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Roberto Segre

João DinizUma estética de vocação abrangente

1.- Historiografia, gerações e arquitetos

Quando se olha para a trajetória artística e arquitetônica de João Diniz vem à tona

a pergunta de como em menos de meio século de existência fez tanta coisa sem

perder a eterna juventude1, o entusiasmo e o otimismo que o caracterizam e

mantém renovado neste início de milênio. Isso pode ser explicado pelo fato de ter

vivido em um tempo muito acelerado a segunda metade do século XX e pela

coincidência de nascer no ano em que Juscelino Kubitschek lançava o Plano de

Metas, que pretendia fazer avançar o Brasil cinqüenta anos em cinco2, 1956. Este

ano, o “ano de Elvis Presley”, explica também a sua afinidade com a música:

desde pequeno já escutava Rock around the clock, os Beatles e as primeiras

notas de João Gilberto e de Milton do Nascimento. Pouco tempo depois, em 1958,

a seleção brasileira se sagra campeã mundial pela primeira vez, na Suécia, e

repete o feito mais três vezes nesse período em uma trajetória inédita no futebol

mundial. Na realidade, foi um período convulso cheio de mudanças algumas

inimagináveis como, por exemplo, o fim do “mundo socialista”; supostamente

caracterizado por uma paz duradoura com a presença do fórum da ONU, mas

marcado por uma sucessão de guerras “periféricas” Coréia, Indochina, Egito,

Vietnam, Kuwait, e agora Afeganistão ; pelos vinte anos de ditaduras militares na

América Latina, e, ao mesmo tempo, pela esperança criada pela revolução cubana

e o mito do Che Guevara, pelo 68 em Paris e pelo retorno das democracias no

Continente nos anos oitenta.

Diniz pertence a uma geração definida, genericamente, no final dos anos setenta,

como “pós-Brasília”3. Ou seja, uma geração constituída por um naipe de arquitetos

1 Qualidade reconhecida internacionalmente quando em 1996 foi convidado como Arquiteto Animador no V e VI Fórum Mundial de Jovens Arquitetos da UIA, França, e nomeado Vice-Presidente para o Brasil da Federação Mundial de Jovens Arquitetos, sediada na França.

2 Boris Fausto, História do Brasil, Edusp, São Paulo, 1995, pág. 420. 3 O termo surgiu no debate organizado pelo IAB do Rio de Janeiro, sob a presidência de Luiz Paulo Conde,

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que, desde os anos oitenta, mantém uma certa unidade na procura de uma

linguagem expressiva das múltiplas condições ou determinantes da realidade

brasileira. Se, tradicionalmente, uma geração é definida por uma década ou duas,

no máximo, ainda não existe, até hoje, uma ruptura nas idéias e propostas que

começaram a se desenvolver com o fim da ditadura militar. Na realidade, resume

uma situação semelhante àquela que se produziu entre os anos trinta e sessenta,

na continuidade estética mantida entre o Ministério de Educação e Saúde, no Rio

de Janeiro, e o projeto de Brasília. Foi um período dominado pelos fundadores da

modernidade arquitetônica, com as suas diferenças e divergências: Lúcio Costa,

Oscar Niemeyer, Affonso Reidy, João Vilanova Artigas, Oswald Arthur Bratke,

Sylvio de Vasconcellos, e outros. Logo chegou o tecnocratismo associado com o

milagre econômico do período da ditadura, a proliferação dos prédios anônimos do

International Style, e finalmente a reação contra uma visão “unidimensional” e

esquemática parafraseando Hebert Marcuse do Movimento Moderno. A

geração pós-Brasília a geração dos anos oitenta4 reagiu contra os dogmas

formais, funcionais e economicistas, e procurou novos caminhos compreendidos

entre o regionalismo e o postmodernismo.

Processo que teve uma significação particular em Belo Horizonte, cidade que

desde a sua criação por Aarão Reis, em 1897, sempre se voltou para a

modernidade sem esquecer o valor da tradição e a herança cultural do passado5.

Logo após o interlúdio clássico e historicista em que se manteve até a década de

30, nos anos quarenta com a iniciativa de Kubitschek e a presença de Oscar

Niemeyer, tentou-se de colocar a capital mineira no circuito da vanguarda cultural

e arquitetônica mundial. A criação de Pampulha (1940) como um subúrbio

documentado nos Cadernos Arquitetura Brasileiro após Brasília/Depoimentos, publicados em 1978. 4 Esta geração ficou conhecida, nas artes plásticas, como Geração 80, após a exposição de mesmo nome realizada no Parque Lage, no Rio de Janeiro, com os novos artistas, em sua grande maioria, contemporâneos de Diniz.

5 Flávio de Lemos Carsalade, “Arquitetura e Memória”, AP Revista de Arquitetura No. 4, Belo Horizonte, março-abril 1996, pp. 82-91. E a aceleração inerente á inovação que caracteriza a dinâmica mineira, segundo Hugo Segawa em “A ‘pós-mineiridade’”, Éolo Maia, Jô Vasconcellos Arquitetos, Editora Salamandra, Rio de Janeiro, 1995, pág. 157.

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moderno ideal e bucólico para a alta burguesia local precedeu as idéias

semelhantes que Luis Barragán, no Pedregal San Angel, na cidade do México,6 e

Antonio Bonet, em Punta Ballena, Punta del Este, Uruguai,7 irão desenvolver em

1945. E introduz, ao mesmo tempo, o tema do Cassino “moderno”, que tinha tido

sucesso nas cidades dos Estados Unidos: Niemeyer, durante a sua estadia em

Nova York para construir o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial do 1939, com

certeza visitou o Bem Marden’s Riviera, em Fort Lee, New Jersey, o cassino de

moda naqueles anos.8

A segunda fase da presença da modernidade acontece quando Kubitschek

imagina a possibilidade de mudar a estrutura horizontal original do sistema

habitacional da cidade por prédios altos de apartamentos: o conjunto JK

desenhado por Niemeyer em 1951, estabelece o ponto de partida do tema da torre

como componente simbólico dominante no skyline urbano ; os apartamentos de

porte médio, integrados com o design dos móveis assumidos da Unité d’Habitation

de Le Corbusier, que iriam mudar os hábitos provincianos da população de Belo

Horizonte, ainda identificados com a pequena casa individual9. Isto acontecia na

mesma época em que Reidy concebia o Pedregulho (1946), no Rio de Janeiro, e

Niemeyer, o conjunto Copan (1950) em São Paulo. Mas o desafio maior de

6 Emilo Ambasz, The Architecture of Luis Barragán, The Museum of Modern Arte, Nova York, 1976, pág. 15. 7 Fernando Álvarez, Jordi Roig, Antoni Bonet Castellana 1913-1989, Ministério de Fomento, Madrid, Colégio de Arquitetos de Cataluna, Barcelona, 1996, pp. 92-97.

8 A tese repetida por Niemeyer, de que teria feito em uma noite o projeto do Cassino de Pampulha atendendo a solicitação de Kubitschek, soa inverossímil dada a complexidade do tema. Sem dúvida ele conhecia os exemplos norte-americanos, em particular o Bem Marden’s Riviera de New Jersey (1937), que têm componentes formais e funcionais semelhantes; assim como o Cassino Atlântico (1934), em Copacabana, com fachadas curvas de linguagem racionalista. Outra referência aparece na marquise da entrada principal, parecida com aquela colocada no prédio de apartamentos Highpoint One en Highgate, Londres (1933), por Berthold Lubetkind. Jean Petit, Niemeyer poéte d’architecture, Fidia Edizioni d’Arte, Lugano, 1995, pág. 260; Robert A. M. Stern, Gregory Gilmartin, Thomas Mellins, New York 1930. Architecture and Urbanism Between the Two World Wars, Rizzoli, Nova York, 1988, pág. 286; Berthold Lubetkind (1901- 1990), DPA 12, Documents de Projectes d’Arquitectura, Barcelona, 1997, pág. 28. 9 Thaïs Velloso Congo Pimentel, A torre Kubitschek. Trajetória de um projeto em 30 anos de Brasil, Secretaria de Estado da Cultura, Belo Horizonte, 1993, pág. 113; Carlos M. Teixeira, Em obras: história do vazio em Belo Horizonte, Cosac & Naify Edições, São Paulo, 1999, pág. 206.

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Niemeyer foi o sinuoso prédio de apartamentos introduzido no contexto eclético da

Praça da Liberdade10, cuja expressividade constitui um prenúncio das torres que

serão construídas nos anos oitenta e noventa pela nova geração de arquitetos á

que pertence Diniz.

A ruptura que eles estabelecem nas últimas duas décadas do século XX é

conseqüência da mudança da capital para Brasília. Desde a Revolução de Vargas

até o governo de Kubitschek (1930/1960), a elite intelectual mineira tem uma forte

articulação com Rio de Janeiro e São Paulo: Monteiro Lobato e Mário de Andrade

se entusiasmam com Belo Horizonte11; Alberto da Veiga Guinard transfere-se do

Rio para Minas; Gustavo Capanema, Carlos Drummond de Andrade, Abgard de

Castro Araújo e Afonso Arinos de Melo Franco migram para a capital. Na

arquitetura, Oscar Niemeyer articula o relacionamento triangular, com as

importantes obras que constrói nas três cidades12. Com a criação de Brasília e o

longo período da ditadura militar quebram-se as articulações: esvaziado das

funções administrativas e políticas do governo federal o Rio de Janeiro perde

importância no desenvolvimento arquitetônico; os recursos econômicos do

“milagre” se concentram em São Paulo que passa a assumir uma posição

hegemônica e adquire o caráter de metrópole do “Primeiro Mundo”; e Belo

Horizonte fica isolada no seu desenvolvimento cultural e construtivo. Justifica-se

então, a procura dos arquitetos de modelos e relacionamentos externos, além do

Brasil, como comenta o próprio Diniz: na América Latina, Estados Unidos e

Europa. 10 Gesto semelhante tiveram Ëolo Maia e Sylvio de Podestá ao projetar o Centro de Apoio Turístico Tancredo Neves (1985), conhecido como “rainha da sucata”, que não deu certo, na sua ainda imatura linguagem postmoderna. Sylvio de Podestá Projetos Institucionais. Escolas, museus, centros culturais, edifício sede, centros administrativos, habitação popular, hotéis, clubes, AP Cultural, Belo Horizonte, 2001, pp. 32-37.

11 É curioso verificar que Monteiro Lobato comete um erro quando afirma em 1937 que “No continente americano só existem duas cidades feitas sob medida, estudadas, calculadas, desenhadas no papel antes de ser fixadas em cimento e tijolo: Washington e Belo Horizonte”. Esqueceu La Plata em Argentina e Goiânia no Brasil. Carlos M. Teixeira, op. cit. , pág. 93. 12 Entre os anos 1950-1952, Niemeyer projeta em São Paulo o Conjunto COPAN, os prédio da exposição no Parque Ibirapuera, a fábrica Duchen e o edifício California; no Rio de Janeiro, o Hospital Sul América e várias casas; em Minas Gerais, vários prédios em Diamantina – hotel Tijuco, o Club Diamantina, Parque Infantil Márcia Kubitschek –, e em Belo Horizonte, o conjunto JK, o Club Libanés, e a Escola Júlia Kubitschek. Josep Maria Botey, OscarNiemeyer. Obras y Proyectos, G. Gili, Barcelona, 1996, pág. 238.

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As vinculações entre periferia e centro, e vice-versa, caracterizam a dinâmica

arquitetônica no mundo a partir dos anos cinqüenta. Os estopins que deflagram

este processo foram a Capela de Ronchamp de Le Corbusier (1950-1954); as

primeiras obras de Louis Kahn, Eero Saarinen e Paul Rudolph nos Estados

Unidos; a influência de Aldo Rossi e Mario Botta seguidas pela crescente

presença dos arquitetos dos países da África, Ásia e América Latina. No

Continente, a reação contra o anonimato do International Style e os epígonos do

modernismo permitiram o surgimento de uma nova geração de arquitetos que não

só trabalhavam nas grandes cidades, mas também nas áreas periféricas. Na

Argentina temos Clorindo Testa, em Buenos Aires, e Miguel Ángel Roca, em

Córdoba; no Uruguai, Eladio Dieste desenhando em Durazno e também em Porto

Alegre; no Chile, Emilio Duhart em Santiago, e Edward Rojas em Chiloé; Rogelio

Salmona, em Bogotá, e Laureano Forero, em Medellín; Carlos Raúl Villanueva, em

Caracas, e Fruto Vivas, em Barquisimeto; Abraham Zabludovsky e Teodoro

González de Leon, na Cidade do México, e Alejandro Zohn em Guadalajara. Ou

seja, arquitetos produzindo em cidades do porte de Belo Horizonte, e buscando

uma linguagem “regionalista” ganham destaque nos Seminários de Arquitetura

Latino Americana (SAL) que integraram as experiências nacionais desde 198513.

No Brasil, os primeiros arquitetos que participaram nestos encontros e nas

Bienais de Buenos Aires, organizadas por Jorge Glusberg, foram, entre outros,

Éolo Maia, Severiano Porto, Francisco de Assis Reis, e João Diniz.

Enquanto nos países hispânicos da América Latina, livros e revistas difundem as

obras dos arquitetos do sistema periférico, no Brasil, a presença dos profissionais

de Belo Horizonte, à parte o esforço realizado localmente pelas fugazes Pampulha

e AP, ainda não teve a repercussão merecida. Na última edição (1999) do livro de

Yves Bruand14, não há nenhuma obra além daquelas produzidas por Niemeyer; os

13 AAVV, Arquitectura Latinoamericana. Pensamiento y propuesta, Instituto Argentino de Investigaciones de Historia de la Arquitectura y del Urbanismo, Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Xochimilco, México D.F., 1991. 14 Yves Bruand, Arquitetura Contemporânea no Brasil, Editora Perspectiva, São Paulo, 1999.

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arquitetos da geração dos oitenta Éolo Maia, Álvaro Hardy, Jô Vasconcellos,

José Eduardo Ferolla, Gustavo Penna, Joel Campolina, Sylvio Podestá

receberam uma breve referência no recente texto de Hugo Segawa, sem uma

avaliação das obras realizadas.15 Maior difusão gráfica ocorre no livro Arquitetos

do Brasil, com prólogo de Sérgio Bernardes, em que já se apresentan obras de

Diniz16. Além da presença cada vez maior nas revistas de circulação nacional

Projeto e Arquitetura & Urbanismo , no final do século algumas publicações

estrangeiras exibiram prédios de arquitetos mineiros: Abitare em Itália; Arquine no

México e Arquitetura Panamericana no Chile17. Mas ainda falta uma avaliação

crítica integral da contribuição de Minas Gerais ao panorama atual da arquitetura

brasileira18.

2.- Serra, sertão, cidade, arte e sociedade

No seu mais recente livro, Flávio Carsalade19 define a importância do ecosistema

que caracteriza a região de Belo Horizonte: a Serra do Curral, linha divisória entre

o cerrado do sertão e a vegetação serrana que se desenvolve ao longo da Serra

do Mar. Uma natureza diversificada que integra a desenvolvimento amável das

colinas com matas e a dura extensão do sertão caracterizado por João Guimarães

Rosa. Nessa terra dura e ondulante que continha nas suas entranhas o brilho do

ouro e dos diamantes e a opacidade do ferro20, longe do mar e das águas

15 Hugo Segawa, Arquiteturas no Brasil 1900-1990, Edusp, São Paulo, 1997, pág. 194 e seg.

16 Sérgio Bernardes (Intr.) Arquitetos do Brasil, Editora Salamandra, Rio de Janeiro, 1995.

17 Arquitectura Panamericana No. 4, Federación Panamericana de Asociaciones de Arquitectos, Santiago de Chile, maio 1996, “Arquitetura no Brasil: Depoimentos”; Abitare No. 374, Milão, junho de 1998, número monográfico sobre Brasil; Arquine No. 3, México D.F., primavera 1998, “Arquitectos y obras: Brasil”. 18

? Localmente foi elaborada uma primeira pesquisa que tenta de evidenciar o desenvolvimento da modernidade na arquitetura mineira, mas, não desenvolve detalhadamente as experiências desenvolvidas nas duas últimas décadas do século XX. Leonardo Barci Castriota, Arquitetura da Modernidade, Editora UFMG, Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento MG, Belo Horizonte, 1998. 19

? Flávio de Lemos Carsalade, Arquitetura: Interfaces, AP Cultural, Belo Horizonte, 2001, pág. 52 20

? A presença do mineral poderia induzir a uma cultura dura e triste, segundo Carlos Drummond de Andrade, que não foi o caso: “Confidência do Itaborano”, “Noventa por cento de ferro nas calçadas....oitenta por

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profundas, a visão infinita da paisagem gera uma imagem cósmica e mítica, que

associa sentimento e paixão, elementos presentes no barroco mineiro. Contexto

natural distante da Macondo de García Márquez, ou das montanhas, da selva e do

deserto que identificavam os americanos no imaginário europeu21. Sobre este

patamar se assenta o positivismo “comtiano” com os seus princípios de “ordem e

progresso”, identificados no território com a planta regular e geométrica da cidade

de Belo Horizonte, desenhada por Aarão Reis. Estabelece-se uma articulação

dialética entre razão e sentimento, exatidão e irracionalidade22; entre as ruas retas,

as diagonais oblíquas, e a sinuosa e indomesticável topografia. Contradição

evidenciada por Drummond de Andrade, surpreso com a implacável regularidade

do espaço urbano, tão alheio à imagem tradicional da cidade23.

A formação dos arquitetos mineiros está baseada sobre três elementos

essenciais: o genius loci do território; a racionalidade da estrutura urbana de Belo

Horizonte e a tradição arquitetônica barroca das cidades do século XVIII. Constitui

uma síntese marcante que não existe igual em outras regiões do Brasil. Como se

define, então, esta particularidade? A paisagem multiforme e diversificada gera

uma capacidade de adaptação a situações ambientais variadas, que define o forte

“regionalismo” da arquitetura, oposta à “globalização” anônima que caracteriza as

imagens e espaços repetidos nas grandes metropóles desterritorializadas24. A

racionalidade do traçado urbano configura o rigor da tradição clássica e a

identidade estética-ética: a unidade e perfeição da forma geométrica associadas

cento de ferro nas almas...”

21 Franco Rella, “Rappresentare l’irrapresentabile”, Metamorfosi, Quatrimestrale di Architettura No. 3, Roma, junho 1986, pp. 4-9.

22 Segundo Musil o conhecimento provem do inconciliável de estas duas polaridades contrapostas. Italo Calvino, Seis propuestas para el próximo milenio, Ediciones Siruela, Madri, 1998, pág. 112. 23

? Carlos Drummond de Andrade, “Ruas”, “Por que ruas tão largas?...Por que ruas tão retas?...Não sei andar na vastidão simétrica implacável....cidade grande é isso?...Cidades são passagens sinuosas de esconde-esconde....Aqui tudo é exposto..evidente..cintilante. Aqui obligam-me a nascer de novo, desarmado...” , em Flávio Carsalade, “Arquitetura e Memória”, AP Revista de Arquitetura No. 4, Belo Horizonte, março-abril 1996, pp. 82-91.24

? Marc Augé, Non-Lieux. Introduction a une Anthropologie de la Surmodernité, Éditions du Seuil, Paris, 1992, pág. 130.

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ao funcionamento harmônico, à coerência e à integração da sociedade que habita

nela.25 Por último, a herança barroca cria a consciência da tradição, da história, e

de uma cultura artística baseada no interrelacionamento estreito das diferentes

manifestações pintura, escultura, mobiliário, arquitetura , surgido das mútuas

influências entre a arte culta e a arte popular.

Cria-se, então, uma afinidade entre comunidade, arquitetos, artistas, poetas,

escritores, que mantém relações humanas e atitudes flexíveis frente à vida, que

permite uma diversidade de funções, atividades, e atitudes ainda relacionadas á

sociedade pré-industrial. Primeiro, o engajamento dos arquitetos com os

movimentos dos artistas plásticos, a música, o cinema, o teatro o

relacionamento com o grupo Corpo de Belo Horizonte ; a possibilidade de atuar

nas diferentes escalas do desenho, desde o urbano até o industrial design;

compartilhar como fez Carlos Antônio Leite Brandão os projetos urbanos e

arquitetônicos com a elaboração de textos filosóficos, a direção teatral ou as

responsabilidades administrativas na Faculdade de Arquitetura. Tudo baseado no

desejo de transformar o real26, de melhorar a vida da comunidade, produzindo o

bene beateque vivendum (uma vida melhor e mais feliz) com a alegria surgida da

arte e a cultura social. Bem estar que não se consegue se não se atinge todas as

dimensões da vida. Acreditando nisto, Diniz criou na Escola de Arquitetura da

FUMEC a disciplina de “transarquitetura”, onde a experiência criativa do aluno é

baseada no inter-relacionamento de todas as manifestações culturais. Em vez das

certezas absolutas “cartesianas”, demonstrar a importância das incertezas e a

necessária articulação da razão e o sentimento no saber “dionisíaco” 27. Como 25

? A herança clássica, e a articulação estética-ética são detonantes, leit motifs das contribuições teóricas, críticas e filosóficas do arquiteto Carlos Antônio Leite Brandão, membro da turma dos “gambás” e autor de um aprofundado estudo sobre a obra de Alberti: Quid Tum?. O combate da arte em Leon Battista Alberti, Editora UFMG, Belo Horizonte, 2000.

26 É a força do desejo que produz o real; Gilles Deleuze, Félix Guattari, L’Anti-Oedipe. Capitalisme et Schizophrénie, Les Éditions de Mínuit, Paris, 1973, pág. 34. 27 Michel Maffesoli, Elogio de la razón sensible. Una visión intuitiva del mundo contemporáneo, Paidós, Barcelona, 1997, pág. 14: “Trazar las topografías de la incertidumbre y del azar, del desorden y de la efervescencia, de lo trágico y de lo no racional, de todas las cosas incontrolables, imprevisibles, pero no Por ello menos humanas”.

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conseqüência, o arquiteto é definido como uma personalidade aberta, sem

preconceitos, boêmia e bem humorada que identifica o grupo dos “gambás”,

fenômeno que desapareceu do Rio de Janeiro com exceção de Oscar

Niemeyer28 e Paulo Casé , e mais ainda de São Paulo: o único boêmio é Paulo

Mendes da Rocha que nasceu em Espírito Santo. Atitude frente à vida que se

evidencia no caráter diminuto e artesanal dos escritórios, ainda românticos e

alheios ao produtivismo implacável do capitalismo avançado; e as maquinarias

economicistas de fazer projetos que caracteriza os escritórios do Primeiro Mundo,

e no Brasil, São Paulo.29

Por enquanto, João Diniz e a turma dos arquitetos da geração dos anos oitenta

os “gambás” , se caracterizam pela importância do desenho na representação da

realidade e nas imagens primeiras dos projetos. Esta persistente recorrência ao

grafismo na vida quotidiana, nos viagens, nos riscos arquitetônicos presente nos

desenhos de João Diniz, Éolo Maia, Sylvio de Podestá, Saul Vilela, Gustavo

Penna, não ocorre com igual intensidade nos arquitetos de São Paulo ou Rio de

Janeiro, com exceção de Niemeyer.30 A diferença radica no fato que eles

pertencem ainda á Era Manual e não se identificam totalmente com a Era Digital.31

Cabe supor que a expressividade gráfica e pictórica se baseia tambem no íntimo

relacionamento dos arquitetos com os artistas locais, e com a particularidade da

28 Marcos Sá Corrêa, Oscar Niemeyer, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1996. Era o espíritu que caracterizava a vida profissional nos anos trinta: “Foi um dos períodos de maior preocupação profissional que tivemos e também de desesperada boemia. O que prova,meu amigo, nada ter uma coisa contra a outra. Trabalhávamos muito, mas sempre encontrando tempo para nos divertir tambén. O escritório se enchia de gente: Vinicius de Moraes, Rodrigo, Carlos Leão, Carlos Euchenique, Luiz Jardim, Di Cavalcant, Eça, Duprat....”. 29

? Os escritórios de Éolo Maia, João Diniz, Sylvio de Podestá, Gustavo Penna e outros, não tem nada a ver com as infraestruturas técnicas e organizativas dos grandes escritóricos paulistas: Carlos Bratke, Paulo Bruna, Botti e Rubin, Vannuchi e Königsberger, Aflalo e Gasperini, etc. Além,que pouco tem de boemios e benhumorados: uma demostração é a recente resposta de Carlos Bratke a Luiz Paulo Conde publicada na revista Projeto No. 263, São Paulo, janeiro 2002, pág. 12.

30 João Diniz, Sylvio Emrich de Podestá, Desenho de Arquiteto, AP Cultural, Belo Horizonte, 1997; Saul Vilena, Arquitetura. Inversus, AP Cultural, Belo Horizonte, 1999.31

? Tom Wolfe, Ficar ou Não Ficar , Rocco, Rio de Janeiro, 2001, pág. 82. Na relidade Diniz entrou na “Era Digital” não somente vía o CAD, mais principalmente pela música. Com a ajuda do compuador, em 2001 gravou o CD “Octopus”, que ele chamou de musicarquitetônica.

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integração das artes no período barroco, simbolizada pela obra de Aleijadinho. Em

Belo Horizonte desde o início da vanguarda moderna, nos anos trinta, o grupo de

jovens artistas da escola de Guignard Amílcar de Castro, Alfredo Ceschiatti,

Franz Weissmann, Paulo Laender, George Hardy, e recentemente, nas obras de

Diniz, o escultor Jorge dos Anjos participam, desde Pampulha com Niemeyer,

na inserção de obras de arte na arquitetura.

Este olhar sobre a realidade com uma visão dialógica, polifônica e carnavalesca

parafraseando Mijail Bajtin , permitiu Diniz utilizar uma multiplicidade de técnicas

de representação, adequadas ao seu estado de ânimo ou ao tema assumido

uma paisagem, um prédio, uma cidade, uma cena quotidiana , que abrange

desde o purismo linear assumido da lição de Niemeyer e Le Corbusier, até os

carregados cores de pastéis e grafites: o purismo geométrico do skyline de Nova

York com o perfil das torres do WTC; a visão dramática do sketch em preto e

branco da Torre Velazca em Milão32. Mas Diniz procurou também a técnica

fotográfica para captar as dinâmicas imagens da realidade urbana e dos seus

habitantes. Admirador de Henri Cartier Bresson encontrou na fotografia o caminho

para compreender melhor o significado da arquitetura como performing art, em

constante transformação, no seu relacionamento com o contexto urbano. A

procura do objeto, da luz, das cores, da atmosfera, do detalhe, do movimento na

rua e os seus personagens33, foram documentados em dois livros publicados entre

1979 e 1981: Com Vidro nos Olhos e Fotovida, com textos poéticos de Carlos A.

Brandão e Murilo Antunes. A visão de Diniz, integrada no movimento fotográfico

de Belo Horizonte com Eustáquio Soares e Odilon de Araújo , não se limitava

32

? Escreve Diniz: “A linha...do raciocínio direto...a linha do horizonte...a linha da vida...a linha melódica.... no gesto solto do vento, a linha infinita...”, em João Diniz, Sylvio Emrich de Podestá, op. cit. , pág. 5. 33

? Aldo Rossi teve uma percepção semelhante quando escreveu: “Por otra parte, los sastres, los decoradores, los fotógrafos de moda, me parecían uma fauna variopinta que no tenía nada que ver con lo irracional y fantástico.....Así la casa y el barrio de Belo Horizonte, lleno de vida, de calor, de calda vita, repetía el mismo ritmo de las catedrales barrocas y permitía que las cosas ocurrieran...”, Aldo Rossi, Autobiografía Científica, Gustavo Gili, Barcelona, 1998, pág. 66.

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a uma percepção estética, mas aprofundava nas contradições sociais presentes

na cidade, já então caracterizada pela triste e extendida suburbia.34

O relacionamento com a cidade é estabelecido em dois níveis: o das intervenções

no espaço histórico, na malha criada por Aarão Reis, e o da inserção de prédios

na dura suburbia. A atitude de Diniz é de grande respeito pela herança histórica da

cidade, sem negar a necessidade de uma assimilação de formas do universo da

contemporaneidade. No projeto do mobiliário urbano colocado na tradicional

avenida Assis Chateaubriand para a Casa Cor Minas 1996, propõe uma seqüência

de leves estruturas metálicas que suportam lâminas curvas coloridas de acrílico

iluminadas em uma evidente influência das obras no Porto de Barcelona de

Piñón e Viaplana , que protegem os bancos para o descanso do pedestre que

circula na rua. A mesma leveza e a intenção de mudar o espaço público com a luz

e a cor, aparece no design dos elementos identificadores das lojas de calçado

Arezzo(1995), em Belo Horizonte, e em todo o país, onde os elementos modulares

das prateleiras aparecem suspensos no ar delimitados pelo ritmo das torres de

luz35. O conceito de espaço público com ambiente de convívio caracterizado por

elementos simbólicos e funcionais está presente no projeto para a Alameda das

Palmeiras e na rua Rio de Janeiro elaborados na equipe de Álvaro Hardy para o

concurso de 1989 sobre o resgate do centro da cidade36.

O surgimento do espaço cinza do subúrbio e da área metropolitana extendida37,

desenvolvida aceleradamente nos anos oitenta com o assentamento industrial,

34

? Os textos de Brandão acompanhavam esta percepção: “...por isso eu peço a este mundo...menos ausência..menos omissão...a quem luta para amar...”. João Diniz, Carlos Antônio Brandão, Com vidro nos olhos, Centro Cultural Universitas, Belo Horizonte, 1980, pág. 54.

35 É uma interesante coincidência que também Le Corbusier desenha em 1937 um sistema modular para as lojas de calçado Bat’a, a pedido do industrial checoslovaco Thomás Bat’a . Jacques Lucan, Le Corbusier. Une encyclopédie, Centre National d’Art et de Culture Georges Pompidou, Paris, 1987, pág. 62.36

? Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, BH Centro. Novos horizontes para um centro urbano, Belo Horizonte, 1989. 37

? Roberto Luís de Melo Monte-Mor, “Belo Horizonte: a cidade planejada e a metróple em construção”, em Belo Horizonte: espaços e tempos em construção, PBH, Cedeplar, Belo Horizonte, `994, pp. 11-27.

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criou um território ausente de todo controle sobre a qualidade do ambiente urbano.

Diniz, em duas pequenas indústrias procura estabelecer pontos estéticos

significativos, que mudem as regras do jogo da especulação arquitetônica e do

elementar funcionalismo alheio ás particularidades do contexto circundante. Nos

prédios da Indústria Patachou (1990), no bairro de Santa Teresa, e na fábrica

Eliana Queiróz (1991), no Bairro Parque Copacabana, o tratamento da esquina

assume o valor essencial do relacionamento do prédio com a escala urbana: na

primeira, o volume côncavo sobre pilotis acompanha o fluxo de veículos e

pedestres, deixando livre o térreo; na segunda, a curva convexa do muro limite do

prédio reconhece a forma circular da praça situada na frente da fábrica. Pode-se

falar, até o momento, de uma integração entre arquitetura e urbanismo, no

conjunto habitacional “Residencial Gameleira” (1994). Diniz cria uma solução

original de blocos residenciais para população de baixa renda, estruturando-a

linearmente como um limite que acompanha a separação existente entre as

favelas dos Embaúbas e a nova área industrial da cidade. Esta fronteira está

marcada por uma imagem forte de volumes cinzas de blocos de cimento que

conformam uma muralha colorida, que lembram as bastides medievais. Essa

dureza na percepção à distância é compensada pela qualificação do espaço

existente entre os blocos a rua interna arborizada que aproveita a topografia

ondulante, onde se articula a vida social e o lazer dos moradores do 180

pequenos apartamentos. Premiado pelo IAB/MG em 1997, o conjunto demonstrou

a possibilidade de construir moradias de custo reduzido com tipologias inovadoras,

evitando repetir o esquema anônimo das casinhas individuais.38

Outra iniciativa de dimensão territorial em que participa Diniz é o Projeto

Sensações (1992), organizado pelo pintor George Hardy e pelo arquiteto Álvaro

(Veveco) Hardy, na Serra do Cipó, a 90 Km. de Belo Horizonte. A proposta era

criar um centro artístico, cultural e arquitetônico de escala regional com a

participação de arquitetos prestigiados Diniz, Cid Horta, Gustavo Penna, Éolo

38

? João Diniz, “Habitação popular: o desafio da qualidade, enfatizando as dimensões plástica, tecnológica e econômico-social, Projeto-Design No. 196, São Paulo, maio 1996, pp. 52-57.

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Maia, Álvaro Hardy, Maritza Machado Coelho e outros associados aos artistas

plásticos Paulo Loender, Jorge dos Anjos, Amílcar de Castro, George Hardy,

Máximo Soalheiro, Marta Iglesias, Fernando Navarro, Rafael Capell e outros

para desenhar as cabanas que configurariam o povoado, além dos prédios para

atividades sociais. O percurso ao longo de vários municípios, para se chegar ao

conjunto, seria marcado por grandes esculturas, conformando uma via artística.

Esta iniciativa lembra a procura da “estetização da vida” que se tentou atingir nos

“anos de fogo” da Revolução de Outubro em Rússia, ou nos objetivos do Bauhaus,

quando Gropius falava do desenho que devia abranger desde a colher até a

cidade. Experiências também presentes na América Latina, na integração das

artes na Cidade Universidade de Caracas de Carlos Raúl Villanueva; nas

esculturas do caminho da Revolução em Santiago de Cuba, e na integração entre

natureza, arquitetura e cultura na Cidade Aberta de Ritoque, em Valparaíso39, no

Chile. Diniz, associado ao escultor Jorge dos Anjos, desenha uma cabana

“primitiva” que valoriza a expansão do espaço interior nos seus dos níveis a

mesma concepção que em uma pequena sauna projetada por Diniz , cobre os

muros de relêvos geométricos de Jorge, que lembram as pictografias dos

primitivos povos africanos.

3.- Sonhos e casas; torres e utopias

Desde o homem primitivo, a cabana e a torre são dois tipos elementares que

persistem ao longo da história da Humanidade. Por uma parte, Rykwert,

Baudrillard, Freud e Heidegger demonstraram a identificação da casa com ventre

materno, o morar sobre a Terra, a tumba e o Cosmos40; por outra, a Torre de

Babel que simbolizou sempre a união das civilizações no mundo, foi destruída

39 Roberto Segre, Arquitetura e Urbanismo da Revolução Cubana, Nobel, São Paulo, 1997; América Latina Fim de Milênio. Raízes e Perspectivas da sua Arquitetura, Studio Nobel, São Paulo, 1991. 40

? Joseph Rykwert, La casa de Adán en el Paraíso, Gustavo Gili, Barcelona, 1974; Gastón Bachelard, La poética del espacio, Fondo de Cultura Económica, México D.F. 1992; Martin Heidegger, “Edificar, Morar, Pensar”, Boletín del Centro de Investigaciones Históricas y Estéticas No. 1, Facultad de Arquitectura y Urbanismo, Universidad Central de Venezuela, janeiro 1964, Caracas, pp. 64-80; Sigmund Freud, El malestar de la cultura, Alianza Editorial, Madrid, 1994, pág. 22.

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porque Deus, ao criar as línguas, provocou a incomunicabilidade entre os homens

que á construíam. As ancestrais divergências entre Oriente e Ocidente foram

radicalizadas por Osama Bin Laden, ao derrubar as torres do World Trade Center

em Nova York, no 11 de setembro de 2001: na realidade a concórdia universal

nunca existiu, e por enquanto, os seus símbolos tampouco.41

Belo Horizonte não escapa a presença desta dualidade: as casas individuais

aparecem no projeto de Aarão Reis, no bairro dos Funcionários42, e logo se

espalham sobre o território, sobem as colinas e a Serra do Curral. Além da

identificação com a criatividade e a imaginação dos arquitetos e os sonhos e os

desejos dos clientes, as casas mineiras têm uma forte marca do genius loci,

definido pela topografia acidentada da região, e da tradição histórica do sistema

habitacional das cidades coloniais do século XVIII43. Quando nos anos trinta, a

cidade se integra ao processo nacional de modernização produtiva, administrativa

e arquitetônica, os prédios altos começam a florescer no centro da cidade,

mudando o skyline tradicional: as duas torres do edifício Sulacap/Sudameris de

Roberto Capello (1941)44 constituem ainda os ícones desta transformação, que

não só atingiu os usos comerciais e administrativas, mas rapidamente configurou

a tipologia dos prédios de apartamentos45. Estes avanços e a rápida presença das

41

? Roberto Segre, “La emoria mutilada. El WTC como signo de fragilidad urbana”, em Arquitectura Viva No. 79-80, Madri, julho-outubro 2001, Número monográfico dedicado ao WTC, pp. 96-99.

42 Luiz Mauro do Carmo Passos, A Metropóle Cinqüentenaria. Fundamentos do saber arquitetônico e imaginârio social da cidade de Belo Horizonte (1897-1947), Tese de Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciencias Humanas, UFMG, Belo Horizonte, 1996, pág. 194; Beatriz de Almeida Magalhães, Rodrigo Ferreira Andrade, Belo Horizonte. Um espaço para a República, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1989. 43

? As casas individuais se transformaram para os arquitetos “gambás” em um laboratório experimental que os permitia articular os determinantes locais com as contribuições da vanguarda internacional. Sylvio E. de Podestá, Casas, AP Cultural, Belo Horizonte, 2000. 44

? Carlos Antônio Leite Brandão, “Arquitetura Verical”, em Carlos Antônio L. Brandão, Jomar Bragança de Matos, Gaby de Aragão, Arquitetura Vertical, AP Cultural, 1992, pág. 12. 45

? Luiz Mauro do Carmo Passos, Edifícios de Apartamentos. Belo Horizonte 1939-1976: formações e transformações tipologicas na arquitetura da cidade, AP Cultural, Belo Horizonte, 1998.

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inovações tecnológicas na construção, têm a ver a utilização do aço, produzido

nesta região pela primeira vez no Brasil.

As casas de Diniz se dividem em três vertentes lingüísticas; o uso do vocabulário

vernáculo, como na Casazul (1994) e na casa Terra (1993); a liberdade formal e

compositiva da herança pós-modernista, na Casabaeté (1990); na casa Lô Borges

(1997) e na casa Vila Alpina (1999); e o uso dos elementos high tech na Casa

Serrana (2000). O princípio que estabelece a conexão entre as diferentes

concepções formais é a continuidade e a integração dos espaços interiores,

criando pé direitos duplos nas salas de vida social, escadas transparentes que

estabelecem uma dinâmica diagonal na caixa mural e a luminosidade variável

controlada por pérgulas, galerias e brise-soleil. A Casa Serrana aproveita a

linearidade da estrutura de aço e as grandes superfícies de vidro para integrar os

espaços interiores com a densa floresta que a circunda. Praticamente suspensa

no ar pelo balanço da estrutura, essa casa se relaciona com as experiências do

arquiteto venezuelano Fruto Vivas e com os exercícios compositivos de Peter

Einsenman na casa El even Odd (1980).46

A década de oitenta foi o grande boom dos arranha-céus em Belo Horizonte, que

superou, em qualidade e expressividade, o período anterior dos anos cinqüenta,

na época do desenvolvimentalismo de Kubitschek. No espaço central, e ao longo

da Avenida do Contorno, as formas ousadas e livres de Flávio Almada, Éolo Maia

& Jô Vasconcellos, Sylvio de Podestá, José Eduardo Ferolla, Alberto Dávila, Flávio

Lemos Carsalade e João Diniz criaram, o que denominei de “a cidade das

torres”47. Ainda que cada arquiteto tenha desenvolvido uma linguagem própria, as

torres tiveram um denominador comum: a altura uniforme que não superava os

vinte andares e a rejeição total ao modelo International Style, identificação com a

46 Kurt Foster, “Eisenman em despliegue”, AV Monografías No. 53 (1995), Peter Eisenman, Madrid, pp. 10-19. 47

? Roberto Segre, “La ciudad de las torres” , Obras. Panorama de la Construcción No. 325, Ano XXVII, México D.F., janeiro 2000, pp. 66-69.

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rígida modulação da estrutura de aço, e fachadas curtain wall de vidro espelhado

muito difundidas nos Estados Unidos.48

As torres de Diniz se integram na cidade com os outros arranha-céus por

exemplo o diálogo na Avenida do Contorno entre o a torre Capri e o Officenter de

Éolo Maia e Jô Vasconcellos , conformando um sistema de ícones arquitetônicos

de forte expressividade plástica, retomando aquele caráter identificador que

caracterizou os prédios públicos historicistas e acadêmicos da Belo Horizonte de

Aarão Reis. Na realidade, o conceito desenvolvido foi semelhante a um câmbio de

escala, adequando os símbolos à nova dimensão metropolitana: criar em

contraposição á malha urbana sem caráter, múltiplos elementos pontuais de forte

significação estética visíveis nas duas escalas de percepção: de longe e de perto

pelo pedestre que percurre a cidade.49 Como eles estão disseminados em uma

área extensa da cidade, não se estabelece uma superposição ou uma reiteração

de imagens como acontece em Nova York ou em São Paulo. À distância, cada um

deles mantém a própria identidade, em um diálogo criativo com o contexto. Além

disso, não existe uma imagem coorporativa associada à empresas nacionais ou

internacionais: a artisticidade do prédio tem a ver mais com a personalidade dos

arquitetos que com a procura de uma identificação de griffe. Entre elas teria sido

difícil para Bin Laden achar em Belo Horizonte um único alvo simbólico em

destaque do capitalismo avançado: o mais evidente continuava sendo a

inexpressiva torre de 36 andares do JK de Niemeyer.

Nos dois prédios altos mais conhecidos da obra de Diniz o edifício Capri (1992)

e o Omni Center (1994) , a proposta essencial é assumir a leveza da estrutura

48

? Tomás Maldonado identificó o significado negativo das grandes superficies de espelhos nos arranha-céus americanos: “a “casa dos espelhos”, é a versão do famoso ‘dispositivo de vigianca’ teorizado por Foucault. ....Olhar sem ser olhado, perceber sem ser percebido, contralar sem ser controlado.....A fachada de espelho nega a identidade, ou seja, a forza de identificação do prédio: todo reflete e todo é refletido”. Tomás Maldonado, “Rascacielo: casa del espejo”, Casabella no. 457-458, Milão, abril-maio, 1980, pág. 13. 49

? É a tese de Paul Valéry, de identificar a qualidade estética do prédio, no contexto anónimo da cidade. Paul Valéry, “Eupalinos ou l’Architecte” em Eupalinos. L’ame et la danse. Dialogue de l’arbre, Gallimard, Paris, 1944, pág. 35. “Dis-moi (puisque tu es si sensible aux effets de l’architecture), n’as-tu pas observé, En te promenant dans cette ville, que d’entre les édifices don’t elle est peuplée, les uns sont muets; les outres parlent; et d’autres enfin, qui sont les plus rares, chantent?.”

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de aço sem valorizar a caixa como componente maciço do volume alto. A forma é

desagregada em uma série de componentes diferenciados estreitos volumes

verticais furados, superfícies de vidro marcadas pelo ritmo de elementos metálicos

que protegem os aparelhos de ar acondicionado, formas livres na cobertura, fortes

cores e figuras geométricas insólitas para as janelas que, além de identificar a

torre no contexto de prédios anônimos circundantes, transforma a percepção do

observador no seu percurso ao longo da cidade em um processo dinâmico e

complexo.50 Na torre Capri, as janelas triangulares estão referidas às barras

transversais da estrutura, que Mies sempre tentou ocultar, e só deixou á vista no

Chicago Convention Hall (1953-1954) 51. Nos prédios mais recentes como a Scala

Work Center (1998), a Golden Tower e o Savassi Apart Hotel (1999), Diniz tenta

uma decomposição volumétrica que identifica as diversas funções do prédio,

procurando sempre o relacionamento com as ruas e o espaço urbano.

A experiência sintetizada neste livro é uma demonstração do amor de Diniz pela

cultura ambiental e pela criação de formas e espaços que permitam o bene

beateque vivendum que, desde Leon Battista Alberti, é o objetivo dos arquitetos:

humanizar o mundo integrando ética e estética e construir “uma arquitetura

comprometida com esse mundo público junto ao qual ela pretende ver

compreendidas as mensagens simbólicas, históricas e pedagógicas abrigadas em

suas formas”52. Neste novo século XXI, que se apresenta com previsões de futuro

pessimistas Nietzsche falava “de uma época de eclipse total de todos os

valores” , com o predomínio da globalização econômica e a imposição sobre

nossa América dos modelos consumistas do Primeiro Mundo, a luta de João Diniz

e dos arquitetos de Belo Horizonte para salvaguardar a própria cultura e

identidade, sem renunciar à dinâmica da vanguarda e o compromisso com a

50 Diniz cumpre com alguns dos princípios essenciais estabelecidos por Roger Scruton para identificar a particularidade da arquitetura contemporânea: Roger Scruton, “Principios arquitectónicos em una edad de nihilismo”, Composición Arquitectónica. Art & Architecture No. 5, Bilbao, fevereiro, 1990, pág. 93. “La primera constante es la escala, la relación del edificio con el hombre de la calle. La fachada debe mirarnos y comunicarse con el observador.” 51 Phyllis Lambert (Edit), Mies in America, Harry N. Abrams Inc. Publishers, Nova York, 2001, pág. 463.52 Carlos Antônio Leite Brandão, “Arquitetura e o seu combate. Aula inaugural do curso de arquitetura na UFMG (1999)”, em Saul Vilela, Arquitetura, Inversus, AP Cultural, Belo Horizonte, 1999, pp. 185-196.

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contemporaneidade, é um exemplo significativo e valioso, para o Brasil e para

toda América Latina.

Roberto Segre

Rio de Janeiro, fevereiro 2002.

Festas do Carnaval

Agradeço á colaboração dos Professores Arqs. e Msc. Andréa Borde e José Barki

do PROURB/FAU/UFRJ pelas sugestões e correções feitas no texto.