a biblioteca esquecida de hitle - timothy w. ryback.pdf

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    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel.

  • timothy w. ryback

    A biblioteca esquecida de HitlerOs livros que moldaram a vida do Fhrer

    Traduo

    Ivo Korytowski

  • minha me,que me ensinou a amar os livros,

    e em memria do meu pai.

  • Pouco conhecimento algo perigoso;Bebe profundamente, seno no saborears a primavera das Musas:Ali goles contidos intoxicam o crebro,E bebedeiras nos devolvem a lucidez.

    Alexander Pope, A little learning

    Conheo pessoas que leem uma enormidade, livro aps livro, letra aps letra, mas que eu noconsideraria que tenham lido bem. verdade que possuem uma massa de conhecimentos, mas seuscrebros no conseguem organizar e registrar o material que absorveram. Carecem da arte de separar, numlivro, o que tem valor do que no tem, retendo para sempre a parte boa e, se possvel, ignorando o resto.

    Adolf Hitler, Mein Kampf

  • Sumrio

    Prefcio O homem que queimava livros

    1. Leituras da linha de frente, 19152. A influncia do mentor3. A trilogia de Hitler4. O filsofo perdido5. Livros de guerra6. Inspirao divina7. Leituras da linha de frente, 19408. A histria de Hitler da Segunda Guerra Mundial9. Um milagre adiado

    Posfcio Os destinos dos livrosAgradecimentosApndices

    Apndice ADescrio da biblioteca de Hitler de Este o inimigo,por Friedrich Oechsner, 1942

    Apndice BDescrio da coleo de livros de Berghof de um relatrio sigiloso da 21aUnidade de Informaes do Exrcito norte-americano, maio de 1945

    Apndice CA biblioteca de um diletante: Um vislumbre da biblioteca privada de Herr Hitler, por Hans Beilhack, SddeutscheZeitung, 9 de novembro de 1946

    Apndice DRelatrio sobre a Coleo de Adolph [sic] Hitler e recomendaes para a sua organizao, por Arnold J. Jacobius,estagirio, para Frederick R. Goff, chefe da Diviso de Livros Raros, Biblioteca do Congresso, 9 de janeiro de 1952

  • Notas

  • Prefcio

    O homem que queimava livros

    Ele foi, claro, um homem mais conhecido por queimar livros do que por colecion-los.Contudo, na poca de sua morte, aos 56 anos, estima-se que possusse cerca de 16 milvolumes. Em qualquer medida, uma coleo impressionante: primeiras edies das obras defilsofos, historiadores, poetas, dramaturgos e romancistas.

    Para ele a biblioteca representava a primavera das Musas, aquela fonte metafrica deconhecimentos e inspirao. Ele extraiu muito de l, aplacando suas inseguranas intelectuaise alimentando suas ambies fanticas. Lia vorazmente, ao menos um livro por noite, s vezesmais, conforme alegava. Quando se d, tambm preciso tirar, disse certa vez, e eu tiro oque preciso dos livros.

    Ele inclua o Dom Quixote, junto com Robinson Crusoe, A cabana do Pai Toms eViagens de Gulliver, entre as grandes obras da literatura mundial. Cada obra uma ideiagrandiosa em si, disse. Em Robinson Crusoe percebeu o desenvolvimento de toda a histriada humanidade. Dom Quixote captava engenhosamente o fim de uma era. Possua ediesilustradas desses dois livros, impressionando-se sobretudo com as representaes romnticasfeitas por Gustave Dor do heri acometido de delrios de Cervantes.

    Possua tambm as obras completas de William Shakespeare, publicadas em traduoalem em 1925 por Georg Mller como parte de uma srie que pretendia tornar a grandeliteratura disponvel ao pblico em geral. O volume 6 inclui Como gostais, Noite de reis,Hamlet e Troilus e Crssida. O conjunto inteiro est encadernado em couro marroquinofiletado mo, com uma guia estampada em ouro, flanqueada pelas iniciais do nome deHitler na lombada.

    Considerava Shakespeare superior a Goethe e Schiller em todos os aspectos. EnquantoShakespeare havia alimentado a imaginao com as foras geis e habilidosas do impriobritnico emergente, aqueles dois teatrlogos-poetas teutnicos desperdiavam seu talento emhistrias de crises da meia-idade e rivalidades entre irmos. Por que, perguntou-se certa vez,

  • o Iluminismo alemo produziu Nathan, o sbio a histria do rabino que reconcilia cristos,muulmanos e judeus enquanto coube a Shakespeare dar ao mundo O mercador de Venezae Shylock?

    Ele parece ter absorvido seu Hamlet. Ser ou no ser era uma frase favorita, assimcomo Hcuba para mim. Apreciava em especial Jlio Csar. Num caderno de desenho de1926, desenhou um palco detalhado para o primeiro ato da tragdia de Shakespeare, comfachadas sinistras cercando o frum onde Csar morto. Nos encontraremos de novo emPhilippi, ele ameaou oponentes em mais de uma ocasio, repetindo a advertncia espectral aBrutus aps o assassinato de Csar. Dizia-se que reservava os Idos de Maro para decisesimportantes.

    Mantinha seus volumes de Shakespeare no escritrio do segundo andar de seu retiroalpino no sul da Alemanha, junto com uma edio encadernada em couro de outro autorfavorito, o escritor de romances de aventuras Karl May. O primeiro livro de Karl May que lifoi Atravs do deserto, ele certa vez recordou. Fiquei impressionado! Entreguei-me a eleimediatamente, o que resultou num declnio visvel das minhas notas. Mais tarde, teriabuscado refgio em Karl May assim como outros buscam na Bblia.

    Ele era versado nas Sagradas Escrituras e possua um volume particularmente bonito dasWorte Christi, ou Palavras de Cristo, estampado a ouro sobre couro de bezerro cor de cremeque at hoje permanece macio como seda. Possua tambm uma traduo alem do tratadoantissemita de Henry Ford, The international Jew: The worlds foremost problem [O judeuinternacional: O principal problema do mundo], e um compndio de 1931 sobre gs venenosocom um captulo detalhando as caractersticas e os efeitos do cido prssico, o asfixiantehomicida comercializado como Zyklon B. Em sua mesa de cabeceira mantinha um exemplarbastante manuseado das histrias de Wilhelm Busch da dupla travessa Max e Moritz,precursoras das histrias em quadrinhos.

    Walter Benjamin certa vez disse que d para saber muita coisa sobre um homem peloslivros que ele mantm: seus gostos, seus interesses, seus hbitos. Os livros que guardamos eos que descartamos, os que lemos bem como os que decidimos no ler, dizem algo sobre quemsomos. Como um judeu alemo crtico da cultura nascido numa poca em que era possvel seralemo e judeu, Benjamin acreditava no poder transcendente da Kultur. Acreditava que aexpresso criativa, alm de enriquecer e iluminar o mundo que habitamos, tambmproporciona a argamassa cultural que liga uma gerao prxima, uma interpretao judaico-germnica do antigo ditado ars longa, vita brevis.

    Benjamin tinha em grande apreo a palavra escrita, impressa e encadernada. Adorava oslivros. Era fascinado por sua fisicalidade, com sua durabilidade, com sua procedncia. Umcolecionador sagaz, ele argumentava, conseguia ler um livro da maneira como umfisionomista decifrava a essncia do carter de uma pessoa pelas suas caractersticas fsicas.

  • Datas, nomes de lugares, formatos, proprietrios anteriores, encadernaes e coisassemelhantes, Benjamin observou, todos esses detalhes lhe devem informar algo nocomo fatos isolados ridos, mas como um todo harmonioso. Em suma, era possvel julgar umlivro por sua capa e, por sua vez, o colecionador por sua coleo. Citando Hegel, Benjaminobservou: S quando est escuro a coruja de Minerva inicia o seu voo, e concluiu: S naextino o colecionador compreendido. Quando Benjamin invocou um filsofo alemo dosculo xix, uma deusa romana e uma coruja, estava claramente aludindo famosa mxima deGeorg Wilhelm Friedrich Hegel: A coruja de Minerva ala seu voo somente com o incio docrepsculo, com que Hegel quis dizer que o filosofar s pode comear depois que os eventosse desenrolaram.

    Benjamin sentia que o mesmo se dava com bibliotecas particulares. S depois que ocolecionador tivesse disposto seu ltimo livro na estante e morrido quando sua bibliotecapudesse falar por si mesma, sem a presena do proprietrio para perturbar ou ofuscar osvolumes individuais poderiam revelar o conhecimento preservado de seu proprietrio:como ele afirmava a sua posse, escrevendo seu nome na contracapa ou colando uma etiquetaex-libris sobre uma pgina inteira; se os deixava manchados e com dobras nos cantos daspginas, ou se as pginas permaneciam intactas e no lidas.

    Benjamin sugeriu que uma biblioteca particular serve de testemunha permanente econfivel da personalidade do seu colecionador, levando-o seguinte ideia filosfica:colecionamos livros na crena de que os estamos preservando quando na verdade so oslivros que preservam seu colecionador. No que os livros se tornem vivos nele, Benjaminpostulou. ele quem vive nos livros.

    No ltimo meio sculo, o que restou da biblioteca de Adolf Hitler ocupou espao nasprateleiras na obscuridade climatizada da Diviso de Livros Raros da Biblioteca doCongresso. Os 1200 volumes sobreviventes que outrora adornavam as estantes de livros deHitler em suas trs elegantes bibliotecas revestimentos de madeira, tapetes grossos,luminrias de lato, poltronas superestofadas nas residncias particulares em Munique,Berlim e Obersalzberg, perto de Berchtesgaden, agora esto espremidos em fileiras nasestantes de ao de uma rea de depsito sem adornos e mal iluminada do prdio ThomasJefferson, no centro de Washington, bem perto do Washington Mall e em frente SupremaCorte dos Estados Unidos.

    A energia da lgica emocional que antes permeava essa coleo Hitler rearrumavaseus livros sem cessar e insistia em mud-los pessoalmente de estante foi cortada. A cpiapessoal de Hitler da genealogia de sua famlia est espremida entre uma coleo encadernadade artigos de jornais intitulada Meditaes dominicais e um flio de charges polticas dosanos 1920. Uma edio fac-smile com bela encadernao das cartas de Frederico, o Grande,especialmente criada para o quinquagsimo aniversrio do Fhrer, repousa em uma estante de

  • calhamaos, sob um volume igualmente pesado de apresentao da cidade de Hamburgo e umahistria ilustrada da marinha alem na Primeira Guerra Mundial. A cpia de Hitler dos textosdo lendrio general prussiano Carl von Clausewitz, autor da frase memorvel de que a guerra a poltica por outros meios, compartilha espao com um livro francs de culinriavegetariana com a dedicatria: Monsieur Hitler vgtarien.

    Quando examinei pela primeira vez os livros sobreviventes de Hitler, na primavera de2001, descobri que menos de metade dos volumes havia sido catalogada, e apenas duzentoseram acessveis no catlogo on-line da Biblioteca do Congresso. A maioria estava cadastradaem fichas antigas, ainda no sistema de numerao idiossincrsico atribudo na dcada de1950.

    Na Universidade Brown, em Providence, Rhode Island, localizei mais oitenta livros deHitler num estado similar de saudvel abandono. Retirados de seu bunker em Berlim naprimavera de 1945 por Albert Aronson, um dos primeiros americanos a entrar em Berlim apsa derrota alem, foram doados universidade pelo sobrinho de Aronson, no final da dcadade 1970. Atualmente esto guardados num depsito de poro apertado, junto com a cpiapessoal de Walt Whitman de Folhas de relva e os flios originais de Birds of America, deJohn James Audubon.

    Entre os livros da Universidade Brown, encontrei um exemplar de Mein Kampf com aetiqueta ex-libris de Hitler, uma anlise da pera Parsifal, de Wagner, publicada em 1913,uma histria da sustica de 1921 e cerca de meia dzia de volumes de literatura espiritual ouocultista que Hitler adquiriu em Munique no incio da dcada de 1920, inclusive um relato deocorrncias sobrenaturais, Os mortos esto vivos!, e uma monografia sobre as profecias deNostradamus. Descobri livros adicionais de Hitler espalhados por arquivos pblicos eprivados nos Estados Unidos e na Europa.

    Dezenas desses livros sobreviventes de Hitler tm marcaes nas margens. Ali encontreium homem, famoso por nunca ouvir ningum, para quem as conversas no passavam de umaarenga contnua, um monlogo incessante, parando para se envolver com o texto, parasublinhar palavras e frases, para marcar pargrafos inteiros, para colocar um ponto deexclamao ao lado de uma passagem, um ponto de interrogao ao lado de outra, e comfrequncia uma srie enftica de linhas paralelas na margem ao longo de determinadapassagem. Como pegadas na areia, essas marcas permitem rastrear o rumo da jornada, masno necessariamente o objetivo: onde sua ateno foi capturada e permaneceu, onde correupara a frente e onde terminou.

    Em uma reedio de 1934 das Cartas alems, de Paul Lagarde, uma srie de ensaios dofinal do sculo xix que defendiam a remoo sistemtica da populao judaica da Europa,encontrei mais de cem pginas de intromisses a lpis, a partir da pgina 41, em que Lagardedefende a transplantao dos judeus alemes e austracos para a Palestina, e estendendo-sea passagens mais deplorveis nas quais se refere aos judeus como uma pestilncia. Essa

  • pestilncia da gua precisa ser erradicada dos nossos rios e lagos, Lagarde escreve pgina276, com uma anotao afirmao ousada a lpis na margem. O sistema poltico sem o quala gua no consegue existir precisa ser eliminado.

    O historiador Ian Kershaw descreveu Hitler como uma das personalidades maisimpenetrveis da histria moderna. Kershaw escreve:

    A combinao da inata reserva de Hitler, o vazio de suas relaes pessoais, seu estilo no burocrtico, os extremos deadulao e dio que provocava, e a apologtica e distores baseadas em memrias do ps-guerra e relatos indiscretosdaqueles que o cercavam fizeram com que, apesar de todas as montanhas de papis sobreviventes emitidos pelo aparatodo governo do Terceiro Reich, as fontes para reconstituir a vida do Ditador Alemo fossem, em muitos aspectos,extraordinariamente limitadas bem mais que no caso, digamos, de seus principais adversrios principais, Churchill oumesmo Stlin.

    A biblioteca de Hitler por certo abriga sua poro de material ignorado: dois teros desua coleo consistem em livros que ele nunca olhou, muito menos leu, mas existem tambmvrios volumes mais pessoais que Hitler estudou e marcou. Alm disso h detalhes pequenos,mas reveladores. Enquanto eu examinava os volumes intactos da coleo de livros raros daBiblioteca do Congresso, deparei com um livro cujo contedo original havia sido retirado. Ascapas da frente e de trs estavam firmemente presas lombada por uma encadernao de linhopesado, com o ttulo sia do norte, central e do leste: Manual de cincia geogrfica,estampado em dourado sobre um fundo azul. As pginas originais haviam sido substitudas porum mao de documentos desordenados: cerca de uma dzia de negativos de fotos, ummanuscrito sem data intitulado A soluo para a questo alem e uma breve anotaodatilografada num carto de apresentao que dizia:

    Meu FhrerNo 14o aniversrio do dia em que voc esteve pela primeira vez em Sternecker, a sra. Gahr lhe apresenta a lista dos

    seus primeiros companheiros de combate. Estamos convictos de que esta a hora do nascimento de nosso maravilhosomovimento e do nosso Reich. Fiis at a morte.

    Sieg Heil!Os Velhos Camaradas

    O carto no trazia data, e a lista dos antigos quadros do Partido Nazista estava faltando,mas a meno sra. Gahr, supostamente a esposa de Otto Gahr, o ourives que Hitlerincumbiu de moldar as primeiras susticas de metal para o Partido Nazista, bem como areferncia ao 14o aniversrio da primeira apario de Hitler na Cervejaria Sternecker,preserva, num breve esboo, a trajetria de arrivista poltico, em 1919, a chanceler do Reichalemo, em 1933.

    Para este livro, selecionei os volumes sobreviventes com importncia emocional ouintelectual para Hitler, aqueles que ocupavam os seus pensamentos nos momentos deprivacidade e ajudaram a moldar suas palavras e aes pblicas. Um dos primeiros um guia

  • de viagem adquirido por quatro marcos numa segunda-feira sombria do final de novembro de1915, quando, aos 26 anos, servia como cabo no front ocidental. O ltimo uma biografia queestava lendo trinta anos mais tarde, nas semanas que culminaram com seu suicdio, naprimavera de 1945. Procurei ser criterioso na minha escolha, selecionando apenas livros comindcios convincentes de pertencerem a Hitler. Exerci cautela semelhante com as marcaesnas margens, j que difcil comprovar com certeza a autoria de intromisses a lpis. Denovo confiei nos indcios corroborantes, e discuto casos individuais no texto, baseando-menas descobertas de estudos anteriores eventualmente disponveis. Para tornar os ttulosacessveis ao leitor no alemo, geralmente adoto tradues inglesas dos ttulos originais,1exceto em casos bvios como Mein Kampf, ou Minha luta.

    Ao encerrar seu prefcio sobre colees de livros, Walter Benjamin aborda oinvestimento emocional, bem como financeiro, que realizou em volumes individuais. Elerecorda vivamente o dia, em 1915, em que adquiriu uma edio especial de A pele de onagro[La peau de chargin] com suas magnficas gravuras de chapa de ao, e os detalhes e ascircunstncias exatas da aquisio de um tratado raro de 1810 sobre ocultismo e filosofianatural, Fragmentos pstumos de um jovem fsico, do autor alemo Johann Wilhelm Ritter.

    Os livros inundaram Benjamin de lembranas: lembranas dos aposentos onde esseslivros haviam sido guardados, do meu recanto de estudante em Munique, de meu quarto emBerna, da solido de Iseltwald margem do lago de Brienz e, finalmente, do meu quarto demenino, o antigo local de apenas quatro ou cinco desses milhares de volumes.

    Hitler no deixou nenhuma narrativa equivalente de sua prpria coleo, nenhum relatode como passou a possuir este ou aquele volume ou do seu significado emocional particular,mas as diversas dedicatrias, marcaes nas margens e outros detalhes fornecem uma viso daimportncia pessoal e intelectual dessas obras para a sua vida. O que se segue so as histriasque contam.1 Em nossa edio, traduzidos para o portugus. (N. T.)

  • livro 1Leituras da linha de frente, 1915

    O que o mundo do sculo XX acha mais fascinante na capital do Reich alemo no exatamente a beleza deseus monumentos histricos ou de sua rica herana cultural.

    Max Osborn, Berlim, volume 41 da srieLocais Culturais Famosos publicada em Leipzig em 1909

    Numa manh sombria do final de novembro de 1915, Adolf Hitler, ento cabo do 16oRegimento de Infantaria de Reserva Bvaro, deixou seu alojamento numa casa de fazenda dedois andares na periferia de Fournes, pouco mais de trs quilmetros atrs do front no norteda Frana, e, com seu casaco de trincheira bem fechado para se proteger do frio do outono ebotas pregadas com tachas estrepitando nas pedras de cantaria midas, entrou na cidade paracomprar um livro.

    Para o soldado de linha de frente de 26 anos, a semana prometia ser calma, no diferenteda anterior, cuja tranquilidade s havia sido rompida ocasionalmente por tiros de canho doinimigo e a ameaa de ataques com gs. Na tera-feira anterior, quando a densa neblina sedissipara por um curto perodo, trs biplanos britnicos haviam circulado pelo setor porvrias horas. Sua apario, seguida pelo clangor dos alarmes de gs, fez que os soldados dalinha de frente procurassem suas mscaras de borracha e culos protetores. Em novembro de1915, o gs venenoso era uma novidade no front.

    Algumas semanas antes, diversos soldados negros, indianos pressionados a servir noexrcito britnico, haviam desertado para as linhas alems, prevenindo sobre um ataqueiminente. Temendo essa nova arma silenciosa, os homens acenderam fogueiras epermaneceram em meio aos rolos de fumaa para testar aqueles instrumentos toscos. Naquelanoite, observaram uma misteriosa nuvem amarela fluir para a terra de ningum, pairar por aliameaadoramente e depois, com a mudana da brisa, retornar com a mesma calma s linhasbritnicas. Vrios alarmes de gs haviam soado desde ento, mas sem nenhum incidente. Natera-feira, 16 de novembro de 1915, o dirio do regimento dizia: alarme falso.

  • Na segunda-feira seguinte, quando Hitler comprou seu livro, o dia amanheceu cinzento efrio, com um denso nevoeiro junto ao solo que continuou impedindo os tiros de canho, excetoalguns mais espordicos. Quando a bruma se dissipou no final da manh, a artilharia britnicasalpicou o setor de 3,2 quilmetros do regimento com barragem de artilharia difusa, mirandonos postos de comando e espalhando estilhaos de bomba pelo Setor H. De seu alojamentode descanso em Fournes, Hitler teria ouvido o som abafado dos bombardeios ao longo dohorizonte.

    Como um Meldegnger, ou mensageiro, designado para o quartel-general doregimento, Hitler costumava trabalhar em turno de revezamento: trs dias na frente de combatee trs descansando em Fournes. Dali, Hitler caminhava por uma estrada rural at a aldeiavizinha de Fromelles, onde se localizavam os postos de comando e de primeiros socorros dalinha de frente, em meio aos prdios destrudos, e dali, por uma srie de trincheiras decomunicao, para uma paisagem de pesadelo com campos cheios de crateras e aldeias emrunas. Para facilitar os movimentos de tropas e ajudar a orientar os mensageiros, as aldeiasfrancesas receberam nomes alemes.

    Os nomes dos lugares refletiam a devastao: Knallhte (Cabana Explodida), Backofen(Forno) e, em uma curva onde as trincheiras britnicas e alems quase se encontravam, TotesSchwein (Porco Morto). Uma aldeia foi batizada de Petzstadt por causa de Friedrich Petz, ocomandante do regimento. No flanco esquerdo, limite entre o 16o e o 17o Regimentos deInfantaria de Reserva (rir), uma fazenda arrasada havia sido apelidada de Dachau, apitoresca colnia de artistas ao norte de Munique que merecera duas estrelas nos guiasMichelin da poca, mas que adquiriria repercusso bem diferente nas dcadas vindouras.

    Embora as atribuies do Meldegnger costumassem ser triviais, o trabalho podia serperigosssimo. Quando o bombardeio destrua as linhas telefnicas, os mensageiros eramforados a correr em meio aos estilhaos de bomba que voavam, enquanto a maioria dossoldados se encolhia nas casamatas subterrneas. As mensagens deviam ter um cdigo deprioridade x para entrega normal, xx para maior importncia, xxx para urgente , mas oshomens com frequncia corriam riscos desnecessrios. Repetidamente fui exposto ao fogo deartilharia pesada embora nada mais que um carto-postal precisasse ser entregue, Hitler maistarde recordou. No primeiro dia de combate na batalha de Wytschaete, no outono de 1914, aunidade de oito homens se viu reduzida metade, com trs homens mortos imediatamente e umferido com gravidade. No outono de 1915, Hitler era o nico membro original sobrevivente naunidade.

    No incio de outubro de 1915, durante uma batalha para desalojar as tropas britnicas deuma salincia conhecida como Hohenzollernwerk, os mensageiros receberam uma atribuioainda mais perigosa quando foram pressionados a entregar braadas de granadas ao front, medida que os soldados da linha de frente iam expulsando os britnicos de suas trincheiras,metro aps metro, base de exploses, usando 1500 granadas de mo para limpar um trecho

  • de 274 quilmetros de trincheiras e mais 2 mil para limpar outros 457 quilmetros. A batalhapela Hohenzollernwerk demonstrou outra vez que a granada de mo a arma mais terrvel eeficaz para o combate cerrado, Petz informou aps a batalha.

    Em outubro, as chuvas paralisaram as ofensivas de outono, enquanto os soldados emambos os lados da terra de ningum passaram a lutar contra a lama, em vez de uns contra osoutros. Entre os livros remanescentes de Hitler, encontrei a histria de quinhentas pginas deseu regimento, Quatro anos da frente ocidental: Histria do Regimento List, RIR 16;Memrias de um regimento alemo, primorosamente encadernada em couro marrom, em quea aflio e o desespero daquelas semanas esto vivamente preservados. Quando a chuvaincessante faz um rio transbordar, a gua inunda as trincheiras do rir 16 com consequnciasquase apocalpticas. Duas das unidades de nossa companhia [...] foram pegas to de surpresapelo dilvio que os homens na trincheira mal tiveram tempo de apanhar suas armas eequipamentos e abrigar-se no baluarte, registra a histria do regimento. Eles permaneceramali agachados, um atoleiro sua frente e uma torrente enfurecida atrs, muitos expostos semproteo viso aberta do inimigo. Sua nica salvao foi o fato de que os britnicosestavam igualmente ocupados tentando se salvar da enxurrada. A histria do regimento calculaque, para cada soldado da linha de frente preparado para combater os britnicos, dez homensestavam batalhando contra o lodo.

    O dirio, agora no Arquivo de Guerra Bvaro em Munique, no apenas confirma abatalha desigual dos soldados da linha de frente contra as intempries, mas tambm sua lutaigualmente desigual com a tecnologia nas estaes de bombeamento da linha de frente. Em 22de novembro de 1915, o comandante do regimento registra um dia tpico:

    Bombas eltricas no Setor A 6-11 da noite falta de energia11-11:30 da noite. Mangueira danificada7:45 da manh-12:30 da tarde falta de energiaNo setor C 8-12 da manh falta de energia

    Nessas semanas ociosas devido chuva, Hitler ficou aquartelado em Fournes, comatribuies apenas ocasionais. Em 21 de outubro, Petz despachou Hitler e outro mensageiro,Hans Lippert, cidade de Valenciennes para requisitar um colcho novo. De acordo com apapeleta de requisio, Hitler e Lippert foram autorizados a pernoitar l. Na viagem de volta,Hitler carregou o colcho por quase todo o caminho, j que Lippert era seu superiorhierrquico.

    Um ms e um dia depois, ainda ocioso devido s intempries, Hitler foi andando atFournes e adquiriu uma histria arquitetnica de Berlim do clebre crtico Max Osborn.Apesar das trezentas pginas, Berlim, de Osborn, um volume particularmente fino, poiscoube com facilidade no bolso de um casaco de trincheira como se fosse a carteira de umturista cultural. Na capa verde-oliva impermevel, berlin est estampado em carmesim forte,

  • complementado por um perfil do porto de Brandemburgo, cujas seis colunas dricas soparalelas s letras precisamente espaadas do ttulo do livro.

    A certa altura naquele dia, Hitler retornou ao relativo conforto de seu alojamento na casade fazenda de dois andares, abriu seu volume de capa dura e tomou posse do contedo comuma letra particularmente tmida, anotando seu nome, o local e a data no canto superior direitoda contracapa, em um espao no maior que o de um selo postal.

    Oitenta anos depois, o livro de Osborn atesta o seu servio na linha de frente.Desgastados e escurecidos, os cantos se curvam para dentro como casca de limo seco. A

    lombada pende precariamente de tendes de linho desfiados, expondo os cadernos amarradoscom fios. Uma mancha de lama oculta as letras finais de novembro. Quando abri essevolume frgil na Sala de Leitura de Livros Raros da Biblioteca do Congresso, os sonsabafados do trfego matutino rompendo o silncio, um arenito fino respingou de suas pginas.

    Mais ou menos na mesma poca em que Hitler adquiriu seu exemplar de Berlim, MaxOsborn passou a poucos quilmetros de Fournes, na estrada de Lille a Auber. Ele chegara frente de batalha em janeiro, poucos meses depois de Hitler, numa misso para o VossischeZeitung, o prestigioso jornal de Berlim para o qual escrevia havia quase duas dcadas.

    Nascido no mesmo meio privilegiado de Berlim que formara os gostos e interessesintelectuais de Walter Benjamin, Osborn se consolidara como um dos principais crticos dearte da poca, conquistando um vasto pblico leitor com seus comentrios irreverentes sobreesttica e cultura. Numa histria cultural de Sat, Osborn considerou os anjos as maisenfadonhas das criaturas de Deus e dedicou trezentas pginas relatando diversasextravagncias satnicas nas artes, msica e literatura. Foi amigo do pintor Max Liebermann ecunhou a expresso rococ expressionista.

    Em 1908, quando a editora Seemann Verlag solicitou a Osborn que escrevesse um guia deBerlim, ele concordou mas sob o pressuposto de que era um crtico de arte, no um guiaturstico. Desse modo, recebeu o leitor em seu Berlim com a advertncia maldosa: por que seueditor incluiria essa cidade entre as capitais culturais da Europa quando o que o mundo dosculo xx acha mais fascinante na capital do Reich alemo no exatamente a beleza de seusmonumentos histricos ou de sua rica herana cultural?

    Osborn chegou frente ocidental com o mesmo distanciamento. Ao atravessar os camposde batalha do norte da Frana, visitando a devastao ao longo do Somme, no Marne e pertode Verdun, Osborn encontrou pouca coisa nova ou chocante. A carnificina humana ali pareceupouco mais do que recriaes em carne e sangue das gigantescas telas que estudara na GaleriaNacional em Berlim. Osborn j vira tudo aquilo antes.

    Os soldados alemes, com seus capacetes pontudos e baionetas, pareciam encarnaesatuais dos guerreiros com lanas dos murais do sculo xvi. Os lana-chamas, com suas nuvensde fumaa e fogo cuspidos pela terra destruda, haviam sido vivamente tecidos naquelas

  • tapearias antigas. E aquele horrendo instrumento favorito de combate cerrado atual, agranada de mo, Osborn escreveu para seus leitores na Alemanha, j teve seu papel nosculo xvii, bem como nos exrcitos dos gro-duques. Quando o crtico na frente de combatevislumbrou um mensageiro galopando num cavalo pelo campo aberto, homem e animal usandomscara contra gs, ele comparou a cena a uma tela de Hieronymus Bosch.

    No final de maio de 1915, os caminhos de Osborn e Hitler quase se cruzaram no campode batalha em Ypres, onde os alemes haviam repelido a segunda grande ofensiva britnica aolongo daquela frente, ambos os lados sofrendo baixas macias. O rir 16 perdeu mais demetade dos seus homens: 1600 soldados e todos os oficiais, exceto um. Osborn chegou poucoaps a carnificina e inspecionou o campo de batalha da torre inclume da catedral de Ypres,que se erguia milagrosamente sobre a cidade destruda. Em meio destruio, Osborn se viutestemunha do segundo ato da maior batalha da guerra.

    Defesas de trincheiras e casamatas destrudas se erguem do solo, ele observou.

    Paredes de terra desmoronando, sacos de areia esmagados, escombros espalhados, trechos de arame farpado retorcido equebrado: resduos imundos cobrem o cho, pedaos de uniformes, trapos sangrentos, meias, cantis, fragmentos de jornaisfranceses, pginas rasgadas de revistas inglesas, latas de rao, cartuchos vazios, munies no utilizadas.

    Os corpos j haviam sido removidos, mas o cheiro de morte pairava, contaminando o arcom um aroma de carne desinfetada e em decomposio.

    Naquele outono, Osborn percorreu os campos de batalha a oeste de Lille, visitando ascidades na linha de frente de Richebourg e Neuve-Chapelle e passando ao longo do frontperto de Fournes. Quando voc chega a essas aldeias, esto patticas e arruinadas, casasdestrudas por bombas, fazendas queimadas, paredes furadas por balas, ele escreveu. Umapaisagem desoladora!

    quela altura, o entusiasmo potico de Osborn havia arrefecido. Ali jazem os corpos emdecomposio que os agressores deixaram para trs, ele observou. Hordas de ratos sealimentam deles, o que os torna grandes e gordos, quase como pequenos ces repugnantes,nojentos de olhar, e quando por equvoco correm para dentro das trincheiras, os soldados,cheios de asco, os matam. Ele achou aterrorizante, simplesmente incompreensvel quetodas as imagens de encanto tivessem se transformado em imagens de horror.

    Quando a guerra completou seu segundo ano, sem nenhuma perspectiva de fim dacarnificina, Osborn sentiu uma mudana no apenas em si mesmo, mas tambm entre ossoldados. Em ambos os lados da terra de ningum, os homens estavam se tornando cada vezmais hostis e amargurados. Os dias ferozes de luta no final de setembro trouxeram umaemoo nova guerra que se transferiu de uma trincheira para a outra, Osborn escreveu em22 de outubro de 1915. A luta se tornou mais implacvel, mais feroz, mais cruel. Aferocidade com que a grande ofensiva foi lanada e neutralizada ainda pode ser sentida. Ostempos haviam mudado.

  • Na vspera do Natal de 1914, soldados de ambos os lados haviam se reunido na terra deningum para celebrar a festa, e nos meses seguintes atiraram bilhetes amigveis uns aosoutros, dividiram geleia e cigarros, e chegavam a interromper os tiros para que o inimigopudesse recolher ou enterrar seus mortos.

    Eles agora trocavam insultos e cartas odiosas e maldosas. Os franceses compunhamdsticos rimados insultando o Kaiser e o prncipe herdeiro. Uma mensagem lanada atravs daterra de ningum dizia: Os boches so porcos e deveriam ser guilhotinados, em vez defuzilados. Anos depois, Hitler recordaria um endurecimento semelhante do esprito humano.No inverno de 1915-6, essa luta interna para mim havia sido decidida, escreveu em MeinKampf. Enfim a minha vontade era o senhor indiscutvel. Se nos primeiros dias exagerei naeuforia e risos, agora estava calmo e determinado. Hitler observou que seus nervos e razohaviam sido enrijecidos pela batalha constante. O jovem voluntrio havia se tornado umvelho soldado, ele escreveu. E essa transformao ocorrera em todo o exrcito.

    Em novembro de 1915, aps mais de um ano na frente de batalha, a transformao deHitler j era evidente, uma mudana emocional preservada em objetos remanescentes em suabiblioteca. Numa fotocpia encadernada em couro do histrico militar de Hitler, que incluiseus documentos de alistamento, d como domiclio permanente Munique, e no lista nenhumfamiliar, nem suas meias-irms mais velhas, Alois e Angela, nem sua irm mais nova, Paula.Em 1914, todo contato regular com a famlia parece ter se rompido. Paula mais tarde contouque pensou que ele estivesse morto.

    Outro flio encadernado contendo fotocpias de cartes-postais e cartas que Hitlerenviou a Ernst Hepp, um conhecido de Munique, tambm indica um relacionamento rompido.Em frases longas e sinuosas, pontuadas de apelos emocionais que prenunciam seu estiloretrico nas dcadas vindouras, Hitler preenche pgina aps pgina com relatos vigorosos daluta na linha de frente e seu desejo de retornar para casa. Penso tantas vezes em Munique, ecada um de ns tem o nico desejo de que teremos, enfim, ajustado contas com essa gangue,seja qual for o desenlace, Hitler escreve para Hepp.

    Liquidar com isso, custe o que custar, e que aqueles de ns que tiverem a sorte de rever sua terra natal a encontrem maislimpa e ainda mais purificada dos elementos estrangeiros, atravs do sacrifcio e sofrimento por que tantas centenas demilhares de ns passam diariamente, e do sangue derramado aqui contra um mundo internacional de inimigos.

    A ltima carta a Hepp datada de 5 de fevereiro de 1915.Na poca em que o rir 16 tomou posio em Fournes, em maro de 1915, onde

    permaneceria pelos prximos dezoito meses, Hitler parece ter feito do front o seu lar. Seucompanheiro mais prximo era um terrier ingls que capturou naquela primavera, quando, aoperseguir um rato pela terra de ningum, foi parar nas linhas alems. Chamou-o de Foxl eamestrou-o, ensinando proezas como caminhar sobre as patas traseiras e subir uma escada de

  • mo, para divertimento de seus companheiros. Foxl o acompanhou em suas misses no frontat outubro daquele ano, quando os britnicos introduziram o gs venenoso.

    Dispomos de diversas fotografias de Hitler e Foxl em Fournes. Numa delas, Hitler estapoiado num cavalete, um homem desengonado e desajeitado, bochechas plidas, bigodecerrado e orelhas grandes e protuberantes. Ele olha para a cmera com olhos semicerradospor causa da luz do sol, enquanto Foxl, que se estende sobre o colo de dois soldados sentados,estica o pescoo na direo de Hitler.

    Max Amann, o sargento da companhia, recorda Hitler como um homem sem dvidaestranho, mas particularmente desprendido. Amann lembra que, quando descobriu uma sobrano oramento da companhia e ofereceu-a a Hitler, porque o austraco parecia ter poucodinheiro, Hitler agradeceu e sugeriu-lhe que a destinasse a algum mais necessitado. De formasemelhante, quando Amann o recomendou para uma promoo, o cabo Hitler recusou. Disseque obtinha mais respeito sem as listras de oficial. Parecia desprendido ao extremo. Mesmoque eu chegasse s trs da manh, havia sempre alguns homens em servio, Amann recordou.Quando eu dizia: Mensageiro!, ningum se mexia, com exceo de Hitler, que se levantavade um salto. Quando eu reclamava: Voc de novo!, ele retrucava: Deixe os outrosdormirem. Eu no me importo.

    Embora os relatos de Amann devam ser vistos com cautela, j que ele se tornaria umcompanheiro prximo de Hitler e, mais particularmente, o editor de Mein Kampf, mais umavez a biblioteca de Hitler fornece indcios afirmativos. Em um desgastado relato de guerra,Com Adolf Hitler no Regimento de Infantaria de Reserva Bvaro 16 List, escrito pelocolega veterano do rir 16 Adolf Meyer e presenteado a Hitler em 1934, observamos o cabode vinte e poucos anos ziguezagueando por um campo aberto coberto das culturas nocolhidas do vero anterior enquanto colegas soldados se amontoam numa trincheira.Quando o homem salta para a segurana da companhia deles, Amann informa sucintamente:Mensageiro, Quartel-General Regimental 16, Hitler.

    A dedicao de Hitler aos seus deveres tambm est preservada em sua cpia pessoal dahistria de quinhentas pginas do rir 16, com uma dedicatria manuscrita de MaximilianBaligrand, o ltimo comandante do rir 16, a Hitler: Ao corajoso mensageiro, o ex-caboextremamente condecorado sr. Adolf Hitler, em memria de uma poca sria, mas grandiosa,com agradecimentos. Datada do Natal de 1931, um ano completo antes da tomada do poderpor Hitler, a dedicatria manuscrita foi feita bem antes que houvesse uma razo bvia parabajular o ex-cabo.

    Mais importante, claro, o grande flio com o histrico completo do servio militar deHitler. Compilado em julho de 1937 para os Arquivos do Partido Nazista, a srie de dezoitofotocpias de documentos do Escritrio Central para Ferimentos de Guerra e Tmulos foifeita em duplicata para Hitler. Alm do registro dos dois ferimentos de guerra de Hitler, suasduas condecoraes por bravura a Cruz de Ferro Segunda Classe em 1914 e a Cruz de

  • Ferro Primeira Classe em 1918, a mais alta condecorao militar para um oficial subalterno e seus documentos de baixa do exrcito em maro de 1920, o flio tambm inclui umaavaliao de seus quatro anos de servio. O documento 16 registra: Comportamento: MuitoBom, Penalidades: 0.

    Em novembro de 1915, o fato de um cabo da linha de frente gastar quatro marcos com umlivro sobre os tesouros culturais de Berlim, quando cigarros, aguardente e mulheres estavamdisponveis para distraes mais imediatas e palpveis, pode ser visto como um ato detranscendncia esttica, uma fuga indireta do mundo arruinado de refinamento e beleza queOsborn observou se dissolvendo na lama do Somme, ou, no caso de Hitler, um possvel sinalda aspirao permanente por uma carreira de artista, como indicado por marcas arenosas dededos que encontrei ao lado de uma reproduo na pgina 282 de Diana e suas ninfasatacadas pelos stiros, de Rubens, e outras manchas ao longo da margem da pgina 292, aolado de uma ilustrao de Botticelli para a Divina comdia, de Dante, em que uma figuradesesperada se agarra a um anjo ao ser erguida do Inferno.

    Com linhas nervosas permeando os mantos do anjo e a face angustiada do homem,Botticelli transmite premncia e desespero, contrastando com o semicrculo perfeito queemana da mo erguida do anjo, cercando a cena com um hemisfrio de serenidade e segurana.Com uma notvel economia de forma, ele cria um momento fortemente emotivo de salvao,bem como uma lio tcnica sobre contraste e movimento para estudantes de desenho.Enquanto Hitler examinava esse esboo, seus dedos deixaram uma srie de marcas arenosasao longo da margem direita, que mostravam o percurso de sua ateno.

    Essa ateno ao detalhe artstico indica a resistncia de um esprito artstico obstinadoque sobreviveu s objees veementes do pai (Um pintor? Nunca!), rejeio devastadorapela Academia Real de Artes de Viena (Aquilo me atingiu como um raio do cu) e compreenso subsequente de que mesmo sua verdadeira vocao na vida, a arquitetura, estavaalm do seu alcance. No se podia cursar a escola de arquitetura da Academia sem tercursado a escola de edificaes na Technik, e esta exigia um diploma de nvel mdio, Hitlermais tarde lamentou. Eu no tinha nada disso. Viveu precariamente os cinco anossubsequentes como pintor freelance em Viena e Munique, o que no enfraqueceu suasambies artsticas. De fato, quando Hitler se alistou no exrcito, no incio do outono de 1914,registrou sua profisso como artista.

    Hitler no foi o nico soldado a marchar para o front com ambies artsticas.1 Asfileiras do rir 16 estavam repletas de pintores profissionais que passaram grande parte daguerra registrando a vida diria e o horror do front e cujas obras foram preservadas nahistria do regimento. Havia Wilhelm Kuh, autor de uma srie de desenhos tinta das runasde Fromelles, inclusive uma casa de fazenda atingida por um disparo que deixou o telhadodespedaado, com um enorme buraco no meio; Alexander Weiss, que desenhou os tmulos de

  • soldados mortos ao longo das trincheiras perto de Fromelles; e Max Martens, cuja aquarela deseu alojamento na linha de frente, com o telhado reforado e sacos de areia entrada, mostraum letreiro pintado num poste alto que mescla amarga ironia com doce nostalgia ao usar onome da lendria cervejaria de sua Munique natal: Lwenbru.

    Nenhum dos esforos artsticos de Hitler durante a guerra est includo na histria de seuregimento. Sua prpria biblioteca preserva seis de suas aquarelas num flio publicado por seufotgrafo Heinrich Hoffmann em 1935. O volumoso livro de capa dura, com as palavrasHitlers Aquarellen estampadas na capa, contm uma introduo de uma pgina e apresentareprodues de meia dzia de aquarelas, cada uma com um revestimento de papel vegetal, queHitler pintou entre o outono de 1914 e o vero de 1917. A mais antiga Estrada afundadaperto de Wytschaete, de novembro de 1914, que retrata o local onde Hitler recebeu suaprimeira Cruz de Ferro e onde a unidade de mensageiros do rir 16 foi dizimada. S emWytschaete, no dia do primeiro ataque, trs dos nossos oito homens foram mortos a tiros, eoutros gravemente feridos, Hitler escreveu posteriormente para Ernst Hepp. Ns, os quatrosobreviventes, e os homens feridos recebemos medalhas. Sua aquarela de Wytschaete mostrauma trincheira vazia se estendendo por uma floresta devastada pela guerra, com rvoresabatidas substituindo os homens abatidos.

    Em outra pintura, ele retrata um mosteiro saqueado e destrudo em Messines, onde no msseguinte o rir 16 se viu novamente fustigado em batalha. Hitler tambm inclui uma cena deFromelles que mostra o posto de primeiros socorros da linha de frente numa casa de fazendamarcada por estilhaos de bomba. De modo especial, Hitler inclui uma pintura de seualojamento na casa de fazenda em Fournes, onde estava aquartelado com seus colegasmensageiros, que eles jocosamente apelidaram de Local da Maria de Cabelos Escuros, emaluso resoluta mulher do fazendeiro que cuidava deles. Nessa pintura, Hitler mostra umacasa de fazenda resistente, de dois andares, com um celeiro anexo e escombros espalhadospelo ptio. Uma bicicleta est apoiada na parede. Por um perodo Hitler serviu como ciclistado regimento.

    Um observador recente destacou que a reproduo do alojamento na casa de fazendaincluda nas Aquarelas de Hitler mostra alteraes significativas em relao a uma cpia deum original que sobrevive nos Arquivos do Partido Nazista, sugerindo que Heinrich Hoffmannretocou o original de Hitler para consumo pblico. De fato, a cpia revela uma mo bemmenos hbil. A bicicleta est desenhada somente como um esboo vago, e os detalhes da casaesto grosseiramente desenhados. No obstante, o embuste incorporado ao flio e includoentre os livros remanescentes de Hitler expressa uma emoo autntica: a aspirao dele deser um artista melhor do que realmente era.

    Berlim tambm preserva alguns dos primeiros traos da eterna obsesso de Hitler pelacapital alem e do chauvinismo prussiano militante que compartilhou com Max Osborn. Assim

  • como Hitler escreve sobre seu desejo de ver a Alemanha depurada de elementosestrangeiros, Osborn critica as influncias de estilos arquitetnicos derivados do sculo xixque assolaram essa Esparta margem do Spree com orgias de uma degradao indizveldo gosto. Osborn lamenta a selvageria do gosto (Geschmacksverwilderung) que despojoua pureza prussiana de Berlim e a sobrecarregou com uma profuso de pragas artsticas.

    Osborn sente especial averso pelos arquitetos cuja imitao servil de influnciasestrangeiras, especialmente o helenismo dogmtico, arruinou a estrutura esttica deinmeras cidades alems. Ao mesmo tempo, elogia os arquitetos que conservaram uma visocaracteristicamente teutnica, enaltecendo o enorme Reichstag alemo abobadado como umreflexo artstico do organismo multifacetado do Reich alemo, admirando Karl FriedrichSchinkel pela marcialidade prussiana da Casa da Nova Guarda, construda em homenagemaos alemes mortos nas Guerras Napolenicas, e Karl Gotthard Langhans, que adornou Berlimcom seu monumento inconfundvel, o Porto de Brandemburgo. Osborn observa que, emboracolocasse seis colunas dricas sobre bases jnicas em deferncia ao classicismomediterrneo, Langhans evitou sabiamente a tentao de empregar um fronto helnico. Emvez disso, coroou sua estrutura com a impressionante encenao em cobre, a quadriga com osquatro cavalos transportando a carruagem da deusa da vitria, que conduz uma espada.

    Para Osborn, o Porto de Brandemburgo representa a suprema essncia doprussianismo, um equilbrio entre a beleza aperfeioada dos antigos e o claro estilo marcialda plancie norte-alem Grcia Antiga em solo prussiano! , a grecomania alempassando por um campo de treinamento prussiano, submetida ordem e aprendendo a seerguer resoluta e com plena ateno. Suas colunas tm algo de singularmente ordeiro e ereto,guardando grande semelhana com um granadeiro, escreve.

    A homenagem de Osborn graa e grandeza prussianas evidentemente repercutiu nojovem cabo austraco, como indicam as pginas cheias de dobras nos cantos e a lombadarompida. O livro mostra sinais de um exame cuidadoso manchas, pginas dobradas, umagota de parafina vermelha residual ainda viscosa aps oitenta anos num captulo de trintapginas sobre Frederico, o Grande, o lendrio rei-guerreiro do sculo xviii que consolidou aprimazia da Prssia como potncia militar. Frederico passou a servir como modelo deliderana e comportamento pessoal para Hitler no fim da vida, embora copiado comimperfeio catastrfica em seus ltimos anos como comandante militar.

    Osborn descreve o futuro dolo de Hitler como um monarca intrometido e avaro, queeconomizava na qualidade e se esmerava na imitao barata e pompa decadente. O rei, filhototal da mediocridade artstica de sua poca quando se tratava de gosto, via solues apenasna arbitrariedade frvola daquela era das perucas empoadas, Osborn reclama.

    Mais do que seus predecessores, Frederico se intrometia nos planos de todos os seus artistas atravs de intervenespessoais e mudanas. Mais do que seu pai, insistia com impacincia que o trabalho fosse realizado com rapidez e sesatisfazia com aparncia exterior s quais materiais inferiores, como gesso e estuque, pareciam adequados.

  • Ainda pior, Frederico evitava artistas e gnios, dando preferncia a artesos de segundae terceira classe dceis e menos caprichosos. Os equvocos arquitetnicos resultantesdanificaram no apenas a aparncia da cidade, mas tambm a sade e a reputao do regente.

    Ao planejar a sua residncia privada, Sanssouci, em Potsdam, Frederico de incioempregou o respeitado arquiteto de Berlim Georg Wenzeslaus von Knobelsdorff, mas noparou de interferir no projeto. De acordo com Osborn, Frederico forou Knobelsdorff adesistir da construo de espaos subterrneos, uma deciso, Osborn observa, que resultounum problema crnico de umidade que agravou o reumatismo do rei at o dia de sua morte.Knobelsdorff acabou sendo liberado do projeto e substitudo por um arquiteto mais dcil.

    Osborn tem prazer especial em narrar o desmoronamento da igreja de tijolos vermelhosdo Gendarmenmarkt em 1746. Frederico obrigou os construtores a concluir a igreja em metadedo tempo previsto e com um oramento bem reduzido. Quando a construo do telhado estavaquase no fim, as paredes da igreja desabaram, transformando o local numa pilha de escombrose matando quarenta operrios. Osborn reproduz uma gua-forte da poca da estruturaarruinada, com suas pedras desmoronadas, vigas esmagadas e andaimes quebrados, junto comgrupos de observadores pasmados. Os berlinenses naturalmente no pouparam zombarias,Osborn escreve. Um livreto com o ttulo sardnico Sinto muito defendeu a teoria irnica deque a estrutura havia sido construda com po de mel em vez de pedras.

    Na noite de 22 de outubro de 1941, um quarto de sculo aps ter adquirido o guia Berlim,de Osborn, Hitler relatou seu fascnio pela capital prussiana, reproduzindo a avaliao deOsborn.

    Sempre gostei de Berlim e, mesmo incomodado porque muita coisa l no era bonita, acidade significava muito para mim, lembrou. Duas vezes, durante a guerra, tive dez dias defrias. Nas duas vezes, fui a Berlim, e desde ento conheo os museus e colees de l.Hitler, fiel avaliao de Osborn, chamou a cidade de caixa de areia do antigo Reich, quehavia acumulado um saco de surpresas de estilos arquitetnicos determinados por soberanoscom pouca sensibilidade esttica Guilherme ii tinha gosto, s que extremamente ruim ,e lembrou sua prpria viso arquitetnica de formas primordiais do Norte alemo quederivaram de uma fonte grega, uma repetio da prpria frmula arquitetnica de Osborn:Grcia Antiga em solo prussiano!.

    Ao contrrio deste, que no podia fazer muito mais do que elogiar, lamentar ou satirizar,em 1941 Hitler possua o nimo e os meios para desfazer o passado. Queremos eliminar tudoque h de feio em Berlim, e tudo que a cidade obtiver agora deve representar o auge do quesomos capazes de alcanar com meios modernos, ele disse. Quem quer que entre naChancelaria do Reich deve ter a sensao de estar diante dos senhores do mundo, e mesmo opercurso at l, atravs do arco triunfal nas ruas largas passando pelo Monumento ao Soldadoat a praa do Povo, deve deixar todos sem flego. Ele vislumbrou o dia em que Berlimemergiria como a capital do mundo.

  • Hitler evidentemente adquiriu o livro de Osborn com finalidade turstica, como indicadopor outro volume da srie da Seemann, um guia de Bruxelas que encontrei entre os livrosremanescentes. Assim como Berlim, Bruxelas est encadernado com capa verde-oliva banal,o ttulo estampado em carmesim, e assim como no volume de Osborn o nome de Hitler estrabiscado no canto superior direito da contracapa.

    Embora no inclua o local nem a data da compra, podemos supor que o livro estava emsuas mos na primeira semana de julho de 1916, quando, logo aps a batalha pela florestaArgonne, Hitler aproveitou a licena de uma semana para visitar Bruxelas, acontecimentopreservado no apenas no histrico de seu servio militar, mas tambm num carto-postalenviado a um colega do rir 16. Esta viagem a mais maravilhosa que j fiz, apesar da chuvaque tem cado sem parar, Hitler escreveu de Bruxelas em 6 de julho. Trs meses depois, eledeparou com uma oportunidade imprevista de visitar Berlim.

    No final de setembro de 1916, aps dezoito meses perto de Fournes, o rir 16 recebeuordens de reforar as defesas do Somme. Os 3 mil homens marcharam at Haubourdin, ondepegaram um trem at Iwuy. Ali trocaram seus Pickelhauben pontudos por capacetes de ao emarcharam at Cambrai, depois prosseguiram at Fremicourt e, enfim, nos primeiros dias deoutubro, foram lanados em batalha entre as cidades de Bapaume e Le Barque. O dirio doregimento registra 250 mortos, 855 feridos e noventa desaparecidos. Praticamente toda aunidade de mensageiros foi morta ou ferida, como relatado por um soldado sobrevivente:

    Os mensageiros estavam numa passagem subterrnea to estreita e baixa que uma pessoa no conseguia passar pelaoutra. Mal dava para sentar. Vivamos tropeando nas pernas um do outro. O ar era to turvo e pesado que malconseguamos respirar. Uma escada pequena levava para fora. Eu acabara de me sentar junto de Hitler quando apassagem foi atingida por um tiro. O telhado foi derrubado e destroado em mil pedaos. Estilhaos de bomba voavam portoda parte.

    S dois homens saram ilesos.Hitler foi levado a um hospital de campanha prximo, em Hermies, com um estilhao de

    bomba na perna. Foi tratado no incio da manh seguinte em companhia de Ernst Schmidt, quetambm havia sido ferido e transportado por trem para um hospital militar da Cruz Vermelhaem Beelitz, cidadezinha perto de Potsdam, 64 quilmetros a sudoeste de Berlim. Passaria osprximos dois meses ali. Que mudana! Do lodaal da batalha de Somme para as camasbrancas deste prdio milagroso, Hitler mais tarde recordou. Uma fotografia datada de 26 deoutubro de 1916 mostra Hitler num pijama branco de hospital com doze outros pacientes. Dep na fila de trs, braos cruzados, o nico sem chapu, cabelos despenteados, bigodecrescido demais e cerrado, olhos escuros e intensos, expresso sombria. Parece mais velho,mais srio do que nas fotografias tiradas em Fournes no ano anterior.

    Enquanto se recuperava em Beelitz, Hitler teve chance de ver Berlim, visitandobrevemente seus museus e percorrendo os locais mais famosos da cidade, incluindo Unter den

  • Linden, o elegante bulevar ladeado de rvores e ancorado numa extremidade pelo Porto deBrandemburgo e, na outra, por um imponente monumento a Frederico, o Grande. Osbornafirma que, com essa grandiosa esttua equestre de bronze do rei prussiano com sua capa ecapacete inconfundveis no alto de um pedestal de bronze de trs nveis com cenasesculpidas do rei-guerreiro conduzindo suas tropas, o escultor Christian Daniel Rauch obteveo perfeito equilbrio entre classicismo e prussianismo. Rauch sabia como suprimir seusimpulsos clssicos, Osborn escreve com entusiasmo, e criar no Velho Fritz, com seu chapude trs bicos, peruca e bengala, uma obra-prima do realismo de Berlim.

    Em dezembro, Hitler foi liberado de Beelitz e viajou at Munique, onde passou o Natalantes de se juntar de novo ao rir 16 no front. Retornou a Berlim em outubro de 1917, ondepassou dez dias de licena com os pais de um colega do rir 16, Richard Arendt. A cidade fantstica, Hitler escreveu para Ernst Schmidt em 6 de outubro de 1917. Uma verdadeirametrpole. O trfego tambm impressionante. Estou em movimento quase o dia inteiro.Enfim encontrei tempo de estudar melhor os museus. Em suma: tenho tudo de que preciso.Incluindo, podemos supor, o guia Berlim, de Osborn.

    Hitler evidentemente confiou em Osborn como um guia aos tesouros museolgicos deBerlim, que o autor tinha em grande estima e afirmou que compensavam as deficinciasarquitetnicas da cidade. Osborn critica um museu por exibir as obras do pintor bvaro PeterCornelius em detrimento do artista prussiano Adolph Menzel e do austraco Moritz vonSchwind. Toda a planta baixa da Galeria Nacional foi to prejudicada pela exigncia de teras duas grandes galerias de Cornelius, Osborn diz, que as consequncias desse passo nuncasero completamente remediadas. Em seu esboo de uma reorganizao imaginria dacoleo, Hitler retifica essa deficincia dos curadores relegando as obras de Cornelius a umanica sala modesta, acomodando a coleo de Von Schwind em trs galerias sucessivas ededicando uma ala inteira s obras de Menzel. Hitler fez uma segunda visita de dez dias aBerlim no incio do outono de 1918, de novo passando o tempo em explorao a museus eatraes arquitetnicas.

    Ele retornou frente de batalha nos ltimos dias de setembro, justamente durante aofensiva final britnica da guerra. Ali foi cegado por um ataque de gs. Num morro ao sul deWervick, sofremos na noite de 13 de outubro vrias horas de fogo de artilharia intenso, combombas de gs que continuaram a noite inteira com maior ou menor violncia, Hitlerrecordou. J meia-noite, vrios de ns perderam os sentidos, alguns de nossos colegas parasempre. Hitler foi removido do front e transportado at um lazareto perto de Pasewalk, naPrssia Oriental, onde aos poucos recuperou a viso. Naquele novembro, ao tomarconhecimento da capitulao alem, viu-se brevemente acometido de um segundo ataque decegueira.

    Alguns anos depois, Hitler exagerou a importncia de sua cegueira em Pasewalk,alegando que, combinada com o trauma da capitulao alem, precipitou a epifania que o

  • levou a ingressar na poltica, conforme escreve em Mein Kampf.Embora exista um alinhamento aproximado entre o final do servio militar de Hitler no

    front e o princpio de sua atividade poltica, no existe nenhuma indicao de que ele retornouda guerra, em dezembro de 1918, com alguma inteno de pr em prtica seus pontos de vistapolticos.

    Hitler chegou a Munique com a viso plenamente recuperada e um exemplar com ligeirodesgaste do guia de Berlim de Osborn alm do guia de viagem sobre Bruxelas , quemanteria consigo pelo resto da vida. No princpio da dcada de 1920, Berlim se juntou a umnmero crescente de livros numa estante de madeira, primeiro no seu apartamento na ruaThiersch, 41 e, depois de agosto de 1929, acomodado em sua residncia mais elegante noterceiro andar de um prdio na praa Prncipe Regente, em Munique. Na segurana protetorada coleo de Hitler, esse volume sobreviveu queima de livros de maio de 1933 comojudeu, Osborn constava da lista dos autores proibidos e acabou emigrando para os EstadosUnidos e aos bombardeios subsequentes dos Aliados na dcada de 1940.

    A certa altura na primavera de 1945, Berlim foi embalado num engradado com 3 miloutros livros de Hitler e transferido para uma mina de sal perto de Berchtesgaden, onde foramdescobertos por uma unidade da 101a Diviso Aerotransportada americana, levados a umponto de coleta em Munique e, enfim, despachados, via Frankfurt, a um depsito emAlexandria, Virgnia. Aps vrios anos, o livro tornou-se parte da coleo de livros raros daBiblioteca do Congresso, onde recebeu o cdigo de catlogo N6885.07. Diviso de LivrosRaros e Colees Especiais da Biblioteca do Congresso.

    Na primavera de 2001, quando abri pela primeira vez Berlim, de Osborn, na calmaatmosfera da Sala de Leitura de Livros Raros, com os sons abafados do trfego do meio-dia,descobri, enfiado na dobra entre as pginas 160 e 161, um fio de cabelo preto rijo de 2,5centmetros que parecia ser de bigode. Uma extenso da ideia benjaminiana: o colecionadorpreservado dentro de seus livros, literalmente.1 Na Universidade Brown, encontrei uma srie de 33 guas-fortes feitas entre 1914 e 1916 pelo artista Fritz Grtner retratandosoldados da linha de frente bvaros. As guas-fortes assinadas foram encontradas entre os papis restantes de Hitler nobunker de Berlim aps o suicdio.

  • livro 2A influncia do mentor

    A ideia de tornar-se o rei do mundo no deve ser tomada ao p da letra como a Vontade de Poder. Ocultapor trs dela est a crena espiritual de que acabaremos sendo perdoados por todos os nossos pecados.

    Da introduo de Dietrich Eckart sua adaptaopara o palco de Peer Gynt, de Henrik Ibsen

    O exemplar de Peer Gynt de Hitler est bem desgastado. uma segunda edio,publicada pela Hoheneichen Verlag em 1917. Os papeles da capa esto tortos, arqueados nocentro e virados para dentro. A capa de linho barata de trama larga desbotou irregularmente.Uma mancha verde suja no centro se transforma num marrom sem vida ao longo das bordas,como um gramado estorricado no fim do vero. Uma faixa sem graa de papel verde-limo foicolada ao longo da lombada, exibindo vestgios do ttulo original gravado a ouro: as partessuperiores de um G e um T. As letras irregulares da fonte Fraktur irritam os olhos.

    O volume abre sem esforo, revelando uma dedicatria pessoal de Dietrich Eckart aAdolf Hitler, numa letra cursiva empolada que espirala pela pgina, ao seu querido amigo seinem lieben Freund que est escrita de forma abreviada: S. L. Freund.

    Poucas pessoas podiam considerar Hitler um amigo, menos ainda um amigo querido,mas Eckart era mais do que isso. Ele era defensor, mentor e uma figura paternal, o homem quecomprou o primeiro casaco de trincheira de Hitler, levou-o em sua primeira viagem de avioe sua primeira produo teatral em Berlim. Eckart ensinou a Hitler como escrever epublicou seus primeiros ensaios. Circulou com Hitler entre seus amigos prsperos, quebrandoo gelo com estas palavras: Este homem o futuro da Alemanha. Um dia o mundo inteiroestar falando sobre ele.

    O mais importante que Eckart moldou a argila malevel do mundo intelectual eemocional de Hitler. Ao se conhecerem, Hitler tinha 31 anos e comeava a abrir caminho parao cenrio poltico de Munique. Eckart era de uma gerao anterior e figura influente noapenas em Munique, mas em grande parte da Alemanha. Sua adaptao de Peer Gynt foi uma

  • das produes teatrais mais bem-sucedidas da poca, presumivelmente com mais deseiscentas apresentaes s em Berlim.

    Tratava-se de um homem de apetites fortes por mulheres, lcool e morfina eopinies ainda mais fortes, sobretudo no tocante aos judeus. Publicava o semanrio incitadorde dio Auf gut Deutsch [Em bom alemo] e foi um dos financiadores, tambm em Munique,da Hoheneichen Verlag, uma editora especializada em literatura antissemita. Um jornal deMunique afirmou que o dio de Eckart aos judeus era to profundo que ele seria capaz deconsumir meia dzia de judeus junto com seu chucrute no almoo. Eckart deu foco, forma eardor ao antissemitismo do prprio Hitler.

    Eckart foi o homem que, de acordo com as prprias afirmaes repetidas de Hitler, tevea maior importncia para seu desenvolvimento pessoal, um companheiro de Hitler observou.Era o melhor amigo de Hitler e tambm pode ser considerado seu pai intelectual. Esse ocaso especialmente no princpio; seu patriotismo racial fantico e antissemitismo radicalfizeram de Eckart a maior influncia sobre seu desenvolvimento poltico. No leito de morte,Eckart teria dito: Sigam Hitler! Ele danar, mas fui eu que invoquei a msica!. Hitlersaudou Eckart como a estrela polar do movimento nazista.

    No final de 1918, ao retornar da guerra, Hitler encontrou a Alemanha mergulhada nocaos. Em Berlim, os socialistas haviam derrubado o Kaiser e proclamado uma repblicasocialista. Em Munique, um radical socialista chamado Kurt Eisner declarou a Baviera umpas independente, mas acabou assassinado por um conde de direita. No tumulto subsequente,o governo foi arrebatado por bolcheviques incluindo um anarquista, um teatrlogo e umpaciente psiquitrico que, em seu breve mandato como ministro do Exterior, declarou guerra Sua que estabeleceram um Estado sovitico efmero na Baviera. No final, uma fora de 9mil tropas regulares, apoiadas por um Freikorps [exrcito voluntrio] de 30 mil soldados dareserva, derrubou os bolcheviques e, aps executar seus lderes, restabeleceu alguma ordem.

    Em meio ao tumulto, Hitler encontrou refgio no alojamento de Oberwiesenfeld, naperiferia de Munique. Por algumas semanas montou guarda numa priso da cidade vizinha deTraunstein, junto com o antigo colega mensageiro do rir 16 Ernst Schmidt, depois por cercade um ms com o destacamento de guarda na estao ferroviria principal de Munique. Noalojamento, comeou a circular entre as unidades militares incitando contra a insurreiobolchevique e foi brevemente escalado para um grupo de investigao de baixas que avaliavaas afiliaes polticas dos soldados antes de aprovar sua liberao do exrcito.

    Naquelas semanas, Hitler chamou a ateno do capito Karl Mayr, que se impressionoucom seus fortes sentimentos antibolcheviques e sua forma convincente de falar. Naquelaprimavera, Mayr sugeriu que Hitler assistisse a um curso de uma semana de ideologia polticana Universidade de Munique e, em agosto, enviou-o para um curso prtico de propaganda eoratria de duas semanas numa instalao de treinamento militar perto de Augsburg. QuandoHitler retornou, Mayr o enviou em misses de coleta de informaes entre os partidos

  • extremistas recm-surgidos que vinham proliferando na atmosfera poltica incerta.Na sexta-feira, 19 de setembro de 1919, Hitler compareceu a uma reunio do Deutsche

    Arbeiterpartei [Partido dos Trabalhadores Alemes], um movimento novo fundado em janeiropor um jornalista esportivo, Karl Harrer, e um mecnico ferrovirio local, Anton Drexler, emque estava programada uma preleo de Dietrich Eckart. Quando Eckart ficou doente,Gottfried Feder, cujo livro sobre a escravido dos juros Hitler havia lido naquele ano, osubstituiu. Minha impresso no foi boa nem ruim, uma organizao nova como tantasoutras, Hitler mais tarde falou sobre a reunio. Era uma poca em que qualquer um que noestivesse satisfeito com o rumo das coisas e tivesse perdido a confiana nos partidosexistentes se sentia no dever de fundar um partido novo. Por toda parte essas organizaesbrotavam, para desaparecer silenciosamente aps algum tempo.

    No debate que se seguiu palestra de Feder, irrompeu uma discusso sobre a ustria: umprofessor defendeu a criao de um Estado austraco-bvaro e Hitler se ps a invectivarcontra o professor, que acabou abandonando a sala com o chapu na mo. Impressionado coma oratria de Hitler, Drexler entregou-lhe um panfleto poltico que havia escrito sobre suaconverso pessoal ao nacionalismo radical.

    Naquela mesma noite, no alojamento de Oberwiesenthal, Hitler leu o tratado de Drexler:Meu despertar poltico: Do dirio de um trabalhador socialista alemo. Nessa histria deamadurecimento poltico de quarenta pginas, Hitler leu sobre a transformao de Drexler deum trabalhador adolescente aptico e quase desamparado de Berlim Como resultado dodesemprego, sobrevivi como tocador de ctara numa casa noturna em um fervorosonacionalista alemo e antissemita igualmente virulento. Por antissemita se entende todoaquele que reconhece a influncia judaica destrutiva sobre a vida dos nossos povos, contra aqual luta, e se protege do estrangulamento econmico pelos judeus! Drexler remonta suaconverso ao antissemitismo a uma noite, em novembro de 1917, quando encontrou umnegociante judeu na Anturpia e se envolveu numa discusso sobre o nacionalismo alemo,indo parar, inconsciente, numa priso local. No sei dizer se aquele apstolo do Talmudedespejou algo no vinho, Drexler escreveu, porm depois, quanto mais pensava naquilo,cheguei a uma pista que s agora reconheo. Claro que a epifania de Drexler foi a supostapredominncia da influncia e controle judeus.

    Drexler alega ter detectado influncias judaicas na imprensa, incluindo o jornalVossische Zeitung; nas finanas, em que afirma que 80% dos ativos alemes esto em mosjudias; nos sindicatos; em partidos polticos; no movimento bolchevique; e finalmente nacrise do esforo de guerra alemo. Drexler fala de forma sinistra da influncia judaicacorrosiva sobre a vida do nosso povo e enfatiza a suposta ameaa econmica, salpicando otratado com citaes do Talmude, seus prprios discursos, um poema de Dietrich Eckart econceitos agourentos, como erradicao [Ausrottung] e extermnio [Vernichtung].Desde o momento em que reconheci o verdadeiro inimigo de todos os trabalhadores, nada

  • mais me deteve, Drexler escreveu. Com o grande amor que sentia por minha terra natal,impus-me a tarefa de, usando todos os meios disponveis, ajudar a abrir os olhos daquelaspobres almas iludidas em relao ao verdadeiro inimigo.

    Ao ler o tratado de Drexler, Hitler encontrou ressonncias familiares com suas prpriasexperincias. Uma vez que comecei, li o pequeno livro at o fim com interesse, pois refletiaum processo semelhante quele pelo qual eu mesmo passara doze anos antes, Hitlerrecordou. Involuntariamente, vi meu prprio desenvolvimento ganhar vida ante meus olhos.Alguns dias depois, Hitler recebeu um carto-postal dizendo que havia sido aceito noPartido dos Trabalhadores Alemes. Ele ponderou sobre a filiao e resolveu dizer sim.Agora temos um austraco. Ele realmente sabe falar, camarada, Drexler mais tarde gracejou.Podemos certamente lanar mo dele.

    Quando Hitler compareceu a uma segunda reunio numa sala de fundos na CervejariaSternecker, encontrou-se com outras trinta ou quarenta pessoas que ouviam um discurso longoe tedioso de Karl Harrer. Harrer havia avanado por algum tempo, at ser subitamenteinterrompido pela voz profunda e spera de um homem idoso: No d para voc parar dedizer besteiras? Ningum est dando a mnima para o que voc est dizendo!. Hitler se viroue viu que uma figura imponente o fitava, com uma calva avanada, olhos azuis intensos ebigode pintado. Eu poderia t-lo abraado, Hitler mais tarde lembrou.

    Harrer concluiu, nervoso, a sua fala, e a reunio acabou. Anton Drexler conduziu Hitlerao homem mais velho e apresentou-o como Dietrich Eckart. Hitler sentiu uma instantneaafinidade. Eckart perguntou a Hitler se havia visto Peer Gynt ou Lorenzaccio, pea escritapor ele Hitler no havia visto e o convidou para ir a sua casa. Foi um momentomarcante. Na semana seguinte, Drexler acompanhou Hitler at o belo casaro de Eckart, ondeforam conduzidos biblioteca no andar superior.

    Quando os homens entraram, Eckart se ergueu, majestoso, da sua escrivaninha, virou-separa eles, espiou sobre seus culos de leitura, elevou a cabea dominadora Hitler lembrouvivamente cada detalhe e, tirando os culos, aproximou-se para saudar os convidados comum aperto de mo. Uma testa altiva, olhos azuis, todo o seu semblante como o de um touro,sem falar na voz com um tom admiravelmente direto, Hitler recordou.

    Hitler nunca conhecera ningum como Eckart. Seu prprio pai, Alois Hitler, havia sidoum funcionrio pblico de mdio escalo, cuja falta de instruo formal atrapalhou a carreiradesde cedo, apesar de suas notrias capacidades intelectuais, levando-o a ocupar uma srie decargos modestos em escritrios da alfndega ao longo do rio Inn, na fronteira entre ustria eAlemanha. Na velhice comprou uma grande casa de campo que exauriu tanto seus recursos eenergias que ele a abandonou e se mudou para uma residncia mais modesta perto de Linz,onde passaria o resto dos seus dias. No final, sua nica ambio na vida era ver as duas filhascasadas e seus dois filhos com empregos lucrativos. Seu obiturio no jornal local registrousuas realizaes na apicultura, sua natureza irascvel e a voz ressonante.

  • Como filho de funcionrio pblico de mdio escalo, Hitler ficou impressionado com aestatura de Eckart, tanto fsica quanto material, e lisonjeado por suas atenes. Eckart pareceter se impressionado igualmente com Hitler. Ao contrrio de Karl Harrer, que Eckart achavatedioso, ou mesmo de Drexler, que passara os anos de guerra envolvido em poltica no frontinterno, Hitler possua a paixo e as credenciais de linha de frente que Eckart havia muitotempo procurava.

    Precisamos de algum para nos liderar que esteja acostumado ao som de umametralhadora. Algum capaz de deixar os outros tremendo de medo, Eckart teria dito, trsanos antes, enquanto bebia no Caf Nettle de Munique. No preciso de um oficial. Aspessoas comuns perderam todo o respeito por eles. O melhor seria um trabalhador que saibacomo falar. No precisa saber muito. A poltica a mais estpida profisso da face da terra.Eckart afirmou que qualquer mulher de fazendeiro em Munique sabia tanto quanto qualquerlder poltico. D-me um macaco intil capaz de dar aos vermelhos o que merecem e que nofuja correndo quando algum o ameaar com uma perna de cadeira, ele disse. Eu opreferiria, em qualquer tempo, a uma dzia de professores instrudos que molham suas calase ficam paralisados com medo da realidade. Tem que ser solteiro, para atrairmos asmulheres.

    A descrio se ajusta de modo to perfeito a Hitler que desafia a credibilidade, masapesar disso existem indcios independentes da busca de um futuro lder levada a cabo porEckart antes de conhecer Hitler. Em Lorenzaccio, pea que estreou no outono de 1916, Eckartrelata a luta de um prncipe florentino em busca de um lder Eckart emprega a palavraFhrer capaz de instilar orgulho e restabelecer a ordem em sua cidade-Estado vacilante.Eckart faz o prncipe florentino se desesperar por no conseguir encontrar ningum (keiner):Keiner, keiner, keiner, keiner!, ele brada, repetindo o lamento doloroso do rei Lear:Nunca, nunca, nunca, nunca, nunca.

    Quando Lorenzaccio estreou no Teatro da Corte Real em Berlim, a pea exprimiu commuito vigor a crescente desiluso com a liderana alem e com uma guerra que pareciaparalisada num derramamento de sangue absurdo e que parecia no ter fim.

    Com a renda substancial obtida com seus sucessos teatrais, Eckart ajudava a financiarsociedades de direita como o Clube Fichte, em Berlim, e a Sociedade Thule, em Munique, quepromoviam rompantes virulentos de nacionalismo e antissemitismo sob o disfarce domisticismo ariano. Thule foi a suposta capital de um antigo imprio ariano situado naEscandinvia. Em 1917, junto com Gottfried Grandel, um prspero negociante de Augsburg,financiou a aquisio da editora Hoheneichen Verlag e, no ano seguinte, foi um dosfinanciadores do semanrio Auf gut Deutsch.

    Ao mesmo tempo, Eckart percorria a periferia poltica de Munique em busca deescritores talentosos. Em dezembro de 1918, aliciou Alfred Rosenberg, um alemo blticoboa-pinta de 21 anos que repartia seu dio entre judeus e bolcheviques, igualmente membro da

  • Sociedade Thule. Na primavera seguinte, Eckart contratou Hermann Esser, um jornalistasensacionalista e cheio de veneno, com um pendor para o escandaloso e libidinoso.

    Mais marcadamente, Eckart comeou a cortejar Wolfgang Kapp, um aristocrata prussianocujas condenaes belicosas ao Tratado de Versalhes e democracia de Weimar o haviamtransformado no principal porta-voz da direita radical por toda a Alemanha. Nas mesmassemanas em que Eckart e Hitler se conheceram, Eckart viajou a Berlim para uma conversaparticular com Kapp. Eu vinha admirando sua pessoa somente distncia e, de repente, vocficou prximo de mim, Eckart escreveu a Kapp depois. Em maro de 1920, quando Kapppromoveu um golpe militar com unidades insatisfeitas do exrcito alemo, Eckart pegou avioe piloto emprestados de Grandel e voou at Berlim. Convidou Hitler a ir junto.

    Quando os dois homens chegaram ao hotel Adlon, que vinha servindo de quartel-generalde Kapp, Eckart viu Ignatius Timothy Trebitsch-Lincoln, um jornalista hngaro que Kappnomeara porta-voz para a imprensa. Na mesma hora Eckart viu que Kapp no era o homemcerto. Trebitsch-Lincoln era judeu. Eckart pegou Hitler pelo brao: Vamos embora, Adolf,teria dito. No queremos nada com esse tipo de coisa. Hitler reproduziu os sentimentos deEckart num relatrio de informaes que apresentou aps retornar a Munique. Quando vi efalei com o porta-voz para a imprensa do governo de Kapp, Hitler escreveu, soube queaquela no poderia ser uma revoluo nacional e que estava fadada a falhar, j que o porta-voz era um judeu.

    Nos dias que se seguiram, Eckart e Hitler observaram o putsch de Kapp descambar nocaos e, enfim, na calamidade. Os ataques dos bolcheviques paralisaram a cidade. As unidadesrebeldes do Reichswehr ficaram indecisas. O Reichstag alemo fugiu para Berlim e voltou ase reunir primeiro em Weimar, depois em Stuttgart, e continuou dirigindo o pas. Dentro deuma semana, o putsch estava encerrado. Kapp fugiu, e o governo de Weimar retornou. Eckarte Hitler permaneceram em Berlim, visitando os amigos ricos de Eckart e, bem provavelmente,assistiram a uma representao de Peer Gynt no Teatro Nacional.

    Nem Hitler nem Eckart forneceram detalhes da permanncia juntos em Berlim, maspalavras e aes subsequentes indicam que estabeleceram um elo pessoal forte. Vi-meatrado para aquela pessoa, e logo percebi que era o homem certo para o movimento inteiro,Eckart mais tarde observou, e meu relacionamento com ele se tornou mais pessoal durante apoca do putsch de Kapp. Embora no tenhamos uma declarao equivalente de Hitler, suasaes so to reveladoras quanto as palavras de Eckart. Logo aps seu retorno a Munique,renunciou patente no exrcito, deixou seu alojamento no quartel e, com um punhado de bensminuciosamente relacionados nos registros do exrcito, mudou-se para um apartamento desegundo andar na rua Thiersch, uma rua tranquila junto ao rio Isar e pertinho do escritrio deEckart.

    Com Hitler a apenas algumas portas de distncia, Eckart achou conveniente assumir odireito de propriedade sobre a carreira do jovem homem. Circulou com ele entre seus amigos,

  • acrescentou sua prpria seriedade de direita s aparies iniciais de Hitler em cervejarias eagiu como diretor de cena da pessoa pblica de Hitler. Com uma propenso para o teatral,Eckart sonegou a imagem de Hitler imprensa como meio de acentuar sua aura. Tropas deassalto foram instrudas a atacar fotgrafos que tentassem fotograf-lo. Geralmente o filme eraremovido fora, embora s vezes as cmeras fossem destrudas. Quando William RandolphHearst solicitou uma fotografia de Hitler para ilustrar uma matria, teria sido informado deque lhe custaria 30 mil dlares. Se algum quisesse ver Hitler, teria que ir ouvi-lo. Umaexplicao mais prosaica sustenta que a imagem de Hitler foi suprimida para evitar suaidentificao fcil pela polcia.

    De qualquer modo, mesmo em 1923, enquanto Hitler vinha lotando os maiores locaispblicos de Munique e se tornara presena assdua na imprensa alem, sua aparncia fsicacontinuava um mistrio. Quando Thomas Theodor Heine, cartunista poltico radicado emMunique, visitou Berlim, perguntaram-lhe tanto sobre a aparncia de Hitler que ele respondeucom uma pgina repleta de caricaturas em dimenses grotescamente exageradas, cada umaenfocando um aspecto diferente: seu olhar hipntico, sua voz lendria, seus gestos fanticos.Mas qual era a aparncia real de Hitler?, Heine ponderou. A questo deve permanecer semresposta. Hitler no existe como indivduo. Ele uma condio.

    Mais importante, claro, foi o fato de Eckart ter roteirizado o papel de Hitler como omais execrvel antissemita da histria. O prprio Hitler admite que, antes de conhecer Eckart,havia sido exposto apenas de passagem s ideias ou retrica antissemita. Contou que o paiteria considerado um sinal de atraso cultural usar o termo judeu em casa. Hitler se lembrade ter ficado horrorizado com as observaes antissemitas ocasionais ouvidas na escola.S quando fiz catorze ou quinze anos comecei a deparar com a palavra judeu com certafrequncia, em parte ligada a discusses polticas, disse. Isso me enchia de uma aversobranda, e no conseguia me livrar de uma sensao desagradvel que sempre surgia quandodiscusses religiosas ocorriam na minha presena.

    Em Viena, onde enfrentou pela primeira vez a questo judaica, Hitler se viu divididoentre a tolerncia inata de sua vida familiar e a retrica antissemita da direita poltica dacidade, alm de seus primeiros encontros com judeus nas ruas da cidade. Como semprenesses casos, comecei a tentar mitigar minhas dvidas atravs dos livros, Hitler observou.Por alguns hellers, comprei os primeiros folhetos antissemitas de minha vida. Ele osdesprezou como no cientficos.

    Agora o antissemitismo de Hitler ganhou forma e ardor sob a tutela de Eckart. O prprioDietrich Eckart lidava com os aspectos literrios e intelectuais, Hitler observou, masdominava todo o tema como poucos outros. Em particular, Hitler atribuiu a Eckart aassociao entre judeus e bolcheviques.

    Embora no haja como aferir as influncias especficas de Eckart sobre o antissemitismoembrionrio de Hitler, ou o que ele pode ter absorvido de outros companheiros e em suas

  • prprias leituras, podemos ter uma noo do tom e do esprito do ensinamento de Eckart numaConversao que este vinha escrevendo na poca de sua morte. Nessa espcie fragmentriae perversa de dilogo socrtico entre mentor e pupilo, Eckart e Hitler se envolvem numpugilato de retrica antissemita, cada um tentando superar o outro em termos de violncia.Hitler culpa os judeus pelos excessos e erros coletivos da Igreja Catlica: a venda deindulgncias uma prtica judaica clara; as Cruzadas que sangraram a Alemanha de 6milhes de homens e enviaram dezenas de milhares de crianas morte foram invenodos judeus. Que religio!, Hitler se enfurece. Esse chafurdar na sujeira, esse dio, essamaldade, essa arrogncia, essa hipocrisia, essa trapaa, essa incitao ao logro e aoassassinato ser isso uma religio? Ento ningum mais religioso do que o prprio diabo.Trata-se da essncia judaica, do carter judaico, e ponto final!

    Lutero expressou sua opinio a respeito com bastante clareza, Eckart responde. Elenos insta a queimar as sinagogas e escolas judaicas e a empilharmos terra sobre os destroospara que nenhum homem jamais volte a ver uma pedra ou cinza delas.

    Hitler acrescenta, convicto: Queimar suas sinagogas, infelizmente, no teria adiantadomuito. A verdade : mesmo que nunca tivesse existido uma sinagoga, uma escola judaica, umAntigo Testamento ou um Talmude, o esprito judaico ainda teria existido e exercido seuefeito.

    A Conversao de Eckart se estende por oitenta pginas, encerrando-se abruptamente.O fragmento foi publicado pela Hoheneichen Verlag em maro de 1923, trs meses aps amorte de Eckart, enquanto Hitler estava sendo julgado pela tentativa fracassada de derrubar ogoverno bvaro. Os bigrafos de Hitler costumam desprezar esse documento estranho, por serclaramente um dilogo inventado, sem nenhum indcio de que Hitler tivesse contribudo para asua criao. Se bem que haja uma boa razo para descart-la como documento formal, aConversao no apenas capta o tom e o esprito, se no o contedo literal, das conversasde Eckart com Hitler, mas tambm preserva um fato pessoal importantssimo: nessas oitentapginas manuscritas, Eckart permite que Hitler a ele se iguale, ponto a ponto, em termos defato ou veneno, num rito de passagem em que o discpulo se mostra altura do mestre.

    Quando Eckart escreveu a dedicatria no Peer Gynt ao seu querido amigo AdolfHitler, no outono de 1921, tinha mais de duas dzias de obras peas, poesia, antologias,romances, coletneas de ensaios dentre as quais escolher, vrias mais apropriadas, primeira vista, do que o pico de Ibsen. Poderia ter presenteado Hitler com um exemplar deTannhuser de frias, sua homenagem de 1895 a Richard Wagner. E claro que haviaLorenzaccio, com suas referncias visionrias ao Fhrer. Eckart deu de presente umexemplar desse livro, com uma dedicatria, irm mais nova de Hitler, Paula, um presenteque lisonjeou tanto o presenteador como a presenteada.1 Ao selecionar Peer Gynt para Hitler,porm, Eckart pretendeu ser menos narcisista e mais intensamente pessoal. A adaptao que

  • fez de Peer Gynt para o teatro, alm de ser sua obra de mais sucesso, tambm era aquela comque se identificava mais.

    Quando leu pela primeira vez o poema pico de Ibsen, na primavera de 1911, Eckart eraum escritor fracassado de 44 anos que desperdiara seu talento artstico e recursosfinanceiros, e era obrigado a dormir em bancos de praa em Berlim. Somente a morte do pai ea herana resultante o livraram da misria. A histria do Fausto nrdico, de Ibsen, oimpressionou. O protagonista homnimo parte de uma aldeia norueguesa isolada cheio deconfiana juvenil, resolvido a se tornar o rei do mundo. Percorre a Europa e o norte dafrica, o mundo mgico dos trolls e as cortes dos reis, deixando em sua esteira vidasarruinadas e promessas tradas, apenas para voltar para casa no fim da vida arruinado eenvergonhado. Ali encontra a amada abandonada mas fiel, Solveig seu nome significacaminho da alma esperando por ele e oferecendo-lhe a salvao. Eckart comoveu-setanto com o destino de Peer Gynt que escreveu para o filho de Ibsen na Noruega solicitandopermisso para adaptar o poema aos palcos alemes.

    Eu experimentei Peer Gynt, no apenas devido sua vida interior, mas em grande partepelas coisas que aconteceram com ele, Eckart explicou.

    De forma semelhante, a cano de Solveig desempenha um papel melanclico na minha existncia, mas como issoacontece com toda alma sensvel, no h nada de anormal. S marcante em acontecimentos mais remotos, por exemplo,com o dedo que cortado quando menino, certa vez cometi a estupidez de prender a mo num torno para no precisarir ao colgio , mas de forma mais marcante no asilo de loucos. H mais de vinte anos, fui parar l devido a uma gravedependncia de morfina.

    Eckart notou outro paralelo. No vero de 1867, enquanto Ibsen idealizava seu heripico, os pais de Eckart conceberam o filho. Quem quiser que ria do misticismo resultante,Eckart escreveu. Para mim esse fato encerra uma epifania transcendente, um consoloinabalvel que perdurar at o fim de minha jornada terrestre. Eckart prosseguiu por catorzepginas semelhantes, observando, alm disso, que a traduo alem autorizada de ChristianMorgenstern era uma pardia do original. Na opinio de Eckart, Morgenstern, um judeu, erapouco mais do que um coveiro da lngua, cujos versos mal se prestavam a um jornal decervejaria. Para enfatizar sua identificao inteiramente pessoal com o personagem de Ibsen,Eckart mandou estampar Peer Gynt em seus papis de carta. Quando Eckart deu de presenteo livro ao seu querido amigo Adolf Hitler, tratou-se de um gesto muito pessoal.

    Hitler, no familiarizado com a obra quando conheceu Eckart no outono de 1919, teriasentido ressonncias semelhantes s que atingiram Eckart. Na juventude, semelhana deGynt, Hitler fora tomado por um desejo de viajar, alimentado em grande parte pelas histriasde aventuras como a srie de romances Leatherstocking Tales [Contos dos Desbravadores], deJames Fenimore Cooper, Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, Atravs do deserto, de KarlMay, e as aventuras da vida real do explorador sueco Sven Hedin, que nas primeiras dcadasdo sculo xx atravessou algumas das ltimas regies inexploradas da Terra e retornou com

  • relatos fascinantes de povos desconhecidos e perigos incontveis. Quando menino, elecostumava mencionar o nome de Sven Hedin pela casa, Paula Hitler certa vez lembrou.

    Ele acompanhava suas exploraes pelo interior da sia to atentamente como todas as outras coisas que pareciamimportantes ao futuro do mundo. E a mal parara de usar os sapatinhos de criana quando foi acometido por umentusiasmo irreprimvel por lugares distantes, um aps o outro: queria ir para o mar e depois para o deserto, livrar-se dascadeias que mantinham seu esprito errante e inquieto contido em um raio de dez quilmetros. Inicialmente permaneceunaqueles dez quilmetros, um grande alvio para mame, a quem era to ligado.

    Hitler recordou que viu pela primeira vez Peer Gynt em Berlim, na companhia de Eckart,observando com averso a preferncia de Munique pelas adaptaes de Morgenstern. EmboraHitler no mencione nada de mais especfico sobre a encenao, nem o ano, nem ascircunstncias, sua biblioteca preserva ressonncias daquele acontecimento memorvel nocatlogo de discos de gramofone, que lista quatro gravaes diferentes da msica de cena deGrieg para Peer Gynt, e na adaptao para o palco de Eckart com dedicatria e novexilogravuras de cenas individuais. Em conjunto, esses objetos transmitem o esprito e o tomdaquela noite em que Hitler se sentou na companhia de Eckart e ouviu as notas pungentes dosinstrumentos de madeira, enquanto a cortina se erguia e revelava uma modesta cabana emprimeiro plano e picos escarpados atrs.

    Quero atingir a grandeza, Peer Gynt declara sua me na cena de abertura. Querofama e honra para ti e para mim. Apesar da advertncia materna de que tal ambio no darbons resultados, Peer parte allegro con brio mundo afora para realizar seus sonhos,atravessando a Europa, viajando por mar, encontrando homens de verdade e monstros mticos,e enfim transpondo os desertos do norte da frica, onde se fixa no Marrocos em meio ariqueza e esplendor. No caminho, Peer Gynt cria um caminho de destruio humana em suatentativa obstinada de se tornar rei do mundo. Gynt trai amizades, comete assassinatos eseduz e depois abandona Solveig, uma donzela de aldeia que aguarda pacientemente seuprometido retorno. Quando Peer Gynt enfim retorna, arruinado de corpo e alma e beira damorte, busca a absolvio.

    Condena meus crimes!, ele implora, de p diante dela. Condena meus crimes!Ignorando as dimenses de seus delitos e transgresses, Solveig responde: No sei do

    que ests falando! Cumpriste tua promessa, meu amado, retornaste. O resto, ela diz, deve serdeixado nas mos de Deus. Enquanto Solveig acolhe Peer nos braos, este mergulha numestado delirante cheio de aluses freudianas. Amante e me, ento tu me protegers daperdio?, ele suspira. Toma-me, protege-me em teu tero. Aceitando seu papel de me-amante, Solveig absolve Peer dos pecados e, na cena de encerramento, entoa uma cano deninar enquanto um raio de luz banha o casal num crculo luminoso.

    Eckart em geral se mantm fiel ao original de Ibsen, mas na cena final acrescenta umtoque artificial que muda profundamente a dramaturgia moral da histria. S ao morrer

  • deitado no colo de Solveig, iluminado pelo sol nascente, ele deve voltar o rosto para aplateia, Eckart instrui. No mais