robert smithson

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Tatiana da Costa Martins ROBERT SMITHSON: “... a terra, sujeita a cataclismas, é uma mestra cruel...” TESE DE DOUTORADO Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História. Orientadora: Profª. Cecília Martins de Mello Rio de Janeiro Junho de 2009

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Terra Sujeita a Cataclismas Uma Mestra Cruel

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Tatiana da Costa Martins

ROBERT SMITHSON:

“... a terra, sujeita a cataclismas, é uma mestra cruel...”

TESE DE DOUTORADO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História.

Orientadora: Profª. Cecília Martins de Mello

Rio de Janeiro

Junho de 2009

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PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510835/CA

Tatiana da Costa Martins

ROBERT SMITHSON: “... a terra, sujeita a cataclismas, é uma mestra cruel...”

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª Cecília Martins de Mello Orientadora

Departamento de História PUC-Rio

Profª Leila Maria Brasil Danziger

Departamento de Teoria e História da Arte Instituto de Artes

UERJ

Profª Maria José Cardoso Lemos Departamento de Letras

UERJ

Prof. Ronaldo Brito Fernandes Departamento de História

PUC-Rio

Prof. João Masao Kamita Departamento de História

PUC-Rio

Prof. Nizar Messari Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais

PUC-Rio

Rio de Janeiro, 02 de junho de 2009.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Tatiana da Costa Martins

Graduada em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (1997) com especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil (1999) e mestrado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2002). Tem experiência na área de estética, história, teoria e crítica de arte, e museologia (patrimônio, conservação e restauração).

Ficha Catalográfica

CDD: 900

Martins, Tatiana da Costa Robert Smithson: “...a terra, sujeita a

cataclismas, é uma mestra cruel...” / Tatiana da Costa Martins ; orientadora: Cecília Martins de Mello. – 2009. 288 f. : il. : 30 cm Tese (Doutorado em História)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Robert Smithson. 4. Arte contemporânea americana. 5. Land art. 6. Escritos de artista. I. Mello, Cecília Martins de. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

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Agradecimentos

Nesse processo longo e intenso, não estive sozinha e pude contar com o

apoio de pessoas essenciais. Primeiro, agradeço a orientação da professora

Cecília Cotrim, que imersa no tema, contribuiu imensamente no desenvolvimento

e aprofundamento do trabalho. Da mesma forma, as conversas com meu co-tutor

Gilles Tiberghien foram indispensáveis para a tese. Guardo, ainda, um profundo

respeito e admiração pelo querido professor José Thomaz Brum que participou

ativamente da minha formação e que, em cada conversa, compartilhou

generosamente sua profunda erudição.

Sem o apoio da minha família seria impossível a realização desse trabalho.

Assim, para meus queridos: Maria, Cristóvão e Tomás, meu respeito e afeto.

Ao departamento de História da PUC, do qual faço parte já há alguns anos,

agradeço a atenção da Edna, Cleusa, Claudio, Moisés e Anair, sempre dipostos a

ajudar. Aos professores pelo empenho em sala de aula que certamente garante

uma formação de qualidade e à Coordenação que permite que tudo isso se realize.

Aos amigos que ajudaram nos momentos de desespero e de alegria, com

dicas, sugestões e amizade, naturalmente. São eles, os cronópios Sergio, Ana, Gê,

Jafet, Silas e Júlia. Agradeço a Ricardo Senra que esteve presente nos momentos

difíceis sempre pronto a ajudar.

Por fim, o inestimável apoio do CNPq e da CAPES, sem o qual este

trabalho não seria possível.

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Resumo

Martins, Tatiana da Costa; Mello, Cecília Martins de. Robert Simthson: “... a Terra, sujeira a cataclismas, é uma mestra cruel...”. Rio de Janeiro, 2009. 288p. Tese de Doutorado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Robert Smithson, artista americano da Land Art, procura ampliar seu

campo de atuação cultural, para isso, o artista atua no limite entre os meios

artísticos. Suas ações - nas quais o indissolúvel vínculo entre matéria e mente

seria o vórtice engendrador - promovem fraturas, seja no universo da arte, seja no

correspondente mundo, que permitem a eclosão das suas obras poéticas e seus

jogos artísticos. O artista não privilegia meio algum de atuação, contudo, fabula o

panorama zero - território fictício das possibilidades plásticas – a partir do qual

reformula imaginativamente tempo e natureza. Em seus textos, Robert Smithson

evidencia outros nexos para o fazer artístico – evidentemente gerando ainda o

desvio na circulação da produção - e parte para assimilação irrestrita de seus

dispositivos operatórios e sua transitividade: site e non-site, dialética entrópica,

atopia, escala, cristais inorgânicos, espelhos, mapas, labirintos, deslocamento,

materialidade, paisagem, deriva e, finalmente, a escrita. Todavia, tais elementos

não são fortuitos; eles transitam, grosso modo, entre a qualidade da atualidade em

arte – por constante tensão produtora - do circuito artístico e as correntes re-

vivenciadas, paradoxalmente pelo artista, dos romantismos, o Alemão, poético e

filosófico de élan verbal; e o sublime, a experiência da formação da cultura

americana.

Palavras-chave:

Robert Smithson; Arte Contemporânea Americana; Land Art; Escritos de

Artista.

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Résumé

Martins, Tatiana da Costa; Mello, Cecília Martins de. Robert Simthson: “... la Terre, sujet aux cataclysmes, c’est une master cruelle...”. Rio de Janeiro, 2009. 288p. Thèse de Doctorat – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Robert Smithson, artiste américain du Land Art, cherche élargir son

champs d’actuation cuturelle, ainsi, l’artiste joue sur le limite entre les moyens

artistiques. Ses actions – dans lequelles il y avait l’indissoluble lien entre la

matière et l’esprit comme tourbillion générateur – font avancer des fractures, soit

dans l’universe de l’art, soit dans le monde correspondant, qui permetent

d’éclosion de ses ouevres poétiques et ses jeus artistiques. L’artiste ne valorise

aucun moyen d’actuation, pourtant, il imagine le panorame zero – un territoire

fictif de les possibilités plastiques – apartir duquel reformule imaginement du

temps et de la nature. Dans ses articles, Robert Smithson manifeste des autres sens

pour le faire artistique – évidement il y gère un genre de detourne sur la

circulation de la production – et il pars encore à l’illimitée assimilation de ses

dispositives opératoires au-délà de sa transitivité : site et nonsite, dialetique

entropique, atopie, échelle, cristaux inorganiques, miroirs, chartes, dédales,

deplacement, materialité, paysage, dérive et, à la fin, l’écriture. Toutefois, ceux

éléments ne sont pas aléatoires ; ils y traversent, en gross, la qualité de l’actualité

dans l’art – à travers d’une tension productrice – du circuit artistique et les

mouvements révécus, paradoxalment par Smithson, du romantismes, l’allemand,

poétique et philosophique d’élan verbale ; et le sublime, comme experience de la

formation de la culture américaine.

Mots-Clef: Robert Smithson; Art Contemporain Americain; Land Art; Écrits d’Artist.

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Sumário 1.Introdução

As condições que prevalecem na psique de uma pessoa afetam a sua maneira de observar a arte. 12

2. As superfícies da terra e as ficções da mente têm um modo de se desintegrar em regiões distintas da arte. 23 2.1. Sedimentação da mente 23 2.2. O deslocamento do Ofício – e queda do ateliê. 29 2.3 . A obra de arte como desenvolvimento contínuo em vez de produtos concluídos. 38 2.4. Linguagem para ser olhada para/e/ou coisas para serem lidas. 52 2.5. Tudo deve voltar para a poeira. A poeira da lua, talvez. 60

2.6. Arte não é feita dessa maneira. Ela é muito mais rigorosa! 89

3. Strata: uma ficção geofotográfica 108 3.1. Se você está imerso numa inundação você poderá se afundar. 108 3.2. Este tipo de efeito dominó de todas as permutações da noção de fluxo, de queda, de dilúvio 115 3.3. O passeio sem história tornou-se um sacrifício da matéria que tem como efeito uma descontinuidade do ser, um mundo de calmo delírio. 135 3.4. É a dimensão da ausência que resta a descobrir. 163

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3.5. A Iconografia da Desolação. 185 4 - Quando uma coisa é vista através da consciência da temporalidade, ela é transformada em algo que não é nada. 194 4.1. Spiral Jetty. 194 4.2. As ficções erigidas na torrente desgastada do tempo são aptas para submergir a qualquer momento. 205 4.3. Valor do Tempo. 221 4.4. Um mapa é um sistema mental feito de malhas, latitudes e longitudes. 239 4.5. A ruína das fronteiras anteriores. 245 4.6. A poesia é sempre uma linguagem agonizante, mas nunca uma linguagem morta. 259

5. Considerações Finais

Uma infinidade de superfícies espalha-se em todas as direções. 270

6. Referências Bibliográficas. 276

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Lista de Ilustrações Figura 1 - Heap of Language. 18 Figura 2 – Cryosphere. 18 Figura 3 - Incidents of Mirror-travel in the Yucatán. 24 Figura 4 - Projeto - Airport Terminal. 34 Figura 5 - Projeto - Airport Terminal. 34 Figura 6 – Um passeio pelos monumentos de Passaic 57 Figura 7 - Enantiomorphics Chambers. 77 Figura 8 - Modelo - Enantiomorphics Chambers. 77 Figura 9 – Modelo - Enantiomorphics Chambers. 77 Figura 10 - Partially Buried Woodshed. 123 Figura 11 - Asphalt Rundown. 125 Figura 12 - Caixa de Areia - A Tour of the Monuments of Passaic. 126 Figura 13 - Diagrama - Enantiomorphics Chambers. 128 Figura 14 - Robert Smithson – Ateliê. 143 Figura 15 - Creep Jesus – Robert Smithson. 144 Figura 16 - Foto - Partially Buried Woodshed. 150 Figura 17 - Hütte im Schnee – Caspar David Friedrich. 151 Figura 18 - Blind in the Valley of the Suicides – Robert Smithson. 155 Figura 19 - Eichbaum im Schnee – Caspar David Friedrich. 156 Figura 20 - Leaning Strata – Robert Smithson. 157 Figura 21 - Das Eismeer – Caspar David Friedrich. 157 Figura 22 - Kreidefelsen auf Rügen – Caspar David Friedrich. 158 Figura 23 – Gyrostasis - Robert Smithson. 158 Figura 24 – Alogon. 160

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Figura 25 – Plunge. 160 Figura 26 - Geognostic Landscape: Katzenköpfe near Zittau - Carl Gustav Carus. 160 Figura 27 - Incidents of Mirror-Travel in the Yucatan. 170 Figura 28 - It’s King Kong. 189 Figura 29 - St. John in the desert. 190 Figura 30 - Feet of the Christ. 191 Figura 31 – Foto - Robert Smithson em Miami Islet. 193 Figura 32 – Fotos - Spiral Jetty – Construção. 196

Figura 33 – Desenho - Spiral Jetty. 199 Figura 34 – Foto - Spiral Jetty. 199

Figura 35 - Esboço para James Joyce - Constantin Brancusi. 202 Figura 36 – Desenho - Espirais - Robert Smithson. 202 Figura 37 – Diagrama - Surd View of the Afternoon. 205 Figura 38 - Broken Circle – Spiral Hill 2008. (foto: Tatiana da Costa Martins) 208 Figura 39 - Broken Circle – Spiral Hill 2008. (foto: Tatiana da Costa Martins) 209 Figura 40 - Broken Circle - Spiral Hill – 1971. 212 Figura 41 - Broken Circle - Spiral Hill – 2008. (foto: Tatiana da Costa Martins) 213 Figura 42 – Desenho - Broken Circle - Spiral Hill. 215 Figura 43 - Esquema – enantiamorphics. 216

Figura 44 - Fotos - Hotel Palenque. 224

Figura 45 - Spiral Jetty – stills. 228 Figura 46 – The Eliminator. 234 Figura 47 – Desenho - The Museum of the Void. 237 Figura 48 – Foto - Hypothetical Continent in Shells: Lemuria. 239

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Figura 49 – Diagrama - Hypothetical Continent of Lemuria. 239 Figura 50 – Estudo para Time Pocket - Dennis Oppenheim. 243

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1 Introdução: As condições que prevalecem na psique de uma pessoa afetam a sua maneira de observar a arte.1

Livros empilhados, bramidos de dinossauros, vertiginosas espirais,

resíduos terrestres, são algumas imagens do universo de Robert

Smithson, artista americano da Land Art. Em sua curtíssima carreira, o

artista produz a partir da tensão entre o contato e a desconexão dos

diversos elementos que compõem seu imaginário. Evidentemente, não

são imagens representativas de algo externo a elas próprias; elas operam

como dispositivos poéticos, ou seja, delas eclodem as inúmeras relações

decorrentes na arte e no mundo. O mundo se desdobra em arte e

igualmente a arte envolve o mundo. Estão, ambos, irreversivelmente

entrelaçados. Entendimento que leva o artista a revelar as possibilidades

do outro fazer para a arte, contanto que, estejam envoltas no halo

ficcional. A experiência da ficção conduz o artista na especulação do

território nulo – panorama zero: misto de resíduos literais (materiais) e

fragmentos dos pensamentos, teorias, literatura, etc. O ato de esvaziar os

excessos discursivos atrelados aos textos seria para chamar a atenção

para o excesso de categorizações - sejam historiográficas, sejam

artísticas, sejam epistemológicas. O panorama zero seria a condição para

o fomento da criação poética a partir dos resíduos, igualmente non-

senses, das coisas no mundo. Não se trata apenas de um local real e

físico, Smithson estende a territorialidade nula para as operações da

mente – os processos cognitivos e imaginativos devem também aderir às

descategorizações. A convergência entre matéria e mente se move

através da experiência da ficção. A imagem da convergência de todas as

coisas seria o anseio do artista pela incerteza, talvez paradoxalmente

ciente da sua condição estranha e fictícia. E esta seria correspondente

com a prosa do escritor argentino Jorge Luis Borges d’A Biblioteca de

Babel:

1 SMITHSON, Robert. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, 2006. p.192.

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Também se esperou então o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verossímel que esses graves mistérios possam explicar-se em palavras: se não bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca produzirá o idioma inaudito que se requer e os vocabulários e gramáticas desse idioma.2

A Biblioteca de Borges é análoga ao Museu de Smithson e, em

ambos, o mundo está contido. As categorias deixam de existir; as coisas

pertencem então à pré-existência que convoca a potência imaginativa

residente na incerta transmutação. Se o lugar de atuação do artista se dá

no panorama zero é porque, após profusa sobreposição de elementos do

mundo e da arte, suas formas se dissolvem, nada devendo restar enfim.

As vigorosas irrupções poéticas do artista americano estão na

espessa e nebulosa composição dos meios artísticos – medium3, por

assim dizer, o indício de sua indeterminação, a partir do qual estabelece

um circuito próprio que se forma para imediatamente desaparecer. Por um

lado, o problema reside na tentativa de descontinuidade do sistema de

arte proposto, grosso modo, pelos artistas dos anos 60 e 70; por outro, faz

parte do entendimento singular de Robert Smithson acerca do mundo que

o atravessa: “Um mundo frágil e fraturado cerca o artista. Organizar essa

confusão de corrosões em padrões, gradações e subdivisões é um

processo estético que mal foi tocado.”4 Certamente, Smithson prefere a

confusão, ou seja, prefere trabalhar ciente da mistura entrópica dos

componentes do mundo, das condições dos homens, do estado da

cultura. Sob esse aspecto, seria possível salientar o propósito da

multiplicidade dos meios produtivos experimentados pelo artista. Às

vezes, parece existir um centro do qual Smithson desdobra seus

trabalhos, curiosamente, esse centro é móvel, inapreensível sobretudo.

Daí, certa configuração diagramática e circular da sua obra cuja maior

preocupação está contida na afirmação: “Não estou interessado em

apresentar o meio pelo meio. Acho que essa é uma fraqueza de vários

trabalhos contemporâneos.”5

O centro que move a idéia da obra, quer dizer, também sua 2 BORGES, J. L. Biblioteca de Babel, 1999. p. 520. 3 A adoção do termo medium consiste na tentativa de diálogo com a crítica de arte que de certo modo rivaliza com a idéia de pureza do suporte plástico. 4 SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, 2006. p.183. 5 SMITHSON, R. Discussão entre Heizer, Oppenheim e Smithson, 2006. p. 280.

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materialidade, assimila os processos de formação dos cristais. Uma vez

aquecido determinado sedimento – areia, terra, metais, etc.-, eclode uma

forma sólida de facetas regulares. Assim, parece ser o procedimento

adotado por Smithson quanto aos meios artísticos – existem idéias,

sensibilidades e experimentações que emanam os mediums, não o seu

reverso. Pela fineza da grafia dos textos até a rudeza das esculturas,

passando pelos incertos caminhos, transita o artista. A consonância entre

os meios de arte escolhidos pelo artista fica explicita na passagem:

Perspectivas paralácticas se introduziram nos novos projetos-de-terra de um modo que é físico e tridimensional. Esse tipo de convergência subverte as superfícies gestálticas e transforma os sites em vastas ilusões. O chão torna-se um mapa.6

A percepção não deveria ser condicionada pelas instituições de

arte – determinação pontual do artista que acaba por colocá-lo em

destaque na crítica da atualidade, -, deve sim ser desigual, desfocada,

elíptica portanto. As esculturas não são objetos isolados, elas passam a

pertencer à compilação do mundo acalentada por Smithson. Tal fato não é

uma novidade trazida pelo artista, existe a proposição da transformação

escorada em certa cronologia da história da arte – calcada, de algum

modo, ao dito determinismo teleológico de modernismo -, mas que não

enfraquece ou subsume a produção do artista. Smithson reconhece os

fluxos que orientam a discussão, nos anos 60, - sobretudo na querela

entre o minimalista Donald Judd e o crítico Michael Fried – mas não se

posiciona programaticamente. Ele deduz do embate a planificação do

território de atuação artística. Ao artista, interessa a relação entre o

museu e seu exterior, pois, no estranhamento do site consiste a

experiência da aventura. O deslocamento passa a ser dispositivo poético

e, o desvio, sua inserção no contra-circuito cultural.

Parte da estratégia de Smithson compõe-se da pulsão pela escrita.

O ato de escrever seria similar à criação de uma escultura ou à filmagem

do processo de construção da obra. Entre a caneta e os instrumentos de

trabalho, a pulsão criadora de um pensamento que procura evidenciar a

6 SMITHSON, R. Uma Sedimentação da mente: projetos de terra, 2006. p. 195.

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matéria bruta:

Um entulho de lógica confronta o observador à medida que ele olha para dentro dos níveis de sedimentações. As grades abstratas contendo a matéria bruta são observadas como algo incompleto, quebrado e espalhado.7

O interesse de Smithson pelo inacabado e fragmentário apóia-se

na noção de entropia. A entropia é revisitada pelo artista de diversas

maneiras. Consiste, primeiramente, na ruptura de sistemas fechados, de

qualquer tipo. Pode ser a erosão de um edifício – o traço-ruína -, pode ser

um tipo de formulação para o panorama zero – onde nada permanece;

porém, reside, na força entrópica, o olhar atento do artista para a

natureza. Buscando desfazer-se dos limites, Smithson sintoniza a

entropia aos produtos de sua poética, isto é, em suas esculturas, escritos,

diagramas e mapas, existem componentes que não podem ser

controlados pelo homem por sua evidente irreversibilidade. A certeza do

retorno impossível às coisas mesmas impulsiona a confecção de

aspectos tratados pelo artista: o posicionamento do artista tangente ao

circuito de arte; a verve literária que mistura proposições e arte; e, por fim,

sua tentativa de descondicionar a percepção a partir do tempo revertido

em escala e, logo após, o desvanecimento da idéia de objeto, de lugar ou

mesmo a passagem da experiência. Todos os aspectos circulam pelo

universo de Smithson e podem ser resumidos em: “(...) se a arte é arte,

deve ter limites (...) Sem apelar para ‘gestalts’ ou ‘antiforma’, ele [non-site]

existe de fato como um fragmento de uma fragmentação maior.”8Na

infinita reverberação dos fragmentos poéticos de Smithson se revela um

mundo cujos limites não existem ou talvez sejam apenas linhas tênues e

porosas.

Os relatos de Smithson narram vivências e experiências recolhidas

ao longo da sua vida. O artista privilegia o universo literário e científico

para desfazer fronteiras que, para ele, insistem em permanecer entre o

mundo e a arte, numa dimensão mais alargada, ou mesmo, entre a dita

especificidade das esferas artísticas. Reconhecer a irreversibilidade das 7 Idid., p. 194. 8 Ibid., p. 195.

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coisas, o coloca em lugar privilegiado para ação. Smithson, ao elaborar

suas notações, intui um universo de afinidades. Dele, estabelece a

atuação labiríntica, uma presença que conserva uma estratégia

correspondente ao puzzle. Talvez, por isso, ao abordar um texto ou

escultura, o espectador é constantemente reenviado para outro lugar, ou

estado estético. Tarefa trabalhosa e estimulante é juntar as peças desse

puzzle artístico. Contudo, há a tentativa, neste trabalho, de reordenar o

conjunto de obras do artista em três núcleos: as condições do contexto

americano de arte; a escrita como pulsão poética das intensidades

contemporâneas; por fim, o vertiginoso percurso do artista na elaboração

de temporalidades.

A irrestrita formação do artista parece ter início no momento em

que percebe a contribuição da memória – não um traço pessoal -, mas

uma espécie de acúmulos de uma experiência fragmentada pelo tempo,

certamente, tratada, pelo artista, como experiência-memória do próprio

mundo. No estado estético, opção do artista, seus atos não estão isolados

das torrentes do mundo: “O corpo todo é sugado para o sedimento

cerebral, onde partículas e fragmentos se fazem conhecer como

consciência sólida.”9. No entanto, Robert Smithson parece se moldar ao

sentido estético de recriação de si, indistintamente, da fabulação das suas

obras. O artista coloca-se fora, distanciado, dos problemas levantados

pelos seus contemporâneos acerca da trajetória do sistema de arte para

mergulhar em sua coleção particular, qual seja, a experiência do mundo.

Desse modo, nesta tese, se procura marcar inicialmente a eclosão do

campo ficcional pelo qual o artista transita livremente. Fórmula que se

funda no desejo do artista em evidenciar suas afinidades e

correspondências com o universo literário, científico, arquitetônico, enfim,

todos os espaços de atuação produtora. O espaço da ficção se torna um

dos lugares de transitividade do artista e do qual irrompem seus meios

artísticos. Convém lembrar, que a possibilidade de eclosão da diversidade

artística possui o inevitável nexo com a historicidade própria da formação

americana – leia-se cultura como auto-descoberta e auto-consciência. A

partir desse ponto, as especulações desenvolvidas nesta tese buscam a 9 Ibid., p. 182 passim.

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origem e as posteriores irrupções no campo artístico. É o momento dos

intercâmbios das matrizes filosóficas – que se fundam também na

literatura – de Ralph Waldo Emerson e John Dewey com as matrizes

literárias americanas que percorrem o romantismo de Edgar Allan Poe até

a Geração Beat de William Burroughs, Jack Kerouac e Allen Ginsberg. A

curiosa homologação entre sublime (transcendentalismo americano) e

pragmatismo confere à cultura americana as bases para a constituição da

arena de atuação plástica e crítica ativa, estabelecida pelos artistas do

Expressionismo Abstrato, especialmente, Jackson Pollock, e os

fundamentais críticos Clement Greenberg e Harold Rosenberg. Ainda, se

concebe o campo estendido do criticismo como abertura para uma

condição pós-medium, problema apontado por Rosalind Krauss, crítica

americana, nos livros L´originalité de l´avant-garde et outres mythes

moderniste – com artigos da década de 70 – e A Voyage on the North

Sea: art in the age of the post-medium condition – escrito no final dos

anos 90 -, com os quais é possível traçar uma malha crítica que perscruta

a relação entre produção artística e os encaminhamentos teóricos do dito

pós-criticismo. A especificidade do site também ganha abrangência e

complexificação e passa a ser questão pontual para geração de críticos,

Miwon Kwon e Brian Holmes e artistas. A orientação do filósofo francês

Gilles Tiberghien permite, por seu profundo envolvimento nos estudos da

Land Art, traçar a relação entre a poética de Smithson e certa

reverberação romântica. Seus livros abordam os nexos da Land Art a

partir do indissolúvel vínculo entre experiência e tempo, bem como,

acentua a relação entre sensível e inteligível que reconhece na cartografia

em seu recente livro Finis Terrae: imaginaires et imaginations

cartographiques, de 2007.

Uma das estratégias de atuação de Smithson provém de aspectos

naturais – ficcionais e reais – que suportam a estrutura do pensamento

voltado para o inorgânico – imagem, dispositivo, materialidade – e daí,

para a seleção de elementos que se situam entre limite e não-limite. São

eles: cristais, mapas e espelhos. Assim, num primeiro momento, é

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Fig. 1. Heap of Language

Fig. 2. Cryosphere

possível associá-los a certo componente formal, isto é, através das suas

formas se deduz um modo de operação: em cada composição, encontra-

se uma lógica, um nexo, para depois, tomá-los em sua literalidade,

indicativo da materialidade embrutecida da natureza e da fluidez de

pensamento.

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Espaço real que se transforma, para Smithson, em espaço

imaginativo. A imaginação, instrumento poético de Smithson,

seguramente, fomenta as incursões nos romantismos – alemão e

americano -, atribuídos, neste trabalho, ao artista. Trata-se pois da

paradoxal re-interpretação romântica, primeiramente, oriunda da

sensibilidade americana, assimilada em sua formação cultural, para,

depois, estabelecer uma orientação pontual que envolve os escritos do

artista matizados, em alguns momentos, pelo corpus textual dos

românticos alemães. A afinidade entre a escrita de Smithson e algumas

passagens do Romantismo Alemão sugere uma produção que ocorre

sobretudo pela mistura das esferas específicas do conhecimento,

inclusive da arte. A pulsão do artista pela escrita pode ser interpretada a

partir da aproximação com os princípios fundamentais do Romantismo

Alemão, principalmente, com os escritos poéticos-filosóficos de Friedrich

Schlegel. Em seus escritos espalham-se os sentidos da comunhão entre

mundo, arte, pensamento, vida, daí, para resvalarem em poética. O

Romantismo Alemão tem como um dos seus fundamentos principais uma

idéia de natureza criadora; ela ganha corpo, confere princípios estéticos e

poéticos. Para Smithson, rochas e palavras entram em disrupção;

induzem um caminho a ser percorrido; formam camadas; geram

intervalos; são sobretudo o mesmo elemento. Smithson permanece, no

decurso de sua produção, atento para as questões que envolvem

natureza e paisagem, termos que, no seu corpo textual, e nos seus

trabalhos se tornam reversíveis. Tal mobilidade do léxico natureza-

paisagem tem como substrato a idéia de entropia. Natureza e paisagem

teriam como condição de existência a transformação material, quer dizer,

nunca deixariam de serem reformuladas, dada sua causalidade

intrínseca, algo que produz de si próprio, como uma experiência que gera

experiência ou linguagem que gera linguagem. A entropia seria o

desgaste, a perda, o desdobramento, o transbordamento, no fundo,

possibilidade da prática artística. Smithson, em diversos momentos da

sua produção, compõe a partir da poética entrópica, conferindo às obras

um contorno perceptivo oblíquo, quer dizer, destituído de começo ou fim.

A sintonia entre o Romantismo e a produção de Smithson estaria

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no apreço pela região situada entre limites; para o movimento alemão, a

fusão entre poética e reflexão; para Smithson, a reversibilidade entre

mente e matéria. A natureza, apresentada pelo viés entrópico para o

americano, surgiria para os românticos como reenvio ao projeto originário

– lugar do engendramento de todas as experiências possíveis. Contudo,

Smithson, em seu constante estado criador, parodia o sentimento

romântico do pitoresco. Segundo o filósofo francês Gilles Tiberghien, tal

reformulação garante a atualidade do sentimento que passa a ser

dispositivo plástico e não uma imagem a ser contemplada. O pitoresco

está assimilado ao potente desdobrar da natureza e se comunica com

outro sentimento romântico que circula no universo do artista: o sublime.

As atualizações românticas são, grosso modo, parte das

engrenagens dos dispositivos de operação do artista. No manuseio da

terra, em sua bruta reconstrução entrópica, consistiria o pitoresco. O

deslocamento, a deriva, a escala, pertenceriam ao sublime. O livro A

Angústia da Influência, do crítico literário Harold Bloom, revela, em certo

sentido, os mecanismos de condução da influência que subsistem para

qualquer poeta. Não seria diferente para Robert Smithson, envolto no

denso campo literário que procura estabelecer as afinidades que

condicionam suas próprias experiências. Bloom sugere que a intrincada

rede de relações intra-poéticas, o anseio pelo prazer não exclui o

desprazer da angústia produtora:

Os poemas, como a crítica sempre nos assegurou, devem proporcionar prazer – apesar da insistência de tradições inteiras de poesia, e do romantismo em particular – não são criados por prazer, e sim pelo desprazer de uma situação perigosa, a situação de angústia da qual a dor da influência faz tão grande parte.10

Essa passagem de Bloom assemelha-se ao resíduo-sublime das

aventuras de Smithson. O risco e a certeza do descentramento são

pedras de toque da reavaliação dos romantismos em Smithson. Peça do

puzzle, o sublime, equaciona-se ao dimensionamento da escala que,

evidentemente, não prescinde do tempo. Sem dúvida, o artista se

10 BLOOM, H.. A Angústia da Influência. p. 106.

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sensibiliza com a questão do tempo – ainda jovem, construíra um museu

em seu porão -, de outro modo não seria possível o tratamento denso e

pontual da temporalidade nas formulações de Smithson:

Quanto mais fundo um artista mergulha na torrente do tempo, mais este se torna esquecimento; por isso o artista tem que permanecer perto das superfícies temporais. Muitos gostariam de esquecer o tempo por inteiro, porque este oculta o ‘princípio de morte’ (todo artista autêntico sabe disso). Flutuando nesse rio temporal estão os remanescentes da história da arte, embora o ‘presente’ não possa sustentar as culturas da Europa, ou até mesmo as civilizações arcaicas ou primitivas; em vez disso, ele tem que explorar a mente pré e pós-histórica; tem que entrar em lugares onde futuros remotos encontram passados remotos.11

O remoto e distante passado e futuro, muitas vezes, fazem o artista

derrapar durante seus deslocamentos. Nesses momentos precisos,

explodem núcleos perceptivos, diversos, e portanto descondicionados da

lógica projetiva. A escala seria a desmedida do mínimo grão de areia ou

da máxima estratosfera igualmente. Manuseando todos esses

componentes, Smithson deixa um lastro na arte ao qual vários críticos e

teóricos da arte se endereçam. Atualmente, se avalia suas incursões no

universo artístico como indício inicial da crítica institucional. Porém,

indiscutivelmente, suas proposições paródicas sobre o meio de arte

permitem tal convocação combativa, vista pelos críticos da atualidade.

Convém então reforçar o distanciamento do artista que paradoxalmente

se adere, posteriormente, à tessitura do universo crítico:

O Hum

Descrições dos trabalhos de arte muitas vezes são extraviadas. Palavras e números são fugazes como o infinito. Realmente, prefiro te dizer menos e menos sobre a arte na sua frente. Talvez um ininterrupto hum poderia ser a melhor descrição da arte que você vê. Cantarei agora um hum de minha própria composição: HMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM (Os hums dos artistas com duração de um profundo sopro) Um determinado significado não é um tipo de significado que procuro, talvez, significados nem sejam totalmente necessários, talvez os significados deveriam perder-se e não serem encontrados. Contudo, o desaparecimento da significância, suponho, é encontrado através da significância. Pelo menos, para aqueles que querem saber mais sobre qual tipo de

11 Ibid., p.197.

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desaparecimento, sugiro que vá até a pequena sala à sua esquerda, onde você poderá encontrar uma ‘descrição parcial’ da minha peça-espelho [mirror piece] 12

12 SMITHSON, R. The Hum. p.328.

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2 As superfícies da terra e as ficções da mente têm um modo de se desintegrar em regiões distintas da arte12 2.1 Sedimentação da mente13

Ce qui me semble beau, ce que je voudrais faire, c’est un livre sur rien, un livre sans attache extérieure, qui se tiendrait de lui-même par la force interne de son style, comme la terre sans être souteneu se tient en l’air, un livre qui n’aurait presque pas de sujet ou du moins où le sujet serait presque invisible, si cela se peut14

Gustav Flaubert

A literatura só poderia ser concebida em sua integralidade essencial a partir da experiência que lhe retira as condições usuais de possibilidade.

Maurice Blanchot15

Robert Smithson, artista americano relacionado à Land Art,

trabalha intensamente a transitividade dos elementos da sua produção,

quais sejam, mapas, cristais, espelhos, terra, palavras. Tais elementos do

seu universo poético tendem a convergir os aspectos mentais e o mundo

físico. Smithson segue a estratégia de separar matéria e mente para

apontá-las posteriormente como pares que ora, alternam-se, ora, fundem-

se em sua produção. O ato de escrever, predominante em sua produção,

seria similar à ação interna própria dos elementos naturais que ganha

densa reflexão e tratamento artístico a partir da noção de entropia,

amplamente, trabalhada pelo artista. O horizonte da equivalência entre

real e fictício desenrola-se no mundo, comporta-se como arte. Obras,

filmes e escrita se desdobram em experiências sensíveis na complexa

rede que o artista estabelece entre mundo, arte, vida:

12SMITHSON, R. Uma Sedimentação da mente: projetos de terra, p. 182. 13 Idid., p. 190. 14 FLAUBERT, G. Correspondence, p. 31. 15 BLANCHOT, M. O livro por vir, p.341.

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Supõe-se que a arte esteja em algum plano eterno, livre das experiências do mundo. Eu estou mais interessado nessas experiências, não como uma refutação da arte, mas como parte delas ou entrelaçado a elas, ou seja, todos estes fatores que dela vêm.16

Fig. 3. Incidents of Mirror-travel in the Yucatán

Leitor voraz, escritor competente, Smithson circula por amplo

universo intelectual, das teorias científicas à literatura, para formar um

corpo somente: a ficção. O entrelace das alusões concretas e

imaginativas resulta na produção de processos plásticos e efeitos 16SMITHSON, R. Conversation with Robert Smithson, p.262.

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estéticos. O solo comum da arte e do mundo permite ao artista grande

mobilidade. O deslocamento produtivo – gerado pela relativa indistinção

entre arte e mundo - escora-se na metamorfose plástica compartilhada

com suas criações e noções sobre estética, percepção, natureza,

paisagem. O ficcional opera portanto como matéria intelectual e plástica,

sem dúvida alguma, ligado à sua poética. Smithson estabelece

certamente um uso expansivo da ficção e, ao mesmo tempo, tenta

desfazer qualquer tipo de limitação, quer seja temporal ou espacial:

Sobre a escrita. Estou usando um conjunto de percepções que tem sido traduzido em códigos ou hieróglifos totêmicos. Daí, são traduzidos em termos da minha própria psique de modo que não apareçam como mito, mas, sim, como ficção. O motivo para que pareça convincente é porque estou sempre identificando seu uso ficcional para que a materialidade da escrita surja. Por isso, a escrita costuma se comunicar graficamente.17

Seus escritos compõem-se de massa densa, volumosa e

consistente. Essa imagem eclode a partir da dupla acepção dos seus

textos: por um lado, eles guardam o tom fluido do artista, indício da

efemeridade que flerta com o desvanecimento, por outro, configuram-se

como corpus: tais como esculturas inorgânicas que se apresentam como

sólidos sedimentos materiais. São artigos que fundem palavra e matéria.

Heap of Language, trabalho de 1967, agrega o múltiplo sentido da escrita:

texto-obra, escultura gráfica, papel sedimentado, principalmente por

corporificar reflexões acerca da arte que, em ato, se confundem com o

mundo. Tal transposição, constantemente assinalada nos textos, se faz na

configuração da sua linguagem – todos os aspectos da sua produção -

em natureza: “Essa linguagem desconfortável da fragmentação não

oferece nenhuma solução gestalt fácil; as certezas do discurso didático

são arrastadas na erosão do princípio poético.”18 para inferir em seguida a

necessidade de “(...) fabricar nossas regras à medida que avançamos

pelas avalanches da linguagem e sobre os terraços da crítica.”19 Entre

escritos, trabalhos e filmes, Smithson propõe diversos cruzamentos 17SMITHSON, R.. Earth, p.187. 18SMITHSON, R.. Uma Sedimentação da mente: projetos de terra, p. 191. 19 Ibid., p. 192.

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reflexivos: história e vazio, eterno e orgânico, infinito e atual, labirinto e

cosmos, escala e arte, distância e finito, ficção e irrealidade. Noções que

se aprofundam ganhando o contorno e a forma de uma dialética

entrópica, quer dizer, dialogam entre si para resvalarem em categorias

indistintas e incertas. A dialética permeia as reflexões de Smithson que se

preocupa em defini-la como:

A dialética não é simplesmente uma fórmula conceitual tese-antítese-síntese para sempre selada na mente, mas um desevolvimento em curso contínuo. Como a natureza humana, as forças da natureza não se conformam jamais a nossas idéias, a nossa filosofia ou a nossas crenças religiosas, etc.(...) Dialética pode ser vista como a relação entre a concha e o oceano.20

Premissa valiosa para Smithson, a dialética21, tal como se oferece

em sua produção, não traz o sentido de superação, possui, isto sim, a

idéia de mistura, liga, mescla. Resultado fundamental, pois, na sua

poética, a experimentação da arte e do mundo deixa de ser disjuntiva –

vivenciar um ou outro – e passa a ser o imenso e complexo universo de

atos produtivos e imaginativos. O método dialético entrópico - acepção do

artista - permite, no primeiro movimento, acentuar a dualidade das coisas,

com intuito de marcar uma idéia, uma noção ou um objeto a serem

colocados em diálogo. A dialética entrópica parece ser o dispositivo com o

qual Smithson acentua a fusão entre arte e mundo. Partindo da

consciência do movimento interno às transformações naturais e humanas,

Smithson procura também na literatura o desdobramento entrópico:

Humpty Dumpty, personagem de Lewis Carroll, a partir do qual trabalhará

a idéia de irreversibilidade dos processos; e a teoria do antropólogo

Claude Lévi-Strauss22 da qual adotará a formulação de uma entropologia

no lugar da antropologia. A adesão das idéias acerca da entropia lhe

permitirá pensar a criação artística calcada na instabilidade e volubilidade, 20 SMITHSON, R. Art and Dialectics, p.371. 21 Em momento algum, Smithson se reporta à complexidade filosófica do termo dialética. O artista se preocupa em garantir o sentido de processo, de movimento implícito ao termo. 22 De Lévi-Strauss, Smithson adota também a concepção de modelo e objeto como partes de um todo, indissociáveis portanto; e totem e tabu. Ainda, a distinção entre ‘sociedades quentes’ e ‘sociedades frias’ como substitutos para a distinção entre ‘povo sem história e outros’. Problema da história representacional que interfere nas concepções do artista das relações entre passado, presente e futuro.

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na transitoriedade entre territórios, sejam estes imaginários ou reais,

teóricos ou fictícios.

A engrenagem do processo dialético move-se a partir das ações de

subsunção, de oposição, de superação. Atos que, ainda assim, em linhas

gerais, pressupõem as divisões e as separações. Porém, na entropia, o

processo caminha para a contaminação entre os elementos da poética do

artista. Um bom exemplo dado por Smithson do que, para ele, seria a

entropia consiste na oposição entre o pensamento idealista e a orientação

dialética. Os idealistas estariam ligados à transcendência das coisas,

dispositivo ligado à formulação final, enquanto que, os dialéticos

pensariam as coisas, impossibilitados de prever um fim já que seus

estados naturais seriam da transubstanciação infinita. Smithson estaria

ligado ao último grupo naturalmente. Para tanto, o artista pensa na

geologia como metáfora literalista para aprofundar sua idéia de dialética

entrópica23:

A geologia tem também sua entropia onde tudo se consome gradualmente. É possível que em certo ponto, a superfície da terra de rompa ou se quebre em pedaços, de modo que, num sentido, o processo irreversível se metamorfoseia. É uma evolução possível, mas não num sentido qualquer idealismo. Há ainda a morte do sol por aquecimento. É possível que os seres humanos sejam diferentes dos dinossauros, não melhores. Dito de outro modo, é possível que seja apenas uma situação diferente. Existe a necessidade de tentar transcender sua própria condição. Não sou transcendentalista, mas vejo as coisas irem para uma...hum, é bem difícil de prever o que quer que seja; de todas as maneiras, todas as previsões tendem ao erro. Eu quero dizer mesmo a previsão. A previsão e o acaso quase parecem a mesma coisa.

Robert Smithson toma o pensamento dialético como movimento,

como processo, por isso, a arte e o mundo, tidos como um só, passam a

ser apresentados ora como matéria, ora como idéia, numa combinatória

que atesta o caráter ubíquo das articulações do artista. O último

movimento do processo dialético, nesta produção, compreenderia, por

fim, a plasticidade e a maleabilidade das concepções estéticas, poéticas e

científicas.

23 SMITHSON, R. Entropy made visible, p. 303 passim.

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O conjunto da obra de Smithson assemelha-se às faces múltiplas

dos cristais. As formas dos cristais sugerem uma operação produtiva: um

centro, não mais que um sedimento, do qual se expandem –

entropicamente – formas diversas, incluindo aí, as qualidades da

transparência, da opacidade, da cor, da luz, da matéria, do calor, da

umidade e do tempo; elementos que quase sempre atravessam a

produção plástica, sem prescindirem, claro, da temporalidade alargada e

imaginativa correspondentes às duradouras eras terrestres. A

cristalografia aliás transforma-se num dos modos como o artista pensa

alguns aspectos da natureza, da sua produção e da arte em geral: “Um

cristal pode ser mapeado, e aliás acho que foi a cristalografia que me

levou a fazer mapas.”24 Alguns exemplos encontram-se em suas primeiras

esculturas e escritos: The Crystal Land, texto de 1966, sugere uma nova

percepção da matéria trabalhada a partir então de outro fazer – produto

de uma natureza remexida cujo solo revela processos de cicatrização.

Para tanto, o deslocamento do olhar do artista para lugares

aparentemente diferentes do âmbito da arte passa a fazer parte deste tipo

de operação:

As superfícies da pedreira pareciam bem perigosas. Rachadas, quebradas, estilhaçadas; (...) Fragmentação, corrosão, decomposição, desintegração desmoronamento, deslizamento de terra, torrente de lama, avalanche estavam em evidência por todo lugar.25

Cryosphere, também de 1966, composto por seis módulos de aço

inoxidável pintado, reforça a multiplicidade de visadas encontradas na

forma do cristal – considerando que cada faceta do cristal pode ser o

indício da alternância da percepção visual - da qual resulta a dissolução

de uma experiência visual simples e direta. Smithson relaciona os objetos

Cryosphere com a problemática relação entre materiais e percepção no

artigo The X Factor in Art, de 1969, no qual convoca, como elemento de

arte, as estruturas modulares e unitárias referentes à cristalografia:

Conceitos tais como a estrutura matemática dos cristais, aritmética

24SMITHSON, R. Discussão entre Heizer, Oppenheim e Smithson, p. 278. 25SMITHSON, R. The Crystal Land, p.9.

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modular, teoria dos conjuntos e o material Cuisenaire26 revelam, ao artista iniciante, territórios inexplorados e abstratos da mente que ele explora em termos de estruturas concretas.27

Durante toda sua produção, Smithson preocupa-se em distinguir

territórios de ação dos quais se pode dizer acionados pela dialética

entrópica – filmes, literatura, paisagem, teorias científicas, filosofia,

geologia, sci-fiction – para juntá-los poeticamente num só plano: a ficção.

2.2 O deslocamento do Ofício – e queda do ateliê.28

A biografia de Robert Smithson revela seu envolvimento com o

universo literário. Ser artista para ele significa apresentar seu percurso,

sua vida, suas influências, não sendo, pois, dissociável da produção

plástica. Inúmeras vezes, em entrevistas29, Smithson se refere à sua

formação. O caminho oblíquo da sua educação se faz a partir de rico solo

que começa, por assim dizer, com o contato já desde criança com William

Carlos Williams, poeta americano e pediatra. Em suas palavras:

Eu nasci em Passaic e vivi lá por um curto tempo, então, nos mudamos para Rutherford, New Jersey. William Carlos Williams era, na verdade, meu pediatra em Rutherford. Nós vivemos lá até meus nove anos e novamente nos mudamos para Clifton, New Jersey. Eu acho que naquele tempo eu já tinha uma inclinação para ser artista.30

A segurança com que declara sua inclinação para artista desde a

época em que morava em Rutherford evidencia que seu pertencimento ao

universo artístico fora recapturado por ele constantemente; fala, ainda, da

sua inesgotável curiosidade em relação aos museus sobretudo o Museu

26 Referência a George Cuisenaire, matemático e pedagogo belga. 27SMITHSON, R. The X Faxtor in Art, p.25. 28 SMITHSON, R. Uma Sedimentação da mente: projetos de terra, p. 190. 29 Entrevista a Paul Cummings para os arquivos da Smithsonian Instituition. Cf. SMITHSON, R. Interview with Robert Smithson for the archives of American Art/ Smithsonian Institution, p. 293. 30 Idid., p. 270.

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de História Natural de Nova York. Na sua infância, monta um museu no

porão da sua casa, acentuando o vínculo entre sua biografia e

experiências artísticas, tal como declara:

Fui ao Museu de História Natural. Quando estava com sete anos, montei grandes dinossauros em papel que, de algum modo, suponho, relacionam-se até o presente nos termos do filme que fiz sobre The Spiral Jetty – tema pré-histórico que percorre o filme do princípio ao fim. Assim, curiosamente, acho que não há grande diferença entre o que sou agora e minha infância. Tive problemas com a escola. Quero dizer, não havia nenhuma compreensão de onde estava e não sabia onde estava naquele tempo.31

Smithson comenta ainda sobre sua viagem a Roma, além de

relembrar suas excursões – os parques nacionais - pela América, com os

pais, nas quais se envolvia com os trajetos e mapas, guiando sua família.

Este período marcará posteriormente as importantes obras Incidents of

Mirror-travel in the Yucatán e Um passeio pelos monumentos de Passaic.

Ele freqüenta, no ginásio, a Art Students League32 através da qual

conhece seus colegas da High School of Music and Art de Nova York; tem

acesso, em Nova York, às obras do expressionismo alemão e comenta

uma visita feita ao MoMA durante a exposição de artistas fauvistas.

Porém, seria lá, que manteria contato com as obras dos expressionistas

abstratos e toda a ambiência de Nova York nos meados dos anos 50,

período de sua mudança para aquele estado.

A partir do contato com a chamada Escola de Nova York e, depois,

com os minimalistas, num período entremeado de abundante leitura,

Smithson perfaz sua formação que o orienta a pensar as questões

principais da arte e, quem sabe, lança os primeiros sedimentos da sua

poética. Em suma, num espaço de tempo de cinco anos – sua mudança

para Nova York - ele absorve, deixa envolver-se em toda complexidade do

contexto americano e, desse manancial, constitui o presente território de

ação, já partindo do nexo da similaridade entre passado e futuro.

Smithson busca por um solo, literal e imaginativo, pleno de

resíduos do passado que constitui um possível lugar em que tudo poderá

existir, indício do futuro remoto. Tal evidência pode ser denominada de 31 Ibid., p. 270. 32 Jackson Pollock também fizera parte da Art Students League.

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panorama zero, espaço e tempo relacionados ao deslocamento produtivo,

a partir dos quais eclodem suas obras. A tarefa de buscar uma relação

intra-poética do topos das artes plásticas com a literatura – acalentada por

Smithson - se faz pensando no surgimento de teorias literárias que

privilegiam a ficcionalidade, e, esta, fora da atividade representacional da

realidade. Neste caso, a ficção seria a própria (ir)realidade.33 E tal

possibilidade começa a partir da sobreposição – que não consiste, para

Smithson, em dados conceituais, imaginativos apenas - do grau zero da

escrita, título do importante livro de Roland Barthes, de 1953, com a

imagem poética da (im)pureza do panorama zero. Os textos de Barthes

chamam a atenção de Smithson para o plano unificado do mundo que

pode ser cidade, paisagem, ruína, anti-ruína, sem o peso da linearidade

de certos conceitos da disciplina história, uma das condições do

panorama zero da contemporaneidade:

Roland Barthes refere-se a cada condição como ‘doença básica da função histórica’. O valor temporal dos eventos na história natural do Modernismo tem se tornado insustentável, mesmo vulgar, à medida em representa uma defesa contra as histórias não-duracionais [nondurational histories].34

As teorias de Roland Barthes conquistam o jovem artista que, em

diversos momentos, assimila suas concepções semiológicas e pós-

estruturais e as aplica em suas quotations35, por assim dizer; ele não faz

interpretação acadêmica (scholar) das teorias, mas as manuseia em

imagens e as associa às obras-textos, esculturas, non-sites, quer dizer, as

ativa poeticamente. Smithson compreende e adere à idéia de continuum e

a desloca para o próprio lugar do artista. Assim, ele privilegia a

transferência de tarefas – sintoma da anacronia -, de artista para

consultor36 – somente para reforçar o ser-artista, cujo maior privilégio

seria o mergulho no ficcional que destitui verdades, categorias ou a 33 Referência a O espaço literário de Maurice Blanchot. 34 SMITHSON, R. Ultramoderne, p. 63. 35 São recorrentes as citações (quotations) de Smithson. Não podem ser tratadas como fragmentos ou aforismos que guardam na sua forma um modo de filosofar específico. Ao se valer das quotations, Smithson prioriza um pensamento que busca constantes correspondências, a partir do qual trabalha sua poética. 36 Em Toward the de development of an air terminal site (1967).

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inventariação do mundo. Ele relaciona o site (Airport) como exemplo de

associação lingüística que não fica visível dada a rigidez da linguagem

racional. Barthes a nomeia de simulacrum do objeto. Smithson assim

interpreta:

(...) o alvo é reconstruir um tipo novo de edifício que engendre significados novos. Do ponto de vista lingüístico, se estabelece as regras de estrutura baseadas numa mudança na semântica do edifício.37

O principal interesse de Smithson nas teorias de Barthes talvez

esteja nas tentativas de dissolução das teorias clássicas da literatura38 em

escritas que buscam recuperar a linguagem literária com os campos

múltiplos conferidos pelos deslocamentos produtivos, ou seja, fraturas e

aberturas para arte cuja existência se dá na literalidade material:

Essa escrita sagrada, outros escritores pensaram que só poderiam exorcizá-la deslocando-a; minaram então a linguagem literária, fizeram explodir a cada instante a concha renascente dos clichês, dos hábitos, do passado formal do escritor; no caos das formas, pensaram atingir um objeto absolutamente privado de História, encontrar o frescor de um estado novo de linguagem.39

O impacto da estrutura barthiana na teoria da arte40 nada tem a ver

com os sentidos que Smithson apreende do autor, o grau zero, para ele,

parece resumir-se ao lugar em que todas as coisas são

irremediavelmente possíveis – sem o intermédio de teorias produzidas por

sistematizações. Seria, pois o ilimitado, ainda que, no seu caso, sempre

há o jogo ente limite/não limite. Por fim, assume-se: tudo é ficção.

O correlato entre Smithson e Barthes insere-se mesmo numa

ordem poética – talvez assim como o faz com as teorias de Claude Lévi-

Strauss. No entanto, Roland Barthes e o pós-estruturalismo, sobretudo,

37 SMITHSON, R. Toward the de development of an air terminal site, p. 58. 38Antoine Compagnon descreve o movimento proposto por Roland Barthes: “Em seu começo, também a história literária se fundava numa teoria, em nome da qual eliminou do ensino literário a velha retórica, mas essa teoria perdeu-se ou edulcorou-se à medida que a história literária foi se identificando com a instituição escolar e universitária.” In: COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: literatura e senso comum, p. 18. 39 BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escrita. São Paulo: Martins Fontes, 20004. PP. 64. 40 Retomada da estrutura lingüística como opção à teoria formalista de Clement Greenberg, segundo Rosalind Krauss no prefácio de L´originalité de l´avant-garde et outres mythes modernistes

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nos artigos dos anos 70 de Rosalind Krauss, colocam-se como opção

para além do historicismo dito formalista e teleológico e da Gestalt, tal

como seriam analisadas as obras, principalmente, a pintura:

De um lado, o estruturalismo rejeitava o modelo histórico de engendramento do sentido. De outro, os trabalhos pós-estruturalistas41 submetiam às análises históricas as formas intemporais, trans-históricas que tinham sido consideradas como categorias indestrutíveis no interior das quais estava todo desenvolvimento estético.42

Smithson foge à problemática crítica dos anos 60 e 70, preocupa-

se principalmente em buscar um foco artístico nas teorias, transformando-

as em questões poéticas. Se o apreço do artista pelas relações que

ultrapassem qualquer ponto do universo constitui o panorama zero; pode

se afirmar então que ele só existe como literalidade da ficção.

41 Transcreve-se aqui a nota do tradutor do livro L´originalité de l´avant-garde et outres mythes modernistes Jean-Pierre Criqui no Prefácio de Rosalind Krauss sobre pós-estruturalismo: “Pós-estruturalismo é um termo utilizado nos países de língua inglesa e designa um certo número de trabalhos críticos cujos autores têm – excetuados Jacques Derrida e, em menor medida, Gilles Deleuze – sido associados ao estruturalismo : Michel Foucault, Roland Barthes, (depois S/Z), Jacques Lacan...O pós-estruturalismo pressupõe uma crítica do esquematismo estruturalista (binarismo, estrutura como totalidade) tal como é desenvolvido, por exemplo, nas obras de Claude Lévi-Strauss”. In : KRAUSS, Rosalind. L´originalité de l´avant-garde et outres mythes modernistes, p. 13 42 KRAUSS, Rosalind. L´originalité de l´avant-garde et outres mythes modernistes. Paris: Macula, 1993.

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Fig. 4. Projeto - Airport Terminal

Fig. 5. Projeto - Airport Terminal

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As perguntas: O que é literatura?43 E o que é Escrita? Motes

iniciais do projeto de Roland Barthes no seu O Grau Zero da Escrita44,

trazem a negatividade em relação à escrita. Porém, o problema posto por

Roland Barthes ganha dicção diferente nos textos de Maurice Blanchot –

autor que se dedica em estabelecer o espaço neutro para literatura ou

para o não-lugar do poeta:

A literatura é o campo da coerência e região comum enquanto não existe por ela mesma e se dissimula. Desde que aparece no longínquo pressentimento do que ela parece ser, ela voa em estilhaços, entra na vida da dispersão onde recusa deixar reconhecer por signos precisos e determináveis.45

Seria interessante apresentar ainda a contigüidade de dois textos

que, talvez, tenham parentesco com a noção de ficção sempre presente

na produção de Smithson. A literatura e vida46 de Gilles Deleuze e a

Linguagem da Ficção47 de Maurice Blanchot. Não seriam textos definitivos

para tentar explicar o sentido ficcional48 no corpus produtivo de Smithson,

mas apontariam um caminho minimamente intuído pelo artista dado sua

verve poética atrelada às letras.

Maurice Blanchot, no texto A linguagem da Ficção, remete-se aos

dois usos possíveis da palavra, o ordinário e o ficcional – a respeito do

romance O castelo de Franz Kafka. Na ficção, se realiza o irreal que é

atravessado pelo infinito, pois, nada se sabe da narrativa: “(...) eu

permaneceria sempre mais ou menos consciente do pouco que sei, pois

essa pobreza é a essência da ficção, que é a de me tornar presente o que

43 Pergunta de Jean-Paul Sartre a partir da qual Barthes dialoga substituindo-a pela pergunta O que é escrita? 44 Em arte moderna, leia-se Malevitch e Mondrian, procura-se teorizar o grau zero no sentido da essencialidade da pintura. Tal acepção é evidentemente próxima à pureza dos meios com a qual Clement Greenberg funda sua crítica de arte. No entanto, a proposta de Roland Barthes seria procurar deslocar o caráter representacional da escrita e compor uma estrutura de signos que permetiriam abertura de sentidos. 45 BLANCHOT, M. Plus loin que le degré zéro. La Nouvelle Nouvelle Revue Française, nº9, set. 1953 p. 489. Apud Bident, Christophe. R/M, 1953 In : QUEIROZ, A. et alii (orgs) Barthes/Blanchot ; um encontro possível?, p. 101. 46 DELEUZE, G. Literatura e a vida, p. 19. 47 BLANCHOT. M. A linguagem da Ficção, p. 45. 48 Teorias científicas como ficção atravessam de um modo geral a geração de artistas da Land Art.Cf. TIBERGHIEN.G, Land Art, p. 198.

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a faz irreal.”49 As palavras vão desaparecendo, permanecendo sem

sentidos definidos para dar lugar aos atos que significam para o autor:

“(...) uma abertura sobre uma complexidade ainda por vir.”50

Desvanecimento que pertence à locução de Deleuze em A Literatura e a

Vida, entendido, talvez, como devir: “É um processo, ou seja, uma

passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”.51 Caso interessante

vivível e vivido, pois, não se colocam no tempo, talvez, pertençam ao

indistinto, à zona neutra, ou: “O devir está sempre ‘entre’ ou ‘no meio’.”52

Deleuze refere-se ao lugar no qual a literatura se produz: fabulação -

termo associado aos seus estudos sobre o filósofo francês Henri Bergson

que conseguira, para Deleuze, excluir a projeção do Eu e tratar a

imaginação como algo não produtivo (no sentido da cognição), mas vertê-

la numa elevação de: “devires e potências”.53 Os aspectos que

prevalecem nessas análises são o caráter devorador da linguagem:

Assim, a literatura apresenta já dois aspectos, quando opera uma decomposição ou uma destruição da língua materna, mas também quando opera a invenção de uma nova língua no interior da linguagem mediante a criação de sintaxe.54

Smithson aparenta tomar para si intuitivamente, a partir do

momento em que não se preocupa com a “evolução da arte”, essa

recriação poética, de potências e devires. O matiz destrutivo da sua

produção, literal e metafórico, está contido em todos os seus fluxos e

meios poéticos e sobretudo no estado ficcional do artista, daquele que se

recria infinitamente, se fundindo aos seixos, à areia, às camadas terrestre;

existindo no magma da Terra, no meio do deserto ou na estratosfera,

quem sabe, no não-lugar marte?

Para concluir essa breve análise, neste ponto, cabe citar a bela

passagem de Blanchot sobre o poema, abertura do livro O Espaço

Literário:

49 BLANCHOT. M. A linguagem da Ficção, p.78. 50 Ibid., p. 78. 51 DELEUZE, G. Literatura e a vida, p. 11. 52 Ibid., p.11 53 Ibid., p.13. 54 Ibid., p.15.

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O POEMA – a literatura – parece vinculado a uma fala que não pode interromper-se porque ela não fala, ela é. O poema não é essa fala, é começo, e ela própria jamais começa mas sempre diz sempre de novo e sempre recomeça. Entretanto o poeta é aquele que ouviu essa fala, que se fez dela o intérprete, o mediador, que lhe impôs o silêncio pronunciando-a. Nela, o poema está próximo da origem, pois tudo o que é original é a superabundância do que nada pode, do que jamais é obra, arruína a obra e nela restaura a ociosidade sem fim. Talvez seja a fonte, mas fonte que, de uma certa maneira, deve ser exaurida para tornar-se recurso. Jamais o poeta, aquele que escreve, o ‘criador’, poderia exprimir a obra a partir da ociosidade essencial; jamais por si só, do que está na origem, ele pode fazer brotar a pura palavra do começo. É por isso que a obra somente é obra quando ela se converte na intimidade aberta de alguém que a escreveu e de alguém que a leu, o espaço violentamente desvendado pela contestação mútua do poder de dizer e do poder de ouvir. E aquele que escreve é igualmente aquele que ‘ouviu’ o interminável e o incessante, que o ouviu como fala, ingressou no seu entendimento, manteve-se na sua exigência, perdeu-se nela e, entretanto, por tê-la sustentado corretamente, fê-la cessar, tornou-a compreensível nessa intermitência, proferiu-a relacionando-a firmemente com esse limite, dominou-a ao medi-la.55

Sem pretender-se escritor, mas existindo como tal, Smithson

introduz a linguagem da ficção cujo espectro alcança as teorias que

propõe, sua biografia, sua biblioteca, sua vivência, das quais se pode

dizer trabalho artístico. E do descentramento da sua vivência consegue a

porosidade imprescindível para sua atuação artística: “Quando se utiliza a

palavra ‘ficção’, a maioria entre nós pensamos a literatura, mas jamais as

ficções num sentido geral. (...) a ficção não é considerada como parte do

mundo.”56

55 BLANCHOT, M. O Espaço Literário, p. 14. 56 SMITHSON, R. A museum of language in the vicinity of art , p. 83 passim.

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2.3 A obra de arte como desenvolvimento contínuo em vez de produtos concluídos.57

Merece ser evidenciado o momento particular que dá ambiência

aos escritos de Smithson do período entre 1965 a 1969, grosso modo, o

debate entre a geração minimalista e a crítica modernista. A geração

minimalista preocupa-se em colocar na ordem do dia a reflexão sobre a

real possibilidade da arte pós-abstração pictórica no contexto americano.

Após a pintura como campo – sobretudo se forem colocadas as pinturas

de Jackson Pollock e Barnett Newman – a partir do qual se evidencia o

suporte-tela, percebe-se a urgência de dissolver a determinante rigidez

das esferas artísticas. Revela-se de um lado a crítica dita formalista de

Clement Greenberg e Michael Fried e, do outro, um grupo de artistas

decididos pela reflexão sobre a produção artística a problematização do

suporte-tela, a forma da tela como presença e constituição da obra.

Reporta-se aqui à tela de Frank Stella (Die Fahne hoch! de 1959), da qual

se pode dizer que opera o entrelaçamento entre espaço privado (entidade

constituída) e mundo (espaço público)58

Circundando o debate: a antiga discussão entre a separação das

esferas artísticas. A clássica polaridade, resumida aqui, sobre a questão

trazida pelo legado de Greenberg, notória em seu artigo Rumo ao Novo

Laocoonte, de 1940, no qual engloba a arte moderna, além da proposição

da pintura que, desde Manet, subverte-se ‘na revolução copernicana na

arte’59 tal qual Kant a fizera em filosofia. Nos dizeres de Yve-Alain Bois em

As emendas de Greenberg, o modernismo em arte se faz na démarche do

“(...)‘positivismo estético’: “(a saber, uma rejeição ao ilusionismo sob todas

as suas formas e uma atenção crescente com respeito aos fatos, os

meios artísticos – ao medium).60 No que completa sua observação com:

(...) cada arte visa, por pura reflexividade crítica, à parousia de sua essência plena e, portanto, a eliminar as convenções que não lhe

57 SMITHSON, R. Letter to John Dixon, p. 377. 58 Cf. KRAUSS, Rosalind. Sens et Sensibilité, p. 56. 59 Texto de Clement Greenberg A Pintura Modernista. 60 BOIS, Yve-Alain, As Emendas de Greenberg, p. 338.

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sejam necessárias, a saber, a fazer a triagem e demonstrar qual é o seu próprio medium.61

Tema que remonta ao classicista Lessing, esteta alemão do século

XVIII, cuja proposta está na divisão entre as artes do tempo e as artes do

espaço, – para a primeira: poesia, música; para a segunda: arquitetura,

escultura e pintura. Em defesa de Greenberg, o crítico francês Jean-

Pierre Criqui argumenta: “(...) a força e a motivação principal de sua

prática é essa relação de experiência visual das obras.”62 A estética de

Greenberg tem como adepto o crítico do modernismo artístico americano

Michael Fried, cujos postulados aderem à expressão própria de cada

meio de arte. A impossibilidade ou desinteresse em vislumbrar as

produções contemporâneas às pinturas do expressionismo abstrato,

talvez porque o medium não se edifica sobre o critério do valor visual, não

expande o legado crítico de Greenberg, todavia, não o torna de modo

algum desimportante: “Embora não se trate simplesmente de ser atual ou

não: certas questões levantadas por ele necessitam ainda serem

pensadas.”63 Não havia o entendimento – por uma questão de postura

crítica, ressalte-se - da produção latente dos anos 60 (Fluxus – referência

direta a Duchamp -, minimalismo, Pop Art, Land Art, etc). A controvérsia,

talvez, seja evidenciada na passagem de Yve-Alain Bois a respeito do

possível equívoco, ou quem sabe, estratégia, por parte de Greenberg

sobre a produção Marcel Duchamp:

(...) a passagem pela experiência visual é apenas um momento e não um fim em si mesmo. Por isso Duchamp foi contra o retiniano, não porque fosse contra o olhar, mas porque pensava que o estado de apreensão visual de uma obra devia se abrir sobre outra coisa. Greenberg não pensa assim. Ele acredita que a experiência visual, o puro olhar, seja um fim em si mesmo. A experiência encontra sua justificação e seu fim na apreensão visual da obra. Então, evidentemente, isto o impede de dar atenção devida a Duchamp, ao surrealismo e a muitas outras produções onde os dispositivos operatórios supõem outra coisa que a apreensão de um objeto pelo olhar. 64

61 Ibid., p 339. 62 TIBERGHIEN, G.; BRUNET, C. Greenberg, um crítico na história da Arte: Entrevista com Jean-Pierre Criqui, p. 333. 63 Ibid., p. 335. 64 Ibid., p. 330.

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Entretanto, o objetivo aqui não é delinear um meio de arte no qual

as polaridades se tornem posições fechadas em discussões – como uma

espécie de querela entre antigos e modernos.65 O fato é: há uma

produção nova, pululante, efervescente que permite aos artistas a

reflexão sobre a relação entre meios de arte e o mundo e, com isso,

aprofundar a problemática do limite entre as esferas artísticas.

Possivelmente marcada pela produção de Frank Stella, a abertura plástica

e poética fornece ao minimalismo as possibilidades para outras atuações.

Segundo Claude Gintz66:

Estaríamos tentados a evocar a importância da escrita na época, não somente para Donald Judd e Robert Morris que tentaram definir uma estética – o primeiro, em torno da necessidade da ‘especificidade’ do objeto, o segundo sob a forma de comentário de suas ‘formas unitárias’ que ele tinha, de outro modo, apresentado numa galeria -, mas também para os artistas conceituais dessa mesma época, para os quais um texto poderia ter o lugar da resenha de uma ‘atividade artística’, ou mesmo da arte simplesmente.

O centro do debate tem lugar e data: o texto de Donald Judd,

“Objetos Específicos” de 1963 e “Letter to the Editor” (resposta-paródia a

Michael Fried), de Robert Smithson, veiculada na Artforum, em 1967. O

fazer artístico estaria, a partir daquele momento, no deslocamento

discursivo dos seus próprios procedimentos. O problema não reside

apenas no formato-tela, Judd pretende partir dele para estabelecer a

legitimidade das novas obras – objetos tridimensionais - que excluiriam as

normas e categorias ditadas pela pintura, ela mesma considerada auto-

referente. O diálogo que essas obras pretendem estabelecer está fora da

sucessão formal entre um estilo e outro. Para ele, não se pode vislumbrar

um grau discursivo excessivamente calcado na experiência visual como

era normativo para as pinturas e esculturas feitas anteriormente. Os

objetos específicos despertam a percepção para o limiar entre essas

esferas, equivaleria dizer que a zona distinta das fronteiras artísticas

passa a ser lugar privilegiado para a eclosão de nova poética:

65 Querela que remonta ao século XII. 66GINTZ, C. La place de l’écrit dans l’�uvre de Robert Smithson, p. 161.

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Obviamente, o trabalho tridimensional não sucederá de maneira clara à pintura e à escultura. Não é como um movimento; de qualquer modo, movimentos já não funcionam mais; além disso, a história linear de algum modo se desfez. 67

Donald Judd não se estava isolado – a eclosão desses eventos

fortalece o circuito entre artistas e discursos aos quais se podem chamar

coletivos - nem foi o precursor da idéia dos entrecruzamentos dos meios

artísticos, ainda que o estatuto dos objetos específicos tenha potência e

clareza necessárias à proposta de ruptura com a idéia de domínio de uma

esfera artística. Às suas declarações seguiram-se várias outras, sejam

elas do meio artístico ou mesmo por parte da crítica. Na velocidade das

transformações artísticas nos EUA, em acordo com as transformações

tecnológicas e a ampliação do mundo da cultura de massa, o debate

sobre a modernidade artística torna-se premente. Caso dos argumentos

de Rosalind Krauss que se reconhecera tributária do criticismo de

Greenberg, mas que atestara a impossibilidade dessa crítica no

enfrentamento das novas obras – Minimal Art, Pop art, arte conceitual e

Land Art. O discurso do pós-criticismo não traça o mesmo caminho que a

crítica modernista de Greenberg e Fried. Um olhar projetivo não cabe

mais num confronto com os trabalhos e seriam, eles, a sustentação do

discurso, não o contrário. Rosalind Krauss intui o problema do discurso

crítico modernista a partir da pergunta de um estudante a Michael Fried,

no momento da exposição da obra de Frank Stella – uma pintura em

cobre. A resposta de Fried levou Rosalind Krauss a refazer seu próprio

percurso crítico. O episódio foi relatado no artigo Uma visão do

modernismo de 1972 – escrito um ano antes do importante texto Sens et

Sensibilité - e se destaca pelo rompimento ao que designa como

criticismo historicista como mostra o longo trecho a seguir:

Se o significado de uma obra depende da comparação com as coisas que lhe são exteriores, esse significado não pode residir inteiramente na percepção da obra singular. E isso não é simplesmente uma questão conceitual, mas uma questão de experiência. Isso tornou-se a minha experiência da pintura modernista do fim dos anos 60 (especificamente a de Stella e a de Noland) – uma reação que era especialmente perturbadora em razão do modo como essas pinturas se fundavam numa experiência sensorial da cor. Além disso, minha própria experiência

67 JUDD, D. Objetos Específicos, p. 9.

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mostra que, no final dos anos 60, a capacidade que tinha uma obra modernista qualquer de tornar essa conexão, na expressão de Fried, ‘perspícua’ – foi sendo cada vez mais acentuada. Assim, o sentido da necessidade histórica, inerente ao conteúdo ou significado da pintura modernista, já não coincidia com o da percepção da própria obra. E o efeito que isso teve sobre mim foi revelar o caráter fundamentalmente narrativo desse significado elevando o exacerbando seu componente temporal.68

A coerência entre produção plástica e discurso crítico, ainda que se

pretenda trazer certa maleabilidade ao modernismo de Greenberg e Fried,

não pode ser erradicada totalmente do discurso crítico moderno como

sinaliza novamente Krauss:

Isto quer dizer também que insisto em considerar o formalismo como uma vulgaridade; que se comecei como crítica modernista e ainda sou uma crítica modernista, pertenço a uma sensibilidade modernista no sentido mais amplo, e não no sentido mais estrito do termo.69

Ora, o pertencimento à época histórica não deve reduzir o

julgamento de gosto aos artificialismos teóricos, especificamente, se se

pensar o esgotamento inevitável da crítica de arte por sua adesão à

narrativa teleológica. A produção artística vigente naquele momento,

sobretudo o minimalismo, necessitava da discursividade crítica referente

às questões próprias da produção, tais como peso, gravidade, corpo,

deslocamento, percepção da passagem do tempo, etc; Questões até

então inviáveis na formalização teórica de Greenberg e de Fried cujas

experiências buscam, de certo modo, o momento perene e cristalizado do

objeto artístico.

O momento do arrefecimento do discurso crítico que se segue ao

criticismo de Greenberg foi necessário para estabelecer a consciência da

percepção do novo sobretudo por causa da ineficiência daquela crítica ao

julgar os caminhos da escultura. Em entrevista a Claire Brunet e Gilles

Tiberghien70, Rosalind Krauss71 é peremptória ao afirmar seu desvio da

crítica de Greenberg:

68 KRAUSS, R. Uma visão do modernismo, p. 170. 69 Ibid., p. 172. 70 Entrevista com Rosalind Krauss. Gávea 13. Vol 13, set. 1995. 71 Seria importante marcar a força da ruptura de Rosalind Krauss com a crítica de Greenberg ao escrever dois livros The Optical Unconscius (1993) e l’Informe (1995) junto com Yve-Alain Bois, catálogo da exposição no Centre George Pompidou, nos quais trata especificamente do informe, contra-ponto ao dito formalismo da crítica modernista.

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(...) eu sempre estive interessada pela escultura que os historiadores da arte tradicionais tanto negligenciam, talvez porque a escultura permaneça para eles algo de artesanal, de refinado, ou sabe-se lá. Aliás, minha ruptura com Greenberg se deve em parte a nossas divergências de apreciação sobre a escultura.

Obviamente, as críticas aos escritos de Greenberg, de modo geral,

foram revistas. Convém citar duas passagens que retratam o impacto

dessa modulação crítica. Jean-Pierre Criqui, em texto de 1987, adverte

quanto ao caráter catalisador do criticismo greenberguiniano para o meio

de arte: “Para nos convencer de que o papel desempenhado por

Greenberg foi de capital importância é suficiente constatar o espantoso

número de reações engendrado por suas tomadas de posição.”72 Tal

afirmação assegura certa maleabilidade ao discurso de Greenberg, no

que sugere a extensão dos problemas do modernismo como uma

sensibilidade de época. Rosalind Krauss, que abertamente se opõe à

importância da forma como experiência do real, escreve no prefácio do

livro A Voyage on the North Sea: art in the age of the post-medium

condition, de 1999: “De fato, tão persuasivo foi o ímpeto de

“greenbergizar” a palavra [médium], que as abordagens anteriores a essa

definição foram arrancadas de sua complexidade.”73 Ao refletir sobre a

questão dos meios de arte, percebe-se que Krauss esvazia o peso do

antagonismo com o qual confrontara a modalidade crítica genericamente

apontada de formalista.

A mobilização em torno do debate, daquele período, reúne artistas

e críticos paramentados de textos e obras. Os termos dos críticos passam

pelo crivo do artista e vice-versa. Em textos, artistas tentam assegurar a

legitimidade dos trabalhos, suspeitando, em todo momento, da crítica de

arte. Barnett Newman talvez tenha sido o primeiro a demonstrar desalinho

entre a palavra da crítica – considerando sua extrema profissionalização -

e a produção dos artistas. Assume essa postura ao responder diretamente

a Clement Greenberg: “Foi precisamente em defesa desta última idéia

72 CRIQUI, J. P. O modernista e a Via Láctea (Notas sobre Clement Greenberg),. p. 170. 73 KRAUSS, R. A Voyage on the North Sea: art in the age of the post-medium condition, p. 6.

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que invadi algumas vezes o domínio da crítica”74. Aporta-se aqui, nessa

passagem, como a própria crítica de arte pertencia ao domínio da auto-

referência. Com os pólos invertidos, crítica e produção artística fomentam

o campo para novos debates: evidenciam o discurso em torno do

programa forma e conteúdo – problema que Smithson pressente na

produção minimalista. Acepção problemática para uma geração que

pretendia incluir definitivamente o espaço de percepção e reflexão entre a

obra e o espectador.75 Se o criticismo de Greenberg e Fried está

conectado ao espaço representacional e orgânico, cabe à nova geração –

que estabelece seu marco com as esculturas de Tony Smith e segue com

a produção de Donald Judd, Robert Morris, Carl Andre e Sol Lewitt –

combatê-lo, destituí-lo. A afirmação do espaço plástico tem em suas

bases a crítica ao antropomorfismo – vale lembrar que o minimalismo

performático de Morris não deseja excluí-lo totalmente - e ao humanismo

que sustentam o expressionismo abstrato. Ambos os preceitos derivam de

uma espécie de empatia pela obra que se constitui pela redução formal,

simplesmente, porque decorre da abstração do espaço tridimensional.

Obviamente, para Smithson, a abstração nada tem a ver com empatia,

emoção ou expressão; estaria ligada, sem intermédios, à mente.

Smithson designa uma expressão que sustentaria seus argumentos

contra a maneira com a qual se colocava a crítica americana: formalismo-

expressivo. Ele permanece defendendo que:

(...) a abstração não é governada pela ‘expressão’ ou pelo que Greenberg chama ‘experiência’, mas por uma atitude mental direcionada para uma estética que não dependente de modo algum da redução formal.76

O teor da declaração é recorrente nos seus escritos, mas deve-se

entender que a redução formal significa, para o artista, a separação entre

experiência da arte e mundo real. Decerto, tal fórmula em nada expressa

a poética de Smithson. Pode-se adiantar rapidamente que a cultura

74 NEWMAN, B. Resposta a Clement Greenberg, p. 145. 75 Não coube apenas a esta geração a tentativa de resolver e de pensar o espaço entre espectador e a obra, no entanto, dada a profissionalização dos meios artísticos na cultura de massa americana, essa problemática fica mais acentuada e programática. 76 SMITHSON, R. The Pathetic Fallacy in Esthetics, p. 337.

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americana possui raízes num sublime romântico latente que se cruza por

vezes na real necessidade do exercício prático (viver) do mundo,

traduzido na ação do homem – formulação do pragmatismo.77 Explicar a

arte por meio de uma abstração reduzida não só afasta o sujeito da

realidade, como envolve suas experiências numa certa redoma ideal da

autonomia artística, quando avaliada negativamente, e solipsista por fim.

Para tanto, Smithson se envolve com o problema da percepção e procura

determinar quais seriam seus os laços com a abstração. Se por um lado,

abstração implica a dissolução dos condicionamentos adotados pelo

universo da arte, por outro, a ela seria a equação entre mente e natureza,

cujo resultado pode ser aplicado à entropia e ao deslocamento perceptivo,

que não deixam de ser apresentados a partir do processo dialético

proposto pelo artista. A percepção nomeada de abstração passa a ser

posta em dúvida, pelos minimalistas e por Smithson, a partir de uma

estrutura mínima – ponto:

O ‘ponto’ tem seu meio e sua borda: tem relação com a mandala de Reinhardt, com o ‘dispositivo’ de Judd da especificidade e do geral, ou com o universo de Pascal do centro e da periferia. Contudo, o ponto evade nossa capacidade de encontrar seu centro. Onde está o ponto central, eixo, viga, interesse dominante, posição fixa, estrutura absoluta ou objetivo resolvido? A mente é sempre precipitada para a periferia em trajetórias imprevisíveis que conduzem à vertigem.78

O ‘ponto’ – estrutura mínima – se situa entre materialidade e

abstração. Tal referência invalida a concepção de abstração como objeto

– superfície da tela – supostamente tratado como distinto do sujeito. Para

Smithson, abstração é o exato oposto do afastamento do homem do

mundo que seria fruto das extremas formalizações das linguagens, sua

estrutura conforma-se à matéria. Sobre as tendências referentes à

abstração, Smithson tenta esclarecer em outra passagem:

Alguns livros tais como Abstraction and Empathy - no qual o costume do artista era excluir a questão da natureza e residir apenas em imagens mentais abstratas de superfícies planas e espaços vazios, grades, linhas e tiras - costumavam excluir a problemática da natureza. Nesse momento, eu sinto que faço parte da natureza e que ela não é

77 Tema que será tratado posteriormente neste trabalho. 78 SMITHSON, R. A museum of language in the vicinity of art , p.94.

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responsável moralmente. Não há moral na natureza.79

O entendimento do que seria moralidade se faz a partir dos

indícios deixados por Smithson, certamente, ele não procura vislumbrar o

mundo da moral ou da ética, tampouco excluí-lo. Parece, no entanto, que

o sentido empregado à moralidade, por Smithson, vem da crítica

constante, em seus textos, às categorias que se enquadrariam em

porções separadas de um universo que o artista prefere unido. Caberia

então à natureza, em sintonia com a mente, incluir o homem no mundo,

segundo as acepções de Smithson. A abstração comportaria, então, uma

relação direta com o real80, num processo de dedução, inferências,

afirmação ou negação – tributos do pensamento colocados em processo

através da fabulação (prática da ficção). São exercícios mentais que

excluem a presença excessiva do mundo visto por mediações espaciais

determinadas pela percepção condicionada (espaço tridimensional).

Smithson procura então contornar esses parâmetros impostos pela crítica

de arte e até mesmo pelo minimalismo, ao vislumbrar, nas obras do

escultor Tony Smith, o desvio poético que, de certo modo, atua na

recuperação da linguagem plástica, melhor dizendo, no pleno exercício da

ficção. A lacuna que abre espaço para o entendimento da aventura pode

ser designada como relação intra-poética, na melhor das hipóteses,

afinidades afetivas. E, nela, Smithson vive o estado fraturado (situação

contemporânea) com o qual aciona sua poética.

A homologia entre arquitetura e escultura, pressuposto poético de

Tony Smith, fora considerada pela geração de artistas minimalistas uma

grande contribuição para a arte moderna. As estruturas primárias de

Smith funcionam da mesma maneira tanto para a escultura quanto para a

arquitetura. A lógica seria o funcionamento labiríntico da combinação

dessas estruturas, para além da organização estritamente racionalista do

espaço. Porém, mais do que buscar um nexo entre uma linguagem e

outra, procura-se extrair da zona difusa aberta pelas esculturas de Tony

Smith a possibilidade de reinvenção do meio de arte, por assim dizer, dos

79 SMITHSON, R. Interview with Robert Smithson for the archives of American Art/ Smithsonian Institution, p. 293. 80 Obviamente o real, para Smithson, é transmutado em ficção ou irrealidade.

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mediums81 artísticos. Se os minimalistas optam pela literalidade stricto

sensu, Robert Smithson cuida do escopo imaginativo do escultor que se

revela na passagem:

Uma vez que nós estamos livres das pressuposições utilitaristas nós tornamo-nos cientes do que J.G. Ballard chama “a paisagem sintética”, ou ao que Roland Barthes refere como “o simulacrum dos objetos”, ou Tony Smith chama de “paisagem artificial”, ou Jorge Luis Borges chama de irrealidades visíveis. O que estas quatro pessoas têm em comum? Não as suposições ou crenças de algum tipo, mas o mesmo grau de consciência estética.82

Tal pertencimento ao ideário dos escritores – J. G. Ballard, Roland

Barthes e Jorge Luis Borges – e do escultor – Tony Smith, anunciado por

Smithson, aprofunda-se no caldo do romantismo, pantanoso e arenoso

para o gosto de Smithson certamente. Como exemplo para essa

afirmação, convém citar a nota do próprio Smithson: “Estas quatro

pessoas – extraídas do grande número 4 in abstracto com especial

atenção à Doutrina dos Quatro Humores (Barthes = sangüíneo ... Ballard

= fleumático ... Smith = colérico ... Borges = melancólico)”83. Portanto, o

percurso que Smithson adota não se faz pela clareza dos sentidos, ele é

traçado pelo seu justo oposto: a incerteza dos meandros, pelo estado de

deriva. Neste caso, o trajeto se solidifica em cruzamentos que escapam

às determinações de disciplinas, – trata-se de aproximar escritores,

teórico e escultor – tanto quanto, garante uma temporalidade alargada, já

que os coloca em contato com arquétipos que remontam à antigüidade

clássica que classificava as doenças de acordo com os Quatro Humores –

momento da trans-historicidade. Optar por uma definição alquímica 81 Talvez seja pertinente acrescentar esta nota sobre medium, apenas como digressão - pois, o tema parece introduzir, além de toda problemática dos anos 60 e 70, outro problema na atualidade. Quem traz essa questão é o teórico alemão Hans Belting que trata especificamente a inserção da imagem na contemporaneidade, assim, vale reproduzir um trecho do seu artigo Por uma Antropologia da Imagem que traz à luz referências acerca do que seria medium ou media : “A interação entre nossos corpos e as imagens externas, de qualquer modo, inclui um terceiro parâmetro, que chamo “medium”, no sentido de vetor, agente, dispositif (como dizem os franceses) ou suporte, anfitrião e ferramenta de imagens. Esse termo pode encontrar alguma resistência, dado que estamos familiarizados com os media apenas no sentido dos atuais ‘mass media’. Portanto, eu gostaria de introduzir duas premissas que podem esclarecer meu argumento. Primeiro, poderia ser dito que não falo de imagens como media, como normalmente fazemos, ao contrário, gostaria de argumentar que as imagens usam suas própria media, a fim de transmitir-nos suas mensagens e tornar-se, em primeiro lugar,visíveis para nós. As imagens até mesmo migram entre media diferentes ou combinam as características distintivas de vários media.” In: Conccinitas. Ano 6, vol. 1, nº 8, jul/2005. 82 SMITHSON, R. The artist as site-seer; or, a dintorphic essay, p. 340. 83 Ibid., p. 343.

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significa reverter a lógica da discursividade que, transposta para o campo

da arte, oferece desvio e induz ao desapego da linearidade cronológica

da narrativa histórica e crítica.

Uma extensa reflexão sobre a obra do escultor Auguste Rodin no

texto L’Originité de L’avant-garde: une répétition post-moderniste de

Rosalind Krauss estabelece um circuito tangencial para a vanguarda

artística no qual está prevista a necessidade de uma outra originalidade

para o campo pictural. Evidentemente, este texto engloba a problemática

que se apresenta desde o trabalho escultórico de Rodin até a idéia da

superfície da tela como malha (grid). No entanto, o interesse pela re-

significação do novo confere, por assim dizer, a possibilidade de alguma

outra coisa: panorama zero. No momento em que o texto foi escrito, início

dos anos 80, o tema pós-modernismo estava em voga. Nas suas palavras

para Claire Brunet84, aquele pós-modernismo sobre o qual havia escrito

em L’Origianité era uma tentativa de tornar claro o termo, aliás, a

polissemia do termo: “Mas há um monte de pós-modernismos!” Para ela

havia: “(...) sobretudo aquele que critica o idealismo dissimulado e a má-fé

da modernidade.” Talvez, naquela época, ainda não estivesse clara a

espessura do termo para os caminhos da teoria da arte, mas, de início era

possível perceber que não havia intenção de estabelecer outro período

histórico para a arte que naturalmente se transformava, mas de propor

uma via teórica e reflexiva que se abrirá para a questão pós-medium.

A noção do plano zero no qual todas as coisas emergem como

possibilidades plásticas induzem a inventividade do resgate poético -

astúcia de Smithson – que confere a Tony Smith um papel essencial na

cultura. Ademais, a produção de Smith pode ser vista para além do

interesse forma/matéria do minimalismo ou da teatralidade, nomeação

precipitada de Michael Fried; a produção de Smith, ela sim, institui a

desordenação da percepção e, mais ainda, supõe outra temporalidade,

dimensão cara a Smithson: “As superfícies de Tony Smith expõem mais

uma sensação de ‘mundo pré-histórico’ que não se reduz a ideais e

gestalts puras”.85 As esculturas de Tony Smith se relacionam, desse

84 Entrevista com Rosalind Krauss, p. 471 85SMITHSON, R. Uma Sedimentação da mente: projetos de terra, p. 190.

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modo, com espaço – ambiente. As caixas de aço Die e Black Box, ambas

de 1962, reivindicam para si a ubiqüidade. Combinações de ângulos

prováveis e improváveis das estruturas primárias abrem o caminho para

um método que: “(...) conduz a resultados às vezes tão formalmente

espantosos que se advinha na obra a pesquisas de um gênero do cômico

ao burlesco propriamente geométrico.”86

Pensar a dimensão temporal - leia-se seu apreço pelo panorama

zero - conduz Smithson à idéia de disrupção87. Postulado teórico e

concreto, a disrupção pode ser percebida como motor que engendra os

mecanismos das suas obras. Ela conserva potencial estético (sensível e

inteligível) que se traduz pelo sentimento de temporalidade alargada

indissociável dos sites (reais, literais e imaginários). A ruptura temporal

pode ser abrupta, como indica o radical da palavra, tanto quanto suave,

quase imperceptível – uma leve rachadura. O efeito perceptivo passa a ter

alternâncias e consegue se realizar também através da tentativa de

mensuração de escala. Fraturar a temporalidade coincide com a

valorização da área indistinta, esta que seria, em última instância, para

Smithson, fissuras do pensamento - alternativa para o pensamento

condicionado pelo rigor lógico. Nessas zonas difusas, eclode

possivelmente outra noção estética que se faz a partir de certa

neutralidade, já que o artista se abstém das normas e das categorias

sistêmicas. Todavia, a experiência poética que salta da nulidade se faz

porque todas as coisas se reduzem ao grau zero,88 como se fossem

ruínas do pensamento. Pode-se pensar em edifícios destruídos, casas

abandonadas, escombros do tempo que possuem característica

fundamental: a permeabilidade. Uma superfície plástica, aderente e móvel

que se reinventa drasticamente. O valor alquímico – poético, pré-histórico,

fictício - da arte das Quatro Pessoas (Ballard, Barthes, Smith e Borges) se

86 CRIQUI, J. P. Tony Smith: dédale, architecte et sculpteur, p. 43. 87 Na maioria dos dicionários da língua portuguesa, não foi possível encontrar a palavra disrupção. Porém, é importante ressaltar que a palavra existe nas línguas inglesa e francesa, e foi largamente utilizada por Smithson, constituindo mesmo um dos temas centrais da sua poética. Não sem razão, o presente trabalho adota o termo, traduzindo-o para o português, sendo substituído, por vezes, por ruptura, rompimento, fratura, interrupção. No entanto, de acordo com as definições em inglês e em francês, disrupção guarda ao mesmo tempo sentido de rompimento e de continuidade. Tal definição conserva a especificidade da palavra corretamente usada por Robert Smithson porque revela os termos de sua estética. 88 Referência ao célebre livro de Roland Barthes O Grau zero da Escrita de 1953.

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iguala, no dizer de Smithson: “ao mesmo grau – perto do zero”.89São eles

que dão os passos iniciais, a seu ver, para a desconstrução das formas de

se perceber o mundo.

A poética de Tony Smith traz o frescor para a nova geração porque

aciona o caráter experimental e, com ela, Smith posiciona-se no

fundamental papel de educador. Ele assimila suas experiências plásticas

dos módulos geométricos às estruturas poliédricas, bem como, seus

projetos de arquitetura com a idéia de escultura. A relação entre as obras

de Smith e a produção do minimalismo é analisada por Jean-Pierre Criqui:

Ao contrário dos objetos específicos propostos pela geração do minimalismo, The Black Box nega toda fenomenologia da percepção tanto quanto da declinação de uma combinatória. A obra tenta ao contrário, aliando radicalidade e simplicidade, dar corpo ao que se pode chamar alteridade absoluta e engatar a proliferação dos sentidos, precisamente, por meio desta força de aniquilação e desta afasia que a tomam.90

Entre a origem experimental do artista e a formulação da contra-

geometria, encontra-se a articulação do espaço labiríntico. Segundo

Smith, seu interesse pela “(...) inescrutabilidade e mistério da coisa”91

aponta, grosso modo, à abstração unificadora do labirinto cuja elucidação

se faz seguindo a lógica do puzzle. Quando se convoca o espectador a

participar de um jogo, cria-se uma relação direta que comporta ação e

recepção. Jogo poético torna presente o governo da imaginação,

adensando os critérios da arte. São combinações de ângulos que

estipulam espaços gerados pela massa, pela luz, pelo vazio dos quais

sobressai o aspecto de aventura, típico do jogo. No jogo, está implícito um

tempo próprio do qual é possível vislumbrar o sentimento de aventura no

qual a espontaneidade e o caráter extraordinário estão implicados. Tony

Smith, ao narrar seu passeio por New Jersey, propicia uma noção de

experiência da arte, apresentando, sobretudo, um relato íntimo, um

estado de deriva:

A experiência na estrada foi mapeada, mas não reconhecida

89SMITHSON, R. The artist as site-seer; or, a dintorphic essay, p. 343. 90CRIQUI, J.P. loc. cit. p. 42. 91 WAGSTAFF JR., S. Talking with Tony Smith, p. 384.

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socialmente. Deveria estar claro que isso era o fim da arte, pensei comigo mesmo. Depois disso a pintura em grande parte fica parecendo consideravelmente pictórica. Não há como você a enquadrar, você só precisa experimentá-la.92

Ora, Robert Smithson se reconhece nesse relato. O passeio na

estrada ainda em construção estabelece um insuspeito território estético:

“Tony Smith escreve sobre ‘um pavimento escuro' que está marcado por

pilhas, torres, fumaças e luzes coloridas' (Artforum, dezembro 1966)”93.

Traços evidentes da paisagem artificial – atribuição de Smithson -, fruto

da narrativa que não procura relatar o que foi visto ou descoberto, mas de

criar uma sintaxe gerada pela imaginação:

Quando eu dava aulas na Cooper Union no início da década de 1950, alguém me informou como chegar à New Jersey Turnpike, ainda inacabada. Levei comigo três estudantes e dirigi de algum lugar em Meadows até New Bruswick. A noite estava escura, e não havia postes de luz, marcos, faixas, guarnições nem mais nada além do asfalto escuro varando a paisagem de montanhas recortadas a distância, mas pontuada por coisas empilhadas, torres, vapores e luzes coloridas. Essa corrida foi uma experiência reveladora. A estrada e quase tudo na paisagem eram artificiais, e ainda assim aquilo não poderia ser chamado de uma obra de arte. Por outro lado, aquilo fez por mim algo que a arte nunca havia feito. No início eu não sabia o que era, mas seu efeito foi liberar-me de muitas opiniões que eu tinha sobre arte. Pareceu-me que ali se apresentava uma realidade que nunca havia sido expressa na arte.94

Trecho que Robert Smithson poderia ter escrito, similar na forma e

afinado ao sentimento. Palavras que expressam o indício da formação da

mitologia contemporânea e da aventura que inspiram Smithson nos seus

deslocamentos, na paisagem ficcional, na surpresa do jogo e do acaso e

ainda na preferência pela descontinuidade dos nexos artísticos; por que

não dizer: na arte pós-medium?95

Robert Smithson não adota a serialização dos elementos retilíneos

e unidimensionais do minimalismo. Suas unidades materiais geométricas

diferem certamente da matemática trivial do minimalismo da subtração,

adição, multiplicação e divisão. A reduplicação interrompida dos objetos

geométricos minimalistas não se apresenta pela estrutura primária de

92 Ibid. p., 386. 93 SMITHSON, R. Towards the development of an air terminal site, p.59. 94 WAGSTAFF JR. S. loc. cit. p. 386. 95 Problemática que será discutida no capítulo III. Termo atribuído a Rosalind Krauss em A Voyage on the North Sea: art in the age of the post-medium condition.

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Tony Smith, cuja idéia de extensão e dilatação espacial caberia à

cristalografia e não às operações combinatórias de adição e subtração. A

ampliação da estrutura primária reverbera através lógica da expansão

entrópica – o cálculo existente das progressões algébricas e geométricas

- porque passa a ser condicionado pela imaginação. Assim, Smithson

agrega em suas esculturas modulares – Alogon, Plunge, Gyrostasis,

Cyrosphere - a noção matemática dessas progressões que indicam

caminhos infinitos, seguidos da descontinuidade da percepção, antes

condicionada; logo, infere-se: tempo e espaço marcadamente

imaginativos em sua acepção.

2.4 Linguagem para ser olhada para/e/ou coisas para serem lidas. 96

Em várias obras, Smithson trabalha com noções do universo

físico-químico cujo modo de operação subsiste como pesquisa de campo

– coleta de material, experiência laboratorial, etc. - misto de observação e

cálculo. Adoção reveladora que fornece às suas concepções outra noção

de natureza bem específica: princípio da força geradora. A composição

dos cristais passa por um longo processo natural cujas formas são

determinadas pela temperatura e pelo tipo de areia, metal, partícula ou

poeira. Do aquecimento do mínimo grão dos diferentes sedimentos resulta

a forma única – especificamente ligada ao tipo de material - dos mais

variados tipos de cristais. Smithson estabelece um correlato produtivo

com esse procedimento mineral. A predileção pelos estudos de

cristalografia, geologia, mineralogia, astronomia, física alimenta seu

imaginário artístico e traduz o que seria a natureza na sua (im)pura –

acepção dual - materialidade:

Meu trabalho é impuro; sobrecarregado de matéria. Eu prefiro uma pesada e potente arte. Não há nenhuma escapatória da matéria. Não há nenhuma escapatória do físico, nem há escapatória da mente. Os dois estão em constante curso de colisão. Você pode dizer que meu

96 Título do release da Dwan Gallery de junho de 1967.

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trabalho é como um desastre artístico. Ele é uma silenciosa catástrofe da mente e da matéria. 97

Não se deve separar as noções de natureza e paisagem, bem

como, não se deve evitar sua materialidade evidente nos escritos e nos

trabalhos de Smithson. Termos praticamente equivalentes, não são

tomados como explicações ou tratados como teoria, estão presentes, em

sua produção, como princípios operativos e poéticos. Natureza e

paisagem são desvio ficcional98, pois a partir delas vários trabalhos

adquirem fundamento: “Meu sentindo de linguagem é que ela é matéria e

não idéia – i. e. – matéria impressa”99. Aqui, se vislumbra o momento de

convergência [range of convergence] entre os elementos mais

importantes da poética de Smithson: natureza como matéria bruta,

revertida em linguagem, transformada, por sua vez, em paisagem

elaborada em papel que se pode encontrar em livros, mapas, etc. No

entanto, partindo do processo dialético proposto pelo artista, natureza e

paisagem parecem, em alguns casos, termos reversíveis; portanto é

preciso atenção para apreender seus sentidos. Quando natureza revela-

se como potência máxima de formação ou de criação, trata-se sobretudo

da força e do movimento desmedidos, da sua capacidade inorgânica,

caso pontuado pela noção de entropia. Ora, o potencial da natureza –

entrópico - seria também o motor para a constituição da paisagem que

também sofre transformações geralmente engendradas pelo homem e

também pelo aspecto motriz natureza – levando em conta catástrofes ou

o caso pontual da ruína. Em seus escritos, Smithson passa de uma a

outra, que coincidem ou que se diferem dependendo do foco que o artista

privilegia no momento. Porém, subsiste em ambos os termos uma busca

por: “(...) um sentido mais físico da paisagem temporal.”100 Smithson

reflete os aspectos da natureza e da paisagem de modo mais sistemático

a partir da obra do paisagista Fredrick Law Olmsted, criador do Central

Park101, e, em suas considerações, nota-se a necessidade do movimento,

97 SMITHSON, R. Fragments of an interview with P. A. [Patsy] Norvell, p.192. 98 No vocabulário de Smithson, ficção ganha materialidade. 99 SMITHSON, R. Language to be looked at/ and/or things to be read. p.192. 100 SMITHSON, R. Frederick Law Olmsted and the dialectical landscape, p. 159. 101 Além dos parques americanos: Prospect Park, Niagara Reservetion, Mouton Royal Park,

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da relação entre as esferas humanas, denominada por ele de dialética,

assim ele justifica:

Em outro sentido os parques de Olmsted existem ante de serem terminados, o que significa de fato que eles nunca são acabados; eles permanecem portadores do inesperado e da contradição em todos os níveis da atividade humana, sejam social, político ou natural.”102

A paisagem deixa de ser um objeto isolado para atuar como rede

de transitividade, de passagem, de deslocamento. Ela se torna mediata e

imediata, ativa, passiva, literal, irreal, quer seja, invenção. Dela se pode

dizer que foi escrita, criada, construída, fabulada, fotografada, veiculada

como imagem, como panorama; não obstante, em todas suas realidades,

reside a qualidade da transubstanciação.

A ficção possivelmente fornece solo para se repensar a natureza e

a paisagem porque, a partir dela, Smithson assume um agir moldado num

puzzle diagramático (formulações de idéias, re-siginificação da matéria,

re-definição de temporalidades, ubiqüidade dos signos). Leitor do poeta

americano T. S. Eliot, o artista encontra parentesco no célebre poema

Terra Desolada, de 1922. Nos versos finais do poema “Com fragmentos

tais foi que escorei minhas ruínas/ pois então vos conforto. Jerônimo outra

vez enlouqueceu./ Datta. Dayadhvam. Damyata./ Shantih shantih

shamtih”103, ecoam algumas notas características de Spiral Jetty e The

Broken Circle: “Segundo minha própria experiência, os melhores sites

para a Earth Art são aqueles que foram remexidos pela indústria, por uma

urbanização selvagem ou pelas catástrofes naturais.”104 Os poemas de

Eliot são pensamento sobre poesia, linguagem que busca linguagem, e

experiência que provoca experiência, tessitura poética que corresponde

aos projetos de Smithson: deslocamento que gera deslocamento, texto

que intui o trabalho, trabalho que se revela escrito, fala que vira escuta,

medium que transforma medium.

As articulações de Smithson engendram uma paisagem sempre

transitória que se faz em correspondência com o transporte das Emerald Necklake, entre outros. 102 SMITHSON, R. Frederick Law Olmsted and the dialectical landscape, p. 158. 103 ELIOT, T. S. Terra Desolada, p. 117. 104 SMITHSON, R. loc. cit. p. 165.

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experiências poéticas. Do deslocamento (uma experiência estética para o

artista) conforma-se a paisagem; revela-se, a partir deste ponto, um duplo

movimento: a vivência do artista e a certeza da reformulação perceptiva –

calcada em pequenas disrupções visuais. Artista e paisagem estabelecem

um nexo relacional orientados pelo exercício constante da experiência

deste sentimento específico do natural - ficção. A relação entre paisagem

e homem não respeita hierarquias: um existe pelo outro ou um se mostra

pelo outro. Não seria possível uma paisagem que não fosse constituída

mentalmente pelo homem, mesmo aquelas cujas formações geográficas e

geológicas não sofreram com suas ações interventoras. Mesmo esta

última noção não prescinde do elemento imaginativo constitutivo do

sujeito em pleno estado estético, certamente, a atuação de Smithson no

mundo. Também, a partir dessa acepção natureza/paisagem de Smithson,

convém introduzir os contornos da artificialidade. Tema problemático em

Smithson, pois gera acepções reduplicadas, díspares, mas, que podem

ser compreendidas se forem conduzidas diretamente pela idéia de

dialética entrópica. A natureza se transubstancia em paisagem, por isso,

aceitar esse binômio seria assumir o meio-termo (zona ofusca) do

deslocamento que se faz a partir do temporal desdobramento entrópico;

assim, Smithson percebe o Central Park:

Considerando a natureza do parque, sua história e a percepção que temos disso hoje, somos confrontados com um emaranhado infinito de relações e de conexões onde nada permanece o que é ou permanece onde está.105

Os atos de Smithson, ao se movimentar por Yucatan (Incidents

of mirror-travel in the Yucatan, 1969) ou por Passaic (Um passeio pelos

monumentos de Passaic, 1967), provocam passeios acidentais, sem

propósito, que estabelecem, entre homem e paisagem, o sentimento de

estar à deriva.

105 Smithson, Robert. Frederick Law Olmsted and the dialectical landscape, 1973 In: Flam, Jack (ed.). Robert Smithson: the collected writings. Pp. 165.

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Fig. 6. Um passeio pelos monumentos de Passaic

O deslocamento do artista – condicionado pela ausência de rumo,

pelo caminhar errático, solto e perdido - propicia um estado poético que

configuraria o fazer artístico e constituiria a paisagem a partir de uma

percepção móvel e oblíqua. Nas suas viagens, Smithson repõe em jogo

tempo, passagem, estado perceptivo, ausência, presença, lugar e não-

lugar. Parte do relato de Yucatan, México:

Se você visitar os sites (uma probabilidade duvidosa), você encontrará apenas traços de memória, pois os deslocamentos foram desmantelados logo após terem sido fotografados. Os espelhos estão em alguma parte de Nova York. A luz refletida desapareceu. As lembranças são números de um mapa, memórias vazias constelando terrenos intangíveis nas proximidades apagadas. É a dimensão da ausência que permanece para ser descoberta. A cor expugnada que

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permanece para ser vista. As vozes fictícias dos totens esgotaram seus argumentos. Yucatan está em outro lugar.106

Desse modo, o tempo aparece fundamentalmente como algo dado

aí, mas que pode ser vivenciado tanto como intervalo (disrupção) quanto

como duração (movimento de dobrar-se e desdobrar-se). Como a

paisagem se faz na percepção da reversibilidade entre ordenação,

desordenação e reordenação, seria correto pensar no tempo vivido e

experimentado pelo espectador como seu ordenador. Um trecho do

transcendentalista americano Nathaniel Hawthorne sobre a Roma do

romance O Fauno de Mármore deixa transparecer a constituição da

paisagem pela entropia, percepção do sublime aparentada talvez às

suposições de Smithson:

Andando por várias ruelas, atravessaram a praça dos santos Apóstolos e logo chegaram ao fórum de Trajano. Sobre toda a superfície do que outrora fora Roma parece existir o esforço do tempo em enterrar a antiga cidade, como se esta fosse um cadáver, e ele, o coveiro; assim, em dezoito séculos, a terra se acumulara sobre o túmulo pela lenta dispersão da poeira e pelo acúmulo de uma decadência mais moderna sobrepondo-se à ruína mais antiga.107

A viagem a Roma, em 1961, traz para o artista a vivência de um

tempo que oscila entre presença e ausência. Ironicamente, Smithson

reverte a mística Cidade Eterna em Passaic, New Jersey: “Será que

Passaic tomou o lugar de Roma, a Cidade Eterna?”108 Pergunta legítima

para quem pensa na justaposição entre passado e futuro, para quem

encontra, no subúrbio, o futuro perdido nos monumentos sem história,

dejetos cujo valor aparentemente inexiste. Produtos do tempo, metáforas

vazias, panorama zero, solo perfeito para re-significações, para a

paisagem e para a recriação do nexo entre o futuro e o passado (valor de

pré-história que o futuro deveria guardar por não ser história

representacional para se revelar pós-história). Cidades metade

imaginadas, metade reais, Smithson parte da lógica do espelho, do seu 106 SMITHSON, R. Incidents of mirror-travel in the Yucatan, p.133. 107 HAWTHORNE, N. O Fauno de Mármore, p. 156. 108SMITHSON, R. Um passeio pelos monumentos de Passaic, p. 47.

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eterno reflexo:

Se certas cidades do mundo forem colocadas lado a lado em uma linha reta, ordenadas de acordo com o tamanho, a começar por Roma, onde Passaic estaria nessa progressão impossível? Cada cidade seria um espelho tridimensional que refletiria a cidade seguinte para a existência. Os limites da eternidade parecem conter tais idéias nefastas.109

Presença do tempo, origem da paisagem sem história, reposição

da natureza. Idéias presentes no artigo do alemão Georg Simmel, A

Ruína, no qual perfaz o embate entre homem e natureza. O espírito e a

natureza se encontram na dissolução da forma sólida da arquitetura: “(...)

naquelas partes destruídas e desaparecidas da obra de arte outras forças

e formas – aquelas da natureza – cresceram e constituíram uma nova

totalidade,”110 trata-se da existência de uma na outra sem contradições, o

homem engendrando finalmente um produto da natureza. O movimento

se dá na medida em que a natureza cria através da obra construída, faz

dela seu material. Se antes o homem se valia das forças naturais, a

exemplo das formações rochosas: alpes, agora a natureza domina a

arquitetura retomando a potência que um dia emprestara ao homem. As

forças restituídas pela natureza agem “(...) por meio da decomposição, da

enxurrada, do desmoronamento e do crescimento da vegetação.”111 e

conferem aos alpes o princípio ativo da ruína. A entropia que tanto atrai o

artista americano aparece antecipada por Simmel:

Mesmo a sedução das formas alpinas, que nas mais das vezes são maciças, causais e artisticamente não-fruíveis, sustenta-se no jogo recíproco de duas direções cósmicas: elevação vulcânica ou sobreposição gradual de camadas ergueram a montanha, chuva e neve, decomposição e deslizamento, dissolução química e o efeito da vegetação invadindo gradualmente serraram e escavaram o cume, deitaram abaixo partes de cima, dando assim ao contorno sua forma.112

Natureza entrópica e formadora, quando ruína, reveste-se da

paisagem numa camada repetidamente posta. A literalidade da formação 109 Ibid., p 47. 110 SIMMEL, G. A Ruína, p.138. 111 Ibid., p. 139. 112 Ibid., p.139 passim.

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natural põe em xeque o seu substrato metafísico, pois, no movimento de

gênese, sobressai sua irreversibilidade intrínseca, ou seja, o processo

entrópico inerente à natureza física. A ruína encontra-se no limiar entre

natural e artificial, entre realidade e ficção e entre história e pré-história:

“Quando se escavam os sites de ruínas da pré-história, o que se vê é um

monte de mapas em destroços que perturba os limites históricos de nossa

arte atual.”113 No limite, através da ruína se perfaz o equilíbrio entre

matéria e mente [range of convergence], ponto de partida das obras do

artista. A paisagem não pode ser pensada como uma analogia da

natureza. Ela é, de fato, uma máscara emprestada da ordenação causal

natural. No livro A Invenção da Paisagem, a filósofa francesa Anne

Cauquelin refaz o caminho da gênese da paisagem e suas significações.

Ela busca no sentido originário da paisagem suas extensas dobras, para

isso, excluí a idéia de paisagem como representação e narrativa da

natureza para retomá-las, paisagem e natureza, como reversibilidade:

A paisagem não é uma metáfora para a natureza, uma maneira de evocá-la; ela é de fato a natureza. (...) A natureza-paisagem: um só termo, um só conceito – tocar a paisagem, modelá-la ou destruí-la, é tocar a própria natureza.114

Semelhante noção da paisagem desdobrada em natureza

encontra-se nos escritos de Smithson. Se por um lado o artista anuncia a

impossibilidade de um universo apartado da natureza, permanece em

suas acepções, por outro, o desejo de compreender sua força motriz que

desordena o mundo destituindo-lhe a forma pré-concebida. Em suma, o

mundo, a arte, a paisagem, a natureza devem ser transitivas, mostrados

através da sua potência reformuladora (entropia) que não exclui do

processo poético a visão/fala do artista.

113 Smithson, Robert. Uma sedimentação da mente: projetos de terra (1968). In: Cotrim, C. Ferreira, G. (orgs.) Escritos de Artistas: anos 60/70. RJ: Jorge Zahar Editor, 2006. pp. 194. 114 Cauquelin, Anne. A invenção da paisagem. SP: Martins Fontes, 2007. pp.39.

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2.5 Tudo deve voltar para a poeira. A poeira da lua, talvez.115

As diferentes propostas e práticas do artista se atravessam

constantemente e coexistem com a temporalidade longa, processual e

incógnita que resguarda ao mesmo tempo interrupções e intervalos,

similares às formações de maior grandeza da natureza, levando em

consideração evidentemente o caráter irreversível das intersecções. Na

dialética, tal como Smithson a apresenta, o limite pode resvalar para o

não-limite e vice-versa e, para tanto, estabelece como um dos critérios a

disrupção. Na ficção do poeta americano Edgar Allan Poe, há um

correlato com o movimento pendular entre limite e não-limite citado por

próprio Smithson:

Quando as fissuras entre mente e matéria se multiplicam em uma infinidade de lacunas, o ateliê começa a desabar, como na queda do solar de Usher, de modo que mente e matéria se confundem interminavelmente.116

Essa passagem revela a adesão ao universo literário na produção

do artista. Realidade fictícia que gera, afinal, infinitas proposições cuja

recepção valida um mundo indistinto da arte. A noção de disrupção

possivelmente equaciona os termos da dialética site e non-site, arte e

mundo, continuidade e ruptura, escala e tempo e a já mencionada

equivalência estética entre matéria plástica, natureza e mente.

A interlocução do artista com o mundo e com a arte seria também e

relação e recepção da escrita e da leitura. Smithson se interessa por

autores que escrevem sobre o tempo, o espaço, as aventuras, os

deslocamentos, a natureza e a essência da escrita. Literatura e teorias

científicas desempenham papéis complementares para a formação

intelectual de Smithson. A ficção e a ciência passam a ser entendidas

como unidade, fundamentando suas proposições dialéticas; assim, pode-

se pensar que a realidade assume a estrutura do jogo poético, mas

115 SMITHSON, R. Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson , p.. 279. 116 SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 191.

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sempre a partir do privilégio dos princípios intelectivos que as inspiram.

Seus escritos resguardam influências diversas: memórias, teses,

observações e experiências, curiosamente tratadas sem positividade

alguma, apenas como manancial poético e plástico – indício da noção de

panorama zero. São temas que variam do místico ao científico – mental e

material, sobretudo, porque na fusão que o artista promove entre

misticismo e cientificismo transborda a ficção. O traço científico contido na

sua elaboração poética aparece na freqüente visitação ao Museu de

História Natural em Nova York, durante sua infância. Lá, encontra fósseis,

pedras dos períodos triássico, jurássico, minerais do passado distante da

Terra além de meteoritos celestes coletados no solo terrestre, elementos

que retornam no filme Spiral Jetty, de 1970. A sua concepção de Museu –

limiar entre ficção e ciência, limiar entre lugar e não-lugar – assume um

tom paradoxal. Em diversos momentos, o artista aponta negativamente a

limitação do espaço, da percepção e principalmente a reestruturação da

idéia de tempo encontrado no Museu. Smithson está atento não somente

para a exposição, seu olhar percorre toda a estrutura museográfica,

inclusive os espaços – intervalos – paredes lisas entre os objetos

expostos:

Visitar um museu é o mesmo que percorrer o vazio. Os corredores levam seus freqüentadores ao que uma vez eram conhecidos como “retratos” e “estátuas”. Anacronismos pendurados em cada ângulo. Temas sem significados pressionam a visão. Uma diversidade de nadas que se permutam em janelas falsas e que se abrem num verdadeiro vazio. Imagens insossas bloqueiam a percepção, desviando a motivação.117

O desenho The Museum of the Void, de 1967, sintetiza o que

Smithson considera problemático no nexo tempo, história e arte: o museu

como mausoléu. Para ele, a narrativa histórica dos eventos representada

pelas exposições retira a espessura temporal intrínseca aos objetos:

“História é um fac-símile de eventos reunidos numa frágil informação

biográfica.”118 Resíduos vazios do tempo, os objetos dos museus

deveriam conter sua parcela abstrata e apresentar, no instante da 117 SMITHSON, R. Some void thoughts on museums, p.41. 118 Ibid., p 41 passim.

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percepção, sua materialidade já que somente através desta última torna-

se possível reconhecer de fato a temporalidade. Assim, parece que o

positivismo de certas concepções de história contribui para o

esvaziamento total e improdutivo do tempo e da percepção: “O museu

espalha suas superfícies em qualquer lugar e torna-se uma coleção sem-

título de generalizações que imobiliza o olho.”119 Descrente em relação

ao papel da história, Smithson passa a desconsiderar os objetos

representados para concentrar-se no vazio, no espaço entre eles, lugar da

não-ação: “Então, penso que a melhor coisa que se pode dizer sobre

museus é que eles estão realmente se nulificando no que diz respeito à

ação”120 Aqui começa a ambigüidade: o Museu entendido por seu aspecto

positivo. Em Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson, o artista

afirma seu interesse pelos limites entre interior e exterior como cerne do

problema site/nonsite:

Eu gosto dos limites artificiais que a galeria apresenta. Diria que minha arte existe em dois domínios – em meus sites ao ar livre, que podem apenas ser visitados e onde não são impostos quaisquer objetos, e do lado de dentro, onde de fato existem objetos...”121

Ou mesmo define: “Para mim o mundo é um museu”.122 Numa

passagem reveladora, Smithson parece entender o Museu – síntese da

acumulação de resíduos do tempo - como processo plástico: “Os estratos

da Terra são um museu remexido. Incrustado no sedimento está um texto

contendo limites e fronteiras que fogem à ordem racional e às estruturas

sociais que confinam a arte.”123 Seria interessante pensar sua concepção

de Museu não a partir da bipolaridade ou da disjunção, mas através do

caráter reversível que confere aos termos que descrevem sua estética.

Em suma, os termos se atravessam interminavelmente revelando fraturas

e aberturas das quais transbordam tempo e matéria.

Smithson não foi o único artista ou pensador, evidentemente, a

questionar o valor representacional da história. Verifica-se que, desde

suas tumultuadas posições - não definidas como pró ou contra o 119 Ibid., p. 42. 120SMITHSON, R.; KAPROW, A. What is a musem?, p.41. 121SMITHSON, R. Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson, p. 279. 122 Ibid., p. 280. 123SMITHSON, R.. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 194.

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minimalismo - até sua inserção direta na crítica poética, Smithson se

orienta por uma discursividade própria que paradoxalmente divide seus

termos com as formulações de Arte Americana. Pode-se asseverar que a

imaginação, o pragmatismo, a abstração, a experiência são constitutivos,

em maior ou menor grau, da Arte Americana e que estabelecem, por

assim dizer, um projeto histórico ao qual Smithson pertence. Num cenário

de arte extremamente formalizado, as questões sobre fazer, conceber,

agir, circular e pensar apontam para outra estruturação. As proposições

de Smithson coincidem, por assim dizer, com as de outros artistas da sua

geração. Para entender o deslocamento conceitual do meio de arte, se

coloca em discussão dois momentos (movimentos): expressionismo

abstrato e minimalismo. Numa primeira visada, seria inevitável encontrá-

los na polarização de posições, mas, detendo-se mais ao cerne do

debate, a arte é prevista em sua condição de existência: a possibilidade

de mudança perceptiva.

O modo operacional da poética de Robert Smithson comporta um

universo amplo de eventos e linguagens extremamente singulares.

Porém, os aspectos da sua obra fazem parte, em maior ou menor grau,

do conjunto proposto pela geração de artistas da Land Art, sobretudo, se

se pensar os trabalhos de Michael Heizer e Dennis Oppenheim. De início,

o apego aos elementos naturais decorre da possibilidade plástica que

eles podem oferecer à produção plástica seguindo a experiência de

desmaterialização124 do objeto artístico recorrente na produção dos anos

60. Além disso, o contexto artístico dos meados dos anos 60 e início dos

anos 70, entre outras coisas, coloca em jogo a turbulenta relação entre

artistas e galerias de arte, no fundo, a preocupação com o lugar do

espectador e o engajamento físico e mental dos artistas. A pulsão de

Smithson, nos anos iniciais dos seus projetos, resulta na distância do

objeto de arte tal como era pensado até então, privilegia a “(...) noção de

escultura como lugar” afirmação de Maggie Gilchrist que se segue: “Ele

pratica ao mesmo tempo uma valorização, condicionada durante o

124Tese amplamente discutida pelo crítico americano Harold Rosenberg no texto A Desmaterialização da arte de 1970 e do livro de Lucy Lippard Six Years: The Desmaterialization of the art object from 1966 to 1972. Além, do importante texto de Rosalind Krauss Sens et Sensibilité de 1973.

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período 1966-69 pela arte em processo, de característica transitória da

matéria e das circunstâncias espaciais e temporais.”125 A recusa de

Smithson pelas instituições como lugar legítimo da arte está em seu

“Esboço para o Simpósio de Yale”126 de 1968. Alguns dos 32 pontos

propostos pelo artista merecem ser mencionados:

Contra categorias absolutas. 1-Categoria – uma espécie de divisão num esquema da classificação 2-A concepção do criticismo moderno de arte em termos de categorias - o visual sendo pintura, escultura, arquitetura e filmes. 3-O criticismo moderno tem trazido a divisão sobre estética a essas categorias. 4-Arte como um conjunto estético existe apartado do criticismo moderno. (...) 21- A condição da arte é incognoscível. 30- A nova estética não vê valor algum na escultura trabalhada e na pintura pintada à mão. 32 – O problema é que não há problema.

O distanciamento das proposições críticas segue o lastro da

produção altamente institucionalizada da modernidade (criticismo) da arte

americana. O indício dessa problemática relação artista-galeria-público

encontra-se nos textos de diversos comentadores, artistas e críticos,

dentre os quais, Brian O’Doherty que procura explicar a função da galeria

nos termos da modernidade, quer dizer, sua neutralidade que surgiria da

relação comercial entre marchand, público e curador:

Talvez seja por isso que a arte dos anos 70 concentre suas idéias radicais não tanto na arte quanto em suas atitudes em relação à estrutura herdada da ‘arte’, cujo principal símbolo é o recinto da galeria.127

O peso real e definitivo da instituição-arte promove complexa

reformulação na atuação do artista que passa a ter sua produção voltada

para a atribulada interação galeria, curadoria e crítica. A filósofa Anne

Cauquelin afirma que seria a desmaterialização da arte dos anos 60 que

pusera em cena outro jogo: “o diapasão do artista”128. Todavia, esse

pronunciamento já se encontrava nos escritos de Smithson, sobretudo 125 GILCHRIST, M. Ruine des anciennes frontières, p. 19. 126 SMITHSON, R. Outline for Yale symposium, p.340. 127 O’DOHERTY, B. No Interior do Cubo Branco. São Paulo: 2007. PP. 86. 128CAUQUELIN, A. Freqüentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea, p. 69.

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Cultural Confinament129 de 1972, e ressoa nos importantes artigos do

crítico americano Harold Rosenberg, no texto A Desestetização da arte,

de 1970 e do livro de Lucy Lippard Six Years: The Desmaterialization of

the art object from 1966 to 1972. Além, do texto de Rosalind Krauss Sens

et Sensibilité de 1973. Para Rosenberg, a produção artística procura uma

saída ao impasse sucitado, naquele momento, pelo suporte-tela que, no

entanto, segundo o crítico, se volta para a mesma questão do

modernismo: “Apesar de sua nostalgia a pela realidade, a arte

desestetizada nunca foi outra coisa senão um movimento da arte.”130

Tangenciando a questão do historicismo moderno, Lucy Lippard, recorre

ao um certo evolucionismo nos termos da desmaterialização da arte.

Porém, assegurada a necessidade da reformulação dessa questão

problemática pela produção artística dos meados dos anos 60 e início dos

70, vale mencionar o desdobramento da discussão com o texto Sens et

Sensibilité de Rosalind Krauss que se colocada refratária à nomeação

classificatória do termo desmaterialização e opta por desvelar o circuito do

pós-minimalismo, permitindo com isso uma abertura que expõe as

singularidades dos discursos e das práticas artísticas e evita fechar a

questão pautada somente em determinismos:

‘Desmaterialização’ é uma categoria que não permite distinguir, por exemplo, a obra de Sol LeWitt, Bochner, Rockburne e Richard Tuttle dos outros tipos de arte que se passam por objetos – como em Bobo Barry, Joseph Kosuth ou Douglas Huebler. Ela não permite apreciar o quanto a significação dos trabalhos do primeiro grupo se opõe radicalmente ao tipo de conteúdo (aos modelos de formulação da significação) veiculado pelos trabalhos do segundo grupo. Ou o conceitualismo desenvolvido pelo último demonstra um profundo tradicionalismo frente à questão da significação.131

O discurso crítico passa a verificar os deslocamentos da produção

artística que não poderia mais ser definida a partir de “um termo

129 Smithson encara essa problemática da desmaterialização do objeto ao longo de sua produção, bem como, em suas obras que não prescindem da natureza para estarem em constante transformação. No entanto, aponta-se esse texto importante para o tema porque ele ganha forma de manifesto como nota do editor dos Collected Writings: “The statement was published originally in the Documenta 5 catalogue as Smithson’s contribution to the exhibition.” In: Smithson, Robert. Cultural Confinement, p. 154. 130ROSENBERG, H. A desestetização da arte, p. 224. 131 KRAUSS, R. Sens et Sensibilité, p. 37.

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sintético.”132 Tal acontecimento eclode porque a arte, de um modo geral,

deixa de seguir o eixo da noção de “estilo coletivo” para reivindicar a

liberdade como poética. É certo que a liberdade deve ser vista como

manifestação do caráter pluralista, pois, ela surge no momento das

pesquisas e especulações sobre o que seriam os meios artísticos e quais

os fluxos e intercâmbios da instituição-arte. Se a arte passa a ser da

ordem da multiplicidade de poéticas, a crítica deve então seguir o mesmo

nexo e procurar uma discursividade que englobe essas novas dicções.

Outros parâmetros apresentam-se no complexo universo dos meios

artísticos proporcionando flexões e novas orientações como é o caso da

introdução, na crítica de arte, das especulações sobre a linguagem –

direcionadas pelo estruturalismo, pós-estruturalismo e filosofia da

linguagem. Entre os meios artísticos e crítica de arte, convergem essas

noções de linguagem. Esta equivalência se dá no lastro da passagem do

medium específico e bem delimitado, com léxico, sintaxe e vocabulário

próprios, para a noção do imbricamento e justaposição dos vários meios

que não excluem as mediações com as instituições de arte, urbanismo,

etc. A crítica de arte evidencia portanto os nós da linguagem plástica

escorada em novas possibilidades teóricas através das quais encontra

outras modulações discursivas. A narrativa sobre a arte equaciona as

falas dos artistas aos significados engendrados a partir dessa outra

sintonia com os meios artísticos. A ploriferação dos sentidos da arte

alcança outras dimensões como, por exemplo, a introdução das questões

semânticas e a polissemia decorrente da noção de que um indício pode

circular por diversos mediums133. O caráter indiciário da arte parte das

criações artísticas e ao mesmo tempo passa a pertencer ao universo da

crítica. Da dissolução do objeto artístico até a descoberta/invenção de

sites que instituem novas articulações para a produção, é possível traçar

cruzamentos que incluam além da transgressão da percepção, a

relevância estatutária dos sites. Miwon Kwon, teórica da arte, atribui à

passagem do trabalho artístico nominal (objeto) para a obra como

132 Expressão que Rosalind Krauss utiliza para definir o caráter plural da arte a partir dos anos 70, designando Expressionismo abstrato e minimalismo como os últimos termos sintéticos das décadas precedentes. Cf. Notes sur l'index. 133 Cf. KRAUSS, R. Notes sur l'index, p.43.

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processo, o caminho para a densidade das novas relações da instituição-

arte:

Coincidente com este movimento da desmaterialização do site é o desenvolvimento da desestetização (i.e. retirada do prazer visual) e a desmaterialização do trabalho de arte. Voltando-se contra a natureza dos hábitos e desejos institucionais, e continuando a resistir à comercialização da arte no/para o lugar do mercado, a arte do site-specific adota estratégias que são igual e agressivamente anti-visual, informativa, textual, exposicional, didática ou imaterial, (...) O ‘trabalho’ não procura mais ser um nome/processo, mas um verbo/processo, provocando o olhar perspicaz dos espectadores críticos (não apenas fisicamente) a respeito das condições ideológicas da visada. Nesse contexto, a garantia de uma relação específica entre um trabalho de arte e seu ‘site’ não é baseada na permanência física desta relação (como exigido por Serra134, por exemplo), mas preferencialmente no reconhecimento da sua nebulosa impermanência, para ser experenciado como única e momentânea situação.135

Kwon sustenta a tese de que os sites-specifics ganham, na

produção plástica dos anos 90 e na reavaliação do movimento dos anos

60 e 70, uma espécie de amplificação, a partir do momento em que os

artistas procuram fora dos mediums de arte outras relações que

sustentariam os trabalhos. Eles se voltam para a cultura tida como uma

rede interdisciplinar em que estariam incluídos: disciplinas acadêmicas

strito sensu, discurso popular, tecnologia, etc. A autora cita o texto de

Robert Smithson, Cultural Confinement, para mostrar que, daquele

momento em diante, a questão pertenceria à: “(…) crítica da cultura que

inclui espaços não-arte, instituições não-arte e problemas não-arte

(turvando a divisão entre arte e não-arte, de fato).”136No entanto, não

parece ser este o problema de Smithson, em sua declaração, critica a

curadoria e convoca os artistas a assumirem um controle maior sobre

suas produções de modo a melhor orientar a percepção:

O Confinamento Cultural acontece quando um curador impõe seus próprios limites sobre uma exibição de arte, antes de pedir ao artista para colocar os seus limites. Espera-se dos artistas a conformidade às

134 A respeito de sua obra Tilted Arc. Segue a observação de Miwon Kwon: “A declaração de Serra, proferida vinte anos depois no contexto público da arte, é uma defesa indignada, que assinala o ponto crítico para a especificidade do site, ao menos para uma versão que poderia priorizar a inseparabilidade física entre um trabalho e seu local [site] de instalação.” In: KWON, M. One Place after Another: notes on site specificity, p. 87. 135KWON, M. One Place after Another: notes on site specificity, p. 91. 136 Ibid., p. 92.

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categorias fraudulentas.137

O artista não define o que seria cultura – termo complexo e de

problemática definição - em sua acepção, assim, deve-se tomar a

expressão a partir mesmo da sua generalidade. A poética de Smithson,

desde sempre, flerta com a arte calcada em sua indissociabilidade com o

mundo. Por trás dessa comunhão existe a força da literalidade, seja

material ou imaginária.

Ora, o conjunto de questões complexas que o meio artístico

formula, expõe a necessidade de outro enfrentamento no qual paisagem e

natureza, e seu contraponto, a galeria ganham re-significações, isto é, a

dimensão simbólica e excessivamente ficcional, além obviamente da

literalidade.

Certamente conscientes da problemática relação dos meios da arte

naquele momento, Robert Smithson, Dennis Oppenheim e Michael Heizer

oferecem perspectivas novas na Discussão entre Heizer, Oppenheim e

Smithson, publicada em 1970 no periódico Avalanche, texto fundamental

sobre as reflexões acerca da Land Art. Nela, percebe-se o frescor da

descoberta da possibilidade plástica da terra, da invenção do espaço

exterior como lugar da arte e a interação direta e sem mediações desses

termos. Os três artistas se colocam em questão e disso resulta o

aparecimento de suas poéticas, evidentemente, resguardadas as

diferenças primordiais das abordagens de cada um. De início, Michael

Heizer deseja trabalhar com a escala, restrição absoluta do espaço da

galeria: “Trabalho do lado de fora porque é o único lugar onde posso

deslocar massas. Gosto da escala – essa é certamente uma diferença

entre trabalhar em uma galeria e trabalhar ao ar livre.”138.O traço

simbólico no apego à terra fica marcadamente em seus trabalhos,

diferentemente do tipo de relação estabelecida com a galeria que Robert

Smithson e Dennis Oppenheim139 privilegiam. Oppenheim se liga,

segundo Smithson, ao sentido interior-exterior, pela própria

137SMITHSON, R. Cultural Confinement, p. 154. 138SMITHSON, R. Discussão entre Heizer, Oppenheim e Smithson, p. 278. 139 A relação entre Robert Smithson e Dennis Oppenheim será discutida no capítulo 3 deste trabalho a partir do envolvimento de ambos com a cartografia.

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impossibilidade do diálogo direto com o cubo da galeria. O exemplo que

Oppenheim oferece da sua operação entre externo e interno seria a

propósito do seu projeto no lago congelado do Maine:

Nesse caso, trata-se de uma aplicação de um quadro teórico a uma situação física – estou, de fato, cortando essa faixa da ilha com motosserras. Algumas coisas interessantes acontecem durante este processo: há uma tendência a se ter idéias grandiosas quando se observa amplas áreas em mapas, depois se descobre que é difícil atingi-las, então se desenvolve uma árdua relação com a região. Se eu fosse chamado por uma galeria para expor minha peça do Maine, obviamente não seria capaz. Então faria uma maquete.140

Diferentemente do procedimento de Dennis Oppenheim, Smithson

vislumbra a relação entre exterior e interior de modo complementar,

unificando-os através de uma linha sensível que se pode chamar de

mapa, neste caso específico, mapa tridimensional ou cristalografia.

Interessa a Smithson sobretudo a dialética site/non-site. Porém, a

ampliação do campo da arte não estabelece um tipo de liberdade

diferente das obras feitas para galeria, interessa sim, para Smithson, ao

menos a analogia, a idéia que conjuga mente e matéria: o entre141.

Proposição que Heizer parecer compartilhar já que, para ele, deve

pertencer ao artista, os limites de sua arte.

A nostalgia que move Oppenheim a se relacionar com a galeria

parece trazer de volta o sentido de originalidade e pertencimento: “Tenho

uma proposta que envolve remover as tábuas do assoalho [da galeria] e

ocasionalmente arrancar o chão inteiro. Sinto que isso é engatinhar de

volta ao site original”.142 Aparentemente, existe a tentativa de retorno ao

meio de arte já estabelecido, no entanto, esse ato aproxima-se muito mais

da subversão dos ditames do modernismo que se centram numa dita

imposição por parte das instituições, evidenciados talvez na produção das

telas do expressionismo abstrato e mesmo da abstração pós-pictórica.

Smithson coloca-se indiferente frente às discussões com o meio de arte,

sua aproximação indica a busca por um caminho tangencial, não

propondo um embate, mas induzindo à incerteza, assim, ele revela:

140 SMITHSON, R. Discussão entre Heizer, Oppenheim e Smithson, p. 277. 141 Tema difundo pelo pós-estruturalismo, sobretudo, por Gilles Deleuze. 142 SMITHSON, R. loc. cit. p. 280.

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Trata-se de uma incerteza, porque a instabilidade de modo geral, se tornou muito importante. Então o retorno à Mãe Terra constitui um renascimento de um sentimento muito arcaico. Qualquer tipo de compreensão que vá além disso é essencialmente artificial.143

Nem sempre as afirmações de Smithson correspondem a tópicos

programáticos, pois ele mesmo afirma, na entrevista, sua intenção de

resguardar do site a desnaturalização, isto é, a evidência perceptiva da

operação do deslocamento que, de algum modo, resvala para o

artificialismo de certas ficções. A fala de Smithson mantém sua riqueza

exatamente pela ambigüidade dos termos e proposições. Obviamente,

não se coloca aqui a contradição e, por isso mesmo, certa inviabilidade

lógica, mas a impossibilidade de conceituação com juízos ditos

verdadeiros e determinantes. Ora, trata-se de arte, no caso de Smithson,

o desdobramento constante no qual palavra gera palavra, distorção gera

torção, flexão gera reflexão, do fluxo ao refluxo, e, por fim, poesia gerada

pela terra, todos conduzidos pela entropia.

Convém lembrar que tratar de geologia implica, para os

acadêmicos e técnicos, a disciplina ciência. Nesse ponto, Smithson e

Heizer partilham discursos semelhantes: ciência é ficção e ciência é

superação. De Heizer: “Teorias científicas, no que me diz respeito,

poderiam muito bem ser mágica. Não concordo com nenhuma delas”.

Perguntado para Smithson e Heizer: “Vocês as vêem como ficção?”

Resposta de Smithson: “Sim”. E para Heizer: “Sim. Acho que se temos

algum objetivo em mente é o de suplantar a ciência.”144 O problema das

teorias científicas tratados por Smithson resguarda um cunho poético,

muito além do fato político, talvez como não o seria para Michael Heizer.

Em diversos momentos dos trabalhos de Smithson, a ciência pode ser

compreendida a partir dessa bela frase: “A ciência é uma choupana no

meio do fluxo de lavas das idéias. Tudo deve voltar para a poeira. A poeira

da lua talvez.”145 No fundo, para esses artistas, parece ser colocado na

ordem do dia um problema antes temporal que espacial.

143 Ibid., p. 283. 144 Ibid., p. 283. 145 Ibid., p. 284.

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A galeria não seria apenas o ponto de partida da discussão entre

esses três grandes nomes da Land Art. Muito do que se discute nesse

momento refere-se direta ou indiretamente ao movimento minimalista, no

que este atribui ao estatuto do objeto – lembrando ainda da necessidade

da desmaterialização do objeto ou da sua reapresentação a partir de outro

lugar poético. A idéia de Michael Heizer parece sintetizar, não quer dizer

diminuir a questão, pelo contrário, parece torná-la ainda mais complexa:

Suponho que quando se insiste por bastante tempo em algo, quando se consegue convencer os outros de que este algo é arte. Acho que o olhar da arte está se alargando. A idéia de escultura foi destruída, subvertida, derrubada E a idéia de pintura também foi subvertida. Isso aconteceu de modo muito estranho, por meio de um processo de questionamento lógico feito pelos artistas. Não foi como esses vários visuais que surgem a cada 20 anos mais ou menos; eles são apenas fenômenos menores dentro do fenômeno maior que será lembrado.146

Trecho que conserva certo tom profético que muito difere da

acepção de Smithson sobre arte. A parceria com os artistas de sua

geração Land Art resguarda o desejo de encontrar/ser uma voz

dissonante que pretende anunciar a necessidade de se pensar arte a

partir da redefinição – não programática, diga-se - dos seus termos. Como

assinala Rosalind Krauss, no livro Caminhos da Escultura Moderna,

especificamente no capítulo Duplo Negativo: uma nova sintaxe para a

Escultura, o trabalho de Michael Heizer Duplo Negativo tem como efeito:

(...) declarar a excentricidade da posição que ocupamos relativamente a nossos centros físicos e psicológicos. (...) Uma vez que é necessário olhar através do desfiladeiro para enxergarmos a imagem refletida do espaço que ocupamos, a extensão do desfiladeiro em si deve ser incorporada ao recinto formado pela escultura.147

A persistência em trazer nova perspectiva à escultura permeia as

proposições deste grupo que, nos dizeres de Heizer, afirma a opção por

uma forma menos rígida e tudo que ela possivelmente engloba, tal como

soldar, polir, montar, construir. Smithson não adota esta posição que

incluiria uma ruptura com aquele modelo de escultura; sua preocupação,

se é que no caso de Smithson se pode falar em preocupação ou 146 Ibid., p. 287. 147 KRAUSS, R. Caminhos da Escultura moderna, p.335.

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engajamento, seria, pois, muito mais um distanciamento com o qual

amplia a possibilidade da sua criação plástica. O tom com o qual profere

sua acepção de galeria oferece uma qualidade de assepsia, pois seu

interesse pela limpeza ou pureza do espaço reforça sua operação

dialética ao ter como objetivo a contaminação e a impureza:

Tornei-me interessado em chamar atenção para a abstração da galeria como sala, e ainda, ao mesmo tempo, fazendo o exame em sites menos neutros, você sabe, sites que poderiam ser neutralizados pela galeria.148

Garantida a formulação de outra plasticidade para a

escultura/intervenção, entra em foco, ao longo do texto da entrevista dos

artistas, a veiculação e o significado da fotografia. Os artistas estão

atentos ao novo medium149 e o colocam em discussão, indagando por um

possível esvaziamento dos trabalhos se o resultado final (galeria-público)

fosse através das fotografias. De Smithson: “As fotografias roubam o

espírito do trabalho...”,150 porém, Oppenheim antevê, com maior clareza,

essa questão no que diz respeito à Land Art:

Uma fotografia vai se tornar ainda mais importante do que ela é agora (...) Vamos presumir que a arte se afastou de sua fase manual que agora diz respeito mais à disposição de material e à especulação. Então o trabalho de arte tem de ser visto ou abstraído a partir de uma fotografia, mais do que feito. Não creio que a fotografia poderia ter tido, no passado, a mesma riqueza de significado que tem agora. Mas não sou particularmente um defensor da fotografia. Às vezes argumentam que a foto é uma distorção da percepção sensorial.151

No auge do surgimento dos novos meios de arte e suas relações,

revela-se certa desconfiança em relação a fotografia como resíduo das

obras da Land Art que têm como princípio a imensa distância física das

galerias. São obras que não prescindem da experiência e da percepção

do espectador, no percurso, para fruí-las; seria então o espaço desvelado 148 SMITHSON, R. Interview with Robert Smithson for the archives of American Art/ Smithsonian Institution, p.296. 149 Certamente a ampla relação entre fotografia e arte não se reduz a esta questão da Land Art. Outros movimentos tiveram também a preocupação com o meio fotográfico, desde sua manipulação plástica até como meio de circulação das obras. 150 SMITHSON, R. Discussão entre Heizer, Oppenheim e Smithson , p. 286. 151 Ibid., p. 286.

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em tempo e, assim talvez, o receio dos artistas de que a fotografia

pudesse esvaziar o sentido da experiência plástica. No entanto,

desconfianças a parte, a fotografia passa a ser aliada, melhor dizendo,

transforma-se num meio próprio de arte contemporânea sem resquícios

de dúvidas ou de questionamento. Portanto a afirmação “A fotografia

considerada como medium intermediário entre o imaginário e o real ou

ainda como espaço ou superfície transicional”152 ganha força e passa a

ser incorporada amplamente no ambiente artístico.153

Os tópicos abordados sobre a Land Art foram tratados como

apresentação. Sem dúvida alguma a complexidade do movimento

extrapola esse breve comentário. Não se trata de uma tese sobre as

questões da Land Art, mas, ao discorrer sobre o trabalho de Robert

Smithson algumas dessas questões são atravessadas.

Lapidar exemplo da comunhão poética daquela geração na

interação galeria e arte encontra-se nos textos/trabalhos The Domain of

the Great Bear, de 1966, em parceria com Mel Bochner e What is a

Museum?, este, em parceria com Allan Kaprow, de 1967. São trabalhos

que se apresentam no limite entre teoria e obra154 e na urgência de se

inserirem na contingência do meio artístico. O primeiro trabalho

mencionado ganha tonalidades de arte conceitual ao funcionar como

espécie de guia-pantomima de exposição do Hayden Planetarium. Toda

problemática relação entre arte e instituição é tratada poética e

linguisticamente em Great Bear: como podem os artistas se deslocarem

do seu meio de arte específico?

Great Bear se compõe de fotos, signos ubíquos e textos que

revelam aspectos invisíveis e lugares improváveis no, sempre

considerado lugar seguro e provável, da instituição. O estranhamento do

texto está calcado na sua falsa semelhança, carregada de tom burlesco,

com os filmes de sci-fiction, Entra-se no artigo como se o leitor estivesse

numa sala de cinema (visão/audição). Não é desconhecida a predileção

152 MEREDIEN, F. Hôtel des Amériques: essai sur l’art américain, p. 95. 153 Tema que será tratado a partir das obras de Robert Smithson que pretende a indistinção dos meios plásticos. 154 Não se trata, pois, do caráter epistemológico dos escritos de arte proposto por W. J. T. Mitchell que sustenta a tese da substituição da ut pictura poesis para ut pictura theoria. Tema tratado no texto Ut Pictura Theoria: abstract painting and the repression of language.

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de Smithson por Roger Cormac, cineasta cuja produção pode-se assinalar

de escatológica, e que talvez tenha inspirado o artista em sua reflexão

sobre alguns não-lugares.

A apresentação de lugares que um dia existiram despertam o jogo

entre presença e ausência, ou mesmo espaços que contaminam espaços

e sobre os quais não se pode definir uma espacialidade precisa – tópico

da entropia, problema do significado -, acepção marcadamente

imaginativa. O trabalho Great Bear também pode ser escutado,

explicando melhor, ainda que seja um texto impresso numa revista –

proposição bem ao gosto de Mel Bochner, existe da parte dos artistas a

preocupação em manter a gravação da exibição do planetário dividida em:

Mostrar a inserção (...) Operação I(...) Tópico(...) Inserir (...) Operação II (...) Tópico (...) Inserir (...) Operação III (...) Tópico (...) Inserir (...) Operação IV (...) Tópico (...) Inserir (...)155

Contudo, não é apenas o fac-símile do programa do show. No

texto, a audição está entremeada pelos comentários dos artistas,

revelados na minúscula nota: “Esboço da mostra, cortesia do Museum of

Natural History - Hayden planetarium. Inserido pelo autor.”156. Na

seqüência do trabalho, as imagens de destruição são aparentadas com

lado mais potente da entropia. São meteoros, forças cósmicas,

resfriamento de territórios que aparenta outro planeta, futuro mesclado ao

passado e a possibilidade do presente como ficção, pois, este literalmente

está no ato de cada visada do texto, em qualquer época, na recepção do

trabalho:

As preocupações antropomórficas estão extintas desse turbilhão de universos dispostos. Um “dinossauro” atordoado, um “urso” perdido, presos em impressionantes deslocamentos de tempo. A “Natureza” é simulada e transformada em fotografias pintadas à mão de um passado ou futuro extremo.157

Entre as fotos do trabalho, uma, em particular, corporifica as

fissuras no solo: misto de teoria, realidade da terra, ruptura, forma do

155 SMITHSON, R.; BOCHNER, M. The Domain of the great Bear, p. 30. 156 Ibid., p. 30. 157 Ibid., p. 31.

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cristal, entropia. Não obstante, a passagem chama atenção ao apontar o

domínio do artista na consolidação da obra. Questão importante para os

artistas tanto da Land Art quanto artistas da arte conceitual. Curioso como

as questões da arte e do medium se tornam a própria obra sem

pertencerem à esfera de uma crítica programática, cabendo pois ao

domínio do artista; assim, antecipa Robert Smithson:

Eu fiz um artigo com Mel Bochner no Planetarium de Hayden que, novamente, era um tipo de uma investigação de um lugar específico; não no nível da ciência, mas nos termos da discussão sobre a atual construção do edifício, um estudo quase antropológico de um planetario do ponto de vista do artista.158

A porosidade das poéticas dos artistas neste trabalho se reforça

com a elocução de Bochner, num outro momento, em 1967, que aqui

ressoa:

Seja o que for a arte, ela é, e a crítica, que é linguagem, é uma coisa diferente. A linguagem chega a um acordo com a arte criando estruturas paralelas ou fazendo transposições, e ambas as coisas não são sequer adequadas. (Isso não quer dizer que eu pense, entretanto, que seja verdade que nada possa ser dito a não ser sobre a própria linguagem).159

What’s a museum? Artigo-coletivo no qual a distopia parece

interceder na dicção dos dois artistas: Robert Smithson e Allan Kaprow. A

entrevista-diálogo, uma conversa de estúdio, texto programático, fotos

com legendas explicativas, como sabê-lo?

A pulsão pela palavra unifica os dois artistas; pensamento sobre o

lugar da arte apresenta-se em cada trecho do diálogo. Kaprow assume

um tom polêmico, enquanto Smithson se distancia. Porém, a estrutura do

artigo constrói proposições de novos mediums de arte e quais seriam

seus lugares e funções. Não é por menos, a apresentação de fotografias

e imagens que sugerem outra espacialidade: museu e cemitério (princípio

da disrupção). Novamente, interpreta-se uma tendência ao panorama 158 SMITHSON, R. Interview with Robert Smithson for the archives of American Art/ Smithsonian Institution, p. 296. 159 BOCHNER, M. Arte serial, sistemas, solipsismo, p. 169 passim.

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zero.

A ligação entre matéria e mente que orienta os trabalhos de Robert

Smithson encontra-se também nos seus relatos críticos dos anos 60, na

verdade, os textos seriam, grosso modo, o exercício da matéria

experimentada na mente, bem como, seu reverso. O pensamento sobre a

arte, seus meios, sua eclosão, seu desaparecimento, torna-se material

plástico, no que se pode indicar, em Smithson, uma acepção de mundo

que passa pelo exercício de uma imaginação literalista160. Seria assim: o

(con)texto de arte – aqui se aceita que a arte, mais do que seu discurso

sobre ela, pode ser a realização do texto, sua materialidade - deveria

passar pela reflexão sobre onde estaria o ponto fulcral entre arte e crítica.

O trabalho Enantiomorphics Chambers recorre à ambivalência do

ponto focal: caixas construídas com espelhos e acrílico colorido - cuja

forma-idéia remete ao cristal - são posicionadas de modo a provocar a

percepção. Ao se posicionar em frente às caixas, o espectador não

consegue focar o centro do espaço. Através do jogo de reflexões e

contra-reflexões, a visão binocular e focal é anulada ao serem

evidenciados alguns pontos-cegos. Nas palavras de Smithson: “Não pode

ver o trabalho todo de um único ponto da vista, porque o ponto [vanishing

point161] está dividido e invertido. A estrutura é ‘flat', mas com uma

dimensão extra.”162 Rosalind Krauss estabelece que os modelos

enantiomórficos de Smithson trazem à tona o problema da unicidade

visual – tal como eram tratadas as experiências estéticas modernistas;

assim, ela afirma: “É importante notar que os modelos [Chambers] que

Smithson realmente constrói, quer nas suas primeiras esculturas, quer

nos escritos, eram determinantemente anti-visualistas.”163 Talvez seja

desse modo que Smithson encare a arte americana, somente aceitando a

possibilidade de outra perspectiva.

160 Expressão tomada de empréstimo do título do livro: MELVILLE, S. Robert Smithson: a literalist of the imagination. 161 Não existe, entre nós, um termo que especifique os vanishing points. Eles são a ilusão de ponto formado entre duas retas paralelas. 162 SMITHSON, R. Interpolation of the enantiomorphics, p.40. 163KRAUSS, R.; BOIS, Y.-A. Formless: a user's guide, p. 76.

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Fig. 7. Enantiomorphics Chambers

Figs. 8 e 9. Modelo - Enantiomorphics Chambers

Nos primeiros ensaios de sua carreira, Smithson sugere uma

adesão direta à discussão dos mediums, dos materiais, da crítica, no

entanto, revelam-se marcadamente poéticos, pois funcionam a partir da

confluência entre termos e formas. Letter to the Editor, de 1967, que se

reconhece primeiramente como resposta ao questionamento do

minimalismo feito pelo crítico Michael Fried, pois como carta-resposta leva

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à suposição da necessidade de defesa, da tomada de posição. No

entanto, a carta constrói um lugar para o qual Smithson constantemente

se (des)coloca: o não-lugar que possivelmente acentuaria seu

desconforto e incômodo com as concepções estabelecidas. O texto

aparenta certa indiferença no tom distanciado apenas para deixar

transparecer o desvio de lugar – um artista que não se coloca num

embate direto, ciente somente da mudança de foco que a arte sofreu -, ou

seja, o que realmente merece ser discutido de fato, no fundo, o desejo de

experiência. Ainda, cabe afirmar que não se trata de mudança ou

sucessão, segundo certa lógica modernista, mas da necessidade de

prescindir do condicionamento perceptivo em relação aos meios de arte.

No imaginário do artista, o crítico se transmuta na forma minimalista a

qual tanto combatia: “Considerar uma progressão subdividida de ‘Frieds’

em milhões de estágios”164 A ambivalência irônica de Smithson permite

que se recoloque seus termos e reivindique outros parâmetros. Smithson

percebe que as duas posições antagônicas, na verdade, são formas das

mesmas locuções:

Cada guerra é uma batalha com reflexos. Michael Fried ataca o que ele é. É um naturalista que ataca o tempo natural. Existiria um duplo Michael Fried - um Fried atemporal e um Fried temporal?165

Que se coloque em pauta a posição de Smithson em relação ao

minimalismo. Os textos do artista não convergem para uma adesão ao

movimento, aliás, mesmo os artistas da Minimal Art não se declaravam

pertencentes a algum movimento: “Os novos trabalhos tridimensionais

não constituem um movimento, escola ou estilo. Os aspectos comuns são

muito gerais e muito pouco comuns para definirem um movimento.”166Tal

ressalva abre o texto de Donald Judd, Objetos Específicos, corroborando

a idéia de dispersão poética antitética ao embaraço teórico a que chegara

a pintura americana. Dados a importância e o impacto das novas

esculturas (objetos específicos) que anunciam a mudança de mentalidade 164SMITHSON, R. Letter to the Editor, p. 67 165 Ibid., p. 67 166JUDD, D. Objetos Específicos , p. 96.

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dos artistas, Smithson sente-se compelido a escrever um artigo dedicado

a Donald Judd, em 1965. Entretanto, o texto não se encarrega de

preconizar os trabalhos como uma saída para o impasse da pintura e da

escultura americana. O olhar de Smithson para obra de Judd indica o

prenúncio do importante texto Um passeio pelos monumentos de Passaic,

realizado dois anos depois. A explicação é simples: para compreender os

fluxos que vislumbra na produção de Judd, Smithson identifica certa frase

do panfleto da companhia de materiais industriais para criar uma

composição com a arte: “combina beleza e grande durabilidade”167. Ao

trazer a leitura do panfleto da empresa, Smithson adota o tom mais

prosaico e indiferente possível e, esta fala, cujo gosto peculiar pelo

detalhe mais desimportante dota perversamente sua discursividade da

espessura do sem-sentido, do quase-absurdo. Os atos dos dois textos –

as leituras (não são contemplativas, são ativas) do panfleto e do artigo de

jornal - se sobrepõem estabelecendo o direcionamento da ação/recepção

de certo romantismo: “Li as propagandas da quarta-capa e passei os

olhos pelos trabalhos de terra.”168 A alteração do estado perceptivo –

desde o sujeito que percebe ao objeto percebido – permite que Smithson

veja a arte como móvel do pensamento e do remanejamento da matéria.

Mostrar a simples exterioridade da frase do panfleto e buscar, a partir

dela, algum sentido para a nomeação do que seja arte, caracteriza o

modo como Smithson se coloca no circuito artístico, certamente, em

algum desvio indeterminado. Partindo desse princípio, Smithson percebe

o deslocamento constante de Judd em busca dos novos materiais. De

uma indiferente superfície material, Judd conseguiria acionar o sentido de

aventura que se entrelaça à materialidade, neste caso, anódina, para lhe

acrescentar densidade. O papel do artista não seria apenas optar pelos

indiferentes produtos da indústria, caberia a ele compor uma narrativa que

se aproxima da fabulação da mitologia contemporânea. Essa peripécia é

descrita, por Smithson, não por ser unicamente deslocamento, mas

porque o deslocamento cobre-se de ressonâncias que chegam à

descoberta de uma arte que estava por vir:

167 SMITHSON, R. Donald Judd, p. 4. 168 SMITHSON, R. Um passeio pelos monumentos de Passaic, p. 45.

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Ou talvez viajará a Hackensack, New Jersey para investigar um material [liga] descoberto em um tipo novo de pintura a base de zinco chamado Galvanox, que é comparável à galvanização hot-dip. Estes procedimentos tendem a confundir amantes da arte. Eles se perguntam também para onde a arte teria ido ou para onde o trabalho teria ido, ou ambos. É duro para eles compreender que Judd está ocupado em estender a arte a novos meios. Esta aproximação com a técnica não tem nada a ver com noções sentimentais sobre o trabalho. Não há nenhuma manufatura subjetiva. Judd não é um não especialista em determinado tipo do trabalho, mas um artista inteiramente acoplado na multiplicidade das técnicas.169

O topos do artista se transfere, ele percebe o mundo da arte pela

ordem de desintegração. Um ponto crucial do texto que permite a re-

significação da arte está na certeza da proliferação dos meios técnicos,

provavelmente, o gatilho das eclosões poéticas dos anos 60 – valorização

de uma era pós-medium. O problema da indefinição entre escultura e

pintura não seria encarado frontalmente por Smithson. Sua maior

preocupação teria sido com os materiais usados por Judd (acrílico,

compensados, ligas metálicas, etc), pois Smithson lhes atribui

sensibilização à massa física, quer dizer, suas materialidades: “Cada

estrutura de Judd trouxe a questão da forma da matéria”170. A obra de

Judd desperta nele, ou pelo menos acentua, o valor da entropia

certamente evidenciado pela adoção, por parte daquela geração de

artistas, dos materiais industrializados. Em resumo: a presença da massa

física (literalidade das estruturas, dos sólidos) distribuída de modo

seqüencial abole o movimento de rotação – que coube à escultura, na

maioria das vezes, desde sempre - e que, por sua vez, destitui a idéia de

humanismo criado – relação ao antropomorfismo. Assim, não seria, pois,

função do movimento constituir o espaço, porque este se renova numa

presença formal. As estruturas de Judd remetem, segundo Smithson, ao

mundo geológico e à cristalografia, lugares da reflexão da matéria e da

mente. E, neles, as superfícies de Judd se aproximam do caminho da

abstração. Porém, abstração, para Smithson, só está garantida a partir do

trabalho da imaginação, já que a cristalografia permite que suas formas

poliédricas finais executem a extensão de linhas imaginárias. A

ambivalência que Smithson preconiza nos trabalhos de Donald Judd

169 SMITHSON, R. Donald Judd, p. 4. 170 Ibid., p. 5.

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seria, a rigor, propriamente a sua: “O que parece tão sólido e acabado

nos trabalhos de Judd é ao mesmo tempo evasivo e frágil.”171

Entre Donald Judd e Michael Fried, as peças do puzzle de

Smithson se encaixam, possivelmente, mostrando um quadro que se

desenha a partir das idéias-chave da relação

continuidade/descontinuidade do modernismo. São peças que ganham o

contorno dado pela experiência plástica do artista. A poética que

desprivilegia o orgânico, - nota-se a presença um sentido historiográfico: a

organicidade resultante das avaliações dos críticos do expressionismo

abstrato; proposição, evidentemente, desqualificada, por Smithson,

porque a diacronia não seria mais uma condição da experiência da arte.

O inorgânico substituiria a emoção - cujo resultado soa ineficaz àquela

produção - pela abstração, fomentando um espaço para além da ilusão:

O inconsciente não tem lugar em sua arte. Seu estado de mente cristalina removeu para longe o transbordamento orgânico da action painting. Ele passa seus conceitos para a astúcia dos fatos sem nenhuma representação ilusionista.172

Para Smithson, o artista deve ser perspicaz e identificar traços

diferentes da percepção. Tal postura resulta no desmembramento dos

condicionamentos que revela a impossibilidade da arte como um produto

cultivado pela crítica purista de Greenberg e Fried. Decerto, o problema

não se resume de tal modo. O espaço crítico objetivo em nada atraía

Smithson, pois a objetividade tenta apartar-se da vida e o valor romântico

- interpretado neste trabalho – entre arte e vida estaria suprimido. Com a

poética da contaminação, impureza e entropia, Smithson escolhe a

adesão irrestrita à vida: num campo ampliado – caos e cosmos, num

plano circunscrito – matéria e mente. O par arte/vida não possui uma

forma fechada e refratária, ele reverbera nos conceitos de Smithson sobre

par site/non-site. Este descentralizaria as categorias mediadas e

designadas por um meio de arte dito linear. Assim, a idéia de que não é

só a obra, mas a experiência do fazer arte que se institui a partir da

mudança de orientação do artista, ou seja, a realidade (literalidade) da 171 Ibid., p. 6. 172 Ibid., p. 5.

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imagem refletida no espelho – o outro do lugar:

Smithson forçaria em nós a consciência de que se nós o víssemos em um espelho, então seria aquele o lugar de onde nós o vemos: o que nós vemos foi deslocado. Um artista é assim um não fabricante das representações, mas um agente dos deslocamentos - um artífice e não um copista.173

A pergunta seria então quais as conseqüências para a história da

arte e para a crítica das reflexões (pensamento) de Smithson. Há de se

ter em mente que seu pronunciamento adere à constituição do vernáculo

artístico. Seu posicionamento preserva a idéia de deslocamento – do

artista, do medium, dos materiais, do pensamento, da linguagem. Seria,

pois, a história da arte um lugar de invenção? Como se desviar de uma

discursividade e ainda assim pertencer a ela? De que maneira se atinge

tal deslocamento? Para Robert Hobbs, a produção de Smithson permite

que: “A apreensão estética tem a primazia sobre o simples olhar sobre

objeto, esta se torna uma experiência dialética que leva em consideração

o pensamento tanto quanto o olhar e o contexto tanto quanto o objeto

isolado.”174

A intervenção de Smithson no cenário da arte não é programática,

mistura-se, pois, à concepção de suas obras. Uma pista sobre o valor da

arte atribuído por ele pode relacionar-se à oposição entre orgânico e

inorgânico. O orgânico estaria atrelado à concepção modernista e o

inorgânico à eclosão de outro fazer. O tempo do real se encontra para

Smithson obviamente no tempo geológico similar à matéria estratificada,

tal como as camadas geológicas. Stephen Melville atribui ao inorgânico a

lógica da descontinuidade e da heterogeneidade oposta ao contínuo

desenrolar orgânico. O autor interpreta, na insistência de Smithson pelo

uso dos espelhos e vidros, um correlato aos modelos históricos: num

primeiro momento, estes materiais são colocados sobrepostos mesclando

transparência e opacidade para depois encontrarem-se quebrados, como

no The Map of Glass, talvez uma espécie de liberdade conquistada pela

violência. Seria, para Melville, a metáfora da troca de estatuto da história

173 MELVILLE, S. Robert Smithson: a literalist of the imagination, p. 33 174 HOBBS, R. Robert Smithson: Sculptures, p. 108.

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da arte. Decerto, o tratamento do The Map of Glass como metáfora foge à

literalidade presente na sua produção, no entanto, seria curioso marcar o

uso profícuo de modelos (projeto e produto) para se entender sua

concepção de história da arte. A adoção da cristalografia como mapa

tridimensional extrapola o sentido de modelos como distintos do objeto.

Seria o modelo, tomando a acepção de Claude Lévi-Strauss, um

experimento real e não apenas uma projeção passiva. Sendo, portanto,

homólogos e co-extensivos. Para Smithson:

Toda arte é verdadeiramente uma miniatura e quando a própria terra torna-se uma miniatura pode-se revertê-la. Você pode olhar um grão de areia como uma rocha gigante. Isto é apenas como você quer vê-lo nos seus termos de escala. É por isso que a escala é um assunto chave para a arte.175

Questão primordial, para o artista, envolve as dimensões

temporais, por isso, suas idéias acerca do problema histórico denotam

desde sua intervenção no circuito artístico – sempre tangenciais - até a

plasticidade e materialidade da disciplina – propriedade poética, com a

qual trabalha. A dimensão temporal assume uma espessura criadora que

promove certa dilatação das questões. Convém lembrar que

temporalidade significa, para o artista, o encontro com a profundidade das

camadas geológicas revertidas na tensão entre diacronia e anacronia,

bem como, ações disruptivas.

Não é por menos que o contexto específico da produção artística

dos anos 60, na escrita do artista, ganha contorno poético. Assim, sentir,

em Smithson, a defesa ou contraposição ao minimalismo consistiria num

equívoco, pois, a convergência da produção de Donald Judd com a

apresentação das proposições de Smithson tem, no limite, revelação de

um espaço ampliado para a arte. Desse modo, se afirma o

descontentamento de Smithson com Robert Morris ainda no artigo sobre

Judd. Smithson não explicita sua crítica, mas é possível encontrá-la no

trecho que segue: “Com Judd não há confusão entre antropomorfismo e

175 SMITHSON, R. Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson , p.211.

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abstração”176. O antropomorfismo, ao qual é possível se referir, se

reconhece nas obras de Robert Morris do minimalismo performático. Da

parte de Smithson fica claro que o antropomorfismo induz à organicidade

que se segue de uma ausência da massa física e seria esta ausência que

levaria, naquele momento, à action painting e, mesmo os movimentos que

se valem da assemblage e das perfomances, à atrofia. Curiosamente,

Smithson não adota um tom contrário ao minimalismo – dada sua postura

quase sempre distanciada -, apenas percebe nele propostas antitéticas ao

formalismo, concluindo que a negatividade do discurso anti-formalista

implicaria permanecer em sua clave. Para ele, o minimalismo desvela a

importância da materialidade ou, como definido pelos próprios artistas

(Judd, Sol LeWitt e Morris), da literalidade, além da apresentação do

tempo somente pela estrutura material:

Questões sobre a forma parecem tão desesperadamente inadequadas quanto às questões sobre conteúdo. Problemas são desnecessários porque representam valores que criam a ilusão do propósito. O problema forma x conteúdo, por exemplo, conduz à dialética ilusionista que se torna, na melhor das hipóteses, reação formalista contra conteúdo. 177

As posições de Judd e Michael Fried são lidas, de modo geral,

como oposições. Certamente o são. Porém, a leitura é fruto do

antagonismo, propriamente modernista, da necessidade de sucessão que

talvez não caiba mais no momento da própria produção minimalista e das

outras vertentes. Antes de apresentar a saída para a polarização, talvez

seja preciso evidenciar as questões do embate. A convicção de Fried

sobre a separação das esferas artísticas resulta na perpetuação da

discursividade moderna no que ela tem de autotélica e auto-referente:

A forma [shape] tem sido central também para a pintura mais significativa dos últimos anos. Em vários ensaios recentes, venho tentando mostrar como, nos trabalhos de Noland, Olistki e Stella, um conflito vem gradualmente emergindo entre a forma como uma qualidade fundamental dos objetos e a forma como meio da pintura. Grosso modo, o sucesso ou fracasso de uma dada pintura vai depender de sua habilidade de sustentar, eliminar ou tornar convincente sua forma [shape] – ou assim, ou a pintura de algum modo se recusando ou esquivando de

176 Ibid., p. 5. 177 SMITHSON, R. Entropy and the new monuments, p.11 passim.

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ter que enfrentar a questão.178

Isto posto, percebe-se que as questões de Judd atacam

diretamente o postulado de Fried – recorrente em Greenberg. Já, os

trabalhos de Judd: “(...) eliminam todas as dúvidas sobre a importância da

estrutura por afirmar sua presença formal além de qualquer referência à

pintura flat.”179 A menção é direta; o alvo: expressionismo abstrato. A

contraposição colocada aqui se destina a compreender - a partir de qual

ponto ou na ausência desse intermédio - como Robert Smithson pode

concentrar suas idéias sobre a materialidade e temporalidade das obras

de arte e ao mesmo tempo opor-se ou se valer das duas matrizes

artísticas americanas, expressionismo abstrato e minimalismo.

Extremamente paradoxais e ambíguas, as suposições de Smithson sobre

o modernismo de Greenberg e Fried esbarram no problema da sua

produção plástica. Não se pretende aqui estabelecer a ruptura entre

modernismo e o suposto pós-modernismo, mas, neste momento, os

artistas vislumbram uma era que não seja subjugada ao modernismo de

passos sucessivos e lógicos. No entanto, a despeito da consciência de

Smithson do desenrolar da produção da sua geração, pode-se verificar

que sua linguagem plástica dialoga com as questões modernistas. No

limite, como, observado por Jack Flam, na introdução do livro Robert

Smithson: the collected writings, o artista não saíra dos postulados da

modernidade:

Em sua constante polêmica contra as categorias tradicionais e a definição dessas categorias por críticos tais como Clement Greenberg e Michael Fried, Smithson é visto agora como um articulador do anti-, e também da posição pós-modernista. Parece-me, entretanto, que em última análise Smithson faz parte de um modernismo amplamente concebido.180

Porém, sem pretender estipular em que era Smithson se situa –

modernidade e pós-modernidade, seria importante desde já reafirmar que 178 FRIED, M. Arte e Objetividade, p. 133. 179 Ibid., p. 5. 180 FLAM, J. (ed.).Introduction: reading Robert Smithson, p.XXV.

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os novos postulados propostos pelo artista se inserem na problemática

eclosão de uma atual era pós-medium. Os relatos de Smithson sobre

história, arte e mundo levam em conta, certamente, a concepção da

transitividade constante entre estas noções. A arte pode ser distinguida no

entendimento do que seria mundo, o mundo se compõe através da

natureza, esta, por sua vez, empresta à paisagem sua força motriz. Não

necessariamente a ordem dos termos se dá a partir da cronologia linear

ou por um ponto fixo de origem, pelo contrário, existe um esforço do

artista em aderir instâncias aparentemente distintas para provocar-lhes

pequenos choques que produzem outra discursividade, esta, regulada

pela afasia, atopia, distopia, reflexos enantiamórficos, etc.

Provocar um discurso poético construído também por um

vocabulário científico torna-se recurso constante no trabalho do artista. Ao

considerar a ciência como ficção, Smithson aniquila qualquer tipo de

positivismo, que busca no fato um traço de verdade, e transforma as

teorias científicas em procedimento do qual resultam textos e trabalhos

afinados com o processo artístico e poético: essas esferas são articuladas

no filme Spiral Jetty181. Fósseis e restos de dinossauros traduzem o

componente científico em imagens entremeadas ao ato escultórico, diga-

se, concentração e expansão de forças, do passado e da atualidade,

cujas correspondências encontram-se nas imagens dos tratores e

caminhões revolvendo a terra num esforço incomensurável equivalente às

transubstanciações naturais que sobrepõem eras, aniquilam, dissolvem e

destroem o solo.

Os escritos compõem-se de relatos publicados ou não pelo artista,

textos atrelados aos trabalhos ou esculturas gráficas endereçados

diretamente ao leitor-fruidor ou ao meio de arte sem intermediações da

crítica de arte. O processo teórico permanece ligado ao imaginário do

artista e o discurso gerado desdobra-se em diversas falas e inserções no

circuito de arte. Parte da estratégia seria elaborar textos que trouxessem

reflexões sobre a prática artística ao mesmo patamar da produção

plástica, resultando daí, escritos que transbordam poéticas, avançando

em direção oposta aos informativos dos catálogos e das revistas 181 Tema do capítulo 3.

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especializadas e à ficha de catalogação museológica. Este corpus textual

busca a literalidade material e a expressão potencial das linguagens. A

linguagem pertence ao grau zero, pois, com ela e através dela, Smithson

garante sobretudo uma espécie de plasticidade – um modo de fazer, de

criar - situada entre matéria e idéia:

Palavras e rochas contêm uma linguagem que segue a sintaxe de fendas e rupturas. Olhe qualquer palavra por bastante tempo e você vai vê-la se abrir em uma série de falhas, em um terreno de partículas, cada uma contendo seu próprio vazio.182

A materialidade da escrita espelha-se evidentemente na natureza-

paisagem, na sua espessura do processo temporal. Smithson engendra

um mundo em que arte e natureza-paisagem pertencem ao mesmo solo:

a ficção. A ciência positivista, cujo primado reside em certezas teóricas,

também passa a ser vista como processo artístico resvalando para o

ficcional. Para ele, é possível assimilar e transformar questões positivas e

objetivas e tratá-las como realidade – certamente ficcional - em arte.

Edgar Allan Poe, um dos escritores com quem Smithson dialoga183,

estabelece o livre trânsito entre poesia e ciência assim:

O que aqui adianto é verdade; isto, portanto, não pode morrer – ou, se por qualquer acaso, viesse a ser esmagado, a ponto de morrer, ‘de novo ressuscitará na Vida Eterna’. Não obstante, é apenas como um Poema que desejo que este trabalho seja julgado, depois da minha morte.

Este pequeno trecho faz parte da introdução do conto analítico184

Eureka: ensaio sobre o universo material e espiritual185, nele, o poeta

americano descreve a sobreposição da física e da metafísica

entremeadas pela poesia. Para Poe, o exercício da imaginação multiplica

as possibilidades da escrita – prosa ou poesia. O olhar do poeta volta-se

para a observação da paisagem como uma unidade plástica e infinita em 182SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 191. 183 Robert Smithson incorpora, em seus escritos, trechos e imagens de outros autores e artistas. No caso de Edgar Allan Poe e Jorge Luís Borges, a relação se torna bastante estreita. Em diversos momentos, o artista cita passagens e as trata como ponto de partida para alguma reflexão ou trabalho. 184CORTÁZAR, J. Poe: poeta, crítico e narrador, p. 128. 185 POE, E. A. Eureka: ensaio sobre o universo material e espiritual, p. 193.

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oposição portanto ao olhar obscurecido do cientista que desconheceria a

imensidão e a potência poética da linha do horizonte. A escrita do poeta é

também o seu olhar que perscruta profundamente a natureza-paisagem:

Quem, do alto do Etna, deixa os olhos vagarem, sem rumo, em derredor, sente-se principalmente impressionado pela extensão e pela diversidade do cenário. Somente girando, rapidamente, sobre os calcanhares poderia esse alguém esperar compreender o panorama na sublimidade de sua unidade. Mas como, no cimo do Etna, ninguém ainda pensou girar sobre os calcanhares, ninguém jamais apreendeu a completa unicidade da paisagem;186.

O entrelace da ciência e da poesia produz uma visão do universo

que se estabelece como ficção apenas. Aliás, a admiração de Robert

Smithson por Edgar Allan Poe é notória e constantemente exposta. Em

diversos momentos, o artista traz a voz do poeta para sua obra que

discorre sobre entropia, deslocamento, cartografia, derrisão, ruínas.

Smithson assume, espelhado em Poe, a postura do narrador, crítico,

personagem e ensaísta. Além de Eureka, Smithson cita, em seus escritos,

Relato de Arthur Gordon Pym e A Queda do Solar de Usher, para recriar

alguns dos seus temas. Em Uma sedimentação da mente: projetos de

terra, de 1969, Smithson reafirma sua afinidade com Poe ao reconhecer o

parentesco entre seus earthworks (earthwords) e uma passagem do

Relato de Arthur Gordon Pym: “Suas descrições das ravinas e buracos

parecem no limiar de propostas de 'earthwords'. As formas das próprias

ravinas se tornam 'raízes verbais' que dispensam a diferença entre a

escuridão e a luz.”187 Para o artista, calcado nos diálogos com a literatura

e com as teorias científicas, tanto o místico e poético quanto a ciência

são, de um modo geral, anverso e reverso de um mesmo elemento

ficcional. E desta irrupção revela-se a arte.

186 Ibid., p. 194. 187SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 192.

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2.6 Arte não é feita dessa maneira. Ela é muito mais rigorosa!188

Robert Smithson começa sua atividade literária e artística em 1959.

Durante os dois anos subseqüentes escreve versos para, em 1962,

passar à prosa veiculada em revistas de arte. O primeiro texto publicado

para exposição em Nova York, em 1965, mostra desde então sua tomada

de posição em relação ao seu ofício. Com o subtítulo artist’s statement, o

breve texto Quick Millions mostra o processo poético desde a formação

do título do texto-obra até a exibição em fotografia. Segue-se então um

período de explosão literária que se desenrola por trilhas e veredas,

acentuando o caráter de aventura, da deriva, da descoberta de outra

modalidade de percepção.

As principais idéias tratam das questões que entrelaçam homem e

mundo, arte e natureza, escala e imaginação, tempo e vazio. A arte deve

ser vista então como potência, como geradora e produtora misturada ao

mundo, atestando-lhe novos sentidos, perspectivas e circunstâncias, num

processo constante de colocação e recolocação de questões, de devires.

O destino da atividade artística não seria fechar-se em si mesma – as

esferas que se definiam por mediums auto-suficientes ou submeter-se

aos regulamentos críticos e programáticos, - mas misturar-se ao mundo,

consubstanciá-lo sobretudo. A possibilidade da infinita configuração da

arte como experiência de mundo busca suporte na interação imaginativa

entre mente e matéria para se colocar em processo: “Não há perfeição na

minha escala, porque meus pensamentos tanto quanto o material com o

qual eu lido estão sempre se desprendendo, rachando e sangrando nas

bordas.”189 .Smithson privilegia a comunhão dos mediums díspares que

orienta a mistura de linguagem e sedimentos poéticos; retórica material;

tudo isso: arte. São pensamentos que abordam o desdobramento da arte,

ferramentas e suas extensões:

Os produtos da indústria e da tecnologia começaram a ter um apelo para

188SMITHSON, R. Discussão entre Heizer, Oppenheim e Smithson , p. 281. 189 SMITHSON, R. Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson, p. 202.

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o artista que queria trabalhar como um 'soldador de aço' ou um ' técnico de laboratório'. (...) Aço moldado e alumínio fundido são manufaturados a máquina e o resultado é que carregam o selo da ideologia tecnológica. (...) Excluindo processos tecnológicos da criação artística, começamos a descobrir outros processos de uma ordem mais fundamental. O rompimento ou fragmentação da matéria chama a atenção para o substrato da Terra, antes dela ser excessivamente refinada pela indústria para se tornar metal laminado, vigas, perfis de alumínio, tubos, fios, canos, liga de aço, barras de ferro etc.190

A correlação entre as possibilidades instrumentais – técnicas - e a

sua poética promove a idéia de passagem, de atravessamento. Os

earthprojects ou earthworks – composições com a palavra “earth” que

funcionam como a ligação entre substância (matéria) e entendimento

(mente) –, textos, esculturas, site/nonsite, são trabalhos feitos de diversos

elementos que, correspondentes entre si, reforçam materialidade e

temporalidade (im)puras. Smithson não defende um único procedimento

artístico, o artista evita o paroxismo de uma esfera específica e auto-

referencial ao buscar o aspecto indistinto e mutável que persiste em

permanecer nas fronteiras dos meios de arte:

(...) E quanto aos meios [mediums], na arte...os mapas referentes à peça são como desenhos, e se relacionam com ela do mesmo modo que o estudo sobre uma pintura faria referência sobre a pintura. Não são a mesma coisa, mas todos fazem referências. É como um conjunto de materiais diferentes e discretos...191

Os trabalhos de Smithson são caminhos abertos, sempre

cambiáveis: do texto para imagem fotográfica e fílmica, das imagens para

espaço, da linguagem para o sentimento e os sentidos, do material para o

mental. O processo de transformação atrai o artista por expor a

mutabilidade da obra na sua experimentação. Smithson poucas vezes

menciona, em seus escritos, o termo metamorfose; procura, isto sim, uma

compreensão dos trabalhos que exclua a transformação com sentido

evolutivo e que introduza a mobilidade circular, perceptiva e, por que não,

afetiva? O artista reconhece nos homens e na arte o componente erosivo,

vital portanto da existência. 190SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 189. 191SMITHSON, R. Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson, p.208.

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Smithson, leitor erudito, dialoga com artistas, arquitetos, cineastas,

escritores sobretudo; entre suas atuações, desmonta a narrativa da

história da arte, a matéria arte e o fazer artístico; e, não sem espanto,

num curtíssimo espaço de tempo produtivo. Robert Smithson morreria

num acidente aéreo, aos 35 anos de idade, enquanto sobrevoava o

terreno da obra Amarillo Ramp, em 1973, no Texas. A tragicidade de sua

morte talvez assuma um traço sublime como indica Maggie Gilchrist em

Ruines des anciennes frontières: “A vida e a arte eram arriscadas e

deviam ser vividas sob o fio da navalha.”192

Aqui, articula-se o contexto pontualmente romântico matizado pelo

pragmatismo e existencialismo presentes na formação da arte americana.

Para isso, faz-se necessário o esboço da Arte Americana que, autônoma

e hegemônica, surge como espaço consolidado no qual participam

esferas estatutárias do seu próprio sistema: crítica, mercado, artista,

instituições de arte. Ela toma para si a experiência do real e a estética

sem grandes e profundas mediações filosóficas, nas quais os artistas

atuam espontaneamente sem se subsumirem plenamente na

racionalidade, e da qual se pode dizer necessária à estrutura moderna e

humanista européia.

A impossibilidade de criar um circuito artístico que seja reenviado

constantemente às obras do passado, ficara para trás, ou seja, a história

repercute como esgotamento e impede ou delimita, de alguma maneira, a

efervescência necessária à mobilidade das trocas poéticas. Isto não quer

dizer que a arte feita na América do Norte não tenha historicidade, pois, a

dimensão atual não prescinde da espessura temporal. As obras são

tributárias do momento presente, as forças que a geram decorrem dos

atos, do fazer direto: a certeza da existência artística.

Das obras de arte americanas193 - que já se orientam calcadas, em

maior ou menor grau, na lógica de certa autonomia da esfera plástica –

pode-se aferir que do simples princípio da concretude do processo

pictórico e, que a partir dele, se apresentam como realidade plástica. 192 GILCHRIST, M. Ruine des anciennes frontières, p. 26. 193 A referência feita à pintura americana procura localizar o período inicial do expressionismo abstrato, no entanto, não se pode deixar de lembrar de Thomas Hart Benton, mestre de Jackson Pollock, bem como, de Edward Hooper, entre tantos outros pejorativamente considerados regionalistas.

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Somente cabe interrogá-las sobre sua execução, sobre o ato da sua

realização; questionar sua existência como veículo metafísico ou como

exercício da tradição seria desviar-se do novo propósito: espacialidade

em ato - presença simples. Além disso, a produção americana estabelece

primeiramente uma relação de apropriação da arte européia no que ela se

apresenta materialmente, sem se aprofundar muito nas trocas simbólicas,

de caráter metafísico ou transcendental.194

O olhar do americano revitaliza as concepções de espaço, utilização

de material, circulação das obras, relações entre instituições, mercado de

arte: o circuito recém-formado seria capaz de conferir desdobramentos

para a modernidade em arte. O historiador de arte Giulio Carlo Argan

observa que “O credo da sociedade puritana dos Estados Unidos diz:

existe-se para fazer. O contrário é que é verdadeiro: faz-se para existir, é

preciso fazer a existência.”195 Já o crítico de arte Harold Rosenberg

escreve:

Ser um homem novo não é uma condição e sim um esforço – esforço subseqüente a uma revelação em benefício do qual formas existentes são descartadas como irrelevantes ou radicalmente revistas.”196

No que conclui que a autenticidade americana (arte primitiva) situa-

se a partir das experiências singulares, (humanas) com suas criações

destituídas de ambiente, adequando-a ao dito do poeta americano Walt

Whitman: nada tem, e tudo está por fazer.197

Porém, se a arte pode ser aproximada da esfera de conhecimento

adequada à experiência estética do real, talvez o caminho correto para

indicar a transposição de centros de produção esteja na fórmula de

Argan: A Crise da Arte como Ciência Européia. Título de um capítulo do

seu Arte Moderna, essa frase reveladora atesta a impossibilidade do

espaço europeu como criador das articulações entre os meios artísticos e

científicos. Explica-se com isso a incoerência da racionalidade positiva

que eclode em guerras implicando o impedimento de renovação plástica.

194 Cf. ARGAN, G. C. Arte Moderna. 195 Ibid., p. 531. 196 ROSENBERG, H. A Tradição do novo, p. 7. 197 Referência que Harold Rosenberg faz do poema de Walt Whitman. Cf. A Tradição do novo, p. 7.

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Argan deduz que “A crise da arte se insere no quadro da crise mais ampla

e mais séria da relação entre cultura e poder.”198, revertendo os fluxos da

criação plástica que encapsulados, primeiramente, numa entidade

racionalista, tornam-se ações humanas.

Convém estabelecer que, a partir desse momento, se observa os

atos humanos como realidade empírica. Assim, permite-se dizer que a

arena cultural americana pode ser traduzida no pragmatismo, – John

Dewey - matizada de certo sublime romântico e transcendentalista –

Ralph Waldo Emerson. A pintura americana realiza a profecia romântico-

existencial fundada na transliteração do vocabulário europeu para

ativamente penetrar na sua verdade/realidade. O expressionismo

abstrato199, com uma geração de pintores para os quais a existência não

se distinguia do real, realiza essa profecia. A realidade do fazer restitui a

espessura da vida de modo que o pincel serve de extensão do braço,

alongado no traço de tinta da tela. O gesto reverbera na superfície do

quadro num constante pôr-se em obra. A verdade do movimento do pintor

habita o quadro – o mundo. Referência aos drippings do Jackson Pollock

– gotejamento do esforço; a tradução da experiência do mundo real,

prosaico, factível seria formadora também da solidão das imagens de

Jasper Johns – números isolados que seriam fragmentos do mundo –

espécie de linguagem-limite; da assemblage de Robert Rauschenberg – a

coleção do aleatório disposta em camadas da vida; da presença física do

espaço nas esculturas de Tony Smith – espaço se transfigura em massa.

A realidade da experiência seriam as atividades humanas e delas

sobressai algo que se pode chamar espessura da existência.

A formulação da existência pragmática e sublime – leia-se poética

americana, seria apenas um dos modos do romantismo americano. Nos

ensaios formadores de Ralph Waldo Emerson, o encontrar-se – sua

pergunta por onde estamos, movimento da experiência200 - pertence à

escrita, tem como objeto a prática da filosofia (pensamento) como

198 ARGAN, G. C. Arte Moderna, p. 509. 199 Vale citar a definição de Clement Greenberg do expressionismo abstrato:” O tipo de pintura que se tornou conhecido com expressionismo abstrato é ao mesmo tempo abstrato e pictórico.”, daí parte para justificar o termo abstração pictórica seguido da argumentação que estabelece para a abstração pós-pictórica. Cf.Abstração pós-pictórica,p. 113. 200 Título do ensaio de Ralph Waldo Emerson.

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experimentação. O filósofo americano Stanley Cavell reconhece que, em

Emerson, os ensaios são os próprios pensar e filosofar: “Como pode a

filosofia – na forma de apelo à filosofia – assemelhar-se à escrita de

Emerson?” 201 Para o filósofo, Emerson pertence ao universo de autores

que percebem na linguagem a possibilidade de pensamento. Pois,

através da expressão das palavras, as virtudes do homem o fazem

reconhecer em si mesmo força de realização, semelhante à força da

natureza:

A visão de cada palavra na nossa linguagem, na linguagem humana, como que requerendo atenção, como se a linguagem enquanto tal houvesse decaído, ou pudesse aspirar a um estado superior – um estado, digamos, em que o mundo se expressasse com mais perfeição é algo que, suponho, tem em si uma história complexa. Tal concepção em Emerson e em Thoreau é essencial para a visão de ambos de que o mundo em sua totalidade requer atenção, a bem dizer, redenção, que ele está decaído, morto; é, assim, essencial para aquilo que chamamos, neles, de romantismo.202

O transcendentalismo emersoniano, formador do corpus do

Romantismo americano parte do questionamento sobre a origem da

nação; inspira o auto-reconhecimento e a necessidade de realização.

Além disso, a indagação implica o compromisso de escritores – Emerson

e Thoreau, entre outros – com o destino do país. Seria pois certa adesão

a um projeto futuro e não mera nostalgia do passado que se coloca em

interrogação. Assim, se observa que a busca pelo sentido de

pertencimento começa fraturada. Deseja-se a origem, mas ela talvez já

não seja possível. Perturbadora clarividência que se perpetua em

perguntas: “Onde nos encontramos? Numa série da qual não

conhecemos os extremos e nem mesmo acreditamos que eles

existam.”203 Questionamento de caráter extremamente individual e

subjetivo, bem ao gosto romântico, a sentença já contém os indícios de

resposta. Ela é filosofia porque se faz caminho.

Às palavras compete a redenção; aí está o sentido de perda, de

abando que garante ao novo – inexistência de si - seu próprio

fundamento. Pela perda, sentimento de ausência, surge o encontro: 201 CAVELL, Stanley. Esta América nova, ainda inabordáve,. p. 112. 202 Ibid., p. 81. 203EMERSON, R. W. Experiência, p. 125.

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descobre-se si mesmo. A filosofia americana – transcendentalismo

emersoniano - inaugura esse momento de reconhecimento da

necessidade de conversão: da perda para a descoberta. A aventura

romântica guia-se com certa melancolia: são palavras comuns,

costuradas ao mundo real que não tem em si uma origem ou um destino.

O método de Emerson, se lhe é possível atribuir um, pode ser

considerado como “(...) a conversão é girar completamente sobre os

próprios passos, reverter, o que parece ser uma questão de

descontinuidade.”204 Culto a um certo novo, a expressão de Emerson

sinaliza para o constante vislumbre do fundamento e sua imediata

aniquilação. O exercício constante de voltar-se para si mesmo lega a

experiência de uma escritura própria, primitiva, americana sugerida na

longa passagem abaixo do filósofo francês Éric Alliez. Ele estipula a

aliança entre a filosofia prosaica, também, rica e nobre de Ralph Emerson

e o pensamento de Stanley Cavell que busca no ordinário e usual

(segundo seus estudos sobre Wittgenstein) os fundamentos da filosofia

americana:

Comentando inúmeras vezes essa frase – ‘ a autonomia (self-reliance) é a aversão da conformidade’ -, Cavell compreende que Emerson tem a intuição da América no/do pensamento descobrindo ou encontrando o fato de que ‘pensar é fazer virar [...] as palavras da vida ordinária (e, portanto,as formas presentes de nossa vida) que hoje repugnam, ofendem o pensamento. O que equivale a dizer que pensar não é mais fundar (ou desconstruir o fundamento: para fazê-lo é preciso ter anteriormente identificado a filosofia como sistema à sua fundação unificada), mas muito precisamente encontrar. Pois, que é ‘encontrar’, senão operar a conversão do cotidiano, ‘do comum, do baixo, do familiar’, e perceber o sublime na poesia do ordinário como o cinema sabe fazer? Encontrar é, portanto, por-se à busca de um ordinário que nunca é dado mas imaginado como fazendo parte da linguagem real da vida, do ‘condicionado’ pela redenção que a vida da linguagem busca na filosofia e, assim, elevado ‘à linguagem e à vida transfiguradas, como a um cotidiano último’. Onde está envolvida ‘a inquietante estranheza do ordinário’

Talvez essa formulação, entremeada de citações de diversos

autores e textos, suscite um percurso prático para concreção do novo

porque restitui os atos que, na profética escrita de Emerson, revela-se

constituição de mundo: “(...) o verdadeiro romance que a existência do

204 ALLIEZ, É. Posfácio: Stanley Cavell ou uma modernidade ainda inabordável?, 90.

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mundo tem por fim realizar será a transformação do gênio em poder

prático.”205

O traço prático consubstanciado em pensamento permanece como

matéria para a construção e fomentação do pensamento americano. O

filósofo americano Richard Rorty atribui um indício romântico que se

estende de Emerson a Dewey: “Creio que existe um forte romantismo na

base da cultura americana, que, intacto, escorre de Emerson para

Dewey.”206 Responder pelo caráter romântico da cultura americana traz

para primeiro plano a harmonia entre os ensaios transcendentalistas de

Ralph Waldo Emerson e a pedagogia de John Dewey. O primeiro

destinado a viver a passagem da primeira metade do século XIX para a

segunda metade – época da formulação de autoconsciência americana,

dedica grande parte de seus 80 anos de vida ao pensamento sobre o

homem americano. John Dewey formula sua teoria pragmática voltada

para a comunicação e educação, e, essa acepção envolve seu conceito

de cultura:“(...) assim a cultura não é um produto dos esforços dos

homens lançado no vazio ou sobre eles mesmos, mas da interação

prolongada e acumulativa com o ambiente.”207Dewey, inicialmente, foi

discípulo de Hegel, porém, no decorrer da sua longa vida universitária

pôde perceber que as considerações teológicas oriundas da metafísica do

alemão deveriam recolocar-se na ordem secular, qual seja, cultural208. A

partir desse momento, sua síntese se opõe ao mestre ao adotar o

evolucionismo de Charles Darwin: eis a naturalização da dialética

hegeliana. Dewey segue a movimentação dialética, mas por percurso que

não exclui a secularização. Segundo Richard Rorty, Dewey pensa na

linguagem como uma ferramenta que conserva o sentido de uso não

como algo cristalizado:

A linguagem pode ser usada para criticar e ampliar a si própria, assim como um indivíduo exercita seu corpo para desenvolvê-lo e fortalecê-lo. Mas não é possível ver a linguagem como um todo em relação a algo ao qual se aplica ou como meio para justificar sua finalidade. As

205 EMERSON, R. W. Experiência, p. 148. 206 BORRADORI, G. A Filosofia Americana: conversações, p. 153. 207 DEWEY, J. Art as experience, p.28. 208 O termo cultura é polissêmico. Para John Dewey, cultura mantém suas circunstâncias seculares antes que metafísicas.

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artes, ciências e filosofia, como integração e auto-reflexão, constituem o processo para o engrandecimento e o fortalecimento.209

Na noção de linguagem de Dewey, estaria a interação entre as

esferas: arte, ciência e educação (filosofia). A educação modelaria o

indivíduo – lembrando-se sempre do movimento do espírito rumo ao

absoluto – a partir dos seus próprios contextos e circunstâncias. Assim, o

trabalho de arte seria uma das esferas a concentrar em si a experiência,

pois toda e qualquer obra envolve a experiência – mesmo a física - como

parte de sua natureza:

Todo trabalho de arte tem um meio particular pelo qual, entre outras coisas, carrega a qualidade persuasiva do todo. Em toda experiência, tocamos o mundo através de algum tentáculo particular; continuamos nosso intercâmbio com ele, levamos para casa, através de um órgão especializado. O organismo inteiro, com toda sua carga de passado e variados recursos, opera pelo medium particular, aquele do olho, porque interage com o olho, ouvido e toque. As belas artes apreendem este fato e o empurra ao máximo de significância.210

A ciência sugere um método de pensamento separando-se da

idéia da ciência como resultados e produtos finais, desse modo, as

normas didáticas são evitadas para dar lugar à atitude experimental. No

fundamental livro Arte como experiência, Dewey decide-se pelo caminho

da naturalização do indivíduo urdida a sua própria experiência cognitiva

que se faz através de circunstâncias e do ambiente.

Para Richard Rorty, os dois filósofos – Emerson e Dewey -

conseguiram conduzir o pensamento americano para além da filosofia

analítica que proliferou e determinou os estudos de filosofia como

disciplina nas universidades americanas - criticada principalmente por

ater-se à forma do texto, afastando-se do conteúdo ou das espessuras da

vida. Ralph Waldo Emerson e John Dewey são considerados, por muitos,

os pensadores que revelaram à América, sobretudo no campo da filosofia,

sua própria redescoberta. Parece muito sutil a adequação entre as

questões trazidas pelos pensadores, mas convém apresentar uma

passagem de John Dewey sobre autores americanos aos quais atribui

209 RORTY, R. Consequences of Pragmatism, p. XIX. 210 DEWEY, J. Art as Experience, p.195.

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indícios de auto-consciência e que se permitem fazer a crítica da cultura;

entre os escritores mencionados, Ralph Waldo Emerson:

A Casa das Sete Empenas de Nathaniel Hawtohrne, Walden de Thoreau, Ensaios de Emerson e Huckleberry Finn de Mark Twain têm uma relação indiscutível com o meio no qual foram produzidos. Informações históricas e culturais dão luz às causas de sua produção.211

No centro das argumentações sobre a formação do contexto

filosófico americano, existe a vontade de se diferenciar do contexto

europeu. De acordo com o filósofo Stanley Cavell - para quem o auto-

reconhecimento de que a nação americana não estava inserida numa

tradição, tal como a tradição européia, pôde fornecer a eles o tom

autobiográfico – os americanos passam a defrontar-se com a experiência,

aderir-se a ela e revelar-se através dela como cultura. Emerson, artífice

dessa noção, a todo momento, recorre à necessidade de entender o

conjunto formador do homem americano como homem da simplicidade,

da percepção de que ele mesmo seria parte do todo – natureza.

A articulação do sublime romântico na América, segundo o crítico

literário Harold Bloom, esforça-se em constituir um lugar para a

experimentação – pensamento:

Quando Emerson experimenta e descreve os influxos do sublime americano, está criando o grande tropo específico do inconsciente americano que ele mesmo denomina em ‘self-reliance’ [auto-confiança].”212

Ensaio escrito em 1842, A Confiança em si próprio, exercício de

prática e reflexão, assume fundamentalmente a adesão ao que seria a

originalidade do espírito americano. O texto experimenta o sentido

atribuído à confiança, traço prosaico, mas essencial para o sujeito que

busca se conhecer. Ao atestar em si a articulação do pensamento, o

homem conscientiza-se de suas virtudes e com elas se realiza:

Que um homem conheça, pois, seu próprio valor, e tenha as coisas sob o seu tacão. Que não espreite nem olhe a furto nem se esgueire de cá para lá com o ar de um menino de asilo, de um bastardo ou de um

211 DEWEY, J. Art as Experience, p.28. 212 BLOOM, H. Poesia e Repressão: o revisionismo de Blake a Stevens, p. 233.

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intruso, no mundo que existe para ele. 213

Sem desprezar, em absoluto, o discurso formador moderno ao qual

pertenciam a crítica de arte e a produção artística, percebe-se tentativas

de recuperar a legitimidade do espaço artístico americano. Causa

estranheza aproximar vertentes aparentemente tão diferentes, uma

calcada na objetivação do discurso crítico e, outra, respaldada pelo

entendimento das visões de mundo, âmbito da subjetividade. O

pragmatismo constitutivo da sociedade americana elucida, quem sabe, a

preferência moderna pela transformação da tela num espaço real.214

O traçado desses pensadores americanos delineia, sem dúvida

alguma, o espaço plástico americano que rapidamente saíra do papel de

esboço para tomar forma. A velocidade da transformação equaliza-se ao

arrebatamento da sociedade americana na virada da década de 30 para a

de 40. Fôlego político e econômico somado à determinante construção

cultural ambientava essas décadas. São os anos das primeiras críticas de

arte de Harold Rosenberg e Clement Greenberg215. Nesses escritos

críticos estão a qualificação do gosto e suas condições no que tangem às

obras da incipiente produção pictórica americana que prenunciam a nova

estruturação da crítica de arte.

Os textos de Rosenberg estabelecem a consciência de que a

pintura seria uma arena na qual o mundo se desenrola e, caberia ao

artista, descobri-la. No prefácio da segunda edição do A Tradição do

Novo, Rosenberg defende uma avaliação que faça a dissensão do que

seria inovação verdadeira da impostura. O pressuposto dessa avaliação

deveria anteceder ao juízo de gosto216 cujo postulado se atrela a certa

subjetividade. Por estar ligado aos eventos históricos culturais e sociais,

Rosenberg percorre um sentido hegeliano/adorniano das eras históricas

213 EMERSON, R. W. Ensaios, p. 45 passim. 214 A noção de espaço real da tela ganha amplidão a partir da produção dos meados dos anos 50, quando junto à produção artística proliferam as análises críticas. Vale mencionar brevemente uma passagem de Leo Steinberg do texto Outros Critérios: “As pinturas dos últimos quinze a vinte anos insistem numa orientação radicalmente nova, em que a superfície pintada é o análogo não mais de uma experiência visual da natureza, mas de processos operacionais.” ,p. 201. 215 Os textos de Clement Greenberg são Vanguarda e Kitsch, de 1939, e Rumo a um mais novo Laocoonte, de 1940. Harold Rosenberg, em 1940, escreve A Queda de Paris. Estes artigos foram publicados na Partisan Review. 216 Referência ao método de Clement Greenberg que parte da experiência visual, passo inicial ao judiciamento.

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para a arte e da inserção cultural ao se preocupar com a experiência do

pintor no mundo e de que maneira ele o vivencia:

Cada pintor deve fazer a pintura renascer de dentro da sua vida e dos resíduos móveis das memórias da arte embutidas na sua sensibilidade (e na do espectador). O artista se projeta da história da arte e, em última análise, compõe o perfil de seu passado e mesmo de sua própria cultura.217

Rosenberg reivindica um papel mais atuante para o crítico de arte

que lhe permitiria conquistar autonomia:

Se a crítica aguarda que a Estética e a história se reafirmem, estará evitando a aventura de desempenhar um papel nos acontecimentos, emprestando crédito à superstição de que a inteligência mata ou apenas lida com que é morto.218

Seria sua maneira de urdir a autonomia da crítica moderna aos

eventos culturais. Assim, Rosenberg defende a inseparabilidade entre a

coisa feita e os acontecimentos externos, no entanto, tal proposição tem

um limite: os acontecimentos externos não estão isolados, fazem parte do

circuito da inter-relação das esferas autônomas. O crítico volta para o

plano da ação: as origens da action painting não prescindem da sua

autoconsciência como natureza modificada. Ativo, o pintor seria a

expressão viva da sua própria manifestação do mundo.

Clement Greenberg, em 1957, revisa os nexos da formação da

pintura America para concluir em O final dos anos 30 em Nova York:

Pode-se dizer que por volta de 1940 a rua Oito havia alcançado Paris de um modo como a própria Paris ainda não havia alcançado a si mesma, e que um punhado de pintores de Nova York então desconhecidos possuía a cultura pictórica mais madura da época.219

No que cabe a sua conclusão da efetiva consolidação do território

americano como centro cultural artístico: “Se a rua Oito do final dos anos

30 e começo dos anos 40 pretendia se equiparar a Paris, a rua Dez nos

217 ROSENBERG, H. Wilhen de Kooning, p. 234. 218 Id. A Tradição do Novo, p. XIII 219 GREENBERG, C. Arte e Cultura: ensaios críticos, p. 238.

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anos 50 viu Nova York ficar atrás de si mesma.”220 Caminho aberto pelo

aprendizado emersoniano de se olhar para o novo sem grandes dívidas

ou tributos à cultura européia estabelecida. A tarefa fora cumprida de

modo exemplar. Greenberg alerta para a formação dos pintores

americanos concretizada através do exercício de liberdade e autonomia,

expressão da existência e astúcia da experiência visual.

A contigüidade entre a experiência visual e o solo da ação da

pintura se compromete com o existencialismo dessas décadas. Nesse

aspecto, os textos de Harold Rosenberg foram decisivos. No centro da

action painting,221 se estabelece a constatação da realidade do mundo.

As ações Ser e existir pertencem ao mesmo destino, homens existem

porque são livres. A constante liberdade eclode no fazer e seria com esta

liberdade que os artistas da action paintig ganham o mundo e

estabelecem um espaço plástico. Evidentemente, a ambiência dessas

décadas nutre o circuito artístico na sua maneira de conhecer e se

relacionar com a pintura européia.222 Não havia ali submissão, não havia

ainda uma influência tão direta, em realidade, a filiação à modernidade

européia era ao mesmo tempo eficaz – sabia-se das transformações - e

ineficaz – fracasso que gera liberdade de criação e re-experimentação.

Fato que Greenberg esclarece bem no texto Final dos anos 30 em Nova

York:

Por algum tempo a pintura parisiense exerceu uma influência talvez mais decisiva na arte de Nova York através de reproduções em branco e preto do que exemplos diretos, o que, se à primeira vista pode parecer um mal, acabou se revelando providencial, porque permitiu a alguns americanos desenvolver um sentido de cor mais independente, ainda que mais graças à má compreensão ou à ignorância.223

Converge-se o sentido de influência. O aprendizado era, em parte,

liberdade da imaginação; as diretrizes da liberdade coincidem com a 220 Ibid., p. 239. 221 Termo cunhado por Harold Rosenberg totalmente atrelado à suas concepções de arte e mundo, bem como, fundamento do seu exercício crítico. 222 Hubert Damish empreende, numa análise sobre o trabalho crítico de Greenberg, os nexos entre história de arte e crítica da arte, a partir do momento da constituição da vanguarda artística americana e sua autonomia em relação à Europa. Vale mencionar este texto porque o autor procura estabelecer uma metodologia nos escritos de Greenberg que se sustenta a partir do autodidatismo, da qual resulta o encontro equilibrado entre “ressonância cultural, política e teórica.” Cf. O auodidata. P. 87. 223 GREENBERG, C. Arte e Cultura: ensaios críticos, p. 236.

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descoberta de uma poética que se resumia no fazer. A constatação de

que os dois centros de arte haviam finalmente se equiparado serve

apenas para se perceber que a modernidade européia não se esgotara,

pois a partir dos seus princípios – experiência de mundo e realidade do

espaço plástico - estabelece condições reais – como prática americana -

de existência. A pintura americana traz em seu bojo, assim como a arte

européia, a combinação da crítica com a produção artística. Segundo o

teórico Hubert Damish, em O autodidata, seria possível assimilar os

escritos de Greenberg – fundadores “à sua maneira” – aos seguintes

autores: Winckelman, Lessing e Diderot que formam: “Uma trilogia224 em

que a história o disputava com a crítica, a crítica com a teoria, e a teoria

com a história.”225 Significando, a partir da auto-educação, o surgimento

simultâneo da estética, história e teoria que constituem a base da

especificidade da disciplina arte. Pode-se afirmar que se origina, nesse

momento peculiar, a especialização da crítica de arte como garantia da

crítica da cultura: escrever sobre arte americana e européia seria

redesenhar a cultura americana. Contudo, as ressonâncias culturais e

políticas do discurso formador americano não se encontram em

Greenberg apenas. A passagem de Rosenberg sobre o pintor americano

também expressa a homologação da cena cultural à atuação crítica –

aqui, nesta última, obra e texto:

Em determinado instante, para um pintor norte-americano depois do outro, a tela começou a figurar-se como uma arena na qual se age – mais do que um espaço no qual se reproduz, se reinventa, se analisa ou se ‘expressa’ um objeto, real ou imaginado. O que se destinava às telas não era um quadro, mas um acontecimento.226

O legado romântico da crítica de arte remonta certamente à

modernidade crítica e poética dos ensaios de Charles Baudelaire. A

integridade do projeto moderno se preserva e incide sobre a diminuição

da distância entre autor e escrito, por assim dizer, a presentificação

224 Os textos aos quais Damish se refere são: O Salão de 1965, de Denis Diderot, Histoire de l’art chez les Anciens, de Winckelman e O Laocoonte, de Lessing, respectivamente de 1965, 1964 e 1966. 225DAMISH, H. O autodidata, p. 253. 226 ROSENBERG, H. A Tradição do Novo, p.12.

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constante do sujeito – seus afetos, suas dicções - no seu texto. O crítico,

ciente ou não dos devires e potências, permite-se transbordar e, desse

excesso, molda plasticamente o mundo experimentado. Imagem plástica

e sonoridade colorida não são tributárias da crítica classicista de Lessing,

a rigor, a separação entre artes do tempo e artes do espaço. A

autenticidade e legitimidade da crítica de arte romântica – pensa-se aqui

sobretudo em Baudelaire pelo envolvimento direto com as obras de arte -

corrompem os espaços designados como esferas artísticas distintas e

marcam os indícios da dissolução das fronteiras estéticas. Os escritos

críticos surgem no alvorecer da modernidade no instante que o poeta se

reconhece autor do mundo. A escrita concretiza a fabulação da obra de

arte, bem como, a do artista. A natureza, cifrada no texto romântico,

existe somente na ficção do poeta. Ele a imagina arte. E cabe apenas à

arte ater-se aos seus movimentos internos, revelar-se possuidora dos

seus sentidos. O impulso criador da modernidade possui evidentemente

ressonância romântica – novamente, daquele romantismo tardio de

Charles Baudelaire – sobretudo na vontade da escrita crítica de arte. O

crítico moderno – aí se inclui toda uma geração que se orienta pela lógica

moderna da crítica de arte - se inventa no momento presente da

experiência da obra. Uma aproximação que se coloca pertinente como

indício da formação de uma era moderna para arte seria a justaposição

das atuações Charles Baudelaire e Clement Greenberg. Talvez, a

experiência estética, para Baudelaire, seja compartilhada com a memória,

o resgate da experiência desde a pintura do artista até a escrita do crítico

– a propósito das aquarelas de Constantin Guys; talvez esteja, para

Greenberg, na emanação do perene, na evidência reconfortante do meio

plástico; mas, em ambos os casos, ela se faz presente como princípio

ativo: co-atuação. O moderno estaria no vértice entre as escritas de

Greenberg e Baudelaire, somente por ele se explica a possível ligação

entre os dois críticos de épocas e territórios tão distintos:

(...) eles participam do léxico de uma crítica de arte da modernidade: Baudelaire por ter inventado a palavra no seu ensaio sobre Constantin Guys, Greenberg por ter alterado a

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forma e o sentido no que diz respeito ao modernismo.227

Princípios modernos que se articulam a partir dos meios de arte

procurando afirmá-los ou dissolvê-los. No caso do romantismo, prefigura a

tentativa de diluição e atualização dos meios. Não seria, pois, paradoxal

trazer Greenberg como defensor da pureza das esferas e ao mesmo

tempo convocar nele certo romantismo? Porém, não é possível esquivar-

se do tipo de crítica que faz o americano, sem dúvida, ela compreende a

divisão e especificação dos meios de arte, no entanto, persiste uma

vontade, a pulsão de recriar a obra a partir de um olhar novo, mesmo que

este olhar aponte ou aporte no passado das obras ditas mestras:

Permanecendo nos dois [Baudelaire e Greenberg] a comparação de um artista contemporâneo a um grande mestre do passado, que retorna regularmente na função crítica. Ela constitui uma das matrizes do julgamento estético – ou é necessário dizer a forma fundamental do dito julgamento? 228

Autenticar um romantismo em Greenberg pressupõe que haja nele

um irrestrito sentido de vida e sua comunhão com a arte; isto talvez possa

ser encontrado na circulação do crítico pelo universo artístico, em sua

presença constante em galerias, escolas, museus, redações de jornais e

revistas, enfim, nos nichos da arte.

A sensibilização ao ritmo da vida daqueles anos 30 e 40, bem

como, o entendimento das estruturas institucionais marcam o viés autoral

dos textos. A concretude pragmática das esferas artísticas referenda o

modo de produzir e de pensar a arte num universo em ebulição: vive-se

Nova York. A megalópole, com luzes, ritmos e entropia, povoa a mente

dos artistas e críticos: trata-se então do curto-circuito da modernidade

que, para lá, se transfere. A cidade passa a ser real e ficcional e nutre os

críticos e artistas de outro olhar: na mistura típica de sua vida entrópica

restituem-se o prosaico, o detalhe, os resíduos, até mesmo, o transitório

que servira, um dia, de inspiração para o poeta Baudelaire.

O pragmatismo que condiciona a experiência americana está

227 BRUNET, C. Baudelaire et Greenberg: figures du critique d’art em lecteur de poèmes, p. 30. 228 Ibid., p. 30.

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presente, de certa maneira, na forma da recepção dos textos cujo acesso

pretende-se direto aos leitores e aos espectadores. Nos traços de uma

estética doméstica, dita ‘feita em casa’,229 de Greenberg, a simplicidade

dos juízos – ainda que possuam estrutura extremamente complexa - ecoa

na composição crítica e com ela partilha as obras e o mundo. Aqui, sim,

uma tonalidade romântica.

O entendimento da dimensão mundana e real da ação de pintar

reverbera nos textos de Rosenberg – sua designação action painting

demonstra claramente o escopo do seu pensamento. A garantia do

mundo que Pollock dava em seu combate pictórico seria portanto a

realidade da experiência através do exemplar diálogo entre forma e

conteúdo. A arte de Pollock filtra, assimila o entendimento da pintura

européia da modernidade traduzindo o esforço da formulação de um

espaço num golpe só. Decerto, não foi Jackson Pollock o único pintor do

modernismo nos Estados Unidos, segue-se uma geração que sente a

pintura como topos da existência, cuja marca maior pode ser revelada

pelo angustiante sentimento do sublime. Salta aos olhos a relação intra-

poética entre a fundação do pensamento americano com Ralph Waldo

Emerson e a transformação do campo de arte em território novo.

Cada momento de fundação, seja de uma disciplina, seja de visão

de mundo ou mesmo do pensamento filosófico, prevê uma série fluxos e

articulações. Não seria diferente para o romantismo americano,

especificamente, para o sublime, motor dos desdobramentos artísticos de

certas correntes. Nesse caso, a elasticidade do fragmento – escrita

cifrada do romantismo alemão – autentica-se em solo americano. A

dialética entre o todo e a parte, lá, se articula por outro viés. Gilles

Deleuze, ao escrever sobre o poeta norte-americano Walt Whitman,

realiza a distinção essencial entre os fragmentos deste e os de origem

européia:

Os europeus têm um senso inato da totalidade orgânica, ou da composição, mas devem adquirir o senso do fragmento e só podem fazê-lo por meio de uma reflexão trágica ou de uma experiência do

229 Remissão ao título do livro pretendido pelo autor Homemade Esthetics acerca de suas considerações sobre as noções que formula sobre o juízo de gosto e a experiência visual estética, entre outras.

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desastre. Os americanos, ao contrário, têm um senso natural do fragmento, e o que devem conquistar é o sentimento da totalidade, da bela composição. (...) O próprio da América não é, portanto, o fragmentário, mas a espontaneidade do fragmentário: ‘espontâneo e fragmentário’, diz Whitman. (...) A experiência do escritor americano é inseparável da experiência americana, mesmo quando ele não fala da América.230

O fluxo do fragmento do romantismo americano, avaliado por

Deleuze, tem origem na sua qualidade reversível. O diálogo do fragmento

é com o Todo, tal como se coloca na Europa; porém, na América, o

fragmento curiosamente se afasta desse caminho já que, nela, o Todo

ainda não era suposto. A comunhão do fragmento com o estágio da vida

revela-se na espontaneidade proclamada pelo frescor do olhar para o

novo. A América se forma por territórios naturais, por sua geografia e por

suas guerras; no fundo, formulações ficionais:

Se as partes são fragmentos que não podem ser totalizados, pode-se ao menos inventar entre elas relações não-preexistentes, dando testemunho de um progresso na história tanto quanto de uma evolução na natureza.231

A arte americana pôde absorver e transformar as questões trazidas

de uma Europa moderna porque as vivencia exteriormente. Sua superfície

comporta o pathos sublime da reinvenção. E é, na sua superfície, que a

arte se recria. Ponto para Smithson ao proferir: “Roma é como um grande

amontoado de ruínas antigas. A América é desprovida desse background

de restos históricos”232 Apostando nessa apreensão sensível do contexto

europeu e na subseqüente adesão plástica da territorialidade americana,

as gerações posteriores de artistas americanos puderam partir para o

transbordamento dos limites da modernidade-modernismo que eclode

paradoxalmente em ruptura – reversibilidade entre continuidade e

descontinuidade.

O campo aberto para a irrupção sublime da cultura americana de

matiz romântico continuava a alimentar os movimentos que surgiram

230 Deleuze, Gilles. Whitman In: Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. Pp. 67-68. 231 Idem. Pp. 70. 232 Smithson, Robert. Entropy made visible, 1973. In: Flam, Jack (ed.). Robert Smithson: the collected writings.pp.304.

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durante e após o expressionismo abstrato: colorfield painting, nova

figuração, Minimal Art, arte conceitual, Pop Art, Land Art, etc. Num

primeiro momento, o discurso seria a proposta de formação da crítica

especializada – leia-se espaço formado pelos críticos americanos

Clement Greenberg, Harold Rosenberg e Michael Fried233; porém, dada a

peculiaridade da cultura americana e talvez do próprio modernismo

atestadamente fragmentário, a locução avoluma-se, reparte-se e

multiplica-se. Trata-se agora do adensamento-evanescimento do discurso

e suas várias dicções. No motim das produções que seguem no enlaço do

expressionismo abstrato, formam-se novas estruturas de pensamento,

melhor dizendo, mesclam-se os movimentos, retóricas e analogias

oriundos do novo fazer, para além do esgotamento do modernismo.

233 Diferenças teóricas já esboçadas.

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3 Strata - uma ficção geofotográfica 234

3.1 Se você está imerso numa inundação você pode se afogar. 235

Um homem bem livre e culto deveria poder afirmar-se, à vontade, de um modo

filosófico ou filológico, crítico ou poético, histórico ou retórico, antigo ou moderno – bem arbitrariamente, da mesma forma como se afina um instrumento, a

qualquer hora e em qualquer grau Friedrich Schelegel236

A linha de separação entre a arte e a vida deve ser conservada tão fluida, e talvez imperceptível quanto possível.

Allan Kaprow237

O sublime é agora! Barnett Newman238

A oblíqua démarche de Robert Smithson permite que seja possível

vislumbrar, em suas obras, certo halo romântico. Seja pelo encontro, nem

sempre feliz, entre arte e vida; seja por produzir uma arte que coteje

alguns sentimentos do movimento, tais como sublime e pitoresco, estes já

transmutados pelo romantismo alemão239. Obviamente, tal afirmação se

calca na pluralidade característica do próprio romantismo. O ensaísta

Anatol Rosenfeld esclarece a alternância entre natureza e criação:

Já aos românticos tende a importar mais a auto-expressão da subjetividade poética do poeta. A verdade da poética não é mais obtida pela ‘imitação da natureza e sim pela ‘sinceridade’ e ‘autenticidade’ da auto-expressão.”240

234 SMITHSON, R. Strata: a geophotografy fiction, p.75 235 SMITHSON, R. “...the earth, subject to cataclysms, is a cruel master;” p.254. 236 Ibid., p. 60. 237 KAPROW, A. Extrait d’Assemblages, Environnements et Happenings, p. 777. 238 NEWMAN, B. O Sublime é agora!, p. 561. 239239 O belo, pensado desde Platão, sobretudo nos diálogos Banquete e Hípias Menor e o sublime que remonta a Longino I, ainda que este não o colocasse em oposição ao belo. No entanto, no século XVIII é retomado pelo sensualista inglês Edmund Burke no capital tratado Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime, de 1756, no qual o sublime passa a ser o lado obscurecido do belo induzindo, grosso modo, uma dialética entre estas categorias. 240 ROSENFELD, A. Aspectos do Romantismo alemã, p. 151.

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A auto-expressão gera a formulação: a natureza, para os

românticos alemães, é ficção, produto da autoria, anseio pela decifração

dos símbolos incrustados nela mesma. O fenômeno da ampliação do

sentimento romântico talvez se deva à revelação de que a natureza não

seria mais algo-em-si, mas partiria das relações históricas, culturais e

poéticas que se afirmam como agentes de transformação. Neste ponto,

se insere a transitoriedade cultural do romantismo que, apartado da

diacronia, deixa-se envolver na trans-historiedade. Aqui, vale reler as

palavras do filósofo brasileiro Benedito Nunes:

(...) esse fenômeno determinou o nível da experiência incorporada à literatura, e trouxe à luz, no conjunto da vida social, o estado da arte e a situação do poeta (e do artista), que nos são familiares até os dias de hoje.241

Do movimento romântico-filosófico na Alemanha do século XVIII,

passando pelo transcendentalismo americano, pelo romantismo tardio e

afinado de Edgar Allan Poe e Charles Baudelaire, até as questões da

contemporaneidade em arte, é certo dizer que possuem ao mesmo tempo

similaridades – arte e vida, dissolução das fronteiras dos saberes, etc – e

dessemelhanças, pois estes momentos aderem à própria singularidade

formativa e territorial, quer dizer, passam pelo filtro do presente, da

eclosão dos eventos, isto é, evidenciam a potência de cada atualidade.

Assim, para cada época, existe a reinvenção do passado – nostálgico ou

não - como projeto futuro. O convívio com a natureza – ficcional

certamente - induz a formação de infinitas reinterpretações ou como

define a filósofa Anne Cauquelin: movimento que se transfere para poesia

de poesia.242 A integralidade do movimento romântico deve ser

respeitada, porém, cultivando a autenticidade das ocorrências pontuais.

O romantismo, em geral, se constitui por fluxos que modulam a

ambiência na qual este movimento irrompe. Por exemplo, sentimento do

sublime, eclode na Alemanha, nas pinturas de Caspar David Friedrich, no

exercício do naturalista e pintor Carl Gustav Carus, nas dobras poéticas

dos irmãos Schlegel, entre outros. A gênese fragmentária da escrita seria 241 NUNES, B. Visões do Romantismo, p. 53. 242 CAUQUELIN, A. Teorias da Arte,. p. 44.

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o complexo movimento de transformar o mundo poeticamente. Por outro,

na América, o sublime autentica a auto-expressão e se revela nos

pensadores e escritores Ralph Waldo Emerson e Henri David Thoreau. O

filósofo Gilles Tiberghien apresenta o comentário de Stanley Cavell, que

formula algumas notas características entre os escritores:

Cavell243 diferencia o transcendentalismo de Emerson – que imprime seu nome à idéia de transcendental em Kant – daquele de Thoreau. (...) Walden é também, consequentemente, uma resposta ao ceticismo e não somente em matéria de conhecimento.244

Tais sentimentos românticos que retornam transmutados, na

contemporaneidade, e abrem o circuito operacional do qual diversas

produções se tornam possíveis. Gilles Tiberghien, a partir da longa análise

da obra dos ingleses Richard Long e Hamish Fulton, no item Romantisme

et Mélange de Genre do capítulo Un Certain Art Anglais du Paysage, crê

que a mistura de gêneros na Land Art decorre possivelmente da

indefinição entre paisagem e escultura, já que a obra, ao ser deixada

intencionalmente na floresta, sofreria transformações causadas pelo

componente temporal da natureza que se impõe por sua grandeza física e

material, sem nenhuma relação metafórica com a paisagem, podendo,

assim, confirmar a porosidade das esferas: “(...) se pode dizer também

que a paisagem se tornou escultura.”245. Tiberghien refere-se às obras de

Richard Long e Hamish Fulton, artistas da Land Art inglesa. E aprofunda

sua explicação sobre a mistura de gêneros – paisagem, escultura e

literatura - na passagem seguinte: “Já se caracterizou Long e Fulton como

artistas românticos colocando sua arte em paralelo com o romantismo de

Wordsworth, por exemplo, para sublinhar um estado de espírito similar e a

mesma atitude frente à paisagem.”246

O devir efêmero entre essas esferas, se justifica, segundo

Tiberghien, porque os trabalhos só funcionariam a partir dessa dissolução.

Ainda, para complementar seus argumentos, o filósofo esclarece a

possível relação – deduzida certamente do traço romântico - entre a obra 243 TIBERGHIEN, G. Notes sur la Nature..., p. 24. 244 Ibid., p27. 245 Id. Romantisme et mélange de genre, p. 110. 246 Ibid., p. 110.

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de Fulton e os trabalhos de Robert Smithson: “Fulton conduz a prática da

escultura até a dissolução de seu próprio conceito. Seu romantismo junta-

se, aliás, de um certo ponto de vista, àquele do artista que lhe é,

entretanto, oposto, Robert Smithson.”247 A oposição a qual se refere está

na leveza com a qual Hamish Fulton trata a imbricação dos elementos,

talvez, um leve ponto de contato; e o trabalho intenso das operações –

misto de força e energia - de Smithson, elementos da sua poética da

permeabilidade 248:

Os earthworks, embora supondo um material pesado, não são somente esculturas: Spiral Jetty, viu-se, é igualmente um objeto, periodicamente submerso pelas águas do Salt Lake, Utah, tanto quanto as fotos, o filme ou o texto de mesmo nome publicado em 1972. Não é, por sinal, tanto dialética site/non-site, por meio da qual Smithson pensava seu trabalho, mas a mistura de gêneros que aproxima esses artistas tão diferentes em outros aspectos. Assim, este modo de considerar os textos como objetos e os objetos como signos escritos: ‘As palavras e as rochas formam uma linguagem regida por uma sintaxe de rompimento e de ruptura’249 Escreve Smithson. ‘os corpos são pensamentos precipitados e jogados no espaço, nota que Novalis validaria: ‘Os corpos e as figuras não seriam os substantivos – as forças e os verbos – e a teoria da natureza uma arte de decifrar?250

O romantismo, talvez se possa dizer, constitui uma abertura poética

que se amplia pelo mundo, pela vida, pelas épocas e, por isso, pertença

ao imaginário de tantos artistas. Porém, a atualidade romântica se

apresenta aderida à densidade fictícia, às noções fragmentárias e

entrópicas, tanto quanto, a relação dialógica entre aparecimento e

desaparecimento do autor, fortemente marcadas na nossa

contemporaneidade - por que não transportar essas noções para

Smithson como correspondente a sua poética?

A reflexão sobre o sentimento sublime encontra em Jean-François

Lyotard, autor do livro Lições sobre a analítica do Sublime, seu grande

divulgador. Trata-se da análise e recuperação do sublime kantiano

na/para a atualidade. No entanto, nesse percurso, o autor prevê a

transposição da angústia como a experiência do sublime sem

transcendência, pois esta se oferece através do impacto pelo impacto, do 247 Ibid., p 112. 248 Ibid., p. 112. 249 Extraído do texto de Robert Smithson: Uma sedimentação da mente: projetos de terra 250 NOVALIS. L’encyclopédie, p. 133.

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contraste pelo contraste. Em suma, a sublimidade se dá relacionada às

aparições da natureza objetiva – o sublime kantiano é subjetivo e

transcendental. A objetividade desse sublime, proposta por Lyotard, se

encontra nas artes, literatura, paisagens, etc, e acarreta em nós a

intensidade da primeira impressão (instante). Concepção de Lyotard que

parte da noção de intensidade251, na qual a sublimidade se refaz como

categoria das experiências contemporâneas:

A relação entre o pensamento como objeto apresentado desequilibra-se aí [sentimento sublime]. A natureza não ‘fala’ mais ao pensamento pela ‘escrita cifrada’ de suas formas. Aquém ou além das qualidades formais que induziam a qualidade do gosto, o pensamento tomado pelo sentimento sublime só trata a natureza, das qualidades capazes de sugerir uma grandeza ou uma força que excede seu poder de apresentação (...). Dir-se-á que o pensamento, sentimento sublime, impacienta-se, desespera-se, desinteressa-se em atingir os fins da liberdade por meio da natureza.252

O sublime objetivo, proposto por Lyotard, tem como um dos seus

objetos de análise o pintor Barnett Newman, que para o filósofo,

apresentaria essa intensidade sublime nas artes plásticas. No breve artigo

Barnett Newman: o instante, Lyotard considera os quadros do artista

como irrupção do instante, isto é, um acontecimento que funciona porque

não tem tema, não representa, não possui duração; apenas é. O sublime,

segundo sua acepção exposta na apresentação da obra:

Uma tela de Newman opõe às histórias sua nudez plástica. (...) na exclamação: ah! Na surpresa: mas é isso! Outras tantas surpresas (e na obra de Newman) é o sublime. É o sentimento que se mostra. Não há, portanto, quase nada para consumir [referência à obra de Marcel Duchamp]. Não se consome a ocorrência, mas somente o seu sentido253.

Num discurso mais fluido, geralmente uma nota característica da

251 Vale citar Fredric Jamenson: “(...) [elementos constitutivos do pós-moderno] cuja estrutura esquizofrênica (seguindo Lacan) vai determinar novos tipos de sintaxe e de relação de sintagmática nas formas mais temporais de arte; um novo matiz emocional básico – a que denominarei de ‘intensidades’ - que pode ser bem entendido se nos voltarmos para as teorias mais antigas do sublime.” Cf. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 32. 252LYOTARD, J-F. Lições sobre a analítica do Sublime, p. 55 253 Id. Barnett Newman: o instante, p. 84.

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escrita de artista254, Newman assume certa postura iconoclasta: destruir o

belo. Para isso, declara:

A questão que surge agora é como, se estamos vivendo numa época sem lenda ou mitos que possam ser chamados de sublimes, se nos recusamos a viver no abstrato, como podemos estar criando uma arte sublime?255

Pergunta retórica. A resposta está no entendimento de uma

realidade auto-evidente com a qual toda imagem se revela da seguinte

maneira: acontecendo materialmente e na experiência da visualidade; e,

ela, a imagem: “(...) pode ser compreendida por qualquer um que a

examine sem os óculos nostálgicos da história.”256

Se existe a validação do sublime na contemporaneidade, do

mesmo modo, seria possível tratar outro sentimento romântico, o

pitoresco, como intensidade. Assim, o pitoresco, sentimento plácido e

prazeroso das pinturas inglesas do século XVIII sobretudo por sua

unidade receptiva, revela-se transmutação – dispositivo operatório. No

capítulo intitulado Du pittoresque à la condition postmoderne, Michael

Jacob257, explica o entrecruzamento da, ainda, complexa relação

paisagem e natureza cuja recepção assim se mostra nos pintores

paisagistas:

A enorme complexidade da recepção da natureza que atravessa a modalidade paisagem ocupou, no século XVIII, os filósofos ingleses. A dificuldade em sustentar uma compreensão, mesmo de forma sucinta, é tributária, entre outros, da dupla perspectiva do discurso estético em questão: os teóricos da época tentam dar uma explicação geral – uma fenomenologia antecipada – dos prazeres estéticos possíveis pelas paisagens belas, sublimes ou pitorescas; suas posições filosóficas estão entretanto ligadas ao seu período, ao momento histórico onde a aproximação com a natureza não se limita em ser um problema teórico, mas de interesse do público erudito em geral. Os teóricos, as modas, as categorias descritivas e os conceitos sucessivos aplicados às diferentes formas da natureza não são, em outros termos, exteriores ao pensamento estético, mas acontecem, em parte, no centro da natureza.

Essa longa e pertinente passagem traz à luz a questão do 254 Newman declara que achou Edmund Burke extremamente surrealista. A liberdade poética expressa na leitura de um tratado filosófico, independente da forma analítica que busca a verdade e a objetividade. 255NEWMAN, B. loc. cit. p. 561. 256 Ibid., p. 562. 257 JAKOB, M. Le paysage, p. 105.

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sentimento vivido pelo sujeito – do século XVIII - no encontro com a

natureza, acentuando mesmo indícios de experiência ao aproximar a

compreensão intelectiva da vivência. Já, na complexa vida

contemporânea, é possível ampliar e desmistificar o devir paisagístico;

Fazê-lo portanto intensidade, esta, sim, fruto do impacto e da rede de

mediações atuais.

Jakob retoma o (con)texto dos artistas da Land Art para expor as

possibilidades de transformação na paisagem, seja como desvio da

apreensão do seu sentido – lugares inabitados e destruídos -, seja como a

imersão direta, sem mediações, expressão do artista do deslocamento258:

Os artistas reagrupados sob o rótulo da Land Art deram um sentido inteiramente novo ao mergulhar na natureza. Sua atenção se desvia ostensivamente de toda estética neo-pitoresca dos limites, para descobrir a atração surpreendente dos sites desabitados e perigosos. Suas obras paradoxais não hesitam em transformar posteriormente a natureza graças a utilização de meios pesados – caminhões e máquinas de todos os tipos – empregados pela indústria. Os artistas assumem deste fato o artifício, a presença da ‘máquina no interior do jardim’ da civilização, amplificando-a. A Land Art procura o reenvio à paisagem através de uma estratégia de deslocamento e de dé-paysement permanente. Seu efeito é talvez o mais importante sob esse aspecto e consiste no fato de tornar toda representação impossível, de desconstruir a imagem.

Trecho confirmado por Smithson na passagem;

Então vieram os Românticos embelezando montanhas e criando “a polêmica da montanha” - se esta seria ou não a residência do diabo. Isso mudou a partir deles (aliados do diabo). O conceito sentimental da paisagem como um “lugar belo” está diretamente fora das preocupações românticas com a paisagem.259

Sublime e pitoresco: intensidades que permeiam a cultura

contemporânea e as sensibilidades que operam na correspondência

romanticamente possível entre interior/exterior, entre arte e vida; são

indissociáveis, nesta interpretação, da poética de Robert Smithson.

258 Ibid., p. 129. 259SMITHSON, R. Interview with Robert Smithson, p. 236.

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3.2 Este tipo de efeito dominó de todas as permutações da noção de fluxo, de queda, de dilúvio.260

Ao se tornar este plenamente visível – gradativamente, como descrevi – peça a peça, aqui uma árvore, ali um brilho d’água, acolá o alto duma chaminé, a custo

não deixei de imaginar que tudo fosse uma das engenhosas ilusões muitas vezes exibidas sob o nome de ‘pinturas evanescentes’

Edgar Allan Poe261

Experimentar a vida, imersos no bosque, orienta, sob certo

aspecto, os românticos alemães; e possivelmente fomenta a busca da

novidade dos americanos – sua territoriedade, sobretudo, através do

transcendentalista Henri Thoreau amigo e correspondente de Ralph

Waldo Emerson. A trans-historiedade e a atemporalidade, pode-se dizer,

são assimilados à experiência e ao sentimento da auto-expressão

americana:

É uma mistura de descrições poéticas e meditações filosóficas, mas, por vezes, mal colocadas e de difícil leitura [A week on the Concord and Merrimack Rivers (1949)]. É também um fragmento autobiográfico como Walden.262

No livro Walden, o personagem-paisagem, é envolvido em todas as

circunstâncias da vida ordinária, dos trabalhos manuais, do isolamento,

isto é, compõe-se em sua extensão, o funcionamento da natureza. A

experiência de Thoreau se amplia na vivência da paisagem e da cabana

que existe indistintamente em nós.

No trabalho de Smithson, a paisagem é tecida, muitas vezes, pela

paródia que se apresenta como uma espécie de reversibilidade romântica.

Ele, ao reconhecer a limitação espacial e mental das galerias, parte para

expedições exploratórias e imaginativas cujos elementos estão

carregados de densidade temporal, curiosidade pelo desconhecido e pela

vontade de deslocamento:

260 SMITHSON, R. Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson, p.216. 261 POE, E. A. A Casa de Campo de Landor , p. 184. 262 LANDRÉ-AUGIER, G. Introdução. p. 13.

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(...) a paisagem americana, que ia bem além da metáfora, se situava ainda mais longe da simples representação; ela constituía uma zona de aterrisagem para as paixões que disputavam sua atenção. À maneira das dobras sedimentares desta paisagem que ele [Robert Smithson] tanto apreciava, sua arte amalgamava experiências reais e imaginárias de uma vida inteira: fé católica, quadrinhos fantásticos, formas em espiral, arte antiga....263

Nos trabalhos Incidents of Mirror-travel in the Yucatan, de 1969; Um

passeio pelos monumentos em Passaic, de 1967; Broken Circle/Spiral

Hill, de 1970; Spirall Jetty, de 1970, se encontram, desordenadamente, a

mistura entre ironia e distanciamento, bem como, de imersão e afirmação.

Assim, Incidents of Mirror-travel in the Yucatan e Um passeio pelos

monumentos em Passaic apresentam o duplo engajamento:

deslocamento e paródia e, ambos, atualizam a categoria da

monumentalidade nos trabalhos de arte. O deslocamento, um dos temas

centrais da Land Art, seguramente, também o é para Smithson que

sempre procura pelo descentramento da percepção. Porém, o que se

pode dizer da paródia? Estaria no espírito do burlesco ou mesmo atrelado

ao sarcasmo? Talvez se possa fazer certa analogia com o Witz do

romantismo alemão? Mecanismo irônico que opera uma circularidade

fragmentária na experienciação da obra a partir de uma fina sintonia. Nos

dizeres de James Lingwood264 sobre Um passeio pelos monumentos em

Passaic:

(...) nas fotos que ilustram o ensaio, o sublime das cascatas dá lugar aos aterros devastados e à auto-estrada em construção. Esta série de clichês de 7,5 x 7,5 cm em preto e branco constitui, por assim dizer, o auge da paródia do pitoresco.

Seria, pois, o exercício de outro topos para a reflexão da

correspondência entre arte (mundo), natureza-paisagem e vida. A sua

singular concepção de natureza parece ser um dos seus pontos de

partida, decerto por sua condição imaginativa primordial, ou seja, a

natureza, mesmo em sua literalidade, é ficção. A imaginação guardaria,

portanto, o sentido de realidade, pois, existe como materialidade. Desde 263LARSON, K . Les excursions géologique de Robert Smithson, p. 39. 264 LINGWOOD, J. L’Entropologue, p. 29.

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já, pode-se dizer que a natureza a qual Smithson vislumbra é também

bruta, cruel, rude cujas conseqüências estariam na dilatação, na distorção

e na ampliação da matéria:

Então outro problema é o problema de como a natureza é conhecida. A maioria dos artistas e das atividades intelectuais da própria cultura estão completamente separados, você sabe, eles perderam contato com o mundo natural.”265

O traçado inorgânico interessa a Smithson e, através dele, ressoa

a correspondência singular entre matéria e mente. Ademais, a imaginação

- espaço primordial do processo cognitivo do sujeito para o kantismo e os

idealistas alemães - não estaria assimilada totalmente ao gênio, acepção

decisiva e estratégica para esses filósofos e para o movimento romântico

em geral, e que, para Smithson, em nada contribui para a eclosão do

fazer e do produzir. Smithson credita à natureza o papel de destruidora,

porque por si mesma se aniquila; na assolação, no dilaceramento está a

condição poética. O gênio não seria pois a unidade criadora, mas a

dispersão que também pode engendrar e recriar, tributo da dissolução da

qual se pode dizer potência.

Smithson se desfaz de um romantismo que reduz e simplifica o

entendimento da natureza como busca do absoluto; no entanto, volta-se à

natureza a partir da realidade da terra na medida em que esta é passível

de transformações e introduz o aspecto disruptivo, pois a natureza

indubitavelmente impura, que, desde então, se mistura aos homens.

Assim, ambos formam um só corpo, tornam-se processos e intervêm a

partir das relações, dos devires, dos afetos.

A entropia marca essa apropriação criadora da natureza e passa a

ser instrumento dos trabalhos e dos escritos do artista. Da natureza física,

a entropia caracteriza-se pela mais radical transformação dos elementos;

ou, num âmbito mundano, trata-se de colapso de sistemas fechados.266

Pode-se, através dela, reconstruir um caminho para a compreensão do

fazer deste artista. Smithson põe constantemente em jogo, nos seus 265 SMITHSON, R. “...the earth, subject to cataclysms, is a cruel master;” , p.265. 266 Referência às leis termodinâmicas, mas também ao pensamento estruturalista de Claude Lévi-Strauss sobre sociedades quentes e sociedades frias. Além, dos recursos e interferências humanas em processo de esgotamento.

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escritos, a noção de entropia a partir da qual alimenta seu estado poético:

o ficcionista. Com a entropia, Smithson une, indistintamente, natureza e

linguagem. Para tanto, traz o curioso exemplo de Humpty-Dumpty, figura

em formato de ovo, personagem do livro Alice no País das Maravilhas de

Lewis Carroll:

Talvez uma boa e sucinta definição de entropia estaria em Humpty Dumpty. Como Humpty Dumpty estava sentado sobre o muro, Humpty Dumpty levou um grande tombo; todos os cavalos do rei, todos os homens do rei não puderam colocá-lo no lugar. Há uma tendência em tratar todos os sistemas fechados desta maneira.267

O mundo, pelo viés da metáfora geológica, é ele mesmo a gradual

transmutação. Sobre a entropia, Smithson produz dois textos: Entropy and

the New Monuments, de 1966, e Entropy made visible, de 1973. Em

ambos, permanece a preocupação de circunscrever poeticamente todos

os seus aspectos. O primeiro escrito decorre das reflexões do artista

acerca da materialidade da obra de Donald Judd e do minimalismo. A

materialidade não é apenas o trabalho sobre um novo material, segundo

Smithson, é uma nova maneira de se pensar e de se fazer um trabalho de

arte. Ela, em sua presentificação, indica outra relação espaço/tempo que

rumaria para a entropia. Assim, já no início do artigo, Smithson coloca em

convergência diversos elementos contidos nas obras de escultures,

cineastas e arquitetos: monumentalidade, espacialidade, temporalidade.

Smithson, em Entropy and the New Monuments, apresenta a

entropia pela entropia. O artigo não possui uma ordem cronologia nem

tampouco estabelece uma hierarquia entre os assuntos tratados. Passam

a pertencer ao mesmo patamar entrópico o cinema, as esculturas do

minimalismo – sobretudo as obras de Donald Judd, Robert Morris, Sol

Lewitt, Park Place Group268 – a arquitetura – Philip Johnson, as estruturas

visionárias de R. Buckminster Fuller.

No artigo, Simithson constata a substituição da Idade de Ouro pela

267SMITHSON, R. Entropy made visible, p.301. 268 Grupo de artistas que, nos anos 60, se dedica principalmente à Abstração geométrica, telas de grandes dimensões e experimentação. Depois, se direciona a diversas linguagens, tais como, arte conceitual, minimalismo, Earth Art, performances.

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Era Glacial que se caracteriza pela adoção dos ambientes artificiais e

abstratos, tributos da mente, que gerariam a necessidade de nova

materialidade. Seria a substituição dos materiais naturais utilizados nas

esculturas anteriormente [Idade de Ouro] – mármore, pedras, rochas,

granito – pelos materiais artificiais – plásticos, cromos, luz elétrica.

Partindo da reflexão sobre os novos materiais, Smithson supõe nova

ordem para a arte na qual a temporalidade passa a ser o ponto de contato

entre matéria e mente:

Eles [monumentos] não são construídos em vista da duração, mas sobretudo contra. Eles são lançados numa redução sistemática do tempo em frações de segundo, ao invés de representar o espaço de séculos. Passado e futuro se encontram no presente objetivo.269

Os novos monumentos, segundo Smithson, envolvidos em outra

materialidade, conduzem a nova relação espaço/tempo: estão no cinema,

nos impressos, nas superfícies intervaladas das obras minimalistas e nos

prédios. E, dessa relação, o artista estabelece os parentescos com a

entropia. Se os materiais abrigam a sensação de esvaziamento do tempo

seria para evidenciar a instantaneidade contida nos intervalos disruptivos.

Smithson, no entanto, coloca em jogo o confronto entre as duas ordens

temporais: o tempo longíquo e a disrupção:

Um milhão de anos está contido em um segundo e, entretanto, nós temos a tendência de esquece o segundo assim que ele acontece. A destruição, por Flavin, do tempo e espaço clássicos repousa sobre uma noção inteiramente nova da estrutura e da matéria. Vários desses artistas suprimem o tempo como fator de degradação ou de evolução biológica, este deslocamento permite ao olho ver o tempo como uma infinidade de superfícies ou de estrutura, ou como a combinação dos dois, sem ter sofrido com o fardo que Roland Barthes chama: ‘massa indiferenciada de uma sensação orgânica’. (...) Esta redução do tempo retira quase completamente todo valor da noção de ação em arte.270

Sua estratégia privilegia os componentes improváveis na arte, tais

como, a sobreposição de épocas, em que o passado potencializa o

presente e se materializa inorganicamente – como Era Glacial -, dividido

em várias noções que constituiriam as linguagens. Smithson não parece 269 Ibid., p. 11. 270 Ibid. p. 11 passim.

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se valer da hierarquia ao aproximar os meios. Em geral, pode-se dizer

que, para ele, através da entropia os meios se organizam para depois se

desfazerem. Como exemplo, a passagem:

Eles [Park Place Group] também trocaram os ‘modelos’ geométricos ‘vetoriais’ de R. Buckminster Fuller271, de modo espantoso. Certos cientistas disseram a Fuller que a quarta dimensão era ‘ah-ah’, dito de outro modo, riso. Talvez isso. É necessário mesmo assim se lembrar que o mundo aparentemente ao contrário de Lewis Carroll saiu de uma mente matemática organizada. Em The Annoted Alice, Martin Gardner nota que num romance de ficção científica, Mimsy were the Borogroves, o autor, Lewis Padgett, apresenta Jabberwocky272 como uma linguagem secreta vinda do futuro que, se ele compreendeu corretamente, explicava como entrar na quarta dimensão. O non-sense perfeitamente organizado de Carroll leva a pensar que ele poderia ter uma maneira análoga de tratar o riso. Num sentido, o riso é um tipo de expressão ‘verbal’ entrópica. Como os artistas podem traduzir essa entropia verbal – o ‘ah-ah’ – em ‘modelos sólidos’? Alguns artistas do Park Place parecem estar buscando este ‘curioso’ estado. A ordem e a desordem da quarta dimensão bem poderiam se situar em alguma parte entre o riso e a estrutura do cristal, como meio de especulação ilimitada.273

As correlações que Smithson estabelece entre os diversos campos

do conhecimento se fundem num conceito de entropia que possivelmente

permite a fomentação do panorama zero. A fala, a seqüência repetida do

riso, estaria no mesmo patamar que as estruturas tetraédricas de Fuller,

bem como, seria os tais modelos sólidos, experimentados pelos artistas

do Place Park Group. Smithson imagina a fusão entre a linguagem e a

matéria a partir do conceito “cristal ah-ah”. A especulação ilimitada

comporta a sugestão do riso como sistema cristalino, isto é, a aplicação

“(...) do conceito ‘cristal ah-ah’ aos modelos monumentais produzidos por

certos artistas do Place Park Group.”274, que Smithson descreve assim:

A hilaridade em estado sólido, tal como ela se manifesta através do conceito de ‘cristal ah-ah’, faz sua aparição de uma maneira indiscutivelmente antropomórfica em Alice no País das maravilhas sob a forma do gato Cheshire. Alice diz para o gato: “...você nos permite verdadeiramente a vertigem” Este elemento antropomórfico tem muito em comum com a arte purista/impura. O “sorriso sem gato” indica “a matéria-riso e/ou a anti-matéria”.275

271 Arquiteto americano e designer, considerado por muitos um visionário. 272 Poema de Lewis Carroll. 273 SMITHSON, R. Entropy and the new monuments, p. 21. 274 Ibid., p. 21. 275 Ibid., p 21 passim.

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O riso que se transforma em estrutura cristalográfica – linguagem e

literalidade - faria parte da estratégia de subverter as teorias científicas

para que se destitua o estatuto de verdade. Seu uso está diretamente

ligado ao poder infinito da imaginação. No entanto, tal procedimento

artístico faz parte também das proposições minimalistas e dos

desdobramentos da arte conceitual, como observa Rosalind Krauss sobre

Sol Lewitt. Para ela, as formas matemáticas e geométricas largamente

utilizadas pelo escultor se traduzem numa racionalidade sem razão: “As

idéias de que se serve certamente são subversivas, dedicadas à falta de

finalidade da finalidade, às engrenagens em movimento de uma máquina

que a razão não mais governa.”276 Acepção traduzida pelo próprio

escultor, citada por Krauss no artigo: “Pensamentos irracionais deviam ser

seguidos absoluta e logicamente.”277 Obviamente, a proposta de Sol

Lewitt contempla o minimalismo já assimilado à Arte Conceitual, que

contém em sua base o universo teórico e racional das operações

matemáticas, porém, em se tratando de arte, as formulações científicas

tangenciam a poética: o propósito sem propósito. A partir das

sobreposições entre teoria científica e procedimento artístico, Smithson

conclui seu artigo Entropy and the New Monuments propondo a ampliação

das questões da arte já aderida ao mundo: “Estes artistas encaram a

possibilidade de outras dimensões com uma nova espécie de visão.”278

O impacto dos novos materiais na arte daquele momento permite

extrema elaboração mental do artista. No espaço de sete anos, tempo

entre o primeiro artigo e o segundo Entropy made visible, Smithson se

depara constantemente com os possíveis sentidos da entropia e seu real

desdobramento no mundo e na arte. Dos conceitos ligados à cristalografia

– que resultam na confecção dos mapas tridimensionais – até a

transformação literal do planeta – Spiral Jetty, Partially Woodshed, etc - a

entropia estimula a desestruturação da percepção. Descondicionar o

pensamento e co-produzir arte passam a ser um dos seus propósitos,

como declara Smithson no início da entrevista: “Ok. Começaremos com a 276 KRAUSS, R. Lewitt in Progress. p. 346 passim. 277 LEWITT, S.. Sentences on Conceptual Art. Art-Language, p. 11. 278 SMITHSON, R. Entropy and the new monuments, p. 11.

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entropia. Este assunto me interessa já há algum tempo.”279 Daí, o artista

argumenta e contra-argumenta as diversas notações do fenômeno

entrópico. A fala de Smithson procura assimilar os vários sentidos da

própria entropia. Como exemplo, Smithson compõe a entropia a partir da

mistura, da colisão de vários universos tratados antes como sistemas

fechados - linguagem, política, teorias da informação, economia, ecologia,

arte, etc. Segue a passagem:

Poder-se-ia mesmo dizer que o caso Watergate é um exemplo de entropia. Existe um sistema fechado que começa a se deteriorar e que acaba por explodir, sem que se tenha meios de recolher os pedaços. Outra ilustração poderia ser O Grande Vidro, de Marcel Duchamp, que se quebra, e sua tentativa de recolcar no lugar todas as lascas, outra tentativa de superar a entropia. Buckmisnter Fuller vê na entropia algo de ruim que é necessário combater e reciclar. (...) Nobert Wiener faz referência à arte moderna como o Niagara da entropia. Na teoria da informação, se tem também outra forma de entropia. Mais se dispõe informações, mais se tem um grau elevado de entropia. (...) O economista Nicholas Georgescu-Roegen disse até que a segunda lei da termodinâmica não é somente uma lei física, ela está ligada também à economia.280

A questão da entropia, tal com Smithson apresenta no artigo,

atravessa a cultura, não seria apenas uma metáfora geológica ou mesmo

científica: estaria sintonizada com a idéia de transbordamento dos

sistemas fechados, compreendidos também como esferas do

conhecimento. A diagramação desta entrevista281 – pode-se dizer poética

- tece artesanal e intelectualmente a dialética matéria e mente. As fotos

selecionadas por Smithson para comporem o artigo revelam a potência

destruidora/transformadora da natureza e do homem. Ele faz a

diagramação do texto e das fotos de modo que não haja uma diferença

drástica entre o escrito e o visto. O artista parece estabelecer um fluxo

rápido e direto entre a palavra e imagem. A foto aérea da mina de Ohio

mostra a extensão da destruição causada pelo homem. Na seqüência e

entremeadas pelo texto, duas fotos: uma, resultado de um terremoto no

Alasca, outra, a construção do Central Park em Nova York. O texto 279SMITHSON, R. Entropy made visible, p.301. 280 Ibid., p. 301 passim. 281 Cabe reproduzir a observação do editor Jack Flam a respeito desse artigo: “Esta entrevista feita dois meses antes da morte de Smithson. Apesar de sua publicação póstuma, Smithson e Sky completaram a edição do texto juntos e Smithson forneceu todas as ilustrações.” Entropy made visible, In: Robert Smithson: the collected writings, p.301.

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composto junto às fotografias procura construir o vocabulário da entropia.

No Alasca, o terremoto de Anchorage deu lugar à construção de um

parque; o Central Park, paisagem humana, que se traduz em natureza.

Há sempre o estado móvel entre as coisas – texto, obra, acontecimentos,

catástrofes, fotos – e se valendo do fluxo, o artista concebe infinitos

desdobramentos: tônica da sua produção. As fotografias mostram ainda o

soterramento de casas decorrente da erupção do vulcão na Islândia que

coincide com Partially Buried Woodshed e a inundação de Niagara Falls

que inspiraria Asphalt Rundown.

Fig. 10. Partially Buried Woodshed

O titulo do texto, Entropy made Visible, já introduz a problemática

questão da visibilidade, num sentido amplo – a percepção que merece ser

pensada a partir de outros parâmetros, e, num sentido mais restrito, a

invisibilidade da desmesura, isto é, os fenômenos naturais que não

podem, em geral, serem vistos de um só golpe, pois pertencem antes à

esfera do tempo e não a do espaço. Existem nestes fenômenos, forças

atuantes do tempo que geram as condições da transformação. No

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entanto, a entropia pode ser resumida a partir da fórmula de Smithson:

“Eu diria que a entropia contradiz a habitual visão mecanicista do

mundo.”282

Asphalt Rundown, realizado em Roma, em 1969, apresenta o

processo irreversível e inapelável da entropia. O asfalto que escorre pela

montanha, lançado por um caminhão, jamais seria derramado do mesmo

modo seguidamente e, uma vez derramado e calcificado, expõe

completamente a transfiguração do site – uma cachoeira petrificada. A

vastidão do site remete aos processos temporais, uma espécie de

sublimidade oriunda da grandeza, da escala descomunal. Refletindo

sobre o distanciamento temporal, Smithson reverte a atualidade da obra,

ao transformar em metáfora o componente processual e operacional.

Explicando melhor, isso ocorre na sobreposição dos tempos quando

compara o ronco do motor do caminhão, da escavedeira – suas

ferramentas - aos ruídos dos dinossauros. O artista passa a mestre-de-

obra, a engenheiro, a consultor; durante o processo, ele orquestra o

escoamento do asfalto, pesado e fluido, que, na sua materialidade,

compõe-se de dois estados: líquido e sólido; resulta em texturas: áspera,

rugosa; propõe o inacabado. O tempo - transformador, a espera do

derramamento - causa expectativa, surpreende, pois, não há como prever

o resultado.283

O aspecto imprevisível que decorre da entropia está diretamente

relacionado ao informe. Não é possível supor uma forma que se

apresenta pela dissolução dos materiais. A irreversibilidade da entropia é

da ordem do tempo – ainda que a temporalidade tomada pelo artista se

faça a partir da duração e da instantaneidade - e da desordem do espaço

- informe. Yve-Alain Bois e Rosalind Krauss dividem a curadoria da

exposição L’Informe: mode d’emploie284, de 1996, e a autoria do catálogo.

Os tópicos aí apresentados tratam do universo do informe ou anti-formal,

em outras palavras, seria nova possibilidade para o esgotamento da

Forma – carregada de tipologias - como a evidência única do discurso da

arte. Sobre os critérios da exposição, Yve-Alain Bois esclarece: 282 SMITHSON, R. Entropy made visible, p.301. 283 Cf. Filme Rundown, de 1969. 284 KRAUSS, R; BOIS, Y-A. Formless: a user's guide.

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Esta divisão em quarto operações (para resumir, serão denominadas ‘horizontalidade’, ‘baixo materialismo’, ‘pulsação’ e ‘entropia’) pressupõe um tipo de classificação, mas uma classificação porosa (as ‘categorias’ não são herméticas. E o primeiro trabalho da exposição – Asphalt Rundown de Robert Smithson [1969] – ecoa em Glue Pour [1969], um trabalho bem similar do mesmo artista, localizado bem no fim da exposição). Além disso, a função dessa classificação é desagregar as grandes unidades materiais da história da arte: estilo, tema, cronologia, e, finalmente, obra como corpus do trabalho de um artista.285

Fig. 11. Asphalt Rundown

No catálogo e na exposição, parece predominar um circuito fluido

dado por desdobramentos sensíveis, isto é, uma curadoria que investiga

as operações poéticas que, em geral, procuram escapar às regras

normativas ou ao par forma e conteúdo, por assim dizer, as classificações

incluídas nas grandes unidades da história da arte. Obviamente, tais

regras se devem a certo desgaste da palavra crítica ou mesmo à

necessidade de renovação poética, contudo, não se verifica uma

insurgência contra o movimento crítico do modernismo, mas uma

reavaliação pertinente que evita os enquadramentos em categorias ou,

285 Ibid., p. 21.

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pelo menos, pretende sua desarticulação. Fora da ordem cronológica,

esses dois trabalhos de Smithson, Asphalt Rudown e Glue Pour, são

marcadamente entrópicos em seu processo, atemporais portanto e

cultivam a dissolução do objeto que, por sua vez, eclode na possibilidade

da permeabilidade da teoria e da crítica de arte. Talvez, por explicitar a

entropia como poética, esses trabalhos de Smithson tenham tido

destaque na exposição, principalmente, por serem apresentados a partir

da circularidade, esta, sem dúvida, motor das categorias ditas porosas

pelos críticos Yve-Alain Bois e Rosalind Krauss. Dos quatro temas

apresentados, alguns correspondem diretamente ao universo de Robert

Smithson e, claro, de muitos outros artistas que tiveram suas produções

apartadas da locução crítica de suas épocas ou que foram submetidos ao

rigor das categorias. A conseqüência disso talvez seja evidenciar o

descompasso entre produção artística e crítica de arte. A necessidade da

reavaliação crítica é incitada pela presença pulsante da obra que ocorre

através da sensibilidade da época. Competência e coesão que permitem

e alavancam os desdobramentos plásticos para além da catalogação e da

acumulação de conhecimento.

Fig. 12. Caixa de Areia - A Tour of the Monuments of Passaic

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Entropia, espécie de verbete do catálogo L’informe286, escrito por

Rosalind Krauss, evoca, logo no início, a experiência da irreversibilidade

entrópica do trabalho de Smithson Um passeio pelos monumentos de

Passaic, a caixa de areia - a impossibilidade de se desfazer uma mistura

entre areia branca e negra. A estratégia de Krauss parece ser - através do

resultado uniforme da mistura das areias: toda ela indistintamente cinza e

do mimetismo de alguns animais287 – atingir o centro do problema da

relação figura e fundo dissolvendo-a pela homogeneidade, dada pelos

exemplos:

Esta ponte para o assunto do mimetismo, mais a natureza dos dois exemplos, particularmente de Smithson, deram a impressão que o significado da entropia é particularmente dificultoso para análise visual e mais especialmente para o que concerne à pintura modernista. A imagem da supressão da divisão da caixa de areia entre branco e preto parece rimar bem com as fotografias, do Minotaure, de insetos perfeitamente camuflados no padrão dos seus habitats que desaparecem completamente na uniformidade de uma textura contínua. E isto sugere, consequentemente, que o que está sob discussão é a questão do limite ou do contorno, do qual se diz, a distinção entre figura e fundo288.

Ainda que Rosakind Krauss recorra à entropia como a pontual

operação de enfrentamento da condição visual da figura-fundo289, a

questão certamente não se resume a isto. A homogeneidade da caixa de

areia talvez não possa ser vista apenas como produto final, pois, nas

obras de Smithson, há a persistência da causalidade dos processos,

sobretudo, porque o estado entrópico não prevê o resultado controlado ou

muito menos o objeto acabado. Contudo, a tese que Krauss sustenta traz

à luz o importante vínculo entre as Enantiamorphic Chambers e o passeio

do artista por Passaic. Ambos os trabalhos permitem que exista, no cerne

da noção de entropia, o desdobramento poético do deslocamento: no

primeiro, a percepção deslocada de modo exato e fixo – o posicionamento

do espectador entre as caixas revestidas de espelho; no segundo, o

286 O catálogo assume a forma dos textos de George Bataille e outros que formam Documents – jornal publicado nos anos 20 - que se dá pela justaposição de ensaios e fotos sobre diversos assuntos. 287 Ela compara a caixa de areia [monumento de Smithson] ao mimetismo de certos animais que se camuflam no ambiente , procurando, com isso, proteção contra os seus predadores. Para isso, ela recorre ao argumento de Roger Caillois, no Minotaure, de 1930. 288 KRAUSS, R; BOIS, Y-A. Formless: a user's guide,p. 75. 289 Cf. Ibid., p. 75.

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deslocamento ganha dupla potência – aquela compartilhada entre artista

e espectador, ou seja, somente através da percepção do artista é possível

aderir ao deslocamento perceptivo; e esta do deslocamento literal do

estado de deriva. A primeira acepção de deslocamento está,

provavelmente, ligada à idéia de abstração da mente e a segunda, ao

componente transitório entre paisagem e percepção, misto de duração e

disruptura. Assim, persiste, na produção do artista, uma rede poética na

qual os elementos que a compõe se expandem em busca da

sobreposição de sentidos.

No item Palavras Líquidas290, de Yve-Alain Bois, a linguagem é

tida, grosso modo, como binária, combinatória de cada palavra atomizada.

Na sua proposta do escoamento da linguagem, ele sugere que, como

liquidez, a linguagem se oferece indivisível: “(...) claro que se

Fig. 13. Diagrama - Enantiomorphics Chambers

pode dividir certa quantidade de líquido em diferentes containers, mas 290Neste item, Bois propõe a relação entre a série de pinturas Liquid Words de Edward Ruscha e a entropia. Para ele, os spills de Smithson em Asphalt Rundwon e Glue Pour equivalem – no nível da linguagem [at level of language] – às operações de Ruscha. “Smithson, para quem entropia era um conceito chave e que falou sobre isso em quase todos seus textos, nunca escondeu seu débito com Ruscha, particularmente seus livros.” Cf. p. 129.

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permanecem idênticos em cada uma de suas partes.”291 A ligação entre

as Palavras Líquidas, a Horizontalidade e a Entropia permite que as

palavras líquidas sejam também a liquidez dos seus significados292. A

proximidade entre Robert Smithson e o artista Edward Ruscha

estabelecida por Yve-Alain Bois vai além da influência confirmada por

Smithson. Em nota, o crítico comenta:

Se Smithson foi um grande admirador dos livros de Ruscha (que seu próprio trabalho fotográfico demonstra ser o caso [A museum of Language in the Viciniy of Art]), foi porque seu próprio jeito de pensar era muito próximo ao do artista californiano. A Heap of Language, por exemplo, um tipo de caligrama cuja matéria verbal é uma série de palavras relacionadas à linguagem (linguagem, fraseologia, discurso, língua, e assim por diante) e, cuja forma de monte [heap], foi desenhada por Smithson em 1966, antes de Ruscha ter começado a série Liquid Words.293

Na linguagem, tal como Bois a toma, o derramamento que

Smithson executa em Asphalt Rundown e Glue Pour, obra de 1969, são:

“(...) derramamentos diretamente relacionados à arte de Pollock..”294 A

característica do líquido – irreversível - aproxima-se de Humpy-Dumpty,

metáfora da entropia para Smithson, a inviabilidade do reposicionamento

do personagem seria similar à impossibilidade de reagrupar o líquido

derramado.

O inorgânico como potência criadora, no entanto, não contorna o

problema da experiência da visualidade, característica, grosso modo, do

dito purismo de Greenberg, sobretudo, nas análises que o crítico faz dos

all-over de Jackson Pollock. Acionar o inorgânico parece ser a estratégia

que Robert Smithson encontra para evidenciar a problemática das

definições da crítica de arte. Tal associação entre palavras líquidas – já

tomadas como modo de operação dos trabalhos de Smithson - reverte-se

em Asphalt Rundown, obra-filme, desdobrada em projetos, desenhos e

diagramas. Neste trabalho, não é possível evitar certa pulsão orgânica,

isto é, a reverberação do orgânico no inorgânico - ainda que Smithson

utilize a ferramenta pesada e ampliada no tamanho e se remeta às

291 Ibid., p. 124. 292 Cf. Ibid., p. 127. 293 Ibid., p. 272 passim. 294 Ibid., p.129.

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camadas geológicas. Tal como as estruturas cristalinas, o inorgânico não

pode abrir mão do orgânico porque, num primeiro momento, a

transformação dos sedimentos da terra se faz somente pela organicidade

oriunda das leis da física, isto é, o aquecimento confere certa anima –

vida – ao resíduo que terá a forma final solidificada, aí sim, inorgânica.

Smithson procura dilatar os sentidos da composição inorgânica. As

facetas do cristal como forma poliédrica, por assim dizer, detentora de

linhas que, se estendidas imaginativamente, aderem ao infinito. Ademais,

o cristal resguarda a estrutura dos mapas tridimensionais que por sua vez

são assimilados a um componente maior da produção de Smithson: os

non-sites. A circularidade das concepções de Smithson é impulsionada

também por seu apreço pela idéia de inorgânico, além da noção de

entropia e da ficção.

A dialética, proposta como movimento operacional e imaginário do

artista, pressupõe pares que se diluirão na entropia. Seguindo essa

lógica, o fator inorgânico não pode se configurar sem o impulso orgânico,

ambos, agregados por fim à região do panorama zero. O debate proposto

por Smithson acerca do inorgânico reformula, possivelmente, o

entendimento do orgânico, pois, em determinados materiais, a fluidez não

pode ser controlada: “Líquido [tinta] não delimita, nunca se move no

reverso.”295 Não é possível escapar à composição orgânica do all-over de

Pollock, todavia, desse dito limite orgânico sobressai um indício de

entropia cuja sensibilidade material e subversão do lugar da tela se

apresentam pela horizontalidade. No momento do lançamento da tinta,

tem-se a vaga idéia do lugar da matéria, a orquestração é o ato do artista

Jackson Pollock296:

Quando estou no meu quadro, não tenho consciência do que estou fazendo. Só depois de uma espécie de período de ‘conhecimento’ é que vejo o que estive fazendo. Não tenho medo de destruir a imagem, etc., porque o quadro tem vida própria. Procuro deixar que esse mistério se revele.

A tinta espargida, jogada, gotejada, fluida, naturalmente remete à 295KRAUSS, R.; BOIS, Yve-Alain. Formless: a user's guide, p. 129. 296 Palavras de Pollock do filme Jackson Pollock (1951) de Hans Namuth e Paul Falkenberg. In: . CHIPP. H. B. Teorias da Arte Moderna, p. 556.

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organicidade, quer dizer, o processo necessário à evidenciação do espaço

da tela. Não obstante, Smithson não apresenta o problema de modo que

caracterize uma espécie de debate. Ele aplica a composição orgânica,

seguindo sua dialética entrópica, para revelar o inorgânico. O paradoxo

que muitas vezes acompanha as concepções do artista se faz presente

também no modo como descreve o orgânico: ora, uma característica da

emotividade em arte, ora, pulsão para o inorgânico. Segundo Jack Flam,

procurando combater o sentido “natural” propagado pelo fazer arte tal

como concebido naquele momento, Smithson invade o circuito-arte para

depois invertê-lo:

Nas séries de trabalho reportadas ao escoamento [flow], por exemplo, aqueles em que grande quantidade de asfalto, concreto, lama ou cola eram derramados na paisagem, Smithson desafiou a essência do ato de pintar. No primeiro desses escoamentos, Asphalt Rundown (1969), um caminhão de lixo lança uma carga de asfalto do topo de uma montanha erodida de uma área abandonada de uma suja pedreira em Roma. O efeito, visto em fotografias, assemelha-se, num primeiro momento, ao enorme derramamento da pintura do Expressionismo abstrato, e aparenta ser a continuação direta da larga escala e do gesto heróico associado às telas de Jackson Pollock. Mas, ao mesmo tempo em que Smithson parece continuar a tradição da pintura de ação do Expressionismo Abstrato, ele também desconstrói essa prática ao enfatizar como a essencialidade entrópica da natureza do ato de derramar difere do gesto individualista da pintura. A implicação dos ‘escoamentos’ de Smithson não passou despercebido. Recentemente, por exemplo, Frank Stella notou que Asphalt Rundown era percebido como uma potência, aniquilação do gesto que forçou os artistas a reconsiderarem a função do toque e da superfície da pintura.297

Colocado desse modo, a reformulação do gesto e a tentantiva de

suprimir a ação são indicativos do desdobramento do medium pintura em

outros mediums. A desorientação do circuito artístico conduzida por

Smithson releva o entrelace das esferas – já apresentados por outros

artistas certamente. Porém, o ponto de contato que Smithson estabelece

com Pollock reafirma o campo ampliado da pintura supondo a

horizontalidade – certamente não restringida ao suporte - como lugar para

a eclosão do fazer arte. Em suma, a ação de Pollock desdobrada, aberta

e estendida.

A reflexão acerca do alcance da pintura de Pollock, tendo em vista

297 FLAM, J. (ed.). Introduction: reading Smithson, p. XXII.

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seu modo de operação, surge talvez pela primeira vez com Allan Kaprow

– criador dos Happenings - que escreve um belíssimo tributo ao pintor no

artigo O Legado de Jackson Pollock, de 1958, dois anos após sua trágica

morte num acidente de carro. O texto é intenso, misto de lamento e

esperança, e a proposição do sublime por vir. O frescor legado pelo

expressionista abstrato é reconhecido pela geração posterior –

significando, quem sabe, o desligamento do discurso crítico e a

vinculação de gerações através da percepção das obras por elas

mesmas.

Kaprow sugere que a tragicidade da “morte no auge”: “(...) era para

muitos, segundo penso, algo implícito em seu trabalho, antes de sua

morte.”298 Entre a positividade da crítica dita formalista e a tendência a

certo descrédito da pintura como esfera autotélica, Kaprow situa a

produção e a vida de Jackson Pollock como o grande fracasso da Nova

Arte, mas, certamente, trata-se de uma acepção poética, pois, continua

assim:

A sua posição heróica tinha sido algo em vão. Em vez de levar à liberdade que prometia a princípio, ela não só causou uma perda de poder e possivelmente a desilusão em relação a Pollock, mas também nos fez ver que não havia solução.

Todavia, tal impasse não se dá porque a pintura de Pollock havia

se esgotado, pelo contrário, ela permite uma abertura no circuito artístico

do qual estava excluída a crítica formalista por sua tendência em reverter

a pintura num único termo: planaridade. Segue Kaprow em suas

reflexões:299

Então a Forma, i.e., com começo meio e fim, ou qualquer variante desse princípio – tal como a fragmentação. Não penetramos numa pintura de Pollock por qualquer lugar (ou por cem lugares). Parte alguma é toda parte, e nós imergimos e emergimos quando e onde podemos. Essa descoberta levou às observações de que sua arte dá a impressão de desdobrar-se eternamente - uma intuição verdadeira, que sugere o quanto Pollock ignorou o confinamento do campo retangular em favor de um continuum, seguindo em todas as direções simultaneamente, para além das dimensões literais de qualquer trabalho. (Embora a evidência aponte para um relaxamento do ataque

298 KAPROW, A. O legado de Jackson Pollock, p. 38. 299 Ibid., p. 41.

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à medida que Pollock chegava à borda de muitas de suas telas, nas melhores delas ele compensava isso virando sobre as costas do chassi uma parte considerável da superfície pintada)

Generosa compreensão da obra de Pollock: a fluidez do artigo

acompanha o ritmo pictórico de Pollock. A sensibilidade de Allan Kaprow

oferece à obra de Pollock um redirecionamento reflexivo para uma toda

geração de artistas que surge no lastro de produção do pintor do

expressionismo abstrato. O discurso crítico modernista evita avaliar as

produções que aparentemente não se definem a partir de determinado

parâmetro, então, nesse momento, o descompasso entre crítica e

produção começa a se tornar evidente. A técnica de Pollock – lançar, pisar

na tinta, orquestrar, expandir para além das extremidades da tela -, ela

mesma fluida, penetrante, contribui para a deformação, isto é, a

descaracterização dos meios de arte. A indistinção entre pintura e

escultura, entre paisagem e arquitetura, entre outras assimilações, seria o

sintoma da necessidade de reformulação poética. E a poética

contemporânea poderia assim circular e pulsar na medida em que os

acontecimentos eclodissem. A outra configuração cultural deve, de certo

modo, tributo à extensão das superfícies das telas de Pollock, indício da

adoção da escala que passa a ser inserida como desmedida da obra; tal

grandeza talvez tenha despertado, nos artistas e nos espectadores, o

sentimento do sublime. Recuperar o moderno em Pollock seria, talvez,

dissociar os limites da arte e trazer para ela abertura – condição das

recriações e reformulações.

Smithson, atento à materialidade, de algum modo volta-se para a

pintura de Jackson Pollock. No entanto, percebe-se algumas distinções:

há momentos em que não existe, para Smithson, a paradoxal relação

entre a organicidade de Pollock e sua visão inorgânica. Quando Smithson

escreve Sedimentação da mente: projetos de terra, ele comenta a

respeito do pintor no item O Clima da Visão, certamente, uma alusão à

pura experiência visual; não obstante, preocupa-se com a fisicalidade

daquela pintura e, possivelmente, sua condição entrópica:

A arte de Jackson Pollock tende para um senso torrencial do material que faz suas pinturas parecerem borrifos de sedimentos marinhos.

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Depósitos de tinta causam camadas e crostas que não sugerem nada de formal, mas antes uma metáfora física sem realismo ou naturalismo. Full Fathom Five300 se torna um Sargasso Sea [mar de sargaço], uma densa lagoa de pigmento, um estado lógico de uma mente oceânica. A introdução, por Pollock, de seixos em sua topografia particular sugere um interesse em artifícios geológicos. A idéia racional de ‘pintura’ começa a se desintegrar e se decompor em vários conceitos sedimentários.301

O legado de Jackson Pollock explicita a sensibilidade de um

período artístico que busca compreender a dimensão da esfera da

pintura. Não se procurava legitimar o colapso do suporte da tela ou

estabelecer uma cronologia modernista. A compreensão e a assimilação

das telas do pintor do expressionismo abstrato se colocam também como

ato. Na atualidade da arte, o fazer prevalece como orientação e a partir

dele surgem os fluxos de pensamentos. A evidente continuidade entre

arte e pensamento prolifera poeticamente entre os artistas. As palavras

ganham contorno reflexivo; estético sobretudo. Em Smithson, a certeza

da materialidade das palavras ganha corpo e se instala deflagrando

pequenas operações em sua produção. O verbo encobre o mundo, a arte

pondera com a matéria. Alargada, então, as perspectivas, é possível

multiplicar os nós poéticos que sustentam a nova composição cultural.

Junto à crítica, os artistam aderem à polifonia e passam a interferir

diretamente no circuito. Daí, a experiência da arte se conduz através de

outra experiência e assim por diante. Possivelmente, esse movimento

circulatório expande as mediações da arte.

300 Pintura de Pollock de 1947. Uma das primeiras telas do arista com drippings. 301 SMITHSON, R. Sedimentação da mente: projetos de terra, p. 193 passim..

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3.3 O passeio sem história tornou-se um sacrifício da matéria que tem como efeito uma descontinuidade do ser, um mundo de calmo delírio.302

Há tanta poesia, e no entanto nada é mais raro que um poema! E isto inclui a enorme quantidade de esboços poéticos, estudos, fragmentos, tendências, ruínas e materiais.

Friedrich Schlegel303

A natureza – tempo, movimento, cultura, entropia - constitui, junto

ao processo reflexivo e material, o fomento da concepção artística de

Robert Smithson. A poética do artista americano adquire algumas

tonalidades românticas, já mencionadas anteriormente, como a origem da

formação artística americana tanto quanto sua pulsão vertiginosa para o

mundo/arte. Os escritos de Smithson, por sua força poética, aproximam-

se talvez, em alguns momentos, das proposições filosóficas do

romantismo filosófico alemão e do sublime constitutivo da América. Se por

um lado, Smithson está ligado diretamente às correntes americanas -

artísticas e filosóficas -, por sua territorialidade; por outro, através de

afinidades poéticas, adere ao espírito (mente) do romantismo alemão.

Pode-se dizer que, na escrita, ele materializa idéias, as corporifica, as

imagina e, com isso, compõe um vocabulário para a arte e mundo. Seria

interessante, então, aludir às poéticas correspondentes: a pulsão pela

escrita e a vontade de entrelaçar arte e reflexão do ensaísta e filósofo

Friedrich Schlegel. A correspondência - tema vital do romantismo - da

profundidade do mundo submerso, quase indecifrável, se materializa, em

Smithson, no panorama zero; este também território da decomposição e,

portanto, da recriação.

O correlato entre natureza e arte, urdido no fragmento L21 do livro

Conversa sobre Poesia de Schlegel, adere certamente às teorizações de

Smithson: “Assim como uma criança é na verdade alguém que se tornará

302SMITHSON, R. Incidents of mirror-travel in the Yucatan, p.120. 303 SCHLEGEL, F. Conversa sobre Poesia, p. 83.

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um homem, um poema é apenas um produto da natureza que se tornará

obra de arte.”304 O horizonte do romantismo ultrapassa as distâncias do

tempo, os territórios, mas que, no entanto, cultiva afinidades estéticas que

anseiam, através da síntese entre arte e vida, pela impulsão criadora

sobretudo.

Os filósofos Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, em L’Absolu

Littéraire, sustentam a tese de que o movimento romântico lança suas

bases a partir do projeto especulativo de caráter epistemológico para

depois transformá-lo em teoria literária:

Todo o ‘projeto’ romântico está lá: todo ‘projeto’ romântico, isto é, esse breve, intenso e fulgurante momento da escrita (apenas dois anos, e centenas de páginas) que abre toda uma época, mas se esgota por não poder apreender sua essência e sua aspiração – e apenas terá encontrado outra definição: um lugar (Iena) e uma revista (Athenaeum). Chamamo-lo, este romantismo, de o Athenaeum.305

O Romantismo Alemão fundamenta o momento da dupla operação da

literatura – poética e pensamento. Como criadores de uma escrita

fundamental, os irmãos Friedrich e August Schlegel editaram a revista

filosófica Athenæum, em 1798, que, durante dois anos e com seis

edições, concentrou toda literatura alemã daquele período – adepta do

fragmento como fundamento - que se apresenta de tal modo, segundo

Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy306:

Entretanto, além do fato de que uma definição circular do fragmento pela poesia ‘universal progressiva’, e reciprocamente, não faz mais do que aguçar ainda mais a questão do fragmento – e mesmo negligenciando de outra parte, por ora, o fato de a poesia ‘romântica’ do fragmento 116 não esgotar a idéia ou o ideal da poesia total, infinita, dos românticos -, o fragmento não é tampouco simplesmente a obra-projeto desta poesia. Ele é ao mesmo tempo mais e menos. Ele é mais na medida em que propõe a exigência de seu total acabamento, em suma, o inverso da poesia ‘progressiva’. Mas é menos na medida em que, no fragmento 206, como em vários outros, ele é proposto apenas como comparação com a obra de arte – e com uma pequena obra de arte. Mas é, no entanto, em sua relação com a obra que é preciso entender a sua individualidade própria.

304 Ibid., p. 83. 305 LACOUE-LABARTHE, P.; NANCY, J-L.(apres.) L’Absolu Littéraire: théorie de la literature du Romantisme Allemand, p. 15. 306 Id. A Exigência Fragmentária. p. 74

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As afinidades encontradas nas escritas expõem, por assim dizer,

certa notação romântica na produção de Smithson. De acordo com Gilles

Tiberghien, a assimilação entre os escritos se justifica por:

A analogia, a associação e a mudança conceitual são modos de pensamento típicos de Smithson cujo olhar ‘híbrido’ retira as categorias intelectuais e quebra os gêneros com bela insolência, fazendo pensar, dois séculos mais tarde, nessa vontade de mistura cara aos românticos do Athenäum.307

Além da profusa circulação dos seus textos-obras, durante oito

anos aproximadamente, eles contêm potência artística divida em teoria,

relatos, cartas, e, por que não, fragmentos – apropriações residuais de

outros autores? Em Quasi-Infinities and the waning of the Space, de

1966, Smithson assimila, na superfície do panorama zero, referências -

materiais e mentais - que atravessam as teorias científicas, teorias

artísticas, fotos, temporalidade, psicologias, imagens, formas, etc, e que

se esvaziam, modificando a escala: “(...) A mente passará rapidamente

por cima dessa altura vertiginosa. Aqui as páginas do tempo são da finura

do papel, mesmo quando se vem a uma pirâmide.”308 ou ainda o

fragmento-indício que, do quadro-texto, conduz à nota desenquadrada:

“Amor de si, olhar sobre si, introspecção e consciência de si conduzem ao

isolamento mental. Este tipo de espírito tenderia a produzir uma

‘realidade’ fictícia, afastada da natureza orgânica.”309

Isto não quer dizer que Smithson assuma para si o legado

romântico, mas, lampejos românticos subsistem, em sua obra, na

indiscutível indistinção entre matéria e mente. Por isso, talvez, se dê a

consonância com o movimento alemão (fusão entre reflexão e poesia).

Sobre o romântico Friedrich Schlegel, Peter Szondi afirma:

Schlegel deseja uma poesia que componha o poema não somente sobre um assunto, mas sobre ela mesma, que se tome por objeto e que, nesta cisão interna entre sujeito e objeto, se reforçe, para tornar-se poesia da poesia.310

307 TIBERGHIEN, G. Robert Smithson: une vision pittoresque du pittoresque, p.80. 308 SMITHSON, R. Quasi-Infinities and the waning of the Space, p. 32. 309 Ibid., p. 35 310SZONDI, P. Poésie et poétique de l’idealisme allemand, p.102.

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A forma da escrita, crítica e poética, dos românticos alemães – o

fragmento – tem o intuito de contrapor-se ao texto clássico, extremamente

sistemático, difundido naquela época. Os sedimentos (poéticos, abstratos

e materiais) de Smithson assumem certo colorido dos fragmentos e

configuram o limiar entre integração e dispersão, abertura, melhor

dizendo. A possibilidade de fruição da obra se dá no jogo entre aparição e

desaparição. A mente pode intuir a materialização ou desmaterialização

da obra, ao artista, pertence a orquestração. A matéria estimula a mente,

abrindo a percepção para o sentido da abstração ou traduzindo-se em

literalidade. Em suma, as intensas reverberações entre matéria e mente

ecoam na sua produção.

A contemporaneidade artística de Smithson atesta a

impossibilidade da transcendência porque seu solo pertence ao panorama

zero. Massa textual composta de latente crença na fragmentação do

homem contemporâneo - do seu desencontro com os intensos

condicionamentos impostos por um mundo tão especializado e funcional -

, a escritura do artista propõe, não como solução, mas como dimensão

poética, uma natureza mais ampla sobretudo quando imaginada e

reapresentada pelo viés da relação entre formulação e reformulação,

factível apenas pela temporalidade incomensurável:

Imagine-se no Central Park há um milhão de anos. Você estaria sobre uma imensa placa de gelo, uma parede glacial de 6.4000 km, de 600 metros de espessura. Sozinho sobre a vasta geleria, você não sentiria o lento processo de compressão, de deslizamento, de ruptura que ela sofreu no curso do seu deslocamento para o sul, deixando em seu lastro grandes quantidades de resíduos rochosos. Sob as profundezas geladas, lá onde se encontra agora o carrossel de cavalos de madeira, você não notaria o efeito sobre as pedras rochosas do próprio gelo arrastado.311

Smithson inicia o texto com a intimidade da inflexão do afeto; o tom

íntimo conduz a fala de sujeito para sujeito; apela para a imaginação, para

que o leitor-fruidor, seu confidente, reporte-se à fictícia era glacial; para

que ele sinta a textura irregular das rochas; Smithson faz o transporte

poético. O relato de Smithson leva o leitor-espectador pelos caminhos do 311 SMITHSON, R. Frederick Law Olmsted and the dialectical landscape, p. 157.

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parque; o passeio parece ser mapeado: as coordenadas seriam então as

proposições estéticas, o sentimento poético e a materialidade do terreno.

A cada acidente, a cada parada: um autor, um pensamento, uma

correspondência. Smithson lê a paisagem, escreve o panorama:

Penetrando no parque na altura da 96th Street do Central Park West, eu caminhei para o sul ao oeste do reservatório na pista de equitação. A parte alta do parque que compreende Harlem Meer, The Geat Hill e The North Meadow foi concebido para permitir vistas laterais e horizontais. (...) Se tem a sensação de estar numa floresta submersa. Nessa zona, se experimenta um sentimento de afastamento. Do prório desaparecimento, ao passo que a folhagem sugere as harmonias, tonalidades e o ritmo da música de Charles Ives, em particular, Three Outdoor Scenes, Central Park at Night e The Unanswered Question, sub-intitulada A Cosmic Landscape.312

Os registros fotográficos espalham-se pelo texto e trazem a

temporalidade, remetem ao passado, mas também ao presente. O efeito

se dá na diagramação de duas fotos do mesmo local, tiradas no intervalo

de um pouco mais de um século. The Vista Rock Tunel, de 1862 e de

1972, transbordam materialidade bruta que equivale, num primeiro

momento, à cristalização do tempo, à solidificação da matéria e, depois, à

entropia da natureza e do homem. Outros registros do Central Park

revelam seu processo de construção: um de 1858, o terreno descampado

antes da construção, outro de 1885, o canteiro de obras da construção do

parque. A vitalidade do processo é apreendida na justaposição temporal.

Smithson, atento ao tratamento rústico impresso por Fredrick Law

Olmsted, revela sua astúcia e relata as trajetórias tortuosas e sinuosas,

pontes construídas com o material bruto, escadas escavadas na pedra:

“Toda rudeza do processo surge no estado primitivo do parque.”313 A

natureza do parque é construída como arquitetura humana. Porém, uma

construção labiríntica, cujo descentramento perceptivo faz o homem

deslizar, ao acaso, por seus caminhos: “A rede de caminhos que ele

[Olmsted] retorceu no local em-labirintou [out-labyrinthed/sur-labyrintha]

os labirintos. Pois o que é um passeio se não um lugar no qual se pode

caminhar sem objetivo preciso?”314

312 Ibid., p. 168. 313 Ibid., p. 165. 314 Ibid., p 169.

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Tal sensibilidade perceptiva de Smithson - a quase materialização

imaginativa do lugar e a recriação de arabescos - é compartilhada com as

intuições do romântico americano Edgar Allan Poe em seu conto O

domínio de Arnheim ou o jardim-paisagem.315 O título do conto indica a

fusão romântica entre a arte e natureza. Os jardins são considerados

exemplos artísticos quando se pensa na separação das esferas e na

gradação entre as qualidades estéticas. Distantes da nobreza da pintura,

arquitetura ou escultura, os jardins se diferenciam como tipologia de arte.

Neste conto de Poe, o entrecruzamento da paisagem e do homem

pertence à convivência essencial entre as obras do espírito e a formação

da natureza. Seria, pois a partilha exata da construção pitoresca do

homem e do lado selvagem da natureza, reassumindo a mística fusão

romântica, na qual o artifício – obra construída – coincide em igualdade

com o natural:

Repito que só nos arranjos paisagísticos é a natureza suscetível de superação e, em conseqüência, sua suscetibilidade de aperfeiçoamento nesse único ponto era um mistério, que eu fora incapaz de decifrar. Meus pensamentos próprios a respeito descansavam na idéia de que a primitiva intenção da natureza teria arranjado a superfície da terra, de modo a preencher todos os pontos do senso de perfeição do homem no belo, no sublime ou no pitoresco; mas que essa primitiva intenção tinha sido frustrada pelas conhecidas perturbações geológicas, perturbações de formas e matizes, na correção ou suavização das quais jaz a alma da arte.

Natureza correlata à artificialidade da obra humana funde-se num

só estado: ficção. A operação ficcional do poeta, resumida em pequeno

trecho de Julio Cortázar, evidencia a assimilação do sujeito-escritor às

suas circunstâncias: “Poe procura fazer com que ele diz seja presença da

coisa dita e não o discurso da coisa.”316. A presença inaudita dos

sentimentos se desgarra das nomeações e significações, geralmente

representativas, e percorre a prosa do contista dando-lhe a densidade da

flexão poética: aquilo que se abre para a fruição, melhor dizendo, para a

imersão.

A circulação entre os meios poéticos - essencial no romantismo

alemão, bem como, nos outros romantismos -, possivelmente deixa seu 315 POE, E. A. O domínio de Arnheim ou o jardim-paisagem, p. 173. 316 CORTÁZAR, J. A Valise de Cronópio, p.125.

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lastro nas formulações contemporâneas. Fragmentos e poemas são

revisitados de modo a entrelaçar o sujeito, a atemporalidade, a natureza-

paisagem para formular um só estado: a poética. Esta última escapa às

épocas históricas, aos discursos analíticos para se refazer conhecimento.

O movimento de auto-evidenciação coloca o escritor e o artista no lugar

do desvanecimento do qual resulta a criação: “(...) o poeta e suas

imagens constituem e manifestam um único desejo de salto, de irrupção,

de ser outra coisa.”317 Seria, então, no salto, na irrupção o território

possível da correspondência entre o romantismo de Friedrich Schlegel e

Robert Smithson. Seja o percurso no solo árido do deserto, seja o

encontro no salão aristocrata, os diálogos se fazem poesia. O parentesco

dessa relação está em Conversa sobre Poesia, de 1800, e Incidents of

Mirror-travel in the Yucatan, de 1969. Eis as passagens:

Amália: Se continuar assim vamos transformar tudo em poesia, uma coisa após a outra, sem nos darmos por isso. Então tudo é poesia? Lothario: Toda arte e toda ciência que atuam através do discurso, quando voluntariamente praticadas como arte e alcançam o cume mais alto, manifestam-se como poesia. Ludoviko: E mesmo toda aquela que não tenha nas palavras a sua essência tem um espírito invisível que é poesia.318

Schlegel, no diálogo, apresenta o exercício ficcional entre idéia

poética e poesia, melhor dizendo, a poesia flexiona sobre si mesma

culminando uma síntese entre ideal e real: “(...) isto que Schlegel exige da

poesia romântica exprime a busca por uma síntese que se atinge na

própria suspensão da reflexão da qual já foi questão.”319 A poesia passa a

tratar de si tanto como sujeito quanto como objeto, num jogo entre Eu e

não-Eu (mundo), numa dobra de si própria. Como afirma ainda Lacoue-

Labarthe: “A filosofia deve se efetuar – se cumprir, se acabar e se realizar

como poesia.”320 Emparelhado a este romântico de Iena, Smithson traz,

em seus ensaios, teor poético que verte reflexão ou pensamento que se

317 Ibid., p. 96. 318 SCHLEGEL, F. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, p 26. 319 SZONDI, P. Poésie et poétique de l’idealisme allemand, p.103. 320LACOUE-LABARTHE, P.; NANCY, J-L.(apres.) L’Absolu Littéraire: théorie de la literature du Romantisme Allemand, p. 51.

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reveste de poesia ou que já nasce escultura. No trecho abaixo, Smithson

recria a tessitura temporal no diálogo fictício ao sobrepor em camadas

dois deuses de mitologias díspares – grega e asteca:

Coatlicue: Você não tem futuro Chronos: você não tem passado. Coatlicue:Isto não nos deixa nenhum presente. Chronos: Talvez estejamos condenados a ter apenas anos-luz, com tempos ausentes. Coatlicue: Ou duas memórias ineficientes.321

Os escritos de Robert Smithson se caracterizam pelo exercício

poético e reflexivo que se situa entre as fronteiras das artes, sobressaindo

uma vontade transformadora calcada na criação. O cerne da produção de

Smithson encontra-se na transitividade entre arte, mundo, criação e

campos de extensão pictórico-poéticos – e, sem dúvida, escrita. Pode-se

revelar esse intuito através do fragmento A 350 de Schlegel: “Sem poesia,

nada de realidade. Assim como, apesar de todos os sentidos, não há

mundo exterior sem fantasia, também não há mundo espiritual sem a

mente, mesmo com todos os sentidos.”322

A aproximação sugerida com o universo do Romantismo Alemão -

representado principalmente pelos irmãos Schlegel, que, por sua vez,

ecoam nas obras de Charles Baudelaire, de Edgar Allan Poe, na do

naturalista e pintor Carl Gustav Carus e na do pintor romântico Caspar

David Friedrich – parece eclodir a partir do primeiro contato de Smithson

com as artes plásticas através das mostras de artistas expressionistas323

que freqüenta na juventude. Evidências do panorama zero, as referências

expressionistas, na fase inicial da carreira de Smithson, dão a tônica do

envolvimento do artista com a experiência da arte. Aos dezoitos anos,

Smithson faz a capa da revista de poesia independente Pan: “Os

desenhos de Smithson para esta capa e mais três outras que se seguiram

eram de um arrojado estilo expressionista que refletia sua admiração

pelos trabalhos de artistas como Oskar Kokoschka, James Ensor e

321 SMITHSON, R. Incidents of mirror-travel in the Yucatan, p.126 322 SCHLEGEL, F. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. p 107. 323 Semelhante ao Athenæum, o Almanaque Der Blaue Reiter, de 1913, privilegia a fusão (síntese) e a fragmentação (dispersão) na qual verdade e vida complementam-se como partes perfeitas de uma esfera: o que na arte nasce de si, vive a partir de si. E o nascimento é a criação poética.

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Hieronymus Bosch324”.325 Sob o ponto de vista da produção de Smithson,

essas nuances têm como ponto de eclosão a metáfora do cristal facetado,

quer dizer, o recurso infinito da reflexão especular que apresenta a

correlação entre universos. Em suas próprias palavras: “A arte, de certa

forma, é um espelho e o que acontece em seu exterior é o seu reflexo.

Sempre há correspondência, o reflexo poderia ser a mente ou o espelho

poderia ser a matéria.”326

Fig. 14. Robert Smithson –Ateliê

324 Seguramente, Bosch, artista do século XIV, não se encaixaria no dito estilo expressionista, mas por afinidade, é possível sentir certo espírito surrealista nas suas obras que corresponderia, em certo sentido, à estrutura entrópica. 325TSAI, E. Robert Smithson: Plotting a line from Passaic, New Jersey, to Amarillo, Texas. p. 13. 326SMITHSON, R. Earth, p.187

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Fig. 15. Creep Jesus

Sobreposição de universos, afinidades na escrita, relatos da

imaginação, estado poético do sujeito, são as circunstâncias do mundo de

Smithson. A materialidade da ficção se liquefaz em correntes de

pensamento. A reversibilidade que orienta as proposições do artista pode

ser descrita também como o movimento de entranhamento do mundo pelo

ficionista no mesmo momento em que este lhe pertence.327 Talvez seja

possível aproximar o estranhamento do mundo no ato da criação com a

percepção reduplicada da imagem invertida do espelho. São, para

Smithson, as imagens enantiomórficas que se apresentam no conto O

Retrato Oval, de Poe, sem esquecer de mencionar os espelhos de Jorge

Luís Borges - a reverberação do duplo que resvala para a latência do

labirinto, do infinito.

A comparação entre poetas e artistas pode ser extraída da

confissão de Charles Baudelaire da sua irmandade com Edgar Allan Poe

ao explicar as razões que o levam a traduzir suas obras para o seu

327 Observação de Julio Cortázar a respeito do ficcionista.

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idioma, o francês: “(...) o que sustentou minha vontade foi o prazer de

apresentar-lhes um homem que se parecia um pouco comigo em alguns

pontos, isto é, uma parte de mim mesmo.”328 A vibração harmônica entre

Smithson e Poe encontra-se na constituição poética da ruína, topos da

entropia, que no conto A Queda do Solar de Usher aparece em toda sua

força de eclosão:

Ao atravessar a velha alameda, a tempestade lá fora rugia ainda, em todo o seu furor. De repente, irrompeu ao longo do caminho uma luz estranha e voltei-me para ver donde podia provir um clarão tão insólito, pois o enorme solar e as suas sombras eram tudo que havia atrás de mim. O clarão era o da lua cheia e cor de sangue, que se ia pondo e que agora brilhava vivamente através daquela fenda, outrora mal perceptível, a que me referi antes, partindo do telhado para a base do edifício em ziguezague. Enquanto eu a olhava, aquela fenda rapidamente se alargou...sobreveio uma violenta rajada do turbilhão...o inteiro orbe do satélite explodiu imediatamente à minha vista...meu cérebro vacilou quando vi as possantes paredes se desmoronarem...houve um longo e tumultuoso estrondar, semelhante à voz de mil torrentes...e o pântano profundo e lamacento, a meus pás, fechou-se, lúgubre e silentemente, sobre os destroços do Solar de Usher.329

A fenda quase imperceptível do Solar aciona o sentido de

disrupção – a reversibilidade entre disjunção e fusão – e ressoa na idéia

exposta por Robert Smithson em Um passeio pelos Monumentos de

Passaic. O artista prepara o leitor-fruidor para constatar e aceitar a

qualidade irreversível da entropia. Ele pede que imagine, o leitor-fruidor,

uma caixa cheia de areia, em uma metade areia branca, na outra, negra:

Pegamos uma criança e a fazemos correr cem vezes no sentido horário dentro da caixa [de areia], até que a areia se misture e comece a ficar cinza; depois disso a fazemos correr no sentido anti-horário, mas o resultado não será uma restauração da divisão original e sim um grau ainda maior de cinza e um aumento da entropia.330

Para Smithson, a irrupção da natureza turbulenta e violenta, bem

como, a intensa intervenção destruidora do homem, está no cerne da

noção de disrupção. Nesse ponto, se aprofunda ainda mais a comunhão

328BAUDELAIRE, C. Obras Estéticas filosofia da imaginação criadora, p. 71. 329 POE, E. A. A Queda do Solar de Usher, p. 98. 330 SMITHSON, R. Um passeio pelos monumentos de Passaic, p. 47.

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indissociável entre homem e mundo porque ambos possuem essa

latência perturbadora. A dispersão do cosmo - homem, mundo, arte, num

só plano - seria um dos fundamentos da experiência de Smithson que

funcionaria a partir da radical descrença na reversibilidade: “É possível

que, em certo ponto, a superfície da terra se rompa e se quebre em

pedaços, de modo que, num sentido, os processos irreversíveis se

transformariam.”331.

Partially Buried Woodshed, de 1970, realizada na Kent State

University, em Ohio, é comparada, por Smithson, à destruição ocorrida em

Vestmann, na Islândia, em decorrência da erupção de um vulcão. A

massa de terra que soterra sua obra indica novamente a atenção dada à

potência da natureza. Gary Schapiro reforça essa tese: “Partially Buried

Woodshed cedeu gradualmente à força da gravidade; e todas as coisas,

trabalhos de arte inclusive, participam do dispersivo processo da

entropia.”332 O paiol que sofre a intervenção do artista se localiza no

campus da universidade. O deslocamento do trabalho artístico advém da

busca intensa do artista em retraçar o lugar da arte. A estrutura tomada

como sistema fechado refletiria todos os sistemas e portanto passíveis da

ação irreversível da entropia. O tipo arquitetural rústico, recoberto por

toneladas de terra, não seria apenas o resultado final. Havia a

preocupação com o processo:

Criou-se um tipo de sistema de casa enterrada. Foi muito interessante por um tempo. Você pode dizer que forneceu um tipo temporário de arquitetura soterrada que me lembra meu próprio Partially Buried Woodshed em Kent State, Ohio, onde eu peguei 20 carregamentos de terra e os amontoei sobre o paiol até a viga central se quebrar.333

Smithson inclui, no processo artístico, as leis da física. Revelam-se

instrumentos da arte a condensação, solidificação, cristalização, os efeitos

da gravidade, decomposição, etc. A relação que o artista busca nesses

elementos seria a inserção direta e inapelável na ordenação e

desordenação. Novamente, apresenta-se, sob esse viés, a dialética

entrópica, por assim dizer, a estratégia da demostração das ordenações 331 SMITHSON, R. Entropy made visible, p.303. 332 SHAPIRO, G. Earthwards: Robert Smithson and Art after Babel, p.39. 333 SMITHSON, R. loc. cit. p. 303.

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das estruturas do mundo físico-químico para imediatamente desordená-

las. Na realização desse projeto, o artista faz uso da ferramenta mecânica

– caminhão de carga, escavadeira - para revolver o solo e acelerar a

irreversibilidade: “Eu penso que as coisas apenas passam de um estado a

outro, não há realmente retorno.”334 O artista reproduz a força motriz da

natureza para evidenciar as possíveis conseqüências nas próprias

construções humanas. A destruição do galpão permite que seu discurso

problematize a arquitetura. O sistema fechado, para ele, é

necessáriamente frágil porque não sustenta seus limites, sempre será

invadido. A historiadora da arte Ann Reynolds apresenta o desdobramento

da obra a partir do estudo dos diagramas e projeto de Partially Buried

Woodshed:

Partially Buried Woodshed incorpora duas experiências de colapso independentes. A primeira, representada na quebra da viga central, foi o resultado direto do processo de carregamento de terra sobre o paiol até o ponto no qual esse processo foi suspenso. A quebra marca o momento em que a estrutura de madeira do paiol começou a ceder sobre o peso acumulado de terra – quando a tensão entre os dois materiais totalmente desmoronados, tornando, com isso, seu limite ou fronteira visível, tangível e ativo. Na série de desenhos, Smithson focalizou dois componentes em sua condição suspensa – galpão e terra. Num dos desenhos, ele indica a localização e mostra, apontada por uma seta, a viga quebrada. As duas imagens da viga – uma dentro do galpão e outra um diagrama fora dele. Em outo desenho da série, ele declara: “Empilhar no telhado até que se mostrem os sinais de rompimento.” A viga quebrada é um desses sinais.335

O galpão desintegrado pela operação de Smithson aponta outro

problema: a arquitetura. Smithson revela certo idealismo por parte dos

arquitetos. Um edifício, em sua acepção, não poderia ser construído

isoladamente: “Os arquitetos parecem construir de modo isolado,

independente, a-histórico. Dir-se-ia que eles nunca permitem as relações

com o que está fora, no grande plano.”336 A integração dos sistemas devia

se dar pela via entrópica – reordenadora da paisagem. Aliás, a paisagem

exite como linguagem plástica porque está infinitamente em construção.

Em Entropy and the New Monuments, Smithson localiza os edifícios e

situações que correspondem à realidade entrópica: “A difamada 334 Ibid., p. 309. 335 REYNOLDS, A. Robert Smithson: learning from New Jersey and Elsewhere, p. 196. 336 SMITHSON, R. Entropy made visible, p. 309.

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arquitetura do Park Avenue, conhecida como “caixas de vidro frio” assim

como a arquitetura maneirista de Philip Johnson contribuíram para

suscitar o humor entrópico.”337 O artista, em seguida, estabelece a

tipologia da arquitetura entrópica: o prédio da empresa Union Carbide338.

Trata-se da qualidade da contaminação do espaço, isto é, a ocupação do

hall de entrada - gigantesco – por exposições sem propósito, projeção de

filmes, lustres com forma de cristal, música. Esses eventos acontecem

entre: “(...) as paredes lisas e a altura do teto.” que dão: “(...) ao local uma

estranha atmosfera sepulcral. Há algo de fascinante nesse lugar, alguma

coisa grandiosa e vazia.”339 O encanto de Smithson se deve à forma de

arquitetura “sem distinção”, “sem valor de qualidade”. Em suma:

Considerando que o esgotamento dos efeitos de saturação de tais valores, se percebe os dados da periferia, da planitude, da banalidade, do vazio, da monotonia, em outras palavras, uma condição infinitesimal conhecida como entropia.340

Passando de um tipo arquitetural a outro – de um simples paiol

para um edifício extremamente elaborado, Smithson expõe os fluxos da

entropia que, no fundo, formulam o panorama zero. Smithson não procura

definir paisagem e arquitetura como projetos originários – lugares

vinculados à idealidade. Ele aposta na indefinição e na inexatidão daquela

área situada entre as coisas, destituída de começo ou fim. As intrínsecas

relações presentes nos dois tipos arquiteturais resumem-se em paisagem.

Sobre Partially Buried Woodshed, Simithson declara: “(...) são

preocupações [entrópicas] que escapam aos arquitetos.”341 Deste modo,

para ele, a indistinção entre arquitetura e paisagem ou entre homem e

natureza não apresenta conseqüências drásticas ou mesmo trágicas:

“Aliás. As relações entre homem e natureza são uma fonte constante de

confusão. O homem faz parte da natureza? O homem não faz parte da

natureza? Isto causa problemas.”342 Assumindo a possível confusão e a

inderteminação entre homem e natureza, Smithson não prentende 337 Ibid., p. 12. 338 Coorporação americana de produtos químicos. 339 SMITHSON, R. Entropy and the new monuments, p.12. 340 Ibid., p. 13. 341 SMITHSON, R. loc. cit. p. 309. 342 Ibid., p. 308.

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esclarecer ou propor definições. Na melhor das hipóteses, o artista

equilibra os valores: “Os penhascos em volta de Niagara sugerem

escavação e mineração, mas são apenas trabalhos da natureza.”343

Assim, lógica invertida, o artista utiliza a propulsão motriz da natureza

tanto quanto a natureza pode formar um conjunto que se assemelha à

construção humana.

O infinito desdobramento dos conceitos propostos por Smithson

processam uma espécie de vórtice. Este parece ser a condição entrópica.

A derivação constante da noção de entropia assume, talvez, certa

expressão romântica. Localizada a entropia, entre sublime e pitoresco,

não se separa da condição de deriva. O artista se desloca com intuito de

se deparar ao acaso com os fluxos entrópicos. O deslocamento pode ser

no deserto, nos subúrbios, dentro de um edifício, em qualquer parte,

enfim.

Sobre deriva, é possível desdobrar seus sentidos. Em seus

artigos, Smithson expõe a entropia, não apenas um conceito, mas como

procedimento, como escrita. A aderência se torna fundamental: a leitura

se torna o vagar, isto é, pertencem ao mesmo movimento. A indiferença

quanto ao local reforça a potência do ato de escolher. Seleção incidental

que se adensa pela imaginação da qual se pode dizer expressão

romântica.

As correspondências entre a pintura do romântico Caspar David,

Hütte im Schnee, de 1827, e o pensamento suscitado pela A queda do

solar de Usher de Edgar Allan Poe: “Quando as fissuras entre mente e

matéria se multiplicam em uma infinidade de lacunas, o ateliê começa a

desabar, (...), de modo que mente e matéria se confundem

interminavelmente.”344 - equivalem à sobreposição das esferas. A

porosidade das matérias – pintura, literatura e escultura – urde a tessitura

poética dos sentimentos estéticos decorrentes da entropia. Somente um

espectador mais arguto perceberia que: “(...) uma fenda mal perceptível

que, estendendo-se do teto da fachada, ia descendo em ziguezague pela

343 Ibid., p. 308. 344 SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 191.

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parede, até perder-se nas soturnas águas do lago.”345 E que poderia ser

intuída no quadro do alemão. A cabana parcialmente encoberta pela neve

– atmosfera da natureza que se torna peso - talvez assimile poeticamente

a fratura do Solar. Ao mesmo tempo, pode existir certa correspondência

formal e imaginativa com Partially Buried Woodshed. Ann Reynolds

observa que: “A fratura na viga central do paiol produz um corte ou uma

falha no tempo que claramente articula o limite entre antes e depois ao

ponto do incontornável.”346 A fratura temporal encontra-se no estado

permanente da qualidade entrópica das coisas: cruzamento entre arte,

cultura, imaginação.

Fig. 16.Foto - Partially Buried Woodshed

345 Poe, Edgar Allan. A Queda do solar de Usher In: Contos de terror, de misterio e de morte. RJ: Nova Fronteira, 1981.pp 83. Trecho citado novamente. 346Reynolds, Ann. Robert Smithson: learning from New Jersey and Elsewhere. Cambridge: MIT Press, 2003. Pp. 197.

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Fig. 17. Hütte im Schnee

A deriva – oscilação entre imaginação e literalidade tal como

Smithson a experimenta- aparece num exemplo lapidar: a viagem à Ilha

de Rügen (Voyage à l’île de Rügen: sur les traces de Caspar David

Friedrich), descrita nos diários do naturalista e pintor Carl Gustav Carus e

matizadas nas paisagens de Caspar David Friedrich. Durante algum

tempo, eles vivenciam as tormentas do clima, observam a força da

natureza na sua forma originária e compartilham o sentimento do sublime.

A busca pela beleza clássica não é mais decisiva – os sentimentos que se

juntam à categoria do belo são o sublime e o pitoresco, - de uma natureza

embrutecida, gigante, tosca, cuja rudeza lhes revela a verdade primeira,

sem aparências. A rigidez das montanhas cristalizada pelo pincel de

Caspar David torna a paisagem quase que inescrutável: “(...) o face a face

humano se submete à contemplação da natureza – do caos, dos

elementos, do vazio.”347 Tal submissão não se coloca apartada da

experiência, é preciso se embrenhar na floresta, escalar montanhas,

percorrer trilhas. O deslocamento dos pintores permite a fusão com a

natureza. Esse clima torna possível a associação de algumas pinturas de 347 WHITE, (pref.). Carus, Carl Gustav. Voyage à l’île de Rügen: sur lês traces de Caspar David Friedrich, p. 7 passim.

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Caspar David Friedrich aos desenhos e esculturas de Robert Smithson

pois sobre eles incide o sentimento do sublime – derivado da entropia. O

sublime de Caspar David evidencia-se na bela descrição que o filósofo

Ricardo Andrade faz efeito esférico, uma qualidade da sua pintura: “O

volume central produz uma inversão do plano de fundo em direção ao

espectador, precipitando-o por cima de sua cabeça. As massas sólidas,

envoltas na neve, desfiando a lei da gravidade.”348 Análise que se

aprofunda ao expressar a materialidade do sentimento de sublime das

obras de Caspar David:

Em um processo evolutivo, da matéria inorgânica chegaríamos à matéria orgânica, estando o homem no topo da escala. (…) a natureza não ofereceria apenas uma apresentação negativa do sublime, mas o sublime está na natureza e o saber romântico almeja ter acesso a ele, sendo a arte neste processo a via privilegiada.349

Invertendo a ordem, Smithson parte da matéria orgânica para

alcançar o inorgânico. Assim, adere à contemporaneidade das

intensidades, porém, a reverte em jogo próprio – a tensão entre sublime e

anti-sublime -, no qual reverso e anverso, reversível e irreversível, isto é, a

oscilação entre matéria e mente assume conotação irônica, participando

desse sublime através do seu gosto pelo infinito, desmesurado,

desdobrado, sem no entanto tratá-lo como conceito, mas como ficção

apenas:

Um dos aspectos mais intrigantes da obra de Smithson é a maneira como ele usa a posição anti-romântica, anti-sublime para criar, paradoxalmente, o que parece ser a evocação romântica do sublime. Ou mais precisamente, em muitos de seus trabalhos, tanto o sublime quanto o seu oposto parecem coexistir e até mesmo estimularem-se. Na obra de Smithson, o sublime não está enquadrado em termos de uma presença humana insignificante, mas apaixonada, perdida na vastidão da natureza orgânica. Em vez disso, a humanidade situada bravamente, até mesmo friamente, em relação ao inspirador, mas basicamente o indiferente (alguém será tentado a escreve “cristalino”) fenômeno infinito do espaço e do tempo. 350

348 ANDRADE, R. Arte e ascese em Caspar David Friedrich, p. 293. 349 Ibid., p. 292. 350 FLAM, J. (ed.). Introduction: reading Smithson, p. XXIII.

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Se, com certa ironia, Smithson toma para si o sublime, talvez, ele

não pudesse fazê-lo diferentemente com o pitoresco. O pitoresco, antes

realizado como sentimento, passa a orientar as operações poéticas de

Smithson, como bem o aponta Gilles Tiberghien, no capítulo do livro Art,

Nature et Paysage. O curioso título Robert Smithson: une vision

pittoresque du pittoresque já traz em si a ambigüidade da noção de

pitoresco tomada pelo artista: o desígnio transformador. O pitoresco

retorna como procedimento artístico, dispositivo de ação que revela o

movimento do mundo, da paisagem, ou seja, da natureza:

Aqui, a arte de Smithson está em pelo pitoresco, numa inversão cujo segredo lhe pertence. A noção e sua origem pictural, a apreciação subjetiva que ela supõe para decidir o que merece ou não ser pintado ou representado do que vemos na natureza, tornam-se elas mesmas o espelho móvel do mundo, cujo caráter pitoresco se mede precisamente na captação dos reflexos variantes.351

Os reflexos variantes do pitoresco, assim definido por Gilles

Tiberghien, talvez possam se multiplicar no sublime. Que se diga: como

se fosse possível mesclar as qualidades dos dois sentimentos. Se o

pitoresco aciona as operações poéticas de Smithson, o sublime faz eco à

formação cultural americana. O comentário do artista sobre Frederic Law

Olmsted é extremamente revelador nesse sentido:

A magnitude da mudança geológica ainda está entre nós, como estava há milhões de anos atrás. Olmsted, um grande artista que mantém a magnitude, coloca exemplos com o quais joga uma nova luz sobre a natureza da arte americana.352

No texto, Smithson recondiciona os movimentos tectônicos aos

avassaladores estados naturais garantindo a eclosão sublime. No

confronto com a natureza – aqui, de acordo com Smithson, Central Park

em Nova York é natureza, - a imaginação humana entende o árduo

embate entre mente e matéria que produz natureza-paisagem, assim,

explica Smithson: “Um parque não pode mais ser visto como uma coisa-

em-si, mas antes um processo ainda em curso das relações existentes

351TIBERGHIEN, G. Robert Smithson: une vision pittoresque du pittoresque, p.83. 352 SMITHSON, R. Frederick Law Olmsted and the dialectical landscape, p. 170.

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numa região física - o parque torna-se uma coisa-para-nós”353

A busca, através da caminhada deslizante nos caminhos do parque

(uma “coisa-para-nós” segundo Smithson), pelo longínquo e incógnito - ao

mesmo tempo, personificada para Carus nos “(...) carvalhos e faias de

envergadura inabitual, (...) marcadamente um ‘carvalho imemorial’”354 -

ecoa nos primeiros traços do artista americano. A recordação da natureza,

em seu estado primário, exaltada pela expressão “carvalho imemorial”

aparece a partir do aprofundamento da experiência arcaica de cada um.

Segundo o historiador da arte Roland Recht: “Transpondo esta natureza,

a pintura não deve buscar a ‘pura verdade’.”355A reversão se oferece no

artifício, quer dizer, pela analogia, o espectador será conduzido para

experiência da paisagem. “Sua aptidão em representar repousa na

correspondência que existe entre certos estados da natureza e nosso

psiquismo. (...) A pintura pode então dispor de todos os elementos

analógicos em função do efeito que deseja produzir.”356

Carus impressiona-se com a permanência mística, a

impossibilidade daquela verdade, que o co-habita nostalgicamente. Não

seria diferente para o pintor romântico Caspar David que congela com

tintas a imposição suprema da natureza, seu traço-memória, como se

solidificasse a ausência do tempo no quadro Eichbaum im Schnee (1829).

Ato que pode ter consonância com as cartas de Carl Gustav Carus:357

O programa da pintura ‘earth-life’ expressa a estrutura e história das montanhas através de suas formas e transmitir os outros elementos, afim de revelar a Lei universal e demonstrar a harmonia entre o particular e o universal, estava muito além da capacidade de pintura de paisagens.

O projeto de Carus revela o caráter teórico - a busca mesma do

conhecimento - da pintura da paisagem: “Tudo se torna paisagem –

porque ela é uma experiência mitológica, a pintura de paisagem é, na

Alemanha, objeto de teoria.”358 Como experiência, é possível sustentar a 353 Ibid., p.160. 354 WHITE, K. (pref.). Carus, Carl Gustav. Voyage à l’île de Rügen: sur lês traces de Caspar David Friedrich, p. 23. 355 RECTH, R. La letrre de Humboldt – du jardin paysager au daguerréotype, p. 46. 356 Ibid., p. 47. 357 CARUS, C. G. Nine letters on Landscape Painting, p. 43. 358 RECTH, R. La letrre de Humboldt – du jardin paysager au daguerréotype, p. 39.

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similitude entre as aventuras paisagísticas dos românticos com a

seqüência de desenhos Blind in the Valley of Suicides, de 1962, do artista

americano. A fusão entre natureza e homem – o destino da circulação

constante entre interno e externo da obra artística. Pelas artérias, veias e

capilares escorre seiva, seus braços vincados possuem folhas nas

extremidades ao invés de dedos, suas raízes encontram a profundidade

terrestre, no entrelace não apaziguador com o seu entendimento do

natural. A relação entre outras obras de Caspar David e Robert Smithson,

ainda que distantes no tempo e respeitadas suas singularidades, têm em

comum, possivelmente a materialidade sublime e a aspiração à

densidade corpórea e ao movimento circulatório.

Fig. 18. Blind in the Valley of the Suicides

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Fig. 19. Eichbaum im Schnee

Ressaltando o vínculo entre esses artistas, busca-se, na análise

formal das obras – obviamente, sem excluir os fluxos dos sentimentos

estéticos-, estabelecer o entrelace poético entre as paisagens de Caspar

David e as esculturas de Smithson. As telas Das Eismeer (1824), Morgen

im Riesengebirge (1811) e Kreidefelsen auf Rügen (1818) do alemão

Caspar David e a série Alogon (1966), Gyrostasis (1970) e Leaning Strata

(1968) de Smithson carregam a robustez da matéria, curiosamente sua

quase artificialidade - quando a natureza se deixa ver em seu aspecto

mais antigo e mais bruto, ela aproxima-se do artificial, de certa

desnaturalização. O quadro Das Eismeer revela o ímpeto da natureza do

distante pólo terrestre e, no tormentoso mar de gelo, aderna um navio,

sem chance alguma frente a revoltosa potência do oceano. Sobre David,

Michael Jakob defende que: “O grande tema de Friedrich é, até certo

ponto, a consciência paisagística em ato. (...) e um ato de temporalidade

indeterminada.”359 O curioso, no entanto, seria o aspecto inorgânico que o

pintor confere à obra. Trata-se de uma imagem quase escultórica, dada

359 JAKOB, M. Le paysag, p. 77.

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sua atmosfera congelada, do tempo que foi frisado e condensado num

único instante, igual e por isso indeterminado. Não sem espanto, a

cristalização da imagem, de um tempo quase ausente, assemelha-se à

escultura de Smithson Leaning Strata, na qual, placas brancas –

inorgânicas – calculadas a partir da progressão geométrica, apresentam-

se em destoante perspectiva, permitindo uma experimentação calcada em

intervalos de tempo sem a sensação do efeito sucessório. A solidificação

da matéria se dá no derramamento entrópico.

Fig. 20. Leaning Strata

Fig. 21. Das Eismeer

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Assim, também, se estabelece a relação entre a pintura

Kreidefelsen auf Rügen e Gyrostasis porque, em ambas, prevalece o

embate orgânico e inorgânico possível somente na natureza e na arte. Na

primeira obra, esse aspecto revela-se nas pedras que emolduram a tela

formando uma cadeia montanhosa em semi-círculo, cujas pontas

sobressaem revelando uma métrica dura e angulosa.

Fig. 22. Kreidefelsen auf Rügen Fig. 23. Gyrostasis

No trabalho Gyrostasis, a geometria funde dois de seus elementos:

triângulo e espiral configurando uma espiral triangulada: “Quando eu fiz a

escultura, eu pensava nos procedimentos de mapeamento que se referem

ao planeta Terra. Alguns podem considerar isto como um fragmento

cristalizado da rotação giroscópica...”360 A concepção da escultura procura

situar os eixos do mapa tridimensional – espécie de fragmento – para

correspodê-los ao real, neste caso específico, Spiral Jetty. A escultura

não funciona como objeto isolado, de acordo como Smithson: “Gyrostasis

é relacional.”361 Seria dada na natureza sua correlação: “O título

Gyrostasis refere-se à área da física que lida com a rotação dos corpos e

sua tendência em manter seu equilíbrio.”362 Sobre a pintura de paisagem

– caso de Kreidefelsen auf Rügen -, Roland Recht evidencia a posição de

Carus que se estende certamente a Caspar David:

360 SMITHSON, R. Gyrostasis, p. 136. 361 Ibid., p. 136. 362 Ibid., p.136.

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Não é simplesmente o enquadramento de um fragmento da imensidão, como imagem especular, mas uma redução da escala que permite nada perder das propriedades de um objeto reduzido. Tal transposição efetuada pela pintura é possível porque afeta no homem a representação e a sensação.363

A natureza é transportada para o homem. O resultado: oscilação

entre infinito e finito. Privilégio da imaginação. Por fim, a analogia entre

Alogon – escultura e desenhos – o esboço de Carus – Geognostic

Landscape: Katzenköpfe near Zittau de 1820 - nutre-se do entendimento

da geometria inversa, infinita, no caso da série contemporânea, e da

plástica dura da qual se constitui a montanha do desenho que, no

excesso de naturalismo, expõe certamente um traço artificial - âmbito do

pensamento voltado para a inorganicidade. Smithson, em entrevista,

perguntado sobre a utilização da matemática nas estruturas cristalinas,

responde:

Não realmente - bem, o título Alogon – vem do grego que se refere ao inominável e ao número irracional. Havia um sentido de ordenação, mas não pôde ser chamada de notação matemática. Havia a conscientização da geometria que eu trabalhei de maneira intuitiva. Não era realmente nenhum modo notacional.364

Smithson estabelece antes uma ordem imaginativa do que uma

ordem lógica. O número irracional (surd)365 pertence à desmedida, quer

dizer, representa uma quantidade que não pode ser expressa por

números. As coisas que não podem ser nomeadas não podem também

ser incluídas em categorias. Desse modo, pela intuição do infinito e pelo

sentido de abstração, estabelece-se a ligação de Alogon às massas

montanhosas geradas por Carus. A observância da natureza revela o

exercício mental do paisagista que assimila a abstração à experiência:

“Existe um elemento de abstração e de abnegação que envolve o

tratamento do mundo externo tanto como simples elemento no qual

363 RECTH, R. La letrre de Humboldt – du jardin paysager au daguerréotype, p. 47. 364 SMITHSON, R. Interview with Robert Smithson for the archives of american art/Smithsonian Institution. p. 292. 365 Retomado pelo artista no texto Spiral Jetty.

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vivemos e atuamos quanto como algo de sua própria beleza e

sublimidade.”366 Os trabalhos apresentam sentido correspondente ao

exporem a fusão entre mente e matéria ou entre abstração e experiência.

A abstração resulta ainda da experiência do encontro com a natureza -

seu estado físico.

Fig. 24. Alogon Fig. 25. Plunge

Fig. 26. Geognostic Landscape: Katzenköpfe near Zittau

366 CARUS, C. G. Nine letters on Landscape Painting, p. 106 passim.

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A vivência contigua desses homens – Carus e David - aprofunda e

reforça a fusão característica do romantismo e transforma-se num

movimento apenas: o sentir da experiência. Uma curiosidade apontada

por Cecília Cotrim367 - espécie de vivência compartilhada entre os três

artistas: Carus, Caspar David e Smithson, - e, poderia ser pensada a

partir do movimento de deriva, constitui-se na imersão dos alemães na

Ilha de Rügen e o passeio do americano em Passaic:

(...), aos poucos, o tom do texto de Smithson 368vai sendo revelado, como uma espécie de paródia dos relatos de viagem do século XIX – penso nos românticos enlouquecidos pela floresta em busca de uma planta, ou ruína, ou árvores originárias; nos passeios noturnos de Carl Gustav Carus e Caspar David Friedrich pela ilha de Rügen em plena nevasca, em busca da Erdlebenerlebnis.

Deve-se entender a paródia menos como crítica e mais como

exercício de revitalização dos aspectos do romantismo. Assim como as

visões do pitoresco e do sublime de Smithson não podem ser reveladas

pela contemplação do passado nostálgico, mas como projeto futuro, atual

pelo menos:

Smithson se conforma à ideia de um pitoresco alegórico tal como o evoca Gilpin. Ao mesmo tempo, ele não recupera, tais quais, as noções que ele herda: seu interesse pelo pitoresco é ele mesmo o pitoresco, no sentido em que essa categoria se apresenta, por ele, como o contexto no qual seu pensamento se reflete sem limites.369

A inversão do sentimento de pitoresco, um dos dispositivos para as

recirações de Smithson, alia-se a outro aspecto da poética do artista: os

passeios. Segundo Tiberghien: “Estes passeios vão no sentido de

movimento, a mobilidade característica do pitoresco.”370 A experiência-

paisagem seria mental e fisica porque, do cruzamento entre mente e

matéria, sobressai “(...) a realidade que se esclarece à luz da ficção que a

organiza.”371

A redescoberta da aventura, o deslocamento da viagem, o

367 COTRIM, C. Monumento Contemporâneo?. p.49. 368 Cecília Cotrim refere-se ao trabalho Um passeio aos monumentos de Passaic. 369TIBERGHIEN, G. Robert Smithson: une vision pittoresque du pittoresque, p. 86. 370 Ibid., p. 88. 371 Ibid., p. 92.

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afundamento na natureza, a pesquisa científica e a busca pelo frescor do

olhar estimulam a imaginação – faculdade privilegiada na especulação

romântica. Assim, a mente se junta às sensações do corpo e expande a

consciência do todo. Ainda, no prefácio ao livro Voyage à l’île de Rügen:

sur les traces de Caspar David Friedrich, Kenneth White atribui à palavra

“romance”, da qual provém o termo romantismo, a fusão de dois seres:

“(...) ela é plural e contém tudo potencialmente, ela já constitui ‘um

mundo’.372 O mundo redescoberto – quiasma entre cosmos e caos -

passa por duas vias: interior e exterior:

O caminho conduz para o interior, quer dizer, fora da sociedade, mas, ao mesmo tempo, ele vai para o exterior, dado que está fora, aspirando a atingir maior ampliação possível da consciência. É lá que ele vai evoluir e se realizar.373

A fronteira entre saberes não funciona como verdade – como

orientação epistemológica ou poética - para alguns filósofos, artistas e

poetas. Para tanto, existe a clara necessidade de torná-la difusa e etérea,

apenas um fraco delinear. Não sem espanto, torna-se pertinente

aproximar a relação interior/exterior às principais reflexões de Robert

Smithson entre indoor/outdoor a partir da qual materializa a dialética

site/non-site:

Eu desenvolvi um método ou dialética que envolvia o que eu chamo de site e non-site. O lugar, de certo modo, é a realidade física e crua. Aquele chão de que não nos damos conta quando estamos dentro de um quarto ou escritório. Então eu resolvi colocar limites em termos de diálogo (é um ritmo constante que percorre o interior e o exterior) e como resultado disso eu, em vez de colocar algo sobre a paisagem, resolvi que seria interessante transferir a paisagem para dentro, para o não-lugar, que é um receptáculo abstrato. Nesse verão, eu fui à região oeste e selecionei alguns lugares, lugares [sites] físicos mesmo, que de certa forma fazem parte da minha arte. Fui a um vulcão e coletei lavas e as mandei para Nova York e lá elas foram montadas no meu non-site.374

Smithson participa de entrevistas, junto com outros artistas, nas

quais propõem uma reflexão coletiva sobre os problemas da arte e do

372 WHITE, K. (pref.). Carus, Carl Gustav. Voyage à l’île de Rügen: sur lês traces de Caspar David Friedrich, p. 23. 373 TIBERGHIEN, G. Robert Smithson: une vision pittoresque du pittoresque, p. 85. 374 SMITHSON, R. Earth, p. 178.

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mundo. Era um momento vivo, da criação de teorias, do pensamento da

prática artística. Tal prática se revela tributária da reflexão sobre a

inserção no espaço ampliado – fora da galeria de arte. Ademais, outro

lugar para arte se revela através das articulações teóricas e poéticas dos

artistas: suas dicções. A idéia de coletivo mais marcante talvez seja

Discussão com Heizer, Oppenheim, Smithson, de 1970, perguntam,

discutem os trabalhos e os conceitos e, principalmente, metamorfoseiam

palavras em arte e, no reverso, plasticidade em proposições acentuando o

indistinto limite.

3.4 É a dimensão da ausência que resta a descobrir.375

A poética de Smithson e a singularidade do seu modo de

engendrar confirmam a noção de entre – ou seja, a essência constitutiva

daquela área indistinta que se situa no limiar das coisas, na qual

percepção e afeto se entrelaçam e da qual resulta, portanto, a idéia de

disrupção. Ao lado das esculturas em grande escala, Robert Smithson

produz trabalhos que contêm a forma de diários entremeados por

fotografias. Os mais marcantes decorrem da visita que fez a New Jersey,

em 1967, Um passeio pelos monumentos em Passaic e da viagem para o

México, em 1969, Incidents of mirror-travel in the Yucatan. Não obstante,

apresentar a contigüidade do relato Frederick Law Olmsted and The

dialectical Landscape, de 1973, com os dois trabalhos anteriormente

indicados, adensaria a relação matéria e mente e aprofundaria talvez a

ubiqüidade do trabalho do artista.

Os núcleos dos trabalhos decorrem do deslocamento do artista e

da sua vontade de promover, a todo instante, alternância perceptiva.

Esses trabalhos se ligam à reminiscência do artista, isto é, o envolvimento

do sujeito, na sua infância, com seus jogos particulares; sua curiosidade

375 SMITHSON, R. Incidents of Mirror-travel in the Yucatan, p. 133.

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infantil376, segundo Baudelaire: estado criador: “(...) um gênio para o qual

nenhum aspecto da vida está adormecido.”377 Porém, a memória não

pertence apenas ao sujeito, evidenciando seu lado criador. Ela se alia à

materialidade da terra – ancestral e imemorial, por fim.

Das suas viagens familiares; da sua percepção da sua antiga

vizinhança; do seu interesse pela transubstanciação oriunda da

cristalografia, nascem os trabalhos que afetam poeticamente o espectador

através desse instrumental: prosa íntima, teoria fictícia, deriva, tempo

infinitesimal. Os recorrentes elementos, nestes trabalhos e em outras

obras, multiplicam-se na visada descondicionada, signo das imagens

enantiomórficas, e ainda na narrativa coesa, dispersa ou circular.

No primeiro relato, o artista indica cada passo do processo de

constituição do trabalho que consiste em revelar pormenores de

monumentos no subúrbio. Nos subúrbios, descritos em outro texto378, os

fluxos entrópicos se avolumam, reforçando a idéia do território poético:

Os slurbs379 que se propagam e a proliferação descontrolada de casas do pós-guerra contribuíram para a arquitetura da entropia. (...) Na proximidade das auto-estradas que contornam a cidade, nós achamos os hiper-mercados e as lojas de atacado [cut-rate store] com suas fachadas estéreis. No interior desse tipo de lugar, há um labirinto com pilhas de anúncios cuidadosamente acumulados; corredor depois de corredor, a memória do consumidor se perde. A complexidade lúgubre desses interiores sucitou nos artistas uma consciência nova do insípido.380

Evidentemente, os novos monumentos pertencem à ordem da

paisagem entrópica sobretudo pela percepção dos espaços cheios, dentro

dos prédios, e vazios, entre as arquiteturas. Os monumentos de Passaic

são: a ponte entre Bergen County e Passaic Country a qual refere-se

como “ Monumento de Direções Deslocadas”, “Monumental Cano”, um

duto abandonado às margens do rio Passaic, “Monumento Fonte”, canos

de emissão de esgoto, “Monumento Caixa de Areia”, caixa de areia de um

parque abandonado. O gesto de Smithson fere as concepções dos 376 Charles Baudelaire intui que permanecer no estado criador depende da observação (distanciamento) do convalescente, a exemplo, do conto O Homem das Multidões de Edgar Allan Poe e da curiosidade da criança da qual se pode dizer inesgotável. 377BAUDELAIRE, C. Obras Estéticas filosofia da imaginação criadora, p.224. 378 SMITHSON, R. Entropy and the new monuments. 379 Essa expressão significa subúrbio, porém o termo conserva a idéia de abandono - uma área suburbana mal planejada. 380 SMITHSON, R. Entropy and the new monuments, p.13.

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monumentos ditos clássicos ou mesmo modernos. Talvez, seu feito seja

comparável à subversão de Constantin Brancusi com sua Coluna Infinita

de 1937-38, numa radical proposta de inversão do sentido de coluna,

tratando-se, pois, de um anti-monumento.

Perscrutar uma cidade, ato caro e essencial para Smithson, aguça

sua percepção: “Na verdade, o centro de Passaic não era um centro – em

vez disso, era um típico abismo ou vácuo comum. Que ótimo lugar para

uma galeria!.”381 New Jersey existe como tempo erodido, em ruínas, e

equivale à Cidade dos Imortais de Borges, com as diversas eras

sobrepostas, que teria, em sua existência, o mesmo motivo da sua

inexistência, porque é tempo.

Entre os imortais, ao contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a vertigem. Não há coisa que não esteja como que perdida entre infatigáveis espelhos.382

No seu passeio por Passaic, New Jersey, Smithson realiza o trajeto

pendular entre site e non-site. Seu intento era apontar para objetos

aparentemente desinteressantes, abandonados e destroçados que

revelariam uma materialidade plástica da arte afinada ao pensamento

contemporâneo, numa variação entre estruturas cartográficas e espelhos.

Aqui, novamente, o traço-paródia, descrito por Maggie Gilchrist a respeito

do Um passeio pelos monumentos de Passaic: “Em 1967, no ‘passeio

pelos monumentos de Passaic, New Jersey’ traço-paródia da caminhada

nos arredores.”383 Todavia, ela estabelece a correlação com Entropy and

the New Monuments – texto que alude, entre outras coisas, à ausência de

saturação dos materiais e, novamente, às situações entrópicas -, na qual

acrescenta ao traço-paródia à escatolologia dos filmes de Roger Cormac

e aos eventos do início dos anos 60:

Em 1961 e 1962, a URSS enviou o homem ao espaço; um ano antes, o filme Marienbad de Alain Resnais, que nega toda cronologia, foi levado às telas; Martin Ryle contestou a teoria da criação contínua concluindo, a

381SMITHSON, R. Um passeio pelos monumentos de Passaic, p.47. 382 BORGES, J. L. O Imortal, p. 603. 383 GILCHRIST, Maggie. Ruine des anciennes frontières, p. 19.

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partir de observações radio-astronômicas, que o universo estava em evolução constante; um foguete americano partiu para Vênus; cientistas afirmaram terem reanimado algas fósseis de 250 milhões de anos.384

As leituras, teorias e filmes estabelecem um nexo temporal e

material que funde o passado no futuro, traduzido por Smithson como o

ficcional panorama zero ou, ironicamente, ruína em reverso385: “Essa

mise-en-scène anti-romântica sugere a desacreditada idéia de tempo e

muitas outras coisas ultrapassadas.”386

Mesmo que o passeio constitua um relato-paródia, salta aos olhos

a invocação de certo distanciamento, o espaço da irrealidade, do lugar

deslocado da arte. Tal relato adere à porosidade fictícia e literal. O artista

toma consciência do “universo secreto”, devir, cravado na carnadura –

pavimento - da cidade. Entretanto, Smithson procura outro sentido

constituído para os monumentos, transformando-os em metáfora seu

processo operatório:

Desci por um terreno de estacionamento que cobria os velhos trilhos da estrada de ferro, os trilhos que algum dia passaram no meio de Passaic. Esse monumental terreno de estacionamento dividia a cidade em duas, transformando-a em um espelho e um reflexo – mas o espelho ficava trocando de lugar com o reflexo. Não se sabia nunca de que lado do espelho se estava.387

A intervenção poética de Incidents of mirror-travel in the Yucatan -

decorrente da viagem realizada em 1969 com Nancy Holt, esposa de

Smithson, artista e cineasta – é potencialmente deriva. Em cada

deslocamento, o artista carrega consigo a periferia – uma circunscrição

móvel. Da bela passagem do argentino Jorge Luís Borges: “Ele está no

centro do deserto – no deserto sempre se está no centro.”388 ecoam as

primeiras palavras de Yucatan:

Um horizonte é outra coisa além do horizonte; é a interrupção na abertura, é um país encantado onde o baixo está no alto. (…) o tempo desprovido de objetos quando se desloca para todas as destinações. O

384 Ibid., p. 19. 385 Frase de Nabokov citada em Um passeio pelos monumentos de Passaic. 386 SMITHSON, R. loc. cit..p. 46. 387Ibid., p. 47. 388 BORGES, J. L. Pesadelo, p.253.

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carro continuava sobre o mesmo horizonte.389

Na vastidão, os limites se pulverizam, retrato da distância cuja

medição é inexeqüível, enfim, sublime. A viagem abarca o desejo de

descentramento, razão primeira do deslocamento. No início do relato,

Smithson já demonstra o desejo de se perder no infinito: “Saindo de

Merida pela Highway 261, nota-se o horizonte indiferente. Com uma

espécie de apatia, ele permanece no solo, devorando tudo que parece

alguma coisa. Atravessa-se constantemente o horizonte, mas ele

permanece sempre distante.”390 Smithson transparece para seu leitor uma

realidade física e outra inteligível. São as linhas do horizonte traçadas no

mapa que os orienta na viagem. Entre o desenho gráfico do mapa e as

linhas imaginárias do horizonte, o efeito poético: “Como o carro estava

todo o tempo sobre o horizonte residual, pode-se dizer que o carro estava

aprisionado numa linha, uma linha que não tem nada de linear.”391 Assim,

a dissolução do sensível se dá na idéia gráfica. Reflexo enantiomórfico

lançado do mapa para o espaço: “Olhando para o mapa, tudo estava lá,

um emaranhado de linhas do horizonte sobre o papel.”392O trabalho se

solidifica em imagens, cores e sensações. O tempo da narrativa irrompe

como os frames de um filme:

Através do pára-brisa, a estrada apunhalava o horizonte, fazendo-o sangrar numa incandescência ensolarada. Não se podia deter a impressão de se efetuar uma expedição sobre uma lâmina coberta de sangue solar. Como ela fatiava o horizonte, a disrupção tomou lugar.393

Para cada corte na seqüência fílmica, um deslocamento. Dividido

em nove etapas, Incidents of mirror-travel in the Yucatan incorpora a

pluralidade perceptiva: “Os artistas não são motivados pela necessidade

de comunicar, viajar além do insondável é a única condição.”394 A analogia

entre o deslocamento e a percepção se realiza nos espelhos que o artista

dispõe em cada parada. São doze espelhos distribuídos de modo a

389SMITHSON, R. Incidents of Mirror-travel in the Yucatan, p. 119. 390 Ibid. p. 119. 391 Ibid., p. 119. 392 Ibid., p. 119. 393 Ibid., p. 120. 394 Ibid., p. 132.

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acionar repetidamente a tensão entre site e non-site e, ao mesmo tempo,

apontar o colapso da percepção quando esta busca enquadrar

racionalmente o que foi visto:

O deslocamento de espelhos não se exprime por medidas racionais. As distâncias entre os doze espelhos são desconexões obscuras onde a medida é abandonada e incalculável. Cada superfície refletora não pode ser entendida pela razão. Quem poderia divulgar de qual parte do céu vem a cor azul? Quem poderia dizer quanto tempo dura a cor? Azul significa alguma coisa? Quando o deslocamento se torna uma má localização? São questões proibidas que colocam a compreensão num dilema. As questões que os espelhos formulam permanecem sempre sem resposta. Espelhos florescem sobre o incomensurável [surd] e geram incapacidade. Reflexões caem sobre os espelhos sem nenhuma lógica, invalidando qualquer assertiva racional. Limites inexprimíveis estão do outro lado dos incidentes, e não serão jamais apreendidos.395

A transposição física do artista e os espelhos, juntos, assimilariam

a dissolução: “Os espelhos não são apenas silenciosos, como afirmado na

seção quatro [quarto deslocamento], mas seus reflexos são efêmeros e não

podem ser tocados. Parece que ele quis que o que fosse mostrado pelos

reflexos, não poderia ser objetivado.”396 Smithson - para quem a

materialidade dos objetos corresponderia ao fluxo da natureza – parece

inverter sua própria lógica, pois, neste processo, a materialidade do objeto

seria seu próprio evanescimento. O filósofo Gary Shapiro, no livro

Earthwards: Robert Smithson and Art after Babel, aborda Incindents of

Mirror-Travel in Yucatan, questionando o lugar do trabalho: “A questão

convencional que se pergunta nesse caso seria o que exatamente é um

trabalho de arte aqui? Ou melhor, onde está o trabalho de

arte?”397Certamente essas questões já foram lançadas anteriormente,

pois esse trabalho de 1969, junto aos Um passeio pelos Monumentos de

Passaic, de 1967, e Uma sedimentação da mente: projetos de terra, de

1968, formam, por assim dizer, a tríade que revela – a partir do encontro

equilibrado entre as proposições teóricas e a execução de operações

poéticas - a potência estética de Robert Smithson da qual se pode dizer

antes uma evidenciação do circuito da arte do que propriamente um

embate ou seu questionamento. Desses trabalhos-textos eclode a

395 Ibid., p. 124. 396 BOETTGER, S. In the Yucatan : mirroring presence and ausence, p.204 397 SHAPIRO, G. Earthwards: Robert Smithson and Art after Babel, p.98.

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possibilidade efetiva do desdobramento dos seus trabalhos de Land Art.

As perguntas de Shapiro evidenciam o entrelace entre tempo, espaço e

deslocamento. O aqui [here], para ele, dificilmente é proferido sem ironia,

pois: “Aqui tudo é deslocamento.”398 Ou seja, não existe o aqui, sua

condição não se sustenta: “Os espelhos são temporariamente colocados

em vários sites; aos quais não pertencem.”399 A partir dos infinitos reflexos

especulares, desloca-se novamente o trabalho. As fotografias do trabalho

funcionam como eco que reverbera um som há muito tempo proferido,

também elas uma alusão ao deslocamento: “Nosso acesso a tudo isto só

pode ser através da reprodução fotografada e escrita que aparece nas

páginas de uma revista publicada em New York400, distribuídas em várias

cópias e dispersas em diversas locações.”401Ora, a (des)localização é o

vórtice de trabalho, então não existe uma definição exata para o que seja

esse aqui.“O trabalho está nesses efêmeros incidentes, em sua

documentação fotográfica, ou no ensaio que o descreve e que contém

fotografias?”402 O trabalho está portanto em qualquer lugar.

Os espelhos são materiais cujas superfícies apresentam a

oscilação entre presença e ausência, em Yucatan, eles indicam uma

paisagem quase inexistente, isto é, o limite entre visível e invisível; uma

paisagem que se oferece através de outra paisagem infinitamente. Gilles

Tiberghien percebe que:

A paisagem identificada aqui ao horizonte no interior do qual eu percebo os objetos do mundo. Se eu me concentrar num deles, então ‘eu torno a fechar a paisagem e abro o objeto.’ São as facetas internas desses objetos, não visíveis imediatamente, que os fenomenólogos nomeiam de ‘horizonte interior.’403

Região desértica, erma - com variações climáticas e geológicas

que englobam a superfície do terreno e a atmosfera -, o horizonte: “Nessa

linha onde o céu encontra a terra, os objetos param de existir.”404 A

evanescência do aspecto físico coaduna-se ao componente mental caro 398 Ibid., p. 98. 399 Ibid., p 98. 400 O trabalho foi publicado na Artforum de setembro de 1969. 401SHAPIRO, Gary. Earthwards: Robert Smithson and Art after Babel, p.98. 402 Ibid., p. 99. 403 TIBERGHIEN, G. Horizon, p. 200. 404 Ibid., p.119.

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ao artista. A cada etapa prevalece o entendimento do artista sobre o

funcionamento do espelho, seu reflexo torna-se o outro da mente e o

outro da matéria sem contradições. A passagem do filósofo francês Gilles

Deleuze sobre o célebre livro de Lewis Carroll, Alice no País das

Maravilhas, apresenta a continuidade entre superfície e profundidade:

Não que a superfície tenha menos não-senso do que a profundidade. Mas não é o mesmo não-senso. O da superfície é como a 'Cintilância' dos acontecimentos puros, entidades que nunca terminaram de chegar nem de retirar-se.405

Fig. 27.Incidents of Mirror-Travel in the Yucatan

A fusão aqui é desdobramento. Desse modo, o espelho reverte-se

em metáfora, em transporte para lugar nenhum. Nos termos de Smithson:

deslocamento perceptivo. O duplo que se oferece a partir desse gesto –

arranjo dos espelhos - aponta ora para uma insubordinação ao tempo,

405 DELEUZE, G. Lewis Carroll, p. 32.

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duração esvaziada, ora para a literalidade da reflexão, uma ação

cognitiva. Smithson revolve espaço e tempo para apresentar a

materialidade plástica do terreno pelo traço-paródia. O passeio de

Smithson reconstrói o roteiro convencional de James Stephens. O

mapeamento da região da viagem se transforma em cores, texturas,

temperatura, redirecionamento sobretudo:

Yucatan, Quintana Roo, Campeche, Tabasco, Chiapas e Guatemala se congelam numa massa de vazios, os pontos e as pequenas redes azuis (chamadas de rios). A legenda do mapa alinhava os signos em colunas bem nítidas: monumentos arqueológicos (preto), monumentos coloniais (pretos), sítios históricos (preto), balneário (azul), spa (vermelho), caça (verde), pesca (azul), artesanato (verde), esportes aquáticos (azul), parque nacional (verde), estação de serviços (amarelo).406

Os intervalos entre os deslocamentos são, por assim dizer, a

irrupção da distância ou mesmo a imobilização do corpo. Assim, com cada

espelho colocado cuidadosamente, o artista induz o sentido do

afastamento e de aproximação. Suzaan Boettger aponta a correlação

entre as disposições dos espelhos e os próprios deslocamentos: “O

contraste entre essas reiterações de inacessibilidade e a confiança na

existência de algo real conduz a reflexões sobre o que o era desejado

experimentar.”407

Jennifer Roberts, no livro Mirror-travels: Robert Smithson and

History, refere-se à viagem de Smithson como um processo anti-

arqueológico porque o artista teria removido ou recoberto o passado dos

monumentos dos Maias. O projeto de Smithson, segundo a autora,

apresentaria a negatividade, pois, sua preocupação não guarda o sentido

de preservação das ruínas ou de algum tipo de valorização patrimonial.

Seu interesse postula a duplicidade das enantianformas: desvio

perceptivo que, paradoxalmente, reforça o circuito da arte

contemporânea, por escapar a ele. Cabe ressaltar sua tese:

O deslocamento do espelho de Yucatán apresenta, dois campos simultaneamente: a vista de uma paisagem para onde a câmera aponta, parcialmente, encoberta por espelhos e, outra vista (apontando para o alto), parcialmente, refletida no espelho. Nenhuma das vistas está

406 SMITHSON, R. Incidents of Mirror-travel in the Yucatan, p. 119. 407BOETTGER, S. In the Yucatan : mirroring presence and ausence, p.204

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completa, nem podem ser consolidadas numa unidade espacial homogênea. A referência dos espelhos às ruínas (em sua arrumação dispersa e semi-enterrada) estende os seus efeitos sobre o seu espaço circundante. Eles agem literalmente para decompor ou desfazer a ilusão de espaço contínuo.408

Monumento contemporâneo, invisível, que resguarda, para

Smithson, a presença da temporalidade alargada. A tarefa de relacionar

as temporalidades sugere um retorno à mitologia. Não a partir do projeto

nostálgico, mas como possibilidade de fabulação. No quinto

deslocamento, outra descoberta se coloca. Numa espécie de transe,

Smithson procura inverter sua percepção de artista ao propor um veículo

perceptivo insólito: “Se um artista puder ver o mundo através dos olhos de

um lagarto, talvez ele fosse capaz de fazer um trabalho fascinante.”409,

Assim, imerso no deserto, Smithson escuta novamente o sussurro entre

Chronos e Coatlicue que lhe revelam o entrelace entre passado, futuro e

memória, sobreposto talvez ao jogo ausência e presença:

Chornos: Assim é Palenque. Coatlicue: Sim, assim que ele recebeu um nome, cessou de existir. Chronos: Você crê que suas pedras reviradas existem? Coatlicue: Elas existem como existem as luas ignoradas em órbitas desconhecidas. Chronos: Como podemos nos falar do que existe quando nós mesmos dificilmente existimos? Coatlicue: Você não precisa ter existência para existir.410

O solo, a água dos lagos, o terreno ressecado formando polígonos

– derivação da forma facetada dos cristais, a vegetação, os monumentos

históricos que não existem isoladamente, os espelhos – superfície lisa e

pura – contaminam-se com a presença elementar dos materiais. Existe

possivelmente uma fabulação – abstrata e material - que se desenrola

infinitamente dentro do trabalho, tornando-o pulsante. E, ainda que seja

apresentado na forma de relato de viagem, Incidents of mirror-travel in the

Yucatan conserva a acepção espiralada de Gyrostasis – espécie de non-

site (mapa tridimensional) do Spiral Jetty, bem como, conserva, como

408 Ibid., p. 100 passim. 409 SMITHSON, R. Incidents of mirror-travel in the Yucatan, p.126 410 Ibid., p. 126.

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operação primordial, a tentativa de desconstruir um tipo de visada que

procura abrager a totalidade da experiência óptica.

No sétimo deslocamento, Smithson reescreve, em seu trabalho-

diário de Yucatan, os incidentes, as surpresas, e, em cada relato, o olhar

desconstruído. São as intrincadas relações entre percepção, arte, escrita,

deslocamento que se rearranjam constantemente, na medida em tais

termos se confundem intencionalmente com o tópico presença e

ausência:

Os resíduos de coisas vistas se acumulavam até que os olhos fossem tragados pelos reflexos desordenados. O que se via se rebobinava em zonas indecisas. Os olhos pareciam ver. O que eles viam? Talvez. Outros olhos estavam vendo. Um mexicano lançava sobre o deslocamento um longo olhar suplicante. Mesmo se você não puder ver, outros o farão em seu lugar. A arte conduz a vista para uma interrupção, mas essa interrupção tem um modo de se desbloquear dela mesma. Todos os reflexos expiraram nas matas de Yaxchilán. E necessário se lembrar que escrever sobre arte, é substituir a presença pela ausência, transformando a abstração da linguagem em coisa real. Havia uma fricção entre os espelhos e a árvore, agora, há uma fricção entre a linguagem e a memória. Uma memória de reflexos torna-se uma ausência da ausência.411

Ensaio-registro, álbum fotográfico com legendas, situação de

deriva? Esses aspectos transcorrem como diário de bordo e se assimilam

à resconstrução da narrativa literária. Pode-se apontar novamente o

parentesco com Edgar Allan Poe dos ficcionais diários do personagem-

autor Arthur Gordon Pym. Curiosamente, o diário do marinheiro de

Baltimore foi escrito por outro narrador, duplo do personagem Pym e

porque não dizer do próprio Edgar Allan Poe? Não há uma cronologia

definida, pelo contrário, a aventura conduz a narrativa a partir da

destemporalização: os personagens se perdem infinitamente. O

cabeçalho de cada passagem aparece especialmente na forma virtual da

cartografia, são graus, minutos e segundos que configuram meridianos,

latitudes e longitudes. Trata-se, pois, de distância e não de datas. Na

passagem do diário do marinheiro, transcrita a seguir, fica marcada

claramente esta opção:

411 Ibid., p.129.

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Os termos manhã, tarde, noite, etc., de que faço uso para evitar que a narrativa sofra com um acúmulo excessivo de detalhes, não devem ser tomados em seu sentido literal. Há muito tempo já não tínhamos noites, com a luz do sol banhando 'noite' e 'dia' ininterruptamente. As datas mencionadas são relativas aos padrões náuticos de tempo e as direções e coordenadas estão de acordo com a bússola de bordo. Devo também lembrar ao leitor que não posso aspirar à exatidão de medidas na primeira porção desse relato, pois não mantive um diário durante esse período. Em muitos casos, fui obrigado a confiar unicamente na memória para indicação de datas, latitudes, longitudes e direção de curso.412

O diário íntimo como gênero literário traz uma visão corriqueira da

vida e das coisas. Parte, pois, de um elo profundo constituído entre

homem e mundo. Maurice Blanchot, em A Fala Cotidiana413, revela alguns

aspectos do cotidiano que são exponentes da evanescância. O cotidiano:

“(...) não se deixa apanhar. Ele escapa.”414 Sua condição fugaz permite

suas significações, se para Blanchot existe o modo como o cotidiano

escapa, existe sobretudo um porquê: “Quando vivo o cotidiano, é o

homem qualquer que o vive, e, propriamente falando, o homem qualquer

não sou eu nem é o outro, ele não é nem um, nem outro, e é ambos em

sua presença intercambiável.”415 Cada acontecimento tem em si refletido

o sentido de aventura: o microcosmo do banal agigantado na suprema

aventura: “O cotidiano escapa. É nisso que ele é estranho, o familiar que

se descobre (mas já se dissipa) sob a espécie do extraordinário.”416 Em O

Relato de Gordon Pym, predominam as noções de localização e de

deslocamento – espaço e tempo, determinadas pelo lato e longe (latitudes

e longitudes) que ganham a aparência cartográfica, para situar apenas o

estado de deriva. A falsa localização não traz conforto algum, ela acentua

principalmente a impossibilidade da localização. Para Smithson, a prática

do registro da observação do mundo deveria assemelhar-se ao recorte

fotográfico ou insights, e a disposição dos flahs componentes da narrativa

que adere ao puzzle. Em Um passeio pelos monumentos de Passaic,

Smithson transforma em relato o exercício do olhar. Assume a visada do

instantâneo fotográfico, além da qualidade das miragens infinitas do

412POE, E. A. O Relato de Gordon Pym, p.199. 413 BLANCHOT, M. A Fala Cotidiana, p. 237. 414 Ibid., p. 237. 415 Ibid., p. 243 passim. 416 Ibid., p. 237.

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espelho: “O brilho do sol de meio-dia cinematografava o local, tomando a

ponte e o rio um retrato estourado. Fotografá-lo com minha Instamatic 400

seria como fotografar a fotografia”417 O método do relato em diários

comporta outro tipo de ponderação, e, nele, estão inclusos o tédio, o

humor, e, também, a atmosfera que o cerca. Para Maurice Blanchot:

Não é por contar acontecimentos extraordinários que a narrativa se distingue do diário. O extraordinário também faz parte do ordinário. É porque ela trata daquilo que não pode ser verificado, daquilo que não pode ser objeto de constatação ou de um relato.418

Nos diários, a alusão às minúcias importa; o olhar do autor deve

captar também a umidade – pequenas gotículas na atmosfera, o calor –

que ao levantar-se do solo distorce a visão; o frio – que eriça os pelos do

corpo, o vento – ar que transcorre, a luz – que ilumina e obscurece, etc.

Indiscutivelmente, o diário relata uma experiência vivida, ainda que de um

sujeito ficcional. Sobre esse aspecto convém lembrar o livro a Invenção

de Morel de Adolfo Bioy Casares, ficção científica e suspense, narrado

como diário: “As ficções de índole policial - outro gênero típico desse

século que não é capaz de inventar argumentos - relatam fatos

misteriosos que um fato razoável logo justifica e ilustra.”419 A prosa lógica

e coerente comenta o fantástico ou sobrenatural. Ademais, é possível

pensar no relato não apenas como um desabafo sincero, mas como um

exercício de imaginação.

Os famosos diários do pintor Eugène Delacroix, produzidos entre

os anos de 1822 e 1863, trazem a trajetória do exercício da imaginação

criadora plasmada às pinturas e em muito estimulam a produção de

outros textos, dentre os quais, os ensaios inaugurais de Charles

Baudelaire, poeta de um romantismo tardio, sobre crítica de arte. Hubert

Damisch, no prefácio da edição do Jounal d'Eugène Delacroix, procura

reunir os aspectos que ativam o diário, principalmente, o de um artista.

São eles: desejo, memória e imaginação. Justifica ainda a inclusão do

417SMITHSON, R.. Um passeio pelos monumentos de Passaic, p 46. 418BLANCHOT, M.. O diário íntimo e a narrativa, p. 271. 419 BORGES, J. L. Prólogo, p. 9.

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diário, mesmo carregando em si a contradição, nos gêneros literários. A

contradição estaria, portanto, “(...) de fato, no salto entre o projeto, ou a

ficção de uma escrita privada, e sua publicação, desejada ou não pelo

autor.”420 O processo de constituição do diário íntimo dado como

paradoxo prenuncia seu êxito poético. O autor do diário coloca-se como o

duplo, sujeito que revela e recria sua intimidade.

A escrita da arte perfaz o caminho da constituição do ser artista.

Inicialmente, remonta-se aos relatos de Vasari sobre vida e obra dos

artistas, ao tratado de pintura de Alberti em que afirma “Escrevo como

pintor”. Trata-se, pois, da nova condição do artista, a assunção de si e da

criação poética. Os escritos de Leonardo Da Vinci introduzem, no campo

da arte e da reflexão, fundamentos e inauguram um tipo de escrita

baseada na composição plástica e na observação do mundo. No

Romantismo Alemão, os escritos sugerem visões de mundo, a correlação

entre o Eu/Não-Eu (sujeito e mundo) consubstanciação dos homens em

estado artístico e especulação poética. A crítica da contemporaneidade,

assim como os manifestos das vanguardas históricas originam-se, direta

ou indiretamente, de Charles Baudelaire que estabelece uma escrita

sobre a arte como obra de arte: a crítica poética. No Salão de 1846,

Baudelaire deseja o tom íntimo do diário – correspondência do sujeito

com a obra - e a potência criadora. A linguagem da crítica reveste-se de

arte. Segue uma importante passagem do poeta francês:

Acredito sinceramente que a melhor crítica é a que é divertida e poética; não uma crítica fria e algébrica, que, a pretexto de tudo explicar, não expressa nem ódio nem amor e se despoja voluntariamente de toda espécie de personalidade, mas – como um belo quadro é a natureza refletida por um artista – aquela que seja esse quadro refletido por um espírito inteligente e sensível. Dessa forma, a melhor apreciação de um quadro poderá ser um soneto ou uma elegia.421

Os poemas de Baudelaire remetem à junção entre leitor, apreciador

e esteta por um mundo transitório das velozes e inequívocas mudanças.

Este momento representa a vida moderna que, esboçada na sua tessitura

poética, compõe uma estética filosófica, na qual os pares beleza e feiúra,

420 DAMISCH, H.. Préface, p. XIII. 421BAUDELAIRE, C. Para que serve a crítica. p.20.

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prosa e poema, transitório e eterno, paraísos artificiais e naturais,

mesclam-se transubstanciados em um só corpo/espaço/tempo e porque

não reforçar: arte e vida? Mesmo Eugène Delacroix, opção estética para

Baudelaire, nos diários, reflete sobre seus procedimentos pictóricos,

exaltando como ponto de partida uma natureza construída pela

imaginação, ou, destituída das causas e efeitos que caracterizam uma

linearidade, a imaginação potencializando a natureza e sendo

potencializada por ela.

O privilégio da imaginação como “Rainha das faculdades”422

orienta toda a percepção de Baudelaire acerca das artes plásticas e da

literatura. Deste modo, a valorização que confere ao sujeito se dá pela

sua capacidade mnemônica, ou seja, a imagem gravada na mente do

artista – de preferência o sujeito cosmopolita423 cujo olhar se abre para

todo e qualquer detalhe do mundo - estimula a imaginação. Por esta

razão o poeta atribui à pulsão discursiva de Delacroix uma mnemotécnica

[mnémotechnie]: “A obra de Delacroix me parece algumas vezes como

uma espécie de mnemotécnica [mnémotechnie] da grandeza e da paixão

nativa do homem universal.”424 Vida e obra, assim se resume o projeto de

Delacroix e, de acordo com Damisch, esta empresa revela um sujeito:

“(...) ao qual o arranjo de um diário aparecerá como uma única apreensão

que possa assegurar sua vida, seu passado, sua história.”425 Para garantir

que os acontecimentos da vida não lhe escapem – já que eles estimulam

a imaginação, uma condição criadora -, o diário íntimo do pintor cria um

permanente estado mnemônico apresentando o desejo de lembrança e o

desejo de poesia “ (...) a poesia que seria a memória recuperada.”426

A imaginação passa a ser uma faculdade que se abre para o

mundo, funcionando na justa medida em que esta carrega em si potencial

transformador, e, para artistas e poetas, um potencial criador. Existe ainda

outra maneira de expressar o processo poético em palavras:

correspondências – uma espécie de coletivo, tanto para debater idéias

422 É possível creditar à expressão 'Rainha das Faculdades' (Imaginação) a base para uma estética contida na obra de Charles Baudelaire. 423 Cf. O pintor da Vida Moderna. Referência ao Constantin Guys, artista francês. 424 BAUDELAIRE, C. Préface, p. XVI. 425 DAMISCH, H. Préface, p. XX. 426 Ibid., p. XXI.

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quanto para uma auto-reflexão, mas principalmente para transferir os

sentidos, as emoções e as impressões.

Na contemporaneidade, o diário adquire outros formatos. Num

primeiro momento, a fotografia atravessa a discursividade do diário

íntimo427, depois, desdobra-se na comunhão entre imagem e movimento:

o filme. Robert Smithson introduz, como vários artistas da sua geração, a

filmagem nos processos poéticos de seus trabalhos. Claro está que este

movimento adere à noção que o artista constrói da temporalidade, da

distância e da percepção que seria o esquecimento do corpo. Para ele, a

fruição do filme implica uma imobilização do corpo, pois ela permite que o

todo seja visto e escutado. Na grande tela do cinema, o retângulo

concentra o fluxo que, independente da ordem narrativa, resvala para o

entrópico:

O que tomamos como mais sólido ou concreto, muitas vezes, viram uma concatenação de imprevistos. Qualquer ordem pode ser reordenada. (...) Mas, tão logo a ordem se fixa na sua cabeça, dissolve-se no limbo.428

Os filmes do artista trazem em parte a concepção de diários,

incluem-se aí entrevistas, trabalhos (Swamp, Spiral Jetty, Rundown)429 e

sugerem uma tendência diagramática. A ampla utilização dos meios

impede que o filme seja um processo documentário apenas. Nele, o

artista concentra um viés pessoal que se assemelha ao diário íntimo.

Seria, então, relevante indicar o parentesco com a definição fílmica do

cineasta lituano Jonas Mekas:

Naquele momento, comecei a entender que o que estava faltando na minha filmagem era eu mesmo: minha atitude, minhas idéias, meus sentimentos, no momento que eu olhava a realidade que eu filmava. Tal realidade, esse detalhe especifico, em primeiro lugar, chamou minha atenção por causa de minhas memórias, meu passado. (...) Quando perambulo pela cidade, me abstenho de olhar atentamente para cada detalhe. Ao contrário, vou caminhando e meus olhos se transformam em janelas bem abertas, aí eu passo a ver as coisas. Se eu ouço algum barulho, olho em sua direção. O ouvido fica atento e direciona o olhar a procura daquilo que o originou. 430

427 Pode-se tomar como exemplo dessa passagem o livro (espécie de relato íntimo) Nadja de André Breton - escritor surrealista. 428SMITHSON, R. A cinematic atopia , p. 140-1. 429 Trechos dos filmes que podem ser vistos no site www.robertsmithson.com 430 MEKAS, J. The Diary Film, p.192.

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Assim, pode-se reafirmar a continuidade do sentimento romântico

na contemporaneidade que potencializa o primado da experiência que é

ao mesmo tempo pensamento e corporeidade, natureza e temporalidade,

ficção e literalidade, tudo isso: arte e vida.

Na típica sobreposição de poéticas da produção de Smithson,

encontra-se a surpreendente semelhança entre projeto estético e crítica

nas falas de Delacroix e de Baudelaire. Na ocasião da censura do livro de

poesias Les Fleurs du Mal, Baudelaire escreve os Projets des Préfaces431

no qual desacredita os editores que vetaram, entre outros, o poema

Lesbiennes:

Há várias morais, Há a moral positiva e prática à qual todo mundo deve obedecer. Mas há a moral das artes. Esta é toda outra, e desde o início do mundo, as artes a provaram bem. Há também várias formas de liberdade. Há a liberdade para o gênio, e há uma liberdade muito restrita aos garotos. Qual vocês preferem? O poeta triste ou o poeta alegre e descarado, o horror dentro do mal ou a galhofa, o remorso ou o imprudente. (...) a uma blasfêmia eu oporia um arrebatamento na direção do céu, a uma obscenidade umas flores platônicas. Pois o começo da poesia, todos os volumes de poesia são assim feitos. Mas era impossível fazer de outro modo um livro destinado a representar a agitação do espírito dentro do mal.

Delacroix encontra uma vocação crítica contra os salões que

refutaram suas obras. Em Lettre sur les concours, de 1830, Delacroix

discute sobre o que deveria ser julgar uma obra. Para o pintor, a grande

responsabilidade da escolha não prescinde da relação obra, público e, até

certo ponto, as instituições. Diz, então, o artista:

Eu apenas resvalei, no começo desse artigo, na dificuldade de achar juízes iluminados e imparciais: não falei nem das intrigas e nem das complacências, e não apoiei bastante, como você o viu sem dúvida, a impossibilidade de obter julgamentos equalitáveis.432

Smithson, por sua vez, carregado de ceticismo base da sua

radicalidade crítica, volta-se ironicamente contra os curadores e críticos,

431 BAUDELAIRE, C. Les Fleurs du Mal, p. 232 432 DELACROIX, E. Lettre sur les concours, p. s/n°.

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no texto Cultural Confinement433, de 1972:

Alguns artistas imaginam que detêm esse aparato, que na verdade, são detidos por ele. Como resultado, acabam apoiando uma prisão cultural que está fora de seu controle. Os próprios artistas não estão confinados, mas seus trabalhos sim. Os museus, assim como asilos e cadeias, têm carcereiros e celas – em outras palavras, salas neutras conhecidas como “galerias”. Uma obra de arte quando disposta em uma galeria perde seu controle e se transforma em um objeto portátil ou uma superfície desprendida do mundo exterior.

Nas entrevistas, é possível detectar um processo de tomada da

escrita que deixa o entrevistado ser ao mesmo tempo o entrevistador.

Trata-se da polifonia do falar/fazer arte, deslocar/fixar, coincide com a

referência de Gilles Deleuze sobre Lewis Carrol: “Pertence à essência do

devir avançar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo: Alice não cresce

sem ficar menor inversamente”.434

Da fusão da narrativa dos diários, dos manifestos-paródias

tangenciados à paisagem e seus diversos contornos, encontra-se o ponto

de contado entre dois textos de Smithson: Um passeio aos monumentos

de Passaic e Frederick Law Olmsted and the dialethical lanscape. Além

das semelhanças diagramáticas dos textos – a exposição do trabalho

encarnado em fotografias (still), que dizer quase cinema, Sébastien Marot

aponta outra relação existente: site/non-site transubstanciada em ver e

fazer, somente através da indissociabilidade entre os atos. Eis a

passagem:

Pouco tempo depois de se aventurar na dialética entre o site e o non-site, Smithson se encarregava de solucionar a representação lógica de lugares abandonados, não só in visu, mas in situ, intervindo diretamente na sua realidade física. O observador passou a ser o transformador e assim conseguia invocar a herança do poeta William Carlos Williams, assim como o do grande paisagista do Central Park, Frederick Law Olmsted.435

Da relação entre ver e fazer se desdobra a fala. Ações cuja força

433 SMITHSON, R. Cultural Confinement, p. 154. 434 DELEUZE, G. Lógica do Sentido, p. 1. 435 MAROT, S. Sub-urbanism and the art of memory, p. 52

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eclode de sua fricção. Gilles Deleuze comenta essa transitividade:

“Pensar é, ver e falar, mas com a condição de que o olho não permaneça

nas coisas e se eleve até as ‘visualidades’, e de que a linguagem não

fique nas palavras ou frases e se eleve até os enunciados.”436Do mesmo

modo, a transitividade entre paisagem, natureza e arte se expressa na

dialética. Esta não implica oposição, mas refletindo sobre a proposição

entrópica desse processo, de acordo com Smithson, é possível defini-la

como o espaço da incidência do difuso lusco-fusco, atributo também da

passagem, da transformação, que corresponde à região indistinta entre

matéria e mente:

Considerando a natureza do parque, sua história e a percepção que se tem hoje, somos confrontados com um labirinto sem fim de relações e de conexões onde resta apenas isso que ele é, ou onde ele está, como coisa-em-si, mas onde, ao contrário, é o parque todo que se transforma..., como a noite e o dia, a sombra e a luz, o dentro e o fora.437

Smithson retoma a essência poética do deslocamento durante o

passeio ao Central Park: por lá caminha; sente a intensidade pitoresca em

William Gilpin e Henri Thoreau; visita exposição de fotos da construção do

Central Park numa exposição no Whitney Museum e, com ela, dialoga; ou

seja, elabora um nexo atemporal (típico do cinema – um buraco na

vida)438 que dissipa a lógica programática das teorias filosóficas para

retomar a pulsão poética do passeio.

A partir de suas reminiscências, Smithson nomeia o primeiro artista

da Land Art: Frederick Law Olmsted:

Haveria de seguir o transporte do lodo do seu ponto de extração ao seu ponto de descarga. É necessário ter consciência da existência do lodo e dos campos de sedimentação, se se quer compreender a paisagem tal como ela existe.439

Não seria, pois, sua própria operação? “A paisagem se rebobina

nos milhões e milhões de anos de ‘tempo geológico”440 De acordo com

436 DELEUZE, G. Conversaçõe, p. 39. 437 SMITHSON, R. Frederick Law Olmsted and the dialectical landscape, p. 165. 438 Cf. Cinematic Atopia. 439 SMITHSON, R. loc. cit. p.165. 440 SMITHSON, R. Sedimentação da mente: projetos de terra, p. 186.

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Gilles Tiberghien, o pitoresco, fabulado por Smithson, recria a idéia do

pitoresco alegórico de Gilpin441, para quem: “O espelho pode também ter

efeitos pitorescos, mas ele apenas obtém a reflexão. Que o coloque em

alguma parte onde não refletissem nada, todo efeito pitoresco desaparece

ao mesmo tempo para ele.”442 O estreitamento entre o teórico e paisagista

William Gilpin e o escritor Henri David Thoreau seria possível a partir da

consciência da natureza associada à ação do homem, neste sentido, só

pôde ocorrer em território americano. Para Gilpin, a paisagem existe como

anterioridade não apenas como representação, ela antecede a pintura:

idéia ativada pelo transcendentalista Thoreau, em Walden, na descrição

de sua vivência no interior cabana, extensiva à paisagem, esta

personagem central do livro.

Ambos, paisagista e escritor, ambicionam a vida na natureza que,

na América, nunca se separou da paisagem, por isso, quem sabe, a partir

da submersão no sentimento do pitoresco - que procura sua existência

material no instante da sua bruta transformação - promovam uma dialética

da paisagem:

A tentativa de definir o pitoresco no fim de 1800 e começo de 1900, reflete a tentativa de ver e definir um mundo de uma maneira diferente daquela imposta por um século de gosto que se tornou exaustivo pelos padrões clássicos. (...) Nos três ensaios de Gilpin sobre o pitoresco que Thoreau lia em janeiro de 1854, a visão de Burke sobre a ‘suavidade’ ser ‘uma das propriedades mais essenciais’ da beleza e que ‘as idéias de claro e suave’...desapropriam o objeto. Toda pretensão em relação a ‘beleza pitoresca’ é devidamente observada. (...) Para Gilpin, a ‘rudeza’ é uma caracteristica essencial do pitoresco.443

A reinvenção do pitoresco de Gilpin pode ser traduzida na

passagem: “Resumindo, é possível transformar um edifício belo em ruínas

grosseiras.”444 Correspondente à seguinte declaração de Smithson:

“Central Park é o território do encontro do acaso e da necessidade, uma

sucessão de pontos de vista contrastados que serão sempre flutuantes,

tudo solidamente ancorado na terra.”445

441 Cf. TIBERGHIEN, G. Robert Smithson: une vision pittoresque du pittoresque, p.82 442 GILPIN, W. Trois essais sur le beau pittoresque. p.82. 443 BOUDRAU, G. V. H. D. Thoreau, William Gilpin, and the metaphisycal Ground of the Picturesque. American Literature, p. 363. 444 Ibid., p. 364. 445 SMITHSON, R. Frederick Law Olmsted and the dialectical landscape, p. 162.

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Por fim - para completar a exposição das místicas concepções de

Smithson, bem como, estabelecer o cruzamento de suas alusões - seria

preciso acentuar que as transposições temporais e literárias funcionam

como operação poética. Smithson reúne um complexo sistema de

matrizes e referências, reafirmando assim sua vivência entrópica.

Algumas referências são mais ilustrativas, outras aderem às propostas

teóricas do artista. Exemplo disso estaria na reflexão que o artista faz das

considerações do teórico da arte alemão Wilhem Worringer, autor do

célebre ensaio Abstraktion und Einfühlung, escrito no início do século

XX446. De um modo geral, a estrutura do artigo de Worringer inspira a

concepção dialética de Smithson. Porém, deve-se deduzir da tese de

Worringer o resíduo inorgânico, privilegiado nas artes primitivas, nas

arquiteturas egípcia e gótica e na arte Bizantina. No entanto, orgânico e

inorgânico sob a tutela do teórico alemão equivalem às estruturas

psicológicas do homem divididas em abstração e empatia. O

entendimento de Smithson dessas questões fica explicitado no artigo

Frederick Law Olmsted and the Dialectical Landscape de 1971:

Em Abstraction and Empathy (1908) de Wilhem Worringer, é dito que a arte Bizantina e a arte egípcia nasceram de uma necessidade psicológica de escapar à natureza, e que desde a Renascimento, nossa compreensão dessa arte foi ocultada por uma confiança desmedida na natureza. Worringer situa seu ‘conceito’ de abstração fora do panteísmo antropomórfico e sensualista do humanismo renascentista. ‘A impulsão artística fundamental, diz Worringer, não tem a ver com a interpretação da natureza.’ E contudo, ao longo do seu livro, ele se refere às ‘formas cristalinas da material inanimada.’ A geometria me parece uma ‘interpretação’ da matéria inanimada. O que são as redes e grades da abstração pura, senão interpretações e representações de uma ordem reduzida da natureza? Abstração é a representação da natureza desprovida de ‘realismo’ e fundada numa redução mental ou conceitual. Não se escapa à natureza por uma representação abstrata; a abstração nos aproxima das estruturas inscritas fisicamente na própria natureza. Mas isso não significa uma renovação na crença da natureza, significa simplesmente que a causa da abstração não é sagrada. A abstração só pode ser válida se aceitarmos a dialética da natureza.447

Tratado importante para a concepção dialética (matéria e mente)

de Smithson, Abstraktion und Einfühlung concebe duas distintas

446 O ensaio possui importância fundamental por refletir a ambiência da virada do século XIX para o XX. Foi escrito em 1906, apenas um ano antes de Pablo Picasso pintar Demoiselles D' Avignon., e teve grande penetração nos movimentos das vanguardas históricas. 447 SMITHSON, R. loc. cit. p. 162.

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mitologias que atravessam, mesmo que aparentemente opostas, a

consciência do homem. Há na abstração a condensação da natureza, ou

seja, não seria um puro reflexo mental apartado do mundo da vida.

Citando Worringer:

Assim como o anseio à compaixão como pré-suposição da experiência estética encontra sua gratificação na beleza das coisas orgânicas, também o anseio a abstração encontra sua beleza na negação da vida inorgânica, no cristalino ou, (...) em todas as leis e necessidades. 448

O texto de Worringer permanece como uma das bases para a

reflexão de Smithson acerca do que seria constitutivo do homem para a

percepção da arte, da natureza e do mundo. Daí a revelação de que há

mínima distância ou sua inexistência entre os pares espiritual e carnal,

científico e ficção, e a possibilidade do intercâmbio desses pares como

material para arte e vida. Do orgânico das concepções místicas e

religiosas, Smithson serve-se da materialidade corpórea, para passá-las

ao inorgânico.

Robert Smithson se move em direção a uma natureza fictícia ou

literal - embrutecida e árida - e atesta-lhe a destruição irreversível e sua

extrema capacidade de recriação, re-introduzindo uma temporalidade com

a qual é possível produzir e engendrar na contemporaneidade o

panorama zero. O material escultórico informe – se se pensar em termos

de camadas geológicas, placas tectônicas, geleiras, iceberg, cânions -

ganha dimensão gigantesca e revela as possibilidades da matéria – sua

potência. O artista se interessa pelo aspecto reverso do pitoresco: “O

pitoresco, longe de ser um movimento interior à mente, é baseado na

realidade da terra; ele precede a mente em sua existência material

exterior.”449 A partir dessa declaração, o pitoresco pode ser assimilado ao

sublime como desejo de enfrentamento direto, jogo entre presença e

diluição corpórea. Desta forma, o pitoresco e o sublime, segundo

Smithson, se anunciam como intensidades da natureza ferozmente

transmutada pelo transcorrer do tempo atravessados às articulações da

mente. 448WORRINGER, W. Abstraction and Empathy: a contribution to the psychology of style. p.4. 449 SMITHSON, R. Frederick Law Olmsted and the dialectical landscape, p. 160.

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3.5 A Iconografia da Desolação450

Na embriaguez do haxixe, nada parecido. Não sairemos do sonho natural. A

embriaguez, em toda sua duração, será apenas, é verdade, um imenso sonho, graças à intensidade e à rapidez de concepções; mas guardará a

tonalidade particular do indivíduo. Charles Baudelaire451

As afinidades com o romantismo sinalizam a aproximação, nos

primeiros anos da produção de Smithson, com os místicos temas judaico-

cristãos, independentes de qualquer tipo de nostalgia:

Bem, meus escritos não são mitológicos porque, como eu disse, a mitologia é uma ficção na qual se acredita. No momento, tenho me prendido a integridade da ficção. Como não consigo acreditar em objetos e não consigo acreditar em totens, em que posso acreditar? Ficção. Então vamos falar sobre sua integridade.452

Ainda que, nesse trecho, Smithson mencione mitologia, sua

intenção parece ser reforçar seu caráter ficcional, numa espécie de

assimilação paradoxal do Romantismo. E, o Romantismo, evidentemente,

está imerso no misticismo453. Ele pode ser revisto através da conexão que

o filósofo Walter Benjamim faz entre a experiência mística e a

correspondência romântica. Concepção moderna que busca na vivência o

seu sentido de existência. A vivência dessa modernidade é devedora da

noção de correspondência, dos paraísos artificiais, do parque central, dos

signos cifrados e arabescos da natureza, temas caros a poetas como

450 SMITHSON, R. The iconolography of Desolation. p. 320. 451 BAUDELAIRE, C. Paraísos Artificiais, p. 23. 452 SMITHSON, R. Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson, p.213. 453 O misticismo, em particular para os Românticos, teve grande influência de Swendeborg, místico suíço do século XVIII.

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Charles Baudelaire. Segundo Benjamim, Baudelaire condensa, em sua

obra, a noção de modernidade: “Essencial é que as correspondências

cristalizam um conceito de experiência que engloba elementos

cultuais.”454 O cultual pode equivaler-se ao mnemônico revelando a

importância da lembrança como origem do tempo presente455: “As

correspondências são os dados do 'rememorar'. Não são dados

históricos, mas pré-históricos. Aquilo que dá grandeza e importância aos

dias de festa é o encontro com uma vida anterior.”456 Não seria, pois,

desnecessário relembrar algumas estrofes do soneto

Correspondências457 de Charles Baudelaire:

A Natureza é um templo onde vivos pilares Deixam filtrar não raro insólitos enredos; O homem o cruza em meio a um bosque de segredos Que ali o espreitam com seus olhos familiares. Como ecos que à distância se matizam Numa vertiginosa e lúgubre unidade, Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade, Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam. (...)458

O misticismo encontra grande expressão nos românticos de Iena e,

evidentemente, em Charles Baudelaire. Decifrar a natureza não seria uma

simples operação, porque foge à lógica racional iluminista: “Misticismo do

paganismo. O misticismo, traço de união entre o paganismo e o

cristianismo/ O paganismo e o cristianismo demonstram-se

mutuamente.(...) A superstição é o reservatório de todas as verdades”.459

Pois, envolve todas as inflexões imaginativas; mitológicas, religiosas,

artificiais.

O misticismo permeia a produção de Smithson na sua fase inicial.

Segundo Eugenie Tsai, no livro Robert Smithson Unearthed: drawins,

454 BENJAMIM, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, p.132. 455Walter Benjamim, no capítulo Sobre alguns Temas, aproxima a tese de Henri Bergson da constituição do mundo da vida à noção de duração. Para Benjamim: “(...) a presentificação da durée (duração) é que libera a alma humana da obsessão do tempo.” Cf. loc. cit. p.131. 456 Ibid., p.133. 457 BAUDELAIRE, C. As Flores do Mal, p. 363. 458 Versos inspirados na Kreisleriana de Hoffman e citados em Richard Wagner et Tanhäuser à Paris, 1861. 459 BAUDELAIRE, C. Meu Coração desnudado, p. 56.

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collages, writings, há um momento em que:

Smithson obteve o imaginário místico de fontes literárias, como no caso do dantesco e obras religiosas, além dos vários conjuntos de gravuras. Assim ele criou seus mundos imaginários. (…) As gravuras desses conjuntos são feitas com linhas sinuosas e exatas que introduzem o ilusionismo do chiaroscuro. São caracterizados por uma qualidade obsessiva, exemplificada por uma intensidade e atenção lineares esbanjadas em um volume pequeno. Isso reflete a predileção de Smithson pelas tradições antiilusionistas, considerando a arte historicamente como antitética ao Humanismo Renascentista, tal como o bizantino, pré-colombiano e o estilo do iluminador de Blake.460

A iconografia dos desenhos e colagens da fase inicial de Smithson

(1961-62) possui correlato com o texto The iconography of Desolation,

escrito em 1962. Pode-se tratar esse momento como via transversal à

produção posterior de Robert Smithson, ou seja, não se pretende, com

isso, apartá-los do conjunto circular da sua obra. Convém lembrar os

complexos entrecruzamentos que o artista faz durante toda sua carreira. A

proximidade com a geração Beat americana – expressa por Smithson na

passagem: “Quando eu estava em Roma lia Naked Lunch de William

Burroughs e as imagens do livro correspondiam de algum modo a um tipo

de acumulação massiva e grotesca de todos os tipos de rituais

repudiados.”461 – adere ao fluxo verborrágico e psicodélico daquele

momento. É possível afirmar que uma geração inteira esteve On the

Road:

(...) On the Road, está inscrito numa longa tradição que conduziu a uma forma literária altamente emblemática hoje, um fenômeno conhecido desde muito tempo; ele cristalizou assim, através de uma aventura individual, uma prática social muito difundida. Os Beats, os hippies e os filmes do gênero road movies são como uma forma de cosciência coletiva organizada.462

As viagens da geração Beat corporificam, de acordo com Gilles

Tiberghien, a analogia com os passeios de Gilpin. O ponto de contato

estaria portanto na idéia de movimento afinada à mobilidade do pitoresco.

460TSAI, E. Robert Smithson Unearthed: drawings, collages, writing,. p.16 461SMITHSON, R Interview with Robert Smithson for the archives of american art/Smithsonian Institution, p. 287. 462 TIBERGHIEN, G. Notes sur la Nature...,p.21.

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Não importa, nesse momento, voltar à questão do pitoresco. No entanto,

Tiberghien aprofunda seu argumento, supondo a constituição da

paisagem no movimento que se formula tanto num espaço físico quanto

nos textos do artista. Para tanto, estabelece relações algumas intra-

poéticas do universo de Smithson:

On the Road é a expressão literária emblemática: a paisagem desfiladeiro vista do automóvel num frenesi de deslocamentos que é um equivalente visual de uma melodia do jazz à procura de um hit, alguma coisa que teria a ver com a perseguição da baleia por Ahab em Moby Dick. Essas comparações não são fortuitas, sob vários aspectos, a paisagem para Smithson é um texto, e às vezes uma narrativa, como um espelho romanesco, caro à Sthendal, que nos conduz à beira da estrada. Uma geografia imaginária contamina a paisagem real.463

O texto The iconography of Desolation possui uma fluidez virulenta.

Não há pausa. Não há respiração. Sua escrita acontece como uma

avalanche de idéias e associações místicas desconexas. As concepções

de arte são tratadas ironicamente. Smithson, no texto, recita uma espécie

de evangelho no qual mistura referências apocalípticas e mundo da arte:

“A ausência de consolação na arte produz desolação. Os caminhos

sensíveis através dos quais se olha para os trabalhos de arte estão

perdidos no abandono do Espírito Santo, enquanto as pressões da

religião barata tentam a fraca alma na atual salvação zero.”464 A

encarnação sarcástica da sacralidade da arte. O texto aproxima-se de

uma espécie de revelação com afirma Thomas Crow:

(…) que só pode ser chamado de um discurso fantasmagórico apaixonado sobre a condição de arte naquele período. Com referências abrangentes aos recentes movimentos na época – expressionismo abstrato, Pop, o Happening, além de artistas, iconografia religiosa, Albert Einstein, espaço, tempo e cultura vernácula (Hamburger Heaven). O ensaio revela a batalha interior de Smithson de chegar a um acordo sobre o que “fazer arte” significaria no mundo moderno. Embora as referências religiosas que dominavam seus “encantos” ainda estivessem em evidência, tons incipientes de ironia que caracterizaram seus escritos podiam ser detectados em seus textos inflamados. A mistura de imaginário encontrado no manuscrito datilografado de doze páginas, que ele não publicou em vida, corresponde aos diversos temas de sua arte.465

463Id. Robert Smithson: une vision pittoresque du pittoresque, p.88 passim.. 464 SMITHSON, R. The iconolography of Desolation, p. 323. 465 CROW, T. Cosmic Exile: Prophetic Turns in the life and arte of Robert Smithson, p.16.

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O contexto da geração Beat, sobretudo a onipresença de William

Burroughs, atravessa os Paraísos Artificiais de Charles Baudelaire – aliás,

tema central de Charles Baudelaire ao compor uma modernidade cujo

reinado pertence à Rainha das Faculdades: a imaginação. Baudelaire

desenvolve, por assim dizer, uma tipologia do belo; nela, a beleza artificial

corresponde ao traço moderno que se coaduna ao estado criador,

estimulando o exercício imaginativo do artista e do espectador – tanto

quanto plasmar-se às questões de Smithson.

Fig. 28. It’s King Kong

A entropia iconográfica do período (1961-62) estimula o artista a

produzir suas primeiras colagens. It’s King Kong, de 1961-3, indicando o

seu apreço pelo espaço mental, acessível e conhecido através das

projeções materiais. O monstro kitsch, produto do espetáculo, indício de

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uma ordem Pop, percorre a cidade, destrói monumentos, coexiste com

dinossauros – convite à sobreposição de eras terrestres: ambos, ficção.

Essa espécie de circularidade é tratada, por George Baker, como um

modelo diagramático que opera como linguagem. Em St. John in the

desert, colagem de 1961-63, na qual Smithson utiliza imagens, recortes,

desenhos e cuja conexão se faz literalmente: imagens e circuitos –

possivelmente um indício dos traços dos mapas de extrema importância

para produção posterior de Smithson.

Fig. 29. St. John in the desert

Para George Baker, seria o poder da imagem conectada à ação. O

diagrama – que não prescinde da horizontalidade - oscila entre a conexão

e desconexão e, nas colagens de Smithson, são elementos disjuntivos,

ligados aleatoriamente somente para dar a idéia de circulação, ou seja,

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para além de uma ordem lógica. Mas, que pela analogia, reconduz

literalmente ao puzzle; este, recorrente na sua produção posterior, tomado

por uma formação profundamente densa, espessa:

De fato, as primeiras tentativas de Smithson com colagem, parecem estar mais próximas na forma com os modelos de colagem de Rauschenberg ou até mesmo de Kurt Schwitters, depois com os modelos Cubistas. A linguagem disjuntiva parece, desde o começo, estar alinhavada contra-intuitivamente através de um campo diagramático de analogias e de relações (...) de fato, os objetos representados dentro de fragmentos apresentavam uma similar, mas agora representacional, correspondência de formas. 466

A ligação entre as colagens do início de sua carreira às esculturas

de grande porte da Land Art estaria na circulação diagramática

processada por Smithson, novamente, a partir do desvio. Interessado no

processo dialético que não se dá pela superação, Smithson procura opor-

se à disjunção característica desse processo ao trazer do misticismo a

relação entre totem e tabu.467

Fig. 30. Feet of the Christ

A pressuposição da divisão entre céu e inferno na narrativa

religiosa alude aos lugares separados, marcados pela distância, mas

simultaneamente reunidos numa infinita duplicação. A temática religiosa

(judaico-cristã) encontra-se predominantemente na série de desenhos e

466 BAKER, G. Cinema Model, p. 89. 467 Robert Smithson fará posteriormente a correspondência entre totem e tabu e site e non-site baseado nas teorias estruturalistas de Claude Levi-Strauss.

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aquarelas sobre a Queda, ruínas, o sangue derramado, sacrifício

ritualístico, suicídio, etc.:

A consciência do “temor e tremor” é forçada sobre a mortalidade esgotada, tal manifestação não pode ser passada de homem para homem. Pelos padrões contemporâneos a inspiração deve ser evitada a todo custo, porque não há como criticar a possessão por Deus ou do Diabo. Nesse mundo não há lugar para devastações desconhecidas sobre a perda de tempo e o vazio do espaço. Se a aflição tiver uma chance, florescerá como o aroma de uma flor exalada pelas feridas e abscessos do agonizante São João da Cruz. O que nos faz lembrar as encarnações da peste negra de Grunewald que dizia: “Por onde andais, meu bom Jesus, por onde andais? E por que não viestes e curastes minhas feridas”.468

Imagem paradigmática da incipiente produção de Smithson seria a

aquarela intitulada Feet of Christ, de 1961, que apresenta a transparência

corpórea dos pés sulcados e fendidos e insiste sobretudo na potência

circulatória recorrente em sua produção posterior – a espiral. Smithson ali

revela, através da película transparente que recobre aqueles pés, a

comunhão entre homem e natureza, entre interior e exterior – indistição

de início e fim, por que não dizer também do passado e futuro?

Por fim, corroborando a afinidade entre esses romantismos,

sobressai uma nota curiosa. Nas pinturas de Caspar David, as figuras

estão sempre voltadas para natureza, como se convocassem o

espectador a mergulhar naquela profundidade: “O que contemplam

parece ser o próprio tempo, ou, talvez, sejam eles o próprio tempo

incorporado.”469 Na preparação do projeto Island of Broken Glass em

Vancouver, Smithson observa o espectador – seu rosto transformado em

visão - de dentro do site Miami Islet – imerso na atmosfera, não sem a

sombra de ironia em seu sorriso.

468 SMITHSON, R. The iconolography of Desolation. p. 320. 469 ANDRADE, R. Arte e ascese em Caspar David Friedrich, p. 295.

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Fig. 31. Foto - Robert Smithson – Miami Islet

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4 Quando uma coisa é vista através da consciência da temporalidade, ela é transformada em algo que não é nada.470 4.1 Spiral Jetty

Para muitos artistas o universo está expandindo, para outros ele está contraindo. Robert Smithson471

Spiral Jetty é considerada por muitos a obra mais importante de

Robert Smithson. No mínimo, um trabalho que envolve todo seu

vocabulário e dispositivos de ação. Trata-se de uma intervenção nas

margens de um lago – Salt Lake, Utah. O início da aventura é narrado no

artigo The Spiral Jetty: a escolha do local:

Comecei a me interessar por lagos em 1968 com o trabalho sobre site/nonsite do lago Mono, na Califórnia. Em seguida, li Vanishing Trails of Acatama, um livro de William Rudolph que descreve os lagos salgados (salars) da Bolívia, em todos os estados de dessecação, e cheios de micro-bactérias que dão à superfície da água uma cor vermelha (...) Por causa da distância da Bolívia e da ausência da coloração vermelha no lago Mono, decidi me interessar pelo Great Salt Lake em Utah.472

A coleta de informações que pudessem levar o artista ao lago

imaginado - aquele que já existia em sua mente – envolveu uma pesquisa

disciplinada que remonta a 1968, dois anos antes do início do projeto. No

entanto, a curiosa distância com as instituições da arte salta aos olhos. O

projeto tem o aval da Universidade de Utah. O site é arrendado pelo

artista por vinte anos473 e o trabalho começa com a contratação de um

empreiteiro e mestre de obras. Um cineasta da Ace Gallery de Los

470 SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p.197. 471Id., Quase-Infinities and the Waning of Spacep. 34. 472 Id., The Spiral Jetty, p.143. 473 O arrendamento foi prolongado e, atualmente, a obra permanece em caráter permanente.

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Angeles filma o processo. Diferentes instâncias coordenadas pelo artista.

A dimensão do trabalho, além do envolvimento de um aparato complexo,

se deve certamente à mobilização do artista em torno da percepção,

portanto, a diferença entre tamanho e escala:

Spiral Jetty tende a flutuar dependendo de onde estiver o espectador. (...) Uma rachadura na parede se vista em termos de escala, não de tamanho, poderia se chamar Grand Canyon. Um quarto poderia ser feito para conter a imensidão do sistema solar. A escala depende da capacidade de cada um de ter consciência dos dados da percepção. Quando se recusa separar a escala do tamanho, fica-se com um objeto ou linguagem que parece ser certo. Para mim, a escala opera a incerteza. Estar na escala de Spiral Jetty, é estar desprendido.474

O redirecionamento da percepção sugerido pelo artista, ainda que

esteja fortemente amparado pelo seu discurso, deixa escapar certa

fragilidade. A nota sutil, calcada na incerteza, provém do sentido de

desorientação ou mesmo perda. Algo que sempre se esvai, inapreensível

em sua totalidade. Fragilidade compartilhada com a demonstração de

força e energia que a obra requer para ser construída:

Bob Phillips, mestre de obra, enviou dois caminhões, um trator e um grande caminhão de carga para o site. (...) Balsato e terra foram tirados da praia e depositados no caminhão de carga, depois disso os caminhões recuaram para o alinhamento de estacas e despejaram o material. Na margem do lago, no começo da linha, as rodas do caminhão ficaram atoladas num magma de lodo pegajoso. (...) uma vez que os caminhões conseguiram ultrapassar o problema, havia ainda o risco que a crosta de sal dos bancos de lodo viesse a romper.475

Ao lado do descentramento perceptivo existe a vontade do artista

em buscar outro lugar – real e remoto - para a arte. No entanto, esse

desvio comporta a atitude disruptiva, isto é, afastar-se das ditas normas

dos meios de arte ou dos locais habituais de exposição e dos recursos da

curadoria indicaria mesmo a reformulação dos parâmetros da arte.

O trabalho se desdobra nos anéis de uma espiral. Processo

vertiginoso que ressoa como ondas sonoras, emaranhado labiríntico,

reflexos reluzentes dos espelhos que ofuscam a vista, são imagens de

474 SMITHSON, R. loc.cit. p.147. 475 Ibid. p. 146.

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Spiral Jetty. Texto, filme e escultura, Spiral Jetty não pretende ser objeto,

Fig. 32. Spiral Jetty - Construção

pretende estar em outro lugar, ser outra coisa: “(...) apreender o que está

ao redor dos olhos e das orelhas, não importa quão instável e fugidio.

Apreende-se a espiral e a espiral torna-se uma apreensão.”476 Parece não

haver mais o encontro de dois elementos dialéticos que necessariamente

476 Ibid. p.147.

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deslizariam para a entropia. O trabalho nasce como mistura, aderência e

porosidade - sua estrutura entrópica não sugere o colapso de sitemas

fechados -, o material poético: o tempo...

Jessica Prinz, em Words en Abîme: Smithson’s Labyrinth of Signs,

propõe a vinculação dos três trabalhos Spiral Jetty (filme, escultura e

texto): “Spiral Jetty é um ‘campo metodológico’ que ‘corta

transversalmente’ (Barthes, Imagem-Música-Texto) três trabalhos de

Smithson e alguns outros também.”477 Ou seja, a espiral-imagem assume-

se em materialidade, esteja ela, literalmente no trabalho; componha ela, a

narrativa circular e labiríntica, pertença ela, à linguagem fílmica; ou

mesmo, assumindo e consagrando o dispositivo operatório: “Ela acumula

significados e associações que se estendem na zona sinuosa.(...)

Certamente, Spiral Jetty não é um objeto, mas uma sintaxe de metáforas

que não apenas descreve, mas produz uma ‘lúcida vertigem.’”478 A

escolha do local parece vir da costura de signos. A percepção do artista

se comunica com a sinuosidade do local, como resultado: o site como

intuição da obra:

A uma milha ao norte do escoamento de óleo, escolhi meu site. Os leitos irregulares de pedras calcárias se inclinavam gentilmente para o leste; na península, depósitos massivos de basalto negro estavam rachados, dando à região uma aparência caótica. Um dos poucos lugares do lago onde a água chegava à terra firme. Sob a escassa camada d’água rosada se estende uma rede de lama craquelada suportando uma espécie de puzzle que compõe os planos salgado [the salt flats]. Do modo como olhei para o site, ele reverberava sobre o horizonte somente para sugerir um ciclone imóvel, enquanto o bruxuleio de luz fazia tremer o panorama inteiro. Um tipo de abalo [earthquake] adormecido se espalhava na imobilidade palpitante, uma sensação vertiginosa sem movimento. Este site era uma rotunda que se fechava numa imensa curvatura. Deste espaço em rotação, surgiu a virtualidade de Spiral Jetty. Nenhuma idéia, nenhum conceito, nenhum sistema, nenhuma estrutura, nenhuma abstração podia agarrar-se a esta evidência. Minha dialética do site e do non-site rodopiava num estado de indeterminação, onde o líquido e sólido se perdiam um no outro. Foi como se uma sucessão de ondas e pulsações fizesse oscilar a terra firme e que o lago permanecesse tranqüilo como uma rocha. A margem do lago se tornou a borda do sol, uma curva borbulhante, uma explosão se elevando numa lombada flamejante. A matéria desmoronou no lago, espelhada na forma de uma espiral. Não faz sentido preocupar-se com classificações e categorias, não havia nenhuma.479

477 PRINZ, J. Words en Abîme: Smithson’s Labyrinth of Signs , p. 108. 478 Ibid., p. 108. 479SMITHSON, R. The Spiral Jetty, p.146.

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Assim, Smithson funde sua idéia à fisicalidade do site. A dialética

matéria e mente evidencia-se no registro do site. A expedição passa a ser

um dos dispositivos do trabalho. No início do texto, Smithson revela seus

passos para a escolha do local; primeiro, sua intenção de trabalhar com

um material bem específico: os cristais oriundos dos lagos salgados.

Lendo sobre os lagos salgados da Bolívia, Smithson é sensibilizado pela

variedade de estados físicos do lago, bem como, se sente atraído pela

composição da água: “(...) cheia de micro-bactérias que dão à superfície

da água uma coloração vermelha Os flamingos rosas que vivem ao redor

dos salars combinam com a cor da água.”480 A formulação da paisagem

obedece à ordem natural, tanto quanto, à ordem humana, neste caso, a

relação causal da entropia não privilegia nenhum agente. Do homem ou

da natureza, resulta a paisagem. O artigo de Smithson não se limita ao

relato cru das anotações do trabalho, ao contrário, ele elabora uma

intrincada rede de informações e dispostitivos poéticos que se

apresentam sob a condição labiríntica. O artista podia compor um labirinto

descrevendo-o apenas, porém não parte da representação, sua narrativa

recria os corredores do labirinto nos quais caminhos são entrelaçados,

conferindo uma espécie de sensação vertiginosa. Os diferentes assuntos

abordados no texto The Spiral Jetty – que aparentemente não

configurariam um sentido ordenado – são estruturados a partir de um

ponto mínimo de contato que coloca em funcionamento os gatilhos

internos do trabalho. Como abertura do texto, o artista destaca um trecho

de G. K. Chesterton, escritor inglês, que apresenta a idéia vermelho, isto

é, uma percepção da cor colocada de modo a articular, novamente, os

pares mente e matéria: “Vermelho é a coisa mais alegre e aterrorizante no

mundo sensível; é a nota mais ardente, a luz mais forte, é o lugar onde as

paredes desse mundo, que é nosso, se estreitam e onde alguma coisa

além queima através.”481 De significante, o vermelho passa a signo. Neste

processo, a explosão dos sentidos deflagra a noção de entropia descrita

por Jessica Prinz como: “Smithson preserva a infinita tarefa da mudança

constante da relação de palavras e imagens, objetos e idéias no seu

480 Ibid., p.143. 481 Ibid., p.143.

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trabalho.”482

Fig. 33. Spiral Jetty

Fig. 34. Spiral Jetty

A noção de infinito permeia Spiral Jetty que concentra e condensa

o pensamento de Smithson sobre arte, natureza-paisagem e tempo. Na

obra reside um esforço descomunal de realização - típico da pulsão

482 PRINZ, J. Words en Abîme: Smithson’s Labyrinth of Signs, p. 115.

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entrópica da natureza – para isso foram despejadas toneladas de pedras

e mobilizados caminhões e escavadeiras. A espiral – um quebra-mar e um

ponto – foi projetada para reverberar infinitamente, apresentando um

paradoxal cais eterno. A seleção do lugar (site) – um lago contaminado

em Utah – foi decisiva na composição pictórica. Smithson valorizou a cor

do lago – vermelho e sua dialética com a cor branca e textura dos cristais

salinos e ainda a destruição feroz da natureza pelo homem – o lago

salgado foi poluído durante anos pela ação do homem. Seu processo de

realização foi filmado e editado. Smithson congela, em certo sentido, o

movimento reduzindo o filme ao que chama de stills – instantâneos

gerados a partir do próprio filme e distribuídos fora de uma narrativa

seqüencial. Os sons do filme são captações dos ruídos das máquinas e

do helicóptero cujo atributo principal seria uma composição temporal

calcada na sobreposição de eras: “O ruído do motor do helicóptero torna-

se um grunido primal ecoando na tênua vista aérea.”483 Simthson soma

aos ruídos captados uma espécie de mantra no qual descreve sua

posição indicadas pelos pólos terrestre: “Norte (...) Norte pelo leste (...)

Nordeste pelo Norte (...)”484, seguindo nessas direções sucessivamente

induz ao círculo. A seqüência continua através da verbalização dos

materiais: “Lama, cristais salinos, pedras, água”485 que compõem o

trabalho. Neste caso, parece que sua voz enfatiza a materialização dos

produtos do terreno.

Por fim, a escrita plasmada ao trabalho intervém como um outro

componente sem ser todavia um relato documental. Spiral Jetty aparece

pelas várias faces dos cristais e pelo inapreensível horizonte, evocando

múltiplas visadas e tirando de foco a percepção. O caminho começa com

a presença do artista, primeiro pelo recorte mental – a escolha do lugar –

que pertece ao desdobramento do tempo e da paisagem. Sem dúvida,

Smithson busca inserções no espaço e tempo, ambos metamorfoseados

em percepção e deslocamento do horizonte. A proposta parte da

intervenção em local escolhido pelo artista que de um modo ou outro

reenvia constantemente a um tipo de temporalidade ampliada, do 483 SMITHSON, R. The Spiral Jetty, p.149. 484 Ibid., p. 149. 485 Ibid., p.149.

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imaginário imenso e abissal. A escala planetária pode ser percebida pelo

deslocamento do espectador. A (im)precisão do trabalho parece ser

orientada pelo aparelho perceptivo do sujeito que passa por. O trabalho

carrega em si a energia do seu processo, sem jamais perder a ambígua

fragilidade.

O texto Spiral Jetty absorve certamente algumas notações do

fundamental trabalho de Smithson Sedimentação da mente: projetos de

terra, de 1969: “O corpo é todo sugado para o sedimento cerebral, onde

partículas e fragmentos se fazem conhecer como consciência sólida.”486

O encontro suave entre a paisagem e homem que passam a conviver

numa paradoxal tensão harmônica: melhor dizendo, produtora. A cor, a

textura, a atmosfera salgada, a ancestralidade do lugar no confronto com

os homens, a geografia única que simula a espiral por vir. A visão do

artista seria a fusão da sua intuição da forma espiralda no território com a

idéia espiral – imagem literária e circuito de metáforas. Daí, a pergunta: se

for possível localizar um começo, seria este a espiral gravada em sua

mente?:

Esta descrição ecoa e reflete nos esboços de Brancusi da ‘orelha espiralada’ de James Joyce porque ambos sugerem uma escala visual e sonora, em outras palavras, indica um sentido de escala que ressoa no olho e no ouvido ao mesmo tempo.487

Escala: outra medição para a arte. Novamente uma referência da

literatura: Beckett. A colisão se dá através da equivalência entre surd –

número irracional cuja repetição dos decimais posta infinitamente resvala

para uma circularidade contínua –, imagem sugerida por Samuel Beckett,

que logra o rompimento da lógica entre significação e pensamento.

486SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p.182 passim. 487Id., The Spiral Jetty, p.147.

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Fig. 35. Constantin Brancusi – Esboço para James Joyce

Fig. 36. Robert Smithson – Espirais

Geoger Baker, em seu texto Cinema Model, supõe a ligação entre

os dispositivos de Smithson e a linguagem de Beckett:

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Smithson parece ter barrado a palavra ‘linguagem’ e substituído-a pelo termo ‘visão’ no seu diagrama entitulado Surd’s View. Surd era um dos conceitos favoritos de Smithson, que chegou até ele através do seu interesse por Samuel Beckett (O Inominável [1959]). Refere-se ao número irracional em matemática, e àqueles sons inaudíveis em linguagem feitos pela respiração e não pela voz (como f, k, p, s, t). A etmologia da palavra liga-se em retrospecto ao Alogon, escultura de Smithson, como explica o dicionário Oxford, surd descende do latim surdus, significando surdo [deaf] ou mudo [mute], uma tradução mal feita do grego alogos, significando irracional e confuso.488

O diagrama Surd View for an Afternoon – montado por Smithson

durante a entrevista com Dennis Wheeler em 1970 - oferece o conjunto de

diversos elementos propostos por Smithson. Feito em papel quadriculado,

escrito a caneta, Surd equaliza todos os dispositivos de Smithson.

Diagrama composto no mesmo instante da fala. Nele, Smithson desenha

um indício de horizonte ao redor do qual se posicionam os esquemas de

non-site em relação aos sites, assim como, a disposição perceptiva do

espectador. Na composição encontram-se New Jersey, as galerias, air

terminal, gyrostasis, centro, periferia, limites, principalmente, a percepção

no grau zero - linha do equador -, indicada no centro do diagrama. Todos

dispositivos de Smithson articulados num só plano: a folha de papel.

Nesta entrevista, Smithson procura explicar – compondo o diagrama Surd

- por que a relação site/non-site não seria tautológica, ou seja, a repetição

da mesma idéia utilizando meios, suportes ou objetos diferentes. A

relação site/non-site pertence sobretudo ao registro do surd. De acordo

com o artista:

Num sentido, este sistema contraria qualquer idéia de qualquer tipo de sistema. O próprio sistema se auto-cancela. Você está no que poderia ser chamado de surd area. Uma surd area está além da tautologia...não realmente além, não há além. De fato, é uma região onde a lógica está suspensa. Eu gostaria de procurar isto também, esta idéia particular que poderia ser um pouco [produtiva]... Não há nehuma relação comensurável ou é incomensurável. Então, você está num tipo de área irracional.489

Presumir a suspensão da lógica, quer dizer, de uma organização

perceptiva condicionada pela cultura de um modo geral, sublinha os

488 BAKER, G. Cinema Model, p.112. . 489 SMITHSON, R. Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson, p.199.

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indícios poéticos de Smithson. Essa operação sugere a adoção de uma

inserção mais radical no circuito. Um diagrama dentro de outro diagrama,

vetores que têm dois sentidos, paralelas que se encontram, assim

também funcionam o texto, filme e escultura. No texto, o sentido da

filmagem, a possibilidade da visão aérea e a produção dos efeitos

vertiginosos da espiral: “Uma vez, voando para além do lago, sua

superfície me parecia apresentar todas as características de um campo

ininterrupto de carne crua com cartilagem (espuma), certamente devido a

uma ação estranha do vento.”490A descrição é tomada pela visão, assim

como as palavras ressoam a materialidade das rochas e do lago: “A

massa flutuante de rochas e terra de Spiral Jetty poderia ser apreendida

por uma malha [grid] de segmentos, mas os segmentos existiriam

somente na mente ou no papel.”491Ou ainda:

Também é possível traduzir a espiral mental em sucessão tridimensional de grandezas mensuráveis que poderia envolver área, volume, massa, momentos, pressões, forças, tensões e distensões; mas, em Spiral Jetty, o surd toma o lugar e o conduz para um mundo que não pode ser expresso por números ou pela racionalidade.492

Medição cujo resultado é inexeqüível. Exata proposta de Smithson.

A visão entende o horizonte que se transforma em vetor, por sua vez, será

o ponto de contato com o quebra-mar em forma espiralada e acionará

“(...) a realidade curva [curved reality] do sentido de percepção opera nas

e fora das abstrações diretas da mente.”493A imagem da espiral se apóia

na idéia de que cada curva, ou cada movimento da circunferência, seria

um desvio. Este sim, lugar produtivo para Robert Smithson.

490 SMITHSON, R. The Spiral Jetty, p.148. 491 Ibid., p.147. 492 Ibid., p.147. 493 Ibid., p.147.

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Fig. 37. Diagrama - Surd View of the Afternoon

4.2 As ficções erigidas na torrente desgastada do tempo são aptas para submergir a qualquer momento.494

Através do espaço, o universo me compreende e me engole como um ponto: através do pensamento, eu o compreendo.

Pascal495

A célebre Spiral Jetty, construída na cidade Salt Lake, no estado de

Utah, desdobrada em texto e em filme; Amarillo Ramp, Texas, finalizada

por Richard Serra e Nancy Holt por ocasião da trágica morte do artista; e

Broken Circle e Spiral Hill, realizada em Emmen, Holanda. Em comum,

essas obras têm como características o deslocamento e a entropia,

assim, afirmar que existe a constante ressonância do tempo, tratado por

Smithson no limite entre continuidade e descontinuidade, não seria 494SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p.196. 495 PASCAL, B. Pensée 113.

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incorreto. São trabalhos construídos em lagos, espaços desérticos, locais

ermos, deslocados dos grandes centros, com significações que

resguardam o dispositivo ficcional do qual tanto se fala neste trabalho. Em

parte, os trabalhos se entrelaçam à estrutura cartográfica, laços entre o

real e o imaginário que alcançam desde o sentido de aventura – deslizar

sobre o pavimento da cidade ou embrenhar-se no deserto - até a mais

densa reflexão sobre o tempo – duração e disruptura. Ainda que as obras

dos artistas da Land Art possuam pontos equivalentes como a relação

problemática site-galeria, escala, tamanho e deslocamento, Smithson

constrói um léxico próprio que urde toda sua produção. São trabalhos que

não se separam do discurso volátil do artista e que lidam com os próprios

limites da escultura; existe, por assim dizer, um aspecto intelectivo nas

suas elaborações espalhado em registros dos locais, nas motivações para

a escolha dos sites, na fabulação das teorias e das narrativas. Convém

reforçar que o pensamento do artista acerca da natureza e paisagem se

dá concretamente pelo movimento entrópico.

O sentido de aventura, de deriva, e o deslocamento não se

distinguem da questão da galeria e da produção artística daquele período.

No entanto, esses elementos convergem em experiência e em espessura.

Se por um lado, espessura guarda o sentido de profundidade, por outro,

apresenta-se no ritmo veloz da imbricação de territórios, ou seja, mesmo

na horizontalidade desses territórios encontra-se um universo presumido

ficcionalmente. Na produção de Smithson, não é possível dissociar o

elemento mais prosaico e transitório da dimensão espessa da experiência

da obra. Porém, esses mesmos elementos estão em constante jogo de

transformação, desse modo, a percepção se apresenta sob diversos

aspectos ou escapa aos mesmos.

Na Holanda, para se conhecer os trabalhos Broken Circle e Spiral

Hill, construídos em 1971, é preciso atravessar grandes distâncias.

Emmen, cidade periférica e operária, se situa no extremo leste do país,

caracteriza-se por certo isolamento e por particular formação geológica.

Broken Circle consiste num rasgo circular, controlado, do litoral de um

lago na Holanda – que comporta uma mina – cujo resíduo do período pré-

histórico foi mantido no centro da construção – traço-memória da idade

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terrestre, ou seja, o princípio de uma escala temporal. O segundo trabalho

constitui-se de um monte de terra, carregado de significação, de onde

irrompe sua matéria espiralada: a abertura experimental corpórea. O

corpo da terra e a projeção da mente entrelaçados enfim. Sobre a escolha

do local, Smithson declara em entrevista a Gregoire Müller:

Numa densa area povoada como a Holanda, sinto que é melhor não desarrumar a área de cultivo da terra. No meu trabalho no site, de algum modo, eu reorganizei a situação disruptiva e trouxe de volta outro tipo de forma [shape]. (…) então, eu não quis impor um objeto numa area, ou que de alguma maneira desfigurasse a terra que estava cultivada. Eu estava procurando uma area que fosse um tanto crua porque a Holanda é tão pastoral, tão completamente cultivada e ela mesma um earthwork que eu procurei por uma área que eu pudesse moldar, como uma pedreira ou uma mina dasativada. Finalmente, Wim Beeren contactou um geógrafo, Sjouke Zijlstra, que também dirige um centro cultural em Emmen que conhecia vários lagos verdes.496

A cidade não foi construída em torno do lago e da mina, este se

localiza distante do centro e atrai o artista pelos diferentes materiais e

sedimentos que lhe compõe. Trata-se de uma formação geológica que

remonta à era Glacial, lugar de aspecto e mitologia que sugerem a

composição de outros planetas, uma espécie de aventura que traz

elementos atemporais e constitui o espaço fictício. A península onde se

localiza Broken Circle possui areia de quatro cores, o lago tem coloração

verde; Spiral Hill, monte circular de terra negra forma uma espécie de

contraposição, não é quebrado ou interrompido, é circular e remete ao

infinito. Smithson procura reconstruir em sua narrativa temporalidades

anacrônicas: a primeira, uma inundação severa que o país sofrera nos

anos 50, a segunda, a geografia do lago verde da cidade de Emmen

formado por materiais da era Glacial. A inundação reforça, em Smithson,

a noção sobre as mudanças climáticas da terra, fruto da entropia:

Tive que lidar com dois elementos, terra e água, então eu draguei as linhas e fiz uma série de diques de modo que, num sentido, a peça era feita por inundações que remontam a uma específica inundação que devastou a Holanda nos anos 50. Isso me impressionou enquanto eu construía a peça. Começou a funcionar como um tipo de microcosmo para esta catástrofe natural.497

496 SMITHSON, R. “...the earth, subject to catacysms, is a cruel master;” p.253. 497 Ibid., p. 255.

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Para fazer a obra, Smithson se depara com a necessidade de se

rasgar o solo para criar uma espécie de dique. O artista fotografa o

momento de ruptura do território e refaz a inundação. Na foto que

seleciona para diagramar a entrevista, fica clara essa intenção, em sua

legenda aparece “breaking the dike”, referência direta à catástrofe, logo, à

potência entrópica da natureza. Na sobreposição das temporalidades, a

era glacial, também resultado de uma catástrofe, surge na pedra que fica

no centro de Broken Circle. A pedra fora trazida ao lugar pelas formações

geológicas de tempo e de lugar distantes, pertencentes, de fato, à era

glacial. Esse material não existe no lago, é distinto da geografia local.

Smithson acentua esse fato que assume o dispositivo do deslocamento,

este, engendrado pela própria natureza. Seria a paisagem compondo o

non-site?: A mina está na ponta do moraine498. Durante a última era glacial, geleiras se deslocaram para lá e depositaram todo tipo de material, principalmente areia. A área era feita de vermelho, amarelo, branco, marrom e terra negra, com pedras que foram carregadas pelas gelerias e desfeitas [tumbled] em forma redonda. A própria peça foi desenvolvida para a pequena península que se estende pelo lago verde, e no centro da península havia pedra glacial que aconteceu de estar lá. Foi um acidente que se tornou o centro da peça.499

Fig. 38. Broken Circle – Spiral Hill 2008

498 Amontoado de blocos carregados pelas geleiras. 499 SMITHSON, R. “...the earth, subject to catacysms, is a cruel master;” p.257.

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Fig. 39. Broken Circle – Spiral Hill 2008

O deslocamento do material – pedra - coincide com o repertório do

artista que, em seu exercício constante de reflexão, percebe a

singularidade do local e integra o menir500 ao trabalho. Quando se

percorre o lago501, - que certamente perde sua amplidão quando somente

visto por fotografia - sente-se que a pedra realmente não pertence ao

local, ou seja, que fora propositadamente colocada ali numa operação

artística. A percepção dos trabalhos não se dá apenas no momento da

chegada ao lago. Durante o percurso não dá para precisar o que será

encontrado, ou melhor, qual o estado físico de degradação da obra. O

mistério que caracteriza a aventura permanece resguardado e o

espectador mergulha em pleno estado de deriva. Não são obras nas quais

se esbarra na cidade, não existe a certeza do encontro numa praça

pública, numa rua, na frente de um edifício. A obra é a razão do

deslocamento, deve-se procurar num mapa sua exata localização, pois,

sem isso, certamente seria fácil se perder.

Todo o lago é circundado de areia e vegetação rasteira, sendo que

as obras ficam numa faixa mais larga dessa areia. Na entrada da

500 Menir é um tipo de escultura da época pré-histórica. 501 Tive a oportunidade de percorrer a obra, no ano de 2008, durante uma visita que fiz à Holanda, na ocasião da minha pesquisa (CAPES/PDEE) em Paris.

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empresa502 que administra as obras, - passagem para se chegar ao lago,

pois, todo o lago é margeado, além da empresa, por residências – é

possível ver a imensidão do lago, porque dali até os trabalhos existe uma

distância considerável. A aproximação garante o aumento gradativo e

perceptivo da escala, importante para a imersão e o deslocamento do

espectador.

Quando uma coisa é vista através da consciência da temporalidade, ela é transformada em algo que não é nada. Esse senso que tudo engolfa fornece solo mental para o objeto, de modo que ele cessa de ser um mero objeto e se torna arte. O objeto passa a ser cada vez menos, mas existe como algo mais claro. Todo objeto, se é arte, é recarregado com o correr do tempo, mesmo que seja estático, mas tudo isso depende do observador.503

A grandiosidade do trabalho engole o espectador, evidenciada pela

ausência de marcos verticais, como prédios, monumentos, torres de

energia, etc, assim, o espectador perde a referência a qual se habituara a

partir do excesso de informações visuais quando do encontro com uma

escultura na cidade povoada. Em geral, nesse tipo de contato, a escultura

passa a se misturar aos elementos do cotidiano das metrópoles sem se

diferenciar como obra de arte, tornando-se mais um desses confusos

signos do cotidiano. Na presença excessiva de obras como Broken Circle

e Spiral Hill, a dimensão afirma sua existência, o espectador, ao mesmo

tempo em que se sente envolvido por toda obra, precisa desse espaço

para realizar as alternâncias de visadas perceptivas, pois uma experiência

visual apenas passa à ordem da impossibilidade. Caminha-se muito para

ter o todo percorrido, que desfeito como unidade, apresenta-se pelos

deslocamentos, como se a percepção se desse através de pequenas

disrupturas que vão eclodindo ao longo do percurso.

Em Deslocamento [Shift], trabalho de Richard Serra, de 1970-72,

construído no Canadá, o envolvimento entre espectador e obra se

apresenta quase sem intermédios. A transitividade entre os elementos da

obra é descrita no texto do artista: “A intenção do trabalho é uma

502 De Boer, Emmerhoutstraat, 150. 503SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p.197.

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consciência da fisicalidade no tempo, no espaço e no movimento.”504Com

definições mais rigorosas, Serra comenta suas reflexões e dispositivos a

partir dos quais aciona o nexo entre visão e escala: Os limites do trabalho se tornaram a distância máxima que duas pessoas podiam tomar uma da outra mantendo ainda, cada uma, a outra à vista. O horizonte do trabalho foi estabelecido pelas possibilidades de manutenção desse ponto de vista mútuo. À medida que os níveis dos olhos forma alinhados - através da expansão do campo -, as elevações foram localizadas. A expansão do vale, ao contrário das duas colinas, era plana. Eu queria uma dialética entre a percepção que uma pessoa tem do lugar, em totalidade, e a relação que tem com o campo, caminhando. O resultado é a maneira de uma pessoa se medir a si mesma, ante a indeterminação do terreno. Não estou interessado em olhar a escultura definida exclusivamente por suas relações internas.505

A escala articula a percepção do espectador e o coloca na rede de

trocas mediadas pela paisagem. Percorrer o trabalho permite dizer que

nenhuma visada se apresenta da mesma maneira. No entanto, a

discussão que envolve a escala como mediada da arte, para essa

geração de artistas, esbarra no problema do circuito artístico, pois, dada

dificuldade de acesso, a obra passa a ser vista e conhecida por

fotografias. Sobre seus trabalhos em Emmen, Smithson já antevê o

problema. Na entrevista a Gregoire Müller, quando perguntado sobre a

possível transformação desses trabalhos em objetos ou pinturas,

responde:

Eu acho que estamos falando das várias maneiras de localizar uma coisa. De certo modo, localizar uma coisa é circunscrevê-la em fotografia. Se você sobrevoa a peça, você pode ver toda sua configuração no sentido comprimido da escala fotográfica. Nós estamos discutindo isto: como apreendemos a escala. Agora, vamos dizer que haja três diferentes tipos de escala que se pode apreender, e que eles estão constantemente trocando de lugar um com o outro. (...) isto é menos da ordem do olhar e mais da ordem do toque, ou aquilo que podemos chamar de ‘espaço tátil’.506

A proposição da escala planetária está evidentemente ligada à

percepção deslocada do espectador. No entanto, a fotografia resguarda,

em certo sentido, a memória da entropia porque somente através dos

504 SERRA, R. Deslocamento, p. 327. 505 Ibid. p. 326. 506 SMITHSON, R. “...the earth, subject to catacysms, is a cruel master;” p.254.

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registros fotográficos ela se deixar perceber. A dissolução da obra,

decorrente das graduais transformações geológicas e humanas, acionada

pelo tempo não pode ser vista realmente. O registro do trabalho associa-

se à narrativa confabulando portanto um outro objeto, melhor dizer, outra

inserção. No imaginário corrente do espectador – remete-se aqui àquele

que já conhece os registros da obra -, talvez, busque-se a certeza da

forma cristalizada, porém, se atesta, em decorrência do tempo e através

de outras imagens, a descaracterização plena e irreversível dos trabalhos.

Em Spiral Hill, fica mais evidente o caráter informe. As fotos de 1971, da

exposição Sonsbeek - para a qual as obras foram requisitadas - o morro

de terra que ascende em espiral mantém seu formato, claramente,

esculpido; já, em 2008, o morro encontra-se fora do eixo espiralado

recoberto por espessa vegetação rasteira escondendo a terra negra que

guardava a história do local. O tempo se encarrega de continuar

perpetuamente a reformulação da narrativa: uma história dentro da

história. É possível perceber, ainda que vagamente, a forma original do

Fig. 40. Broken Circle - Spiral Hill - 1971

trabalho quase totalmente diluída. O caminho deixado pelo artista

permanece somente como reminiscência, um traço resguardado do que

seria a real e literal transmutação entrópica.

Broken Circle e Spiral Hill põem em jogo o princípio entrópico da

natureza, porém, comportam outra relação: a dupla percepção entre

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centro e periferia. Os trabalhos apresentam algumas questões

fundamentais para Smithson, do recorte do site à transformação

naturalmente entrópica do trabalho. A literalidade da entropia também

pode corresponder à abstração da mente porque, para Smithson, ela

assimilaria a reflexão do etnólogo Claude Lévi-Strauss:

Em algum momento, gostaria de compilar todas as diferentes entropias. Todas as classificações perderiam suas estruturas [grids]. Levi-Strauss teve um bom insight; ele sugeriu que trocássemos o estudo da antropologia pelo da ‘entropologia’. Poderia ser um estudo do próprio processo de desintegração das estruturas altamente desenvolvidas. Depois de tudo, os destroços são muitas vezes mais interessantes que a estrutura.507

Fig. 41. Broken Circle - Spiral Hill - 2008

A convergência das idéias de fisicalidade, entropia e (des)estrutura

soma-se à metáfora geológica da cristalografia; assim, a forma do cristal

adquire uma ressonância singular. Dela, o artista extrai a concepção de

Enantiomorphic, forma-espelho que adere, por assim dizer, à estrutura

plástica dos trabalhos revelando a ruptura com o sentido perceptivo. O

ponto cego apresenta a impossibilidade de experenciar o trabalho apenas

507 Ibid., p. 256 passim.

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pela visualidade. As enantioformas são formas inversas de um mesmo

elemento: o reflexo do espelho e a supressão do ponto projetivo,

substituído, metaforicamente, pela região cega e indistinta – zero - da

eclosão de todas as coisas. O pensamento enantiomórfico ampliado seria

os Broken Circle e Spiral Hill, trabalhos, que vistos em sobrevôo, por

exemplo, refletem a projeção especular; se percorridos a pé, ganham

tessitura temporal, afirmam-se pela experiência. Para resolver o problema

da visada projetiva e especular da visada do avião ou do helicóptero,

Smithson elabora um plano de vôo que provoca alternâncias

perceptivas508:

Além disso, o filme permanece inacabado. Eu tinha em mente várias manobras aéreas. Poderia ser um arremesso descendente ou ascendente do helicóptero. O helicóptero poderia ir o mais alto possível sobre Broken Circle, então lentamente desceria no meio, até 3 pés sobre a areia e a água. O diâmetro cortaria o frame pela metade, o closer do helicóptero capturaria o Broken Circle. Ainda, outra manobra poderia envolver um aeroplano. Eu estou pensando na manobra em trevo [clover leaf] que consiste em quarto loops com o Broken Circle no topo desses loops. Um trabalho dessa escala não termina com uma exposição. Existem maneiras de gerar um movimento contínuo.509

A apreensão do trabalho artístico nunca deixou de permear as

concepções e observações de Robert Smithson. Por isso, suas propostas

fílmicas estão certamente atreladas à percepção. Smithson produz filmes

durante sua produção, muitas vezes são trabalhos realizados em

comunhão com o processo de construção das obras. É certo afirmar que

estes trabalhos pertencem às concepções do artista sobre o indissociável

par arte e mundo, evidenciado por meios artísticos tratados sem privilégio:

Como o cinema e as salas de cinema, os impressos [printed-matter] têm uma função entrópica. Mapas, cartas, anúncios publicitários, livros de arte, livros de ciência, dinheiro, projetos arquitetônicos, livros de matemática, gráficos, diagramas, jornais, quadrinhos, brochuras e panfletos das companhias industriais são tratados da mesma maneira.510

Dentre os filmes se destacam: Spiral Jetty e Hotel Palenque. Neles

508 As filmagens não foram finalizadas. 509 SMITHSON, R “...the earth, subject to catacysms, is a cruel master;” p.259. 510Id. Entropy and the new monuments, p.18.

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estão a proposital desordenação do processo e das imagens, não existe

uma sequência cronológica ou narrativa dos eventos. A voz combinada

com as imagens gravadas sugere sempre a deslocalização, daí a

existência de certa arritmia no decorrer dos filmes. Evidentemente, os

filmes diferem muito um do outro. O primeiro é labiríntico, procura

descentralizar o espectador, evidenciar a escala que, para o artista, passa

a ser a (des)medida da arte; o segundo filme, Hotel Palenque, se

aproxima do cinema experimental511, levando ao limite o universo fílmico,

a partir do momento em que gera a exaustão do enquadramento,

extensão contínua dos frames, etc. Porém, antes de analisar os filmes

Fig. 43. Broken Circle - Spiral Hill

511 Existe uma relação direta com o cinema experimental de Michael Snow.

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Fig. 44. Esquema - enantiamorphics

mencionados, vale apresentar os textos From Ivan the Terrible to Roger

Corman or Paradoxes of Conduct in Manerism as Reflected in the

Cinema, de 1967, e Cinematic Atopia, de 1971, que trazem à luz as

reflexões de Smithson sobre o meio fílmico e de que modo ele estaria

estreitado à temporalidade e entropia, no extremo, à vida.

O texto de 1967 não chega a ser publicado por Smithson. O artigo

conserva certa semelhança com a crítica cinematográfica, porém, em sua

explanação, fica claro o intenso entrecruzamento que o artista faz das

ditas categorias artísticas. O tempo todo, Smithson busca analisar noções

estéticas que subsistem em meios díspares. O artista cruza metodologias

de interpretação de modo a tornar viáveis as latitudes artísticas. Dos dois

métodos que o artista expõe em seu artigo, ele privilegia o método

Meyerhold (segundo Smithson, recorrente em Sergei Eisenstein) em

detrimento do método Stanislavsky: o primeiro, em favor da automática

imitação [automatic imitation], o segundo, dos sentimentos internos e

expressões naturais [internal feelings e natural expressions]. Os métodos

são colocados como apresentação somente para expressar sua

percepção de que o naturalismo permeia todas as instâncias da arte. Na

realidade, Smithson não faz a diferenciação entre uma esfera e outra,

pelo contrário, passa de uma à outra sem qualquer diferenciação. Se o

naturalismo funda algumas convenções do renascimento, o maneirismo

irá revelar a tentativa de subverter a relação entre naturalismo e

expressão da vida:

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A arte maneirista é muitas vezes chamada de pseudo, doente, perversa, falsa, hipócrita e decadente pelos naturalistas ou contadores da verdade, parece ainda, para mim, que a estética maneirista revela ou recobre um sentido primal do mal. Ambos, Eisenstein e Poe, parecem ter estado conscientes de cada condição malévola.512

Tal descrição em momento algum comporta um sentido negativo.

Na dicção de Smithson, esse aspecto ganha um contorno positivo,

promovendo mesmo a possibilidade de criação artística. Assim, Alfred

Hitchcock seria, para Smithson, maneirista: “Os atores de Hitchcock,

como as figuras da pintura de Jacopo Pontormo, parecem emboscadas

numa linda prisão que produz tipos intrincados da náusea visual.”513 Ora,

a qualidade vertiginosa dos filmes de Hichtcock e do método de

Eisenstein atraem o artista; a partir delas, ele pode trabalhar com a

incerteza oposta à objetividade pura que exclui a materialidade. No breve

artigo Impossible Cinema: Art and Film in Hitchcock, Smithson and

Barney, Saul Anton relaciona o modo sedimentação – conseqüência da

entropia – ao esquecimento, ao evanescimento. Assim, o crítico associa

tais qualidades entrópicas à substituição metonímica por ser o justo

oposto da afirmação da objetividade como essência e como real. Para

tanto, ele sustenta a tese de que:

O evanescimento é análogo ao MacGuffin514 de Hitchcock e ao sentido crítico da montagem interna do formalismo russo. A dialética do site e non-site, também, é precisamente o movimento metonímico entre o objeto como coisa e objeto como imagem, e por último, imagem como linguagem.515

Texto que revela o traço crítico de Robert Smithson, From Ivan the

Terrible to Roger Corman or Paradoxes of Conduct in Manerism as

Reflected in the Cinema aporta questões que certamente apuram as

idéias do artista em torno do seu ambiente cultural. O teor crítico projeta o

olhar sensível de Smithson para além das designações teóricas, para

envolvê-lo novamente na porosidade poética. 512SMITHSON, R. From Ivan the Terrible to Roger Corman or Paradoxes of Conduct in Manerism as Reflected in the Cinema, p. 350. 513 Ibid., p. 353. 514 Noção de Hitchcock inerente a uma coisa sem sentido que mesmo assim vira o centro para o qual a narrativa se volta. Cf. ANTON, Saul. Impossible Cinema: art and film in Hitchcock, Smithson and Barney, p. 13. 515 Ibid., p. 18.

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A distorção dos conceitos que permeia o artigo de 1967 se acentua

radicalmente em Cinematic Atopia, de 1971. A começar pelo título-

conceito do artigo que sugere o cinema como não-lugar [atopia]. Não se

trata, pois, do non-site – também um não-lugar - mas da experiência

fílmica, em todas as etapas – filmagem, montagem, edição e, por fim,

exibição -, que assume o papel do ponto cego das enantioformas, na

equivalência do descentramento perceptivo. Smithson inicia o artigo com

a seguinte declaração: “Ir ao cinema tem como resultado uma

imobilização do corpo.”516 Correspondente, por assim dizer, a fala de

Smithson em Incidents of mirror-travel in the Yucatan: “A distância parecia

restringir a aceleração, levando assim o carro a uma sucessão incontável

de imobilizações.”517 O estado de deriva orquestra a relação entre

imobilização e deslocamento, talvez, pela sua própria condição

irreversível, seja possível inferir que a imobilização do corpo apure os

graus de percepção que eclodem na deriva:

Tudo que se pode fazer é ver e ouvir. Esquece-se onde se senta. A tela luminosa difunde uma luz enevoada pela escuridão. Fazer um filme é uma coisa, assisti-lo é outra. Impassivo, mudo, o espectador permanece sentado. O mundo exterior se distancia, enquanto os olhos sondam a tela. Há alguma importância em saber que filme está sendo visto? Talvez. Os filmes têm em comum o poder de levar a percepção para outro lugar.518

Percepção: signo da atopia. Cinema: deriva imóvel? Parece ser

esta a formulação do artista. Jean-Pierre Criqui aponta a relevância de

outro texto sobre o meio fílmico, publicado somente em 1991, Art through

the Camera’s Eye, escrito em 1971-72:

Qualquer um que aborda esse tema na obra de Smithson se vê, por bem ou por mal, coagido a redobrar – a se colocar no espelho ou então a se colocar ao quadrado – esta vertigem anestesiante, esta dimensão do espírito diante toda tentativa de se orientar, por pouco que seja, pelo labirinto da coisa filmada.519

E através do olho da câmera Simthson vê formar em sua mente

516SMITHSON, R. A cinematic atopia, p. 138. 517SMITHSON, R. Incidents of mirror-travel in the Yucatan, p.119. 518SMITHSON, R. loc. cit. p. 138. 519CRIQUI, J-P.. Un Trou dans la Vie (Robert Smithson va au Cinéma), p. 59.

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miragens cinematográficas, reservatórios estagnantes de imagens que se

anulam. Sem dúvida, estar na sala de cinema se aparenta ao estado de

deriva: da projeção perceptiva, da imobilização do olho. O artigo

apresenta ainda a série de stills do filme Spiral Jetty invertendo a forma

labirintínca do filme em linha contínua, ainda que, a seqüência de

imagens seja da ordem da disjunção. No filme, uma imagem desliza sobre

a outra - como as páginas rasgadas de um livro caindo lentamente uma

depois da outra – numa sucessão anacrônica cujo sentido pode ser

estabelecido somente pelo tempo que, por sua vez, se revela através do

medium. Nesse ponto, cabe remeter à discussão proposta por Rosalind

Krauss em A Voyage on the North Sea: art in the age of the post-medium

condition que anuncia logo no prefácio o problema da contaminação da

expressão medium, seja ideológica, dogmática ou discursiva. No entanto,

a autora procura recuperar a noção de automatismo – o dispositivo

automático da câmera, somado a certo impulso inconsciente oriundo do

Surrealismo520 – como liberdade do trabalho em relação ao autor.

O início dessa reformulação da liberdade em relação ao medium

aparece em outro texto da autora, Video: the Aesthetics of Narcissism, de

1976, publicado na revista October, que supõe a impossibilidade de falar

do vídeo como medium físico; para tanto, ela inverte a noção do vídeo -

veículo físico – para o vídeo – situação psicológica.521 O vídeo como

condição específica do narcisismo pretende retirar a atenção do objeto

externo e recolocá-la no self. Essa nova projeção só seria possível porque

passa pelo filtro do modernismo, isto é, o artista coloca sua

expressividade através da descoberta das condições objetivas do seu

medium e da sua história para encontrar então a sua subjetividade –

situação psicológica – seria necessário que o artista reconheça a

independência do material de um objeto externo – medium. Ademais,

Krauss estabelece três mecanismos de atuação da video-art nos anos 70

que exploram esse sentido:

São eles. 1) fitas que exploram o meio de modo a criticá-lo de dentro; 2)

520 Idéia apresentada por Stanley Cavell. 521 A autora analisa especificamente o vídeo Boomerang de Richard Serra com participação de Nancy Holt..

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fitas que representam um assalto físico no mecanismo do vídeo escapando do seu apego psicológico; 3) vídeo instalação que usa o medium como sub-espécie da pintura e da escultura. O primeiro representado por Boomerang de Richard Serra. O segundo pode ser especificado por Vertical Roll de Joan Jonas. E o terceiro é limitado a certas instalações de Bruce Nauman e Peter Campus.522

O desdobramento da estética da video-art se dá num momento

muito específico da década de 70 no qual os meios de arte estavam

sendo profundamente reformulados. Cabe então a pergunta: qual seria o

real projeto fílmico de Robert Smithson e de que maneira ele estaria

ligado aos artistas da sua geração?

Jean-Pierre Criqui formula, em seu artigo Un Trou dans la Vie, a

significativa presença da entropia no tratamento que Smithson confere

aos meios fotográficos, afastando-o, portanto, de uma dita cultura

cinematográfica; estaria, pois, no filme a “apoteose” fotográfica do artista.

Assim, seria, “(...) antes uma massa fervilhante de clichês de origem

incerta, um depositório de imagens e de situações que nos governam e

nos esgota.”523 No entanto, a despeito da singularidade poética de

Smithson, se coloca em questão seu envolvimento fílmico a partir dos

fluxos culturais, para isso, se torna importante a nota de Rosalind Krauss.

Em A Voyage on the North Sea: art in the age of the post-medium

condition, Krauss demostra o envolvimento dos artistas com a questão

fílmica como saída para o enrigecimento do termo medium. Nos anos 70,

os artistas se reuniam para assistir às mostras organizadas pelo lituano

Jonas Mekas, em Nova York, que consistiam na programação de filmes

da vanguarda soviética e francesa, documentários britânicos, além dos

filmes de Charles Chaplin e Buster Keaton:

Os artistas se reuniam na escuridão do teatro, wingchair como assentos cujo design cortava toda e qualquer visão periférica para que toda atenção incidisse sobre a própria tela, artistas como Richard Serra, Robert Smithson ou Carl Andre, poderia ser dito, estavam reunidos em torno de sua profunda hostilidade à rígida versão de modernismo de Clement Greenberg com sua doutrina da planaridade [flatness]. Ainda, se eles estavam reunidos na Anthology Film Archives significa, em primeiro lugar, que eles estavam comprometidos com o modernismo apesar de tudo.524

522 KRAUSS, R. Video: The Aesthetic of Narcissism, p.59. 523 CRIQUI, J-P. Un Trou dans la Vie (Robert Smithson va au Cinéma), p. 59. 524 KRAUSS, R. A Voyage on the North Sea: art in the age of the post-medium condition, p. 24.

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Em suma, Smithson trabalha o filme do mesmo modo que faz

circular suas fotografias e textos que, por sua vez, estariam vinculados às

esculturas. Porém, o artista conserva a sensibilidade da sua época que

procurava evidenciar os espaços entre os meios artísticos que eclodiam

em rupturas possíveis para a continuidade poética. Desse modo, é

possível ressaltar que os meios utilizados pelo artista ecoam na

vertiginosa espiral na qual prevalece o movimento circular dos fluxos da

matéria e da mente.

4.3 Valor do Tempo525

O problema do tempo é esse. É o problema do fugaz: o tempo passa.

Jorge Luís Borges526

O seu interesse pelo natural – entrópico - revela-se tributário da

potência recriadora que tem como co-habitante o processo temporal.

Natureza transmutada e transformadora seria material-base - imaginação

e literalidade - para experimentação artística de Smithson. Em dois

momentos diferentes - ainda que seja possível encontrar afirmações

desse tipo ao longo da sua produção textual -, Smithson exemplifica, na

conversa com Dennis Wheeler, o que seria o natural: “Esta é a dificuldade

de lidar com...o aspecto escondido da natureza. O fenômeno da natureza

se destrói através si próprio…é sempre um tipo de situação evasiva.” para

completar: “Não, não há lamento para nada. É inevitável. (…) pessoas da

minha geração cresceram na destruição industrial, e não numa rústica

localidade da qual poderiam se lembrar.”527 Nessas passagens, Smithson

reforça o privilégio que o aspecto informe do natural ganha e que resvala

525 SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 196. 526 BORGES, J. L. O Tempo, p. 232. 527 SMITHSON, R. Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson, p.230.

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diretamente para a indistinção do que é misturado e evasivo. Numa

proporção menor, Smithson aceita a totalidade fraturada e daí parte para

repensar estética e poeticamente aspectos da cultura, da ciência, para

isso, procura acentuar o lado oculto e misterioso da própria existência do

universo:

Tenta-se dar um salto para um tipo de Romantismo…então você tem apenas um tipo de livro de imagens sentimentais, um romantismo batido do que se estima que natureza seja...mesmo no suposto universo estável da matéria como foi vista pelos cientistas do século XIX, novos problemas constantemente aparecem… A descoberta dos físicos das partículas de anti-matéria com cargas opostas daquelas que compõem nosso mundo e incapazes de existirem conjuntamente com as matérias conhecidas, levantam a pergunta da possibilidade de se existir em outro lugar. Outro lugar. É como Yucatan funciona. “Yucatan está em outro lugar”. Então, isto é um tipo de anti-Yucatan.528

A entropia reside no processo transformador dos elementos

existentes no mundo; matérias que se desgastam porque

necessariamente perdem energia no decurso temporal. A partir de suas

palavras, fica explícito que parte de seu entendimento sobre entropia

dialoga com teses científicas, estruturalistas e com algumas noções de

ecologia: “Poderia dizer que todo o problema da crise de energia é uma

forma de entropia. A terra sendo um sistema fechado, há somente certo

conjunto de recursos e, claro, há uma tentativa em reverter a entropia

através da reciclagem de lixo.”529 O tom irônico provém da certeza da

irreversibilidade do processo entrópico. A entropia possui uma definição

negativa, seria a ordenação na unidade do tempo, quer dizer, o desgaste

dos sistemas fechados que necessariamente os reordena. No entanto,

esteticamente, a entropia encontra-se em dois outros projetos. Em

Documents 1 (1929), Georges Bataille define, sob a forma de artigo o

verbete Poussière (Dust), “(...) pesadelo entrópico.”530 Vale citá-lo:

Os contadores não imaginaram que a Bela Adormecida despertaria coberta por uma espessa camada de poeira; eles tampouco pensaram nas sinistras teias de aranha que ao primeiro movimento seus cabelos ruivos teriam rasgado. Enquanto isso, tristes crostas de poeira invadem

528 Ibid., p. 230. 529SMITHSON, R. Entropy made visible, p.302. 530 KRAUSS, R. ;BOIS, Y-A. Formless: a user's guide, p. 38.

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sem fim as habitações terrestres e as sujam uniformemente: como se se tratasse de dispor os celeiros e os velhos quartos para a entrada próxima das assombrações, dos fantasmas, das larvas que o odor carunchoso da velha poeira substantiva e embriaga. Quando as grossas moças ‘boas pra fazer tudo’ armam-se, cada manhã, de um grande espanador, ou mesmo de um aspirador elétrico, elas não ignoram talvez de todo que contribuem tanto quanto os sábios mais positivos para afastar os fantasmas malfazejos que a limpeza e a lógica enojam. Um dia ou outro, é verdade, a poeira, posto que ela persiste, começará provavelmente a ganhar das serventes, invadindo imensos escombros de construções abandonadas, docas desertas: e, nessa longínqua época, nada subsistirá que salve os terrores noturnos, pela falta dos quais nos tornamos tão grandes contadores .531

O informe - o encoberto, aquilo que não possui uma forma

delineada, aquilo que ocupa e recobre o mundo – espalha-se tal como a

poeira, apagando as superfícies das coisas, dilui suas formas e retira-as

do tempo. Espaço e tempo desorganizados, revolvidos, colocam-se como

alguma coisa outra. Talvez, possa ser dito que a camada envolvente, de

matéria fina e sedimentada, se compõe de todos os elementos do mundo

indistintamente. O contágio se torna o elemento que garante ao mundo

outra densidade, outra tessitura portanto. Na conversa entre Jean Genet e

Giacometti, a entropia residual da transformação da matéria bruta – pedra

- em obra, contamina aquele universo reforçando o elo entre artista, obra

e ateliê:

Aliás, esse ateliê, ao rés-do-chão, vai desabar de um momento para o outro. É de madeira carcomida e poeira cinza, as estátuas são de gesso, deixando à mostra a corda, a estopa ou um pedaço de arame; as telas, pintadas de cinza, perderam há muito tempo a tranqüilidade que tinham na loja, tudo está sujo e abandonado, tudo é precário e está prestes a desmoronar, tudo tende a se dissolver, tudo flutua: ou tudo isto está como que capturado numa realidade absoluta. Só quando deixo o ateliê, quando estou na rua, é que percebo que nada mais à minha volta é verdadeiro. Será que o digo? Nesse ateliê, um homem morre lentamente, consome-se, e sob nossos olhos se metamorfoseia em deusas.532

Hotel Palenque533, de 1969-72, trata do universo sedimentar e

erodido da arquitetura de um hotel abandonado incrustado na floresta

densa. Obra-resíduo de Incidents of Mirror-travel in the Yucatan, a

paisagem descoberta por Smithson, aciona o jogo entre cobrir, recobrir e

531 BATAILLE, G. Œuvres Complètes. Vol 1. pp. 197. 532 GENET, Jean. O Ateliê de Giacometti, p.92. 533 Trabalho finalizado por Alex Hubbard

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descobrir. As ações transitórias e definitivas são, paradoxalmente, a

vertigem do descentramento do artista. Na colocação dos espelhos, no

quinto deslocamento por Yucatan, Smithson descobre a região – floresta

luxuriante e Cidade das Serpentes - e, para ele, a descoberta se dá pela

cor, matéria e reflexo. São os dados primeiros da pintura, então, se

pergunta o artista: “Se as cores podem ser puras e inocentes, elas não

podem ser também impuras e culpadas?”534 O jogo coloca a dialética do

Fig. 44. Hotel Palenque

534 SMITHSON, R. Incidents of mirror-travel in the Yucatan, p.124.

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cobrir e recobrir e descobrir. Smithson descobre a cor para torná-la

matéria e luz. O artifício seria então o espelho, o sol, a terra:

Na selva, toda luz é paralisada. As partículas de cor contaminam os reflexos em fusão nos doze espelhos, se fazendo, produzindo as misturas de sombra e luz. Como agente da matéria, a cor enche as luminescências que se refletem de tonalidades sombreadas, encerrando a luz numa espécie de opacidade material e poeirenta. (...) Na sua origem, cor significa cobrir ou esconder. A matéria absorve a luz e a cobre de uma mistura de cores. (...) A cor acrílica e a pintura flou não se comparam a esta luz e cores em estado bruto. A cor verdadeira é perigosa, ela não é uma coisa dócil que sai dos tubos.535

O ofício do artista é a contaminação visual. A imobilização do olho é

ao mesmo tempo deslocamento físico condição primeira da obra. Assim,

para cada indício da região, um correspondente artístico estabelecido pelo

artista. Os elementos da paisagem são aspectos da arte:

Nos arredores das ruínas de Palenque, ou na borda da saia de Coaticlue, grossas pedras foram viradas; primeiro, a pedra foi fotografada, depois o buraco que havia sido deixado. ‘Sob cada pedra há uma orgia de escala’, diz Coaticlue. (...) Cada buraco continha earthworks em miniatura: traços e passagens de insetos e outras variedades de pequenas criaturas.536

Do medium texto para o fotográfico-fílmico. O outro-filme, criado a

partir de trinta e um slides da arquitetura do Hotel abandonado em

Palenque, é resíduo da aventura em Yucatan, talvez seja mesmo aquele

buraco – earthwork miniatura – recoberto/descoberto pelo artista. O filme

é substancialmente a filmagem de uma palestra, ministrada pelo artista,

para os alunos de arquitetura da Universidade de Utah, em 1972. São

registros de Palenque com a narração do artista. O tema: a entropia. Com

voz monótona, o artista consegue transformar o tempo do filme numa

corporificação de “uma exposição de solidão viscosa”537. O estado de

imobilização do corpo e a mobilização da percepção pertencem ao não-

lugar, signo da atopia:

535 Ibid., p.125. 536 Ibid., p. 125 passim. 537 SMITHSON, R. Incidents of mirror-travel in the Yucatan, p.126.

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Selvas emaranhadas, caminhos sem saída, passagens secretas, cidades perdidas esvaem nossa percepção. Os sites dos filmes não são localizados nem seguros. Tudo está fora de proporção. Escala inflada ou esvaziada em porporção desconcertante. Nós vagueamos entre o elevado e o insondável. Perdemo-nos entre o abismo interior e os horizontes exteriores ilimitados. Não importa qual filme nos faz banhar na incerteza. Quanto mais se olha através da câmera ou quanto mais se considera uma imagem projetada, mais o mundo se distancia, assim, começa-se a compreender melhor esta distância. As definições captam a indefinição. 538

Os filmes possuem dimensão temporal, tátil e corporal. Através

deles Smithson capta o universo imaginário desvelado pela percepção

atópica. Em Hotel Palenque, é possível resgatar sua consonância com os

filmes do cinema estrutural que leva ao limite mínimo as estruturas do

filme, possibilitando mesmo o estado limítrofe do medium e pos-medium:

O cinema estruturalista coloca a própria produção da unidade de seu diversificado suporte numa única experiência na qual a interdependência total de todas estas coisas seria revelada como um modelo para o especatdor que é intencionalmente concetado ao seu mundo. As peças do instrumento seriam como coisas que não podem tocar em outras sem elas mesmas estarem sendo tocadas; e esta interdependência figuraria adiante a mútua emergência do espectador e do campo de visão como uma trajetória com a qual o sentido da vista toca no que foi antes tocado.539

Hotel Palenque se apresenta pelas etapas deslocamento, projeção

e narração que aparecem emolduradas em frames, remetendo

diretamente ao ponto focal e resvalando para o duplo centro/periferia. O

deslocamento do artista pelo local desabitado agrega preferencialmente

os estados climáticos: vento, calor, desertificação, umidade. Pode-se

imaginar a poeira que ocupa o lugar por inteiro encobrindo o corpo do

artista a cada deslocamento, demonstrando a continuidade entre homem

e paisagem. A madeira, os tijolos, as janelas sem moldura revertem-se em

plasticidade e percepção. O artista busca a fisicalidade do instante

presente que corrobora sua idéia da dialética do site. No trabalho, a

natureza relaciona-se com a arquitetura de modo visceral, na medida em

que o edifício corporifica a destruição: ruína de um tempo congelado.

538 SMITHSON, R. A cinematic atopia, p. 140-141. 539 KRAUSS, R. A Voyage on the North Sea: art in the age of the post-medium condition, p. 25.

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Revela-se natureza-paisagem: talvez a grande ficção contemporânea.

Smithson estabelece, em Hotel Palenque, a associação com o

cinema estrutural de Michael Snow. De acordo com Krauss:

Na Anthology, os artistas [Serra, Smithson e Carl Andre] alimentaram-se e promoveram o trabalho corrente dos cineastas estruturalistas Michael Snow, Hollis Frampton e Paul Sharits, seus filmes embasaram esse grupo de jovens artistas que poderiam imaginar seus caminhos em filmes como estes, focados na natureza do próprio medium cinematográfico, seriam modernistas em seu âmago. 540

O medium fílmico possui grande distensão na poética de Smithson.

Se Hotel Palenque, obra-resíduo da deriva em Yucatan, expande os

mínimos elementos do próprio medium, Spiral Jetty, filme, é carregado

pelos fluxos rápidos e profusos das imagens da construção da escultura.

Da fixidez dos frames do Hotel Palenque para a vertiginosa transmissão

de imagens da espiral. Smithson filma a escultura assimilando seu

aspecto labiríntico em que não existe diacronia, apenas a incerteza sobre

o que seria a temporalidade. Dinossauros dividem o espaço com

caminhões, livros se transformam em camadas pré-históricas, o sol se

torna o olho projetor do artista: “A conexão que Smithson contrói entre

terra e água, da mesma forma entre escultura e cinema, dá a forma de

quiasma.”541 No filme Spiral Jetty, Smithson compõe labirinticamente as

camadas temporais, estabelecendo portanto a mistura entre a

materialidade temporal dos substratos terrestres, dividida, por assim dizer,

em tempo prolongado e disruptivo.

O tempo, tratado por ele como o misto de concretude e abstração,

já que permanece como materialidade e imaginação, dimensionando a

escala e sugerindo o infinito. A construção da natureza-paisagem insere o

homem contemporâneo na vida, pois, afastado do seu ser não pode e não

reconhece seu vínculo direto com um mundo natural – por que não falar

também na disrupção da condição humana?

O tempo, tal como alude Smithson, seria desdobramento e

disrupção dados na experiência, com isso, retoma-se a vivência e a

circularidade, cuja principal propriedade seria a indistinção entre passado, 540 Ibid., p.. 24. 541 BAKER, G. Cinema Model, p. 95.

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presente e futuro. Na entrevista a P. A. Norvel, em 1969, Smithson revela

um aspecto do tempo: “O futuro não existe ou se existe é portanto

obsoleto em reverso. O futuro sempre está voltando. Nosso futuro tende a

ser pré-histórico.”542 Trata-se, pois, da fórmula de Nabokov “ruínas em

reverso” constantemente retomada pelo artista. Ora, para Smithson, o

tempo pode ser plasticidade, flutuando entre a prática artística e a matéria

física. Passado e futuro são colocados no presente acentuando os termos

da disrupção: vazio produtor e gerador de poéticas.

Fig. 45. Spiral Jetty – stills

A passagem do tempo relaciona-se à aparição da densidade

material e à experiência da obra. Smithson provoca, na materialidade dos

trabalhos, os tempos diversos do vivido: passado, presente e futuro. Mas,

como se dá então a sobreposição desses três movimentos aparentemente

distintos? Qual a possibilidade de entretecê-los considerando a vivência

de cada um de nós? A desdiferenciação [dedifferentiation] situada entre a

distinção e a indistinção pode ser elucidada a partir do trabalho Alogon,

uma escultura que “(...) suspende a racinalidade, (...) a quebra da lógica, 542 SMITHSON, R. Fragments of an interview with P. A [Patsy] Norvell, p.194.

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a quebra da gestalt. Em outras palavras, você se direciona para a area da

desdiferenciação [dedifferentiation] (...) Onde a gestalt se torna outra

coisa.”543 Smithson aprofunda sua noção de desdiferenciação

[dedifferentiation] em outro trecho da entrevista: “Desdiferenciação é, em

um sentido, toda conversação que temos tido, ou seja, é desdiferenciada

[desdifferentiate]. Indesdiferenciação [undedifferentiation] significaria uma

estática total”.544

O futuro se desdobra a partir do presente, ponto diminuto do

passado, para que na continuidade possa surgir o novo ou mesmo a

perpétua vivência. Jorge Luís Borges perfaz este caminho:

“Consideremos o momento presente. O que é o momento presente? O

momento presente é o momento que contém um pouco de passado e um

pouco de futuro.”545 A unidade plástica do tempo reaparece em outra

passagem, esta, sobre Pascal: “No tempo, porque, se o futuro e o

passado são infinitos, não haverá realmente um quando; no espaço,

porque, se todo ser eqüidista do infinito e do infinitesimal, tampouco,

haverá um onde.”546 Smithson certamente atravessa esse percurso

labiríntico.

Se a natureza – imemorial compreendida também como pré-

história – compartilha com o tempo o sentido de duração; na cultura, a

temporalidade atravessaria a intrincada composição disruptiva de

Smithson.

Pertence ao universo literário do artista o historiador da arte

George Kluber. Contrário à tendência que coloca em seqüência os

períodos da história da arte, Kubler adota uma medida temporal para a

inserção das obras na história. A linha contínua da narrativa da história

das belas artes, para Kubler, muitas vezes falsa, não considera alguns

intervalos e sucessões. Ele, para tanto, conclui que a narrativa possível

para as formas da arte deve ter como base a disrupção: “Sempre que

conjuntos simbólicos surgem, podemos ver, entretanto, interferências que

podem romper [disrupt] com a evolução regular desses sistemas

543 SMITHSON, R. Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson, p.199. 544 Ibid., p. 207. 545 BORGES, J. L.. O Tempo, p. 235. 546 Id., A esfera de Pascal p. 14.

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formais”547 As concepções de Kubler encontram-se sobretudo no texto

Ultramoderne, de 1967. Segundo Pamela Lee, historiadora da arte, a

fascinação pela obra de Kubler se estendeu também para Michael Heizer.

Ela destaca especificamente a relação entre aquele momento específico

da Land Art e os estudos de Kubler sobre a cultura pré-colombiana, esta

por sua vez, fora da trajetória histórica das belas artes: “A Land Art

daquele momento, incluindo a exploração da arquitetura pré-colombiana

de Smithson e de Michael Heizer, parecia fazer explícita essa conexão.”548

As análises de Kluber sobre a cultura pré-colombiana procuram

estabelecer um nexo que não se orientaria pelas linhas gerais da história

da arte. Não havia a pretensão de ligar o evento da cultura pré-

colombiana a partir das formas clássicas da cultura grega – esta que, em

geral, orientou historiadores da arte. Em The Shape of time: remarks on

the History of the Things, de 1962, Kubler busca pelos intervalos da

narrativa dita tradicional e se aprofunda na relação dos objetos com a

cultura, guardada sua especificidade plural cultura certamente: “O

interesse de Kubler pela interdisciplinaridade serviu para alargar o escopo

da experiência estética tanto como para embasar a importância da

abordagem multicultural da disciplina.”549

Considerando a linha temporal desconstruída por Kluber, bem

como, seus estudos da antiga civilização da América Latina, Smithson

adota os fluxos descontínuos, semelhantes portanto à lógica

diagramática, como proposição e poética. Assim, em Ultramoderne, o

artista conforma a pirâmide escalonada – construção asteca - como

referência aos edifícios de Nova York – ultramente moderna -,

estabelecendo indícios da similaridade poética sem que precisem

atravessar uma linha histórica de princípios causais. O endereçamento a

ambas as épocas se dá enfatizando as lacunas e os lapsos temporais. A

aproximação é da ordem poética e imaginativa na qual a linha histórica

rompida em sua causalidade permite que o artista crie a partir dessa

fissura temporal. Deve-se considerar ainda o apreço do artista pelos

eventos da década de 30, em Nova York, onde há a crescente e veloz 547 KUBLER, G. The Shape of Time: remarks on the history of things, p 8. 548 LEE, P. Chronophobia: on time in the art of the 1960s, p. 225. 549 Ibid., p. 227.

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transformação da cidade no ritmo das inovações tecnológicas. No início

do trabalho, Smithson procura entoar a entrópica turbulência, no frescor

do contato daquela arte com os eventos transformadores da cidade:

O ultramoderno dos anos 30 transcende o realismo e o naturalismo modernistas ‘historicistas’, ele evita as categorias ‘da pintura, da escultura e da arquitetura’ da vanguarda. Uma consciência transhistórica apareceu nos anos 60, isto que parece evitar o recurso do tempo orgânico da vanguarda, se dá porque os anos 30 nos parecem cada vez mais importantes. O próprio Clement Greenberg diz que a vanguarda sofre de ‘hipertrofia’ (metáfora orgânica exata). (...) O ultraísmo dos anos 30 escapa à praga do ‘realismo social’ do mesmo período e à reação do ‘expressionismo abstrato’ orgânico ou naturalista dos anos 50. O ultramoderno jamais foi definido por categorias temporais comuns à ‘pintura’, e é assim que ele pôde evitar fazer um objeto de um processo-verbal historicista. O ultramoderno existe ab aeterno!550

A predileção do artista pelo componente ultraísta seria por sua

oposição irrestrita ao naturalismo e realismo cuja conseqüência seria a

fratura com a linha histórica unitária. Kubler evita a todo custo a história

dos estilos por sua aderência à linguagem biológica certamente traduzida

por Smithson como orgânica - “Existem dois tempos: orgânico

(modernista) e cristalino (ultraísta).”551 A idéia da história da arte como

organismo, isto é, contida num sistema homogêneo e evolutivo passa a

ser antitética à descontinuidade histórica proposta por Kluber.552 Smithson

liga igualmente os problemas do criticismo formalista às ressonâncias

evolutivas do universo biológico:

Assim a equação entre Kubler e Smithson apareceria não apenas descosturada, mas completa. A aversão de Kubler pela metáfora biológica – que lê a história da arte como progresso e evolução – conforma-se à aversão de Smithson do formalismo greenberguiano.553

Smithson, sempre atento aos processos entrópicos dos quais

derivam as ruínas ou a confusão urbanização das cidades – explícitos em

seu artigo Ultramoderne-, justapõe referências e épocas induzido pelas

fissuras históricas de Kubler: “Uma ontologia arcaica coloca o

ultramoderno em contato com numerosos tipos da arte monumental de

550SMITHSON, R. Ultramoderne, p. 58. 551 Ibid., p. 58. 552 Cf. LEE, P. Chronophobia: on time in the art of the 1960s. 553 Ibid., p. 230.

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cada grande período: egípcio, maia, inca, asteca, druídico, indiano,

etc.”554 Esses modelos arcaicos se sobrepõem às construções ditas

ultraístas por Smithson: “Os imóveis residenciais dos anos 30 situados ao

longo do Central Park receberam nomes espantosos e impossíveis: The

Century, The Majestic, The Eldorado. No topo de certos arranha-céus, se

descobre zigurates ou as maquetes de montanhas cósmicas.”555 A

correlação temporal especulada por Smithson reverbera certamente na

teoria de Kubler não apenas por citá-lo em seus textos, mas pela sua

compreensão do tempo condensado e disruptivo, base da avaliação

histórica concebida pelo teórico e historiador.

A disrupção propriamente dita abre-se em inúmeras possibilidades

para o fazer arte ao se estabelecer como pensamento - dito de outro

modo, como sucessão de intervalos (planificação de todas as coisas) que

engendra. Na poética de Smithson, a disrupção funciona como um gatilho

– algo com o qual se pode criar e a partir do qual se pode pensar

plasticamente. Em Notes sur L'index, Rosalind Krauss desenvolve a

noção de shifter, cuja pertinência para a interpretação do trabalho de

Smithson deriva de certo sentido arbitrário aplicado aos significados do

artista: “O indicador [embrayeur/shifter] é um tipo de signo lingüístico

participante do símbolo, mesmo que ele partilhe os traços de outra

coisa.”556 Por mais que Smithson privilegie a dissolução do objeto na

experiência, no tempo, existe quase sempre um controle do processo

constitutivo das obras, cultivado pelas propriedades dos trabalhos de arte,

isto é, o desdobramento que gera um circuito diagramático. Operando a

partir do sentido de “shifter”, Smithson considera os intervalos como

deslocamentos reais e virtuais, isto é, um constante movimento

circulatório entre a condensação e a expansão, nos quais se desenrola

também a reversibilidade entre o mundo e a arte. Papel considerável cabe

à escrita, pois, na atualidade das palavras, aprofundam-se os tempos –

passado, presente e futuro - sem estabelecerem um caminho linear. Na

passagem de O Aleph, Borges revela a dupla e reversível apresentação

da narrativa: sucessão e instante: “O que meus olhos viram foi 554 SMITHSON, R. Ultramoderne, p. 58. 555 Ibid., p. 58. 556KRAUSS, R. Notes sur l'index, p.64.

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simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo,

entretanto, registrarei.”557 Considerada um rasgo na narrativa que

condensa e distende passado e futuro, a disrupção passa a modo de

operação artística.

George Kluber sustenta a tese de que o instante não se caracteriza

nem como intervalo ou limite – é atualidade somente. Reflexão que surge

no lastro da pergunta sobre o que é atualidade?558 Para Kluber, a

definição de atualidade está ligada a um sentido de entre que ele define

como instante:

Atualidade é quando o farol [lighthouse] fica escuro entre os flashes: é o instante entre os tique-taques, é um intervalo vazio que desliza para sempre com o tempo: a ruptura entre passado e futuro, a abertura nos pólos revolvidos em campos magnéticos, infinitesimalmente, menor, mas finalmente real, é a pausa intercrônica quando nada acontece, é o vácuo entre os acontecimentos. Contudo, o instante da atualidade é tudo que podemos conhecer diretamente.559

Os intervalos das esculturas minimalistas referem-se a esse anti-

momento que se concretiza no vazio e escapa portanto à toda forma

possível. A reflexão do tempo nulo – do ultraísta, do cristalino - voltado

para instantaneidade sugere que a realidade conforma-se a dimensão

ficcional: “Felizmente, o ultramoderno foi negligenciado pelo modernista

‘orgânico’, ou mais, isto evade sua compreensão. Ultraísmo, porque ele

admite que o tempo é apenas uma ficção.” O pensamento ficcional

corresponde aos ultra-instantes que se desdobram nos momentos a-

temporais ou nos segundos cósmicos do qual Smithson extrai a fórmula:

“1930 reflete 2030 em um conjunto de alvéolos multifacetados que

progride em três, numa contra-corrente. Uma infraestrutura tripartida que

se estende infinitamente no futuro através do passado. Nada é novo, nada

é velho.”560

Em The Eliminator, de 1964, Smithson trabalha a partir da

apresentação do instante fugidio e este é gerado de forma a capacitar sua

557 Borges, J. L.. O Aleph, p. 695. 558 Questão colocada pelo historiador da arte Henri Focillon: “O passado serve apenas para se conhecer a atualidade. Mas, a atualidade me escapa. O que é portanto a ataulidade?” In: KUBLER, G. The Shape of Time: remarks on the history of things, p.16. 559 Ibid., p. 17. 560SMITHSON, R. Ultramoderne, p. 60.

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apreensão pela mente e percepção: “O espectador não sabe para o que

olha, porque não existe espaço na superfície para se fixar, assim ele se

torna consciente do vazio da sua própria visão ou vê através da sua vista.

(…) Irrealidade torna-se atual e sólida.”561 Este objeto, neon vermelho

colocado entre três espelhos – dois laterais que formam um canto e um

na base -, opera como uma descarga elétrica superdimensionada pela

reflexão da luz nos espelhos, quase impossível de ser olhado

diretamente, restando apenas a impressão da luz na retina. Por esta

razão, o tempo que não decorre, passa a ser pontual, fixado na memória

da percepção. Trata-se da transformação da matéria em tempo e em

visão. A explosão de luz e da cor conduz à sobrecarga visual na qual a

percepção resvala para o indistinto, para o informe, para o irreal. O olho

passa à função digestiva, processual. Revela-se, portanto, o tempo que

fugidio e descompactado, na dobra e na desdobra, se transubstancia

numa materialidade enérgica. Entre o vazio e o preenchido, entre a

temporalidade e o tempo negativo, aquele que não faz da história seu

substrato, se dá a percepção, no exato momento em que a memória se

desfaz. Apresentação do real por meio desse artifício se funde à lógica do

espelho, quer dizer, uma regressão ao infinito de imagens e de materiais: O reflexo pode ser a mente, ou o espelho pode ser matéria. Mas sempre há essas duas coisas. Eles formam uma dual unidade e dizer que um é melhor que o outro é o mesmo que girar como um esquilo numa gaiola. Assim como existem dois pólos na terra – polo norte e pólo sul. E há ainda a correspondência entre os dois – poderia ser o equador, palavra.562

Fig. 46. The Eliminator

561Id. The Eliminator, p. 327. 562SMITHSON, R. Earth, p. 187.

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O tempo da obra pertence ao processo artístico decorrente da

contração e da dilatação. Sua irrupção destaca a linha tênue – uma

fronteira evanescente - entre passado e futuro, e, para ela, volta-se

Smithson quando busca a realidade da potência física do planeta Terra

com a qual pretende aproximar signos arcaicos da carga entrópica das

cidades, do mundo atual – dados convergentes do panorama zero. Dois

aspectos diferentes do tempo – instante e duração – impulsionam o fazer

artístico. Gilles Tiberghien supõe que a passagem do tempo,

necessariamente irreversível, abre espaço para o imediato com o qual se

atravessa a imutável continuidade. Tal vontade decorre:

(...) de explorar seu contrário, não em cima, do alto de um céu inteligível do qual o real seria o teatro de sombras que o artista teria de nos mostrar, validando perpendicularmente no fluxo do tempo. Uma tal concepção, que faz do tempo um quase-ser, é implicitamente aristotélica : os instantes, de fato, são limites (peiras) nem diferentes nem idênticos a eles próprios. Se o instante mudar, ele será destruido pelo instante seguinte idêntico a si – que por hipótese é impossível - um absurdo porque, pelo tempo que permanece, não pode ser destruído. De outra parte, para que uma passagem, um escoamento, seja possível, o instante não pode ser continuamente ele mesmo. É necessário que ele munde. Não sendo nem diferente nem idêntico, ele é por vezes um e outro, pois o tempo não é uma coisa.563

O instante – atual - deve ser entendido como ruptura, tempo que

se amalgama aos momentos do processo entrópico. Transpor limites

temporais, partindo da fusão de passado, presente e futuro, permite ao

artista trabalhar em diversas camadas espaciais nas suas mais diferentes

formações – sejam reais ou virtuais, processos ou ações precisas.

Os trabalhos de Smithson aparentam entretecer a materialidade

(im)pura e inorgânica da natureza-paisagem, cerne de uma temporalidade

intensa e pontual (instante e duração), com a projeção mental. Tratados

como ferramentas de trabalho – operação prática e mental -, o material e

o imaginário trespassam sua produção. Desde seus primeiros escritos,

percebe-se aspectos mentais e visuais que condicionam o sentido de

563 TIBERGHIEN, G. Le temps à l’œuvre, p. 132.

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realidade ou irrealidade. No texto Quick Millions564, de 1965, Smithson

procura criar: “(...) o trabalho está fora da visão e da mente.”, cuja

percepção dependeria de um olho puro, já que sua condição primeira era

apresentar-se: “(...) selado, impenetrável, desconhecido – para sempre

escondido”565

Ecos do texto-trabalho The Eliminator ressoam no escrito Entropy

and the new monuments. Propondo uma reflexão sobre o que seriam os

monumentos e seus materiais, Smithson estabelece o declínio da história

representacional cujo acúmulo de fatos não cria substrato reflexivo e

poético, por isso, privilegia a pré-história, pois, a esta concepção,

pertenceria o território real dos acontecimentos do mundo. Na calcificação

dos resíduos pré-históricos, dos fósseis, seria plausível uma espécie de

musealização natural cuja narrativa dependeria sobretudo da imaginação.

Desde seus primeiros escritos, Smithson mantém-se descrente em

relação ao desenrolar factual – o labirinto é a expressão do seu processo

artístico. Crítico da narrativa das exposições dos museus – tomada pela

ciência histórica -, Smithson interfere, evidenciando as temporalidades da

ordem da poética ou de uma vida estética. Assim, em Some Void thoughts

on museum, o artista relata: “História é representacional enquanto o

tempo é abstrato, ambos os artífícios podem ser encontrados nos

museus, onde todos medem seu próprio vazio.”566 Na disrupção, o

passado e o futuro deixam de ser vislumbrados numa linha cronológica,

caberia então ao presente o desenrolar da dilatação, da distensão ou da

contração, ações que se revertem em operação de arte.

564 SMITHSON, R Quick Millions p.3. Curioso que a obra Quick Millions foi apresentada na exposição Lesser Known and Unknwon Painters no American Express Pavillion e seus desdobramentos cruzam-se na forma de filme - título pensado após um filme nunca visto pelo artista: “O trabalho é nomeado depois de um filme que nunca havia visto.”- e de texto , cujo subtítulo Artist’s Statement parece pretender um desvio para outra atuação. 565 Ibid., p. 3. 566 SMITHSON, R. Some void thoughts on museum, p.41.

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Fig. 47. The Museum of the Void

A noção de temporalidade parte também de um princípio

fragmentário cuja apreciação é dada por instantes, insights, reflexos

rápidos que, no entanto, não deixam de constituir um todo de densa

materialidade. Muitas vezes, o transporte para o tempo fracionário é o

espelho. Eles pertencem à obra materialmente – os non-site do artista,

colocados nas galerias, constituído de espelhos e matéria (terra, pedras,

virdo) sobrepostos em diversas composições -, também despertam para a

idéia de distorção da percepção nas Enantiomorphics Chambers; eles são

traços-memória em Incidents of Mirror-travel in the Yucatan. O tempo e o

lugar (site) conferem a abertura material e reflexiva para o artista. A ficção,

artigo plástico, se solidifica nos espaços. O cinema (tela retangular), com

projeção extensa, transporta o ilimitado no limitado. Um espaço que se

mistura ao tempo aguça a percepção de Smithson e incentiva diversos

aspectos da produção, principalmente, quando o artista se refere à

condição entrópica propícia das salas de projeção: “Tempo é comprimido

ou parado nas salas de cinema, e isso sucessivamente fornece ao

espectador a condição entrópica. Passar tempo no cinema é fazer um

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buraco na vida.”567 Smithson tece a analogia entre os filmes de ficção

científica – em que outros planetas são mostrados como geologia bruta,

inventada - e os desertos que, inacessíveis, abrem caminho para a dupla

site/nonsite. Os filmes de ficção científica ou filmes B, com desfechos

escatológicos, pertencem ao seu universo certamente. Para ele, os

artistas podem ser influenciados por filmes de terror, com derramamento

de sangue, viscerais, portanto; ou por filmes de ficção científica que se

lançam na relação virtual e real: “Artistas que gostam de Horror tendem à

emoção, enquanto que artistas que gostam de ficção científica rumam à

percepção.”568

The Domain of the Great Bear, de 1966, os artistas refletem sobre

espaços fictícios – cinema, museu, planetário – cujos limites implicam o

infinito, a escala, as catástrofes – em outra demonstração da entropia. Em

Great Bear, aparece a incipiente relação indoor/outdoor, quando, lado a

lado, por meio de fotos e textos, desponta o interior do planetário com sua

forma circular - côncava, da projeção do ilimitado e infinito do universo

virtual, e os domos exteriores de algumas construções, convexo,

imperativo do limite – fechado. Como um mapa, o planetário projeta

modelos do universo, das galáxias que não estão lá literalmente, mas

virtualmente. O trabalho traz à tona o vínculo indissolúvel entre sensível e

inteligível, pois, a ele, podem ser atribuídas as modulações cartográficas

– uma espécie de non-site – o mapa plano.

567 SMITHSON, R. Entropy and the new monuments, p.17. 568 Ibid., p.17.

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4.4 Um mapa é um sistema mental feito de malhas, latitudes e longitudes.569

O entrelace desses dois termos, sensível e inteligível, reverbera na

constituição dos continentes hipotéticos: The Hypothetical Continent of

Cathaysia e The Hypothetical Continent of Lemuria. Diagramas

compostos em 1969, os continentes originam-se da conformação gráfica

da idéia de lugar (site). Para ele, os continentes hipotéticos, ainda que

predominantemente ilusionistas, poderiam se manifestar materialmente.

Assim, The Hypothetical Continent of Cathaysia desdobra-se em Island of

Broken Sea Shell: “São todos massas de terra pre-históricas não

existentes, que existem hoje no non-site. (…) todos têm um sentido

material do mapa, mapas não de papel, mas feitos de materiais.”570

Fig. 48. Hypothetical Continent in Shell Fig. 49. Hypothetical Continent of Lemuria

A abstração, componente do mapa, se deve à linha de contorno

cuja apresentação seria da ordem da hipótese: uma construção mental

para um site imaginário: “Eu sempre estive interessado em diferentes

sites e diferentes tipos de relação, você sabe, como a relação entre a sala

branca em oposição à mina, pedreira.”571 Arte e mundo são passagens e

569 SMITHSON, R. Interview with Robert Smithson, p.234. 570Id., Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson, p.207. 571Id., Conversation with Robert Smithson, p.262.

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fluxos nos quais se dá o percurso do artista. Smithson parece revelar, no

aspecto móvel do deslocamento, condição para o estado poético. O

mundo é também o universo privado e imaginativo do artista. O flexível

imaginário de Smithson permite-lhe que apresente suas idéias por

camadas assimilando, em sua narrativa, a forma e o movimento das

placas tectônicas. O artista revela esse aspecto, literalmente, no trabalho

Strata a Geophotographic Fiction de 1970-1. Nele, a linguagem –

descrição dos períodos da formação terrestre - intercalada às imagens

das referentes camadas geológicas, deixa transparecer, novamente, um

entrelace entre limite e não-limite - presentificação da tessitura temporal.

O espaço do real agiganta-se, ganha dimensão cósmica e aprofunda-se

no magma terrestre ou comprime-se numa folha de papel coberta de

sedimentos: imagens, fotos, palavras, resíduos, camadas. Pelos

desdobramentos poéticos do artista atravessa uma noção cartográfica

que amplia o espaço de trabalho, já que a imaginação que orienta a

apreensão da escala é também infinita. A escala passa a ser

compreendida em termos de latitudes, longitudes e meridianos. São

linhas que envolvem o mundo, esquadrinham o ambiente e estabelecem a

ligação entre real e virtual, entre mundo e imaginação, sensível e

inteligível – a linha do horizonte de ou o panorama móvel de Incidents of

Mirror-travel in the Yucatan, equivale, por assim dizer, ao contorno da

estrutura arquitetônica do Ultramoderne.

Os ilimitados aspectos da linha na produção de Robert Smithson se

destacam na sua acepção de cartografia. O destaque à cartografia na

produção da Land Art deve ser diferenciado nas apropriações poéticas de

cada artista do movimento. Termo cunhado por Smithson ao referir-se aos

trabalhos de Dennis Oppenheim, dis-location, seria o gesto de transferir

informações de um site para outro site dispositivo específico do artista. Já,

a situação buscada por Smithson seria, então, como convocar um

confronto entre o interior e o exterior.

Mas também pensei sobre trabalhos puramente exteriores. As minhas primeiras propostas com terra [earth proposals] consistiam em escoadouros de materiais pulverizados. Mais depois fiquei interessado na dialética interior-exterior [indoor-outdoor]. Não acho que do ponto de vista artístico sejamos mais livres no deserto do que dentro de uma

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sala.572

O mapa orienta, pontua, localiza através de linhas gráficas

(esquemáticas) um lugar existente, sensível, ainda que não esteja inscrito

na folha de papel – caso dos non-sites, ditos, pelo artista, mapas

tridimensionais. A idéia mapa funda outra abertura e a mobilidade no

universo. Não se trata da abstração pura, mas do misto entre concreto e

devaneio: “Em certos jogos cartográficos, Robert Smithson faz como se o

mapa fosse um território quadriculado em mínima escala cuja cobertura

sensível escapa à grade [grille], latitudes e longitudes.” Gilles Tiberghien

observa ainda que esse dispositivo de Smithson frustaria a operação

estabelecida por Rosalind Krauss, em Grilles:

Rosalind Krauss que vê na grade a marca do modernismo – tanto na representação pictural como na arquitetura de outro lugar – já que a grade teria, segundo ela, a propriedade de rejeitar o real e afirmar simultaneamente a autonomia da arte.573

Dennis Oppenheim partilha com Smithson a idéia da multiplicidade

dos espaços da arte: também o mundo. Por isso, para eles, a percepção

do site poderia ser uma fratura da terra, do deserto, da cidade, etc.; e,

igualmente, comportaria a abertura imaginativa e material. Em Uma

sedimentação da mente: projetos de terra, Smithson pondera as

formulações dos artistas, considerando o monte [pile] como traço-poético:

Dennis Oppenheim também levou o ‘monte’ em consideração – ‘os componentes básicos do concreto e do gesso...destituídos de organização manual’. Algumas propostas de Oppenheim remetem a uma fisografia deserta – mesas achatadas, tocos, monte de fungos e outras ‘deflações’ (a remoção de material da praia e outras superfícies por meio da ação do vento).” 574

Smithson fala da sua própria idéia sobre o monte [pile],

estabelecendo entretanto a reversão articulada à obra. Ele procura partir

da idéia de lama, que remonta ao sentido arcaico, para torná-la coisa -

matéria: situação-memória:

572Id., Discussão entre Heizer, Oppenheim e Smithson, p. 279. 573 TIBERGHIEN, G. Finis Terae: imaginaires et imaginations cartographique, p. 82 passim.. 574 SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 184.

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Minha própria proposta piscina de alcatrão e poço de cascalho [Tar Pool and Gravel Pit] (1966) torna as pessoas conscientes do limo primordial. Uma substância derretida é derramada em um escoadouro quadrado que é cercado por outro escoadouro quadrado de cascalho tosco. O alcatrão esfria e se aplaina em uma depositação nivelada e pegajosa. Esse sedimento carbonáceo traz à mente um mundo terceário de petróleo, asfalto, ozocerita e aglomerações betuminosas.575

A sensibilidade dos artistas da Land Art quanto ao problema

interior/exterior se intensifica. O indício da indiferenciação entre paisagem,

escultura e arquitetura, ou pelo menos, a duplicação dos seus sentidos,

estruturado por Rosalind Krauss, em Escultura do Campo Apliado, sugere

a saída, ou melhor, introduz nova possibilidade para aquela geração. As

esculturas da Land Art radicalizam a percepção ao fazê-la corpo cuja

fisicalidade se associa ao tempo. Em certa medida, a idéia da cartografia

se daria, também, pela subsunção de um lugar específico a um lugar

imaginário: real e ficção num só corpo. Gilles Tiberghien sustenta que o

mapa seria o meio pelo qual o artista acentua o caráter processual dos

trabalhos:

(...) o que os interessa não é somente o resultado, mas o processo, o mapear. Explorando certos aspectos que podem parecer, à primeira vista, secundários ou anedóticos, os artistas revelam, de fato, a elasticidade essencial do ato cartográfico.576

Durante um simpósio no White Museum da Cornell University,

sobre os trabalhos da ‘earth art’577, Robert Smithson articula as

engrenagens da dialética site e non-site que se desdobram num campo

de convergência:

Tudo está em duas coisas que convergem. O campo de convergência é realmente uma excelente área da especulação. Eu quero dizer, eles [artistas] foram abandonados no sótão por algum tempo e só assim eles souberam o que eram material e o grau de abstração, e os dois de algum modo misturados.578

575 Ibid., p. 184 passim.. 576 TIBERGHIEN, G. Finis Terae: imaginaires et imaginations cartographique, p. 31. 577 Participaram Dennis Oppenheim, Robert Smithson, Neil Jenny, Gunther Uecker, Hans haacke e Richard Long. 578SMITHSON, R Earth, p.187.

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Oppenheim parece preferir trabalhar com a idéia de dicotomia, mas

aplica o processo dialético – tomado por ele como duplicidade – no

interior do museu e um lugar externo. Porém, o movimento direto dessa

situação não permite, segundo Smithson, o sentido da abstração. Para

ele, o componente físico da dialética de Oppenheim força o retorno para a

galeria. Em Time Pocket, de 1968, Oppeheim realiza o mapa da sua

aventura num lago gelado. Interferindo no lugar, ele promove a dupla

acepção da linha: sensível e inteligível. A linha incrustada na neve é

escultura e é gráfico e remonta ao espaço planetário como a linha da

mudança de data: “Ela [Time Pocket] obedece ao mesmo princípio da

linha do tempo que joga as convenções dos fusos horários, salvo que o

‘bolso do tempo’ corresponde a um vazio intersticial, um instante

concebido como limite interno do tempo.”579 Sobre o desdobramento

cartográfico de Time Pocket, Tiberghien atribui a marca no território como

o gesto artístico, que descondicionado da medida, se constitui pela

marcação pelo preenchimento de sentido imaginativo, melhor dizer, o

esvaziamento mesmo dos sentidos. O autor ainda estabelece a evidência

artística da cartografia:

O imaginário que testemunha o mapa não nos distancia do real, nos faz penetrar na visão de um artista, sua maneira de ver e sentir, no movimento dinâmico dos afetos com os quais eles nos restitui a imagem como as bordas do sonho.580

Fig. 50. Estudo para Time Pocket - Dennis Oppenheim 579 TIBERGHIEN, G. Loc. cit. p.105. 580 Ibid., p. 107.

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O desvio e o descentramento que acionam esse tipo de poética

ocupam outro lugar. O desvio quase definitivo do artista frente ao circuito

de arte. No trabalho Toward the development of an air terminal site, de

1967, Robert Smithson relata sua associação como consultor a arquitetos

e a engenheiros,581 daí resultando a comparação entre as categorias da

arte e os processos da aviação:

O significado das aeronaves tem sido condicionado, para a maioria das pessoas, por um racionalismo que supõe verdades – tais como natureza, progresso e velocidade. Cada significado é simplesmente ‘categorial’ e não tem base nos fatos atuais. A mesma condição existe em arte, se ela for vista através das categorias racionais da ‘pintura, escultura e arquitetura’. O racionalista vê apenas os detalhes, jamais o todo.582

Além de sobrepor a reflexão sobre a estrutura do aeroporto à

linguagem da arte, Smithson sente-se atraído pela transposição do lugar

revolvido por uma construção em potencial estético. Nos canteiros de

obra do terminal aéreo, o artista esbarra em valas, buracos, diques e

estradas – seu material. Compara, ainda, a aeronave ao obelisco – um

dos primeiros marcos escultóricos. Cabe uma ressalva a respeito da

passagem da escultura moderna para o pensamento escultórico

contemporâneo.583 No catálogo da exposição Qu’est-ce que la sculpture

moderne?, de 1986, no Centre Georges Pompidou, Rosalind Krauss,

reverte a noção de escultura tradicional calcada numa ordem vertical para

trabalhos que se colocam a partir da seleção do site:

A forma se constrói sobre a matéria e se organiza de maneira discursiva, a ordem lançando um tipo de luz estética sobre o que seria antes inteligível. Todavia, no movimento do non-site ou earthwork, esta relação vertical se converte em horizontalidade afirmada onde são aceitas ou aprofundadas as condições do labirinto. As tendências à entropia e à liquefação intervêm...e são reconhecidas como irrepresentáveis.584

Desvio que engendra múltiplos significados e confere sentidos

581 “Smithson recebeu 400 dólares por mê, mais despesas para ‘consultoria e conselho’ e teria que ‘estar disponível de tempos em tempos nas discussões com os membros do [the TAMS] e para inspeções no campo.” Cf.LINDER, M.Towards 'a new type of building' Robert Smithson's architectural criticism, p. 189. 582SMITHSON, R. Towards the development of an air terminal site, p.52. 583 Cf. KRAUSS, R. Échelle/monumentalité Modernisme/postmodernisme La ruse de Brancusi. 584Ibid., p. 252.

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novos à linguagem e ao método estético. O resultado principal talvez seja

a descoberta e articulação de elementos, tais como, mapas que ora estão

refletidos no mundo, ora refletem o mundo. A frase de Jorge Luís Borges

do conto O Aleph: “...Eu vi todos os espelhos do planeta e nenhum me

refletiu...”585, corresponde a fala de Smithson que apresenta uma noção

precisa sobre o significado da cartografia e das suas qualidades

evocativas e imaginativas ou mesmo a proposição de um novo léxico para

as artes.

Os mapas que os sobreviventes desenvolvem para coordenação da terra e das massas de ar parecem grades cristalinas. Mapear a terra, a lua ou outros planetas é similar ao mapeamento dos cristais. Porque o mundo é Redondo, coordenadas quadriculadas são mostradas para serem esféricas antes de serem retangulares. Assim, a grade retangular é colocada na grade esférica. Linhas latitudinais e longitudinais são sistemas terrestres como nosso sistema de cidade de avenidas e ruas. Resumindo, ar e terra são contidos numa vasta rede. A rede pode tomar a forma de qualquer dos seis Sistemas Cristais.586

O mapa, valorizado pelo artista como metáfora literal, o leva à

reflexão da dialética site/non-site ou indoor/outdoor. Conter o universo

gigantesco num espaço reduzido, estender o deslocamento ao

inalcançável, precisar e especificar um local incógnito são algumas

características das cartas de orientação. Um monte de terra do período

triássico transportado para galerias e museus configura um mapa

tridimensional. O mapa não é gráfico e plano apenas, seus traços se

estendem sensivelmente e se alinham às idéias correspondentes ao

aspecto informe e entrópico do local. Em sua produção, Smithson

perpassa diversos materiais plásticos, suas fontes literárias e artísticas

não funcionam como argumentos de autoridade; seu site, correlato ao

planeta Terra, que transubstancia o mundo em museu; e seus escritos

vertem matéria poética; assim é legítimo pensá-la, em seu aspecto

operativo, como um grande mapa diagramático em que todos esses

aspectos se amarram.

O extensivo uso da cartografia na Land Art possue outras

ressonâncias que ainda chamam a atenção de Gilles Tiberghien. As

585SMITHSON, R. Towards the development of an air terminal site, p.54. 586 Ibid., p.54.

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cartas de orientação correspondem ao desejo dos artistas de expandir o

espaço da galeria [cube géometrique rectilinéaire]587 para a natureza

tornando-os coexistentes. Para ele, os mapas resguardam uma potência

metafórica, resíduo do ficcional, que vai além da pura adequação: “(...) o

mapa é real ou uma realidade fictícia que nos dá a conhecer em termos

de imagens disso que nos impede de medir em distâncias quilométricas

ou milhas.”588 No entanto, o interesse de Smithson pela cartografia parece

esbarrar nas linhas de Borges Do Rigor da Ciência:589

...Naquele Império, a Arte da Cartografia alcançou tal perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do império, toda uma Província. Com o tempo, esses mapas Desmesurados não foram satisfatórios e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Afeitas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo país não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas. (Suarez Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quatro, cap. XLV, Lérida, 1658)

Smithson compreende esta estranha escala 1/1:

Estive em um planeta que tinha, desenhado sobre ele, um mapa de Passaic, e um mapa imperfeito. Um mapa sideral marcado com ‘linhas’ do tamanho de ruas, e ‘ quadrados’ e ‘blocos’ do tamanho de edifícios. A qualquer momento meus pés estavam aptos a cair através do chão de papelão.590

A partir da transitividade entre o real e o ficcional na cartografia,

Smithson introduz a nuance que difere objeto – lembrando que a entropia

caracteriza sua dissolução - da operação artística: “O tamanho determina

um objeto, a escala determina a arte.”591 A adoção da escala como

estratégia está diretamente ligada à característica que lhe é própria:

horizonte e espiral, eles mesmos temporais e imaginários. É, pois, matéria

das distâncias intercambiáveis:

587 TIBERGHIEN, G. Le Land Art: cartes et espaces de l’art, p. 50. 588 Ibid., p. 55. 589 BORGES, J. L. Do Rigor da Ciência, p. 247. 590 SMITHSON, R. Um passeio pelos monumentos de Passaic, p. 47. 591Id., The Spiral Jetty, p.147.

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Toda arte é uma miniatura e, quando a própria terra se torna uma miniatura, você pode reverter isso. Você pode olhar um grão de areia como uma gigantesca pedra; depende de como você quer ver em termos do seu sentido de escala. Isto porque a escala é um dos problemas-chave, em termos de arte.592

Na escala está contido o aspecto poético da transitividade,

dimensão ficcional, produto da arte, portanto, e revelada pela passagem

correspondente de O Aleph de Jorge Luís Borges:

Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de quase intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu via claramente de todos os pontos do universo. (...) vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu. 593

O artista adota a escala, por isso, trabalha diretamente com as

medidas físicas do universo – distância, peso, força, gravidade, atração,

repulsão, movimento – para relacioná-las ao campo perceptivo e estético

do homem. A experiência estética fundamenta-se numa temporalidade

cósmica em infinito desdobramento, expansivo e contraído, produto do

tempo cujo principal atributo seria sua materialidade – sua fisicalidade

mesma. O olhar do artista aponta para paisagens e horizontes e

estabelece a junção entre tempo e espaço. O espaço, curiosamente

tratado como temporalidade, conserva sedimentos reais temporais

confabulados em camadas das longas eras imaginadas; nesse espaço

estão contidas a fugacidade e a densidade da forma tempo. Se o

imemorial molda uma natureza inorgânica, o tempo então ressurge como

criador. Assim, plasmado ao modelo demiúrgico, a obra se define como

processo temporal – transubstanciação do tempo em linguagem, em

espaço, em paisagem, em ficção, em percepção.

Operações do tempo para Smithson são o deserto, o infinito, a

duplicidade, a espiral, o real, a escala, o labirinto, a entropia. Para o

profundo subterrâneo da terra ou para o ar rarefeito das altitudes máximas

592 Id., Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson, p.211. 593 BORGES, J. L. O Aleph, p. 696. Grifo meu. Smithson cita essa frase em entrevista.

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há uma correspondência imaginativa da intensidade sublime. Os

elementos primordiais do universo têm como característica a mutabilidade

– própria da duração. São as reações químicas e físicas que tornam

presente a força inapelável do tempo. O contato com a matéria –

dimensão física da terra – desperta, em Smithson, a consciência para o

que são tempo e natureza reconhecendo sobretudo o caráter criador

dessas instâncias. Num primeiro momento, a noção de inorgânico - tempo

incorporado à imensidão terrestre – prende-se à percepção que demanda

um outro tipo de olhar, além ou anterior à objetividade cartesiana: “Estou

interessado naquela área do terror entre o homem e a terra. Quando eles

construíram a pirâmide, que era uma coisa encerrada numa abstração

absoluta e que excluía qualquer tipo de área tabu”594 Para Smithson, o

mergulho na imensidão inorgânica refaz uma nova ordem perceptiva na

qual estão inclusos o tempo e a pré-história – de épocas distantes do

domínio da terra pelo homem595 – quer dizer, a sublime disrupção:

O povo primitivo tinha intenções diferentes, um diferente tipo de coisa social, eles não estavam fora da tecnologia, mas fora de um tipo diferente de visão de mundo. Se você escalar as pirâmides do México, o que aconteceu lá era sacrifício e terror. Você tem vertigem olhando do alto das escadas. Eles não tinham um conceito de amor, só prazer e dor – os dois entrelaçados, isto é, tudo era. Não havia a deusa do amor ou herança judaico-cristã para relacionar. Sacrifício era uma renovação; quando eles faziam os sacrifícios, o povo não sentia nausea ou nojo, eles ficavam gratificados pelo sacrifício. O povo não sabe onde suas cabeças estão agora, eles não sabe, onde está sua continuidade. Isto é antes um problema moral, mais que estético.596

Produção situada a partir da noção de entre, é permeada pelo

sublime do remoto de regiões longínquas, devastadas e ermas –

natureza-paisagem; capta as ondas temporais localizadas no desabitado.

Toda natureza inorgânica e inabitual, portanto informe, chama a atenção

do artista porque origina um tempo-espaço úmido ou seco em correlato à

visão e à mente dadas por uma percepção deslocada, oblíqua e atópica:

O clima da visão muda de úmido a seco e de seco a úmido de acordo

594 Id., Interview with Robert Smithson, p.238. 595 Smithson indica o Renascimento como o início desse domínio.Cf. Ibid., p.238. 596 Ibid., p.241.

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com as condições climáticas da mente de cada um. (...) Já ouvimos falar muito a respeito de arte cool ou hot, mas não muito a respeito de arte ‘úmida’e ‘seca’. (...) A mente úmida aprecia piscinas e poços de tinta. A própria pintura parece ser um tipo de liquefação.”597

As forças naturais e informes são matéria-prima e circulam no

universo do artista. Pode-se equacionar a intuição de Smithson aos

aspectos da imaginação material598, que se desvia da imaginação formal

e abstrata, geralmente submissa às conveções epistemológicas. Nesta

oposição, intuída pelo filósofo francês Gaston Bachelard, está a inversão

da idéia de objetividade científica para uma objetividade que mistura

intuições pessoais e experiências científicas. A noção de imaginação

material orienta o conhecimento do objeto para uma zona objetiva impura:

“(...) que deforma inclusive os espíritos mais retos e os conduz sempre ao

aprisco poético onde os devaneios substituem o pensamento, onde os

poemas ocultam teorema.”599 estabelecendo, pois, uma qualidade das

experiências que antes positiva passam para uma qualidade estética.

Sem procurar estabelecer um jogo com a objetividade, a proposta de

Bachelard estabelece um espaço subjetivo para as imagens materiais.600

Seguindo essa tese, a imaginação que trabalha com materiais reais,

inconscientes e móveis transforma-se em imaginação criadora deixando

de lado seus aspectos reprodutor e repetidor. As imagens produzidas pela

imaginação criadora buscam a reformulação do caráter primitivo e

arcaico, suas bases psíquicas e fundamentais. Afirma-se, então, a

coincidência entre a imaginação material e alguns dispositivos da poética

de Smithson. No ensaio Uma sedimentação da mente: projetos de terra,

Smithson se refere à fusão entre homem e terra, ambos pertencentes a

condições primitivas: “Faculdades em amplo movimento se apresentam

nesse miasma geológico e se movem da maneira o mais física possível.

Embora esse movimento seja aparentemente imóvel, ele arrebenta a

paisagem lógica sob os devaneios glaciais.”601 A passagem que se segue,

597 SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 192. 598 Imaginação literalista designada por Stephen Melville que se aproxima da construção de Gaston Bachelard acerca da imaginação material. 599 BACHELARD, G. Psicanálise do Fogo, p.2. 600 Ibid., p. 6. 601SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 182.

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escrita por Bachelard,602 ressoa nas convicções de Smithson ao

relacionar a união do universo da linguagem à matéria.: “Mais um pouco e

diria que ela treme. Sentimos, com esses simples acréscimos, que

estamos diante de uma geografia narrada na qual o universo do discurso

acrescenta-se ao universo das coisas.”603

No artigo Cabanas,604 Gilles Tiberghien reconhece a noção de

imaginação material de Bachelard exemplificada pelo arquétipo cabana

na produção da Land Art, na medida em que ele opera como objeto mais

imaginário que real.

A opção de Smithson pelo primitivo, especialmente pelo arquétipo

do labirinto, não deixa de passar pela reflexão de Jorge Luis Borges de

tempo e espaço a partir da reformulação das mitologias e das lendas.

Assim, o acesso aos escritos de Borges – cujos relatos permitem

desdobramentos ficcionais do tempo da narração - orienta Smithson no

estranhamento do tempo, de tal modo, que este distanciamento provoca o

deslizamento das temporalidades, configurando sua plasticidade levada a

estados fictícios. Seguidamente, encontram-se os nós, as amarras, o caos

próprio do que seria o labirinto na psique do artista. Refletindo sobre a

invenção de infinito no universo do escritor argentino, Jorge Luís Borges,

Smithson esbarra no complexo mundo da Biblioteca ou da Torre de Babel,

pois, elas podiam conter o labiríntico e o atemporal. Borges, no conto O

Livro de Areia, imagina a aporia do móvel que se desdobra num tempo

sem espaço. Para isso, considera o ponto, início de tudo, destituído da

extensão – propriedade do espaço:

A linha consta de um número infinito de pontos; o plano, de um número infinito de linhas; o volume, de um número infinito de planos; o hipervolume, de um número infinito de volumes... Não, decididamente não é este, more geometrico, o melhor modo de iniciar meu relato. Afirmar que é verídico é, agora, uma convenção de todo relato fantástico; o meu, no entanto, é verídico.605

O Livro de Areia, conto de Borges, adensa num livro a forma do

602 Deve-se levar em conta que no discurso proposto por Bachelard existe um aspecto para além do simbólico, psicanalítico sobretudo. 603 BACHELARD, G. A terra e os devaneios do Repouso, p. 169. 604 TIBERGHIEN, G. Cabanas, p. 87. 605 BORGES, J. L. O Livro de Areia, p. 367.

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infinito, pois, lançado numa espécie de buraco negro, não tem início ou

fim, não possui páginas numeradas, confunde-se com o labirinto. Assim

também foi a maneira encontrada pela personagem Xerezade que,

sabiamente, procurara se salvar em Mil e uma noites, contando estórias

infinitamente. O eterno passa a comportar o labiríntico. Se todo grande

autor individualiza as imagens, há, para Smithson, um tempo eterno

materializado na figura do labirinto: “Os desenhos exteriores do labirinto

não só se imprimem no labirintado, mas trazem consigo a exigência da

matéria.”606 Confundem-se, criativamente, uma ação materialista das

imagens e a síntese da imaginação.

A noção de infinito que reverbera na produção de Smithson desde

The Eliminator alarga as possibilidades experimentais, agigantando o

tempo de fruição. Fora da instantaneidade, a relação sujeito/obra toma

para si o tempo como experimentação de uma longa e extensa

mobilidade, partilhando intuitivamente com longínquas eras glaciais –

signo do imaginário território extra-terrestre - e com a crosta terrestre –

signo da entropia bruta-, presente nas intervenções de Smithson. O tempo

aí revelado diz respeito concomitantemente ao imemorial das

transformações ancestrais da natureza e aos artifícos humanos.

Pensando a partir da lógica da causalidade da natureza, seria

relevante citar uma passagem na Física de Aristóteles: “O tempo em si

mesmo é destruidor e não produtor [isto] porque o que o tempo mede é o

movimento e este desaloja do seu estado presente tudo aquilo que vai

afetando.”607 A dissolução presente na mobilidade dos estados físicos da

natureza funciona como espelho refletor da poética de Smithson e com

ela distingue-se o centro de sua produção.

606 BACHELARD, G. A terra e os devaneios do repouso, p. 178. 607 ARISTÓTELES, Física VII, 221b.

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4.5 A ruína das fronteiras anteriores608

Os atos de Smithson recolocam-se quase sempre

fundamentados por dois movimentos principais que perpassam sua

poética: a entropia e a dialética site/non site. Estas noções são pontos

flexíveis e móveis que se desenrolam na produção do artista

apresentando as idéias de instabilidade, processo e dissolução. A

exclusão da idéia de antítese se dá na medida em que pares opostos

operam pela continuidade. A própria possibilidade de fusão destas

correntes poéticas - a entropia e o duplo site/non-site - aponta o caráter

para além do formal desta produção. Restritos num instante efêmero ou

estendidos na duração - sem se revelarem em pólos opostos -, a entropia

e o recorte preciso e pontual do par site/non-site entrelaçam-se

infinitamente por fim. Em vários momentos, Smithson procura estabelecer

a relação dialógica entre esses termos ao pensar no espelho como

metáfora estética:

Então o que faço aqui – vou da sala para uma mina de sal...(fora daqui do Lago Cayuga, Cayuga Salt mines) – e amanhã estarei lá e colocarei em exposição nas minas salgadas e arranjarei esses espelhos em várias configurações, os fotografarei, e os trarei de volta para o interior, com pedras de sal de vários tipos. Como você pode ver, o interior de um museu, de algum jeito, espelha o site e, na verdade, vou usar esses reflexos. Muitos escultores pensam apenas no objeto, mas, para mim, não é o foco no objeto por si só, é o vai-e-vém da coisa.609

A entropia e o duplo site/nonsite urdidos ressoam na materialidade

dos trabalhos. A questão se desdobra a partir da deriva do artista e da

selação do site, passando pela inversão poética da relação entre

escultura e espaço, desejando ultrapassar e alcançar, enfim, o horizonte

para além dos espaços do museu. Na contemporaneidade, dilatando os

limites do moderno610, Robert Smithson, busca na natureza-paisagem sua

608 SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 194. 609Id., Earth, p.178. 610 Conceito descrito no texto de Rosalind Krauss sobre a escultura contemporânea, em Escultura no campo ampliado, no qual confere espacialidade e fisicalidade como orientação perceptivas desses novos trabalhos da Land Art.

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literalidade - sua substanciação e transubstanciação. O resultado do

cruzamento das diversas mudanças naturais e sociais reflete a idéia de

paisagem. A natureza-paisagem agrega uma realidade mental e

apresenta o mundo físico. Projeto que aciona a relatividade do tempo,

num continum entre passagem do tempo e espacialização do agora.

Funciona, ainda, como realidade estética condicionada pelo fazer

humano. Pela paisagem pode-se perceber um mundo que pulsa num

ritmo diferente, um outro. Na paisagem, inscreve-se a história –

concepção do filósofo Gilles Tiberghien: “A paisagem na sua espessura

temporal cristaliza determinantes que dependem tanto da análise moral,

econômica, geográfica como a estética. Espaço vivido e percebido.”611

Constitui-se então pela projeção dos artistas e poetas que se valem da

dimensão imaginária e sensível; por conseguinte, traz em si o valor da

abstração e do artifício – ficção portanto. Para Smithson, a paisagem

pode estar contida na prosa de Borges: “‘Esta cidade,’ pensei, ‘é tão

horrível que sua mera existência e perduração, embora no centro de um

deserto secreto, contamina o passado e o futuro e, de algum modo,

compromete os astros.”612 ou nos versos de Paterson, poema de William

Carlos Williams, conterrâneo de Smithson.613 Mais do que descrever as

ruas de New Jersey, tanto o artista quanto o poeta mergulham no seu

subsolo ou caminham por sua pele, para criar imagens e momentos no

ato de selecionar sites:

Pois o princípio indubitavelmente é o fim – já que de nada sabemos, puro e simples, para além de nossas próprias complexidades. E no entanto não há nenhum retorno: rolando para fora do caos, prodígio de nove meses, a cidade o homem, uma identidade – e nunca poderia ser de outra maneira – uma interpenetração, em ambos os sentidos (...) Mentes como camas sempre feitas, (mais pedregosas que uma praia) relutantes ou incompetentes.614

611TIBERGHIEN, G. De la nature dans l’art aujourd’hui, p. 31. 612 BORGES, J. L. O Imortal, p. 456. 613 William Carlos Williams era médico em Nova Jersey. Foi pediatra de Robert Smithson. 614 WILLIAMS, W. C. Paterson, p. 265.

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Um Passeio pelos Monumentos de Passaic se faz através da

condição de deriva do artista, revela em detalhes o recorte de um site.

Porém, o aspecto mais importante do trabalho parece ser a redefinição do

que seria monumento – já de saída apontado como anti-monumento. A

partir desse trabalho de Smithson, Cecília Cotrim pergunta-se sobre o

anti-monumento (Monumento Contemporâneo?):

Refletir sobre a possibilidade, impossibilidade, ou sobre os prováveis aspectos, caráter, gênero, do monumento contemporâneo, é algo posto em jogo por Smithson em seus earthworks, fotos, filme, escritos, assim como no puzzle formado por suas leituras. Em cada uma das atividades, o artista não perde jamais de vista o horizonte de reflexão sobre o mundo contemporâneo – a disposição irrevogável do panorama zero.615

O panorama zero remete ao solo da atemporalidade, pois sugere a

tentativa de abolir certo condicionamento perceptivo moderno, assim,

podendo significar o reenvio constante ao vazio que surpreendentemente

assegura as possibilidades de mistura, do puzzle e das justaposições caro

ao artista.

Espelhado no poema de William Carlos, Smithson atravessa a

malha da cidade cultivando a idéia de que a periferia existe além da

história – como subúrbio espectral. Destituído do passado – com poucos

marcos comemorativos – o subúrbio assume, em certo sentido, a função

do deserto. A expansão da idéia dos intervalos vazios – disrupção –

encontra-se entre as construções, ampliando-se em três dimensões.

Novamente, pode-se perceber a noção de tempo físico – sob o qual nada

perdura - atrelada à ideia de entropia, formação gradativa e lenta de um

site. Smithson compreende seu tour como um mergulho no emaranhado

temporal – do qual prevalece o dado entrópico e o sentido de natureza-

paisagem:

Na verdade, a paisagem não era paisagem alguma, mas ‘um tipo particular de heliotipia’ (Nabokov), um tipo de mundo de cartão-postal auto-destrituivo, de imortalidade fracassada e grandeza opressiva. (...) Esse panorama zero parecia conter ruínas às avessas, isto é, todas as novas edificações que eventualmente ainda seriam construídas. Trata-se do oposto da ‘ruína romântica’ porque as edificações não desmoronam

615 COTRIM, C. Monumento Contemporâneo?. p. 49.

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em ruínas, mas se erguem em ruínas antes mesmo de serem construídas.616

A paisagem situa-se no centro do debate cultural. Os artistas não a

enfrentam, esbarram num conjunto contaminado de simbolismos e, assim

concebida, passa tanto pela percepção do indivíduo quanto pelas

representações coletivas. A forma da paisagem, em Smithson, ganha uma

re-significação ao expor a imaginação materialista e o processo dialógico.

Não se tratando, pois, de uma simples visão ou disposição mental, funda-

se sobre a realidade da terra, sua literalidade informe que precede o

espírito e subsiste materialmente no tempo. Smithson preocupa-se com o

processo como experiência: “Há um tipo de queda envolvendo um tipo de

– bem, o próprio incidente significa queda. O primeiro incidente é um

ponto sobre uma linha, nesse sentido, é como uma marca na superfície e

isto é a queda, uma queda lenta.”617 No decorrer da experiência, reside o

movimento que se anuncia primeiro como o deslocamento da visão na

convergência para um único foco, se dispersando consequentemente,

para depois se ampliar na percepção da atmosfera como realidade

planetária, como experiência gravitacional, como espaço fictício.

A escolha dos sites/non-sites não é aleatória ou ingênua, permeia,

em alguns casos, os lugares destruídos e remexidos pela indústria e pela

urbanização descontrolada. O site podia ser definido por uma escolha

simbólica ou real. Ele associa-se à arte através da experiência do

espectador- passante. Em alguns projetos, Smithson retira de um lugar

pré-determinado - de acordo sempre com algumas idéias sedimentais da

poética do artista - materiais e os envia para as galerias ou salas de

exposição de museus:

As minhas excursões para sites específicos tiveram início em 1965: certos sites me atraiam mais – sites que haviam sido subvertidos ou pulverizados de alguma maneira. Na verdade o que eu estava procurando era uma desnaturalização, mais do que uma beleza cênica construída. E quando se faz uma viagem, necessita-se de uma porção de dados precisos, por isso eu costumava usar mapas quadrangulares; o mapeamento dava-se após as viagens. (...) Naquele mesmo período

616 SMITHSON, R. Um passeio pelos monumentos de Passaic, p. 47. 617Id., Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson, p.216.

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estava trabalhando com mapas e fotografia aérea para uma companhia de arquitetura. Então decido usar o site de Pine Barrens618 como um pedaço de papel e desenhar uma estrutura cristalina sobre a massa de terra, em vez de desenhá-la sobre uma folha de papel 20 x 30. Aplicava, dessa maneira, meu pensamento conceitual diretamente à disrupção do site, ao longo de uma área de vários quilômetros. Então digamos que meu non-site fosse um mapa tridimensional do site. 619

O deslocamento do material e do espaço foi definido pelo artista

como os non-sites, no entanto, cabe relacioná-lo com o movimento do

próprio artista que localiza seus non-sites no descentramento da visão e

da mente. O non-site reverte-se num mapa cuja função seria projetar um

espaço dito real. Claro que, para Smithson, a realidade configura-se em

ficção, por isso talvez, seja possível encontrar na literatura o movimento

de deslocação entre o par site e non-site. Refletindo sobre as obras de

Lewis Carroll, Smithson expõe a dialética: “Lewis Carroll refere-se ao tipo

de cartografia abstrata em seu The Hunting of the Snark (onde um mapa

‘nada’ contém) e em Sylvie and Bruno Concluded (onde um mapa ‘tudo’

contém),”620

A dialética do par site/non-site ganha dimensão amplificada. A

polêmica atitude de assumir outro espaço para a arte além do espaço

estabelecido das galerias de arte e museus permite uma reflexão para

além dos meios de arte: a situação do homem contemporâneo. O ato de

deslocar agiganta-se, pois, do primeiro choque com o descentramento

visual e perceptivo a exemplo do The Eliminator, revela-se a magnitude

da intervenção física no espaço, orientada pela deriva, pela aventura. O

artista retira do site uma amostra – registro do mundo físico –

reintegrando-a em locais consagrados de exposição – comprometendo-se

com o mundo da arte, visual e materialmente exterior. Assim, Smithson

cria e inventa o non-site. Parece certo concluir que sem o site, seu

aparente oposto, o non-site não seria revelado. Mas, olhando pelo viés

entrópico da sua produção, o par site/non-site só funciona na medida em

que essa movimentação se dá em espiral, – não propriamente sob um

aspecto dialético, mas dialógico somente - voltando-se sobre si e ao

mesmo tempo jamais recomeçando a partir do mesmo ponto: 618 Pine Barrens é o primeiro non-site do artista realizado em new Jersey. 619SMITHSON, R Discussão entre Heizer, Oppenheim e Smithson, p. 278. 620Id., A museum of language in the vicinity of art , p.92.

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O espaço exterior abre caminho para a vacuidade total do tempo. Tempo como um aspecto concreto da mente misturado com coisas é atenuado por toda grande distância, que nos leva a um certo ponto fixo. A realidade dissolve-se em incessantes redes de diminuição sólida. Um evanescimento de um país e uma cidade abole o espaço, mas estabelece enormes distâncias mentais.621

A noção de tempo conforma-se à apresentação dos trabalhos do

artista. Smithson cria um circuito no qual a contingência da espacialidade

depende necessariamente de uma temporalidade dilatada. O amálgama

entre real e virtual atravessa a densidade contida na paisagem geológica,

na atmosfera cósmica e nos estados ficctícios. São paragens, arrabaldes,

ruínas, construções, desterros, aeroportos, terminais captados por

instantes fotográficos ou destacados nos escritos que revelam também a

proposição relacional entre tempo e espaço. Na proposta de uma Aerial

Art, escrito em de 1969, Smithson sugere o “aeroporto como idéia”:

Arte aérea não pode dar consequentemente limites ao ‘espaço’, mas também as escondidas dimensões do ‘tempo’ distante da duração natural – um tempo artificial pode sugerir uma distãncia galática aqui na terra.622

Assim, o aeroporto perde sua função de pouso e docolagem de

aviões para ganhar outro significado: nicho poético.

A proposta de circularidade imanente dessa produção dilata o

sintoma romântico e contemporâneo ao privilegiar o desfazer e o refazer

de uma paisagem já reformulada pelo homem e recoloca a rudeza e

irregularidade - conseqüência da entropia, dispositivo pitoresco e

intensidade sublime - da natureza física como aspectos estéticos

fundamentais. A natureza-paisagem moduladas ficcinalmente como

reativação de certo romantismo pode dividir-se em várias imagens

poéticas, tais como as ruínas industriais, cabanas, labirintos, desertos:

As geleiras deixaram marcas proeminentes na paisagem, elas entalharam cânions, estendendo-os e aprofundando-os em vales em forma de U, com paredões de pedra íngremes e que depois avançaram

621 Ibid., p. 91. 622SMITHSON, R. Aerial Art, p. 117.

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pela planície.623

Para Smithson, a entropia (vórtice da natureza) modifica a

paisagem, de tal modo que testemunha seu próprio desaparecimento –

região do panorama zero: “(...) em certo sentido o site inteiro tende a

evaporar-se”.624O aniquilamento aparece portanto no trabalho como valor

estético: “Ele já está destruído. É um lento processo de destruição. O

mundo está se destruindo lentamente. A catástrofe vem subitamente, mas

lentamente.”625 Em L'Informe, Krauss e Bois definem a entropia como

“(...) um afundamento, um apodrecimento, mas talvez também um

desperdício irrecuperável.”626 e atribuem a Robert Smithson a primazia do

conceito entrópico como articulação operatória do trabalho em arte:

“Entropia atraiu artistas antes de 1960, quando Robert Smithson fez dela

seu motto, e toma-a para si.”627 Apresentam-se portanto como entrópicos

o pensar, o fazer, o escrever, o realizar trabalhados a partir de campos

indefinidos e híbridos.

São circulares o tempo e a natureza na poética de Robert

Smithson. A natureza assume, para este artista, a identidade profunda da

origem da irreversibilidade das coisas. Natureza obediente, submissa,

rebelde e corrosiva, impõe o ritmo – presença de cada instante único e

passado – de sua pulsação. Na paisagem, permeiam a temporalidade

arcaica, o lugar remoto e a terra incógnita na espera de outra nomeação

ou deslocamento fruto da ação do artista. As formações terrestres da

natureza, concebidas a partir da compreensão do tempo bruto - imemorial

e alargado - são apresentadas a partir de um constante e fragmentário

aparecimento de reflexos – reprodução de instantes. Robert Smithson traz

como matéria, nos aspectos mentais e físicos, o desdobramento do que

entende como natureza-paisagem e tempo – articulados com a entropia e

com atitudes disruptivas.

623 SMITHSON, R. Discussão entre Heizer, Oppenfeim e Smithson, p. 285. 624 Ibid., p. 285. 625 Ibid., p. 286. 626 KRAUSS, R.; BOIS, Y-A. Formless: a user's guide, p. 38. 627 Ibid., p.38.

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4.6 A poesia é sempre uma linguagem agonizante, mas nunca uma linguagem morta628

(...) Há linguagens que simplesmente não são apenas palavras. Linguagens que têm sintaxe em termos de outros materiais como mapas, como fotografias, como qualquer tipo de arte visual, você sabe,...

Robert Smithson629

Alguns trabalhos alinham as palavras numa estrutura visual. Em A

Heap of Language, desdobrado no texto Language to be Looked at and/or

things to be read, Smithson condensa palavras na forma de montanha e

transforma o escoamento da linguagem em paisagem. A “matéria

impressa [printed matter]” de Smithson transubstancia a escrita em

planícies e planaltos que carregam em si a sedimentação do planeta. As

epígrafes são o primeiro contato com a poeira terrestre; grãos que se

soltaram da sólida e densa massa textual. Não há a intenção em proferir

qualquer argumento de autoridade; suas teorizações não sugerem

qualquer traço do rigor das disciplinas científicas. Smithson privilegia a

alternância dos estados físicos, a solidificação ou liquefação, como

estrutura do pensamento. São indícios da sua prática artística que

compõem o vocabulário e a sintaxe do artista. Thomas Crow, em Cosmic

Exile: phophetic turns in the life and art of Robert Smithson630, introduz

seu artigo com três citações do artista (Victor Brombert, Gustave Flaubert

e W. B. Yeats), para definir:

Não são epígrafes usadas em sentido habitual. (…) A seleção e sua seqüência são de Robert Smithson e elas apresentam somente a primeira entrada numa longa série de várias citações, as quais ele pacientemente copiou em um caderno no final dos anos 60, cada citação contém a imagem da espiral. (...) Sua litania de citações não possui sentido aleatório.

A materialidade da natureza, a desmedida do tempo e do campo

perceptivo seriam “O refugo entre mente e matéria” que “(...) é uma mina 628SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 191. 629Id., Four conversations between Dennis Wheeler and Robert Smithson, p. 214. 630 TSAI, E. & BUTLER, C. (orgs). Robert Smithson, p. 33.

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de informação.”631 O processo da escrita urdido como uma malha de

linhas sensíveis, flutua ao redor de várias matrizes contudo apresenta um

mecanismo peculiar, a radicalidade – sentido literal - da palavra. No

trabalho A Museum of language in the Vicinity of Art, Smithson formula a

noção de que uma palavra é matéria, um sedimento, um outro: “Aqui a

linguagem ‘cobre’ seus sites e situações ao invés de ‘descobrir’”632 A

referência seriam as linguagens dos artistas e críticos que se fecham em

explicações e interpretações utilitárias. Se opondo a esse uso da palavra,

Smithson sugere que a palavra deveria “(...) se tornar um conjunto de

reflexos paradigmáticos de uma Babel de espelhos fabricados conforme o

pensamento de Pascal, segundo o qual a natureza é ‘uma esfera cujo

centro está em tudo, e a circunferência em nenhuma parte.”633Smithson

aplica o significado das palavras construído a partir:

(...) das superfícies de múltiplas facetas que se reportam não mais a um, mas a vários sujeitos no interior de um só edifício de palavras: um tijolo = uma palavra, uma frase = uma sala, um parágrafo = um conjunto de salas, etc. A linguagem se torna um museu infinito cujo centro está em tudo, os limites em nenhuma parte.

Se num primeiro momento, sobressai um olhar voltado para a

natureza; no instante posterior percebe-se que a atração é pela

degradação contida nas transformações naturais, privilégio do desgaste

dos processos físicos e geológicos que orienta o olhar do artista para o

desvio. Lugar de dimensão terrestre e telúrica comporta um tempo

imenso, medido pela escala geológica, que antecede a produção artística:

Prefiro a lava, as cinzas que estão totalmente frias e entropicamente resfriadas. Elas ficaram descansando em um estado de movimento retardado. É preciso algo como um milênio para movê-las. É ação suficiente para mim. Aliás, é o bastante para me deixar de quatro. (...) Sabe, um seixo movendo poucos centímetros em dois milhões de anos é ação suficiente para me manter estimulado.634

Os desdobramentos poéticos de Robert Smithson têm em si a

possibilidade do escoamento dessas dimensões abissais. Seus trabalhos

631 SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra. p. 190. 632Id., A Museum of Language in the Vicinity of Art. p. 78. 633 Ibid. p. 78. 634SMITHSON, R Discussão entre Heizer, Oppenheim e Smithson, p. 286.

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foram processados por vários meios artísticos quase sempre

compartilhados com a palavra. O sentido de natureza calcado na entropia

pode ser resumido a partir da formação física incidental – toda

configuração bem ordenada é fruto do acaso: “Das coisas lançadas ao

acaso, o arranjo mais belo, o cosmos.”635 Para Heráclito, a natureza é

aquilo que se mostra num eterno jogo de aparecer e desaparecer, e, essa

dinâmica, não representa um conhecimento, pelo contrário, provoca a

experiência. Nos fragmentos, palavras transformam palavras, tratando-se

de uma dimensão autônoma da realidade, da natureza pela natureza

traduzida em experiência e palavra. A physis pertence, pois, ao domínio

do autônomo com início e fim em si mesma. Smithson cita este mesmo

fragmento, o 124 de Heráclito, e o transforma em fala própria,

associando-o à: “(...) verdadeira dilaceração da crosta da terra” que “(...)

algumas vezes é muito arrebatadora.”636

Smithson apóia-se no entrelaçamento entre o tempo da atualidade

e os processos atemporais, coexistentes afinal. Sua intenção era

transformar profundamente a matéria física da arte convocando outra

idéia de natureza-paisagem e repensar o papel do artista e da arte na

sociedade contemporânea. O questionamento, uma provocação talvez,

decorre da atenta observação do artista da neutralidade a que eram

submetidas as obras no contexto das galerias: “Fiquei interessado em

chamar atenção para a abstração da galeria como sala, e ao mesmo

tempo levando em conta sites menos neutros.”637 Toda observação do

artista reverte-se em problemas cujas proposições são mais importantes

do que as soluções.

A linguagem contamina os procedimentos plásticos de Smithson e

o peso intelectivo se agrega ao senso concreto da imaginação poética. Ao

conferir nova materialidade física para a arte, Smithson volta-se para

outro aspecto: seu caráter informe. Talvez isso justifique o seu apreço

pela mistura de gêneros artísticos, traço contemporâneo do artista –

mesclado às reformulações românticas calcadas na natureza-paisagem.

635 HERÁCLITO. Fragmento 124, p.91. Trad. Carneiro Leão e Sergio Wrublewski. 636SMITHSON, R Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 184. 637Id.,Interview with Robert Smithson for the archives of american art/Smithsonian Institution,p. 296.

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Como exercício plástico e intelectual, era prática recorrente do artista

tomar de empréstimo, plasmar poéticas cujas afinidades podiam ser

temporal, literal, estética. Seus interlocutores dialogam nos textos, o

artista associa-se a eles pelo parentesco, pelos laços afetivos ou pelas

afinidades eletivas. Percebe-se isso pela sobreposição de concepções de

universo, arte, tempo às noções de Blaise Pascal e Jorge Luis Borges,

francês e argentino, filósofo e escritor, sujeitos pertencentes a épocas

distintas, cujas criações estreitam-se em alguns momentos. Smithson,

inspirado em Borges e admirador de Pascal, trata-os como matrizes

poéticas. Sua escrita parte, dentre outras, destas. As idéias de natureza,

infinito, tempo e universo são colocadas sobrepostas, como camadas

geológicas compostas por fragmentos. Se para Pascal a “Natureza é uma

esfera infinita cujo centro está em todas as partes e a circunferência em

nenhuma.”638, nas frases de Borges traduz-se como: “O universo (que

outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e

talvez infinito, de galerias hexagonais,...”639, para que sejam tomadas por

Smithson como: “(...) Linguagem se torna um infinito museu, cujo centro

está em toda parte e cujos limites em lugar algum”640 A aproximação

dessas poéticas não se dá apenas por suas referências literárias.

Smithson metamorfoseia obras de arte conferindo-lhes renovação

reflexiva. Em Quase-Infinities and the Waning ogf Space, texto escrito e

diagramado em 1966, Smithson apresenta fotos de trabalhos artísticos

que fluem junto ao texto, por exemplo, duas esculturas do Laocoonte,

uma de Eva Hesse outra de autoria de Hagesander, Athenodorus e

Polydorus641, uma contemporânea outra grega; junto às estátuas o

seguinte texto: “A estética barroca 642 do Laocoonte original com as linhas

fluidas – macia e fluida – é transformado numa seca torre esquelética que

leva a lugar nenhum.643”

A produção plástica do artista aciona as intervenções em galerias,

em terrenos desgastados pela ação corrosiva do homem, escritos, diários,

638 PASCAL. B. Pensées. ,639 BORGES J. L.. Biblioteca de Babel, p. 516. 640SMITHSON, R. A Museum of Language in the Vicinity of Art, p. 78. 641 Autoria atribuída por Plínio. 642 Smithson se refere à cópia barroca do conjunto escultórico grego do período helenista. 643 SMITHSON, R. Quasi-Infinities and the waning of the Space, p.37.

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mapas, entrevistas, fotografias e filmes. O período mais produtivo de sua

obra teve duração de apenas uma década, mas sua participação no

circuito artístico foi de máxima importância pelo radicalismo dos desvios

poéticos. O artista mostra a deterioração dos meios de arte dada por

banalizações e super-exposições; propõe, como artista-criador, a

realização poética como diário, como confissão criadora – expressão de

Paul Klee - ou como relato criador. Com descrições pormenorizadas,

alguns trabalhos são apresentados por uma temporalidade sucessiva e

simultânea; por mais paradoxal que pareça ser, é possível que este

cruzamento entre sucessivo e simultâneo sustente o tempo imemorial

cuja densidade e peso estão sempre presentes nos trabalhos.

Trata-se do prolongamento das questões modernas a partir do qual

o lugar de experiência afirma-se como solo reflexivo e imaginativo. Não

seria interessante todavia separar o modernismo em momentos

sucessivos que contabilizam uma lógica epistemológica. Rosalind Krauss

estabelece um campo ampliado para escultura, no artigo Escultura no

Campo Ampliado, no qual evita a polêmica querela entre moderno e pós-

moderno, para inscrever as obras contemporâneas num espaço que

procura transcender a lógica do mercado e da instituição-arte,

estendendo-as e ampliando-as num espaço mais dilatado, sem definir

contudo uma nova era ou idade para produção artística; procurando,

afinal, permanecer no lastro da sensibilidade do modernismo. No texto,

sobressai a idéia de uma virada na narrativa da história da escultura a

partir do momento em que esta passa a ser vista pelo seu aspecto

negativo - vazio, no que esta se desmaterializou. O campo ampliado

corresponde à vital reconquista e renovação de espaço em dimensões

planetárias – literalmente uma ampliação da relação espaço e tempo. E,

para Smithson, o homem contemporâneo deve mergulhar no emaranhado

da natureza-paisagem, literal e fictícia, de um tempo profundo,

transformador, simultaneamente, disruptivo e intervalado. Smithson

procura compreender o sujeito no estado erodido, marca da

contemporaneidade em arte. No texto, A Sedimentação da mente:

projetos de terra (1969), o artista vislumbra o espírito do homem, reflexo

do espírito da terra:

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A mente e a terra encontram-se em um processo constante de erosão: rios mentais derrubam encostas abstratas, ondas cerebrais desgastam rochedos de pensamento, idéias se decompõem em pedras de desconhecimento, e cristalizações conceituais desmoronam em resíduos arenosos de razão. Faculdades em amplo movimento se apresentam nesse miasma geológico e se movem da maneira o mais física possível. (...). Esse fluxo lento torna consciente o turbilhão do pensamento.644

O desdobramento da natureza no/para o sujeito obedece ao critério

tempo. Submete-se aos ritmos ditados pelas experiências do vivido.

Assim, Smithson procura apreender uma temporalidade que, no extremo,

reverte-se em experiência, ampla ou disruptiva. Robert Smithson, inserido

no contexto americano de selvagem industrialização, realiza sua poética

expressando-se não somente diante da obra, mas da cultura sobretudo. A

busca por um ser mais profundo, para esse artista, está diretamente

associada à natureza em seu componente mais bruto e abissal – seu

infinito poder transformador. Movimento circulatório, proposto pelo artista,

em que aproximação se caracteriza pelo sentimento de possuir e ser

possuído por ela (natureza) e o afastamento são os breves instantes em

que a reflexão íntima se torna intelecto, matéria e escrita. Não há, assim

parece, nenhuma contradição, apenas uma movimentação, indício de

circularidade infinita, e um trânsito livre de experimentações possíveis.

Os textos, muito mais do que explicações teóricas, são formulados

poeticamente. Neles, Smithson ressalta que o artista precisa, como

condição de possibilidade do seu próprio fazer, construir uma visão de

mundo descondicionada. E, ao estabelecer axiomas ou diretrizes para seu

trabalho, o artista deve impedir sua inserção na ordem política. Para citar

um exemplo, ao ser perguntado sobre a necessidade de responder à crise

política na América, Smithson responde de forma contundente:

O artista não deve quere responder à ‘profunda crise política na América’. Cedo ou tarde o artista será implicado ou devorado pelos políticos.645

Smithson problematiza, em seus textos, o pensamento, os

materiais e as ferramentas recorrentes da arte procurando atingir,

644 SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra, p. 182 passim. 645 SMITHSON, R. The artist and politics: a symposium. p. 78.

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principalmente, um novo lugar, aporte para outra topografia, imersa neste

campo ampliado. O movimento provocado por Smithson possui

ressonâncias no dias de hoje. O problema da relação entre as

instituições, as produções artísticas, a teoria e crítica, ou seja, o circuito

artístico e suas ramificações que instituem outras mediações. Basta citar

os exemplos da reformulação dos sites specifics proposta pela teórica

Miwon Kwon, em One Place after Another: notes on site specificity, que

propõe a inversão dos paradigamas dos sites sepecifics que seriam a

impossibilidade da separação entre trabalho de arte e seu site, bem como,

a necessidade da fisicalidade o espectador em processo fenomênico,

para uma composição amplificada no que se refere a noção de site. Este

que passaria a agregar os fluxos sociais, políticos, civis, etc, e seria

revertido, ainda, em discursividade. Assim, para ela, a especificidade do

site se abre para a produção de diferenças e particularidades. A fórmula

inverte-se: o site, preenchido de sentido pelo artista, passa a ser aquele

que fornece as referências.

O teórico da arte Brian Holmes, concebendo um desdobramento

teórico a partir da produção dos anos 70, reconhece os pontos de contato

que podem reformular o discurso crítico da arte:

O que tem sido retrospectivamente estabelecido como a “primeira geração” de crítica institucional inclui pessoas como Michael Asher, Robert Smithson, Daniel Buren, Hans Haacke e Marcel Broodthaers. Eles investigaram os condicionamentos de suas próprias atividades, através das restrições ideológicas e econômicas do museu, com o objetivo de se libertar delas. Tiveram forte ligação com as revoltas antiinstitucionais dos anos 60 e 70 e suas conseqüentes críticas filosóficas. A melhor maneira de considerar seu foco específico acerca do museu é não o tomar como limite ou fetichização auto-imposto pela instituição, e sim como parte da práxis materialista, lucidamente ciente de seu contexto, mas com intenções transformadoras mais amplas.646

A polifonia deflagrada pelo artista ecoa e atinge os limites das

esferas artísticas. Prosa, escultura, objeto desintegrado, paisagem, filme

se tornam correspondentes e, curiosamente, invertem as regras do seu

próprio funcionamento interno. Trata-se pois da reformulação dos

mediums ou da eclosão de uma era pós-medium, debatida em A Voyage

646HOLMES, B. Investigações Extradisciplinares: para uma nova crítica das instituições, p. 9.

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on the North Sea: art in the age of the post-medium condition, de 1999.

No livro, Rosalind Krauss retoma o termo medium, ressaltando sua

pluralidade e complexidade. Para ela, existe a complexificação do termo

desde o criticismo de Greenberg, processo que sugere a intensificação da

pluralidade interna do médium e suas intermediações externas, tornando

mesmo, da ordem da impossibilidade, a idéia do medium como suporte

físico. Krauss define, ainda, que uma era pós-medium se deve ao fim da

especificidade do próprio medium – como suporte restrito -, para isso,

adota a estratégia de manter o termo a despeito dos equívocos e abusos

inventariados para o termo. O passo seguinte seria localizar o termo no

campo discursivo, isto é, a variação entre o seu pertencimento à

cronologia que o ligaria à crítica pós-modernista e a problemática

derivação medium específico. Discurso crítico e reflexivo que se coaduna

às proposições de Robert Smithson, no entanto, como o intuito de ampliar

a discussão, seria interessante apontar o paralelo entre Smithson e o

belga Marcel Broodthaers cuja operação, destacada por Krauss em

Voyage, consiste em deslocar os mediums para criticá-los, trabalhando na

fronteira entre o discursivo e o plástico. Porém, o atravessamento entre

verbal e visual – nos curtos doze anos de sua carreira - eclode sobretudo

na instituição museu, ponto crucial para a analogia com a produção de

Robert Smithson.

Assim, é possível verificar que artistas como Robert Smithson e

Marcel Broodthaers pertencem, de acordo com Brian Holmes, à primeira

geração que se fundou na crítica institucional, através da qual esses

artistas procuraram acionar a dissolução dos médium:

Outras histórias poderiam ser escritas. Em jogo, a tensa dupla união: entre o desejo de transformar a “célula” especializada (como Brian O’Doherty descreveu a galeria modernista) em um potencial de conhecimento vivente móvel que pode alcançar todo mundo; e a contrapercepção de que tudo o que diz respeito a esse espaço estético especializado é como uma armadilha, foi instituído como forma de cerceamento. Tal tensão produziu as intervenções incisivas de Michael Asher, as denúncias cortantes de Hans Haacke, as desarrumações paradoxais de Robert Smithson ou a fantasia poética e o humor melancólico de Marcel Broodthaers, cujo motor oculto foi um compromisso juvenil com o surrealismo revolucionário.647

647Ibid., p. 11.

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Na tentativa de aprofundar as semelhanças entre Smithson e

Broodthaers, procura-se localizar nas suas proposições o uso dos

elementos constitutivos do museu, tais como, as placas sinalizadoras,

gesto certamente provocador que promove distopia. O deslocamento da

função das placas – tratadas como puzzle, evidenciada por Smithson e

Bochner em The Domain of the Great Bear, corresponde aos jogos

definidos pelo artista belga, sobretudo, em Museum of Modern Art – Eagle

Departament, de 1968. Smithson localiza a placa Solar System & Rest

Rooms do Hayden Planetarium, objeto integrado ao museu-planetário,

como uma espécie de quebra, de intervalo que demonstraria

forçosamente a atopia. O deslocamento do espaço sideral estaria no

movimento restritivo das salas do planetário: “O planetário torna-se do

mesmo tamanho do universo. (...) Vertigem da contemplação, o gesto

mais fútil do homem – patrimônio do infinito. Acima da escada um sinal:

Solar System & Rest Rooms.”648 A ironia se prolonga e funciona a partir

do adensamento crítico, transbordado de elementos poéticos, à

instituição. O espaço e tempo, extenso e infinito, do universo, estariam em

salas divididas por paredes de fórmica, pintadas de azul. Assim, uma vez

fechada a porta, se:

(..) expulsa a temporalidade. Enormes extensões de tempo foram comprimidas na sala. Anos-luz passam em minutos. Vida tão prolongada torna-se insignificante. O ciclo dos planetas ocorre e novamente ocorre. O sistema solar, esta coleção mecânica de marcas, caixas, lâmpadas, equipamentos, armaduras, barras, parece cansado, entorpecido. A câmara da apatia. E fadiga. É o infinito, somente enquanto durar a eletricidade.649

O lugar passa a ser reformulado pelos artistas que apontam, no

texto, as incongruências entre as relações de tempo e espaço promovidas

pelas instituições que estariam preocupadas com o compenete dito

objetivo: “A suposta factualidade não apresenta nehuma informação.

Nada é conhecido, apenas as superfícies impenetráveis.”650 O trabalho é

648 SMITHSON, R; BOCHNER, M. The Domain of the great Bear, p. 27. 649 Ibid., p. 27. 650 Ibid., p. 28.

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entremeado por fotografias, desenhos e esquemas cedidos pelo próprio

planetário que fornencem as pistas para o entendimento – uma espécie

de visita-puzzle. Não se trata portanto de um ataque programático,

apenas, da inserção poética num espaço – por que não no tempo? –

precedido mesmo de gesto mais simples, de certa ironia distanciada, sem

nostalgias.

A orientação de Marcel Broodthaers à crítica institucional também

se revela no desdobramento poético de sua produção. Em Museum of

Modern Art – Eagle Department, o artista introduz o rébus, jogo no qual

sílabas são trocadas por imagens propondo um sistema da advinhação,

constituindo diversos anagramas voltados para as questões do espaço

museal: “Uma seqüência de trabalhos na qual – na produção de

atividades de doze seções do museu – ele operou a partir do que ele

referiu-se como um museu ficcional.”651 O trabalho, assimilando

poeticamente o rébus, se dá nas inferências: “A identidade da águia como

idéia e da arte como idéia.”652 Rosalind Krauss, em A Voyage on the North

Sea: art in the age of the post-medium condition, defende que os jogos de

palavras propostos pelo artista encaminham a discussão para o fim da

arte como Belas Artes. Certamente, não se coloca o fim da arte na

acepção de Arthur Danto – como o fim da narrativa da história da arte

coincidente com a produção das pops Brillo Boxes de Andy Warhol.

Colocaria, sim, a discussão da impossibilidade da arte como suporte

específico, no lastro da condição pós-medium. Imagens e palavras

livremente misturadas, não escapam, segundo a autora, das operações

do mercado:

Por conseguinte, se torna uma forma de propaganda ou promoção, que agora promove a Arte Conceitual. Broodthaers tornou isso claro no pronunciamento que redigiu como capa para a revista Interfunktionen, mais ou menos no mesmo tempo: ‘Olhar’, ele registra, ‘acordo pelo qual uma teoria artística funcionará como produção artística do mesmo modo que a própria produção artística funciona como anúncio’ (Broodthaers).653

A questão se endereça então para a especificidade do museu 651 KRAUSS, R. A Voyage on the North Sea: art in the age of the post-medium condition, p. 2. 652Ibid., p. 12. 653Ibid., p. 13.

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como site dada pelas normas de mercado – no sentido das trocas de

valores, partindo da equivalência entre teoria e produção, esta, sem

disfarces, isto é, propositalmente provocada pelo artista. A condição de

funcionamento do site – museu – se revela agregando o valor de troca

mercadológica a partir da qual: “(...) nada pode escapar e para a qual tudo

é transparente, para sublinhar o valor de mercado do qual a obra é

signo.”654 Krauss credita à homogeneidade das trocas do mercado –

“onde tudo é troca” – um dos indícios da complexificação dos mediums

artísticos. A mistura que impulsiona a poética de Broodthaers ocorre entre

as palavras, ready-mades, vídeo, objetos, etc. para se fundir ainda mais

com a especifidade daquele site – instituição – galeria, museu, curadores,

revistas de arte, etc. Seria, então, um adensamento da idéia de suporte

de meios artísticos a partir do qual se orienta a produção de arte. Nesse

trabalho, Museum of Modern Art – Eagle Department, Broodthaers

promove a homologia entre os circuitos que apresenta: filme, escritos,

esculturas, colagens, etc.

Através da indiscutível ação de esvaziamento dos museus, melhor

dizendo, sua re-significação, artistas como Marcel Broodthaers e Robert

Smithson apresentam a cena da era pós-medium, na qual existe o

privilégio da contaminação – indistinção mesmo – do mundo, das esferas

artísticas, teoria e produção, rumo à evidência de um sistema que para

funcionar precisa estar em constante disrupção.

Porém, independente de localizar ou atribuir à produção de

Smithson uma seqüência histórica – dentro, portanto, de uma cronologia

modernista -, é possível compreender sua poética como a paradoxal

inserção, indiferente e distanciada, no circuito artístico e observar os

modos e dispositivos que possibilitaram o desvio como valor para arte.

654 Ibid., p. 13.

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5 Considerações Finais: Uma infinidade de superfícies espalha-se em todas as direções655

O conjunto dos trabalhos de Robert Smithson, nos poucos anos de sua

atividade, revela sua intensa atuação nas fronteiras dos mediums da arte. A

preocupação do artista se liga, por um lado, às proposições artísticas de sua

geração, mas, por outro, potencializa sua poética da qual é possível extrair a

ruptura com configurações objetivas, além de resvalar para uma composição

de fluxos e indícios que permite, ao artista, produzir – mental e materialmente –

lugares ou nichos de outro fazer artístico. Robert Smithson estabelece a

contigüidade entre matéria e mente a partir da sua formulação série de

convergência [range of convergence] que certamente se desdobra em entropia.

Composto residual da dialética sugerida pelo artista, entropia seria a marca da

apropriação da natureza-paisagem, em sua literalidade tanto quanto sua

expressão ficcional. Assim, Smithson desenvolve uma série de proposições

com as quais evidencia sua poética marcada pela indistinção dos mediums.

Sem buscar a verdade ou a objetividade em arte, Smithson adere à

estratégia de dissociar os condicionamentos perceptivos de modo que a arte

seja da ordem do mundo – este, revelado pela estrutura que denomina de

panorama zero. Diagramaticamente, pode-se associar os elementos de sua

estética: entropia, natureza, cristalografia, inorganicidade, abstração, mente,

percepção, horizonte, deslocamento, site, non-site, tempo, escala, infinito...e

assim...desdobrados interminavelmente. O dispositivo dialético funciona como

articulador dos diagramas – novamente se observa: literais e mentais – com o

qual o artista desordena e reordena os fluxos poéticos e indiciários.

Robert Smithson, para constituir o universo do panorama zero, decide

operar através de acumulação dos resíduos espalhados pelo mundo. Atuando

a partir de vários mediums, o artista paradoxalmente se distancia das

instituições para esvaziar as categorias rígidas e provocar o descentramento.

Esta ação aparentemente negativa desloca as definições solidificadas dos

655SMITHSON, R The Crystal Land, p. 9.

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mediums da arte para a região da indistinção. Na realidade, a indiferenciação

se torna a articulação nominativa do artista com a qual providencia o trânsito

entre os meios artísticos. Determinado, portanto, o panorama zero, Smithson

passa a provocar intensidades perceptivas, recorrendo às ações operadas pela

imaginação. Neste ponto, os territórios imaginativos tocam – como as placas

tectônicas – a realidade do mundo. Esse posicionamento adere à intensidade

romântica do sublime e ao manuseio do rústico pitoresco – produtos da

inquietação do artista perante o incerto mundo. São formulações da

reinterpretação do romantismo na atualidade que eclode a partir dos paradoxos

propostos pelo artista. Não que Smithson se coloque frente ao mundo por um

desejo ou anseio romântico. O tom romântico em sua produção talvez se

oriente pela série de convergência [range of convergence] que resulta

evidentemente num projeto futuro sem qualquer vestígio de nostalgia vinculada

ao passado. Convergir o passado em futuro – reversível portanto - seria o

mesmo que estabelecer a presença do nulo, movimento paradoxal formador

dos campos de atuação e transitividade do artista. Sublime e pitoresco,

intensos e vazios, correspondem às notações do momento romântico em

transliteração na contemporaneidade da produção de Smithson: ruína em

reverso.

A possibilidade da reinvenção dos sentimentos românticos ocorre

através do privilégio dado pelo artista à ordem da contingência. Tudo que há no

mundo passa e perece: tal eventualidade não surge apenas de modo abstrato,

ela se realiza materialmente com a entropia. O retorno à natureza significa a

busca por forças físicas atuantes sobre as quais é impossível o domínio,

novamente, o artista recoloca o critério da incerteza. Em metáfora, entropia

seria transporte e deriva que conduzem ou são conduzidos pela

desestruturação, esta operatória, suposta pelo artista. A sua experimentação

se (des)localiza no desvio portanto. Signos que se atravessam são também os

componentes criados pelo artista de modo a configurar um sistema de arte em

recorrente disrupção. Aliás, arte só funcionaria como sistema, segundo a

acepção de Smithson, se este pudesse ser interrompido ou eclodido de modo

que uma tensão fosse constantemente acionada permanecendo mesmo como

motor da sua poética. Da mesma maneira, possivelmente, funciona o rearranjo

dos sentimentos românticos na produção do artista. Sublime e pitoresco

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deslizam para o colapso das fronteiras dos meios de arte. Pitoresco oderia ser

os traços toscos no panorama gráfico; sublime poderia ser a imobilização do

corpo na simples presença na audiência do cinema. Desfocar as linhas

fronteiriças e limítrofes que configurariam tanto o sublime quanto o pitoresco

seriam os dispositivos de transmutação operados por Smithson.

Na produção de Smithson, a desorientação do sujeito possui uma função

lapidar, qual seja, o estranhamento do mundo e seu imediato sentimento de

pertencimento às coisas mesmas, processo que sofre certa inversão porque o

pertencimento passa à ordem do exercício ficcional. No estado de deriva, por

exemplo, o espectador-sujeito estranha a ordenação das coisas que lhe

despertaria para outra relação perceptiva.

Uma cascata solidificada, um horizonte móvel, uma linha encaixotada –

A line of wreckage, uma calçada que se transforma em mapa, etc. O

descondicionamento da percepção coincide com o princípio inventivo da ficção

e com a propulsão criadora do panorama zero. Reforça-se portanto a idéia da

série de convergência [range of convergence] que produz a diagramação

poética e revela as correspondências românticas afinadas com o artista.

Os escritos de Robert Smithson constituem-se de uma pulsão criadora

que extrapola a idéia de um simples comentário sobre a obra. Eles resguardam

a experiência da linguagem como fundamento da poética do artista. Desse

modo, Smithson traz para sua produção a ressonância entre matéria e mente

que eclode nas esculturas, nos filmes, nas proposições e na escrita. Artista

inquieto, pensador incansável, Smithson, no curto tempo de sua produção -

uma década apenas, elabora e vivencia pensamentos acerca da arte e do

mundo. Aqui, deve-se fazer uma ressalva: não existe para o artista mundo

exterior à arte, bem como, arte fora do mundo. Daí, o artista parte para a

elaboração imaginativa e literal do panorama zero: indício a horizontalidade

constitutiva dos resíduos de todas as coisas.

Os elementos e compostos utilizados pelo artista são dispostos na sua

acepção labiríntica do mundo. Os cristais oferecem indícios de entropia, pois,

de uma partícula material mínima que sofre a ação das leis termo-dinâmicas

surge uma forma acabada que com suas múltiplas facetas remeteria ao lugar

da criação, outra possibilidade de visadas e percepções. A cristalografia

corresponde à adesão do artista a um universo literário que não diferencia

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ciência e ficção – são ambas material plástico e poético. Assim, Smithson nos

fala a respeito da justaposição dos elementos do seu primeiro non-site em Pine

Barrens: “Havia por lá um campo de aviação hexagonal, que se prestava muito

bem à aplicação de certas estruturas cristalinas com as quais eu havia me

ocupado antes, em meus primeiro trabalhos. Um cristal pode ser mapeado, e

aliás acho que foi a cristalografia que me levou a fazer mapas.” 656Dos cristais

para os mapas e os espelhos, Smithson propõe a continuidade entre esses

elementos ao sugerir a mistura, uma operação que se encontra no limiar de

outra.

Os espelhos são objetos recorrentes em sua produção: são camadas

refletoras sugerindo remissão e deslocamento. Em várias obras, os espelhos,

com sua superfície lisa, misturam-se à terra, aos sedimentos criando um

contínuo espaço-tempo. A operação proposta por Smithson fundamenta-se na

designação de um local, no reenvio a outro destino e a outras escalas que

podem ser em qualquer lugar, no fundo, a lógica do deslocamento. Os

espelhos, quando assumem a forma do cristal, criam um estranho vórtice que

multiplica seu ponto focal. E, ao retirarem o foco do objeto, convocam

disrupções na percepção.

Os mapas, alguns são construídos com espelhos, permitem um

transporte direto à idéia de deslocamento. Eles indicam o lugar (site) remissão

imediata ao não-lugar (non-site), noções que aderem à especulação entre

limite e não-limite. São concepções que se dão possivelmente na composição

dialética entre um ponto e outro ou na transitividade entre site e non-site e que

se encontram na base das obras – esculturas. Os non-sites seriam mapas

tridimensionais referidos a um lugar específico, geralmente, escolhidos pelo

artista por sua condição entrópica. Deve-se entender a cartografia como a

mescla entre sensível e inteligível, fundamento do encontro do artista com o

mundo e com a arte. É possível perceber o artista esquadrinhando o mundo

com linhas imaginárias.

A idéia de natureza está atrelada certamente à temporalidade, já que

não é possível dissociá-la da entropia. A produção de Smithson manifesta uma

656Id., Discussão entre Heizer, Oppenheim e Smithson, p. 278.

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plasticidade do tempo que oscila entre instante e duração. A partir desse ponto,

seria interessante aproximar duas poéticas literárias caras ao artista. São

matrizes da literatura que se harmonizam ao pensamento do artista: Edgar

Allan Poe e Jorge Luís Borges. Smithson declara sua predileção por esses

autores e, com eles, compartilha as noções de instante e duração, disrupção e

continuidade. Os contos de Edgar Allan Poe introduzem no cosmos de

Smithson a noção de disrupção – precisamente A Queda do Solar de Usher

cuja narrativa descreve a fenda quase imperceptível que divide a casa e todo

terreno ao meio - com a qual passa a compreender as fissuras e fraturas

temporais que conseqüentemente interagem com a formação da natureza, em

sua forma alargada e arcaica; são as intersecções da terra, do planeta e da

linguagem obviamente.

Borges perfaz um caminho temporal que adere certamente à poética de

Smithson. São imagens plásticas que permeiam a obra de Smithson; elas são:

o labirinto, a espiral, os espelhos e a cartografia. Em Do Rigor da Ciência,

Borges contempla uma escala diferente, 1/1, quer dizer, o mapa mais do que

indicar um lugar, surge como o próprio mundo. Assim, calcado nessa idéia,

Smithson propõe para a arte a (des)medida da escala, assunto da imaginação

e não da razão. A imensidão é também o labirinto, algo da ordem do infinito,

da sucessão eterna. No trabalho Spiral Jetty, a espiral (des)marca a entrada-

saída, espaço-tempo, início-fim, elementos que não se colocam em pares,

trata-se da reversibilidade. Abertura poética oriunda do mundo literário, das

imagens poéticas adquirem, nas mãos e na fala de Smithson, materialidade. O

tempo infinito e contínuo se atrela ao tempo disruptivo e instantâneo e ambos

permeiam a produção de Smithson. Somente atravessando essa combinação

torna-se possível perceber as proposições poéticas do artista.

Pensando na atualidade de Robert Smithson, fica a sugestão do

deslocamento:

O que você pode encontrar em Passaic que você não encontra em Paris, Londres ou Roma? Descubra por você mesmo. Descubra (se você ousar) o empolgante rio Passaic e os eternos monumentos sobre os encantados aterros. Um passeio no conforto do carro de aluguel para a terra que o tempo esqueceu. Somente uns minutos de N.Y.C. Robert Smithson irá guiá-lo através dessa fabulosa série de sites...e não esqueça sua câmera. Mapas especiais

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vêm com cada tour. Para mais informações, visite DWAN GALLERY, 29 West 57th Street.657

657 Id., See the Monuments of Passaic New Jersey, p. 356.

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