instante emque começamos a voar, pairando sobre o jardim, tudo cessandonum repentino rodopio em que nos fundimos. Do terceiro sonho, recordo-me apenas que nos olhávamosfixamente. Cheguei a retirar-lhe a peruca, mas não me lembrode seus cabelos. Talvez porque eu ainda não tenha visto osverdadeiros cabelos do Conde e Morfeu se recusou, por algumaestranha traquinagem, a me fornecer uma visão imaginária. No quarto, havia uma espécie de fonte atrás de nós. Osmovimentos que a água realizava eram circulares. Ríamosjuntos dos minúsculos peixes que se moviam. Quando ele metocou o ombro, senti como se algo me queimasse na região edespertei. O ardor continuou por alguns instantes enquantoestive acordada. No quinto sonho estávamos fugindo de Londres em umacarruagem. Fugindo do Tim. Só que para qualquer um seriaimpossível nos alcançar. Os cavalos da carruagem eram de

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fogo, e iam a uma velocidade que nunca testemunhei igual.Para onde estávamos nos dirigindo? Pouco importava. Orelevante era que eu estava fugindo com o Conde, nos braçosdele. Mas não nos beijamos. O beijo só veio no sexto sonho, em que éramos atores,interpretando o Otelo. Ele era Iago e eu Desdêmona. Nosbeijamos nos bastidores, e não conseguíamos mais nos separar.Eram chamas irresistíveis, que não queimavam, que atraíampara o calor, ainda que tivesse sido suprimida toda a distância.Homem e mulher na fogueira, que logo se espalhou por todo opalco. Acordei fria. E nesse dia não quis ver ninguém, fiqueifechada no meu quarto. Fui grossa com o Tim. Nem pensar emver o Conde, ou sentia como se fosse acabar cometendo ainsanidade de beijá-lo na frente do meu marido. Discuti um pouco com o Tim, mas ele não desconfiou denada, menos mal, ou pelo menos parece que não. Não dissenada. Deve ter pensado só que eu estava num dia ruim. No sétimo sonho, eu e o Conde fazíamos amor. Acordeiofegante e quase em desespero. Pensei no que se diz sobre osíncubos, os demônios que seduzem as mulheres à noite, e seum destes está usando a imagem do Conde para sugar a minhavida. Tenho me sentido cansada. Quase fui ao padre hoje relatara situação. Mas sinto vergonha. Sinto como se fosse umaesposa infiel, que estivesse traindo e enganando o Tim. Ele nãomerece isso. Não posso estar apaixonada por um homem que sequerconheço. Só posso estar sendo enredada por um ardildemoníaco. Muitas pessoas atualmente não acreditam em demônios. Emíncubos e súcubos, especificamente, muito menos. Mas depoisde conhecer o Conde, e do que o Tim escreveu e contou, não hácomo duvidar que existam e aconteçam muitas coisas que

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parecem impossíveis. Não creio que o Conde esteja envolvido com o mal. Ele é umbom mago e também pode se tornar uma vítima. Será que não se dá conta que os inimigos espirituais delepodem estar à minha volta, me agredindo e me tentando? Elespodem estar querendo me jogar nos braços dele para provocarnossa ruína, para arruinar a amizade entre ele e o Tim, paradeturpar sua missão na Terra. Por que o Conde nada diz? Por que insiste em conversarapenas sobre arte, política e ciência, mesmo quando o Tim nãoestá presente? Por que não me explica nada? Não posso acreditar que ele esteja me seduzindoconscientemente, fazendo uso de sua magia, dos espíritos que oservem. Se estiver fazendo isso, passarei a abominá-lo. Nãosou um mero joguete nas mãos de um poderoso feiticeiro. Souuma mulher de um coração que pulsa e arde.

25 de outubro de 1700 – Depois que coloquei por escrito ossonhos, eles cessaram. Não sonhei mais com nada nem comninguém. O que Deus quer me demonstrar com isso? Que se oConde não comentou nada comigo sobre íncubos ou qualquerespécie de seres malignos em ação, isso quer dizer que nãohouve nenhuma influência demoníaca, que estou mesmoapaixonada por ele? Meu pensamento anda muito tortuoso e me pregando peças.Em qualquer aposta que eu fizer, o resultado será o oposto doque eu imaginava. É melhor não tirar conclusões precipitadas. Se, por absurdo que seja, eu estiver emocionalmenteenvolvida com o Conde, mais do que fascinada por suapresença, o melhor é que eu não mais o veja. De qualquerforma é algo que nunca poderá ser consumado. Que jamais serealizará.

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Eu amo o Tim. Ou amava. Ou pensei que amava. Ou deveriaamar. Por que o que sinto não sinto com clareza? Tudo isso está me desgastando.

27 de outubro de 1700 – O Conde se foi! Repentinamente.Não nos avisou de nada. Não deixou sequer um bilhete.Simplesmente desapareceu junto com os seus pertences. Nuncamais o verei? Hoje decidi que vou queimar este diário. Me livrar destesrastros de relâmpago. O Tim nunca pode chegar a ler nadadisso. Só de pensar, o meu coração dispara. Talvez eu memataria. Não fui uma adúltera em corpo, mas sim em espírito.Não suportaria vê-lo sofrer. Antes de ver o coração dele empedaços, apunhalaria o meu. Estou me despedindo destaspáginas.

29 de outubro de 1700 – Desisti de queimar este diário. Vouapenas escondê-lo, trancá-lo muito bem, em um lugar seguro.Se alguém chegar a lê-lo, será dentro de dois ou três séculos.Então eu e o Tim já estaremos juntos no Paraíso, perdoados osnossos pecados. Nos perdoaremos mutuamente e Deus nosperdoará. Estou me sentindo muito mais inteira, sã e feliz depois que oConde se foi. Embora às vezes fique entristecida ao me lembrardo som do violino dele. Tenho saudades de sua música. Apenas de sua música.

29 de novembro de 1700 – Estou cada vez mais feliz ao ladodo Tim! A cada dia me convenço mais que toda a história como Conde não passou de um estranho e cativante sonho. Graçasa Deus que estou novamente desperta!

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12 de dezembro de 1722 – Minha mão treme enquantoescrevo agora. Mas tenho que escrever. Mesmo que seja paraqueimar tudo depois. O fogo talvez seja minha únicapossibilidade de redenção. Não vi o fantasma do Tim em seu enterro, no dia mais triste edoloroso de toda a minha vida. Vi algo muito pior: o Conde,que surgiu exatamente com a mesma aparência de mais devinte anos atrás. Um delírio meu? Impossível. Não vinha pensando nele. Eestou certa que não o confundi com ninguém. Era o mesmo jovem fascinante daqueles tempos, o mesmoque de alguma forma me enfeitiçou. Pensei em correr até ele para exigir explicações. Do quê, nemeu estou certa. Mas queria, e como queria, ouvir mais uma veza sua voz, e desta vez para falar sobre assuntos realmenterelevantes. Só que bastou uma pequena distração e ele desapareceu. Terápercebido que o vi? Não chegamos a trocar olhares. Ele pareciadistraído. Mas provavelmente não estava. Deve sim ter notadoque o percebi, e por isso partiu. Abruptamente. Como da outraocasião. Pensei em persegui-lo, em procurá-lo por toda Londres. Maspor onde iria começar? Não era um fantasma ou um espectro. Tenho absoluta certezaque era ele em carne e osso. Como sempre inacessível.

Obs: Emily Stealth não queimou o seu diário. Mas a partirdesse 12 de dezembro, nunca mais escreveu. O diário só seriaredescoberto por seu filho mais velho, em 1725, um ano após asua morte.

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II

17 de dezembro de 1745

Trecho de uma carta de Horace Walpole, quarto conde deOrford, erudito inglês que escreveria “O Castelo de Otranto”,a Thomas Gray, que viria a se tornar renomado poeta, autorde “Elegia Escrita em um Cemitério Campestre”.

Prezado amigo,

Em primeiro lugar peço perdão pelo tempo em que estiveausente, sendo que eis que assim que retorno a Londres,quando creio que já deveria haver uma alegre calmaria de aresde Natal, obrigam-me a respirar agitação e conflito. Já ouviufalar do conde de Saint Germain? Imagino que não. Há algum tempo, no Teatro Haymarket, apresentaram a óperaL'Incostanza Delusa, da autoria de um italiano chamadoGiuseppe Ferdinando Brivio. Pelo pouco que sei dele, nasceuem Milão e é exímio violinista. Alguns o confundem com outroGiuseppe Brivio, tocador de instrumentos de sopro, que estevepresente em uma apresentação solene em Novara, no ano de1711, em uma ocasião de homenagem às relíquias de SãoGaudêncio. Àquela altura, Giuseppe Ferdinando Brivio era sóuma criança. Sua primeira apresentação pública só parece terocorrido em 1720, como violinista da orquestra milanesa doTeatro Ducal. Ah, a Itália! Aquela viagem não me sai da memória. Tantas asrecordações caras em relação à arte! Tantas encantadorascelebrações e recepções! Ao mesmo tempo que não meconformo que tenhamos então nos desentendido. Sua partidapara Veneza àquela altura turvou meu espírito, e o pior quando

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vim a saber de sua volta à Inglaterra pelo falecimento de seupai. Senti-me culpado e hesitante, pensei em também retornarapenas para lhe dar meus sinceros pêsames, só agora me julgorelativamente confortável para lhe confessar isso, maspermaneci por medo que não me compreendesse e nãoaceitasse meus votos e minhas desculpas. Hoje, reconciliados,e com alívio digo isso, compreendendo que no que você mecensurou foi com razão pela minha futilidade, só tenho alamentar a inconstância do espírito dos homens, as exaltaçõesque conduzem, com o amadurecimento, à decepção consigo, àpercepção da banalidade de certos atos que pareciamnecessários. Não seria muito melhor que fôssemosperfeitamente sábios e equilibrados? Talvez de fato fossemelhor, mas talvez mais tedioso; e não seríamos humanos. A música de Brivio, quando a ouvi, transportou-me para uminterior de fragilidades. Contudo, soube depois que os trechosque me tocaram em maior profundidade não eram seus. Partesde L'Inconstanza Delusa foram compostas por esse conde deSaint Germain, de misteriosa procedência, que pelo que ouvidizer é também violinista. Não se sabe se esse colaborador de Brivio é francês, romenoou italiano. O que eu soube é que está na Inglaterra há pelomenos dois anos e que recentemente foi preso por suspeita deespionagem. Há quem diga que fez grande fortuna na América,no México, e que após se casar com uma rica senhora fugiu delá com suas joias para Constantinopla. Seu comportamento,entretanto, parece ser o de um monge, de um asceta. Pouco sealimenta, bebe apenas água. Até o Príncipe de Galesmanifestou curiosidade de conhecê-lo. Sua prisão não durou muito. Logo foi solto por falta deprovas. Mas coincidentemente, assim que recobrou a liberdade,ocorreram novas ações de conspiradores.

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Isso por si não prova seu envolvimento, pois poderiam estaragindo agora para tentar culpá-lo (…)

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22 de dezembro de 1745

Trecho de outra carta de Horace Walpole a Thomas Gray:

(...) Graças a uma amiga em comum, Lady Jemima Yorke, hojeconheci o Conde de Saint Germain. Seu conhecimento de línguas aponta para um homem viajado.Expressa-se em italiano e francês com facilidade, embora eucreia que não é falante nativo de nenhum dos dois idiomas. Seuinglês é bastante razoável e compreende o polonês. Minhasuspeita é que seja nativo de Portugal ou da Espanha, ou dealguma de suas colônias na América, pois em ambas as línguasé impecável, segundo me afirmou um amigo ibérico. Tocou violino para nós e também cantou. Sua voz éextremamente versátil e sua música tem muito de seu olhar,absorto e profundo, atento e instigatório, inteligente e alerta.Seus trabalhos instrumentais estão caracterizados por umatocante expressão íntima nos movimentos lentos e por umavivacidade virtuosística nos mais rápidos. Assim como em suasárias, parece ter ânsia de se manter liberto de qualquer corrente,ao mesmo tempo que em seu discurso valoriza a tradição,mostrando-se encantado com as obras poéticas do mundoantigo, das quais parece ser bom entendedor. Creio que vocêspoderiam conversar por horas sem que nenhum dos dois secansasse.

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Não estou certo que seja um espião. Mas também não docontrário. O conde sabe ser reservado no que diz respeito à suavida particular, evasivo nas questões que lhe fiz sobre esta. Éhabilidoso o bastante para não se comprometer, mas talveztenha origens eclesiásticas, foi o pouco que consegui extrair,pela menção que fez a seus hábitos de oração e devido a seucomportamento austero. Apesar do bom gosto ao se vestir e dasjoias que utiliza, o que não é hábito de sacerdotes ou monges,algo em sua atuação como cavalheiro não me convence (…)

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Excertos do diário de Jemima Yorke:

Londres, 30 de maio de 1749 - Ah, o conde de Saint Germain!Que homem tão fascinante e misterioso! Ontem tive aoportunidade de acompanhar mais uma de suas performances.Nunca ouvi notas tão delicadas e sublimes em um violino comoas que ele consegue extrair. Seu olhar também é único paranós, tanto quando o dirige como quando está compenetrado naexecução de suas peças. Todas as vezes que conversamos, ele me diverte. Além desensível, é um homem culto que sabe não ser sisudo,diferentemente da maioria. É uma criatura bastante estranha,confesso: e minha curiosidade para com ele, para saber sobreseu passado, cresce a cada dia. Nada revela, enquanto sabe falar de tudo com todos. Conversasobre negócios com o Sr.Wray, discute filosofia com lordeWilloughby e procura ser galante comigo, com a senhoritaCarpenter e com todas as jovens damas. O que me parece é que ele tem pretensões de filósofo, de serbem conceituado como tal: esse deve ser seu objetivo nuclear,

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pelo entusiasmo que demonstra com lorde Willoughby. Gostode ouvir suas exposições sobre a natureza humana e as leis dahistória. O restante das coisas, afora a filosofia, parece lheservir apenas para satisfazer as exigências com relação a LesManieres du Monde, ainda que muitos possam considerar asaparências como sendo partes reais de seu caráter. Algumas damas deixam-se levar por belas palavras e gestospolidos, mas eu às vezes noto artificialidade em seusgalanteios. Não parece estar realmente interessado emnenhuma moça. Nunca o vejo comer, e quase não bebe. Fazparte de seu mistério a impressão que me dá, de que é naverdade mais um asceta do que um cortesão. Já cheguei a pensar que ele fosse um grande embusteiro. Masnão demorei a perceber que verdadeiramente possui umconhecimento incomum em diversas ciências. Quem será oconde de Saint Germain?

Londres, 3 de junho de 1749 - Hoje o conde de Saint Germaintornou a nos visitar. Demonstrou que sabe tocar piano tão bemquanto o violino, talvez até melhor, e escreveu para mim doispoemas ao mesmo tempo, cada qual com uma mão! Os versos são belos. Porém confesso que desta vez fiquei assustada. Tive umaimpressão estranha. Não sei mais o que fazer com esses poemas. Penso emqueimá-los, pois talvez sejam malditos. E se o conde de Saint Germain for na verdade um bruxo? Londres, 5 de junho de 1749 - Lady Gray riu de minhassuposições que o conde possa ser um mago, um feiticeiro,alguma espécie de criatura maligna. Mas resolvi por via dasdúvidas me consultar com o padre Thornton.

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Ele me disse que por precaução é melhor queimar os poemas,que reli inúmeras vezes, mas ainda não tive coragem de fazerisso.

Londres, 11 de junho de 1749 - O conde não apareceu nosúltimos dias. Há boatos que terá deixado Londres. Seráverdade? Acabei queimando os poemas, que não reli mais, e, nafumaça, tive a impressão de ver rostos estranhos. Fiz o sinal dacruz. Deve ter sido apenas uma impressão.

Londres, 15 de junho de 1749 - Como irei me portar se oconde reaparecer? Desconfio que irei recebê-lo bem comosempre e que não sentirei medo. Nestes últimos dias, andei pensando se não me perdi empensamentos absurdos, se não me excedi em crendices como sefosse uma camponesa. Ele apenas demonstrou uma peculiarhabilidade! Agora lamento não poder mais reler aqueles versostão belos...Acho que gostaria de ao menos sonhar com eles. Seisso ocorresse, iria despertar aflita e tentar transcrevê-los, paratê-los comigo novamente? Ou voltaria a me sentir amedrontadae supersticiosa, acreditando que se tratasse de uma obra dodiabo? Nem sei se acredito no diabo como a maioria daspessoas: por que Deus permitiria um agente do mal livre,vagando pelo mundo, atormentando os seres humanos?Acredito mais que o homem seja inteiramente responsável pelomal que o aflige. Conde de Saint Germain, gostaria que voltasse! Embora nãoacredite que teria coragem de lhe pedir para reescrever ospoemas. Apesar de parecer ter uma memória excepcional, devetê-los esquecido! E ficaria ofendido por eu tê-los “perdido”.

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Afinal, jamais diria que os queimei, pois ou ficaria ofendidoseriamente, com razão, ou riria de mim. As duas alternativasparecem-me deploráveis.

Londres, 27 de junho de 1749 - Como gostaria de sonhar!Mas não sonho. Tudo o que tenho à disposição é um quadronegro de silêncios.

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III

Carta de Madame du Housset a Mademoiselle Lambert

Paris, 15 de novembro de 1758

(...) Em suma, tivemos uma belíssima festa. Uma pena quenão tenha podido comparecer. Mas a maior razão pela qualestou lhe escrevendo, devo lhe confessar agora,definitivamente, é o conde de Saint Germain. Soube que elealugou uma casa pertencente ao seu gentil e ilustríssimo pai,que foi você quem coordenou as negociações, e houve uminstante em que a mencionou como amiga; portanto, imaginoque tenham se aproximado e que consequentemente esteja beminformada a seu respeito e possa me esclarecer algumasdúvidas. Arrisco-me a dizer que não existe mulher que possa resistir aocharme do conde de Saint Germain. Não que eu tenha passadodos limites com ele. Mas enquanto estivemos juntos no baile,depois da primeira conversa fluente que tivemos, perdi a noçãode todo o resto. Era um mundo de luzes que piscavaminsistentemente. E mesmo assim eu não podia desejar emnenhum momento que se apagassem. Conduzia-me comperfeição, com um toque inesquecível. Por mais que tentasse,não havia maneira de afastar meu olhar do dele, que dominavaa cena e a música. Meu coração palpitou e meus lábiostremeram por receio do desejo, porém em nenhum momentome aproximei mais do que deveria. Espero que mecompreenda. Quando terminamos de dançar e nos separamos, assim queregressei ao mundo terreno, discerni Mme Pompadour a fitar-

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me com um estranho descaso. Como alguém que emitira umbreve suspiro, pensando: “pobre ingênua, ignorante em tudo oque realmente importa!” Imagine: o sorriso brilhante que havia em meu rosto se desfezde imediato. Antes me sentindo a mais bela e realizada dasmulheres, de repente me vi jogada em um abismo dedesencanto e feiura. Com o canto do lábio discretamente levantado, Pompadourparecia querer me desafiar para um jogo cínico. Mas não sei seme faltou vontade ou força e virei o rosto, não sei com queexpressão, talvez assustada, e me afastei, levando algum tempopara me recompor. O que posso dizer com certeza é que oconde não se limita a roubar a atenção das mulheres: ouvialguns cavalheiros dizendo que, assim que sua chegada àFrança se tornou pública, recebeu um convite do rei para vir aVersalhes, ao qual atendeu com alguma demora. Dizem queporque é um alquimista, uma espécie de bruxo capaz detransformar bronze em ouro. Não sei se acredito nessas coisas ese Sua Majestade leva a sério tais lendas, mas o fato é que oconde de Saint Germain possui um refinamento e umasabedoria ímpares. Talvez seja por isso que o rei o queira porperto e aprecie sua companhia. Há quem diga que seja umespião e que conheça inumeráveis segredos políticos. Se ele osrevela ao rei, é natural que Sua Majestade os revele aPompadour, que deve portanto se considerar acima de todas asoutras mulheres. Sou apenas mais uma que dançou com oconde, das dezenas ou centenas; enquanto ela deve conhecermuitos de seus segredos, quiçá inclusive de sua intimidade, epor isso me fitou com um ar de superioridade e desprezo. Ela ésua amiga, talvez confidente, enquanto eu não passo de umabreve distração. Não faltam na corte de Versalhes os que começam a nutrir

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inveja e ciúmes do conde; afinal o rei permite que entre comele no Castelo de Chambord. Trancam-se em algum aposento econversam por horas. Há quem diga que o rei, que não é dotipo que aceita passivamente sequer as ordens da natureza,queira lutar para submeter a inimiga que a todos há de vencer.E só o conde conhece os caminhos, dizem, para se viver nestemundo em eterna plenitude. O que talvez seja um pecado aosolhos de Deus: ama-se a matéria e esquece-se do espírito. Masquem somos nós para tentar julgar e compreender algo que estámuito além da nossa formação? Há quem diga que viu o condehá tempo suficiente para ele ter envelhecido muito mais do queaparenta. Sobre sua origem, é desconhecida. Quando perguntam ao rei,Sua Majestade insiste em dizer que é de nascimento ilustre.Para mim é um caso obscuro. Mas não tenho dúvidas que sejanobre, por sua cultura, por seus gestos, por todo o modo de seportar. Mme Gergi, que o conhece há mais tempo do que eu, mas queé esquiva quando lhe faço muitas perguntas, afirma que já lheocorreu que desaparecesse imprevistamente e reaparecesse damesma forma. Afora o dom de estar em mais de um lugar aomesmo tempo. Contou-me que, certa vez, estavam juntos emum passeio, conversando sobre pássaros, um assunto quefascina Mme Gergi e no qual ele se mostrousurpreendentemente mais versado do que ela. Mais tarde, MmeGergi se encontrou com outra senhora, que, muito surpresa, aolhe ser relatada a conversa, comentou que isso era impossível,pois fora à Catedral de Notre-Dame no mesmo horário eencontrara o conde orando. Mme Gergi mostrou ceticismo,aquela senhora podia estar se confundindo, ter visto algumhomem parecido. Porém a mulher se mostrou irremovível emsua opinião, afirmou ter certeza absoluta que era o conde, que o

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olhara de perto e só não lhe dirigira a palavra porque pareciatão absorto que temera perturbá-lo ou ofendê-lo. Em outro passeio, o conde deixou Mme Gergi sozinha, apósum momento de distração não estando em nenhuma áreapróxima, e seria impossível correr tão rapidamente ou seesconder em um prado sem árvores ou rochas altas. Tocou seuombro cerca de meia hora depois, com uma flor rara em mãos. Há quem diga que o conde seja na verdade “condes”, quepossam até ser irmãos, quiçá gêmeos, passando-se por umúnico homem. Tentam assim explicar sua erudição sobrepraticamente todos os assuntos e os fenômenos relacionados àsua pessoa que escapam ao alcance da razão. Mas seriapossível se sair tão bem em uma conspiração do gênero? Cedoou tarde seriam descobertos e desmascarados. Mesmo Casanova, que não simpatiza nem um pouco com oconde, nega tal possibilidade. Ele insiste em alegar que háapenas um “embusteiro”, que um único homem de elevadainteligência basta para engabelar todas as cortes do mundo. Dizele que já conheceu um falso Saint Germain, um certo MilordGower, na verdade um ator e prestigiador inglês. Casanova oreconheceu porque era exagerado e caricato. Disse-me: “Se oconde alguma vez teve ou buscou um cúmplice para suastrapaças, certamente não escolheria alguém tão tolo e frívolo.Foi muito fácil desmascará-lo. Talvez eu possa estar errado eseja uma estratégia dele utilizar uma ridícula imitação para nosfazer acreditar que ele é bom e perfeito demais para sercopiado, permitindo-lhe usar à vontade seus refinados gêmeos.Mas eu dificilmente erro; e neste caso estou mais do que nuncacerto de minha certeza”. Casanova também é encantador. Suamaneira de jogar com as palavras é adorável, seu olharcativante; mas é um libertino incorrigível, que crê que todossão iguais a ele. Não aceita o conde porque é um choque para

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ele estar diante diante de um homem tão diferente e igualmenteou até mais fascinante, um homem que transpira mais magia doque luxúria. Segundo Casanova, esse tal Gower alegava, ria se tivervontade, ter sido até conselheiro de Jesus Cristo, do princípioao final de sua vida, inclusive na cruz. Quase um homem maiordo que João Batista. Mas, embora tivesse algum conhecimentodas Escrituras, sua aparência era bem inferior à do conde etraiu-se em uma disputa com Casanova ao se confundir entrediversos imperadores romanos. Astucioso como sempre,Casanova deixara que pensasse que estava admirando suaexposição para depois começar a apontar seus equívocos. Oserros e contradições haviam se acumulado, já era tarde demaispara se corrigir, e o impostor tentou se justificar afirmando quetinha vivido tanto que os feitos dos personagens da história seembaralhavam em sua mente. Casanova deixou porém bemclaro que o verdadeiro Saint Germain jamais se confundiriaentre Teodósio e Diocleciano, que não trocaria o nome de umcristão perseguidor por um de um perseguidor de cristãos. Comas pessoas a encará-lo com hostilidade, afinal ninguém tempaciência com fraudes, que só nos fazem perder tempo, Gowerse retirou feito um cão acuado. Casanova me confessou: “Bemque gostaria de ter feito isso com o verdadeiro Saint Germain!Mas nunca teria sido tão fácil. E é nisso também que reside oprazer, pois uma conquista fácil não deleita o coração dohomem da mesma forma que uma rosa no topo de um montepedregoso e cercado de feras. Mas algum dia, Mme, hei dedobrar e humilhar o conde.” Casanova não crê nos milagres da religião. Portanto, parece-lhe ainda mais absurda e ridícula a possibilidade que umhomem como o conde seja um alquimista. Já me disse umavez: “Alguém tão instruído não pode acreditar em bobagens

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místicas e pseudomísticas. É evidente que ele finge crer nessasbaboseiras para ludibriar as mentes mais fracas e fascinar ostolos e os ignorantes”. Da minha parte, não sei se sou tola ouignorante. Mas observando Casanova notei que ele inveja oconde por sua proximidade junto ao rei. Além do fato que,quando Saint Germain está presente, quase ninguém prestaatenção em Casanova. O homem que se crê o melhor de todossai do centro dos olhares. Isso representa a pior dashumilhações que ele pode sofrer. É natural, portanto, que Casanova anseie destruir o conde.Fazendo isso, poderia se aproximar de Sua Majestade, quemanifestaria gratidão por tê-lo livrado de um impostor. Masnunca Casanova conseguiu provar que Saint Germain utilizatruques ou que mente em suas afirmações. Ontem, Casanova estava com os olhos tão fixados no condeque não percebeu que eu o estava observando. Embora pareçacontraditório, havia ali um misto de náusea e fascinado evívido interesse. Nunca vi o conde se alimentando: sua boca sóse move para falar e isso parece irritar e muito Casanova. Que considere Saint Germain o rei dos vigaristas não significaque não o admire; porém se trata de uma admiração raivosa. Selhe provasse ser o que alega, seria a pior derrota da vida deCasanova, que veria todas as suas convicções ruírem. Seriareduzido à completa miséria espiritual. A pouca riqueza deespírito que acumulou, referente aos seus conhecimentosartísticos e literários, perderia todo o valor, tornar-se ia comouma moeda que à noite valia cem e no dia seguinte passa avaler um. Se não conseguir desmascará-lo, será uma frustraçãoque carregará pelo resto de sua vida, ressentido com umhomem que de alguma forma sempre lhe é superior. O conde conhece o oriente; contou ter estado nos montesnevados do norte da Índia e nos desertos da Arábia. Com um

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alquimista árabe, inclusive, teria aprendido a arte de produzirdiamantes e pedras preciosas a partir de um método secreto,que se fosse desvelado a todos reduziria o mundo a pó e sanguederramado. Manifestou gentileza ao oferecer produtoscosméticos de sua feitura, que, segundo suas palavras, “nãovou mentir, não rejuvenescerão as senhoras e senhoritas. Masao menos lhes permitirão conservar sua beleza e seu frescor pormuitos anos além. Faço isso sem cobrar um único tostão, pormais dispendioso que me seja.” Teve uma longa conversa com Voltaire, que acompanhei comouma espectadora curiosa. Houve um momento em que ofilósofo atacou os judeus: “Quem eles pensam que são? Nãocrê que sejam muito pretensiosos ao se dizerem escolhidos porDeus? Só faz falta aos judeus serem antropófagos. Se tivessemmais esse defeito, o povo de Deus, que já é uma verdadeirahorda de usurários, seria sem nenhuma dúvida o mais ultrajantee abominável de toda a Terra.” O conde respondeu: “Posso até concordar com o senhor quepequem pela pretensão. Mas me surpreende que um sábioadmirado por sua defesa da tolerância, por um espírito tãoaberto, possa considerar abominável um povo qualquer. Afinal,qualquer povo é formado por indivíduos. E esses indivíduossão, em si, soberanos e inocentes em relação aos equívocos desua tradição.” Voltaire, surpreendido com a eloquência do conde, retorquiuda seguinte maneira: “Sugere que sou intolerante? Quemcondenou Espinoza? A moral, como o senhor deve saber, serve-nos não para julgar e condenar, mas para respeitar; que eu nãoabrace o judaísmo não significa que o desrespeite: já os judeus,com sua rígida Lei, não admitem a liberdade. O homem é donode seu próprio destino, deve estar em suas mãos a melhora desuas condições de vida e o aprimoramento de suas relações

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com as artes, o estudo das ciências naturais e a política. Apesarde cada país ter suas próprias leis, a justiça é universal e areligião não tem o direito de aniquilá-la, impondodeterminações sacerdotais que conduzem à morte e aoaprisionamento, físico ou intelectual. Não é justo para ohomem de ciência submeter-se a um livro até mesmo quandoele contradiz o que é evidente na natureza.” O conde não se intimidou e respondeu: “O senhor teceu umbelo discurso, mas pouco importa se eu concorde ou discorde,já que a palavra abominável o persegue. Pode parecer umasimples palavra; mas, no futuro, uma pequena e insignificantepalavra de hoje poderá ser usada para causar uma enormedestruição. Podemos estar em uma conversa informal agora,mas cuidado quando for redigir suas obras, nobre pensador.Nunca se deixe levar pela ira e pelo ressentimento enquantoestiver escrevendo. As emoções são magníficas, porémperigosas. O melhor é sempre ponderar e refletir antes detudo.” Voltaire, sem perder a altivez, deixou escapar um discretosorriso e reconheceu: “Sábias palavras, conde de SaintGermain. Afinal somos imperfeitos. Estamos longe de viver nomelhor dos mundos. Sem o crivo da razão, acabamoscontagiados pelo obscurantismo latente em nosso própriopensamento. Se tem alguma ascendência judaica, peço perdãose o ofendi.” O conde replicou: “Não possuo ascendência judaica e nãoestou aqui para defender os judeus. Procuro apenas ser umhomem sensato. E eu sei que o senhor, que os acusou como umtodo de usurários, não é exatamente um homem que apreciarecursos parcos e que nutre o desapego pelo dinheiro.” Voltaire não se ofendeu. Pelo contrário: liberou uma boarisada. O conde se limitou a sorrir sutilmente e conversaram

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mais, com alguns momentos de ironia seca, sem desafios.Houve um momento em que o filósofo lançou o seguintecomentário: “Eis um homem que sabe de tudo e que nuncamorre!”, com bom humor, sem escárnio. Até deve duvidar queo conde possua a Pedra Filosofal, mas nunca se atreverá atentar ridicularizá-lo, em parte por saber que nisso estaráfadado ao fracasso, em parte porque já o admira (...) Você o que sabe e acha de tudo isso? Em nome de nossa amizade, peço que não me deixe noescuro. Não é mera curiosidade que me move. Nem paixãopelo conde, por mais que ele me fascine. Trata-se de um anseiosincero de melhor compreensão do mundo. Se estamos diantede um homem especial e único, acho que não deveríamosperder a oportunidade de aprender com ele. O conde já lhe confidenciou algo maior? Como se iniciou essaamizade entre vocês? Foi desde que cruzaram os olhares pelaprimeira vez? A iniciativa foi mais sua, dele, ou mútua?

Aguardo ansiosamente por sua resposta.

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Carta de Mademoiselle Lambert a Madame du Housset

Paris, 24 de novembro de 1758

Minha prezada amiga,

Quem me dera decifrar todos os segredos e mistérios doconde! O que posso afirmar com toda a certeza é que o queconcebemos como maravilhoso e surpreendente será sempre

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inferior ao que ele pode realizar. Numa dessas noites, saímos para jogar e o que posso dizer éque ele possui o dom de transformar o desejo em sorte. Oconde ganhou tantas vezes que chegou a me perguntar se nãoseria mais polido deixá-los ganhar em ao menos uma ocasião.Eu lhe disse que os cavalheiros poderiam perceber e que nissopoderiam se sentir humilhados e ofendidos. Assim, nos retiramos muito mais ricos. Mas longe de mim sugerir que as riquezas do conde provêmdos jogos! Pois a história dos diamantes e das pedras preciosasé verdadeira. Eis um dos motivos que fazem Sua Majestadenutrir grande interesse pelo conde de Saint Germain, que logono início de sua estadia em Paris fez uma requisição aomarquês de Marigny para que lhe fosse cedido um espaço ondeinstalar um laboratório alquímico, prometendo ao rei umtesouro que cientista nenhum jamais concedeu a um monarca.Foi assim que conseguiu uma audiência com Sua Majestade einiciaram a aproximação. O laboratório de Saint Germain emParis está justamente no castelo de Chambord, onde como vocêsabe costuma se encontrar com o rei e com a Mme dePompadour. Versalhes não interessa muito ao conde. Ele já estava seencontrando com o rei antes de receber o primeiro convite paraparticipar das festas da corte e, como você ouviu, realmentedemorou um pouco para aceitá-lo. Aceitou-o mais porcordialidade e respeito do que por desejo. Decididamente não éum carreirista, um aproveitador, ao contrário do que pensaCasanova. Nenhum homem enganaria Sua Majestade comfacilidade. Ele já deu mostras ao rei do que é capaz de fazer. Foi trazendo e mostrando-me aos poucos algumas das pedrasque produziu em seu laboratório em Chambord diante dosolhos estupefatos de Sua Majestade. Anteontem, uma safira

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branca tão grande quanto um ovo, além de outras menores,azuis; ontem, rubis que mais parecem fogo cristalizado; hoje,os mais belos diamante que já vi. Alega isso ser possívelutilizando uma substância chamada “pó de projeção”, quetambém pode transformar metais vulgares em ouro. Mas nãome revelou, por mais que eu insistisse, o método para produzi-lo e para gerar as pedras, que são feitas a partir de rochasvulgares e terra, o que parece inacreditável. Uma gentileza que me cativou: os diamantes estavamprometidos à Mme de Pompadour, mas ele me permitiuescolher um. Depois irá substituir o que agora falta com outroque produzirá. Que presente magnífico! Estou até agoraextasiada. Só lamento não ter muito mais a lhe esclarecer a respeito doconde. Talvez um dia (espero que em breve!) ele passe a confiarplenamente em mim e me revele a raiz de sua sabedoria. Omistério nos deixa cativas. Um mistério que sim desde o iníciome encantou. Nossa amizade foi surgindo naturalmente, mas temo dizer queele seja mais meu amigo do que eu sua amiga. Não que eu nãoqueira a amizade dele; mas ele ainda não me permite aproximidade que anseio. Estou a seu lado, mas ele nãocompartilha comigo seus sentimentos mais profundos. Emboranada diga, sei disso. Se ele sofre? Todos nós sofremos,acredito, mesmo os que se dizem imortais, pois o passado nãopode ser apagado enquanto nos movemos no mundo. Se ele se referiu a mim como amiga, não é, infelizmente, daforma mais profunda de amizade que fala. É de uma agradávelmas para mim frustrante convivência. No entanto, quiçá a Providência esteja do nosso lado: pois euprovavelmente sequer o teria conhecido se o meu pai não

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tivesse ficado doente. Graças a Deus que ele está recuperado, que nada de graveocorreu, mas sem seu adoecimento eu não teria tido aoportunidade de negociar com o conde. Que Deus me perdoepor esse tipo de pensamento! Mas será pecado seconsiderarmos que papai já se encontra plenamente sadio?

Por enquanto encerro, lamentando não poder lhe fornecermaiores esclarecimentos.

Esse lamento também é por mim mesma.

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Carta de Madame du Housset a Mademoiselle Lambert

Paris, 2 de dezembro de 1758

Minha querida,

Leu com atenção toda a minha carta? Parece-me que um detalhe lhe fugiu, ou que não quis prestaratenção nele. Refiro-me a Mme Gergi. Começo a suspeitar que ela conhecia o conde de antes delechegar a Paris, de alguma viagem. O que você pensa sobreisso? Sabe de algo? Não tenho intimidade suficiente com ela. Por isso preciso que me responda. Só espero não causarreceios e pensamentos amargos.

(…)

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Carta de Mademoiselle Lambert a Madame du Housset

Paris, 7 de dezembro de 1758

Minha doce amiga,

Você nunca me traz dissabores. Porém de fato prefiro não dar muita atenção a Mme Gergi.Não consigo simpatizar com ela. Pelo que o conde me diz, conheceram-se no terceiro dia deleaqui. Não creio que minta. Não tenho razões para desconfiar.Mas acredito que ele já tenha percebido que não nutronenhuma simpatia por ela e por isso evita falar a seu respeitocomigo. Não tenho o direito de lhe proibir nenhuma amizade,ainda que Mme Gergi não me pareça confiável. O conde sabese cuidar. Não precisa de mim para cuidar dele. A cada dia quepassa, mais o sinto como um homem extremamente velho. Oque não elimina seu encanto, pelo contrário: que mulher nãodesejaria ter a seu lado um sábio comparável ao rei Salomão? Mme Gergi, no máximo, tem uma relação com o condepróxima da que tenho com ele. Mas não é tão sincera quantoeu. Tenho certeza que não, e o conde deve saber disso.

(...)

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IV

Excertos do diário de Mademoiselle Lambert

Paris, 21 de janeiro de 1759: Se por algum tempo nãoconsegui escrever, é porque ainda estou atordoada com o quevi, ouvi e senti nos últimos dias. Se nem sequer conseguiescrever para mim, muito menos para Madame du Housset. Eduvido muito que algum dia vou poder me abrir com ela, oucom qualquer outra pessoa do meu círculo atual deconvivência, quanto aos mais recentes acontecimentos. Logicamente tudo isso tem a ver com o conde, que nãoconsigo arrancar de meus pensamentos. E nem desejo isso.Mas até que ponto posso alimentar esperanças quanto a ele? Oque um homem tão excepcional pode desejar de alguém comoeu? Não é possível que ele me considere à altura de torná-lacomo ele. Mas se quero estar ao lado dele, não hoje, nãoamanhã, e sim por toda a eternidade, tenho que fazer umesforço, de coragem e empenho, e declarar isso, mostrar-medisposta a me tornar uma Artista, como ele define a si mesmo ea seus irmãos. Já sei que é um caminho árduo, mas querealização pode ser maior? Se ele me visse como uma amigaqualquer, ou como um reles passatempo, não teria me mostradoo que me mostrou. Quando ele me disse “venha comigo aocastelo de Chambord. Há algo importante que quero lhemostrar”, tive certeza que seria algo realmente grande; o condenão é de desperdiçar palavras. E não foi apenas uma vez queele me levou: foram dias, em que me explicou os fundamentosda Arte, me apresentou seu laboratório e, sobretudo,impressionou-me com sua esfera de obsidiana negra,perfeitamente polida, em que me explicou que poderiam ser

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explicitados os segredos de muitas coisas, referentes a Deus, aouniverso e a ele próprio. Confesso que nisso o menor, que paragente comum como eu não deixa de ser imenso, falou maisalto: minha curiosidade maior era em relação ao passado doconde, às suas origens, às suas aventuras e andanças. Queriasaber tudo, desde seu nascimento até os dias atuais. Osmistérios da Criação e do Criador que me fossem desveladosdepois, com paciência. Minha impaciência era para conhecermais o conde, para desvendá-lo e desvelá-lo. Tive medo quando todas as cortinas foram fechadas e ficamosapenas à luz de velas. Três ou quatro. E logo só restou uma. Eleme pediu para que permanecesse calma, sentada numa cadeira,enquanto andava ao redor, pronunciando palavras arcanas, eespalhava o sal para dar forma a um círculo mágico. Estavaapreensiva quanto à cadeira vazia a meu lado. Tive medo de aliver uma sombra viva. A sombra de um demônio que me fitasse,se erguesse e me sufocasse. Temi que o conde fosse o pior detodos os feiticeiros. Mas ainda era minha imaginação. De certaforma ele é um bruxo: só que o maior de todos. Pelo menosentre os que conheço. Não que tenha conhecido muitos...Naverdade não conheci nenhum. Mas não existe quem faça coisastão incríveis e ande pelo mundo nos dias atuais. Quando o conde se sentou na cadeira a meu lado e segurou aminha mão, fiquei enternecida e aliviada. “Tranquilize-se.Estou aqui com você.”, como a voz dele me soou doce! Com oconde a meu lado, teria coragem para encarar de frentequalquer demônio, sem hesitar. Ao menos foi o que pensei nosprimeiros instantes. Perguntei a ele: “Já podemos olhar para a esfera?”, e ele merespondeu: “Não, ainda não. Primeiro vamos rezar. Fazer umaoração para o nosso Criador, para que nos abençoe e nos envieseus anjos, a fim de que nos protejam.”

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“Há muito tempo que não rezo.”, confessei, envergonhada. “Isso não importa agora.”, consolou-me, acariciando-me oscabelos. “Concentre-se no momento. Deixe de lado o seupassado, que é muito recente. O que veremos são coisasantigas. É o momento de dar longos passos. Esqueça ospequenos tropeços.”, senti-me estranhamente encabulada esorri, enquanto o conde acariciava meu rosto. Fizemos a oração. Segui as palavras dele, que me guiariacomo um sumo oficiante. No começo titubeei, mas nãodemorou para que ficasse tomada de tamanho fervor,acompanhando-o mais do que com facilidade, ardendoamorosamente, que me foi difícil parar e passar ao silêncio. A seguir, Saint Germain ficou de pé e vi uma grande sombra àfrente, atrás da esfera de obsidiana. Tinha o dobro da altura deum homem. Senti medo. E de súbito pensei em soltar um grito,mas meus lábios e minha língua estavam travados, quandoseres alados cinzentos, semelhantes a minúsculos morcegos, ouratos voadores, se juntaram para dar vida a uma única criatura,a um gigante demoníaco maciço, que me encarava com ódiointenso. Por Deus! Era-me incompreensível por que medetestava tanto, sendo que jamais tinha me visto; eu nunca lhehavia feito qualquer coisa. Até então, demônios eram para mimseres quase que de superstição e fantasia, criações ou sombrasda Igreja, ou seres ainda que existentes distantes da nossarealidade. Descobri que não. E que seu ódio não eradirecionado a mim como pessoa, e sim a toda a humanidade,sem máscaras, aos “macacos de barro”, que é como noschamam. A criatura falou, e sua voz ressoava como graves tambores demaldade; não era um, era legião: “Não perdes o apreço pelasjovens prostitutas. Isso algum dia te custará caro.” “Cale-se, Samiel.”, o conde desafiou o monstro altivamente.

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Sua tranquilidade também me acalmou. Voltei a me sentircorajosa por alguns segundos, enquanto tentava me livrar dasamarras do silêncio, mas não tardava a me sentir apavorada e adar graças por não poder gritar, rasgando minha própriagarganta, quando o demônio voltava a me fitar com seus olhosde pedraria rachada. Saint Germain pretendia dar continuidade ao ritual, e voutentar reproduzir da forma mais fiel o diálogo que tiveram, poisainda o sinto como algo importante para mim: “Eu não o chamei. Afaste-se imediatamente, pela vontade deDeus e dos santos anjos.”, palavras do conde. “O que acreditas ser, boneco de barro, usurpador da Terra, quecrês estar à altura dos anjos que deveriam ocupá-la?”,respondeu Samiel. “O lugar dos anjos é o Céu. Onde você deveria estar, masoptou por cair.” “Não aprecio o tédio. Este mundo é mais colorido.” “Apenas para sua visão medíocre, que não enxerga avariedade de cores da luz, que reduz o brilho do ouro ao ourovulgar. Os bons anjos sempre vêm à Terra, mas não para residirnela. Estão cientes que seu lar é o Céu, onde maravilhas muitomaiores os esperam, onde cantam em êxtase perene ao redor doTrono do Senhor. Você se esqueceu de tudo, Samiel. Imiscuiu-se ao manto da Ilusão, e ela o turvou, obscurecendo suamemória.” “Se o Céu é tão bom, por que não partes de uma vez para lá?Por que insistes em permanecer na Terra?” “Porque tenho trabalho a fazer, porque Deus ainda nãodeterminou o fim de minha passagem, de minha missão. Podeter certeza que, quando for a minha hora, irei sem hesitações ouremorsos.” “Mentira! Tanto que te entregas aos prazeres e admiras a

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beleza das mulheres.” “Enquanto eu estiver aqui, por que não admirar a beleza dascriaturas de Deus? Todavia, quem mente é você quando sugereque me entrego a prazeres vãos. O meu prazer está em coisasque você não consegue compreender. A sua mente é pequena,aflita e estreita.” “Julgas possuir a mais aguda das inteligências.”, creio que foinessa hora que vi a cauda do monstro, que era como a cauda deum réptil, e ele começou a movê-la e a sacudi-la; pareciainquieto, enquanto seu hálito ficava mais fétido. “Mas nãopassas também de um macaco, a única diferença para os outroso apego que tens por tua vida. Deves admitir!” “Não vou admitir o que sei que não é verdade.” “Sei que afirmas que estás aqui para salvar almas. Quando naverdade perdes tempo em festas, em diversões frívolas.” “Tem me espionado muito mal, Samiel.”, e o demônio soltouuma gargalhada. Tive pavor. Mas não consegui não olhar nosolhos dele, e vi um rosto humano: era a face de um amigo dosenhor Casanova, um italiano cujo nome infelizmente meolvidei. Um belo rapaz. Mas estava ébrio. Ao cair em seu leito,adormeceu. Porém havia algo a seu redor que não dormia:seres semi-vivos nas sombras; digo semi-vivos porque nãosentia neles qualquer rastro de inteligência. Vivem apenas parasugar a vitalidade alheia, adensados pelos desejos e vícioshumanos, e que depois levam uma existência desesperada emque precisam continuar se alimentando desses desejos e víciospara seguir existindo. O conde me explicou posteriormente quesão larvas astrais, que vagam pelo plano astral, pelo mundo dosespíritos, pelo Purgatório entre o Inferno, a Terra e o Céu, maispróximos da Terra, e que demônios como Samiel podemutilizá-las para manipular e escravizar os seres humanos.Samiel inclusive já espera receber no Inferno esta alma do

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amigo de Casanova; por isso o vi. Seria mais um de seusmuitos escravos. O rapaz foi coberto pelas larvas. No dia seguinte, acordoufraco, vomitou, e ainda assim com uma vontade incontrolávelde voltar a beber. Quando deixei de ver a cena, de volta à percepção normal, oconde estava me fitando e o demônio tinha desaparecido.Perguntou-me se estava bem, com uma preocupação delicada, eeu lhe disse que sim. Quis sorrir, mas não consegui. Minhagarganta estava novamente livre. Oramos mais uma vez, para afastar em definitivo qualquerpresença demoníaca. E então foi possível iniciar a prática coma esfera. No início, tudo se limitava ao negro, à escuridão sem confins,até que ele me perguntou o que estava vendo. Respondirelatando o que imediatamente se abriu para os meus olhos, sóque percebi que não aos meus olhos físicos: era a visão de meuespírito, que funciona de outra forma, pois no que observei nãoé ela que se abre para o mundo espiritual, e sim o mundoespiritual que se abre para ela. Paradoxos ou não à parte,tratava-se de um templo, de uma catedral de cantos sublimes,embora não houvesse ninguém para entoar qualquer som; deuma vastidão de abóbadas, milhares delas. “As abóbadas daEternidade.”, foi o que me veio à mente, enquanto meu olhar seerguia. Quando o abaixei, num instante de abrumadora brevidade,tinha sido transposta para o que parecia ser um mosteiro, vivaem um estado de semi-sonho; não encontro nenhum termomais adequado. Um gentil monge veio a mim e convidou-mepara uma refeição, nas suas palavras, frugal. Só que a mesa quese estendia no espaço seguinte tinha abundância e alegria, comvinho de sobra. A circunspecção batera em retirada. Cheguei a

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me perguntar: “ Eu, aqui, uma mulher?”, mas quase todos osquestionamentos desapareceram na presença do abade, cujorosto não poderei descrever. Era luz pura. Vida em canto.Todos os monges se levantaram e só tornaram a se sentardepois que ele se sentou. Somente uma pergunta permaneceu viva e deixei que saísse:“Como pode haver festa? Não estamos em uma abadia, ondeum deveria passar o pão ao outro em solene silêncio, apósserem pronunciadas as respectivas orações?” Seriedade vencida, meu guia, do qual tinha quase meesquecido, respondeu: “Enquanto o abade estiver entre seusfilhos, não haverá razão para luto e sisudez. Mas haverá um diaem que o abade terá que partir em definitivo, em que não maispoderá após seu retorno nos dar seu beijo e selar suapermanência. Então os filhos reconhecerão o momento dejejuar, no pão e na palavra.”, calei-me ante esta resposta deecos bíblicos, se não me equivoco. Comi e bebi. Como se estivesse na carne. Mas nem só de pãovive o homem. Nem todo o alimento do mundo é suficientepara livrá-lo do ocaso dos dias. Por isso meu guia tornou a meconduzir, fez com que me levantasse, e quando me apercebiestava em um cemitério. Só não me pareceu um local sombrio:havia vida e esperança nas esculturas, enquanto o sol nascia.No auge da aurora, ele me pediu para olhar para o alto.Reconheci sua voz: era o conde! Nisso se desfez qualqueratmosfera de sonho, para dar lugar a um real mais real do que oreal. Que desajeito! Agora escrevo rapidamente com receio deque, se não o fizer, me esquecerei da experiência, ou deparcelas valiosas dela, consciente que minhas palavras podemparecer confusas. Mas são suficientes para que eu possa mecompreender quanto a uma realidade em que palavras sãofalhas, ou onde simplesmente não há palavras. Palavras

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humanas. A Palavra, que existia antes do mundo, vai além doque nossas línguas são capazes de pronunciar. Que seja! Estediário é apenas meu e ninguém mais irá lê-lo. Ou ao menosassim espero. Talvez precise queimá-lo, algum dia. A aurora ardia. Mas seu fogo não incendiava os meus olhos.Não consegui voltar a olhar para baixo para fitar o conde,apesar da minha vontade, pois o que é a vontade humana faceao clamor do sol? Sentia que os mortos se levantavam, maseram apenas mortos, enquanto se abria um vitral de sangue. Iriarever o conde, de outra forma. Um lento poente. Na vagarosidade do sol, o vi despertar.Estava vivo. Irradiando em seu eu passado. Com o corpoimpossivelmente pesado. Não parecia existir força capaz dereerguê-lo. Haviam perdido a batalha contra os mouros, que sóo tinham deixado vivo por acreditá-lo morto junto com oscompanheiros: seus irmãos. Os pedaços de carne seempilhavam com os pedaços de metal manchados de sangue.Um cavalo caído sobre o que restava de outro templário, agoraum corpo sem cabeça. Um guerreiro decapitado pelos inimigosde sua fé. Gaston de Auvergne: a identidade primordial do conde, sob aqual foi resgatado pelo alquimista árabe Geber. Um cruzado,tornado um imortal. Pude ser testemunha de muitas de suasperipécias nos tempos da luta pelo Santo Sepulcro. Estavamaravilhada e estática. Permaneci quase que como pedra fria, estranha espectadora.Até Gaston, ou Saint Germain, me chamar de volta para opresente: “Mademoiselle Lambert?”, sua voz um deslizante e doce somde violino. Eu tive que lhe perguntar: “O que foi isso queaconteceu? Eu acho que estava delirando...” “Não, você não estava.”, ele retrucou de forma bastante

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direta. “Pelo contrário: esteve perto da verdade e distante dodevaneio.” “Foi muito real, mas incrível e talvez até assustador.” “É natural temer o que desconhecemos. Apenas o Céu e osséculos nos livram em definitivo das amarras da natureza.” “Mal posso acreditar que realmente existam imortais.” “Todos nascemos para a morte. Mas há quem sejaextremamente teimoso...” “Quantos séculos, afinal, o senhor possui? Se não estoumesmo vivendo uma ilusão, um grande e incrível sonho, queme parece ter mais sentido do que aquilo que vivemos no queconsideramos real, será que poderia me responder a essapergunta?” “A vida é sonho, diria Calderón de La Barca. E creio que vocênão conheça o pensamento hindu, mas eles dão à nossaexistência comum, corriqueira, o nome de Maya, um grandevéu que encobre a verdadeira essência das coisas. O quedenominamos real não necessariamente é verdadeiro. Eupoderia dizer que tenho mais de cinco séculos, mas isso éimportante? Já há muitas versões sobre a minha vida, criadaspor caluniadores e admiradores. Um charlatão que tentou meimitar foi muito longe afirmando que conheci Jesus e queestive presente no Concílio de Niceia. Infelizmente, nem umacoisa nem outra são verdadeiras. Quem dera tivesse estado comCristo! Teria aprendido muitas coisas valiosas. Mas nesse caso,eu poderia ser o próprio judeu errante! Esse parlapatão afirmouque eu teria dito sobre Nosso Senhor que ele era um ingênuosonhador. Que engano! Quem disse isso desconhececompletamente minha índole e meu ser. Sonhadoras são aspessoas que vivem nas ilusões do dia, que dormem com aspálpebras bem abertas, que se esquecem de si mesmas. Jesusnunca foi um sonhador. Tanto que ele recriminou os discípulos

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que dormiam ao invés de vigiar. Creio que nunca houve umhomem tão desperto.” “Suas palavras me fascinam, conde.” “Não se deixe arrastar pelas palavras. Embora eu tenhaconhecido alguns habilidosos artífices do verbo. O dramaturgode Stratford-upon-Avon foi um deles.” “Não sei de quem o senhor está falando.” “Refiro-me a William Shakespeare, senhorita. Stratford-upon-Avon é a cidade onde ele nasceu. A fama dele chegou à Françarecentemente. Já há quem diga que talvez se trate do maiordramaturgo de todos os tempos, a despeito dos admiradores deRacine e Corneille.” “Ah, sim. Já vi uma peça de William Shakespeare. Sobre umpríncipe da Dinamarca...Hamlet! Em que o protagonista sequestionava sobre sua essência. Mas a caveira me pareceu umelemento mórbido, um tanto assustador, diria até que grotesco.” “A caveira...A morte, a finitude...É isso que a atormenta?” “Natural que atormente a mim e não ao senhor, que é umimortal.” “Nem sempre fui um imortal. Já tive meu caminho pelogólgota. Quanto ao grotesco que mencionou, sinto que osventos da arte estão se movendo em direção a um gosto queabrange uma mescla entre o trivial, o absurdo e o trágico, o quecoaduna com a arte de Shakespeare. Se hoje ele está sendocelebrado, ainda será muito mais. As folhas do livro daProvidência, à medida que são movidas pelas mãos de seusleitores, recebem a areia dos ventos do tempo.” “O senhor também é um profeta?” “Há momentos em que tento ser, mas não que eu possua dompara essa arte. Tenho vislumbres. Brilhantes talvez, mas nãopassam de olhadelas para o sol que há fora da gruta.” “Se o senhor vive em uma gruta, onde nos situamos nós,

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comuns mortais?” “Não me atreveria a dizer. Shakespeare era um mortal e seuolhar era brilhante e agudo. Ainda que fosse talvez por demaisvaidoso. Lembro-me de uma discussão que teve com outroescritor de seu tempo, Ben Johnson. Os dois foram meusamigos e estávamos juntos conversando na Mermaid Tavern,um curioso local onde se reuniam muitos homens de gênio daInglaterra daqueles tempos. Johnson no começo era muitocrítico em relação a Shakespeare. Bradou que havia uma linhatotalmente despida de sentido em sua peça sobre Júlio César, eque Sonho de Uma Noite de Verão não poderia se passar nacosta da Boêmia simplesmente porque o reino da Boêmia nãotem saída para o mar!” “Sobre isso não posso discutir, porque não vi as peças.” “Shakespeare estava longe de ser uma unanimidade. RobertGreene, outro escritor daqueles tempos, acusava-o de nãopassar de um ator com suficiente temeridade para se considerarum autor. Não acreditando que um ator podia escrever tão bemou melhor do que experientes autores de formaçãouniversitária, dizia que não passava de um corvo enfeitado complumas coloridas, que roubava ideias alheias. Apelidou-o de“Shake-scene”, ou seja, considerava-o um autor de cenas defalso impacto. Quanto à costa da Boêmia e à frase desconexaem Júlio César, Shakespeare citou suas fontes para BenJohnson, mencionou o próprio Greene como tendo falado deuma saída para o mar no reino da Boêmia em tempos maisantigos, e afirmou que, se o colega não entendera o trecho, eraporque precisava lê-lo mais atentamente. Ben ficou nervoso edeixou a taverna. Mas apesar de crítico ele reconhecia talentoem William, ao contrário de Greene. Valorizava-o tambémcomo ator, tanto que quis que sua companhia representassealgumas de suas peças. Shakespeare era um intérprete

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excepcional, tanto que não me lembro de ter visto melhorHamlet do que seu próprio criador. Ele sabia ser senhor de umaimaginação livre e grandiosa, suas mais profundas impressõese expressões escorrendo com uma fluidez que era impossíveldeter. Ao mesmo tempo, tinha seus momentos de melancolia.Cheguei a consolá-lo por alguns amores. Certa vez, estavanuma condição tão perturbada que alegou ter concluído que avida não passava de uma história narrada por um imbecil,repleta de som e fúria, encerrada no nada.” “Mas o senhor evidentemente não compartilha dessa opinião.” “A vida ordinária, dos que só se preocupam com as coisas,que se apegam a pequenos tesouros, é talvez uma formadesesperada de escapar de um brado perseguidor. A fúria ficapara trás, sob camadas de cortinas sombrias. Mas há muito a sedescobrir adiante, e acima, sem que seja necessário olhar paratrás com temor. O próprio Shakespeare, em seus melhoresmomentos, sabia contemplar o passado, ciente de suas dívidaspara com ele, sem ser aterrorizado ou idolatrá-lo. Era umhomem, como me dizia Johnson, que tinha poucoconhecimento de latim e menos ainda de grego; não era umclassicista disciplinado. Contudo, mais do que pertencer a seutempo, pertencia a todos os tempos.” “De certa maneira, ele também se tornou um imortal.” “O que, de onde ele se encontra, deve estar satisfazendo suavaidade. Todas as vezes em que voltei a Londres depois damorte de William, tive o prazer de rever alguma de suas peças.” “O senhor chegou a conhecer a rainha Elisabete?” “Não só a conheci como lhe apresentei algumas de minhasmelhores joias. Entreguei-lhe de presente uma cruz de pratacom magníficas pedras brancas e esmeraldas incrustadas. Umobjeto que combinava com o esplendor da Rainha Virgem. Elaaceitou, mas dias depois me pediu perdão.”

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“Por quê?” “Porque duvidou da autenticidade das pedras e mandou fazerum exame. Depois que comprovou serem legítimas, sentiu terduvidado de minha boa fé, de minha alquimia.” “Como o senhor se apresentava? Qual era sua identidadenaquela época?” “Apresentava-me como um obscuro nobre alemão, umreservado apreciador da Arte e das ciências.” “Especulavam sobre as suas origens? Tenho que confessar queeu mesma já ouvi muitas versões, algumas das mais absurdas.”,ao comentar sobre isso, não pude não corar. “O senhor deveconhecê-las todas. Além do charlatão que mencionou.” “Já escutei que seria filho da viúva de Carlos II da Espanhacom o conde de Adanero. Ou que seria filho de uma judiaportuguesa chamada Aymar, ou de um judeu alsaciano de nomeWolff. Não tenho nada contra os judeus, contra o povo deAbraão, Isaque e Jacó, mas os que são ignorantes e os veemcomo inferiores ou amaldiçoados tentam me denegrir com essetipo de história.” “Eu já ouvi essas versões referentes aos judeus.”, a conversa ea experiência ainda seriam longas. Mas por hoje cesso, poisminha mão está cansada. Não me lembro de já ter escrito tanto.Retomarei o restante do relato amanhã. Espero que a memórianão me traia.

Paris, 22 de janeiro de 1759: Dormi muito pouco. O condenão chegou a me perguntar se eu queria me tornar uma Artista.Mas creio que isso está implícito em tudo o que ele me falou. Avoz dele não sai de minha mente. Seu tom, sua bondade, suasabedoria. Por que ele me teria revelado seus segredos se nãopor uma razão maior? Um homem de inteligência tão refinadanão necessita de discursos óbvios e convites diretos. Tenho que

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lhe dizer o que desejo me tornar. Direi amanhã. Quanto à conversa que comecei a relatar ontem, parece agoramais nítida e forte em minha recordação do que nos instantesem que ocorreu. Ou talvez não. Talvez eu esteja subestimandoa intensidade daqueles momentos porque o presente tende aparecer verão e o passado outono, mesmo quando foi verão. Asfolhas devem estar caindo agora. Só não parecem secas. Quando terminamos de falar sobre as absurdas versões quantoàs suas origens, perguntei ao conde qual outro personagemilustre ele conhecera na Inglaterra durante a época da rainhaElisabete. Ele me respondeu: “Durante muito tempo,permaneci sem me apresentar ao mundo, a não ser em ocasiõespontuais, sem exibir qualquer identidade. Escolhi me separartemporariamente de meus irmãos maiores e voltar a andar entreos irmãos menores, passando-me por um deles, justamente naInglaterra, porque discerni um magnífico florescer em cursonaquele país. Logo comecei a ficar mais conhecido entre os círculos doshomens da mais elevada inteligência. Comentava-se sobre omeu encontro com a rainha Elisabete. E foi assim que chegueia receber um convite da Knights of the Helmet, a sociedade doscavaleiros do Elmo, que faziam referência ao capacete dadeusa Atena. Você já deve ter ouvido falar da grande deusaAtena...” “Claro que sim. A deusa da sabedoria e da guerra justa entreos gregos.”, respondi até com uma contida indignação, afinal oconde já devia ter percebido que não sou uma simplesignorante, por mais que tantas coisas eu realmente ignore. “Essa é a definição mais curta. Atena presidia todos osaspectos intelectuais e morais da vida humana segundo osantigos gregos. Era patrona até mesmo da tecelagem, à qualgarantia não só utilidade como elegância e delicadeza.

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Personificava as virtudes da Prudência, da Coragem e daPerseverança. Protegia os Estados dos inimigos externos. Eravista como a inventora dos instrumentos musicais. Seuemblema, a grinalda de oliveira, abrangia a grandeza da paz, daverdadeira paz, não da mera trégua. Saída da cabeça de Zeus,era criadora e preservadora, portando consigo a lança douradado conhecimento, com a qual golpeava e perfurava a serpenteda ignorância, uma filha de Tifão que insistia em ameaçar seuspés. Quando os raios do sol tocavam o metal de uma arma e ofaziam resplandecer, era evidente que Atena estava sacudindosua lança no céu. Em inglês, shaking her spear. Foi por issoque no início pensei que Shakespeare fosse um nome iniciático,referente à grande deusa.” “Shakespeare era membro dessa ordem?” “Sim. Mas não se encontrava numa posição elevada quando oconheci. E logo vim a saber que Shakespeare era mesmo seunome de família. Ou seja, uma magnífica coincidência. Deus,quando lança seus dados, produz resultados surpreendentes.Seus jogos vivem nos deixando perplexos.” “Quem estava acima de Shakespeare?” “Muitos grandes magos, cientistas, sacerdotes e sábios. Entreestes, o principal era sem dúvida seu fundador, Francis Bacon,que estava em constante contato com os rosa-cruzes, os maçonse outras importantes sociedades secretas.” “Qual afinal é a verdadeira origem dos maçons?” “Essa é uma longa história, minha cara. Enraíza-se nosmestres construtores das catedrais medievais. Estes deramorigem a uma poderosa corporação, à qual posteriormente sejuntariam sobreviventes dos templários, em especial franceses,tão violentamente suprimidos por Filipe IV, o Belo.” “Qual é afinal o objetivo atual dos maçons?” “Não posso responder isso porque não sou um maçom,

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embora alguns creiam nisso. O pouco que sei é que há muitascorrentes na maçonaria dos dias de hoje. Portanto, não são umbloco coeso o bastante para que se possa dizer: 'eles desejamisso', 'eles ambicionam aquilo'. Posso falar dos Cavaleiros doElmo, isso sim, pois fui um deles.” “Perdão, conde. É que o senhor aguça minha curiosidade.” “Eu a perdoo, minha cara. Mas retomando o que ia dizendo,não é por acaso que Shakespeare foi rapidamente aceito comoum membro da sociedade: pois uma de suas finalidades eraestabelecer uma língua inglesa rica e flexível, que deveria emtodos os aspectos tomar o lugar do latim. Bacon tambémalmejava o progresso das ciência, sua obra A Nova Atlântidasendo uma clara expressão de suas concepções. Quanto aoutras obras, voltadas aos iniciados, a fim de não causarproblemas para si mesmo, preferia assiná-las sob anagramas ouselos numéricos, como 157 e 287, que eram utilizados tambémpor outros integrantes da sociedade, o que evidenciava que oconhecimento produzido pelo grupo era de todos, não apenasde um. Eu próprio redigi desde grimórios e tratados dealquimia a breves alegorias literárias.” “Mas esses textos ainda estão disponíveis ou foramperdidos?” “A sociedade dos Cavaleiros do Elmo foi incorporada pelosrosa-cruzes. Há muito tempo que não tenho mais acesso aosseus documentos, pois me distanciei. Não creio que muitotenha sido perdido, mas pouco deve estar acessível aos nãoiniciados, entre os quais eu teoricamente poderia ser incluído.” “Não tem interesse em voltar a participar de uma sociedadesecreta?” “Prefiro agora me manter livre enquanto ando pelo mundo. Asnações me fascinam, mas depois de algum tempo começam ame trazer enfado. Da mesma forma, os grupos formados por

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crianças e adolescentes que se creem adultos. Não digo isso porsoberba, afinal o reino do Céu pertence aos pequeninos e osque se exaltam serão humilhados e os que se humilham serãoexaltados. Falo como um velho observador, sem preconceitoscom os mais jovens.” “Da Inglaterra para onde o senhor seguiu?” “Foi uma partida brusca. Num dia, acordei com o pensamentoque minha missão em solo anglo-saxão estava cumprida e parti.Não avisei os meus companheiros. E foi melhor assim, poisnão posso me apegar àqueles que a aurora corrói, Titônios quemurcham e passam ao pó. São outros e distantes meus pais eirmãos.”, estas palavras poderiam ter me abatido. O condetalvez estivesse me testando. Mas o meu coração continuou abater com tranquilidade. Fiquei mais atordoada depois dele não estar mais em minhapresença. O conde já semeara e a semente caíra em terrenofértil. Espero que ao nascer a planta não sangre a terra comoocorre à mãe quando a criança vem ao mundo. O solo sangrar,ainda mais o solo fértil, não é nenhum absurdo, sobretudodepois do que recentemente ocorreu. Dando prosseguimento ao relato do conde, ele me contou quese moveu para a Hungria, onde permaneceu por décadas. Lá,conheceu a terrível condessa Báthory: “Uma das mulheres maisimponentes e assustadoras que já existiram neste mundo.” “Já ouvi falar dessa condessa, que era muito cruel. Mas quemafinal era ela e o que a tornou assim?” “Alguns a chamaram condessa Drácula, um apelidoperfeitamente adequado. Chegaram a compará-la a um dragãoou demônio em forma de mulher. A sua família, os Bathory-Ecsed, fazia parte de um importante clã protestante da Hungria.Sua árvore genealógica era ilustre, incluindo heróis de guerra,um cardeal e um rei da Polônia. Contudo, por trás das belas

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aparências, havia incestos e uniões pouco recomendáveis.Erzsébet Báthory, assim ela se chamava, desde sua infânciadava sinais de desequilíbrio. Num momento estava tranquila,brincando com seus gatos. De repente, enfurecia-se e insultavaseus pais e quem mais estivesse por perto. Aos seis anos deidade, foi testemunha de um fato que marcaria sua alma parasempre: este envolveu um bando de ciganos que foraconvidado à sua casa aparentemente para entreter a corte dosenhor de Nyírbátor e irmão do príncipe da Transilvânia, o paide Erzsébet, George Báthory. George era um homemextremamente duro e frio, que considerava que em seusdomínios qualquer crime deveria ser punido com implacávelrigor, independentemente de quem o cometesse. Na verdadechamara os ciganos não porque queria ouvir música ou verdanças: era um indivíduo insensível, indiferente à arte. O quepretendia era dar mostra de seu senso de justiça, que presumiaser grandioso. Seus guardas cercaram os ciganos, interrompendo seusmalabarismos. Ninguém entendia o que estava acontecendo.Então George Báthory apontou para um dos homens e disse:'Sei que você vendeu seus próprios filhos aos turcos.Vergonha!' O senhor de Nyírbátor tinha homens espalhados por toda aTransilvânia. Dizia serem seus olhos. O cigano implorou porperdão, mas ninguém poderia ajudá-lo naquela hora. Para a exibição dos ciganos, apenas os adultos tinham sidoconvidados. Estavam lá diversos vassalos e alguns parentes dosenhor de Nyírbátor. Erzsébet ficara em seu quarto. Mas aoalvorecer os gritos do condenado chegaram até sua torre. Ela,que era muito pequena, sorrateiramente alcançou o pátio, ondedeu de cara com o que estava acontecendo: os soldadoscortaram o ventre de um cavalo amarrado ao chão e o cigano,

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que já fora espancado e torturado, foi colocado dentro doanimal. Um dos homens depois costurou a abertura, ficandopara fora apenas a cabeça.” “Meu Deus, que horror!” “Erzsébet, que já não era uma criança comum, num primeiromomento correu e se afastou para regurgitar. Só então que ossoldados, tão entretidos em sua crueldade, a notaram. Um delesa seguiu, mas não houve vômito. E percebeu que era cada vezmais agradável relembrar as imagens da execução. Era comorespirar mais profundamente, embora ofegasse. O soldado lheperguntou se estava bem e temeu pela ira de seu senhor, poistinham deixado aberta a porta do pátio onde iriam realizar aexecução. Como a menina não respondia, emendou algo como'Da próxima vez evite entrar nos locais dos adultos, senhoritaErzsébet. Nem todas as portas estão abertas para as crianças.' Ela então se voltou para ele com um olhar carregado comtanto ódio, mas tanto, que parecia impossível que pudesse semanifestar no rosto de uma criança, de alguém com tão poucavivência. Era como o olhar de um demônio antigo,terrivelmente velho, com um ressentimento implacável contra ogênero humano. O soldado só conseguiu recuperar osmovimentos, suando frio, quando Erzsébet lhe deu as costas ese foi. Pela sua mente, naquele momento, passavam asmaneiras mais dolorosas daquele homem morrer.” “Que coisa horrível!” “Mas esta história ainda está longe de terminar...Ela estavacom onze anos quando ficou noiva de Ferenc Nádasdy, umconde sete anos mais velho, e foi viver no castelo de Sárvar,perto da fronteira austríaca. Se quiser, pode ver um pouco doque ela foi pela esfera de obsidiana...Podemos inclusiveverificar em que condição sua alma se encontra nos dias dehoje.”, tive um certo receio quanto a isso. Em que condição

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poderia estar a alma de uma mulher diria até que diabólica,assim tão cruel? Mas ele quase que imediatamente me corrigiu,ao que parecia tendo lido meu pensamento: “Não se esqueçaque o mal não é uma condição permanente nem mesmo para ospiores dragões. É um estado de desvio e ignorância, que podeser corrigido, ainda que essa correção acarrete em grandessacrifícios para os que estão apegados à sua ilusória sensaçãode poder.” Olhei para a esfera e logo as imagens começaram a se formar.Vi uma menina sendo colocada sobre uma ampla mesa,oferecida ao que já era um rapaz de corpo bem formado. A mulher que ordenara que a menina fosse apanhada devia sera mãe de Erzsébet, que falou primeiro: “Agora, vamos unir asnossas famílias.”, seguiu-se uma grande festa, ao final da qualos noivos foram cada um para o seu lado. Só consumariam aunião quando ela tivesse idade suficiente. Ela tinha treze anos quando visitou seu primo, Gabor, que setornara o novo príncipe da Transilvânia com a morte de seu pai,tio de Erzsébet. Tratava-se de um rapaz de aparência gentil.Mas diante de uma rebelião de camponeses, suprimiu-a comextrema violência, mandando cortar narizes e orelhas dosrevoltosos e de seus fomentadores. A jovem Báthory, que estava presente com seu pai, numprimeiro momento quis virar o rosto e olhar para o outro lado.Mas depois, lembrando-se do homem que fora fechado dentrodo cavalo, fixou os olhos na cena cruenta. Havia curiosidade,estava claro. E um prazer que transcendia a curiosidade.Parecia que desde cedo ela atraía o sangue, mesmo sem ser aassassina. Pouco tempo depois reencontrou seu prometido Ferenc e ocasamento foi celebrado com pompa, convidado para acerimônia inclusive o imperador Maximiliano, que, se não

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pôde estar ali, ao menos enviou uma delegação e uma joiapreciosa como presente. Foram para o aposento nupcial. Antes da menina subir, a mãeainda disse: “Não confunda nunca assuntos de casamento comassuntos de amor. Casamento é família e necessidade, dever econtinuidade. O amor é pecado. Nunca se esqueça: uma mulhercasta não deve ficar nua nem mesmo para o seu marido.” Quando ficou com seu noivo, Erzsébet mostrava umsemblante frio, quase indiferente. Confessou-lhe: “Eu não sei oque devo fazer para termos filhos.” Ferenc sorriu, acariciando-lhe os cabelos: “Não se preocupe.Eu vou lhe ensinar.”, já devia ter tido experiências comrameiras e criadas. Pelo que senti, a jovem Báthory não estavae nem se sentia preparada para o que viria, e para isso talvez eutambém não esteja, e nenhuma jovem talvez esteja desde oinício. Mas ela não recuou, deixou-se conduzir pelo marido, eem pouco tempo havia caído no pecado contra o qual a mãe atinha advertido. Montava nas costas do marido, muito maior doque ela, e dando-lhe carinhosos golpes nas costas chamava-o:“Meu cavaleiro negro!”, aquela visão me fez sentir até umpouco de empatia por ela. Vê-la sorrindo era raro, mesmoquando muito jovem, isso ficando evidente pelas imagens queapareciam e pelo que o conde me dizia, explicando-mealgumas situações. Ferenc se afeiçoou à jovem esposa, mas era um homem deguerra, bastante cruel, desde cedo habituado aos campos debatalha contra os turcos. Estudara em Viena, onde se destacaramais por ser um excelente atleta do que como estudante. Faziaparte de um grupo de espadachins conhecido como o “QuintetoTerrível”, do qual também fazia parte Thurzo, seu melhoramigo, também de importante família, que nutria uma atraçãosecreta por Erzsébet.

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Numa ocasião, a batalha contra os muçulmanos pareciaganha, os húngaros invadiram o acampamento inimigo eacreditaram que toda a resistência se esvaíra, pois só haviamulheres por perto. Já tinham começado a estuprá-las quandosoldados turcos que estavam escondidos nas tendas, sob tecidose objetos diversos, irromperam. O contra-ataque foi tremendo emuitos húngaros foram mortos ou capturados, poucosconseguiram fugir. Entre os capturados, Thurzo e Ferenc, queacompanharam do alto da torre em que ficaram presos asprimeiras execuções de prisioneiros, decapitados pelos turcos.Um dos seus carcereiros deixou bem claro: “Amanhã será a vezde vocês.”, mas os dois conseguiram habilmente escapardurante a madrugada. O castelo onde estavam já pertencera àfamília de Thurzo, que conhecia todas as suas entranhas.Ferenc jurou-lhe eterna gratidão. Como senhor, Nádasdy não era nada generoso ou compassivo.Para punir um servo que lhe faltara com o respeito, mandouchamar a filha do homem, que era muda. O sujeito imploroupor piedade, mas o conde não quis ouvi-lo e fez com que osguardas enchessem o corpo da garota de mel, deixando-a pertode uma das colmeias de suas terras. Com Ferenc ficando muito tempo longe na guerra, Erzsébetassumiu a responsabilidade de gerenciar o castelo e suascercanias. Era impetuosa em sua postura. Gostava de se trajarcomo homem e de treinar com a espada. Acreditava que assimsaberia se defender contra os turcos se fosse necessário. Erafascinada pela história do conde Vlad Tepes, o Empalador. Na ausência do marido, não conseguiu conter sua luxúria, queele mesmo despertara. Envolveu-se com um jovem e belocriado. Deleitava-se também em humilhá-lo: certa vez, ordenouque descesse da carruagem em que estavam; a seguir, mandouque se despisse e lhe entregasse os trajes; o jovem brincou,

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quando ficou nu: “Pelo visto, me acha mesmo muito atraente,condessa!” Então ela falou ao cocheiro: “Vamos embora.”, e o homem,desesperado, teve que correr atrás da carruagem sem nenhumaroupa. Não foi seu único amante. Seguiram-se outros. Com sua tiaKarla, participou de orgias. Mas esse rapaz, Laszlo, foi o únicoque de alguma forma a cativou. Era inteligente. Conversavampor horas sobre anatomia. O jovem lhe dizia que tinha o sonhode estudar medicina. Mas para isso teria que ter nascido livre.Dizia: “Gostaria de encontrar a cura de todas as enfermidades.E para a maior de todas: a velhice.”, ouvindo aquilo, Erzsébetse sentiu profundamente incomodada e perguntou: “Você achaque uma mulher se torna desprezível depois de velha?” Ele, parecendo um pouco receoso, respondeu: “Não, nãotodas as mulheres.” Mas ela insistiu: “Pode ser sincero. Você nunca se deitariacom uma mulher enrugada. Quando eu ficar velha, nem você enem Ferenc vão mais querer saber de mim.” “Não diga isso, condessa.” “Eu não sou ingênua!”, ficou bastante irritada, desprezando-opelos dias seguintes. Quando o chamou de volta, foi não parauma noite de amor, mas para saber onde obtivera osconhecimentos de anatomia que possuía. Erzsébet tinha muitoslivros à disposição e sempre fora culta e curiosa, sabendo ofrancês, o alemão e o latim. Laszlo respondeu: “Conheço umacurandeira. Minha mãe me dizia que ela é uma bruxa e que eunão devia me aproximar dela. Mas desde pequeno a visitava.Ela me deu um anel quando eu passeava na floresta. Desdeentão, nunca a esqueci. E ela me ensinou tudo o que sei.” “Deixe-me ver esse anel.”, a condessa pediu, e o rapaz omostrou, um anel de ouro com um magnífico rubi encravado.

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No rubi, estavam inscritos símbolos mágicos. Erzsébetcomentou: “Parece que você nunca observou esta pedra com adevida atenção.” “Por que diz isso, senhora?” “Não sente o que ela emana? Não vê os símbolos que estãonela, que devem ter sido gravados pela feiticeira?”, mas mesmodepois de observar melhor o rubi, Laszlo não viu nada.Erzsébet ficou perplexa: “Mas como é possível? Por que estouvendo essas coisas?”, e o jovem pela primeira vez teve muitomedo de sua senhora e amante. Erzsébet exigiu que lhe indicasse o caminho até a curandeira,que se chamava Anna Darvulia. Vivia em uma cabana obscura na floresta. Laszlo tinha-lhedito que se tratava de uma mulher muito idosa. Bateu, dizendoque era a condessa, e a porta foi aberta. Para sua surpresa,deparou-se com uma jovem no auge de sua beleza. Observou oque lhe parecia evidente: “Você deve ser uma aprendiz de AnnaDarvulia. Onde está a sua senhora?” “A senhora que se engana, condessa. Eu sou Anna Darvulia.”,explicando na sequência, ante a perplexidade de Erzsébet:“Apareço jovem apenas a quem desejo. E a senhora tenhocerteza que gostaria de ser jovem pela eternidade. Vejo que estáusando o anel que entreguei a Laszlo. Tudo saiu como oesperado.” “Esperado por quem?” “Pelos deuses.” “Que eu saiba, só existe um Deus.” “Não, minha senhora, claro que não! Os deuses são inúmeros!Mas os homens mais tolos reduzem tudo a um, porque queremsimplificar a realidade, ou confundem deuses com demônios.” “O que esse anel significa?” “Laszlo foi apenas um meio. Os deuses me disseram que

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através dele eu encontraria minha discípula, a filha de meuespírito. Aposto que a senhora conseguiu ver os símboloscontidos no rubi.” “Sim, eu vi! Mas...Isso não faz sentido.” “Faz tanto sentido que a senhora se recusa a entender eaceitar. Mas não se preocupe. A sabedoria virá com o tempo...”,estava claro que Darvulia lhe inspirava ao mesmo tempo terrore fascínio. O conde de Saint Germain explicou-me que Darvulia era umanefilim, um ser humano que à beira de sua morte vende suaalma a um poderoso demônio, continuando neste mundo comoseu filho adotivo, adquirindo uma imortalidade que não é a dosAdeptos, dos alquimistas realizados, pois não passa de umescravo do Inferno, de um desertor da humanidade. Suasobrevida depende das vidas de outros seres, das quais sealimenta; em suma, um terrível vampiro. Darvulia em particular acreditou que poderia usar a cruelingenuidade de Erzsébet, com toda sua violência ainda contida,para realizar seus sombrios intentos. Diante de Laszlo e dos que a conheciam há muito tempo, erauma velha encarquilhada. Já ante os homens que desejava esuas aprendizes, mostrava-se incrivelmente bela e atraente. Erzsébet Báthory pariu três filhas e um filho para seu marido:com suas crianças, era protetora e atenta. Cumpria assim seudever como esposa. Mas como mulher chegou à conclusão quesó poderia se realizar no esforço de humilhar a natureza. Anna Darvulia iniciou-a na magia negra. Tornando-se nasaparências sua criada, era em verdade sua professora. Esperavauma discípula submissa, uma seguidora fiel. Não cogitava umatraição de seus “deuses”. Os professores do mal raramente refletem que, se o aluno fortão bom ou melhor do que eles, seu fim tende a estar próximo.

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Báthory foi generosa ao menos com Laszlo, dando-lhe aliberdade e, junto com um punhado de terras, um título. Darvulia centrava seus ensinamentos na concepção de que osangue dos puros, como virgens e crianças, rejuvenescia. Masantes, para convencer a condessa, fez com que participasse deum ritual de magia negra em que convocaria uma de suas“divindades”. O escolhido para o ocasião foi Belial. Antes do início da evocação, advertira: “Os deuses podem serapavorantes. Mas não tema, minha jovem aprendiz.”, disse,acariciando-lhe o queixo, enquanto Erzsébet mostrava umsemblante tranquilo. Quando o nome do demônio foi chamado, depois de sacrificaralguns pequenos animais no interior do círculo mágico, umanévoa escura formou-se no triângulo traçado fora do círculo.Nesta, rostos disformes. Primeiro, vieram para Erzsébet anáusea e o desconforto. Mas depois, enquanto começava aofegar, a aflição deu lugar ao que me pareceu uma ira extática. Quando a condessa liberou uma gargalhada furiosa, que quasefez empalidecer a própria Anna, manifestou-se a criatura, aprincípio uma massa amorfa, com chifres e um único olho.Pelo olhar, Báthory recebeu sua marca. Darvulia caiu dejoelhos, enquanto sua aprendiz, de pé, tecia louvores e insultos,os primeiros para Belial, os segundos contra Deus. O demônionão podia sorrir, mas estava satisfeito. Tempos depois, já iniciada nas trevas, Erzsébet conheceuDorothea Szentes, uma feiticeira com conhecimentosequiparáveis aos de Darvulia, embora não fosse uma nefilim.Esta contava com um sombrio ajudante, um criado chamadoThorko. A respeito deste, a condessa escreveu a seguinte cartaao marido:

“Aprendi com Thorko uma deliciosa técnica: pegue uma

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galinha preta e golpeie-a até a morte com uma vara branca.Conserve o seu sangue e espalhe um pouco no seu inimigo. Senão tiver oportunidade de chegar próximo, faça de maneira tala encontrar uma de suas roupas e nela espalhar o sangue. Empouco tempo, ele encontrará a morte.”

A crueldade de Erzsébet só aumentava. Não tinha mais amenor paciência com as criadas. Considerando uma afrontaintolerável a fuga de uma serva, a punição para isso era semprea morte. Uma noite, Dora, uma menina de doze anos,conseguiu fugir do castelo vestindo apenas uma camisa branca.Foi pega e conduzida à condessa, que, nas masmorras, a forçoua entrar em uma gaiola cilíndrica estreita demais para que sesentasse e baixa demais para que ficasse de pé. Ademais, aoinvés de barras, era formada por lâminas. Ordenou que fosseerguida até o teto, com Thorko usando uma longa lança, com aqual espetava a pobre prisioneira. Esta gritava e se debatia,assim se cortando nas lâminas da jaula. O sangue caía e acondessa o recebia fresco em seu rosto. O motivo das fugas era evidentemente o medo que as servassentiam de Erzsébet, um temor crescente, do receio por suaseveridade ao máximo terror, quando algumas descobriram queestava envolvida com práticas demoníacas. Uma outra criada estava cortando os seus cabelos quando porum deslize a feriu no pescoço. Erzsébet ficou furiosa.Perguntou: “Por acaso está querendo me matar?”, a mulherchorou e implorou por piedade, tentando convencê-la que setratara apenas de um incidente. Mas foi em vão: Báthory aespancou. Entrementes, como não era mais virgem, seu sanguede nada valia: foi por isso entregue a Thorko, que poderia fazercom ela o que bem entendesse. O próprio Ferenc provou do mal que havia em sua esposa,

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também por ele provocado: certa noite, chegou bêbado apósmuito tempo na guerra; cheirava a álcool e outras mulheres.Atacou Erzsébet e começou a violentá-la. Um dos cães dacondessa, um grande mastim, talvez sob a influência de umespírito maligno, chegou a investir contra o marido. Mas foimorto porque este ainda portava sua espada. Quando Ferenc adeixou, a cama estava encharcada de sangue. Erzsébet não operdoaria pela forma como a tratara. Se ainda tinha bonssentimentos pelo marido, todos se esvaíram naquela noite.Questionou-se, inclusive: “Para que serve um marido que vaificar feio, velho e decrépito?” Poucos meses depois, durante uma batalha, Ferenc foiatingido pelo disparo de um canhão turco e sucumbiu. Antesdisso, Báthory chamara por Belial e lhe pedira por vingança.As velas se apagaram durante o ritual, sinal que a vida de seumarido iria se extinguir, No enterro, simulou profunda tristeza. Mas por dentro estavacada vez mais fascinada com seus êxitos. Com a morte tambémde seu pai, tornou-se uma das mais poderosas senhoras deterras da Europa e a viúva mais cobiçada de toda a Hungria.Thurzo não iria perder a oportunidade de lhe propor casamento,isso durante o sepultamento de George Báthory: “Sei que é ummomento de dor, com duas grandes perdas em sequência. Quetalvez eu esteja sendo inconveniente. Mas não me agrada veruma mulher só e desprotegida.” Erzsébet respondeu, desejando rir, mas mantendo umsemblante coerente com seus olhos úmidos: “Sei muito bemme defender e não estou tão só quanto você acredita.” Sentindo-se ofendido pela rejeição, Thurzo retrucou: “Seumarido acabou de morrer e já está se deitando com rapazinhos.Na verdade, sei que se deitava com eles antes da morte deFerenc! É por isso que não deseja um novo marido, não é!?

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Pensa que me engana...” Báthory replicou sem perder a compostura: “Você tiroudeduções equivocadas. Quando disse que não estou sozinha, éporque tenho meus servos, minhas criadas, meus cães e meusleais cavaleiros. Além do meu primo Gabor.” “Não foi nenhuma dedução apressada e você sabe disso! Digoo que sei e ouvi!” “O povo diz muitas besteiras. Prefere a lenda e a superstição àrealidade. E você não viu nada. Vivia em campanha com o meumarido. Cuja memória não está respeitando ao me assediar. Eraou não amigo de Ferenc? Acha que nunca percebi os seusolhares para mim, tão repletos de luxúria?” “Tenho muitos olhos e ouvidos, espalhados por toda aHungria.” “Eu também tenho alguns. Aprendi com o meu pai. Que Deuso tenha.” “Apenas o seu berço é nobre. A sua alma é podre.” “E a sua? Se me deitasse com rapazinhos, não estaria fazendopior do que Ferenc fazia, e você com ele, atrás de rameiras portodos os cantos do reino.” “Uma mulher deve ser casta.” “Casta eu poderia ser, mas não sou tola.” Thurzo se retirou ressentido. Erzsébet não o temia. E seguiucom suas crueldades. Em pleno inverno, ordenou que fossem deixadas nuas nopátio jovens criadas que haviam lhe respondido de uma formaque não a agradara. Da janela no alto, jogou-lhes água. Asservas morreram e depois seu sangue serviu para encher abanheira em que mergulhava. Houve uma oportunidade em que estava nas ruas, em suacarruagem, e perguntou a um de seus amantes, apontando parauma idosa mendiga: “O que faria se tivesse que beijar uma

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bruxa velha como aquela?” O rapaz respondeu: “Eu nunca a beijaria. Simplesmentecuspiria nela.” Só que a velha escutou: “A idade não estragou os meusouvidos! Ouço o que diz, condessa. Saiba que mesmo para umamulher na sua posição, a degeneração física é inevitável! Aliás,ainda mais para uma mulher como a senhora.” Erzsébet ficou furiosa e mandou acossarem a velha. Mas esta,habituada às ruas, já se esgueirara entre as sombras edesaparecera. Dias depois, ao perceber uma ruga em seu rosto, a condessaficou terrivelmente furiosa. Concluiu que Darvulia a estavaenganando. Não que o sangue de virgens e crianças nãofuncionasse: mas a bruxa estaria trapaceando de algumamaneira, talvez retirando algo da essência vital do sangue parasi. “Estou sendo usada!”, bradou para Belial em mais umacerimônia sombria que realizou para o demônio. Este, ao invésde tentar convencê-la do contrário, alimentou seusressentimentos e ofereceu-se para destruir a feiticeira que elemesmo tornara uma nefilim. Erzsébet realizou um ritual, do qual tomaram parte tambémThorko e Dorothea, que via Darvulia como uma rival, em quedezenas de jovens foram esfaqueadas e tiveram as gargantascortadas. Seu sangue foi em parte tomado, em outra parcelareservado para poções cujo preparo Belial lhes transmitiu e queincluía urina e ervas diversas. Entregues estes preparados a jovens camponeses que acondessa mandou capturar, e em seus corpos gravados a ferroquente selos infernais, foram possuídos por demônios da hostede Belial. Demônios de categoria inferior, mas ainda assimperigosíssimos para a humanidade e mesmo para certos seres

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para além dela. Chamada ao castelo, Darvulia foi sem imaginar o que estavaocorrendo, pois Belial turvara sua percepção. Quando menosesperava, os possuídos a atacaram. Em alguns haviam crescidogarras e dentes afiados. Outros tinham lanças e espadas, e suaforça era descomunal. A bruxa foi feita em pedaços. E ospossuídos, homens estranhos, intimidantes, aterradores para opovo, que à noite atacavam as ovelhas, provocando os uivosdesesperados dos cães, dilacerando as gargantas de alguns dosanimais até ficarem satisfeitos, tornaram-se membros da guardada condessa, que passou a registrar suas vítimas em um diário,em que descrevia as caraterísticas de cada uma que mais lhechamavam a atenção. Nas aldeias, falava-se de vampiros. Por hoje agora encerro este relato, porque minha mão estáexausta do tanto que escrevi e sobre meus olhos caemcorredeiras de areia. Se não me engano, me estendi mais doque ontem, que já foi muito além do que é meu costume. Tenteime restringir, me limitar ao essencial, mas eram tantos osaspectos que me pareceram importantes que não pude abrirmão deles. Devo reconhecer que a história da condessa mefascinou. Que Deus novamente preserve minha memória. Justamenteamanhã será um dia e tanto.

Paris, 23 de janeiro de 1759 (14 p.m.): Tomei coragem e faleiao conde que desejo ser iniciada. Que me torne uma maga euma Artista. Mas sobre a resposta dele, que ainda ferve emminha mente, escreverei depois, pois primeiro convém encerraro que vinha tratando. Volto à época em que o conde chegou à Hungria. Os espíritos dos elementos permitem realizar ações incríveis.

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Impossível crer sem ver. Saint Germain, que já sentira asemanações maléficas desde que se aproximara do território dacondessa Báthory, decidira investigá-la e, por meio da magia,penetrou em suas masmorras. Tendo os elementais da terra sob sua vontade, ao tocar umaparede esta foi se diluindo, tornando-se fluida, e assim foi fácilatravessá-la. A matéria voltou ao normal no instante seguinte. Ao avançar pelos corredores e aposentos, em que a noite tinhaum feroz ar de morte, deparou-se com cadáveres estraçalhadose garotas ainda vivas com os membros amputados. Algumassangravam lentamente devido às lâminas e pontas ficadas emseus corpos, com destreza suficiente para que não fossematingidos pontos vitais e dessa maneira a morte fosse vagarosa.O conde estava invisível e imperceptível aos olhos do sádicoThorko. Mas ao subir para o andar superior e entrar no espaçoonde a condessa se banhava em sangue, a cabeça inclinada paratrás, parecendo estar em êxtase, escutou sua voz: “Quandoouvia Darvulia me falar sobre os poderes de certos magos,capazes de atravessar paredes e de falar com os animais, nuncaacreditei que fosse possível.”, então ergueu bem o pescoçoesguio e encarou Saint Germain, que deu a impressão demanter a calma, embora creio que estivesse surpreso. Elemesmo me confessou que tinha subestimado odesenvolvimento mágico da condessa Báthory, que nãoesperava que ela fosse capaz de senti-lo e vê-lo. Ainda que namagia negra, tornara-se uma iniciada com um alto grau depercepção. Continuou, diante do sorriso silencioso, sombreadoe talvez provocativo do conde: “Quem é o meu visitante dehoje? Poderia se identificar?” “Não creio que meu nome seja do interesse da senhora. Talvezeu mesmo já o tenha esquecido, em algum distante local dopassado.”

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Depois que me perguntei como podia entender tudo o quediziam. Saint Germain explicou-me que, mesmo que nãofalassem francês, eu estava acessando os registros dosacontecimentos impressos no plano astral, que minhapercepção espiritual imediatamente traduzia. Infelizmente tenho que parar de escrever agora porque souchamada para outros deveres. Mas ainda hoje voltarei a estediário.

(17 p.m.): Uma pena! Não estou conseguindo mais melembrar dos detalhes da conversa do conde com ErzsébetBáthory. Mas me lembro claramente que ela tentou seduzi-lo,que percebeu que tinha diante de si um mago de extraordináriagrandeza. Deixou sua banheira. Insinuou-se, aproximando seuslábios em vermelho vivo. O conde me disse que em nenhum momento sentiu cheiro desangue. Havia um suave aroma de rosas. Também havia pétalasbem vermelhas na banheira. A condessa, nua, arrancou algumasde flores ao seu redor e jogou-as sobre seu corpo pálido e belo.Era como se palpitassem de volúpia junto com seus seios. Atéeu, por alguns instantes, pude sentir a respiração tensa. Chegueia ficar assustada, porque parecia que o espírito de ErzsébetBáthory tinha se aproximado sem ser chamado e se insinuadodentro de mim. O conde percebeu o que se passava e me dissepara ficar tranquila, que eu apenas estava acessando registrosno plano astral. Como aprendiz na magia, isso ele não disse,digo agora, captava o que precisava saber. O conde me disse que não se sentiu tentado. Que apesar doperfume aparente havia uma podridão profunda e claramenteperceptível para ele, embora não pelas narinas e sim pela alma.Explicou-me também, com um certo tom jocoso, que ele já seachava em um estágio em que era ele o tentador das mulheres,

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não o oposto, e que só se entregava a uma caso ela seentregasse primeiro. Isso me levou a tecer muitas reflexõesimprodutivas... Quanto a Erzsébet Báthory, ficou furiosa ao ser rejeitada eainda mais, disso me lembro, depois do conde lhe ter dito queera uma flor já inteiramente murcha. Entendendo isso comouma alusão a que estava velha, ordenou aos homens possuídosque deixassem as sombras em que se ocultavam e atacassemSaint Germain. Haviam se tornado seres disformes da piorespécie. Alguns tinham adquirido feições que não se pode sequer dizerque eram animalescas. Eram monstros de outro mundo. Oscantos de suas bocas, de onde saía uma espuma acinzentada,eram repuxados de forma estranha e repugnante. Algo a que noentanto o conde estava habituado. Assim como se habituara areceber ajuda de planos mais elevados. Quando chamascomeçaram a se espalhar por todos os lados, às quais asorridente Báthory e seus auxiliares eram incólumes, pois deviater evocado o fogo do Inferno, que não faz qualquer mal aosdemônios, o conde orou pelos espíritos superiores, pois mesmoos elementais do ar não poderiam dissipar aquelas labaredas. Oque se manifestou no alto foi uma luz ofuscante para os seresperversos. Dentro dela, um anjo de asas abertas e um homemde expressão amorosa, com a aparência de um bispo. Enquantoa condessa aterrorizada sentia como se um ácido tivesse sidojogado sobre sua pele e agora se contorcia, seus ajudantes eramliteralmente dissolvidos por um calor abrasivo. O conde pôdenovamente atravessar as paredes, e desta vez sim utilizou oselementais aéreos, a fim de levitar para longe, invisível aosolhos de quem se encontrasse do lado de fora da residência dacondessa sanguinária. Todavia, alguns homens estranharam apresença de pombas brancas voando em bando ali por perto. O

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conde explicou-me depois que o bispo era São Germano deParis, um de seus protetores espirituais. Em homenagem a eleque adotaria o nome de conde de Saint Germain. Em vida,curou doentes, ajudou os pobres, salvou inocentes deincêndios. O conde lhe perguntou, e a seu Anjo Guardião, se já não erachegada a hora de dar um fim definitivo na maldade dacondessa. O santo respondeu que o tempo dela já se esgotara,que não havia necessidade de uma nova intervenção e, de fato,depois da entrada do grande iniciado em seu castelo, começoua se falar mais sobre o desaparecimento de jovens nobres daregião, e alguns corpos foram encontrados nas proximidades daresidência de Báthory. O imperador ordenou uma investigação.Seus enviados entraram às escondidas no castelo e a condessanão os percebeu, pois estava debilitada. Adoecera depois de suaexperiência com o conde e nem mesmo por meio do sanguealheio estava conseguindo recuperar o vigor. Os representantes do imperador encontraram seusinstrumentos de tortura. Nos calabouços, o horror da morte e damutilação. Por fim, sua banheira repleta de sangue. Eramprovas definitivas contra o condessa. Encontraram Thorko,prendendo-o no ato. Mesmo em más condições de saúde, acondessa foi detida, e com ela sua colaboradora DorotheaSzentes e outras participantes das práticas macabras, comoIlona Joo, além do anão Fizkco, um amigo de Thorko e umtorturador da pior espécie. Ilona teve os dedos amputados e foi queimada viva junto comThorko e Dorothea. Katalyna Beniezky, criada da condessa quese limitava a esconder os cadáveres das donzelas assassinadas eàs vezes, antes de seus sacrifícios, até lhes dava de comer,arriscando sua própria vida, recebeu apenas açoites públicos efoi perdoada pela Igreja. Báthory estava especialmente furiosa

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com ela, ao que tudo indicava proposital seu “descuido” comrelação aos corpos das moças da nobreza. Tirara proveito doadoecimento da condessa para enfim fazer com que fossedescoberta. Esperara ao menos salvar sua alma, caso fosseacusada, condenada e queimada. Ficara profundamente grata aDeus ao escapar da fogueira, caindo de joelhos e orandoenquanto chorava ao receber os golpes em praça pública. Laszlo, acusado de cumplicidade com a condessa, terminoudecapitado. E a ela própria coube ser emparedada viva em seuquarto, com apenas um furo para receber comida. Morreuquatro anos mais tarde, recusando os alimentos, deixando-semorrer de fome. Como se deve imaginar, ao deixar o corpo suaalma caiu no Abismo. Por décadas, sofreu com os tormentosimpostos por Belial. Sem ter quem rezasse por ela. Ou aomenos era o que ela pensava: o conde orava por ela. E mepropôs que chamássemos seu espírito. Depois de Samiel, eu já não podia mais me sentir insegura.Ele bradou por Erzsébet Báthory e um novo vulto começou ase delinear na esfera de obsidiana, enquanto as imagens dopassado se extinguiam. Na sequência, o vulto, agoraevidentemente feminino, deixou a esfera, tomando o espaçoimediatamente atrás. Reconheci a condessa. Havia beleza nela.Por outro lado, uma palidez e uma fraqueza extremas, além deuma emanação bolorenta, gélida e repulsiva que envolveu oespaço e desafiou os meus nervos e o meu estômago. Seusolhos pareciam hermeticamente lacrados. Seus lábiosapresentavam algumas rachaduras. O pescoço estavaressequido. Nisso, o conde me explicou: “Após tanto tempo deagonia, enfim pudemos arrancar sua alma do Abismo. Só queela necessita de um longo sono até que seu espírito desperte.Por enquanto, sua alma irá repousar, inconsciente, ao menosdistante do alcance dos demônios. Quando for o momento,

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reabrirá os olhos e se verá acolhida como nunca antes.”, aquilofoi de alguma forma uma surpresa para mim, ainda que nãototal, pois minha intuição levantara tal possibilidade. Mesmopara os piores seres humanos, o Inferno eterno, deesquecimento absoluto da Divindade, nunca foi a meu ver umacondição compatível com um Deus de amor e bondade. Todostêm o direito de voltar para o Bem. Assim como eu tenho odireito de me candidatar a me tornar uma verdadeira Artista. O conde não terminou sua história naquele dia. Parou por ali,depois que a alma visível da condessa se dissipou em umanévoa rosada. Hoje, bem cedo pela manhã, continuamos,depois dele dizer, em resposta à minha vontade: “Eu sabia quevocê ia perceber que abri a porta. Não é do meu feitio bradar:veja a porta! Ela está escancarada! Nem iria sugerir que vocêentrasse pela janela. Vejo que de fato não me equivoquei emminha escolha.” “O senhor não se arrependerá. Prometo me dedicar. Juro porDeus, por tudo o que é sagrado.”, foi o que eu lhe disse. E elerespondeu: “Lembre-se do que está nas Escrituras. Não jurempelo céu, nem pela terra. Seja o seu Sim sim, e o seu Não não.” “Seja como for, quero aprender. Quero estar a seu lado.” “Ao meu lado haverá diversos momentos em que não poderáestar. Mas Deus será cada vez mais uma presença perceptívelem sua vida, não mais um Pai distante que se encontra nosCéus. Afinal, Ele está sempre disponível para nós. Nós é quefechamos os nossos corações.”, o conde me abraçou e me sentielevar rumo aos céus. Houve um momento em que sentivergonha. Pois meus sentimentos não são completamentepuros. Mas o conde deve estar a par disso. Habituado a isso.Nenhuma neófita pode ser perfeita. Mas tenho em minha menteo firme desejo de progredir. Sei que cairei muitas vezes. Masvou me reerguer sempre.

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As lágrimas descem enquanto escrevo. Acho que só tereicondições de escrever sobre o restante da história do condeamanhã. Preciso fazer isso, pois o exemplo vivo do passadonos desperta para a importância de cada um de nossosmovimentos no presente. Apesar das emoções, estou com a mente mais clara, menosatordoada. O conde não me disse nada a respeito, mas creioque está implícito na iniciação o Silêncio. Nada direi sobreseus segredos a Madame du Housset, a menos que ele me digapara falar. Não precisarei mentir para ela. Bastará omitir.Apesar que até que ponto as mentiras podem ser evitadasquando se incorre em omissões? Percebi, refletindo atentamente, que sou eu que não meconsidero à altura de ser como o conde. O problema nunca estánele. E talvez não esteja em mim. E sim na visão que tenhodele e na visão que tenho de mim. Que Deus me auxilie avencer o medo e a falsa humildade.

Paris, 28 de janeiro de 1759 (16 p.m.): Hoje que conseguialgum tempo para voltar a escrever. Madame du Houssetinsiste em me fazer perguntas. Mas não posso respondê-las.Infelizmente. Tenho que dizer que nada sei. Que minhas idascom o conde ao castelo de Chambord são apenas passeios econversas abstratas. Não imagina que meu treinamento nasartes de Hermes teve início.

(18 p.m.): Estou um pouco cansada agora, mas com vontadede escrever. Ao me relatar sua vida, o conde também me falou sobre seuperíodo na Toscana. Quando esteve com o último grão-duquede Médici, Gian Gastone. Era um homossexual, um libertino,mas tinha seus aspectos divertidos. Ao subir ao trono numa

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idade avançada, certo de que não teria filhos até por suaspreferências e ciente que seus domínios interessavam àspotências europeias, declarou que se sentia mais como “alguémfazendo o papel do rei em uma comédia.” “Os abutres estão só esperando que eu morra e me tornarampapai aos sessenta anos!”, comentou uma vez com o conde.Conversavam especialmente sobre livros e música. SaintGermain tocara seu coração pela primeira vez em umaapresentação com o violino. A partir daí, o grão-duque oprocurara e a amizade crescera graças ao refinamento artísticopresente em ambos. A questão do “papai” era porque o grão-ducado foradesignado a Dom Carlos de Bourbon, que chegou em Florençaaos dezesseis anos como “herdeiro” de Gian Gastone, enviadopor seu pai, o rei da Espanha. Sua vida diária se desenrolava com um ritmo bem distinto dodas cortes mais refinadas e elegantes da Europa. Detestavaaparecer em público e as festas repletas de pessoas que, semnenhum talento, viviam para se exibir. O violino do conde eraum alento de inspiração no tédio de certos encontros.Conversas sobre política eram uma tortura. Saint Germain me contou que, a uma certa altura, GianGastone parou de aparecer em público, retirando-se para osseus aposentos e depois para sua cama, onde, enquantoengordava, recebia tanto quem era do seu agrado comoministros e embaixadores, com os quais se esforçava pararesolver os problemas de diplomacia e administração com amaior agilidade possível, ainda que quase não se movesse. Gian Gastone gostava de almoçar em seu leito às cinco datarde e de jantar às duas da madrugada. No final de sua vida, oscachorros dormiam com ele. Abraçava-os e beijava-os,dividiam os alimentos e por isso cheirava a pêlos, tabaco, vinho

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e coisas piores, afinal às vezes tinha preguiça de se levantarpara fazer suas necessidades fisiológicas. Por duas ou trêsvezes, pediu ao conde para tocar ali para ele. Em outrasocasiões, trouxe saltimbancos, um asno e até um urso. Adoravaanimais, tendo dito ao conde: “Acredito que à exceção dosbons artistas como você, prefiro meus amigos peludos. Nãofalam mal, não se queixam e o que precisam e querem fazerfazem. Adoro receber uma boa e espontânea lambida decachorro!”, se tinha bom gosto com relação às artes, faltava-lhetalvez bom senso consigo próprio. A propósito dos saltimbancos, houve uma ocasião em que seembebedou junto com um grupo que viera da Polônia. E tudoparecia em ordem, estavam cantando juntos, quando Gastoneresolveu brincar jogando água na cara de um. O grão-duquecaiu na gargalhada, mas o sujeito encarou aquilo como umaofensa e o agrediu. Logo se juntaram os demais e foi necessáriaa intervenção dos guardas para que Gian Gastone, que parou derir depois de alguns murros, a situação perdendo toda a graça,não terminasse em condições ainda piores do que ficou. Recebia com frequência em seu leito rapazinhos de baixosestratos sociais, recrutados por seu mordomo, que ficavam aseu serviço no palácio. Aparentemente jovens criados, eramconhecidos como ruspanti, pois o pagamento era feito emruspi, moedas do Grão-ducado da Toscana cunhadas porCosme III. O conde me disse que não tinha ideia de quantosgarotos eram, provavelmente mais de trezentos. Testemunhouparte da admissão de um, examinado nos detalhes por GianGastone, que falava num tom extremamente respeitoso aonoviço: “Vejo que o senhor tem dentes muito brancos...Quefelicidade que seja cuidadoso com a aparência! Mesmo com asdificuldades da vida...Pobrezinho! Mas esses cachos loiros sãoencantadores...”, disse, passando as mãos pelos cabelos do

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menino. “Ah, meu nobre conde! Uma pena que não compartilhemosdos mesmos gostos nesse aspecto!”, Gian Gastone piscou e riupara Saint Germain depois de mandar o mordomo levar oruspante para outros aposentos, onde iria lhe dar comida eapresentar novos trajes. Ainda faltava uma segunda parte doexame de admissão, quando iria verificar o membro viril dojovem. Se este não fosse do seu agrado, o grão-duque ficavabastante irritado e passava o restante do dia insultando omordomo, tachando-o de incompetente. No entanto, nos momentos de intimidade e com os garotos,seu maior prazer consistia em ser vilipendiado. Excitava-se aoser tratado com as palavras mais chulas durante as orgias, quese iniciavam assim que dava seu sinal. Não que o grão-duquese satisfizesse apenas com o ato e com as injúrias verbais: nãodesdenhava de tapas no rosto ou no ânus e experimentava umaestranha satisfação ao ser roubado. Os ruspanti furtavam com oseu incentivo objetos de alto valor e vendiam-nos aosmercadores. Depois o grão-duque chamava os comerciantespara readquiri-los. Dizia ao revê-los: “Quem é vivo sempreaparece!” Quem sofria com essas extravagâncias era sua irmã AnaMaria Luísa, que uma vez conseguiu convencê-lo a oferecerum almoço para os funcionários da corte, coisa que nuncafizera. “Mas que chatice!”, exclamou Gian Gastone no meio darefeição e, depois de ficar bêbado, começou a arrotar, vomitouna mesa e limpou a boca com os cachos de sua peruca. Houve um período em que proibiu a todos que limpassem suacama, pois não queria se libertar do cheiro que dizia sentir deum dos seus preferidos, que adoecera e falecera poucos diasantes. Só depois da vergonha que experimentou durante a visitade um embaixador espanhol, quando o leito foi coberto de

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rosas na tentativa de esconder o fedor, e do desmaio de suacunhada Violante, que fora vê-lo, decidiu se levantar eautorizar a limpeza. Houve uma ocasião em que, como em Florença corria a vozque devido a tais lamentáveis condições o grão-duque estivesseem ponto de morte, ele decidiu provar que isso era mentira e sefez conduzir em uma carruagem à festa de São João Batista,patrono da cidade. Para vencer o horror que a multidão lhecausava, Gastone bebera um pouco mais do que de costume.Devido a isso, eventualmente abria a janelinha para vomitar. Os cidadãos o aclamaram apesar de vê-lo despenteado, obesoe trôpego. O conde, que estava presente, experimentoucompaixão pelo grão-duque, que de alguma forma se tornaraseu amigo. Preferiu deixar Florença antes de seu falecimento,que pressentia que estivesse próximo. Um observador atento podia notar com facilidade que o“último Médici” era, em seu íntimo, melancólico e desiludido.Sem forças para se opor às ambições da Espanha e de outrosreinos, cético e cínico com relação a Deus e ao homem,especialmente consigo mesmo, procurava compensar seufracasso interno e a desolação em suas perspectivas por meioda entrega ao prazer. Como se via como um derrotado, esseprazer abrangia a vileza e a humilhação. Da capital da Toscana, o conde passou para a pequena cidadede San Germano. Devido à sua breve estadia por lá, que algunsconseguiram rastrear, surgiram os boatos que seu nome sedevesse a esse lugarejo. E o conde, brincando um pouco com acrença das pessoas, se divertindo ao alimentar sua lenda, àsvezes comenta sobre as terras ensolaradas da Itália onde teriatranscorrido sua infância. O conde me despertou alguma inveja ao falar sobre suaestadia em Veneza. Lá, adquiriu com o ouro produzido por sua

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Arte um palácio de mármore sobre um dos principais canais,repleto de afrescos e esculturas. Dentre as obras de arte,destaque para um legítimo Ticiano atrás de sua cama. Foi nessaépoca que conheceu Mme Gergi e Mme d'Adhémar, embora oencontro mais notável tenha sido com o filósofo Rousseau, nacidade a serviço do embaixador. Suas ideias estavamcomeçando a amadurecer. O conde disse ao jovem pensador:“Tenha claro em sua mente o seguinte: todas as coisas são boasao deixarem as mãos do Criador; todas as coisas degeneramnas mãos do homem.”, palavras que causaram uma profundaimpressão em Rousseau, que indagou a seguir: “O senhoracredita que a civilização prejudica o ser humano?” “Por si, o vinho não é ruim. Mas ele tende a inebriar.”,respondeu o conde. “Gosto desse tipo de resposta, que nos leva a refletir, ao invésde trazer um conceito pronto.”, comentou o filósofo. Todavia, o principal amigo do conde em Veneza não eraRousseau, e sim o senhor de Gleichen, um nobre alemão. O primeiro encontro entre os dois se deu em um banqueterealizado durante o inverno por um rico comercianteveneziano, de sobrenome Capretta, cujo nome agora não merecordo. Demonstrando enfado, Saint Germain largou seuchapéu, desembainhou a espada que trazia em sua cintura,dando um susto nos presentes, e sentou-se em uma poltronapróxima do fogo da lareira, interrompendo uma conversa emque alguns homens falavam sobre magia e alquimia: “Vocêsnão sabem do que estão falando! Sou a única pessoa aqui comcompetência para falar sobre esse assunto e esgotá-lo. Apesarque talvez não me desperte mais o mesmo encanto de outrostempos...Foi algo idêntico com a música, que abandonei apósnão ter nada mais a aprender!” “Quanta arrogância!”, teria exclamado o jovem filho de

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Capretta, enquanto o conde sorria em aparente desafio. Noentanto, Gleichen, um homem sensível, notou que ali haviamais, que a arrogância era apenas uma fachada, uma bravataque escondia algo mais profundo. Discerniu nos olhos doconde dois braseiros, que se confundiam com as chamas dalareira. Decidiu que precisavam conversar. Um dia, Saint Germain o levou à sua casa, mostrando-lhealguns quadros que pintara. Gleichen ficou impressionado. Oconde me disse que infelizmente vendeu todos naquela época e,por mais que eu insistisse, por curiosidade, que pintasse paraque eu pudesse admirar sua arte, ele se recusou, afirmando queno momento tinha coisas mais importantes a fazer, como meiniciar, embora eu saiba que ocupa uma parte de seu tempopreparando tinturas e trabalhando na produção de chapéus defeltro.

Paris, 3 de fevereiro de 1759: Para as operações com osespíritos planetários, evocando os santos arcanjos que regemcada planeta, o conde me deu duas opções no que diz respeitoaos símbolos mágicos: gravá-los nos metais respectivos; ouutilizar um pergaminho virgem, que no entanto eu teria queproduzir, o que não me agradou. Teria que pegar um cabritinho, de no máximo seis semanas, ecuidar dele até a véspera de São João Batista. Ou seja, teria queesperar até o meio do ano. Então, precisaria conduzi-lo até umafonte de água corrente e muito limpa, lavando-o até removertodas as impurezas. Depois disso, seria necessário cortar suagarganta com a adaga consagrada e dessagrá-locompletamente, deixando o sangue escorrer com a água. Daíarrancaria a pele do animal e a deixaria por algum tempo naágua da fonte, enquanto trataria de queimar o cadáver e deenterrar os restos bem profundamente no solo, para que

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nenhum animal carniceiro pudesse encontrá-lo. Então euremoveria a pele da água e iria prepará-la como fazem osartesãos para produzir os pergaminhos, com a diferença quefaria isso após recitar uma série de orações, com a preparaçãomental adequada. O que me desestimulou verdadeiramente a esse trabalho nãofoi a necessidade de ter de esperar até junho e sim o fato de nãoter estômago para matar e retirar a pele de um cabrito. Opteipor trabalhar com os metais, o ouro para o Sol, o mercúrio paraMercúrio, o chumbo para Saturno, o bronze para Vênus, a pratapara a Lua, o estanho para Júpiter, o ferro para Marte; e oconde até sorriu para mim, dizendo que fora uma boa escolha.

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Carta de Madame du Housset a Mademoiselle Lambert

Paris, 3 de janeiro de 1760

Minha querida,

Há um certo tempo que não me escreve e que nãoconversamos. O que ocorre?

No baile de máscaras de ontem, em que esperava vê-la, o rei ea Madame de Pompadour recordaram o dia em se conheceram.Ele se fantasiou como um “arbusto”, enquanto ela se vestiu depastora. O conde também estava presente, com uma ampulheta presaem sua cintura. Dizia estar se passando por Cronos, o deus dotempo. Sinto que vocês estão muito próximos. O que me diz sobreessa intuição?

Saudosamente,

Sua amiga.

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Do diário de Mademoiselle Lambert:

Paris, 7 de janeiro de 1760: O conde devia estar zombando dotempo e da transitoriedade ao brincar de ser o deus grego do

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tempo e ir ao baile com uma ampulheta! Confesso que essadescrição de Madame du Housset me fez sorrir. O que me fezbem, pois nestes últimos dias ando entregue a uma melancólicadispersão. Tenho uma amiga preciosa. E embora é claro eu não vá lhefalar sobre minhas experiências mágicas com o conde ou sob aorientação dele, não posso mais esconder dela tudo o que estousentindo atualmente. Não tenho esse direito. Minha amigamerece estar a par de um pouco do que se passa em meucoração.

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Trecho de carta de Mademoiselle Lambert a Madame duHousset

Paris, 9 de novembro de 1760

Minha preciosa amiga,

Quanto ao que recentemente saiu no jornal inglês, o que tenhoa lhe dizer a respeito é que as pessoas mistificamexcessivamente tudo o que lhes parece levemente incomum.Um homem como o conde é um grande chamariz para boatos elendas. Muitos o invejam por sua proximidade ao rei e tentamcaluniá-lo. Outros creem que seja capaz de andar sobre aságuas, de modificar e manipular os ventos, de entrar naschamas sem se queimar, de voar pelos ares como um pássaro,de atravessar paredes. Digo-lhe que, embora se trate de umhomem distinto dos demais por sua elevação moral e espiritual,nada disso é verdadeiro. O mistério que o cerca produz atémesmo temores infundados. O conde é sim um grande

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conhecedor de história, filosofia, química e de muitas outrasáreas. E é isso o que o torna valioso aos olhos de SuaMajestade. Tanto que foi o escolhido para ir à Holandanegociar com os austríacos como seu representante pessoal. Os ingleses podem estar tentando ridicularizar o conde e tudoo que o cerca para desqualificar a França. Tenha isso em mente.Querem dar a entender que o rei confia assuntos de extremaimportância a um pseudo-mago e charlatão. O que é certo sobre o conde, e misterioso, como você já sabe,é o fato dele comer pouco ou nada. Já lhe perguntei se comealgo em sua intimidade, se segue uma dieta específica, e ele medisse que gosta é de estar com as pessoas à mesa. Não faz amenor questão de tocar as delícias. Disse-me que, em sua última passagem em Viena, um nobrelocal ofereceu-lhe um delicioso vinho Tokay. O conde teriarespondido: “Alguma vez o senhor já me viu beber algo quenão seja água?” (…)

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A notícia em questão, publicada no jornal inglês LondonMercury:

O conde de Saint Germain, figura peculiar da corte francesa,apresentou a uma senhorita de seu círculo de amizades,interessada em não envelhecer (como a bem da verdade todasas mulheres), um frasco com uma pequena quantidade docélebre elixir da longa vida. Advertiu-a que deveria ingerir asubstância somente quando começassem a surgir as primeirasrugas, e apenas algumas gotas dissolvidas na água. A senhorita deixou o frasco em uma gaveta com algunsremédios. Uma das criadas, uma mulher de meia-idade que

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estava com problemas intestinais, acreditou que o recipientecontivesse um inofensivo purgante e tomou boa parte de seuconteúdo. Quando a senhorita chamou pela criada no dia seguinte,apareceu diante dela uma garota, quase uma criança. Por efeitodo elixir. Mais algumas gotas e não há dúvidas que a criadaresponderia com um choro de bebê! Não estamos livres, mesmo nos tempos atuais, dos mistériosda vida. Há muito mais coisas entre o Céu e a Terra do queimagina nossa vã filosofia. O que nos parece superstição é oque antes estava oculto aos nossos olhos.

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Do diário de Mademoiselle Lambert:

Paris, 13 de novembro de 1760: Essa viagem do conde estáme incomodando. Tenho um mau pressentimento. Estamos vivendo algo intenso, profundo. Mas a apariçãodessa mulher oriental, que irá acompanhá-lo na viagem, medesestabilizou. Ele já a apresentou ao rei. Ouvi as damas comentarem sobreela. Dizem que possui os olhos de uma dessas serpentes daÍndia. Yasodhara: um nome que tem povoado minha mente dereceios. É uma mulher como ele. Uma Artista, uma imortal. Ele meconfidenciou isso, o que não disse a mais ninguém na França,mas muda de assunto quando peço para que me apresente estaque deve ser uma grande maga. Por qual razão? Não cheguei adizer a ele, a pronunciar meu receio, mas ele já deve estar a par,já deve ter sentido. Por que não se pronuncia? Um homemcomo o conde certamente não se compraz do sofrimento alheio.

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A menos que esteja me testando, como parte de meu processoiniciático, para que eu aprenda a lidar com os sentimentosinferiores e os supere. Isso tenho que fazer sozinha. Mas serápossível que eu consiga evitar o questionamento de que nãoposso competir com uma mulher que é uma imortal, járealizada na Arte? Ele disse ao rei que Yasodhara irá ajudá-lo na missãodiplomática. Se possui um olhar tão hipnótico como se diz, nãotenho dúvidas disso! O conde conseguirá o melhorfinanciamento possível. Só espero que ele não me esqueça e retorne o quanto antes,pois eu nunca me esquecerei dele, e já estou certa disso.

Paris, 23 de dezembro de 1760: O conde não me escreve, nãodá nenhum sinal de vida! Como poderei ter um Natal tranquiloe pensar em Jesus Cristo diante das últimas notícias? Meu painão se conforma que eu ande tão abatida. Ao praticar osexercícios mágicos, vejo apenas sombras e vultos hostis.

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Trecho de carta de Madame du Housset a MademoiselleLambert

Paris, 3 de janeiro de 1761

Minha prezada amiga,

Imagino que esteja aflita com os recentes acontecimentos,com a fuga do conde de Haia. Mas não se desespere, por favor.Saiba que estou e sempre estarei a seu lado. Não se deixeabalar. O duque de Choiseul é um homem sórdido e

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desenvolveu uma terrível inveja em relação ao conde, afinaldepois da chegada de Saint Germain deixou de estar no centrodas atenções. Conheço sua trajetória. Só está na corte graças aMadame de Pompadour. Afinal foi quem descobriu, entre ascoisas de Madame de Choiseul-Romanet, sua prima, cartasgalantes de Sua Majestade. Madame de Pompadour, emboraaprecie o conde, nunca deixará de lhe ser grata. O rei que, pormotivos óbvios, não nutre grande simpatia pelo duque,responsável por atiçar os ciúmes de Pompadour e interrompersua aventura. Mas nada poderá fazer pelo conde nestemomento. Choiseul é um ateu e um libertino. Até hoje não entendo comopor algum tempo foi embaixador justamente em Roma. A umhomem como ele nunca deveria ser permitido conversar comSua Santidade. Não é por acaso que se entendeu tão bem comCasanova (…)

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Trecho de carta de Mademoiselle Lambert a Madame duHousset

Paris, 15 de janeiro de 1761

(...) Quando ouço os nomes de Choiseul e de Casanova, sintoum ódio que sei que não deveria sentir, que é contrário aosprincípios de Deus, eu sei, mas não consigo evitar. Por favor, não leve a sério essas mentiras de que o conde é umtraidor! Inventam coisas demais a seu respeito. Como se nãobastassem as fábulas, as calúnias e as difamações de sempre. Oconde nunca negociaria com os ingleses. Nunca nosapunhalaria pelas costas. Casanova e Choiseul pretendem viver

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de sua ruína porque são incapazes de construir seu templo, suacatedral, limitados a seus palácios de asquerosa libertinagem(…)

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Trecho de carta de Madame du Housset a MademoiselleLambert

Paris, 22 de janeiro de 1761

Minha doce amiga,

Por favor não se aflija! Já disse que estou e sempre estarei aseu lado. Claro que não acredito no que foi inventado sobre oconde. Sei que é um nobre de coração, que prima por suadevoção a Deus. Tudo o que você já me escreveu e falou arespeito dele não me deixa dúvidas quanto a isso. Não sei se já lhe chegou aos ouvidos o relatório sobre a fuga.Se chegou, espero que não a perturbe. Se não chegou, prefiroque saiba através de mim. Segundo Casanova, enquanto negociava com osembaixadores ingleses que haviam ido a Haia pelas costas daFrança, Saint Germain se envolveu paralelamente comnegócios espúrios, sob o nome de Surmont. Acumulou umagrande riqueza vendendo poções, unguentos e joias. E deixou acidade rico e cercado de belas jovens. Yasodhara, ao queparece, desapareceu antes. Casanova insiste que ela é aprincipal amante do conde (…)

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Trecho de carta de Mademoiselle Lambert a Madame duHousset

Paris, 26 de janeiro de 1761

(...) Que provas Casanova possui para lançar tais acusações aoconde? Isso tudo em alguns momentos me enfurece. Elepretende denegrir a imagem do conde retratando-o comoalguém tão dissoluto como ele próprio. Não passa de umcovarde de baixa índole! Para homens como Casanova, só existem os que são comoele. Não enxerga nada além. Como é imoral, vê em todos aimoralidade. Como é sujo, vê em todos a imundície. Nunca pensei que viria algum dia a sentir tanto nojo de umhomem.

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Trecho de carta de Madame du Housset a MademoiselleLambert

Paris, 29 de janeiro de 1761

(...) Se há algo em que Casanova parece demonstraradmiração pelo conde, é em sua facilidade de cativar asmulheres. Nisso, Casanova não o critica, pelo contrário, oexalta, embora para você isso só cause aflição e receios. Sendo mentiras, contudo, você não deve se preocupar. Vocêconheceu o conde de perto, muito melhor do que eu conheci.Sendo sinceros os sentimentos dele, cedo ou tarde voltarão a se

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encontrar, e espero que se entendam da melhor forma.

Desejo muito a sua felicidade, minha amiga, acima dequalquer coisa.

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VI

Trechos do diário de Mme d'Adhémar:

13 de junho de 1775: Quem iria imaginar, depois de cerca dequinze anos, rever na França o conde de Saint Germain? É fascinante. Mas, em alguns aspectos, também assustador. Primeiro, pela maneira como consegue voltar a circular pelacorte, como se nada tivesse acontecido ou sido comentado.Tudo para ele parece simples. A queda do duque de Choiseul parece ter facilitado em muitoo seu retorno. Depois da morte de Mme de Pompadour,encerraram-se suas facilidades, enquanto as do conde tornarama se abrir. Que contraste com o conde de Saint Germain em todos osaspectos! E nisso também reside o que é assustador. Choiseul,que sempre foi baixo e feio, envelheceu mal. Já o condesimplesmente não envelheceu. Está com a mesma aparência, ouaté mais jovem, do que quinze anos atras. É evidente o fascínio de nossa jovem rainha por ele. Espero que, sendo o alquimista que aparenta ser, um sábioimortal, possa orientar de alguma forma essa jovem austríacaque me parece tão fútil. 22 de junho de 1775: O conde de Saint Germain nos contouque passou alguns anos na Rússia. Não sou exatamente uma entendida em questões russas, massei que é um país que enfrenta inúmeros problemas, muito maisgraves do que os nossos. É governado hoje com mão de ferropor uma mulher, a czarina Catarina, o que surpreende a muitos. Saint Germain afirma que acompanhou uma revolta, lideradapor um cossaco chamado Pugachev, que tinha como meta

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libertar o povo e trancafiar a própria Catarina em um mosteiro!Se uma perspectiva semelhante chegar à França, será algoextremamente perigoso para todos nós. O conde advertiu ao reipara que tomasse cuidado com o povo, para que prestasse maisatenção nas necessidades e queixas da população humilde. Quefosse um monarca justo. Só que Sua Majestade, ao contrário da rainha Antonieta, nãoparece valorizar o conde. Devido aos problemas com ocharlatão Cagliostro, hoje desconfia de todos os magos ealquimistas! Eu sei no entanto que o conde de Saint Germain é muitodiferente de Cagliostro. Suas práticas não envolvemfalsificações. Seus diamantes são legítimos e, sobretudo, omais impressionante, sua juventude é realmente eterna. Háquem se negue a perceber isso, mas os fatos são maispoderosos do que as concepções.

2 de setembro de 1778: Como é belo e gentil o conde Axelvon Fersen! Poderiam vir à França mais estrangeiros como ele,de espírito tão agradável, finíssimo, e ao mesmo tempoprimando pela modéstia, pois afirma que sempre que vem aonosso país aperfeiçoa os seus gostos e modos. Todos os olharesdas damas recaem sobre ele, ofuscando até mesmo o conde deSaint Germain. Ao que parece, os dois se dão muito bem, poispercebi que conversam com frequência. O problema é que dentre as mulheres a única que consegueobter a atenção dele é a Antonieta, isso desde sua primeiraestadia na corte. Seus olhares vivem se cruzando. E passamuito mais tempo com ele, inclusive sozinha, pelo que ouvi eobservei, do que convém a uma mulher casada, e ainda porcima uma rainha! Lembro-me de quando ela exclamou em vozalta ao reencontrá-lo, diante de todos no salão: “Há quanto

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tempo! Como é bom rever um velho conhecido!”, eis umarainha que só serve para atrair escândalos. Foi um erro essaaustríaca ter sido escolhida. O francês do conde Fersen, apropósito, é melhor do que o dela.

23 de novembro de 1778: Admito que, até pouco tempo atrás,a rainha despertava a minha antipatia. Hoje me sinto culpadapor pensar o pior sobre ela. Quem a vê à distância tenderealmente a pensar que se trata de uma mulher tola, fútil,egoísta, dominada por suas volubilidades. Comecei a me darconta que, embora ignorante em muitas coisas, possui umcoração tenro e generoso. Por alguma razão, ela começou a simpatizar e a se abrircomigo há algumas semanas. Há uma profunda dor no coração de Maria Antonieta, rainha eesposa por necessidade. Não que não tire vantagens de suaposição: quanto a isso, tratei de adverti-la. Mas a verdade é queas futilidades aparentes são uma tentativa de fuga de seusofrimento, para evitar pensar em seus reais desejos.

25 de novembro de 1778: O porquê da rainha ter meescolhido como confidente ainda é um mistério. Não acho quedeixei transparecer minha aversão inicial por ela. Sempre lhesorri. Por outro lado, talvez ela tenha percebido minhasrestrições e justamente por isso me escolhido. Intuiu que euseria confiável, que não diria nada simplesmente para agradá-la. Contra falsos amigos os reis e rainhas devem sempre estarprevenidos.

29 de março de 1780: A rainha se encontra entregue a umterrível abatimento. Ontem, o conde Axel von Fersen partiupara a América, onde irá participar da luta dos colonos contra

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os ingleses. Maria Antonieta esbravejou, disse que não via o menorsentido em uma guerra tão distante da França. Está claro quesuas lágrimas e seu desespero são causados pela paixão, poissão evidentes os benefícios que esta guerra trará à França emcaso de derrota da Inglaterra. Eu lhe disse para que tomassemais cuidado e se esforçasse mais para se portar como rainha.Mulheres todas nós somos e sofremos. O conde Fersen, como homem que é, sofre menos. Soube dealgumas de suas conquistas e aventuras, que geram ciúmes eaflição na rainha. Mas como ela poderia cobrá-lo? Por maisque seja evidente o afeto dele por ela, não podem e nuncapoderão se casar. O melhor para ambos seria se distanciarem.Creio eu que Fersen está buscando isso ao ir para a América. Só que Cupido é cruel. Não tem piedade dos apaixonados. Arazão é sua vítima. Cedo ou tarde, o amor voltará a chamá-lo eele retornará à França. O que antes eu via como escândalo, hoje vejo como a maistriste história de amor. Que poção tomaram esse Tristão sueco eessa Isolda austríaca?

11 de maio de 1821: Depois de tantos anos, aqui estou eu arecordar tempos sombrios. Por um bom período pensei que nãoseria capaz de redigir estas linhas, mas depois de muito refletir,e sofrer, cheguei à conclusão que fazer isso significará a minhalibertação de sombras que devem deixar os dias atuais.Também sinto a morte próxima, o que justifica a descrição defantasmas. Naqueles dias, o futuro era sangrento. Estávamos nosaproximando da terrível catástrofe que iria se abater sobre aFrança. O abismo sob nossos pés. Ainda assim, os olhos demuitos estavam vendados, ou eram atingidos por uma cegueira

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letal. Íamos de prazer a prazer, de deleite em deleite, Comouma tempestade pode ser controlada se não é vista? Todavia, de tempos em tempos, mentes observadoras, agudase preocupadas apareciam para nos advertir, tentando nos retirarde nossa falsa zona de segurança O conde de Saint Germain,por mais de uma vez, tentou abrir os olhos de Suas Majestades,forçando-os a perceberem a aproximação do perigo. Noentanto, M. de Maurepas, não desejando a salvação do paíssenão por suas próprias mãos, ansiando por ser o herói,hostilizou e expulsou o taumaturgo, que não voltou a aparecerna corte. Tais eventos se deram no ano de 1788. A crise, no entanto,alcançaria seu ápice apenas em 1793. A violência foi crescendodia após dia. O que parecia lustroso estava na verdade prestes arachar. Os palácios próximos de ruir. Nossa frivolidade cresciaem proporção com o ódio dos mais humildes. Agora posso verisso com clareza. No começo, inclusive, era crítica quanto àsfutilidades da rainha. Mas depois, após me encantar por elacomo ser humano, e sofrer com ela por seu amor impossívelpelo conde Fersen, deixei de lado a aguda observação eentreguei-me à compaixão. Terminei não sendo a amiga quedeveria ter sido, e por isso não pude salvar sua vida. Não que oamor seja um assunto desimportante, mas tinha que ter estadomais atenta às questões de vida ou morte. Fui descuidada aonão recriminá-la quando era necessário. Ela teria me ouvido.Um pouco, no final, ela se esforçou. Mas teria podido fazermais se eu a tivesse ajudado melhor. Ou já era muito tarde? Não posso me conter de copiar aqui, a fim de lembrar ostristes debates na Assembleia Nacional, uma carta escrita porM. Sallier, conselheiro do Parlamento, endereçada a um de seusamigos, um membro do parlamento de Toulouse. Esse relatofoi divulgado e lido com avidez. Muitas cópias circularam em

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Paris antes do original chegar a Toulouse. Eu estava presentequando o texto foi lido no salão da duquesa de Polignac (...) A rainha, chamando-me depois, perguntou-me se eu já havialido a carta, e encarregou-me de consegui-la para ela. Estepedido causou-me um embaraço e tanto: queria obedecê-la, aomesmo tempo que não pretendia trair a confiança do ministro,que me considerava uma amiga. De qualquer forma, minhaafeição por Sua Majestade prevaleceu. Maria Antonieta leu o artigo na minha presença, e entãolamentou: “Ah, Madame d’Adhémar! Como são dolorosos paramim estes ataques à autoridade do rei! Estamos caminhandoem um campo perigoso. Começo a acreditar que nosso condede Saint Germain tinha razão. Nós estávamos todos errados aonão lhe darmos ouvidos, mas M. de Maurepas nos impôs umaverdadeira ditadura. Insistiu que o conde era um traidor dapátria, que já havia tentado entregar a França aos ingleses umavez e que todos erroneamente haviam se esquecido disso. Naverdade, nenhuma acusação contra o conde jamais foi provada.É lamentável que tudo isso aconteça. Que espécie de monstroestá crescendo em nossa direção?” Não consegui responder. Devia ter aconselhado a rainha aordenar uma procura pelo conde. Provavelmente não oteríamos encontrado, mas talvez a mera tentativa o atraíssenovamente. Contudo, não consegui falar. A rainha veio depoiscom uma carta em mãos e imaginei que a fosse entregar a mimpara que a levasse a algum lugar. Iria obedecer prontamente àsua ordem. “Madame d’Adhémar,”, ela me disse. “esta carta chegou amim sem remetente. Por acaso você não tem ouvido as pessoasfalarem novamente do conde de Saint Germain?” “Não.”, eu respondi. “Não o vi mais. Nem nada a respeitodele chegou a mim.”

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“Esta epístola contém o que parece ser um oráculo. Acaligrafia lembra a dele, pelo que me recordo dos poemas queme mostrou. Nos o desprezamos, mas ao que parece ele não seesqueceu de nós. Peço que leia com atenção. Porque eu não seise compreendi tudo e tenho uma audiência urgente com oabade de Ballivières.”, acrescentou a rainha. “Lerei. Vossa Majestade não precisa se preocupar.” “Estas questões da Igreja me perturbam e retiram a minhaconcentração. Estou muito ansiosa para que os nossos amigosse entendam.” “Isso é especialmente necessário agora,” senti a necessidadede acrescentar, “enquanto nossos inimigos parecem triunfar portodos os cantos.” “O conde dizia o mesmo que você, afirmando que devíamosnos apressar na conciliação e no entendimento. Mas quem estácerto? E quem está errado?” “A rainha poderá satisfazer a ambos concedendo-lhes osbispados vagos.” “Não posso fazer isso. O rei disse que não concederá a mitraepiscopal nem ao abade d’Erse nem ao abade de Ballivières. Eeu não posso contrariá-lo.” (…) Pouco depois, veio um mensageiro informando a MariaAntonieta que o abade de Ballivières havia chegado. Passeipara o meu quartinho, onde, depois de requisitar a MadameCampan uma pena, tinta e papel, copiei o seguinte trecho,obscuro então, mas que depois se tornaria extremamente claro:

“O tempo está correndo rapidamente, enquanto a França, imprudente,cercada pela má fortuna que ela própria moldou ao seu redor,irá trazer à alma um inferno

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comparável ao que Dante pintou.Esse dia, minha rainha, está próximo! Não devem permanecer dúvidas.Um hidra vil e covarde,com seus enormes chifres,irá derrubar o altar, o trono e nem sequer Têmis estará a salvo;em lugar do que é razoável,uma loucura terrível irá reinar,e parecerá legítima para os perversos.Sim! Veremos cair o cetro, o turíbulo, os pratos, torres e brasões, até mesmo a bandeira branca;por todas as partes haverá fraude,assassinato e violência, que serão encontrados em lugar do doce repouso.Rios de sangue escorrem por todas as cidades.Apenas soluços ouço, e exílios vejo!Por todos os lados a discórdia civil irá rugir,a virtude escapa, e o choro é absoluto,enquanto na assembleia emergem votos de morte.Deus Todo-Poderoso!Quem poderá responder a juízes assassinos?Sobre a cabeça do augusto, vejo a espada descer!Monstros serão exaltados como heróis!Opressores, oprimidos, vitoriosos, vencidos...A tempestade chegará à senhora, nesta destruição comum a todos.Que crimes e que maldades, que culpa horrorosa,ameaçam os sujeitos, como se fossem seus potentados!Mais de um usurpador triunfará no comando.Mais de um coração será conduzido

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à humildade e ao arrependimento.E ao término de tudo o abismo será trancado e, de uma tumba negra,nascerá uma jovem flor, mais feliz e mais bela.”

Estas versos proféticos, escritos por uma pena que reconheci,deixaram-me chocada. Quebrei a cabeça para encontrar seusentido, já que embora tivessem tocado o meu coração, aindanão haviam atingido a minha mente. Quem iria imaginar queneles estavam profetizadas as mortes brutais do rei e da rainha,resultando de sentenças tão iníquas? Em 1788, não tínhamosainda a visão clara. Era impossível antever tais horrendosacontecimentos. Quando voltei à rainha, não havendo ninguém indiscreto porperto para ouvir, ela me perguntou: “O que lhe parecem essesversos ameaçadores?” “São desalentadores!”, respondi. “Mas que Vossa Majestadenão se deixe afetar. As pessoas dizem coisas incríveis, fabulam,criam loucuras e insanidades. Caso estas palavras se revelemrealmente proféticas, no que não creio, a posteridade ficaráperplexa.” “Que Deus a ouça, Madame d'Adhémar! No entanto, se forempalavras do conde de Saint Germain, e não de algum imitador,acredito que teremos pela frente muita tristeza e desolação.Aquele homem estranho é diferente de todos os outros. Sempreque se aproximou de mim e me advertiu, o fez sem exigirqualquer espécie de recompensa. Quando ia lhe dar algumpresente, desaparecia. Não creio que ele me pregaria uma peçasimplesmente para me assustar.” “Nada de ruim acontecerá a Vossa Majestade. Se forrealmente uma profecia do conde, muitos poderão sofrer esangrar. Mas pode não ser nada dele. E, de qualquer forma,

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Vossa Majestade está acima de todos.” A rainha então me deu uma resposta memorável: “Vocêacredita que eu tenho crédito e poder sobre tudo e todos. Estáerrada: e acho que me equivoco inclusive ao acreditar que auma rainha é permitido ter amigos. A consequência de minhaconfiança nos outros é que todos de alguma forma procuraramme manipular e me usar para obter vantagens pessoais. Estouno centro do coro das intrigas, que por mais que me esforcetenho dificuldades para evitar. O que desempenho não é opapel de uma rainha da França. Há um verso muito interessanteque aplico para mim mesma: 'reis estão condenados àmagnificência.', ao que acrescento: 'reis estão condenados a seesgotarem na mais completa solidão.” Com isso, mais uma vez, meu peito se encheu de compaixãopela rainha e as palavras adequadas voltaram a escapar de meuslábios. Nos abraçamos (…) Tempos depois, já em 1789, as coisas ficaram muito piores.As chamas ardiam, ansiando receber sacrifícios, enquanto osangue ia manchando as ruas. Em nome de sua amizade com osPolignacs, Maria Antonieta, que não gostava de vê-los sofrer,me deu a desagradável incumbência de comunicar à duquesaseu afastamento, que seria para o seu próprio bem em vista doslevantes populares, que a culpavam de muitos dos males daFrança, e mesmo dos nobres que a invejavam. Teria preferidoencontrá-la sozinha, mas lá estavam o duque, seu marido, alémde seu cunhado, o conde de Vaudreuil, e do abade deBallivières. Meus olhos estavam úmidos e um tanto inchados,pois havia chorado com a rainha. Quando me viram, logo sederam conta que devia estar ali por alguma triste razão. Aduquesa se aproximou de mim e tocou-me com gentileza,perguntando-me: “Que notícias traz para nós? Estou preparadapara o pior, se for o caso.”

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“Não para o que estou prestes a relatar. Prepare-se agora,minha doce amiga. Fortaleça-se com resignação e coragem.”,depois de dizer isso, as palavras morreram em meus lábios.Todos ficaram aguardando, até que a duquesa, tomando apalavra, disse: “Você está causando, minha irmã, umsofrimento maior com o seu silêncio. O que está havendoafinal, Madame d'Adhémar? Não me angustie mais.” “A rainha,”, eu disse, em tom pausado, “a fim de evitar otriste desterro que a ameaça, deseja enviá-la para Viena, ondepoderá permanecer por alguns meses.” “A rainha me expulsa, me exila, e é você quem vem me dizerisso? Onde está ela?”, a duquesa esbravejou, ao término de uminsuportável silêncio, desferindo palavras bastante agressivas. “Não seja injusta, amiga. Deixe-me terminar de dizer o queprecisa ser dito.”, então prossegui e repeti palavra por palavra oque Maria Antonieta havia me encarregado. Decorreram disso lágrimas, mais lágrimas e lamentos. Todosficaram tristes. O conde de Vaudreuil demonstrou tantoabatimento quanto os Polignacs. “Que dia infeliz!”, exclamou a duquesa. “É meu deverobedecer, e certamente partirei, se é assim que a rainha deseja.Mas Sua Majestade não irá permitir que eu vá até ela para lheexpressar toda minha gratidão pelo tempo que passamosjuntas?” “Jamais”, eu disse, “ela pensou em deixá-la ir antes deconsolá-la. Vá até seus aposentos. Ela irá recebê-la e desfazerqualquer má impressão que possa ter ficado, de aparentedesfeita.” A duquesa me pediu para que eu a acompanhasse, no queconsenti. Com o coração partido, conduzi uma amiga à outra.Amavam-se de forma tão calorosa! Quando se reencontraram,escorreram rios de lágrimas, além dos soluços e gemidos.

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Abraçaram-se com tanta ternura que aparentavam ser uma só.Alguém poderia ter dito que era impossível separá-las. Era algomuito triste de se ver. Nessa hora, uma carta chegou à rainha, cuidadosamenteselada. Ela a olhou, arrepiou-se, e depois se voltou para mim edisse: “Outra vez uma carta sem remetente. Deve ser ele.” “Muito provavelmente.”, eu respondi. “Seria estranho que elepermanecesse quieto em circunstâncias como as atuais.” Madame de Polignac pareceu não entender o que estavaocorrendo. Maria Antonieta então lhe explicou que a carta erade um misterioso amigo, provavelmente o conde de SaintGermain. “Ouvi dizer que ele está morto.”, replicou Madame dePolignac. “O conde de Saint Germain nunca morre.”, respondi. “Isso é o que disse Voltaire, em tom de brincadeira.”, nossaamiga parecia, mais do que cética, até um tanto constrangida. “Madame d'Adhémar, por favor,” a rainha me pediu. “leia estacarta. Seus olhos devem estar menos cansados do que os meuse os de Madame de Polignac.” A rainha estava com os olhos mais inchados do que os meus.Após abrir o envelope, li em voz alta o que segue:

“Majestade, tenho sido uma Cassandra. Minhas palavrasalcançaram seus ouvidos, mas em vão, e chegamos a ummomento em que a senhora não poderá mais evitar atempestade. Terá que enfrentá-la com uma energia trovejante.Para que faça isso, para que suas forças cresçam, é necessárioque se separe das pessoas que mais ama, retirando todos ospretextos dos rebeldes. Se por acaso já começou a fazer isso,tanto melhor! Todos os Polignacs e seus amigos estãocondenados à morte se permanecerem, pois são apontados

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como culpados de todas as desgraças pelos assassinos queacabaram de executar os oficiais da Bastilha e o preboste dosmercadores. O conde de Artois irá morrer. Não poderá resistir àsede de sangue dos revoltosos. Por enquanto, limito-me a dizerisso. Mas pretendo voltar a me comunicar com VossaMajestade em breve.”

Ainda estávamos em choque diante de tais palavras quando oconde de Artois foi anunciado. A rainha permitiu sua entrada erelatou-lhe o conteúdo da carta. Ele também ficou chocado.Questionado por nós, não pôde permanecer em silêncio, e disseque o duque de Liancourt acabara de lhe dizer, assim como orei, que espiões haviam descoberto que revolucionáriostramavam para tirar sua vida, assim como a da duquesa dePolignac e a de seu marido, e também as de Vaudreuil,Vermont, Guiche, Villedeuil, d'Amecourt, Polastrons, Castries,do duque de Broglie, do barão de Breteuil (…) A rainha não estava equivocada em sua intuição e nossomisterioso aliado, que devia ser o conde de Saint Germain enão um simples espião, com a mesma caligrafia dos versossombrios que anteriormente relatei, era sem dúvida, com suasmensagens, merecedor de nossa atenção e de nosso respeito(...)

12 de maio de 1821: Sigo com o relato que ontem iniciei.Quando voltei para casa, deparei-me com um bilhete, quedizia:

“Tudo está perdido, condessa! O sol da monarquia está sepondo. Amanhã ele não nascerá mais. Por muito tempo, o caosirá prevalecer na noite. Busque o retiro e a discrição. Olharei e orarei pela senhora.

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Seja prudente e conseguirá sobreviver à tempestade que irá seabater. Resistirei a meu desejo de vê-la. O que poderíamosdizer um ao outro? A senhora me pediria o impossível. Nadaposso fazer pelo rei. Nada também pela rainha. Nada pelafamília real, ou até pelo duque de Orléans, que amanhãaparecerá triunfante, mas que irá cruzar o Capitólio para depoisser atirado do alto da rocha Tarpeia.1

Não obstante, caso faça mesmo questão de se encontrar comum velho amigo, vá à missa das oito da manhã dos irmãosrecoletos, e entre na segunda capela do lado direito.

Tenho a honra de ser...

O CONDE DE ST. GERMAIN”

Diante desse nome, uma exclamação de jubilosa surpresaescapou de meus lábios. Realmente ele ainda vivia! Havia quem sustentasse que morrera em 1784, hospedado naresidência de um de seus melhores amigos, o príncipe Carlosde Hesse-Cassel, seu companheiro de experiências alquímicas. Mas tudo indicava novamente que não! E depois de tantotempo sem que se identificasse, ali estava ele novamente! Acaligrafia era idêntica à das cartas enviadas à rainha e eureconheci em suas palavras seu tom. Não podia existir maisdúvida. Era uma da manhã quando li o bilhete. Como o horário para oencontro era cedo, fui para a cama. Dormi pouco. Sonhosperturbadores incomodaram-me. Via turbas de monstrosfamintos em volta do palácio de Versalhes. Muitos tinhamfeições animalescas: cães, bodes, touros; de faces desesperadas

1 Referência a um local, na Roma Antiga, onde eram realizadasexecuções. Os condenados eram lançados desta rocha para a morte.

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e aflitas, e ao mesmo tempo cruéis, os olhares opressivos eviolentos, injetados de sangue. Quanto mais medo sentia, commais detalhes podia ver os demônios. De alguns narizesescapavam longos pêlos. Insetos andavam pelas orelhas.Chovia e parava. Quando fui olhar para uma das poçasformadas, era de sangue. Talvez de água mesclada com sangue.Vendo-me ali refletida, tinha uma sensação de frio úmido epungente. Os meus ossos ardiam. Acordava dolorida. Comopodia dormir? Hoje sei que tais sonhos grotescos antecipavam o que iriaocorrer. Falavam do futuro. Naquela época, ainda não podiaentender. Quando o dia nasceu, com a claridade do sol, senti que meerguia de um túmulo. Estava me sentindo fraca. Saindo dacama, ordenei a meu mordomo que me trouxesse café forte, etomei duas xícaras. Senti que revivia. Às sete e quinze chameipor uma carruagem fechada e, seguida por um velho criado deconfiança, parti para a igreja dos irmãos recoletos. Quando cheguei, estava vazia. Deixei meu criado comosentinela e entrei na capela. Pouco depois, e eu havia rezadoum pouco, elevando meus pensamentos a Deus, vi um homemse aproximando. Era ele em pessoa. Sim! Com a mesmaaparência de quando nos havíamos visto pela primeira vez,enquanto a minha já estava marcada por rugas, pelos sinais dadecrepitude...Talvez com razão me sentisse como mortanaquela manhã. Ele sorriu para mim, avançou, segurou a minha mão, beijou-agalantemente. Fiquei encabulada por ter lhe permitido isso emum ambiente carregado de santidade. “Aqui está o senhor.”, eu disse. “De onde está vindo?” “Passei recentemente pela China e pelo Japão.” “Ou então pelo outro mundo...”

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“De certa forma, já estive muito próximo dele! Ah, senhora!Aqui embaixo (sublinho esta expressão; o conde nadapronuncia ao acaso) nada é mais estranho do que testemunharos últimos acontecimentos. A grande monarquia enraizada emLuís XIV, prestes a desabar? À senhora talvez não possa teceruma comparação precisa e nítida. Mas eu...” “Acho que peguei o senhor, célebre habitante do passado,homem do ontem e talvez do amanhã!” “Ah, quem não conhece a história do grande Rei Sol? E oCardeal Richelieu? Se ele tivesse renascido, Luís XIV o teriaenlouquecido! Bem, não importa! O que eu disse a você, etambém à rainha? Que M. de Maurepas colocaria tudo a perder.Tudo foi comprometido por ele. Fui pintado como umaCassandra, ou como um profeta do mal, e agora como sesentem?” “Ah, conde! Sua sabedoria ainda nos será útil!” “Madame, aquele que semeia ventos colhe tempestades. Esteprovérbio está nas Escrituras. Quem o redigiu talvez não otenha dito antes de mim, mas de todo modo suas palavrasforam escritas e adequadamente registradas.” “Outra vez!”, eu disse, tentando sorrir. Mas continuou a semostrar sério e respondeu a seguir: “Como escrevi para asenhora, não posso fazer nada. Minhas mãos estão atadas porcordas mais fortes do que eu sou. Há períodos em que aretirada é impossível, e outros em que Nosso Senhordeterminou a sentença e a Lei será executada. Estamos nestasegunda categoria.” “Como vê a rainha?” “Não há o que fazer. Ela está condenada.” “Condenada! Ao quê?” “À morte!” Após ouvir isso, não pude me segurar e chorei. Levantei-me

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do assento, minhas mãos repeliram o conde, e com uma voztrêmula disse: “O Senhor também! Também!” “Talvez...Como Cazotte.”2

“O senhor sabe...” “Do que a senhora sequer suspeita. Volte ao palácio. Vá eavise à rainha para que tome muito cuidado. Estes podem serseus últimos dias. São dias fatais. Há um complô. O assassinatojá foi premeditado. O conde Fersen está disposto a ajudá-la, eao rei. Temo porém que será em vão.” “O senhor me enche de horror. Justamente o conde Fersen,que tanto a fez sofrer! E quanto ao conde d'Estaing? Eleprometeu nos ajudar.” “Ele será tomado pelo medo e irá se esconder. “E M. de Lafayette?” “Um balão inflado pelo vento! Estão decidindo o que fazercom ele. Se será instrumento ou vítima, ainda não foidecidido.” “Senhor,” eu disse. “poderia prestar grandes serviços aosnossos soberanos.” “Mas e se eu lhe disser que não posso?” “Como?” “Sim, eu não posso. Quando pude, não foi ouvido. A hora dorepouso passou e o que a Providência determinou terá de sercumprido.” “Em palavras claras, o que o senhor anuncia? Diga enfim oque precisa dizer, sem mais rodeios.” “Anuncio a completa ruína da casa de Bourbon. Cedo outarde, serão expelidos de todos os tronos que ocupam. Alguns,quando regressarem a uma posição elevada, já não terão maisnenhum poder.” “Mas e a França? O que diz especificamente sobre a França?”

2 Escritor francês, guilhotinado durante o Período do Terror.

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“Reino, república, império, governos mistos, atormentados,agitados, com um espinho encravado em suas costas; degeniosos e geniais tiranos passará a outros que serãoambiciosos, mas sem nenhum mérito. Será dividida, repartida,cortada. Os tempos imediatos às turbulências atuais darãoorigem a um Império. O orgulho sacudirá e aparentementeabolirá as distinções e discriminações. Será uma obra não devirtude e sim de vaidade. Portanto, será pela vaidade que asdistinções retornarão. Os franceses, como crianças brincandocom fundas e estilingues, brincarão com títulos, honras, coroase tudo o que lhes parecer um bom brinquedo. O exércitoconsumirá as finanças. O déficit agora é de cerca de cinquentamilhões, e por isso está ocorrendo a revolução. Pois bem! Soba ditadura dos filantropos, dos retóricos, dos hábeis políticos, adívida do Estado excederá os bilhões! “O senhor é um profeta terrível! Quando poderei vê-lonovamente?” “Cinco vezes mais. Não deseje a sexta.” Confesso que uma conversa tão solene, tão sombria, tãoaterrorizadora, inspirou em mim pouco desejo de levá-laadiante. M. de St. Germain oprimiu meu coração como umpesadelo. É estranho como mudamos com a idade, como podemos olharcom indiferença, mesmo com desprezo, para aqueles que emoutros tempos nos encantavam. No caso do conde, passei dofascínio para a aversão. Não uma aversão causada pelodesprezo, e sim pelo medo. Depois de ouvi-lo, só conseguia pensar na rainha. O perigoque ela corria me preocupava. Ele resolveu encerrar a conversada seguinte forma: “Não me permita que a detenha mais.”,disse. “Já há muita desordem na cidade. É melhor que vá. Soucomo Atália. Desejei ver e vi. Agora vou deixá-la e deixarei a

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França em breve para cumprir uma outra missão. Devo ir paraa Suécia. Um grande crime está sendo planejado por lá. Estouindo com o objetivo de preveni-lo. Sua Majestade, Gustavo III,me interessa. Sua importância é maior do que seu renome.Saiba que ele muito se apieda da atual situação dos monarcasda França, considerando-os infelizes prisioneiros em seupróprio reino.” “O conde Fersen já me falou sobre ele. Está ameaçado?” “Sim. Não mais será feliz como um rei. E ainda menos do queuma rainha.” “Está bem então, senhor. Vou-me. Para dizer a verdade, teriapreferido não ouvi-lo.” “Estou habituado a escutar isso. Os mentirosos e aduladoresque trazem falsas boas notícias são bem-vindos, enquanto osque dizem a verdade merecem apenas o desprezo e o ódio. Mascomo foi dito sobre Nosso Senhor, maldito seja todo aqueleque foi pregado no madeiro! Até mais, senhora!” Ele partiu. Fiquei absorvida em profunda meditação, nãosabendo como diria o que havia ouvido à rainha. Talvez nemfosse o caso de informá-la a respeito. Decidi por fim manter temporariamente o silêncio. Aguardariaalguns dias. Buscaria a melhor forma de expressar o queescutara. Acabei nunca dizendo nada a Maria Antonieta. Quando saí da capela, perguntei ao meu velho criado se tinhavisto entrar ou sair o conde de Saint Germain. “Como assim, Madame? O general?” “Claro que não, eu sei que esse já está morto há tempos. Ooutro.” “Ah, o astuto conspirador?” “Ele mesmo.” “Não, Madame. Por acaso a senhora o encontrou?” “Agora há pouco. Ele deve ter passado perto do senhor por

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duas vezes.” “Eu devia estar distraído, pois não o vi.” “Impossível. Você está brincando comigo!” “Quanto piores são os tempos, mais respeitoso sou com minhasenhora. Nunca a desrespeitaria com brincadeiras tolas.” “Mas ele deve ter passado por esta porta!” “Não vi ninguém abri-la, além é claro da senhora. Juro porDeus e pelos meus dois olhos.” Fiquei embasbacada. Então ele era também capaz de ficarinvisível! Voltaria a ver o conde de Saint Germain nas piores situaçõespossíveis: no dia da execução da rainha, em meio à multidão,em vão minha tentativa de falar com ele; na véspera do 18 deBrumário; no dia seguinte à morte do duque d’Enghien; no mêsde janeiro de 1813; e na noite do assassinato do duque deBerry, um homem admirável, atingido na saída da Ópera porum fanático que pretendia contribuir para a extinção dosBourbons e que o duque, no leito de morte, perdoou como bomcristão que foi. O mais impressionante desta última ocasião, no que dizrespeito ao conde de Saint Germain, foi que ele estavaacompanhando a ópera com uma bela dama. Vendo-a de longe,pareceu-me bastante familiar. Quando consegui me aproximar um pouco mais do casal, parameu pasmo, a reconheci: era Mademoiselle Lambert! No augede sua juventude! Tão jovem quanto o conde! Quando tentei falar com os dois, outras pessoas entraram naminha frente. E eles haviam desaparecido da minha vista. Ver o conde de Saint Germain com a mesma aparência aopassar dos anos talvez já não fosse mais tão surpreendente.Mas M. Lambert? De fato ela havia desaparecido. Nunca maisouvimos falar dela a uma certa altura dos acontecimentos da

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Revolução. Eu acreditava que tivesse sido assassinada poralgum revolucionário.

(Sinceramente, ainda não sei se me convém depois me livrardestes últimos parágrafos. Tudo isso é assustador. Agora quetermino de escrever, sinto minha mão mais pesada do que onormal).

Ainda aguardo pela sexta visita do conde.

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