s. agostinho de patientia (sobre a paciÊncia)

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Teocomunicação Porto Alegre v. 38 n. 160 p. 270-308 maio/ago. 2008 S. AGOSTINHO DE PATIENTIA* (SOBRE A PACIÊNCIA) Tradução de Cléber Eduardo dos Santos Dias** * * Texto latino presente nas p. 663-691 de Sancti Aureli Augustini: De fide et symbolo. De fide et operibus. De agone christiano. De continentia. De bono coniugali. De sancta uirginitate. De bono uiduitatis. De adulterinis coniugiis lib. II De mendacio. Contra mendacium. De opere monachorum. De diuinatione demonum. De cura pro mortuis gerenda. De patientia. Recensuit Iosephus Zycha. Vindobonae, Pragae, F. Tempsky, Lipsiae, G. Freytag, 1900. Sancti Aurelii Augustini Opera; sect. 5, pars 3. (Corpus scriptorum ecclesiasticorum latinorum, 41). ** Doutor em Filosofia (PUCRS/Universidade do Porto). Professor da Faculdade IDC. Agradecimentos especiais ao Prof. Dr. José Maria da Costa Macedo da Universidade do Porto, Portugal, o qual com grande interesse e generosidade reviu e ofereceu valiosas sugestões para esta tradução e para meu entendimento do texto.

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S. AGOSTINHO DE PATIENTIA (SOBRE A PACIÊNCIA)

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Page 1: S. AGOSTINHO DE PATIENTIA (SOBRE A PACIÊNCIA)

Teocomunicação Porto Alegre v. 38 n. 160 p. 270-308 maio/ago. 2008

S. AGOSTINHO

DE PATIENTIA*(SOBRE A PACIÊNCIA)

Tradução deCléber Eduardo dos Santos Dias**

** Texto latino presente nas p. 663-691 de Sancti Aureli Augustini: De fide et symbolo.De fide et operibus. De agone christiano. De continentia. De bono coniugali. Desancta uirginitate. De bono uiduitatis. De adulterinis coniugiis lib. II De mendacio.Contra mendacium. De opere monachorum. De diuinatione demonum. De cura promortuis gerenda. De patientia. Recensuit Iosephus Zycha. Vindobonae, Pragae,F. Tempsky, Lipsiae, G. Freytag, 1900. Sancti Aurelii Augustini Opera; sect. 5,pars 3. (Corpus scriptorum ecclesiasticorum latinorum, 41).

** Doutor em Filosofia (PUCRS/Universidade do Porto). Professor da FaculdadeIDC. Agradecimentos especiais ao Prof. Dr. José Maria da Costa Macedo daUniversidade do Porto, Portugal, o qual com grande interesse e generosidadereviu e ofereceu valiosas sugestões para esta tradução e para meu entendimentodo texto.

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S. Agostinho – De patientia

DE PATIENTIA

I.1. Virtus animi, quae Patientiadicitur, tam magnum dei donumest, ut etiam ipsius qui nobis eamlargitur, qua malos ut corriganturexspectat, patientia praedicetur. itaquamuis deus nihil pati possit,patientia uero a patiendo nomenacceperit, patientem tamen deumnon modo fideliter credimus,uerum etiam salubriter confitemur.sed dei patientia qualis et quantasit, quem nihil patientem, nectamen inpatientem, immo etiampatientissimum dicimus, uerbisexplicare quis possit? ineffabilisest ergo illa patientia, non tamennulla, sicut zelus eius, sicut iraeius, et si quid huius modi est. namsi tamquam nostra ista cogitemus,in illo nulla sunt. nihil enimhorum nos sine molestia sentimus:absit autem ut inpassibilem deinaturam perpeti ullam molestiamsuspicemur. sicut autem zelatsine aliquo liuore, irascitur sinealiqua perturbatione, miseretur sinealiquo dolore, paenitet eum sinealicuius suae prauitatis correctione:ita est patiens sine ulla passione.nunc itaque humana patientia,quam capere possumus, et haberedebemus, cuiusmodi sit, quantumdominus tribuit, et quantumpatitur breuitas praesentis sermonisexpediam.

SOBRE A PACIÊNCIA

I.1. A virtude da alma à qualchamamos Paciência é um dom deDeus tão grande, que até mesmod’Aquele que no-la concede, pelaqual espera que os maus secorrijam, é predicada a paciência.Assim, ainda que Deus não possade modo algum padecer – naverdade [a palavra] paciênciarecebe o nome de padecer –, nósentretanto, não só fielmentecremos como, na verdade, tambémsalutarmente confessamos que,entretanto, Deus é paciente. Mas,como e quão grande seja apaciência de Deus – o qualdizemos que nada padece e que, noentanto, não é impaciente, anteschamamo-lo pacientíssimo – quempoderia descrevê-la com palavras?É inefável, pois, aquela paciência,mas não deixa de existir assimcomo o seu zelo, como a sua ira,se por acaso algo existe destemodo. Pois, se nós pensarmos[nestes aspectos de Deus] comosemelhantes aos nossos, n’Ele nãoexistem. De fato, nós não sentimosnenhuma destas [coisas] semmoléstia: ao contrário, longe denós conjecturarmos que a naturezade Deus – como impassível –sofra alguma moléstia. No entan-to, assim como [Ele] zela semqualquer inveja, ira-se sem qual-quer perturbação, apieda-se semqualquer dor, arrepende-se sem[que haja] a correção de alguma

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DIAS, C.E.S. (Trad.)

II.2. Patientia hominis, quae rectaest atque laudabilis et uocabulodigna uirtutis, ea perhibetur quaaequo animo mala toleramus, neanimo iniquo bona deseramus,per quae ad meliora perueniamus.quapropter inpatientes dum malapati nolunt, non efficiunt ut a maliseruantur, sed ut mala grauiorapatiantur. patientes autem qui malamalunt non committendo ferre,quam non ferendo committere, etleuiora faciunt quae per patientiampatiuntur, et peiora euadunt quibusper inpatientiam mergerentur. bonauero aeterna et magna nonperdunt, dum malis temporalibusbreuibusque non cedunt, quoniamnon sunt condignae passioneshuius temporis, sicut apostolusdicit, ad futuram gloriam quaereuelabitur in nobis, et iterumait: quod est temporale leuetribulationis nostrae, in incredibilemmodum aeternum gloriae pondusoperatur in nobis.

pravidade sua: assim, é pacientesem qualquer padecimento. Agora,pois, o quanto o Senhor conceder eo quanto a brevidade da presenteexposição permitir que eu explique,[tratarei sobre] a paciência humana;a qual podemos entender e devemospossuir.

II.2. A paciência do homem, a qualé reta e louvável e digna do nomede virtude, é designada aquelapela qual com ânimo equânimesuportamos os males para nãoabandonarmos com a iniqüidadede ânimo os bens pelos quais nósalcançamos [outros] melhores.Por isso é que os impacientes,enquanto não querem suportar osmales, não obtêm o serem livradosdos males, mas [antes] sofremmales mais graves [ainda]. Aocontrário, os pacientes que pre-ferem suportar os males nãoos cometendo, ao invés de co-metê-los, não os suportando, nãosó tornam mais leves [os malesque] por paciência sofrem, mastambém escapam aos [males]piores, nos quais pela impaciênciaseriam mergulhados. Na verdade,não perdem os bens eternos egrandes enquanto não se deixamvencer pelos [males] temporais ebreves, porque não são condignosos padecimentos destes tempos –como diz o Apóstolo – com a glóriafutura que se há de revelar em nós1;

1 Rom 8, 18.

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III.3. Intueamur itaque, carissimi,quanta in laboribus et doloribushomines dura sustineant, pro rebus,quas uitiose diligunt et quanto ipsihis feliciores fieri putant, tantoinfelicius concupiscunt. quantapro falsis diuitiis, quanta pro uanishonoribus, quanta pro ludicrisaffectionibus periculosissima et mo-lestissima patientissime toleran-tur! pecuniae, gloriae, lasciuiaecupidos uidemus, ut ad desiderataperueniant, adeptisque non careant,soles, imbres, glacies, fluctus,et procellosissimas tempestates,aspera et incerta bellorum,immanium plagarum ictus, etuulnera horrenda, non ineuitabilinecessitate, sed culpabili uoluntateperferre. uerum haec quodammodo licitae uidentur insaniae.

IIII.4. Namque auaritia, ambitio,luxuria, et uariorum oblectamentaludorum, nisi propter illa facinusaliquod admittatur, siue flagitium

e diz ainda: O que em nossatribulação é temporal e leverealiza em nós de um modoinacreitável um peso eterno deglória2.

III.3. Consideremos, pois,caríssimos, quantas coisas durassuportam os homens em traba-lhos e dores pelas coisas que,viciosamente, amam e [como]quanto [mais] os mesmos julgamterem-se tornado mais felizescom elas, tanto [mais] infeliz-mente as cobiçam. Quantas coisasperigosíssimas e molestíssimaspacientissimamente são toleradaspelas falsas riquezas, pelas honrasvãs, pela afeição aos jogos!Vemo-los ávidos de dinheiro, deglória e de lascívia para alcan-çarem as coisas desejadas enão carecerem das coisas ad-quiridas, suportarem o calor, achuva, o frio, as ondas e astempestades procelosíssimas, asasperidades e incertezas dasguerras, os terríveis golpes daschagas e as feridas horrendas, nãopor inevitável necessidade, maspor uma vontade culpável. Naverdade, de certo modo, essasloucuras parecem lícitas.

IIII.4. Com efeito, julga-se quea avareza, a ambição, a luxúria eas distrações dos vários jogospertençam [às coisas] inocentes, a

2 II Cor 4,17.

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DIAS, C.E.S. (Trad.)

quod legibus prohibetur humanis,putantur ad innocentiam pertinere:immo etiam qui sine fraudecuiusquam, aut pro habendauel augenda pecunia, aut proadipiscendis uel retinendishonoribus, aut in agone certandoseu uenando, seu theatricumaliquid plausibiliter exhibendomagnos labores doloresquepertulerit, parum est quod populariuanitate nullis reprehensionibuscohibetur, sed insuper extolliturlaudibus, quoniam laudatur,sicut scriptum est, peccator indesideriis animae suae. uis enimdesideriorum facit tolerantiamlaborum et dolorum; et nemo nisipro eo, quod delectat, spontesuscipit ferre quod cruciat. sedistae, ut dixi, cupiditates, propterquas explendas qui eis flagrant,multa dura et acerba patientissimesustinent, licitae existimanturlegibusque concessae.

V.4. Quid? quod etiam pro apertissceleribus, non ut ea puniant, sedut perpetrent, multa hominesgrauissima perferunt? Nonne dequodam nobilissimo patriaeparricida saecularium litterarumloquuntur auctores, quod famem,sitim, frigus ferre poterat, eiusque

não ser que, por causa delas, tenhalugar algum crime ou escândaloque seja proibido pelas leishumanas: além disso, aquele quesuportou grandes trabalhos edores para adquirir ou aumentarseu dinheiro, para alcançar ouconservar honras, ou lutando oucaçando nos jogos públicos, ou[representando] algo no teatro quemereça aplausos, sem [causar]dano a alguém, pouco é dizer-seque não é coarctado por meio dequaisquer repreensões pela vaidadepopular, mas, além disso, éexaltado com louvores: porque élouvado, como está escrito, opecador nos desejos de sua alma3.Com efeito, a força dos desejosproduz a tolerância dos trabalhos edas dores; e ninguém a não ser poraquilo que lhe causa deleitação,suporta espontaneamente o que lhecausa dor. Mas estas, como eudisse, paixões, por cuja realizaçãoaqueles que as procuram suportampacientissimamente muitas coisasduras e acerbas, são consideradaslícitas e permitidas pelas leis.

V.4. Além disso, também oshomens [acaso não] suportammuitas coisas gravíssimas porcrimes manifestos, não parapuni-los, mas para perpetrá-los?Não é verdade que os autores daliteratura secular falam de um certonobilíssimo parricida da pátria que

3 Salmo 9, 24 (10, 3).

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erat corpus patiens inediae, algoris,uigiliae supra quam cuiquamcredibile est? quid de latronibusdicam, quorum omnes cuminsidiantur uiatoribus, noctesperpetiuntur insomnes, atque uttranseuntes excipiant innocentes,sub qualibet caeli asperitatenocentem animum corpusquedefigunt? quidam uero eoruminuicem torquere perhibentur, ita utexercitatio contra poenas nihildistet a poenis. non enim tantumfortassis excruciantur a iudice uta dolentibus ueritas inquiratur,quantum a suis sociis ut apatientibus non prodatur. et tamenin his omnibus miranda est potiusquam laudanda patientia, immonec miranda nec laudanda, quaenulla est, sed miranda duritia,neganda patientia; nihil autemillic iure laudandum, nihil utiliterimitandum, tantoque rectius maioresupplicio dignum iudicauerisanimum, quanto magis uitiissubdit instrumenta uirtutum.patientia comes est sapientiae, nonfamula concupiscentiae; patientiaamica est bonae conscientiae, noninimica innocentiae.

podia suportar o frio, a fome e asede e [que] seu corpo era capaz desuportar os jejuns, os frios e asvigílias além do que é crível4? E oque dizer dos ladrões, dos quaistodos, quando espreitam os via-jantes, suportam todas as noitessem dormir e para saltear osinocentes transeuntes imobilizamo seu espírito criminoso e o seucorpo sob o rigor do céu? Naverdade, diz-se que alguns delestorturam-se mutuamente, de talmodo que o exercício contra ossofrimentos [em] nada difere dossofrimentos. Com efeito, talveznão sejam torturados pelo juiz paraque se descubra a verdade comtanta dor quanto o são por seuscúmplices, para que esta não sejarevelada. E, contudo, em todosesses [casos] deve-se mais admirardo que louvar a paciência, pelocontrário, nem se deve admirá-lanem louvá-la, porque não há[paciência nestes casos], mas deveser admirada a dureza [e] devenegar-se a paciência, contudo,nada [há] ali para ser louvado comjustiça, nada [há] para ser imita-do com utilidade e tanto maisretamente deve-se julgar que édigno de maior suplício o espírito,quanto mais ele subordina aosvícios os instrumentos da virtude.A paciência é companheira dasapiência, não escrava da con-cupiscência; a paciência é amiga da

4 cf. CÍCERO. Catilinárias III, 16 e SALÚSTIO. Catilina. 5.

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VI.5. Cum ergo quemquam uiderispatienter aliquid pati, noli continuolaudare patientiam, quam nonostendit nisi causa patiendi.quando illa bona est, tunc ista ueraest; quando illa non polluiturcupiditate, tunc a falsitate istadistinguitur. cum uero illa teneturin crimine, tunc huius multumerratur in nomine. non enim sicutomnes qui sciunt sunt participesscientiae, ita omnes qui patiuntursunt participes patientiae; sed quipassione recte utuntur, hi patientiaeueritate laudantur, hi patientiaemunere coronantur.

VII.6. Verumtamen cum prolibidinibus, uel etiam sceleribus,cum denique pro ista temporali uitaac salute multa homines horrendamirabiliter sufferunt, satis nosadmonent quanta sufferenda sintpro uita bona, ut etiam posteapossit esse aeterna et sine ullotemporis termino, sine utilitatisullius detrimento uera felicitatesecura. dominus ait: in uestrapatientia possidebitis animasuestras; non ait: uillas uestras,laudes uestras, luxurias uestras;sed: animas uestras. si ergo tanta

boa consciência, não adversáriada inocência.

VI.5. Quando, pois, vês quealguém suporta algo paciente-mente, não deves louvar ime-diatamente a sua paciência, aqual só se torna manifesta pelacausa do sofrer. Quando aquelaé boa, então esta é verdadeira;quando aquela não é maculadapela cupidez, então esta se dis-tingue da falsidade. Na verdade,quando é mantida no crime, entãose erra muito quanto ao seu nome.Pois, não é certo que assim comotodos os que sabem são partícipesda ciência, assim todos os quesofrem sejam partícipes da pa-ciência; mas [os] que retamenteutilizam seu sofrimento, estessão louvados pela verdadeirapaciência, estes serão coroadoscom a dádiva da paciência.

VII.6. Contudo, quando por suasvolúpias ou ainda, por seus crimes,enfim, quando por esta vidatemporal e [por esta] saúde,os homens admiravelmente supor-tam muitas coisas horrendas,suficientemente nos admoestamde quantas coisas devem sersuportadas por uma vida boa, demodo que, também, depois possaser eterna e segura por umaverdadeira felicidade sem qual-quer termo de tempo e semdetrimento de alguma utilidade. OSenhor disse: Em vossa paciência

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suffert anima ut possideat undepereat, quanta debet sufferre nepereat! deinde, ut illud dicam,quod culpabile non est, si tantasuffert pro salute carnis suae intermanus secantium siue urentiummedicorum, quanta debet sufferrepro salute sua inter furoresquorumlibet inimicorum! cummedici, ne corpus moriatur, perpoenas corpori consulant, inimiciautem poenas et mortem corporicomminando, ut anima et corpusin gehenna occidatur impellant.

7. Quamquam et ipsi corporitunc prouidentius consulatur, sitemporalis salus eius pro iustitiacontemnatur, et poena uel morseius patientissime pro iustitiasufferatur. de corporis quipperedemptione, quae in finefutura est, loquitur apostolus,ubi ait: et ipsi in nobismetipsis ingemescimus adoptionemexspectantes redemptionem corporisnostri. deinde subiunxit: speenim salui facti sumus; spesautem, quae uidetur, non est spes.quod enim uidet quis, quid etsperat? si autem quod non

possuireis vossas almas5; nãodisse: as vossas quintas, as vossashonras, as vossas luxúrias, mas, asvossas almas. Se, portanto, tantascoisas suporta uma alma para quepossua [aquilo] pelo qual elaperece, quantas coisas [mais] devesuportar para que não pereça!Além disso, para falar de algo quenão é culpável, se tantas coisassuporta pela salvação de sua carnenas mãos dos médicos que acortam e a cauterizam, quantascoisas deve suportar pela suasalvação entre os furores dequaisquer inimigos! Enquanto osmédicos, para que o corpo nãomorra, tratam do corpo por meiode sofrimentos, os inimigos, aocontrário, impelem a que a alma eo corpo sejam mortos na geena.

7. Se bem que cuidamos pro-videntemente deste mesmo corpo,se pela justiça desprezamos asaúde temporal, pela justiçasuportemos também pacien-tissimamente o seu sofrimen-to ou morte. A respeito, pois,da redenção do corpo, a qualhá-de ser no fim, fala o Apóstoloquando diz: Dentro de nós ge-memos, esperando a adoção defilhos, a redenção de nosso corpo.Depois ajunta: Nós, pois fomossalvos na esperança. A esperança,porém, que se vê não é maisesperança; quem é que vê aquilo

5 Lc 21, 19.

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DIAS, C.E.S. (Trad.)

uidemus speramus, per patientiamexspectamus.

VIII. Cum ergo torquent aliquamala, sed non extorquent operamala, non solum anima perpatientiam possidetur, uerumetiam, cum per patientiam corpusipsum ad tempus affligitur uelamittitur, in aeternam stabilitatemsalutemque resumitur, et ei perdolorem et mortem inuiolabilissanitas et felix immortalitascomparatur. unde dominus Iesus adpatientiam exhortans martyres suosetiam ipsius corporis integritatemfuturam sine cuiusquam, nondicam, membri, sed capilliamissione promisit. amen dicouobis, inquit, capillus capitis uestrinon peribit, ut quoniam nemounquam, sicut apostolus dicit,carnem suam odio habuit, magishomo fidelis per patientiam quamper inpatientiam pro stratu suaecarnis inuigilet et futuraeincorruptionis inaestimabili lucroquantalibet eius praesentia damnacompenset.

que também espera? Se, aocontrário, o que não vemosesperamos, pela paciência [é que]o espectamos6.

VIII. Quando, pois, somos tor-turados por alguns males, masnão somos constrangidos aconsentir em más obras, nãosomente pela paciência mantemosa alma, mas, na verdade, tambémquando pela paciência se aflige ocorpo temporalmente ou se operde, recuperamo-lo para umaeterna estabilidade e saúde, e destaforma, através da dor e da morte,se obtêm uma saúde perfeita e umaimortalidade feliz. Eis porque oSenhor Jesus, ao exortar os seusmártires à paciência e tambémprometeu-lhes a futura integridadedo mesmo corpo, que não haveráde perder, não digo um membro,mas nem [mesmo] um cabelo. Dizele: Em verdade vos digo que nãose perderá nem um cabelo devossa cabeça7. Porque, como disseo Apóstolo: Ninguém teve jamaisódio à sua carne8, de modo que,ocupe-se o homem fiel pelo estadode sua carne mais com a paciênciado que com a impaciência ecompense as dores presentes, pormaiores que elas sejam, com olucro inestimável da incorrupçãofutura.

6 Rm 8, 23-25.7 Lc 21, 18.8 Ef 5, 29.

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S. Agostinho – De patientia

8. Quamuis autem patientia uirtussit animi, partim tamen ea utituranimus in se ipso, partim uero incorpore suo. in se ipso utiturpatientia, quando inlaeso et intactocorpore aliquid, quod non expediatuel non deceat, facere aut dicerequibuslibet aduersitatibus autfoeditatibus rerum seu uerborumstimulis incitatur, et patienter malaomnia tolerat, ne ipse mali aliquidopere uel ore committat.

VIIII. Per hanc patientiamsustinemus, etiam dum corporesani sumus, quod inter huiussaeculi scandala beatitudo nostradiffertur. unde dictum est, quodpaulo ante commemoraui: siquod non uidemus speramus,per patientiam exspectamus.hac patientia sanctus Dauidconuiciantis opprobria tolerauitet, cum facile posset ulcisci,non solum non fecit, uerumetiam alium pro se dolentemcommotumque compescuit etpotestatem regiam magis adhibuitprohibendo quam exercendouindictam. neque tunc eius corpusaliquo morbo affligebatur autuulnere, sed humilitatis tempusagnoscebatur ac ferebatur uoluntas

8. Porém, ainda que a paciênciaseja uma virtude da alma, todavia aalma há-de utilizá-la em parte emsi mesma, [e] certamente em parteem seu corpo. Em si mesmautiliza-se da paciência quando,estando o corpo intacto e ileso, aalma é impelida por estímulos deadversidade ou por torpezas deobra ou estímulos de palavra aexecutar ou dizer algo que não éconveniente ou decente, massuporta pacientissimamente todosos males, para que a própria nãocometa por obras ou palavras malalgum.

VIIII. Por esta paciência su-portamos, mesmo quando nos-so corpo está são, que nossabem-aventurança se distinga entreos escândalos do século: eis porque foi dito o que recentementemencionei: Se esperamos o quenão vemos, pela paciência oesperamos9. Por essa paciência osanto Davi suportou as injúriasde quem o injuriava, e quandopodendo vingar-se com facilidade,não somente não o fez, senão querefreou o outro que se doeu esobressaltou por ele e exercitoumais seu poder régio em reprimirdo que em executar a vingança10.Naquela ocasião, seu corpo não eraafligido por qualquer doença ouferida, mas considerava o tempo da

9 Rm. 8, 25.10 Cf. 2Rs 16, 5 ss.

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dei, propter quam patientissimoanimo amaritudo contumeliaebibebatur. hanc patientiam do-minus docuit, quando commotiszizaniorum permixtione seruis etuolentibus ea colligere dixitrespondisse patrem familias:sinite utraque crescere usque admessem. oportet enim patienterferri, quod festinanter non oportetauferri. huius et ipse patientiaepraebuit et demonstrauit exemplum,quando ante passionem corporissui diabolum Iudam, priusquamostenderet traditorem, pertulitfurem et ante experimentumuinculorum et crucis et mortis, labiiseius dolosis non negauit osculumpacis. haec omnia et si qua aliasunt, quae commemorare longumest, ad eum patientiae modumpertinent, quo animus non suapeccata, sed quaecumque ex-trinsecus mala patienter sustinetin se ipso suo prorsus corporeinlaeso.

X. Alius est autem patientiaemodus, quo idem ipse animusquaecumque molesta et grauia insui corporis passionibus perfert

humildade e suportava a vontadede Deus pela qual bebia comespírito pacientíssimo a amarguradas injúrias. Essa paciência nosensinou o Senhor, quando, aosservos irritados com a mistura dacizânia e, querendo arrancá-la, deua resposta do pai de família: Deixaique ambas cresçam até ao tempoda colheita11. Convém, pois, quese suporte com paciência aquiloque não se pode suprimir comprontidão. Dessa paciência [Cristo]nos apresentou e demonstrou umexemplo, quando antes da paixãode seu corpo suportou o diabólicoJudas [como] ladrão antes que odeclarasse traidor12 e, antes deexperimentar as cordas, a cruz e amorte, não negou o beijo da paz aseus lábios enganadores13. Todasessas coisas, e se outras existem,de que seria longo o recordar,pertencem àquele gênero de pa-ciência com o qual a alma nãosuporta os seus pecados, massuporta em si mesma, pacien-temente, todos aqueles malesexternos [que lhe provenham],conservando seu corpo absoluta-mente ileso.

X. Por outro lado, há outra espéciede paciência pela qual a almamesma suporta tudo o que de mal epenoso advém com os sofrimentos

11 Mt 13, 30.12 Cf. Jo. 12, 5; 13, 29.13 Cf. Mt 26, 49.

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S. Agostinho – De patientia

non sicut stulti uel malignihomines propter adipiscenda uanauel scelera perpetranda, sed, sicuta domino definitum est, propteriustitiam. utroque modo sanctimartyres certauerunt – nam etimpiorum opprobriis saturatisunt, ubi animus corpore intactoquasdam ueluti plagas suas integersustinet, et in corporibus uinctisunt, inclusi sunt, fame ac sitiaffecti sunt, torti sunt, sectisunt, dilaniati sunt, incensi sunt,trucidati sunt – et pietate immobilisubdiderunt deo mentem, cumpaterentur in carne quidquidexquirenti crudelitati uenit inmentem.

9. Maius sane patientiae certamenest, quando non uisibilis inimicuspersequendo atque saeuiendourget in nefas, qui palam et apertea non consentiente uincatur,sed ipse diabolus, qui etiam perfilios infidelitatis tamquam per suauasa filios lucis insequitur, per seipsum occulte occultus oppugnat,saeuiendo instans ut contra deumfiat aliquid uel dicatur.

do seu corpo; não como oshomens estultos ou malignos [quesuportam] em vista de alcançarvaidades ou perpetrar crimes, masassim como a definiu o Senhor,por causa da justiça14. Os santosmártires combateram com am-bas espécies [de paciência]. Comefeito, foram saturados deopróbrios dos ímpios e nissoo corpo permaneceu intacto[,enquanto que,] a alma, suportoucomo que feridas; e em seuscorpos foram amarrados, encar-cerados, afligidos por fome esede, foram torturados, seccio-nados, dilacerados, foram queima-dos e trucidados: e em suapiedade inabalável submeteramsua mente a Deus, quando so-freram em sua carne tudoaquilo que veio à mente de umacrueldade perseguidora.

9. Certamente é maior o combate dapaciência quando não é um inimigovisível, perseguindo e, o que émais, com ferocidade pressionandoao pecado, que é publicamente eabertamente vencido por aqueleque se nega a consentir, mas opróprio diabo, o qual tambémpersegue os filhos da luz atravésdos filhos da infidelidade comocanais próprios, por si mesmoataca ocultamente com ferocidadeimpelindo para que se diga ou sefaça algo contra Deus.

14 Mt 5, 10.

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XI. Talem illum Iob sanctusexpertus est, utraque tentationeuexatus, sed in utraque stabilispatientiae robore et armispietatis inuictus. nam prius inlaesocorpore cuncta quae habebatamisit, ut animus ante suae carniscruciatum subtractis rebus quasmagni pendere homines solent,frangeretur, et aduersus deumloqueretur aliquid his amissis,propter quae illud colere putabatur,percussus est etiam omniumsubita orbitate filiorum, utquos singillatim susceperat,simul perderet, tamquam eorumnumerositas non unde felicitasornaretur exstiterit, sed undecalamitas augeretur. ubi autem istaperpessus in deo suo mansitimmobilis, eius adfixus estuoluntati, quem non possetamittere nisi propria uoluntate;et pro iis quae perdidit eum quiabstulit tenuit, in quo inueniretquod nunquam periret. neque enimille abstulerat, qui nocendi habuituoluntatem, sed ille, qui dederatpotestatem.

XI. A esse experimentou-o o santoJó atormentado com ambas astentações, mas numa e noutra nãofoi vencido devido à força dapaciência constante e às armas dapiedade. Pois, primeiro perdeuquanto tinha, enquanto que ocorpo permaneceu ileso; paraque alma fosse quebrantada antesde sua carne ser atormentadaao serem-lhe tiradas as coisasque os homens costumam es-timar; e para que falasse al-guma coisa contra Deus aoperder aquelas coisas pelasquais [o diabo] pensava queJó servisse a Deus, tambémfoi afligido com súbito desa-parecimento de todos os seusfilhos, e de tal maneira que,aqueles que recebera um a um,os perdesse juntamente; e comose [o fato de] ser muitos fosse,não para ornar a felicidade, senãoque para que aumentasse acalamidade. No momento emque sofreu isso, permaneceufirme em seu Deus, aderiu àvontade do mesmo, o qual[ele] não podia perder a nãoser por sua própria vontade;e em lugar daquelas coisas queperdeu, reteve aquele que delaso privou no qual encontrariaaquilo que nunca morreria.Pois, quem lhe tirara os bensnão foi aquele que tinha avontade de fazer-lhe o mal, masquem lhe dera o poder [parafazer isso].

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XII. Aggressus est inimicus etcorpus nec ea, quae hominiextrinsecus inerant, sed ipsum iamhominem in qua potuit partepercussit. a capite usque adpedes ardebant dolores, scatebantuermes, sanies defluebat: manebatin putri corpore animus integer,horrendosque cruciatus carniscontabescentis inuiolata pietate etincorrupta patientia perferebat.aderat uxor nec ferebat opemaliquam uiro, sed in deumblasphemiam suggerebat. non enimeam diabolus, cum etiam filiosabstulisset, tamquam nocendiimperitus reliquerat, qui quantumesset necessaria temptatori iam inEua didicerat. sed modo alterumAdam, quem per mulierem caperet,non inuenerat. cautior fuit iste indoloribus, quam ille in nemoribus:ille uictus est in deliciis, isteuicit in poenis; consensit illeoblectamentis, non cessit istetormentis. aderant et amici, non utin malis consolarentur, sed ut malasuspicarentur. neque enim eum, quitanta patiebatur, innocentem essecredebant, nec tacebat eorumlingua quod illius conscientia nonhabebat; ut inter inmanes cruciatuscorporis, etiam falsis animuscaederetur obprobriis. at illesustinens in carne dolores suos, in

XII. [Depois] o inimigo agrediu oseu corpo, não naquelas coisas quesão extrinsecamente inerentes aohomem, mas atacou já o própriohomem naquela parte onde pode.Da cabeça aos pés ardiam as dores,os vermes pululavam, corria o pus;[no entanto,] mantinha íntegra aalma em um corpo pútrido esuportava com uma inviolávelpiedade e uma incorrupta pa-ciência o horrendo tormento dacarne que definhava. Aproximara-se a esposa, mas não levava algumauxílio a seu marido, antes sugeriablasfemar a Deus. Com efeito, odiabo, quando lhe tirou os filhos,não a tirou também, como teriafeito um ignorante ao causar omal, ele que já com Eva haviaaprendido o quanto era necessáriapara um tentador15. Mas, desta veznão encontrou outro Adão paraseduzir por meio da mulher. Este[Jó], foi mais cauteloso, entre asdores, que aquele [Adão] entre osnemores16, aquele foi vencido entreas delícias, este foi vencedor entreos sofrimentos; aquele consentiunos prazeres, este não cedeu aostormentos. Estavam ao redor de sios amigos, não para o consolar emseus males, mas antes para declará-lo mau. Pois não acreditavam queele, que tanto padecia, pudesse ser

15 Cf. Gn 3, 1 ss.16 Bosques. Optou-se por traduzir o plural latino nemoribus em nemores, não obstante o desuso

da palavra. Desta forma salvou-se a rima empregue por S. Agostinho que perder-se-ia se ovocábulo fosse traduzido por bosques.

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corde errores alienos coniugiscorripiebat insipientiam, amicosdocebat sapientiam, seruabatubique patientiam.

XIII.10. Hunc intueantur, quisibi ingerunt mortem, quandoquaeruntur ad uitam; et sibiauferendo praesentem abnegant etfuturam. qui si ad Christumnegandum uel aliquid contraiustitiam faciendum, sicut uerimartyres, cogerentur, omniapotius patienter ferre quam sibiimpatienter mortem inferredebuerunt. quod si fugiendorummalorum causa recte fieri posset,Iob sanctus se ipse perimeret, uttanta mala in rebus suis, in filiissuis, in membris suis, diabolicaecrudelitatis effugeret. non autemfecit. absit enim, ut in secommitteret ipse uir sapiens, quodnec mulier suggessit insipiens.quia et si suggessisset, merito ethic illud audisset, quod audiuitsuggerendo blasphemiam: locutaes tamquam una ex insipientibusmulieribus. si bona percepimusde manu domini, mala nonsustineamus? Et ipsam quippepatientiam perdidisset, siue

inocente, e não calava sua língua[que o denunciava sobre] aquiloque não havia em sua consciência;de modo que entre os cruéistormentos do corpo, a alma eraabatida por falsos opróbrios.Porém, ele sustentou em sua carneas suas próprias dores, e em seucoração os erros alheios, à esposacorrigiu a insipiência, aos amigosensinou a sapiência, e em todaparte conservou a paciência.

XIII.10. Anotem este [exemplo] osque a si mesmos inculcam a morte,quando são chamados à vida e que,quando destroem [essa mesmavida], renunciam a futura. Sefossem obrigados, como autênticosmártires, a renegar a Cristo ou aexecutar alguma coisa contra ajustiça, deveriam antes suportartudo isso com paciência do quecom impaciência suicidar-se. Masse se pudesse admitir o suicídiopara fugir dos males, o santo Jóhaver-se-ia se suicidado para fugirde tantos males da diabólicacrueldade [que se infligiu] nos seusbens, nos seus filhos, em seusmembros. No entanto, não o fez.Longe, portanto [de nós] pensarque [ele] podia cometer em simesmo, um varão sábio, aquiloque nem mesmo sugeriu [sua]insipiente mulher. Se houvessesugerido, teria tido que escutaraquilo que escutou quando sugeriua blasfêmia: Falaste como uma dasmulheres insipientes. Se recebemos

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blasphemando, sicut illa uoluerat,siue se interficiendo, quod nec illaausa fuerat dicere, moreretur atqueesset inter illos de quibus dictumest: uae iis qui perdideruntpatientiam. et augeret potiusquam euaderet poenas, qui postsui corporis mortem, siue adblasphemorum siue ad homi-cidarum uel etiam plus quamparricidarum supplicia raperetur. sienim parricida eo sceleratior estquam quilibet homicida, quia nontantum hominem, uerum etiampropinquum necat, inque ipsisparricidis, quanto propinquioremquisque peremerit, tanto iudicaturinmanior: sine dubio peior est, quise occidit, quia nemo est hominise ipso propinquior. quid ergoiseri faciunt, qui cum et hicsibimet ingestas et postea nonsolum impietatis aduersus deum,sed etiam ipsius quam in seexercuerunt crudelitatis luantdebitas poenas, insuper quaeruntet martyrum glorias? cum etiamsipro uero Christi testimoniopersecutionem paterentur et seinterficerent, ne aliquid a per-secutoribus paterentur, recte illisdiceretur: uae iis qui per-diderunt patientiam! quomodoenim iustum praemium patientiaeredditur, si et inpatiens passiocoronatur? aut quomodo innocensiudicabitur, cui dictum est: diliges

os bens das mãos do Senhor, nãohavemos de aceitar os males17?Houvesse perdido a sua paciência,seja blasfemando, como elasugeria, seja suicidando-se, comoela nem sequer se atreveu asugerir, teria morrido e estariaentre aqueles de quem se disse: Aidaqueles que perderam a suapaciência18. Em lugar de evitar apena, tê-la-ia aumentado aqueleque após a morte do seu corpohouvesse incorrido nos suplíciosquer dos blasfemos, quer doshomicidas ou daqueles que sãomais do que parricidas. Se umparricida é mais criminoso que umhomicida, já que não mata apenasa um homem, mas a um parente eentre os parricidas, tanto um é maiscriminoso quanto mais próximo éaquele a quem mata, sem dúvida épior aquele que se mata, porqueninguém é mais próximo dohomem do que ele próprio. Quefazem, portanto, eles miseráveis osquais quando sofrem as penas a simesmo infligidas aqui e depoisrecebem os castigos devidos nãosó à impiedade contra Deus mastambém da própria crueldade aqual exerceram em si mesmos, eprocuram ainda, além disso, aglória dos mártires? Ainda quesofressem perseguição pelo ver-dadeiro testemunho de Cristo ese suicidassem para não sofrerem

17 Jó 2, 10.18 Eclo 2, 14.

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proximum tuum tamquam teipsum, si homicidium committitin se ipso, quod committereprohibetur in proximo?

XIIII.11. Audiant ergo sanctide scripturis sanctis praeceptapatientiae: fili, accedens adseruitutem dei sta in iustitia ettimore, et praepara animam tuamad temptationem: deprime cortuum et sustine; ut crescat innouissimis tua uita. omne quod tibisuperuenerit accipe et in doloresustine et in humilitate tuapatientiam habe, quoniam in igneprobatur aurum et argentum,homines uero acceptabiles incamino humiliationis. et in locoalio legitur: fili, ne deficias indisciplina domini neque fatigeriscum ab illo increparis; quemenim diligit dominus, corripit,flagellat autem omnem filiumquem recipit. quod hic positumest “filium quem recipit”, hoc insupra dicto testimonio est, homines

alguma coisa dos perseguidores,com razão se lhes diria: Aidaqueles que perderam a suapaciência19! Como se pode darum prêmio justo à paciência sefor coroado o padecimento daimpaciência? Como será julgadoinocente aquele a quem foi dito:Amarás ao teu próximo como a timesmo20, se comete contra simesmo o homicídio, que se proíbecometer contra o próximo?

XIIII. 11. Ouçam, pois, os santosos preceitos de paciência dasEscrituras santas: Filho, ao teaproximares do serviço de Deus,mantém-te em justiça e temor eprepara tua alma para a tentação.Humilha o teu coração e agüentapara que no final cresça a tuavida. Aceita tudo aquilo que tesobrevenha, agüenta a dor e tempaciência na humildade. Porqueno fogo se provam o ouro e aprata, mas os homens se fa-zem aceitáveis no caminho dahumilhação21. E em outra pas-sagem se lê: Filho, não tefatigues na disciplina do Senhor,nem desmaies quando foresrepreendido por ele. A quem oSenhor ama ele castiga e flagela atodo o filho a quem recebe22. Aquise diz: “filho por ele recebido”

19 Eclo 2, 14.20 Mt 19, 19.21 Eclo 2, 1-5.22 Pr 3, 11-12.

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receptibiles. hoc enim iustum est, utqui de pristina felicitate paradisipropter contumacem deliciarumappetentiam dimissi sumus, perhumilem molestiarum patientiamrecipiamur, fugaces mala faciendo,reduces mala patiendo; ibi contraiustitiam facientes, hic pro iustitiapatientes.

XV.12. Sed uera patientia, quaehuius est nomine digna uirtutis,quaerendum est unde sumatur. suntenim, qui eam tribuant uiribusuoluntatis humanae, non quashabent ex diuino adiutorio, sedquas ex libero arbitrio. error autemiste superbus est; eorum est enimqui abundant, de quibus diciturin psalmo: obprobrium eis quiabundant et despectio superbis.non ergo est ista patientiapauperum, quae non perit inaeternum. hic enim pauperes abillo eam diuite accipiunt, cuidicitur: deus meus es tu, quoniambonorum meorum non eges, a quoest omne datum optimum et omnedonum perfectum, ad quem clamategenus et pauper, qui laudatnomen eius, et petendo, quaerendo,pulsando dicit: deus meus, eripe

como acima se disse: “homensaceitáveis”. Com efeito, é justoque nós, que por uma contumazapetência de delícias fomosexpulsos da prístina felicidadedo paraíso, sejamos aceitosnovamente pela paciência nasmoléstias. Tendo sido fugazes aofazer o mal, regressados sejamospadecendo o mal, ali contra ajustiça atuantes, aqui pela justiçapadecentes.

XV.12. Mas, deve-se buscar qual aorigem da paciência verdadeira,digna do nome de virtude. Háaqueles que a atribuem às forças davontade humana, não às querecebem da ajuda divina, mas àsque têm por seu livre-arbítrio. Esteerro, porém, é soberbo; é o errodos que vivem na abundância, aosquais se refere o Salmo: Opróbriopara os que abundam e hu-milhação para os soberbos23.Não é esta a paciência dos pobresque não perece eternamente24.Estes pobres recebem a paciênciad’Aquele rico ao qual dizemos:Tu és o meu Deus porque dosmeus bens não necessitas25. Deleprocede todo dom ótimo e todadádiva perfeita26. A ele clama omiserável e pobre que louva o seunome e diz pedindo, chamando e

23 Sl 122, 4.24 Cf. Sl 9, 19.25 Sl 15, 2.26 Cf Tg 1, 17.

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me de manu peccatoris, et demanu legem praetereuntis etiniqui, quoniam tu es patientiamea, domine, spes mea a iuuentutemea. isti autem, qui abundant etegere ad dominum dedignantur, neab illo accipiant ueram patientiam,de sua falsa gloriantes consiliuminopis uolunt confundere, quoniamdominus spes eius est, necattendunt, cum homines sunt etsuae, id est, humanae uoluntatitantum tribuunt, in illud seincurrere quod scriptum est:maledictus omnis qui spem suamponit in homine. unde etiamsi eiscontingat ut aliqua dura et aspera,uel ne displiceant hominibus uel negrauiora patiantur uel sibi placendoet amando praesumptionem suameadem ipsa superbissima uoluntatesustineant, hoc illis dicendum estde patientia, quod de sapientiabeatus Iacobus apostolus dicit:non est ista sapientia desursumdescendens, sed terrena, animalis,diabolica. cur enim non sitsuperborum falsa patientia, sicutsuperborum est falsa sapientia? aquo est autem uera sapientia, abillo est et uera patientia. huic enimcantat ille spiritu pauper: deosubiecta est anima mea, quoniamab ipso est patientia mea.

buscando: Deus meu, livra-me damão do pecador, da mão dotransgressor da Lei e do iníquo.Porque tu és minha paciência,Senhor, minha esperança desdeminha juventude27. Os que têmabundância e se envergonham demendigar a Deus para não receberdele a paciência verdadeira, segloriam de sua falsa [paciência] equerem confundir o conselho dopobre, porque o Senhor é a suaesperança28 e, visto que sãohomens e que dão excessivasatribuições à sua vontade, isto é,humana, não reparam que in-correm no que está escrito:Maldito todo aquele que põe asua esperança no homem29. Porisso, ainda que tolerem com essavontade sumamente orgulhosaalgumas coisas duras e ásperas,seja para não desagradar aoshomens, seja para não toleraroutras piores, e, enfim, por puracomplacência própria ou por amorà sua presunção, deve dizer-se-lhesde sua paciência aquilo que o bem-aventurado apóstolo Tiago disseacerca da sapiência: Esta sapiêncianão desce de cima, mas é terrena,animal e diabólica30. Com efeito,por que não há de ser falsa apaciência dos orgulhosos assimcomo é falsa sua sapiência? Aquele

27 Sl 70, 4-5.28 Sl 13, 6.29 Jr 17, 5.30 Tg 3, 15.

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XVI.13. Sed respondent etloquuntur dicentes: sicut uoluntashominis sine ullo dei adiutoriouiribus liberi arbitrii tam multagrauia et horrenda perfert, siue inanimo siue in corpore, ut mortalisuitae huius et peccatorumdelectatione perfruatur, cur noneodem modo eadem ipsa uoluntashominis eisdem uiribus liberiarbitrii non ad hoc exspectans sediuinitus adiuuari, sed sibi naturalipossibilitate sufficiens quidquidlaboris uel doloris ingeritur, proiustitia et uita aeterna patientissimesustinet? an uero, inquiunt, idoneaest iniquorum uoluntas deo nonadiuuante ut se ipsi in cruciatibuspro iniquitate et, antequam abliis crucientur, exerceant; idoneaest uoluntas moras uitae huiusmantium, ut deo non adiuuante interatrocissima et longa tormenta inmendacio perseuerent, ne suafacinora confitentes, iubeanturoccidi, et non est idonea iustorumuoluntas, nisi eis uires desupersuggerantur, quaslibet poenas uelipsius decore iustitiae uel aeternaeuitae amore perferre?

de quem vem a verdadeirasapiência é o mesmo que dá averdadeira paciência. A este, defato, canta aquele pobre emespírito: A Deus se encontrasubmissa minha alma, porque deleprocede a minha paciência31.

XVI.13. Mas, respondem e falamdizendo: Assim como, somentecom as forças do livre arbítrio, semnenhuma ajuda de Deus, a vontadedo homem executa tantas coisasgraves e horrendas, seja na alma,seja no corpo, para desfrutardesta vida mortal e do deleite dospecados, por que [então] essavontade – com as próprias forçasdo livre arbítrio – e sem esperar oauxílio divino, não se bastará a simesma com suas possibilidadesnaturais para suportar com perfeitapaciência, pela justiça e pela vidaeterna, quantos trabalhos e doresse ofereçam? Ou então, dizem, avontade dos iníquos é idônea sema ajuda de Deus de tal maneiraque se exercitam pela iniquidadedos tormentos antes de serematormentados por outros; é idôneaa vontade dos que amam amorosidade desta vida de talmaneira que perseveram sem aajuda de Deus na mentira, entre osatrocíssimos e longos tormentospara que não sejam condenados àmorte ao confessarem os seuscrimes e não será a vontade dos

31 Sl 61, 6.

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XVII.14. Qui haec dicunt, nonintellegunt et quemque iniquorumtanto esse ad quaecumque malaperferenda duriorem, quanto ineo maior est cupiditas mundi,et quemque iustorum tanto essead quaecumque mala perferendafortiorem, quanto in eo estmaior caritas dei. sed cupiditasmundi initium habet ex arbitriouoluntatis, progressum ex iucun-ditate uoluptatis, firmamentumex uinculo consuetudinis: caritasautem dei diffusa est in cordibusnostris, non utique ex nobis, sedper spiritum sanctum qui datus estnobis. proinde ab illo est patientiaiustorum, per quem diffunditurcaritas eorum. quam caritatemlaudans atque commendansapostolus inter cetera eius bonadixit eam et cuncta sufferre.caritas, inquit, magnanima est, etpaulo post ait: omnia tolerat.quanto ergo maior est in sanctiscaritas dei, tanto magis pro eoquod diligitur, et quanto maiorest in peccatoribus cupiditasmundi, tanto magis pro eo quodconcupiscitur, omnia tolerantur. acper hoc inde est patientia uera

justos idônea para tolerar quais-quer penas pelo decoro da mes-ma justiça ou por amor à vidaeterna se não os ajudam as forçaslá de cima?

XVII.14. Os que assim falam nãoentendem que cada um dos iníquosé tanto mais duro para suportarquaisquer que sejam os males,quanto maior é nele a cupidez domundo e não entendem que cadaum dos justos é tão forte parasuportar quaisquer que sejam osmales, quanto maior é nele acaridade de Deus. Mas, a cupidezdo mundo tem seu início noarbítrio da vontade, seu cres-cimento no deleite do prazer esua confirmação no vínculo docostume: No entanto, a caridadede Deus foi difundida em nossocoração – em todo caso não pornós – mas, pelo Espírito Santo quenos foi dado32. Pelo que, apaciência dos justos procededaquele que difunde neles acaridade. O Apóstolo, ao louvar erecomendar a caridade, diz dela,entre outros elogios, que elasuporta tudo: A caridade émagnânima. E pouco depois diz:Tudo suporta33. Quanto maior énos santos o amor de Deus, tantomais se suportam todas as coisaspor aquilo que é amado e quantomaior é nos pecadores a cobiça do

32 Rm 5, 5.33 1Cor 13, 4 e 7.

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iustorum, unde est in eis caritasdei; et inde est patientia falsainiquorum, unde est in eiscupiditas mundi. propter quod dicitIohannes apostolus: nolite diligeremundum nec ea quae in mundosunt. si quis dilexerit mundum,dilectio patris non est in ipso,quoniam omne quod est inmundo, concupiscentia carnisest et concupiscentia oculorum etambitio saeculi: quae non estex patre, sed ex mundo est. haecigitur concupiscentia, quae nonest ex patre, sed ex mundo, quantofuerit in homine uehementioret ardentior, tanto fit quisquepro eo, quod concupiscit,omnium molestiarum dolorumquepatientior. idcirco, sicut supradiximus, non est ista patientiadesursum descendens; patientiauero piorum desursum estdescendens a patre luminum.itaque illa terrena est, ista caelestis,illa animalis, ista spiritalis, illadiabolica, ista deifica, quoniamconcupiscentia, qua fit, utpeccantes omnia pertinaciterpatiantur, ex mundo est; caritasautem, qua fit, ut recte uiuentesomnia fortiter patiantur, ex deo est.et ideo illi falsae patientiae potestsine adiutorio dei uoluntas humanasufficere tanto durior, quantocupidior, et eo tolerabilius malasustinens, quo ipsa fit peior; huicautem, quae uera patientia est, ideo

mundo, tanto mais são suportadastodas as coisas por aquilo queambicionam. E, por isso, a origemda verdadeira paciência dos justosé também a origem da caridadede Deus neles; e a origem dafalsa paciência dos iníquos étambém a origem da cupidez domundo que há neles. E assimdisse o apóstolo João: Não ameiso mundo nem as coisas que sãodo mundo. Se alguém ama omundo o amor do Pai não estánele; porque tudo aquilo quehá no mundo é concupiscênciada carne, concupiscência dosolhos e a ambição do século,a qual não é do Pai, mas domundo34. Por conseguinte, quantomais veemente e ardente for nohomem esta concupiscência –que não é do Pai, mas do mundo –tanto mais cada um se tornapaciente de todas as dores emoléstias por aquilo que de-seja. Esta paciência, como disse-mos, não desce do alto, porém,a paciência dos piedosos, descedo alto, descende do Pai dasLuzes. Aquela é terrena, estaceleste, aquela animal, esta es-piritual, aquela é diabólica, estaé deífica, porque do mundoprocede a concupiscência, a qualfaz que os pecadores pertinaz-mente tudo suportem; ao con-trário, procede de Deus acaridade, a qual faz que os que

34 1Jo 2, 15-16.

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uoluntas humana, nisi desuperadiuta et inflammata, non sufficit,quia spiritus sanctus est ignis eius,quo nisi accensa diligat impassibilebonum, ferre non potest quodpatitur malum.

XVIII.15. Sicut enim diuinatestantur eloquia: deus caritas est,et qui manet in caritate, in deomanet, et deus in illo manet.quisquis ergo contendit haberiposse dei caritatem sine deiadiutorio, quid aliud contendit nisihaberi deum posse sine deo? quisautem hoc dicat christianus, quodnullus dicere audeat insanus?exsultans ergo apud apostolumuera, pia fidelisque patientia dicitore sanctorum: quis nos separabita caritate Christi? tribulatio? anangustia? an persecutio? anfames? an nuditas? an periculum?an gladius? sicut scriptum est,quia propter te mortificamur totadie, deputati sumus sicut ouesuictimae. sed in his omnibussuperuincimus per eum qui dilexit

vivem retamente suportem tudocorajosamente. E, por isso, paraessa falsa paciência pode bastara vontade humana sem a ajudade Deus; vontade tanto maisdura quanto mais concupis-cente, que suportando tanto maistoleravelmente os males; pior elase torna, a esta, porém, que éa verdadeira paciência, não ésuficiente a vontade humana, a nãoser que seja ajudada e inflamadado alto, porque o Espírito Santo éo seu fogo; e, a não ser que, acesa,por Aquele, ame o bem impassível,não pode suportar o mal que sofre.

XVIII.15. Com efeito, assimtestemunham as divinas escritu-ras: Deus é caridade e quempermanece na caridade, em Deuspermanece e Deus nele per-manece35. Logo, todo aqueleque propugna que a caridade deDeus pode ser tida sem a ajuda deDeus, que outra coisa sustentasenão que se pode ter Deus semDeus? Porém, quem dirá, sendocristão aquilo que nenhum insanoousaria dizer? Por conseguinte,de acordo com o Apóstolo, averdadeira, piedosa e fiel pa-ciência, exultante, diz pela bocados santos: Quem nos separará doamor de Cristo? A tribulação?Acaso a angústia? Acaso a fome?A nudez? Porventura o perigo? Aespada? Como está escrito, por

35 1 Jo 4, 16.

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nos: non ergo per nos, sed per eumqui dilexit nos. deinde sequitur etadiungit: certus sum enim, quianeque mors neque uita nequeangeli neque principatus nequepraesentia neque futura nequealtitudo neque profundum nequecreatura alia poterit nos separarea caritate dei, quae est in ChristoIesu domino nostro. Haec est illacaritas dei, quae diffunditur incordibus nostris, non ex nobis,sed per spiritum sanctum quidatus est nobis; malorum autemconcupiscentia, propter quam ineis est falsa patientia, non estex patre, sicut dicit apostolusIohannes, sed ex mundo est.

XVIIII.16. Hic dicet aliquis: siex mundo est concupiscentiamalorum, per quam fit ut malaomnia pro eo quod ab illisconcupiscitur perferant, quo modoex eorum dicitur uoluntate? quasiuero non et ipsi ex mundo sint,cum ab eis diligitur mundus

causa de ti somos mortificadostodo o dia e somos reputados[como] ovelhas para o matadouro.Mas, em tudo isso sobrevencemospor aquele que nos amou – nãopor nós, mas por aquele quenos amou36. Depois continua eacrescenta: Pois, estou certo deque nem a morte, nem a vida, nemos anjos, nem os principados, nemas potestades, nem o presente,nem o futuro, nem a altura,nem a profundidade, nem criaturaalguma poderá nos separar dacaridade de Deus, a qual está emCristo Jesus Senhor nosso37. Esta éaquela caridade de Deus, a qual édifundida em nossos corações –não a partir de nós – mas atravésdo Espírito Santo que nos édado38. Contudo, a concupiscênciados maus, por causa da qualhá neles a falsa paciência, nãoprocede do Pai, segundo disse oapóstolo João, mas procede domundo39.

XVIIII.16. Aqui alguém dirá: Se aconcupiscência dos maus, pelaqual suportam todos os males poraquelas coisas que são desejadas,procede do mundo, de que formase diz que procede de sua vontade?Como se os maus não fossem domundo, quando amam o mundo e

36 Rm 8, 35-39.37 Rm 8, 35-39.38 Rm 5, 5.39 Cf. 1Jo 2, 15-16.

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deserto eo, per quem factus estmundus: seruiunt enim creaturaepotius quam creatori, qui estbenedictus in saecula. siue itaquemundi uocabulo Iohannes apostolusdilectores significauerit mundi,uoluntas, quae ex ipsis est, utique exmundo est: siue mundi nominecaelum et terram et quaecumquein eis sunt, hoc est uniuersamconplexus sit creaturam, uoluntasprocul dubio creaturae, quae non estcreatoris, ex mundo est. propterquod talibus dominus dicit: uos dedeorsum estis, ego de sursum sum;uos de hoc mundo estis, ego nonsum de hoc mundo. apostolis autemdicit: si de hoc mundo essetis,mundus quod suum est diligeret.sed ne sibi amplius adrogarent,quam eorum mensura poscebat, ethoc, quod eos non esse dixit exmundo, naturae putarent esse, nongratiae, quia uero, inquit, de mundonon estis, sed ego elegi uos demundo, propterea odit uos mundus.ergo de mundo erant: nam, ut nonessent de mundo, electi sunt demundo.

XX.17. Hanc autem electionemnon praecedentium in bonisoperibus meritorum, sed

abandonam Aquele por quem omundo foi feito: Servem – pois,mais à criatura que ao criador,que é bendito para sempre40.Se, portanto, o apóstolo João quisdizer com a palavra mundo osamantes do mundo, a vontade quevem dos mesmos sem dúvida é domundo; ou se com o nome demundo abrangeu toda a criatura, avontade da criatura, sem dúvida quenão é do criador é do mundo. Peloque a esses diz o Senhor: Vós soisde baixo, eu sou de cima: Vós soisdo mundo, eu não sou destemundo41. Por outro lado, aosapóstolos disse: Se fôsseis destemundo, o mundo amaria o queé seu42. Mas, para que não searrogassem mais do que a suamedida requeria isto que eledisse de não o serem do mundo[e] julgassem ser da natureza enão da graça, disse: Porque, naverdade, não sois do mundo, maseu vos escolhi do mundo e emconseqüência disto o mundo vosodeia43. Logo do mundo eram,pois, para que não fossemdo mundo, do mundo foramescolhidos.

XX.17. No entanto, o Apóstolo,mostrando esta eleição, não[como] dos méritos precedentes

40 Rm 1, 25.41 Jo 8, 23.42 Jo 15, 19.43 Jo 15, 19.

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electionem gratiae demonstransapostolus sic inquit: et in hoctempore reliquiae per electionemgratiae saluae factae sunt; siautem gratia, iam non ex operibus;alioquin gratia iam non estgratia. haec est electio gratiae,id est electio, qua per dei gratiamhomines eliguntur, haec est,inquam, electio gratiae, quaomnia bona merita praeueniunturhumana. si enim ullis bonis meritisdatur, iam non gratis donatur, seddebita redditur, ac per hoc nonuero nomine gratia nuncupatur, ubimerces, sicut idem dicit apostolus,non imputatur secundum gratiam,sed secundum debitum. si autem,ut uera sit gratia, id est gratuita,nihil inuenit in homine, cui meritodebeatur – quod bene intellegituret in eo, quod dictum est: pronihilo saluos facies eos – profectoipsa dat merita, non meritis datur.praeuenit ergo etiam fidem, ex quaomnia bona opera incipiunt; iustusenim, sicut scriptum est, ex fideuiuit. porro autem gratia non solumadiuuat iustum, uerum etiamiustificat inpium. et ideo etiam cumadiuuat iustum et uidetur eiusmeritis reddi, nec sic desinit essegratia, quoniam id adiuuat, quodipsa est largita. propter hanc itaquegratiam, quae cuncta bona merita

nas boas obras, mas [como] eleiçãoda graça, assim diz: E neste tem-po, foram salvos os remanescen-tes pela eleição da graça. Se,portanto, por graça, já não [é]pelas obras; de outra forma agraça já não mais seria graça44.Tal é a eleição da graça, isto é, aeleição pela qual são eleitos oshomens por graça de Deus, tal é,digo, a eleição da graça pela qualtodos os bons méritos humanos sãoprecedidos. Se, portanto, é dadapor algum mérito bom, já não édada gratuitamente, mas solvidapor justiça e, por isso, não deve serchamada pelo nome de graça,porque, então; como diz o mesmoApóstolo: não é imputada segundoa graça, mas segundo o débito45.Se, contudo, para ser verda-deira graça, isto é, gratuita, nadaencontra no homem ao qual sejadevida merecidamente, o que bemse compreende também naquiloque foi dito: Por nada hás-defazê-los salvos46: sem dúvida, aprópria dá os méritos, não é dadapelos méritos. Antecede, portanto,também a fé, a partir da qual,principiam todas as boas obras.Como está escrito, o justo vive dafé47. Além disso, no entanto, agraça não só ajuda o justo, masainda em verdade justifica o ímpio.

44 Rm 11, 5-6.45 Cf. Rm 4, 4.46 Sl 55, 8.47 Hab 2, 4. (e também Rm 1, 17 e Gal 3, 11).

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humana praecedit, non solumChristus ab inpiis occisus est,uerum etiam pro impiis mortuusest. et antequam moreretur, nonutique iustos, sed iustificandoselegit apostolos, quibus ait: egouos de mundo elegi. quibus enimdixit: de mundo non estis, et, neputarent se nunquam fuisse demundo, mox addidit: sed ego uosde mundo elegi, profecto, ut demundo non essent, ipsius in eoselectione conlatum est. quocircasi per suam iustitiam, non pergratiam eius eligerentur, non demundo electi essent, quoniam demundo iam non essent, si iam iustiessent. deinde si propterea suntelecti, quia iam iusti erant; ipsipriores iam dominum elegerant.quis enim potest esse iustus, nisieligendo iustitiam? finis autemlegis Christus, ad iustitiam omnicredenti. qui factus est nobissapientia a deo et iustitia etsanctificatio et redemptio, ut,quemadmodum scriptum est, quigloriatur in domino glorietur. ipseest ergo nostra iustitia.

E, por isso, ainda quando ajuda ojusto, e parece que é devida a seusméritos, nem assim deixa de sergraça, porque ajuda aquilo quea mesma deu generosamente.Portanto, por causa desta graça,que precede todos os bons méritoshumanos, Cristo não só foi mortopor ímpios, mas também, naverdade, morreu pelos ímpios48.E, antes de morrer, elegeu nãopropriamente justos, mas osapóstolos que deviam ser justi-ficados aos quais afirmou: Euvos escolhi do mundo49. Comefeito, àqueles a quem disse: Nãosois do mundo, e, para que nãopensassem que nunca tinham sidodo mundo, logo acrescentou: maseu vos escolhi do mundo, semdúvida, foi-lhes dado que nãofossem do mundo pela eleição queEle próprio fez deles. Pelo que, sefossem escolhidos por sua justiça enão pela graça, não seriam escolhi-dos do mundo: porque do mundojá não mais seriam se já fossemjustos. Além disso, se por estacausa foram escolhidos, porquejá eram justos, os mesmos an-teriormente tinham escolhido oSenhor. Quem, de fato, pode serjusto a não ser que escolha ajustiça? Mas o fim da Lei é Cristo,para a justiça de todo aquele quecrê50. O qual, da parte de Deus foi

48 Cf. Rm 5, 6.49 Jo 15, 19.50 Rm 10, 4.

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XXI. 18. Unde et antiqui iusti anteincarnationem Verbi in hac fideChristi et in hac uera iustitia, quodest nobis Christus, iustificati sunt.hoc credentes futurum quod noscredimus factum: et ipsi gratiasalui facti per fidem non ex semetipsis, sed dei dono, non exoperibus, ne forte extollerentur.bona quippe opera eorum nonpraeuenerunt dei misericordiam,sed subsecuta sunt. ipsi quippeaudierunt, ipsi scripserunt longeantequam Christus uenisset incarne: miserebor, cui misertus ero,et misericordiam praestabo, cuimisericors fuero. ex quibus deiuerbis tanto post apostolus Paulusdiceret: igitur non uolentis nequecurrentis, sed miserentis est dei.ipsorum etiam uox est longeantequam Christus uenisset incarne: deus meus, misericordiaeius praeueniet me. quomodoautem possent alieni esse a fideChristi, quorum caritate etiamnobis praenuntiatus est Christus,sine cuius fide quisquammortalium nec fuit nec est nec esse

feito para nós sabedoria e justiça, esantificação e redenção: para que,como está escrito, quem se gloria,glorie-se no Senhor51. Portanto,Ele mesmo é a nossa justiça.

XXI. 18. Eis porque, antes daencarnação do Verbo os antigosjustos foram justificados nestaverdadeira justiça que para nós éCristo; [eles] acreditavam [como]futuro isto que nós cremos feito: eos mesmos foram feitos salvos pelagraça da fé, não a partir de simesmos, mas por dom de Deus;não a partir das obras, para quenão se orgulhassem52. Com efeito,suas boas obras não antecederam àmisericórdia de Deus, mas foram-lhe subsequentes. Porquanto osmesmos ouviram, os mesmos es-creveram muito antes que Cristoviesse na carne: Tenho misericór-dia a quem terei misericórdia eterei misericórdia a quem terei sidomisericordioso53. Destas palavrasde Deus, diria tanto [tempo] depoiso apóstolo Paulo: Portanto, [aescolha] não depende daqueleque quer nem daquele que corre,mas da misericórdia de Deus54.Também a voz dos mesmos seencontra antes que Cristo viesse nacarne: Deusmeu, tua misericórdiahá de anteceder-me55. No entanto,

51 1Cor 1, 30-31 (e também Jr 9, 23)52 Cf. Ef 2, 8-9.53 Ex. 33, 19 ; Rm 9, 15.54 Rm 9, 16.55 Sl 58, 11.

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aliquando poterit iustus? si ergoiam iusti a Christo eligerenturapostoli, prius illum ipsi elegissent,ut iusti eligi possent, quia sine illoiusti esse non possent. sed non itafactum est; ipse quippe illis ait:non uos me elegistis, sed ego uoselegi. unde dicit apostolus Iohannes:non quod dilexerimus deum, sedquia ipse prior dilexit nos.

XXII.19. Quod cum ita sit, quidest homo utens in hac uita propriauoluntate, antequam eligat etdiligat deum, nisi iniustus etimpius? quid est, inquam, homoaberrans a creatore creatura, nisicreator eius memor sit eius eteligat eum gratis et diligat gratis?quia ipse non potest eligereuel diligere, nisi prius electusdilectusque curetur, qui caecitateeligenda non cernit et languorediligenda fastidit. sed forte quisdicat: quomodo deus prius eligit etdiligit iniquos, ut iustificet eos,cum scriptum sit: odisti, domine,

de que forma poderiam ser alheiosà fé em Cristo aqueles por cujacaridade Cristo foi predito tambéma nós, sem a fé no qual mortalalgum foi, nem há, nem haveráalguma vez que possa ser justo?Se, portanto, Cristo escolheu osapóstolos justos, os mesmos jáanteriormente o teriam escolhidopara que pudessem ser eleitoscomo justos; porque, sem ele, elesnão poderiam ser justos. Mas, nãofoi feito assim: porquanto elemesmo falou a eles, Não meescolhestes, mas fui eu que vosescolhi56. Eis porque disse oapóstolo João, Não é que nóstenhamos amado a Deus, mas queele nos amou primeiro57.

XXII.19. Sendo assim, o que é ohomem que usa a própria vontadesenão um injusto e um ímpio nestavida antes que escolha e ame aDeus? O que é, digo, esse homem,criatura desviada de seu Criador, anão ser que o seu Criador selembre dela58 e gratuitamente aescolha e a ame gratuitamente?Porque o mesmo [homem] nãopode escolher ou amar a não serque anteriormente tenha sidoescolhido e amado para ser curado,porque por sua cegueira ele nãodiscerne as coisas que deve es-colher e [por sua] indolência tem

56 Cf. Jo 15, 19.57 1Jo 4, 10.58 Cf. Sl 8, 5.

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omnes, qui operantur iniquitatem?quomodo putamus nisi miro etineffabili modo? et tamen etiamnon possumus cogitare, quodmedicus bonus aegrotum et odit etdiligit? odit enim, quia aegrotat,qui diligit, ut aegritudinem pellat.

XXIII.20. Haec propter caritatemdicta sint, sine qua in nobis nonpotest esse uera patientia, quoniamin bonis caritas dei est, quae toleratomnia, sicut in malis mundicupiditas. sed haec caritas perspiritum sanctum est in nobis, quidatus est nobis. unde a quo nobisest caritas, ab illo est patientia.mundi autem cupiditas, quandopatienter sustinet onera cuiuslibetcalamitatis, gloriatur de uiribuspropriae uoluntatis, tamquam destupore morbi, non de roboresanitatis. insana est ista gloriatio;non est patientiae, sed dementiae.Uoluntas ista tanto uideturpatientior acerborum malorum,quanto est auidior temporaliumbonorum, quia inanior aeternorum.

repugnância pelas coisas quedevem ser amadas. Mas, talvezalguém diga: De que modo Deusanteriormente escolhe e ama osiníquos para justificá-los, quandoestá escrito: Odiais, ó Senhor,a todos os que praticam ainiqüidade59? Como julgamos[esta afirmação] a não ser de umamaneira admirável e inefável? E,todavia, também podemos pensarque o bom médico odeia e ama odoente: de fato, odeia-o porque édoente, ama-o para lhe expulsar adoença.

XXIII.20. Sejam ditas estas coisaspor causa da caridade, sem a qualem nós não pode haver a ver-dadeira paciência: porque nosbons está a caridade de Deus quesuporta todas as coisas, assimcomo nos maus está a cupidez domundo. Mas esta caridade está emnós pelo Espírito Santo, o qual nosfoi dado60. Aquele do qual nos vema caridade, do mesmo [nos vem]a paciência. No entanto, a cupi-dez do mundo quando suportapacientemente os ônus de quais-quer calamidades, se gloria dasforças de sua própria vontadetanto como [se gloria] da insen-sibilidade da doença e não dovigor da saúde. Este gloriar-se édoentio, não é da paciência, masda demência. Esta vontade parece

59 Sl 5, 6.60 Cf. Rm 5, 5.

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XXIIII.21. Quodsi eam exagitatet inflammat fallacibus uisiset suasionibus inmundus etdiabolicus spiritus et malignaconspiratione sociatus efficithominis uoluntatem uel erroredementem uel adpetitu cuiuslibetmundanae delectationis ardentemquaecumque uidentur intolerabiliamirabiliter sustinere, non tamenideo etiam uoluntas mala sineinstigatione alterius inmundispiritus sicut uoluntas bona sineadiutorio sancti spiritus non potestesse. nam esse posse uoluntatemmalam etiam sine aliquo spirituuel seducente uel incitante inipso diabolo satis ostenditur,qui per nullum alium diabolumpropria uoluntate factus diabolusinuenitur. uoluntas itaque mala siuecupiditate rapiatur siue timorereuocetur siue laetitia diffundatursiue tristitia contrahatur atquein his omnibus perturbationibusanimi quaecumque sunt aliis uelalio tempore grauiora contemnatet perferat, potest et sinealterius spiritus instinctu seipsa seducere et defectu asuperioribus in inferiora lapsando,quanto iucundius aestimauerit, quodadipisci adpetit, uel amittere metuituel adeptum gaudet uel amissumdolet, tanto tolerabilius pro eo ferre

tanto mais paciente em suportar osmales acerbos, quanto é mais ávidade bens temporais, porque é maisvazia dos [bens] eternos.

XXIIII.21. Mas, se o espíritodiabólico e imundo incita e inflamacom visões e conselhos falsos, e,associado a uma conspiraçãomaligna, faz com que a vontade dohomem, ou louca pelo erro, ouardente pelo desejo de qualquerdeleitação [e] mundana, suporteadmiravelmente todas as coisasque parecem intoleráveis, não podeentretanto daí concluir-se que,assim como a boa vontade nãopode existir sem o auxílio doEspírito Santo, assim também a mávontade não poderia existir sem ainstigação de um outro: do espíritomaligno. Pois, que se pode daruma má vontade mesmo que nãohaja um espírito sedutor ouincitante, demonstra-se no própriodiabo, satisfatoriamente, porque odiabo tornou-se diabo por suaprópria vontade e não pela de umoutro diabo. Assim, por exemplo, amá vontade quer seja arrebatadapela cupidez, quer seja desviadapelo temor, quer seja esparsapela alegria, quer seja reprimidapela tristeza e em todas essasperturbações da alma [a mávontade] despreze e suporte todasaquelas coisas que são mais gravespara outros e em outros momentospode a si mesma desviar sem ainstigação de outro espírito, caindo

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quod sibi minus est ad patiendumquam illud ad fruendum. quidquidenim illud est, ex creatura est,cuius nota uoluntas est. quodammodo enim familiari contactuatque connexu ad experiendameius suauitatem adiacet amanticreaturae amata creatura.

XXV.22. Voluptas autem creatoris,de qua scriptum est: et torrenteuoluptatis tuae potabis eos,longe alterius generis est; nequeenim, sicut nos, creatura est.nisi ergo amor eius detur indenobis, non est, unde esse possit innobis. ac per hoc uoluntas bona,qua diligitur deus, in homine nonpotest esse, nisi in quo deusoperatur et uelle. haec igituruoluntas bona, id est, uoluntasdeo fideliter subdita, uoluntassanctitate superni ardoris accensa,uoluntas, quae diligit deum etproximum propter deum, siueamore, de quo respondet apostolusPetrus: domine, tu scis quia amo

nas coisas inferiores por falta dascoisas superiores e, quanto maisalegremente estima aquilo quepretende alcançar, ou que temeperder, ou do que goza uma vezadquirido ou que lamenta terperdido, tanto mais toleravelmente[pode] suportar isso que é menospara ser suportado do que aquilopara ser fruído. Com efeito, o quequer que aquelas coisas sejam,provêm da criatura, cuja vontadeé-nos conhecida. Pois, de um certomodo, a criatura amada aproxima-se da criatura amante por umcontato e uma conexão íntima paraexperimentar a suavidade daquela.

XXV.22. Contudo, a volúpia doCriador, da qual está escrito: E nastorrentes de tuas volúpias lhes daisde beber61, é de um gênero muitodiferente; porque nem sequer écriatura como nós. Portanto, a nãoser que o amor d’Ele seja daí dadoa nós, não há de onde possa existirem nós a não ser naquele emque Deus opera até o querer62.Portanto, esta é a boa vontade, istoé, a vontade submissa e fiel aDeus, a vontade acesa no supernoardor da santidade, a vontade queama a Deus e o próximo por causade Deus; seja por causa do amor,do qual responde o apóstolo Pedro:Senhor, tu sabes que eu te amo63;

61 Sl 35, 9.62 Cf. Fl 2, 13.63 Jo 21, 15.

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seja por causa do temor sobre oqual disse o apóstolo Paulo: Emtemor e tremor trabalhai na vossaprópria salvação64; seja por causada alegria, sobre a qual disse:Alegres na esperança, pacientesna tribulação65; seja na tristeza, daqual diz que grandemente a tevepor seus irmãos66: quaisquer coisasdesagradáveis e ásperas quesofras, é a caridade de Deus, a qualtudo tolera67 e a qual não sedifunde em nosso coração, a nãoser pelo Espírito Santo que nosfoi dado68.

XXVI. Donde, não havendoqualquer piedade que duvide,assim como é um dom de Deusa caridade daqueles que amamsantamente, assim também o é apaciência dos que piedosamentesuportam. E nem pode enganar-seou nos enganar a Divina Escritura,a qual não só nos antigos livrospossui o testemunho destas coisasquando diz a Deus: Tu és a minhapaciência69, e: Do mesmo procedea minha paciência70; e onde outroprofeta diz que recebemos oEspírito de fortaleza; na verdade,mas também nas Cartas apostólicaspode-se ler: Porque a vós foi dado

te, siue timore, de quo dicitapostolus Paulus: in timoreet tremore uestram ipsorumsalutem operamini, siue gaudio,de quo dicit: spe gaudentes, intribulatione patientes, siue tristitia,qualem se dicit magnam habuissepro fratribus suis, quaecumqueamara et aspera sufferat, caritas deiest, quae omnia tolerat, quae nondiffunditur in cordibus nostris, nisiper spiritum sanctum, qui datus estnobis.

XXVI. Unde nequaquam dubitantepietate sicut caritas sancteamantium, ita patientia pietolerantium dei donum est. nequeenim scriptura diuina fallit autfallitur, quae non solum inueteribus libris habet huius reitestimonia, cum deo dicitur:patientia mea tu es, et: ab ipso estpatientia mea, et ubi alius prophetadicit accipere nos spiritumfortitudinis, uerum etiam inapostolicis litteris legitur: quiauobis donatum est pro Christo nonsolum ut credatis in eum, sed utetiam patiamini pro eo. non ergoquasi de proprio faciat animum

64 Fl 2, 12.65 Rm 12, 12.66 Cf. Rm 9, 2.67 Cf. 1Cor 13, 7.68 Cf. Rm 5, 5.69 Sl 70, 5.70 Sl 61, 6.

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por Cristo não somente para crernele, mas assim como tambémsofrer por causa dele71. Portanto,não considere o ânimo comoexaltado como se fosse de si aquiloque ouviu ser doado.

23. Se, portanto, alguém que nãotem a caridade, a qual pertence àunidade do espírito e ao vínculo dapaz, pelo qual é congregada ereunida a Igreja Católica, [e,]estabelecido em algum cisma, paranão negar a Cristo sofre tribula-ções, angústias, fome, perseguição,perigos, prisões, cadeias, tor-mentos, a espada, o fogo ou asferas, ou a própria cruz pelo temordos tormentos da geena e do fogoeterno, de modo algum estas coisasdevem ser culpadas, muito pelocontrário, na verdade esta pa-ciência é [digna] de ser louvada.Com efeito, nós não podemosdizer que seria melhor a ele negara Cristo para que não sofressenenhuma dessas coisas, as quaissofreu confessando-o, mas deveconsiderar-se que talvez o juízofuturo lhe seja mais suportável doque se negando a Cristo evitassetodas aquelas coisas: de talmaneira que aquilo que disse oApóstolo: Se entrego o meu corpopara que arda [nas chamas], masnão tenho a caridade, de nada seme aproveita72, deve-se entender

elatum quod sibi audit essedonatum.

23. Si quis autem non habenscaritatem, quae pertinet adunitatem spiritus et uinculumpacis, quo catholica ecclesiacongregata connectitur, in aliquoschismate constitutus, ne Christumneget, patitur tribulationes,angustias, famem, nuditatem,persecutionem, pericula, carceres,uincula, tormenta, gladium uelflammas uel bestias uel ipsamcrucem timore gehennarum et ignisaeterni, nullo modo ista culpandasunt, immo uero et hic laudandapatientia est. non enim dicerepoterimus melius ei fuisse, utChristum negando nihil eorumpateretur, quae passus estconfitendo, sed existimandum estfortasse tolerabilius ei futurumiudicium, quam si Christumnegando cuncta illa uitaret, utillud, quod ait apostolus: sitradidero corpus meum ut ardeam,caritatem autem non habeam, nihilmihi prodest, nihil [mihi] prodesseintellegatur ad regnum caelorumobtinendum, non ad extremiiudicii tolerabilius suppliciumsubeundum.

71 Fl 1, 29.72 1Cor 13, 3.

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que [é proveitoso] para obter oreino dos céus [mas não deveinterpretar-se como dizendo quenão me] aproveita nada parasuportar mais toleravelmente apena do juízo final.

XXVII.24. Mas, com razão pode-se perguntar se por acaso é estapaciência um dom de Deus ou sese deve atribui-la às forças davontade humana, pela qual cadaum que [está] separado da Igrejasuporta as penas temporais notemor das penas eternas, não porcausa dos erros que o apartaram[da Igreja], mas pela verdade dosacramento ou da palavra quepermaneceu junto dele. Com efeito,deve-se acautelar que, se por acaso,dissermos que esta paciência édom de Deus, nem por isso estesque a possuem acreditem quepertencem ao Reino de Deus: se,contudo negarmos que ela seja umdom de Deus, sejamos levados aconfessar que possa haver algo debom na vontade do homem sem oauxílio e o dom de Deus. De fato,não deixa de ser bom que ohomem creia que se negar a Cristoserá punido com o suplício eternoe que, por causa desta fé suporte edespreze todo e qualquer suplíciohumano.

25. Por conseguinte, assim comonão se deve negar que isto é umdom de Deus, do mesmo mododeve-se entender que são muitosos outros dons de Deus aos filhos

XXVII.24. Sed merito quaeripotest, utrum et ista patientiadonum dei sit, an uiribus tribuendasit uoluntatis humanae, quaquisque ab ecclesia separatus nonpro errore, qui eum separauit, sedpro ueritate sacramenti seu uerbi,quae apud eum remansit, timorepoenarum aeternarum poenaspatitur temporales. cauendum estenim, ne forte, si dei donum istampatientiam dixerimus, hi quibusinest, etiam ad regnum deipertinere credantur; si autem illamdonum dei esse negauerimus,cogamur fateri sine adiutorio etmunere dei in uoluntate hominisesse posse aliquid boni. nequeenim hoc non est bonum, ut credathomo aeterno supplicio se essepuniendum, si negauerit Christumet pro ista fide qualecumquesupplicium perferat et contemnathumanum.

25. Proinde sicut negandum nonest etiam hoc esse donum dei, itaintellegendum est alia esse dei donafiliorum illius Hierusalem, quaesursum libera est mater nostra.

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daquela Jerusalém, a qual [lá] noalto é livre [e] é nossa mãe73.

XXVIII. Com efeito, estes [dons]são de certo modo hereditários, nosquais somos herdeiros de Deus,co-herdeiros, pois de Cristo74;outros [dons], na verdade [são os]que podem receber também osfilhos das concubinas, aos quais osjudeus carnais e os cismáticos ouhereges podem ser comparados.Ainda que, portanto, foi escrito:Expulsa a escrava e seu filho paraque não seja o filho da escravaherdeiro com o meu filho Isaac75

e a Abraão disse Deus: EmIsaac será chamada a tuadescendência76, o que, de acordocom o Apóstolo, deve ser inter-pretado como se dissesse: Istoé, não são os filhos da carneaqueles que são filhos de Deus,mas os filhos da promessa éque serão considerados nadescendência77, para que enten-dêssemos que a descendênciade Abraão segundo Isaac pertenceaos filhos de Deus por causa deCristo, os quais são o corpo e osmembros de Cristo, isto é, daIgreja de Deus, una, autêntica,católica, possuidora de uma fépiedosa, não a que age peloorgulho ou temor, mas aquela que

XXVIII. Haec sunt enim quodammodo hereditaria, in quibussumus haeredes dei, coheredesautem Christi; alia uero, quaepossunt accipere etiam filiiconcubinarum, quibus iudaeicarnales et schismatici uelhaeretici conparantur. quamuisenim scriptum est: eice ancillam etfilium eius; neque enim heres eritfilius ancillae cum filio meo Isaac,et Abrahae dixit deus: in Isaacuocabitur tibi semen, quod sicest apostolus interpretatus, utdiceret: id est non qui filiicarnis, hi filii dei, sed filiipromissionis deputantur in semine,ut intellegeremus semen Abrahaesecundum Isaac propter Christumad dei filios pertinere, qui suntcorpus Christi et membra, id est,ecclesia dei una, uera, germana,catholica, tenens piam fidem,non eam, quae per elationem ueltimorem, sed eam, quae perdilectionem operatur: tamen etiamfilios concubinarum quando afilio suo Isaac dimisit Abraham,nonnulla eis largitus est munera, nerelinquerentur omni modo inanes,non ut tenerentur heredes. sic enimlegimus: dedit autem Abraham

73 Cf. Gal 4, 26.74 Rm 8, 17.75 Gn 21, 10 e Gl 4, 30.76 Gn 21, 12 e Rm 9, 7.77 Rm 9, 8.

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age pelo amor78: e, contudo,também quando Abraão separou aseu filho Isaac dos filhos dasconcubinas, distribuiu a elesalguns bens para não abandoná-losde todo modo vazios, não paratê-los como herdeiros. Comoefeito, assim lemos: Abraão deu aseu filho Isaac todos os seus bense aos filhos de suas concubinasAbraão deu-lhes presentes e osseparou de seu filho Isaac79. Se,portanto, somos filhos da livreJerusalém, compreendemos que osdons dos deserdados são diferentesdos dons dos herdeiros. Porque édaqueles que são herdeiros que sedisse: Pois, não haveis recebidoum espírito de servidão [paraviver] novamente no temor, masrecebestes o espírito de adoçãode filhos, no qual clamamos: Aba,ó Pai80.

XXVIIII.26. Clamemos, pois, noespírito da caridade e, até quecheguemos à herança na qualpermaneceremos para sempre,sejamos pacientes com um liberalamor e não com um temor servil.Clamemos enquanto somos pobresaté que sejamos enriquecidos comaquela herança. Porquanto, a maiorgarantia que recebemos disso éque, para nos enriquecer, Cristo sefez pobre, pelo qual, uma vez

omnem censum suum Isaac filiosuo: et filiis concubinarum suarumdedit Abraham munera et dimisiteos ab Isaac filio suo. si ergofilii sumus liberae Hierusalem,alia dona exheredatorum, aliaintellegamus haeredum. hi enimheredes sunt, quibus dicitur: nonenim accepistis spiritum seruitutisiterum in timorem, sed accepistisspiritum adoptionis filiorum, inquo clamamus: Abba, Pater.

XXVIIII.26. Clamemus ergospiritu caritatis et, donec ueniamusad hereditatem, in qua sempermaneamus, liberali amore simus,non seruili timore patientes;clamemus, quamdiu pauperessumus, donec illa hereditateditemur. magna quippe indepignora accepimus, quod adnos ditandos pauper factus estChristus, quo in supernas diuitiasexaltato missus est, qui sancta

78 Gl 5, 6.79 Gn 25, 5-6.80 Rm 8, 15 (e também Gl 4, 6.)

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exaltado às mais altas riquezas,nos foi enviado aquele EspíritoSanto que nos inspirasse emnossos corações os santos de-sejos. Daqueles pobres que atéagora crêem [mas] ainda nãocontemplam, que até agora es-peram [mas] ainda não possuem,[que] até agora suspiram de de-sejo [mas] ainda não reinam nafelicidade, [que] tem fome e sede,[mas] ainda não estão saciados:daqueles [pobres], pois, A pa-ciência não perecerá eterna-mente81: não, porque haverá pa-ciência lá onde não haverá o quesuportar, mas o “não perecerá” édito porque [ela] não será estéril.Pois terá o fruto eterno, portantonão perecerá eternamente. Todoaquele que trabalha em vão,quando a sua esperança o enganarpor causa da qual trabalhava dizcom razão: “Perdi tanto trabalho”.Quem quer que seja que chega aalcançar o prometido por seutrabalho, alegrando-se, diz: “Nãoperdi o meu trabalho”. Se diz, pois,que o trabalho não se perdeu nãoporque permanece para sempre,mas porque não foi desenvolvidoem vão. Assim, a paciência dospobres de Cristo, mas herdeirosde Cristo que devem [vir a] serenriquecidos, não perecerá eter-namente: não porque lá se nosordenará suportar pacientemente,

81 Sl 9, 19.

desideria nostris cordibusinspiraret spiritus sanctus. horumpauperum adhuc credentium,nondum contemplantium, adhucsperantium, nondum tenentium,adhuc desiderio suspirantium,nondum felicitate regnantium,adhuc esurientium et sitientium,nondum satiatorum: horum ergopauperum patientia non peribit inaeternum, non quia et illicpatientia erit, ubi quod tolereturnon erit, sed “non peribit” dictumest, quia infructuosa non erit.fructum autem habebit aeternum,ideo non peribit in aeternum.quisquis enim laborat inaniter, cumeum spes fefellerit, propter quamlaborabat, merito dicit: perdiditantum laborem; quisquis uero adsui laboris promissa peruenerit,gratulans dicit: non perdidilaborem meum. dicitur ergo labornon perisse, non quia manetperpetuus, sed quia non est inaniterfusus. sic et patientia pauperumChristi, sed ditandorum heredumChristi non peribit in aeternum,non quia et illic patienter ferreiubebimur, sed quia pro iis quaehic patienter pertulimus, aeternabeatitudine perfruemur. nondabit finem sempiternae felicitati,qui donat temporalem patientiamuoluntati, quia utrumque munusdonatae donatum est caritati.amen.

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mas porque em face daquelascoisas que pacientemente sofremosgozaremos da eterna felicidade.Não dará fim à sempiterna fe-licidade aquele que concede apaciência temporal para a vontade,porque estes dois dons sãoconcedidos à doada caridade.Amém.