rodrigo silva - o pensamento da deslocalização

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  • 7/27/2019 Rodrigo Silva - O pensamento da deslocalizao

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    124 AULAS ABERTAS

    O PENSAMENTO DA DESLOCALIZAORodrigo Silva

    O lugar apenas um movimento extremamente lento

    Yves Bonnefoy

    O APELO DO LUGAR:

    COMUNITARISMOS E IDENTITARISMOS

    Nos tempos mais recentes frequente escutarmos uma recorrente apologia dolocal e da especicidade do lugar, que parece gozar de um novo prestgio e servir

    um qualquer desgnio estratgico da poca. O fundo desses discursos mais ou

    menos esclarecidos uma certa reaco globalizao ou, pelo menos, ao que

    da globalizao implica uma outra relao com a espacializao do mundo, com

    o modo de o habitar e percorrer, com o modo de pr em relao aquilo que nele

    antes cava distante ou separado. Quando pensamos nos processos da tcnica

    que intensicaram a recongurao da superfcie do mundo nas ltimas dcadas,

    no poderemos no pensar no modo como a informao e a telecomunicao,

    acopladas densicao da concentrao urbana, produziram um enredamento

    do prximo e do distante, a ponto de hoje o modo de relao com o prximoe com o distante ter perdido a distino clara que regia os nossos protocolos

    de relao com um e com o outro. Uma parte considervel do horizonte de

    acontecimentos e do tecido relacional, que constituem a experincia quotidiana

    na actualidade, formada pela inevitabilidade do confronto com o longnquo,

    o distante, o desconhecido, o ausente: basta encontrarmos um ecr e logo se d

    um encontro com uma estranha forma de presena com a qual o prximo (no

    sentido aqui estritamente fsico) se volatilizou e foi eclipsado por um transporte

    imersivo para um outro espao no qual entramos (quase) involuntariamente.

    Hoje, na maioria dos lugares onde nos deslocamos, para conduzirmos tarefas

    e afazeres da nossa subsistncia, o longnquo abeira-se de ns e convida-nosao teletransporte nem que seja no banalssimo no-lugar de uma conversa

    telefnica.

    O apelo do local nunca nos ter verdadeiramente abandonado. A substncia

    dos corpos colectivos e das comunidades sempre se ter feito em osmose com

    as declinaes da pertena e do enraizamento: a cada uma dessas identidades,

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    entrelaadas no ccional e no histrico, correspondia a identicao com um

    territrio e com um espao vital, cujo inuxo e prodigalidade alimentavam a

    subsistncia da autoctonia e a substncia das guras do destino. O pathos do

    nosso, do ns, enunciado enfaticamente, surge sempre que algo pe a nu

    a impropriedade nativa do humano, e ressoa como o imperativo solene da

    apropriao do prprio, propriedade dos sujeitos identicados e determinados.

    Defender um corpo colectivo nas guras que ele pode assumir, era (ser ainda)

    defender uma soberania que possui um campo de expresso sob o qual um

    suposto direito natural, cuja premissa obscura, comanda a tomada de posse doterritrio. Essa intimao da soberania parece estar em decomposio e o recurso

    a ela tanto mais sintomtico quanto indefectvel a dissoluo em curso das

    lgicas da identidade, transidas pelas recomposies incessantes da identidade

    que as trocas e uxos globalizados fornecem. A autonomia fantasmtica do

    estado-nao ainda continua a repartir os territrios com fronteiras que

    distinguem soberanias e traam linhas de partilha, mas a operacionalidade dos

    uxos econmicos e da circulao de pessoas e informao parece tornar as

    fronteiras irreversivelmente permeveis, apenas supondo a regulao de uns

    quantos protocolos de passagem e de trnsito.

    A defesa da especicidade do local parece ter migrado para a rbita dos cul-

    turalismos: defesa das regies e resistncia dos provincianismos, ghetizaes

    foradas ou novos apartheids, novos ou velhos genius loci, comunitarismos

    e velhas disputas identitrias so tratados como casos exticos que relevam

    dos particularismos culturais, zonas em sofrimento ou connamentos ditados

    pelo campo de despojos dos ideologemas que sobreviveram modernizao

    (nos casos mais abismados pela resilincia dos passados, doravante museo-

    logizados e patrimonializados), ou que foram por ela gerados (nos casos em

    que so triturados pela acelerao do presente para o futuro imediato, pelo

    efeito entrpico do movimento da integrao das sociedades nas lgicas deinterdependncia da globalizao econmica e nanceira). A maior parte dos

    territrios so cada vez mais uma superfcie de trnsitos, deseja s-lo (para

    no car arredada dos protagonismos que ainda parecem possveis) e se

    possvel com os desenvolvimentos que os acompanham: no o ser parece

    signicar car fora do comboio acelerado do progresso e da modernizao

    tecnolgica. As ilhas de no-integrados, de no-alinhados, no sero apenas

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    1 Sobre este assunto odas capitalizaes doressentimento e dascolectas de clera Peter Sloterdijk publicourecentemente umaanlise, muito perspicaz(discutvel, apesar dasedutora taumaturgiadas suas anlises), ondesugere que a nossapoca padece de uma

    perigosa escassez decolectores timticos,que canalizam a clera ea indignao para formasde aco sublimadoras,iluminadas por umprograma emancipador.Ao invs (que elereconhece nos fenmenosdo terrorismo commotivaes religiosas) arevivescncia malogradado localismo como obrade morte, e no comoreencantamento daaco local, que inflecte

    e polariza os fluxos doexterior, transformando--se. Cf. SLOTERDIJK , P.(2007) Colre et temps.Trad. Olivier Manoni.Paris: Maren Sell.

    um acorde dissonante ou uma sublevao solitria, uma

    sobrevivncia do romantismo revolucionrio da resistncia

    ou da escatologia messinica. A maioria das vezes,

    quando aparecem na sua caricatura meditica, parecem

    ditadas por atavismos e denegaes que facilmente se

    mostram como capitalizaes do ressentimento,1 instru-

    mentalizadas por sentimentos de fanatismo tribal, feroz-

    mente antipolticos, e campo frtil para os populismos que

    proliferam bem no entertainmentmeditico. Ou ento, sefor menos inclinado para a aco e para a eloquncia, como

    um estorvo embaraante, que insiste em manter uma

    quimrica pureza sonhada que, longe de ser uma dissidncia

    indmita, frequentemente apenas uma misticao

    heroicizada que esconde misria mal dissimulada sob a

    capa de exotismos tursticos. Nas cidades perifricas, ou

    nas zonas deprimidas, ningum parece querer recusar as

    operaes imobilirias ou as reconverses urbanas: o que

    vier no ser provavelmente pior do que a deteriorao que

    muitas vezes parece ter-se instalado para car, e pode adiaro espectro da falta, crnica e galopante, de empregos para

    os menos qualicados (e at para os mais qualicados,

    que no tero sido dotados com as qualidades performativas

    que a sociedade hiper-industrial exige). A vinda dos postos

    de distribuio das multinacionais e lifestyle do franchising

    sempre parece expandir, nem que seja temporariamente, o

    campo das opes de consumo que mobilam os interiores,

    como remendos para a desolao interior que corri a vida

    pobre dos subrbios e o desespero pardo dos condomnios

    fechados hoje, na cintura dos grandes centros, aglomeram--se as paisagens que fazem lembrar as estncias balneares

    fora de poca (que do poticas paisagens da desolao e do

    abandono no cinema, mas in loco so a imagem da tristeza

    e da agonia da atomizao dos colectivos).

    O apelo do local pode assim apresentar-se no mercado

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    das emoes psicopolticas como um retorno a uma autenticidade perdida, ou

    a restaurao de uma vida em contacto com os laos humanos mais quentes

    como uma compensao para os danos colaterais do capitalismo avanado

    ou como uma restaurao de um idlio ancestral, em que o manto de silncio

    sobre as antigas submisses ainda se mostrava benvolo. Um refgio ou um

    abrigo que nos ponha a salvo das intempries dos stresses globalizados, que

    fazem o pasto do sensacionalismo que se faz passar por informao e que

    eclipsa as narrativas da aio que ainda conseguem emergir por entre a

    aviltante formatao meditica do reconhecimento do mundo. O refgio sers aparente, mas em tempo de baixas expectativas, o refgio mesmo enquanto

    miragem aprazvel. No demorar muito a que aos refgios acontea a

    absoro no sistema do entrpico da uniformizao quanto mais no seja

    porque, se o refgio for mesmo um refgio, rapidamente ser dado a conhecer

    num golpe de marketinge muitos acorrero inviabilizando a sua conservao ou

    desmobilizando os motivados iniciais. Hoje, o refgio s conhecer a forma

    do eremitrio ou do segredo dos iniciados e, mesmo esses casos, s parecem

    sobreviver porque as condies de vida sero demasiado ridas para os rfos do

    conforto que no esto habituados s provas duras da vida simples (ou porque

    nunca as conheceram, no caso das geraes que j nasceram em plena sociedadeda abundncia e do consumo, ou porque j as esqueceram, no caso das geraes

    mais velhas que se tornaram demasiado medrosas ou embriagadas com os

    privilgios que querem a todo o custo conservar). Criar lugar para criar laos

    parece um slogan adaptado a um lar de terceira idade, ou ao parque temtico dos

    neo-ruralismos, que ameaam tornar-se um dos principais arqutipos do habitar

    ocidental (em parte por boas razes o aumento exponencial da esperana de

    vida para a generalidade das populaes; em parte por ms razes a usura

    imensa dos corpos que agonizam numa sade exausta nos ltimos anos de vida

    depois de uma vida de excessos; a quebra imensa do desejo de futuro nas novas

    geraes que parecem ter comeado a deectir a reproduo da espcie). A surdalamentao do lugar uma nostalgia do nicho ecolgico imunizado contra a

    presso do exterior e contra as invases de agentes estranhos, uma litania da

    paixo local que quer protestar contra a deslocalizao generalizada, contra

    os imperativos de exibilidade e de adaptao que cercam os perplexos com as

    devastaes do mundo tcnico.

    RODRIGO SILVA

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    Mas o que signica pensar localmente? O que que se defende quando se

    defende o lugar, o stio? O que a defendido e o que que a rejeitado?

    O LOCAL FACE AO COMUM:

    O DILEMA DO COSMOPOLITISMO

    A questo do local no ser apenas uma questo de escala. No basta que uma

    delimitao abarcvel surja para que a localidade faa obra e para que nela

    um habitar se singularize, para que nela germine uma forma de vida elevada

    ou uma existncia componha um nvel de expresso nico. Identicar lugares

    fcil; faz-los consistir numa vitalidade real mais difcil. Os antigos lugares soestafetas numa transmisso de que eles se fazem o retransmissor, amplicando

    a comunicao do longnquo e do imemorial e dando continuidade aos sinais

    recebidos em telecomunicao pelos que nos precederam. Segundo concep-

    es que herdmos j em runa e em eroso avanada, os lugares esto

    integrados num sistema de solidariedades entre princpios de vitalidade que

    os organizam: uma grande analogia estabelece a hierarquia que ordena os

    lugares e orienta os caminhos, uma organizao terrestre que comunica com

    uma organizao celeste um cosmos enquanto totalidade organizada de

    uma complexidade viva ou melhor, um sistema de correspondncias entre mi-

    crocosmos e macrocosmos. O termo lugar sempre serviu como conuncia dadisperso do mltiplo e como participao das partes numa ordem englobante.

    O termo que hoje ainda xa este desejo de lugar o verbo habitar, elevada

    potncia inefvel da ontologia por Heidegger, cuja stimmung, em verses mais

    tecnlas, sobrevive na teoria arquitectural e entre uma parte (no so todos,

    de facto) dos arquitectos preocupados com a inscrio social do construdo.

    Um sistema csmico de lugares j no parece ser daqui que partimos nem

    parece ser para aqui que iremos. A deslocalizao do mundo mundializado

    organizado de acordo com as coordenadas e abcissas dos uxos econmicos, em

    incessante recomposio pelas deslocaes dos indivduos atravs de territrios

    e fronteiras, pelos movimentos de migraes foradas na sua esmagadora

    maioria (se no fossem foradas, porque abandonariam os seres humanos

    o seu lugar, voluntariamente, pela escolha do nomadismo? Sero poucos os

    que tero as condies para essa escolha). O lugar deixou de poder ser uma

    evidncia partilhada (salvo raras excepes, quando o ter efectivamente sido?)

    para passar a ser uma suspeita partilhada, uma condio deceptiva da qual s

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    resta, na memria, o canto e a litania. A nossa condio a da errncia sob o

    impensvel, segundo a formulao lapidar de Hlderlin. Mas para Hlderlin

    essa no era apenas a condio do homem moderno. Era o fatum mesmo da

    inumanidade humana.

    A ideia de um espao homogneo, universal, em rede, topologizado de acordo

    com uma gesto centralizada, a partir do qual se distribui a circulao

    (aparentemente descentralizada e sem hierarquias, no caso das redes mas s

    aparentemente) uma inveno que os modernos hipostasiaram a partir daisonomia que organizava algumas das cidades antigas, em particular as cidades-

    -estado gregas. Mas no um sistema de lugares propriamente dito: um sistema

    de localizaes e posies, como lembrou Michel Foucault num texto clebre

    sobre os espaos outros. Mas ser que entre estas duas vises polarizadas,

    entre o extremo da concretude e o extremo da abstraco, so pensveis outras

    escalas de reconhecimento do lugar, como que numa gradao que d conta da

    complexidade que escapa a esta dramatizao esquemtica? Ainda saberemos

    onde comea e acaba um lugar? Podemos constituir novos lugares ou outros

    lugares para alm das paletas afectivas que zeram a potica dos lugares ou do

    seu enclausuramento numa patrimonial morte adiada? Pode o lugar assumir acondio de intermdio que o determinava sem ter de ser um ponto de chegada

    ou um terminal? Em que condies que um lugar pode ser um receptculo do

    movimento e no o sarcfago da imobilizao?

    O LOCAL NA ARTE CONTEMPORNEA:

    REDEFINIES DA ACO SITUADA

    Na arte contempornea, a questo do local foi colocada com grande eccia

    formal e ironia desconstrutiva pela arte dos anos 60 e 70, em particular

    pelo minimalismo e pela land art. Na suposta naturalidade da localizao

    tudo foi tocado ou afectado: da simples recepo das obras de arte aosparadoxos perceptivos da relao com a espacialidade que a obra engendra,

    do desmantelamento da solenidade do escultrico pela complexidade ldica do

    instalatrio, da contestao da isomora do cubo branco do espao galerstico

    e museolgico ao renovar do contacto com a materialidade da terra ou com

    as relaes arquitecturais (escala, equilbrio, proporo, etc.), da reapropriao

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    do espao como espao de interveno artstica ao uso da deambulao e da

    deriva como procedimentos criativos, da introduo muito explcita da relao

    entre a experincia temporal e experincia espacial tenso entre a efemeridade

    intencional das intervenes localizadas e durabilidade suposta das propostas

    de arte pblica, etc., etc.. Entre as interseces de Gordon Matta-Clark, as

    paisagens entrpicas de Robert Smithson e a polmica em torno do Tilted Arc,

    de Richard Serra, uma coisa se pode reconhecer: o princpio de localidade, o

    pensar localmente, no uniforme conhecendo uma srie de variaes,

    algumas das quais bastantes contraditrias entre si (a pea de Serra fazia conuiruma srie de questes, pois era uma pea que podia ser discutida em todos estes

    nveis de realidade).

    Esta des-localizao, que nos reabriu uma forma de experimentar os lugares,

    foi largamente retomada (com preocupaes bem distintas, contudo) pela

    generalizao dos usos do site specic, que deu origem a uma srie de usos

    do conceito tendencialmente militantes, com agendas identitrias ou sociais,

    ditadas por contextos micropolticos ou por minorias que clamavam visibilidade

    para a sua subalternizao. O in situ suportou uma srie de proposies que

    diziam respeito ao modo como a arte requer sempre uma alterao na estticatranscendental do sujeito consciente (segundo os termos de Kant para designar

    o espao e o tempo), uma operao de deslocalizao. Nos anos 90, o site

    specic assume uma dimenso marcadamente contextual (segundo o termo,

    vulgarizado por Paul Ardenne, muito abrangente, que acolhe acepes muito

    diversas sem que nenhuma delas praticamente se reclame do termo): as

    prticas artsticas inserem-se intencionalmente no tecido do mundo concreto,

    no quotidiano e na trama de vivncias que constituem uma memria local,

    ou a especicidade idiomtica de um lugar de circulao ou as coeres que

    um lugar de poder exerce. Contexto, segundo a denio de banda larga,

    consigna o conjunto das circunstncias e elementos onde se insere um dadofacto possvel. O gesto do artista consistiria ento em deslocar o sentido das

    circunstncias, desviando ou subvertendo uma reunio de visibilidades (imagens

    mais do que guras ou dolos), ou de palavras (prosaspoetadas disjuntas, mais

    do que discursos e narrativas organizadas) que sobre-determinam esse lugar,

    propondo ou montando, tecendo ou compondo, um acontecimento interpelante

    e irradiante.

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    A sua ostenso pode ser de uma performatividade dissimulada, uma aco

    irnica para dar a ver ou dar a reconhecer uma qualquer lgica ocultada,

    um trabalho com uma memria em sofrimento ou com uma comunidade local,

    uma interveno na memria conservada numa instituio ou nos seus arquivos,

    um levantamento documental ou a reproduo de um conjunto de registos

    intrigantes, consoante o perl autoral que faz parte do brandingcom que esse

    artista se auto-promove (ou tenta apenas manter-se tona de gua que o

    caso maioritrio dos que no esto integrados nos globetrotters transnacionaisque usam, como um deles uma vez confessava alegremente numa entrevista,

    como uma forma inteligente de fazer turismo). O que vale como local,

    contexto, circunstncias pode ser um innito de visibilidades para as

    quais a inteligibilidade que se prope hermeticamente idiossincrtica (quando

    no ostensivamente irreconhecvel) para a maioria dos nativos: umas vezes

    ou porque reelabora discursos politizados que so transferidos e enxertados

    de um contexto para outro (l se vai o contexto) e que fazem parte de uma

    doxa que circula nas revistas da especialidade ou nos ensaios dos crticos de

    arte mais clebres (que so olimpicamente ignorados pelo pblico no iniciado

    aquele justamente a quem se deveriam dirigir as obras, em primeiro lugar) ou,noutras vezes, porque as obras exigem um tempo desproporcionado de ateno

    e quase de estudo para descortinar a sua subtilpoiesis, que em muitos casos

    nma para o tempo exigido. Mas mesmo face a estes casos limite que se

    limitam a tomar em mos as crticas mais prosaicas, as obras mais raras, mais

    singulares ou, simplesmente, as que mais teriam para dar ao pensamento a

    partir da interpelao excntrica da arte ao mundo contemporneo, foram feitas

    a partir de premissas semelhantes. Absolutamente sintomtico desta condio

    de obras, acometidas pela redundncia da sua multiplicao paroxstica,

    a amlgama e o amontoamento destas estratgias nas grandes exposies

    colectivas da ltima dcada (Bienal de Kassel, Bienal de Veneza, etc.). Marcadaspor tentativas de valorizar e tentar detectar motivaes de fundo e tonalidades

    temticas da poca, as estratgias curatoriais dos comissrios destas grandes

    exposies replicam e sucumbem ao identitarismo do local, ou, para invertermos

    a frmula (que resulta, porque justamente esse redobramento de um pelo

    outro que interessa interrogar), ao localismo da identidade. Nas edies que

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    se sucedem, h uma srie de nomes consagrados que se repetem, mas o excesso

    de informao tanto (tanto para intervenes muito prximas do mero registo

    de uma realidade, como para construes integralmente ccionadas), que

    podemos facilmente detectar uma constatao unnime nos relatos dos turistas

    da arte que auem: o local afunda-se na sobredose globalizada do localismo;

    se estamos cansados do globalismo monotemtico dos mass media, quando nos

    apercebemos da imensa diversidade das micro-situaes que povoam o planeta

    camos depostos na indiferenciao da capacidade de conscincia local, isto

    , sem capacidade para abarcar a multiplicidade local da humana condio.Ficamos literalmente deslocalizados de tanto ter de conceder ateno aos

    lugares innitos que exigiram a nossa mais dedicada meditao e o mais

    delicado acolhimento. Noutros termos: o local, quando acede circulao e

    re-transmisso global, torna-se irrecebvel porque inunda-o um reuxo de

    locais que exponenciam o localismo, de tal modo que, paradoxalmente, se di lui

    o local pela sua multiplicao. A pergunta ento poderia ser: quanta dose de

    local podemos ns suportar at sucumbirmos indiferenciao gerada por

    essa multiplicao? Qual o ponto em que o cosmopolitismo (cuja defesa

    cada vez mais essencial) se torna apenas uma sucesso de transbordamentos do

    local por outros locais, em que apenas nos resta uma aglomerao de mltiplos,cuja sntese ou reunio j no enuncivel? Como que se pode ao mesmo

    tempo defender e articular uma quantidade de local com uma qualidade

    de cosmopolitismo, que no nos faa perder nem um nem outro, numa mera

    agregao de localismos? Como que do particular se pode visar um universal,

    um comum, sem que um que refm do outro ou tenha que ser o seu mulo, ou

    o seu bode expiatrio?

    O lugar ou o contexto ele prprio est sempre deslocalizado, transido

    pela exterioridade que o habita intimamente. No s porque no coincidir

    inteiramente com ele prprio ou, pelo menos, com aquilo que zerem oudisserem dele (estando em recorrente inacabamento ou mutao), ou porque a

    matria humana que o constitui est sempre ela prpria a mudar. Ou, ainda,

    porque no h nada no local que no contenha passagens de outras paragens,

    de outras universalidades ou globalidades: a comear pelas caractersticas gerais

    da vida biolgica, ou pelas linguagens largamente traduzveis entre si que deram

    origem a imensas migraes histricas, como facilmente reconhecer quem se

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    aplicar com alguma concentrao no estudo comparado da

    histria das culturas. O local tem sempre j em si o global

    ou, pelo menos, uma certa forma dele (talvez umas vezes a

    que no nos mais grata mas, noutras, o que h de global,

    isto , de potencialmente universal no lugar, que faz a sua

    fora). Nas pginas consagradas Land Arte em particular

    a Robert Smithson, o livro de Paul Ardenne sobre a arte

    contextual emblemtico dessa expanso deslocalizadora

    que abre o local s dimenses que o elevam e excedem e que fazem da fora do local esse excesso deslocalizante

    que nos reenvia para uma transcendncia deslocalizada,

    nmada, ocenica e csmica, perfeita alegoria do

    pathos da imensitude (segundo o conceito de Bachelard) e da

    livre vastido (segundo o conceito de Heidegger) que enleva

    os nossos movimentos vitais. Este gnero de trabalho

    motivado por um sentimento de incumprimento topolgico

    do ser eu no estou no lugar onde deveria estar. Duplicado

    pela propenso a um nomadismo ansioso, procura de

    uma terra prometida (...), o que conta que a obra de artepossa realmente partilhar todos os espaos do vivente e

    ocupar toda a escala do microcosmos ao macrocosmos.2 A

    performatividade csmica do lugar no pouco ambiciosa:

    nada menos que ser uma forma de comunicao entre o Cu

    e a Terra, num dilogo entre o lugar e o cosmos, mas o mais

    espantoso que a arte, ou pelo menos uma certa ideia dela

    no Ocidente moderno e contemporneo, possa assumir a

    demirgica tarefa que destina o trabalho artstico a tratar

    a ressonncia csmica dos lugares. Robert Smithson tal-

    vez no esteja exactamente interessado nesse programa,pelo menos a julgar por algum seu pensamento recolhido

    nos textos dele editados, programa que privilegia como um

    dos eixos centrais a dialctica entre lugar e no-lugar

    (em grande medida dependente do sistema artstico do qual

    ele deveria estar a libertar-se). Ns estaramos seguramente

    num lugar melhor se os artistas estivessem altura dessa

    2 Cf. ARDENNE, P. (2003)Lart contextuel.Paris:Flammarion.

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    3 Cf. BADIOU, A. (2006)Logique des mondes.Paris: Seuil.

    4 Cf. LATOUR, B. (2006)Changer de societ,refairela sociologie.Paris: LaDcouverte.

    5 Cf. SLOTERDIJK,P. (2005) cumes Sphres III. Trad. OlivierMannnoni. Paris: MarenSell: 231 e ss. Este texto,que trabalhmos de formamais sistemtica numsemestre de 2006-2007, objecto de outro ensaioque continua a aguardarverso final.

    responsabilidade e dessa tarefa, ou se quisessem pelo menos

    reconhec-la (alguns sabem, mas, depois, os actos concretos

    cam um pouco aqum dos desgnios enfticos).

    DESLOCALIZAR O PENSAMENTO:

    A ESPACIALIZAO COSMOPOLITA DO AGIR

    A questo do localismo no apenas uma questo de urba-

    nismo e de ordenamento do territrio, ou da proxmica

    dos encontros no espao da cidade. Nela tem sede uma

    paradoxal angstia metafsica ligada interiorizao e

    conjura do exterior, e imediatez da presena, marcada

    pela nostalgia do espao do contacto de prximo a

    prximo, pensado como um espao quente e acolhedor,

    por oposio ao frio inspito da circulao e da velocidade

    e ao anonimato glido das aglomeraes disfuncionais da

    vida metropolitana. H duas deslocaes recentes neste

    discurso que merecem uma ateno mais elaborada da

    qual deixamos aqui apenas a indicao, pois requereriam

    anlises demoradas.

    Verso exaltada e ultra-especulativa do furor conceptual:

    Alain Badiou, em Logique des mondes,3 explora, de um

    modo altamente desconfortvel para os supostos ouvidos

    cpticos em relao s velhas categorias da ontoteologia,

    a formalizao ontolgica desta relao ao local como um

    ncleo de emisso de verdades: a verdade emitida pelo

    lugar evenemencial que se constitui como um plo de

    emisso do universal e como produtor de subjectivaes

    que se constituem como memria dessa emisso singular

    de um acontecimento que sempre local (traduo,

    fractal izada e esttica, do herosmo revolucionrio).

    O local no seria o estofo do relativismo ou do

    particularismo, mas um ponto de recaptura da verdade

    como universalidade, que enunciada por um sujeito que

    se constitui na delidade revolucionria potncia.

  • 7/27/2019 Rodrigo Silva - O pensamento da deslocalizao

    12/14

    135RODRIGO SILVA

    Verso sistmica, arrefecida, estritamente analtica: Bruno Latour, em

    Changer de societ, refaire la sociologie,4 defende a ideia de uma re-

    -ancoragem local da sociologia crtica a partir dos diferentes nveis de resoluo

    das interferncias entre o local e o global uma sociologia conexionista,

    abandonando o basculamento sistemtico para os quadros e estruturas

    globais que formalizam abstraces interaccionistas (que reproduzem

    um falso princpio de localizao), repropondo fazer uma cartograa dos

    deslocamentos dos nveis de realidade. Para Latour, social signica antes de

    mais as construes e os campos de oportunidades que transguram para ummesmo lugar (que nunca o mesmo, variando consoante a paralaxe do

    observador); compreender o social desenhar o diagrama dos uxos de ligaes

    que compem as esferas relacionais (para alm do estatismo das formalizaes da

    razo demogrca), traar um mapa das recombinaes do socius, que desse

    conta num organigrama sistmico vivo da nuvem relacional que constitui o

    sujeito suposto sociedade. S h sociologia como tpica vital e cartograa

    dinmica: a sociologia ser espacial, ou no ser. Uma sociologia que anda

    a p (mas com uma conotao diferente das deambulaes tericas de Michel

    de Certeau) e que pergunta antes de mais o que o local e como que se

    pode parametrizar um ponto de vista a que chamamos local: quando queestamos no local, e quando que j o transpusemos, ou interseccionmos, com

    uma impresso que transborda o contentor que um local. Ele prope uma

    moratria de conteno sobre aquilo a que chamamos social, cujo programa

    poderia ser o notvel manifesto de Sloterdijk includo no terceiro volume da

    srie Esferas, sintomaticamente intitulado Nem con-trato, nem organismo

    aproximao s pluralidades espaciais s quais damos lamentavelmente

    o nome de sociedades.5 As resolues simbiticas entre o micro e macro

    conhecem uma imensa panplia combinatria, sem que saibamos bem qual

    que precede qual, qual o que se transferiu sobre o outro, etc.. Latour: Seria

    preciso cuidadosamente desinterpretar o sentido demasiado habitual do termosocial. Precisamos de viajar a p e comprometermo-nos com a deciso de no

    apanhar qualquer veculo mais rpido. Devemos ignorar os painis gigantes

    que nos anunciam Contexto por aqui, Estrutura nesta direco (...) A

    partir do momento em que sublinhamos os stios locais onde so elaboradas as

    estruturas globais, toda a topograa do mundo social que aparece modicada.

  • 7/27/2019 Rodrigo Silva - O pensamento da deslocalizao

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    136 AULAS ABERTAS

    6 Cf. LATOUR, B., emparticular parte IICommment retracerles associations?(Deuxime mouvement:redistribuer le local).

    Macro no designa um stio mais largo ou mais vasto

    no qual o nvel micro estaria encastrado segundo uma

    gradao concntrica, mas um outro lugar, to local e

    to micro que se encontra ligado a outros por um tipo

    preciso de veiculao que transporta um tipo preciso de

    traos (...). O macro no est nem por cima nem por

    baixo das interaces, ele vem somar-se a elas como um

    outro conjunto de conexes que se alimenta delas ou se

    alia a elas para ser alimentado.6 O que encontramos emcada local (como no global, visto apenas como um outro

    local s que com outra estrutura de difuso e conexo)

    um tipo particular de concrescncia ou de intensicao

    (de conexo), e aquilo a que nos teramos habituado

    a chamar o contexto ou o local (como o global)

    apenas um n de diferentes ligaes ou associaes, mais

    fracas ou menos frequentadas. A noo de rede (o seu

    uso parece ter-se generalizado a tal ponto que lana uma

    suspeita sobre a eccia da noo) serve para pensar um

    desinacionamento do prestgio do contexto como ferra-menta explicativa, substituindo-a por uma compreenso

    cujo lxico o do pensamento deslocalizado, composto

    de travessias, passagens, transies, tradues, transaces,

    deslocaes, reapropriaes, transferncias, articulaes,

    transposies, desvio, migraes, t ransmutaes.

    Estas breves indicaes no so nada de muito diferente

    daquilo que Virilio ou Deleuze tinham j escrito desde o nal

    dos anos 60. A noo de espao liso pensada por Deleuze

    em contraposio de espao estriado permite tambmvisualizar, de outra maneira, a espacializao dos colectivos

    e entrar no problema com conceptualizao anloga. O

    espao liso no exactamente uma classicao tipolgica,

    mas um modo de pensar um certo tipo de conexes como

    denidoras dos processos que compem e constroem um

    colectivo: o que o caracteriza no o facto de ser um tipo

  • 7/27/2019 Rodrigo Silva - O pensamento da deslocalizao

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    137RODRIGO SILVA

    de espao ou de modelo topolgico, mas o tipo de ligaes

    que se podem estabelecer nele, como que se passa de um

    ponto ao outro, como que as singularidades comunicam,

    i.e., pelo modo como nele se congura livremente um tecido

    criativo de relaes entre humanos ou entre humanos e

    outras foras/potncias (de energia, de informao, com os

    reinos animais, vegetais, minerais, csmicos). Um espao

    sempre constitudo pela natureza das relaes que acolhe

    e suporta, pelos lugares que permite ligar, pelas operaeslocais que suporta, pelas trocas que ns podemos realizar,

    pelos encontros que podemos ter, pelas conexes que a se

    abrem. Ele no precede as nossas operaes construtivas;

    so elas que o fazem. o que Heidegger pensou sob o tema

    do habitar, mas que logo enraizou nos ideologemas do solo

    natal e do lugar destinal, em relao aos quais temos que

    (se queremos escutar algo do seu pensamento), a cada passo

    do seu texto, ngir ignorar o seu permanente deslizamento

    para os sustentculos verborreicos do horror). Um espao

    para os desdobramentos e redobramentos innitos das linhasde fuga e das individuaes singulares que operam como

    potncias de desterritorializao e reterritorializao, etc.,

    hoje uma vulgata por demais conhecida do deleuzianismo

    ambiente. O que nessas anlises clama e se arma7 a exis-

    tncia de um espao-livre como possibilidade de criao,

    como espao de acolhimento da indeterminao e da

    impropriedade nativa do humano, como circulao da

    transitividade humana feita de uma trama de espaos e

    tempos. Neles o espao-livre seria o acontecimento da

    deslocalizao que articula interminavelmente o nito e oinnito, o prximo e o distante, o familiar e o estranho, o

    aqui e o algures, o lugar e a deslocalizao. O pensamento

    agido pelo espao, os processos criativos que se inscrevem

    nos lugares, delimitando a sintaxe espacial do mundo, esses

    so a gramtica dos lugares por vir.r

    7 Como tentmos indicarnoutro lugar sobre estetema. Ver: RodrigoSilva, Plasticidade domundo, espectralidadedos lugares contributospara a crtica do espaona contemporaneidade.Tese de doutoramento emComunicao e Cultura(UNL/FCSH, Maro de2007).