robert mandrou

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ROBERT MANDROU: da crise do satanismo o abandono do crime de feitiçaria. MANDROU, Robert (1968). Magistrats et sorciers en France au XVIIe siècle: une analyse de psychologie historique. Paris. Plon. As notas produzidas aqui tem mais do que qualquer outra coisa, um caráter cronológico. Visa recuperar a especificidade e a ordem de eventos que são ordenados desta forma devido à necessidade de detalhar o percurso jurídico que transforma a ordem legal expressa por éditos reais para uma outra, expressa em código. Esta forma de codificação acaba por produzir uma miríade de questões dentre as quais interessam mais do que as demais a extinção da estrutura de apelo que caracterizava a jurisdição da intervenção dos magistrados e, por outro lado, o desfazimento da ordem eclesiástica como fonte de orientação criminológica. Ambos os aspectos dizem respeito, antes de mais nada, aos contornos novos relativos à jurisdição, cuja forma e dinâmica sofrem alterações decisivas durante o reinado de Louis XIV e vêm a definir, por via da forma absolutista que lhe e peculiar, fronteiras rigorosas relativas a fenômenos de imaginação, crença, e religiosidade. Este movimento particular de construção de um Estado absoluto, talhado em dispositivos que determinam o modo de circulação de entes, pessoas e objetos segundo uma fórmula mediadora

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Page 1: Robert Mandrou

ROBERT MANDROU: da crise do satanismo o abandono do crime de

feitiçaria.

MANDROU, Robert (1968). Magistrats et sorciers en France au XVIIe siècle: une

analyse de psychologie historique. Paris. Plon.

As notas produzidas aqui tem mais do que qualquer outra coisa, um

caráter cronológico. Visa recuperar a especificidade e a ordem de eventos que

são ordenados desta forma devido à necessidade de detalhar o percurso jurídico

que transforma a ordem legal expressa por éditos reais para uma outra, expressa

em código. Esta forma de codificação acaba por produzir uma miríade de

questões dentre as quais interessam mais do que as demais a extinção da

estrutura de apelo que caracterizava a jurisdição da intervenção dos magistrados

e, por outro lado, o desfazimento da ordem eclesiástica como fonte de orientação

criminológica. Ambos os aspectos dizem respeito, antes de mais nada, aos

contornos novos relativos à jurisdição, cuja forma e dinâmica sofrem alterações

decisivas durante o reinado de Louis XIV e vêm a definir, por via da forma

absolutista que lhe e peculiar, fronteiras rigorosas relativas a fenômenos de

imaginação, crença, e religiosidade. Este movimento particular de construção de

um Estado absoluto, talhado em dispositivos que determinam o modo de

circulação de entes, pessoas e objetos segundo uma fórmula mediadora presente

em todos os níveis de relacionamento público é, até aonde compreendo, a gênese

de muitos dos problemas que esta pesquisa enfrenta. Até porque, todas as

distinções futuras a serem constituídas com relação ao universo das associações

livres e ao mundo religioso partem, de uma forma geral deste marco-zero que

anula, inclusive qualquer reconhecimento positivo dos objetos de crença.

SÉCULO XVII: demonopatia

Quadro inicial: a crise de três conventos importantes, em Aix, Loudun e Louviers,

“(...) ce sont les trois phases successives d’un même scandale où se trouvent

impliqués nonnes e directeurs de conscience, où se trouvent condamnés des prêtres

Page 2: Robert Mandrou

qui ont suscite contre eux de haines passionnés: Gaufridy, Grandier, Boullé (et

Picard) face à Madeleine Demandols, Jeanne des Anges et Madeleine

Bavent.”(1968, 196)

Os episódios mais importantes desta história do século XVII se dão justamente

nas barbas dos eventos da Fronda, outro fenômeno cuja relevância merece ser

considerada – felizmente, o mesmo Mandrou é responsável por um trabalho

cuidadoso que cerca todo o domínio do absolutismo louisiano.

1- “L’historiographie recente de ces procès, particulièrement celui de Loudun,

serait un travail passionant, et importante, pour éclairir les conceptions des

historiens du XIXe siècle, en ces matières entre toutes délicates, où la

politique, l avie religieuse et mystique et les conceptions juridiques se

trouvent étroitement liées. Cette étude historiograhpique n’entre pas dans

les cadres de ce travail, qui vise reconstituer seulement les prises de

conscience des juristes contemporaines, et non celles de narrateurs qui ont,

plus tard, travaillé sur ces dossiers avec préoccupations diverses: eles

n’avaient parfois qu’un lointain rapport avec l’explication historique

proprement dite. Il convient donc se borner à ces seuls traits

originaux.”(198)

Aix-en-Provence;

Última década do reinado de Henry IV. Entendendo haver um surto de

possessões durante os séculos XVI-XVII, é importante salientar porque os casos

de Aix, Loudun e Louviers merecem destaque. O caso de Aix –en-Provence s e dá

em 1611 parte da acusação de um padre ter envolvido as noviças com o véu do

satanismo exatamente por ter sido enfeitiçado pelo príncipe dos sortilégios

(op.cit., 199). O mesmo padre foi julgado e condenado em terminado em 30 de

abril de 1611 em um processo que durou de fins de fevereiro a fins de abril do

ano em questão. O caso insolúvel de Madeleine Demandols de la Palud serve de

pilar para todos os desdobramentos já descritos. Vale mencionar, e este ponto

não pode ser deixado de lado, que todos os movimentos de cada um dos

Page 3: Robert Mandrou

processos é fortemente acompanhado por padres exorcistas e afins, que são

antes de tudo interessados nos fenômenos de possessão diabólica e que, por

causa de seu interesse ocupam uma posição ambígua na hierarquia da igreja

dado que, pela proximidade que cultivam com o próprio diabo, se tornam

perigosamente especialistas em seus sortilégios a ponto de ser quase que

impossível distinguir o conhecimento sobre o diabo da ação exercida pelo

mesmo. Afinal, como contatar o próprio Satã sem ter a alma tingida por ele?

(VIDE PÁGINAS 232-233).

O caso de Madeleine Demandols dura cinco anos, tendo começado em

1605. A partir de repetidos mal-estares noturnos – sintomatologia clássica de

eventos demoníacos e de feitiçaria , Madeleine é levada às Ursulinas de Aix. Em

1609 Madeleine apresenta, além dos terrores noturnos, alucinações diabólicas e,

às vésperas do Natal ela começa a acusar seu confessor de Marselle. No verão de

1610 a mesma Madeleine é confiada ao irmão Michaelis, notório conhecedor da

atividade de exorcismo, ele mesmo sendo constantemente acusado por

Madeleine quando diante da irmã Ursulina Louise Capeau. As atividades de

exorcismo não se davam em ambientes privados.

O diretor do convento, Louis Gaufridy é formalmente acusado de influir

sobre o estado de saúde de Madeleine, processo que teria se dado desde sua

chegada ao convento, ainda 1606. O mesmo Gaufridy é julgado, condenad e

morto no final de abril do mesmo ano de 1611. Vale notar que a confissão de

Gaufridy, assim como a carta que estabelece os termos da relação com o diabo

tem dois pontos ressaltados por Mandrou. O primeiro ponto diz respeito aos

poderes de encantamento que são transferidos do diabo ao assecla, conferindo

uma certa noção pragmática à justificativa que alguém poderia utilizar ao buscar

o pacto como recurso. Ao mesmo tempo, o método de transferência e, ao mesmo

tempo, o que constitui o pecado que é, à forma de uma leitura tomasina dos

juros, a alienação de algo que não pertence ao agente. Assim Gaufridy enuncia

seu pacto com diabo, por escrito:

“Je, Louis Gaufridy, renonce à tous les biens, tant spiritual que temporels qui

me pourraient être conférés de la part de Dieu, de la vierge Marie, de tous les Saints

et Saintes de Paradis, particulièrement de mon patron saint Jean-Baptiste, saint

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Pierre, saint Paul et saint François et me donne corps et âme à vous Lucifer icy

présent avec tous les biens que je posséderay, excepté la valeur des sacreents pour

le regard de ceux qui les recvront.”(201).

Gaufridy renuncia a algo que ele não pode renunciar pois os bens que ele

abdica são frutos da Providência. E este tópico é central porque reformula o

pecado da renúncia daquilo que, em tese é de Deus. O ato de alienação de si, ou a

alienação de Deus por via da cobrança de juros que é, no mais a cobrança de um

tempo futuro que não pertence ao homem, coincide neste ponto vindo a

constituir uma espécie de nódulo jurídico no qual repousa o problema. O crime

de alienação.

O primeiro desdobramento do caso se dá no isolamento de Madeleine, o

que marca a dimensão do contagio por contingüidade e influência. Seu estatuto

até este ponto é o de vítima, dado que lesionada pela ação maléfica de Gaufridy. É

preciso atentar que, de acordo com o estado de sofrimento de Madeleine, a

remissão ao culto do sabá não está absolutamente descartada, estando na

verdade comprimida ao caso. Afinal, é junto ao sabá que se encontra Gaufridy

como personagem deste processo.

O que faz o exorcismo como procedimento? – “Os exorcismos precedem e então

preparam os procedimentos judiciais que podem, desse então, ser uma formalidade

ordinária ao tempo de colecionar os casos confirmados de exorcismo, de fazer os

feiticeiros e possuídos serem visitados por médicos, e de proceder nos

interrogatórios conduzidos pelos chefes de acusação.”(206). Lido de outra forma,

reúne uma junta de diferentes práticas disciplinares a fim de atestarem com

distanciamento e método o fato ocorrido. Nisto é possível perceber a forma pela

qual um ato jurídico começa a ser preenchido pela sucessão de observações

parciais que compõem um inquérito, propiciando a tomada de decisão a partir da

visão sinótica que o quadro referencial define. A decisão individual com relação

aos rumos do processo é, por fim, decorrente de uma série de mediações que

constitui o processo como tal. O processo é um agenciamento coletivo, um ato de

colagem entre partes discretas que reúnem em seu término a unidade perdida

pela forma do evento sem testemunhas qualificadas. Assim, acaba por ser a

Page 5: Robert Mandrou

qualificação mediada de uma forma imediata. No caso o papel da avaliação de

médicos e juízes implica em, antes de tudo, atestar que o evento tal como

qualificado pela ordem jurídica, de fato aconteceu. Em seguida, tal como é de se

esperar, o processo resolve em identificar não somente a identidade dos

responsáveis como em qualificar o grau e a natureza da responsabilidade, o que

se torna muito perigoso quando o que se atesta é a influência do demônio.

Loudun1;

O caso de Loudun repete o mesmo drama relativo o caso de Aix. Jeane des

Anges acusa Urbain Grandier, cura de Saint-Pierre-du-Marthe. Este, padre de

renome, bom predicador e confessor e figura conhecida, letrado, sofre a acusação

em 1629. Jeanne des Anges fora prioresa de um convento de Ursulinas – mais

uma vez - , membro da nobreza local e parente do cardeal Richelieu, prima de

Sourdis (arcebispo de Bordeaux). O passo dado em direção a Urbain Grandier,

digo, a acusação, assume ares de movimento conspiratório. Entre os anos de

1629 e 1631, após ser levado ao Parlamento de Paris com a finalidade de se

defender diante da justiça, veio a seguir em confrontos com outra personagem de

nome Mignon. É a própria Jeanne des Anges quem se aproxima da figura de

Madeleine Demandols, aproximação que cria, antes de mais nada uma menção

retrospectiva que indica como o caso deve ser interpretado, apontando para um

caso logo anterior, seu precedente.

Louviers; Madeleine Bavent

Da peculiaridade dos casos do século XVII (até 1640)1 Robert Mandrou faz remissão à forma como o caso de Loudun chama a atenção no século XIX, na forma de uma bibliografia psicológica nascente. Os livros de Gabriel Legué, um deles inclusive prefaciado por Jean-Marie Charcot oferecem o binômio documentação ainda não editada com a avaliação do caso desde um outro ponto de vista que não o da identificação do evento. No final das contas, é uma outra junta de avaliação que avalia a junta anterior. Este tipo de livro que trabalha casos de evidências miraculosas de um outro ponto de vista – que é o oposto do ponto de vista do outro – é define em grande parte o tipo de bibliografia que a pesquisa demanda. Comparar diferentes leituras de Joana D’Arc, por exemplo, é mais do que justificável, lembrando do livro de Leon Dennis, por exemplo.

Page 6: Robert Mandrou

“Dans le procédures traditionnelles, la sorcière est, par le pacte, sorcière

jurée ; la possédé n’a rien signé, et n’es donc pas complice. Ce dédoublement des

fonctions est important pour les juges et pour les « experts » qui les assistent,

théologiens ou médecins. L’Église revendiquant les simples possédées et livrant à la

justice séculière les seuls sorciers jurés, la distinction ne pose pas de problèmes, en

droit. Même le redoutable Sprenger distinguait à la fin du XVe siècle les possédées

sorcières, plus communes. Mais les choses se compliquent au début du XVIIe siècle

lorsque les possédées dénoncent non pas une intervention diabolique directe, un

Léviathan ou un Asmodée tentateurs, mais un intercesseur qui assume la charge

d’exercer, à la place des démons envoyés par Satan, l’œuvre maléfique. » (235)

(entre as páginas 246 e 261 existe uma listagem e uma breve análise de outros

casos de contágio demoníaco)

Robert Mandrou ressalta algumas peculiaridades importantes para que os

fenômenos de possessão e contagio sejam devidamente avaliadas. Nisso implica

termos em perspectiva o que há de propriamente singular, segundo a

historiografia do mesmo Mandrou, e ao mesmo tempo chamarmos a atenção

para aquilo que Mandrou não chega a considerar com a devida cautela, a saber,

sobre a permanência dos fenômenos de possessão, assim como seu

desdobramento em outras formas de codificação que ocupam o lugar da

demonologia, esta derrubada pela medicina como forma jurisdicionada de

atuação policial. Mas ainda assim, reconstituir ainda que minimamente os passos

que dão forma a um debate público sobre possessão e seus agentes cumpre uma

etapa fundamental dado que, até onde posso compreender, estaríamos a dois

capítulos da emergência do espiritismo – o capítulo seguinte divide um momento

propriamente religioso em que a querela do jansenismo oferece uma

conformação política dos exercícios polêmicos religiosos também presentes na

questão dos escândalos (o padre Tranquille tem papel na questão Aix-Loudun-

Louvier; e também na segunda geração jansenista, exatamente aquela que

Page 7: Robert Mandrou

culmina nos casos de Saint Médard2), assim como tem um momento

propriamente científico, pautado pela temática da terapêutica secular traçada

pelo advento do mesmerismo e a cura magnética que traça novos problemas a

respeito da agência de forças invisíveis, traduz em novos termos a temática do

animismo como religião natural e instaura dispositivos técnicos de mediação

inéditos à vida moral (sobre isso, vide tanto Robert Darnton quanto Roy Porter).

No caso, a possessão demoníaca deixa de ser fruto de agência direta do

demônio e passa pela mediação de outrem – assim como as mulheres que

figuram nos casos relatados são moças bem nascidas, não pertencendo às classes

populares/servis. Nisso, o assalto satânico aos conventos ursulinos (o caso de

serem devotas de Santa Úrsula também não é examinado pela historiografia por

vezes demasiado abrangente de Mandrou) apresenta algumas personagens e

consequências que apontam para conformações inéditas da relação entre

religião e magistratura. Assim, a emergência da figura do padre-feiticeiro, os

conventos ursulinos livres à intervenção do demônio e a rivalidade entre

clérigos que não somente se entre-acusam como também geram evidências e

conduzem investigações contra inimigos proclamados (caso de Grandier e

Mignon no affaire Ludun) são incorporados como novos eixos problemáticos em

querelas relativas à possessão demoníaca.

Não é por acaso que, ao isolarmos fatore singulares que caracterizam os

processos de exorcismo no XVII, isolamos também outras regularidades

emergentes que acompanham as transformações daquilo que opera como poder,

assim como a situação de novos dispositivos de relação que postos em um

ambiente político diferenciado. Em muitos sentidos, a historiografia que

Mandrou produz fica ao meio do caminho daquela produzida por MacFarlane e

Gauchet, que considero possivelmente duas abordagens metodologicamente

opostas na confecção de uma história política da religião, uma e outra de alto

valor e rendimento para a empresa antropológica. Isto porque Mandrou aponta

para uma alteração na ordem das mentalidades, que não é outra coisa que a

alteração nas operações que condizem ao sentido, da mesma forma que atenta

2 Convém perseguir o padre Tranquille na bibliografia disponível sobre o século XVII-XVIII, especialmente em Catherine Maire, Robert Mandrou e (...).

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para complexos de aliança que fazem da acusação demonologicamente

informada a performance de relações de antagonismo e aliança. Se MacFarlane

está exclusivamente preocupado com relações funcionais de parentesco e

afinidade que conduzem a média das acusações de feitiçaria em Essex num

período logo anterior, aplicando à historiografia um enquadramento muito

característico das etnografias do funcionalismo britânico (notadamente, Evans-

Pritchard), Gauchet proporciona considerações relativas à ontologia cristã com

relação ao divórcio entre o mundo e o extra-mundo, extraindo desdobramentos

nada irrelevantes da dicotomia presente na obra de Louis Dumont,

especialmente na fórmula le christianisme est la religion de la sortie de la religion.

Ocorre que a superinflação dos processos que investigam possessões

demoníacas que levam a longos procedimentos de exorcismo (feitos em público,

então) conduz o sistema demonológico para um ponto em que as divergências

confessionais e doutrinais, assim como a tênue linha que discrimina pessoa e

ordem religiosa, divergência e heresia também constituem o cenário em que o

que está em jogo é tanto a existência do demônio – quando o confronto se dá em

ambientes fora da ordem eclesiástica – quanto a veracidade de um fenômeno em

questão em que está presente uma pessoa que conduz o caso; é o que nos leva,

por exemplo, à necessidade de entender a relação entre Grandier e Mignon, tanto

do ponto de vista de uma religião que, por sair do mundo relega a ao mundo a

mera politica (Gauchet) quanto para a compreensão de que se trata de um jogo

de acusações formais cujo plano ritual de uma atividade política se configura.

Mignon não precisa atestar qualquer relação entre Grandier e Lúcifer,

intimamente, ainda que possa recorrer à acusação para desacreditar um padre

que até o episódio de Loudun era de completa lisura.

Parte do problema que evoca uma ordem epistemológica, a mesma ordem

que culmina em alterações importante em disciplinas exotéricas como a

alquimia, é a resolução pública de problemas, o que demanda inclusiva um novo

passo em direção ao vulgo. Não se trata mais, obviamente de decidir querelas

somente diante de um público especializado, mas criar mecanismos de

correspondência que permitam haver um vocabulário comum e um sistema

objetivo o suficiente para que a variedade de pessoas envolvidas possa não

Page 9: Robert Mandrou

somente acompanhar o debate mas aplicar fórmulas postas em questão. Eis,

segundo Bensaude-Vincent e Stengers, um dos fatores decisivos para a

emergência da química moderna. Não o objeto enquanto matéria, mas um

materialismo racional e comunicável com experimentos reproduzíveis. Esta é,

talvez, a marca de Lavoisier, por exemplo.

De alguma forma, os escândalos de Aix-en-Provene, Loudun e Louviers se

adiantem em um século este passo, submetendo o alvo das perquirições a outras

consequências importantes. Mandrou é taxativo ao informar que uma dos

problemas relativos aos processos de exorcismo, em especial dos três

escândalos, reside no fato de não somente serem públicos mas de se

transformarem em algo como um espetáculo. Coube ao Parlamento de Paris

controlar este tipo de evento, vale dizer. Mas o século em que este tipo de evento

assumiu ares de publicidade permite a criação de uma atmosfera em que cizânias

internas à Igreja Católica e a exposição de indisposições entre protestantes e

católicos sejam debatidos entre as partes, igualmente em público. A indisposição

entre Grandier e Mignon, que traz em seu seio este tipo de carga, ainda envolve

figuras de responsabilidade como seria o próprio cardeal Richelieu que, por fim,

arbitra contra Grandier por ter sido responsabilizado por seu antagonista quanto

à publicação de um panfleto intitulado Cordonnière de Loudun, que atacava a

pessoa do cardeal.

Entenda-se que dos diversos saberes que envolvem a teologia, as

questões relativas à Providência, a Graça e o Mal participam, tal como podemos

entender, da gama entabulada no quadro do mistérios. A resolução de problemas

relativos aos mistérios, e a elaboração de um regime procedimental coletivo que

se comunica em público para fins de averiguação de fenômenos sobrenaturais

abre a guarda para o passo seguinte, a saber, o do abandono do crime de

feitiçaria.

“Les discussions des théologues ne se situent pas sur le plan de la critique

des temoignes et n’envisagent guère les problèmes de procédure: l’emprisionement

de Grandier ches ses ennemis, la présence parmi les exorcistes de clercs poitevins en

procès avec lui pendant les anées précédents, tout cela n’a guère mentionné. Le

problème essential est celui de l’exorcisme, des preuves de la possession. Jusqu’à la

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mort de Grandier, les dénnonciations proferées sans cesse pas les nonnes ont géné

ces hommes d’Église qui n’ignorent pas les décisions recentes de la Faculté de

théologie de Paris condamnant en 1625, 1620 et 1625 la pratique des exorcismes

dénonciateurs: “On ne doit jamais admettre les démons à accuser autrui, moins

encore employer les exorcismes pour connaître les fautes de quelq’un et pour savoir

s’il est magicien”, dissent les théologiens le 16 février 1620.”(269)

(semiótica demonológica: páginas 270-277)

De uma forma geral, o espetáculo do exorcismo participa, com é possível

perceber, de um jogo muito delicado e que contorna algumas das formas da

Reforma e da Contra-Reforma – e, para utilizar o jargão de Catherine Maire, da

Reforma na Contra-Reforma. O jogo de provas e contraprovas que contaminam

as querelas religiosas – e aqui o caso é geral; a querela do jansenismo, por

exemplo, não é outra coisa senão a relação entre jansenismo, jesuítas,

convulcionários, céticos e os poderes ao redor determinando os riscos e a

veracidade dos eventos ao redor de De Paris e Saint-Médard.

(O terceiro incluído: os dois campos da medicina (277-284))

Arbitrar: a intervenção do Parlamento de Paris

Por qual razão seria necessário uma arbitragem a mais nos casos escandalosos

de possessão? Como é possível imaginar, e mesmo no que diz respeito ao caso

jansenista, é porque trata-se de uma querela potencialmente infinita. Não é que

ela não tenha fim, que seja inesgotável ou um problema insolúvel. Mas é que, de

acordo com os termos que ela mesmo promove, ela não tem a necessidade de

atingir um fim dado que é a cizânia que ela mesmo promove corresponde às

finalidades mais bem acabadas dos envolvidos. O que o estado absoluto faz, no

final das contas, é interromper esta relação de conflito caracteristicamente ritual

com a finalidade de impor uma estância média de conciliação forçada – na

configuração da intolerância do soberano definida por Koselleck. O Estado

Absolutista é, no limite, um médium com propriedades muito características.

Page 11: Robert Mandrou

Estas propriedades não impedem, contudo, que o Estado moderno não possa

participar com algum protagonismo da história das religiões de possessão que

articulam, não sem profundas diferenças, outras sortes de mediação que

comparativamente vieram a ser reconhecidas como mediunidade,

O último passo de Mandrou para finalmente dissertar sobre a extinção do crime

de feitiçaria está na decisão tomada pelo Parlamento de Paris em intervir na

questão dos escândalos, entendendo aqui a intervenção dos escândalos em geral.

Vale notar que não é a questão da feitiçaria somente que movimenta as peças ao

redor do caso, mas todo um movimento concêntrico à constituição de um Estado

que arbitre todas as relações públicas. Como podemos notar, a tríade formada

pelos casos de Aix-Loudun-Louviers carrega a chaga inadmissível do conflito

religioso em público, redesenhando aquilo que transtornara a vida europeia nos

últimos séculos, a saber, o conflito religioso. O movimento mais evidente, como

bem ressalta Koselleck está na elaboração de mecanismos de interrupção da

ordem religiosa para fins de constituição de uma nova ordem civil, e

propriamente civil. Nisso, Paris estava já envolta com uma série de discussões,

dentre elas as que configuram a demonologia como solução ou, alternativamente,

como criação de um novo problema.

Os exorcistas das diversas denominações e ordens acabam criando um

empecilho grave para a percepção das atividades diabólicas, assim como para o

julgamento dos casos de feitiçaria. Desde o momento em que Madeleine

Demadols acusa Gaufridy, e a mesma história se repete com Jeanne des Anges e

Urbaine Grandier, o que vemos é um sistema acusatório que em muito excede a

diferença de denominações, vindo a ser produzido em uma rede mais fina e sutil,

interna à própria Igreja Católica, produzindo comunhão de esforços muito

particulares, muito semelhantes às alianças políticas regionais em partidos

políticos brasileiros nos quais há contradições entre escalas de relação;

diretórios nacionais produzem alianças impossíveis em nível regional e vice-

versa. Nisso, um protestante pode estar mais perto de um católico específico da

mesma forma que a Igreja Católica não pode estar em acordo com a Luterana,

por exemplo.

Page 12: Robert Mandrou

Entendendo que a querela religiosa mobiliza todo este tipo de expediente,

cabe entender que o século XVII é também o século em que o argumento

iluminista penetra nas políticas de Estado, vindo a constituir um embaraço a

mais, tanto para a hierarquia do poder eclesiástico, quanto para novas ações

oriundas de denominações protestantes. Isso porque, e já é possível abstrair este

movimento com mais segurança, parece ser impossível entrar em acordo de um

ponto de vista religioso exatamente porque, de um ponto de vista que segue

algumas das linhas principais do Iluminismo, o religioso não parece ser pródigo

na arte da comunicação. Ora fala coisas de mais com poucas palavras, ora não

parece dizer coisa alguma. É muito complexo, muito simplório. Nunca adequado

a uma comunicação que situe os interlocutores no plano de um entendimento

racional e mutualmente consentido. Não é difícil perceber que este modo

comunicativo é decisivo tanto para as novas formas da atividade científica

quanto para as novas práticas econômico-financeiras. E então descobrimos

porque Lavoisier serve de nexo para toda esta história.

O caso é que o domínio público sobre temas os mais diversos incluem a

percepção mais bem acabada dos casos de possessão demoníaca e demonologia

em geral. Cabe perguntar até que ponto os magistrados e o círculo de relações

das quais participavam estavam de fato informados a respeito do tema. Isso

aponta para o problema dos jogos de comunicação que lança bases sobre as

quais decisões são tomadas publicamente, definindo inclusive o que faz um réu,

ou um caso diante o pecúlio público.

“Le monde parlamentaire parisien de l’époque, conseillers, présidents, avocats, est

intimement mêlé à l avie “académique”: il n’y a pas de salon scientifique parisien

dans lequel les magistrats n’aient leurs entrées, ne participent à ces réunions,

hebdomadaires le plus solventes, quotidiennes pour quelques-uns, comme les

Dupuy, où se discutent tous les sujets de l’actualité, littérraire, scientifique, vois

politique.”(p.316)

sobre médicos e parlamentares; sobre teólogos e parlamentares; Ancien Régime

francês:

Page 13: Robert Mandrou

É mais ou menos óbvio que estudantes de teologia na Sorbonne tenham criado

interesse em casos como o de Loudun dado a durabilidade do processo do qual,

inclusive alguns participaram (como André du Val) . Assim, não há muito o que

anotar no que diz respeito ao que produziram como novidade. Estes mesmos

teólogos que circulavam nos mesmos círculos que parlamentares – que

cumpriam a função judiciária, vale notar – fizeram somente estudar e buscar

sinais da atividade demoníaca nos casos em questão. Como é reconhecido pela

bibliografai a respeito, ressaltaram exatamente a forte impressão e a veracidade

inquestionável do caso de Loudun, justamente o caso com implicações políticas

regionais mais delicadas. Ainda assim, a forma pela qual estes estudiosos se

portaram acrescentaram uma postura nova aos hábitos do julgamento de casos

relativos à feitiçaria: a cautela. Isso porque a novidade dos três escândalos do

século XVII implica na transformação do sistema de possessão, alternando a

relação diabólica direta para com o feiticeiro ou feiticeira, para uma relação

mediada em que pesasse a acusação promovida por uma vítima da sedução do

feiticeiro. O fato de haver um elemento a mais de acusação, de uma vítima

possuída cuja possessão é intermediada por alguém também possuído atuando

por contágio evidencia a delicadeza do processo que tem, por fim, uma

sintomatologia delicada, segundo vemos na síntese da medicina libertina da

época:

“Au total, sur les dix indices choisis pas le clerc nîmois, aucun n’est donné par le

médecins comme “marque infaillible” et valable: les deux seuls pour lesquels ils

admettraient une intervention diabolique sont les don des langues et le rejet de

produits avalés, dans certaines conditions bien définies. Tout le reste se réduit à un

“effet naturel”, ou bien une définition de tempérament; rien qui vaille comme

preuve de la présence diabolique. Donc tout l’opposé de ce qu’affirment à la même

époque les médecins “possessionistes” multipliant les “preuves” du caractère

surnaturel présenté par ces phénomènes.”(pg. 329)

Interessante ver que o único sintoma levado a sério é o mesmo que constitui o

ato pentecostal por excelência. A ênfase no universo da comunicação oral como

Page 14: Robert Mandrou

definidor da vida da religião da era moderna não parece ser, por fim, um engodo.

Ao menos não se levarmos em conta esta “ante-sala” da modernidade que é o

absolutismo. Ao mesmo tempo a contraposição entre possessionistas e libertinos

evoca a necessidade de contrabalancear o jogo entre os fenômenos naturais e os

sobrenaturais – sendo notoriamente sobrenatural falar uma língua que é

impossível ter aprendido. Uma vez que esteja posto à mesa a qualificação do

evento segundo sua natureza ou sobrenatureza, entra em cena a série de

problemas relativos à qualificação da observação dos fenômenos de possessão, o

que cria um outro tipo de problema. Nisso, a regularidade de elementos

contraposto à raridade do evento demoníaco, assim como a busca de constantes

que transponham o evento da possessão permite que o mesmo seja comparado

com outra sorte de sofrimentos, como a melancolia e, posteriormente, a histeria.

A escala da comparação, uma vez alterada, parece reforçar não somente a

raridade dos fenômenos que de fato demandam exorcismo como diminuem

fortemente o repertório reconhecido como diabólico. De uma forma ou de outra,

trata-se de uma vitória do Iluminismo sobre a ordem eclesiástica, o que em nada

nos diz se esta é uma vitória ou uma derrota do diabo...

(VIDE HUME SOBRE OS MILAGRES)

lista de libertinos interessantes:

Cyrano de Bergerac

Guy Patin

SOBRE A NOVA JURISPRUDÊNCIA FRANCESA – 1640 em diante; o Parlamento

de Paris e a constituição de uma nova ordem jurídica.

Marcas substantivas, ainda em 1624: apelo automático em julgamentos de

feitiçaria e proibição de ordálios de quaisquer formas; atenuação das penas;

sanção contra juízes subalternos que viessem a violar a posição assumida pelo

Parlamento de Paris; cada uma dessas posturas que são traduzidas como forma

jurídica – vale o esforço de definir o que viria a ser uma forma jurídica e, quando

ela passa de éditos para o sistema de código pleno, pois são duas formas

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diferentes – daquilo que virá a ser o modo de centralização da administração, ou

então o que pode ser compreendido como governo.

Mas o que é mais importante, e é a razão de ser destas notas, é a reedição de um

velho problema, a saber, o que fazer com a feitiçaria que para além da questão

demoníaca, traz consigo outra carga trazida à tona pela historiografia de Carlo

Ginzburg: as práticas de possessão que ele mesmo chama de xamanismo

euroasiático que, ao menos desde a alta idade média opera como uma questão

que transita para além da questão do diabo; ou a o diabo como questão é

também outra coisa.

Mas no que diz respeito às formas jurídicas, cabe lembrar que não operam como

mera fala, como simbolismo, ou mesmo no plano das idéias – coisa que, custo

acreditar que tenha de fato merecido atenção para além da má vulgarização do

platonismo. No caso, a discussão acerca dos conceitos transita em grande parte

na criação de sentido, polemização e em grande medida, orientação. Conceitos

que ordenam a forma pública da esfera pública, assim como comunica suas

decisões podem sofrer desdobramentos outros, como se dá no vínculo entre

direito criminal e atividade científica moderna na produção de um código

específico de um sistema evidenciário. E é este movimento que conecta, de forma

indissociável, quero crer, os movimentos iniciados no seio do absolutismo e algo

que veio ser de alguma forma banal, ou de menor repercussão: o procès des

spirites.

“La délimitation exacte qui disqualifie le crime et le réduit peu à peu au simple délit

commis par les escrocs, charlatans ou diseurs de bonne aventure, s’est faite

lentement, pêniblement même: dans la première moitié du XVIIIe siècle, bien des

polygraphes savants discutent encore de toutes ces questions, pillant Lancre,

Boguet et Bodin, pour démontrer l’erreur des magistrats; pourtant faux sorciers,

charlatans et empoisonneurs, derniers héritiers des suppôts de Satan, ne

répresentent plus que les traces effacées d’une ancienne tradition définitiveemnte

reniée par la magistrature. “(368)

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A marca dos surtos do segundo cinquênio do século XVII, contudo, não diz

respeito tanto às possessões em massa quanto diz respeito a um processo

acusatório que reproduz a novidade dos processos de Aix-Loudun-Louviers: a

intermediação possessora, isto é, de que o médium do diabo opera em seu ugar,

sendo ele um feiticeiro, um participante de algum culto do sabá.

SURTO DE 1655-1660 traz consigo um outro problema que diz respeito à

ordem jurisdicional das províncias. Ainda que estivessem de alguma forma

cientes das decisões e dos mandatos emitidos pelo Parlamento de Paris,

especialmente no que dizia respeito à lenta abolição do acolhimento do crime de

feitiçaria aliada aos casos de possessão, a relação entre parlamentos merece

atenção exatamente porque é a autonomia da decisão concernente à existência e

modalidade de malefícios que a constitui. Assim, é entre a aceitação e a

resistência ao que veio a ser decidido em Paris que o jogo se dá, ao mesmo tempo

em que a Coroa começa a se mover para desenhar o ato centralista definitivo

com relação ao que virá a ser o poder judiciário: a elaboração de um código que

presida todas as tomadas de decisão, todos os julgamentos feitos em solo francês,

violando de vez a forte diferenciação da dinâmica da vida nas províncias. Vale

lembrar o quanto a Revolução Francesa ampliará o modelo jurídico, atingindo

também a linguagem, a política e a economia.

Estatística aproximada dos casos em que houve absolvição em maior número

que de condenações: Pg. 296-397