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a •i Prefácio à edição brasileira Q ponto de partida de Claude Rivière não parece ser muito diferente do de Berkeley, o grande filósofo in glês: ser é ser percebido. Só existimos, enquanto seres hu manos, isto é, como "animais sociais", na medida em que somos reconhecidos. Ora, o rito, envolvendo a ação con certada e padronizada dos membros do grupo ou socie dade, é por excelência o meio e a ocasião do reco nhecimento mútuo. Apesar do aparente declínio das grandes religiões, o rito, representando por assim dizer a respiração da sociedade, não desapareceu. Podemos reencontrá-lo não só entre as seitas, igrejas e movimentos que tentam recuperar a herança das igrejas tradicionais (que também atravessam processos de reforma, renova ção e ressurgência), mas também - e este é o objetivo es pecífico de Os ritos profanos - nos ritmos quotidianos da vida social 1 . Não há então sociedade propriamente dita sem que os indivíduos que a compõem, de um modo ou de outro, 1. Claude Rivière, Les rifes profanes, Paris, Presses Universitaires de France (coleção "Sociologie d'Aujourd'hui"), 1995,261 p. 7

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•i

Prefácio à edição brasileira

Q ponto de partida de Claude Rivière não parece ser muito diferente do de Berkeley, o grande filósofo in­

glês: ser é ser percebido. Só existimos, enquanto seres hu­manos, isto é, como "animais sociais", na medida em que somos reconhecidos. Ora, o rito, envolvendo a ação con­certada e padronizada dos membros do grupo ou socie­dade, é por excelência o meio e a ocasião do reco­nhecimento mútuo. Apesar do aparente declínio das grandes religiões, o rito, representando por assim dizer a respiração da sociedade, não desapareceu. Podemos reencontrá-lo não só entre as seitas, igrejas e movimentos que tentam recuperar a herança das igrejas tradicionais (que também atravessam processos de reforma, renova­ção e ressurgência), mas também - e este é o objetivo es­pecífico de Os ritos profanos - nos ritmos quotidianos da vida social1.

Não há então sociedade propriamente dita sem que os indivíduos que a compõem, de um modo ou de outro,

1. Claude Rivière, Les rifes profanes, Paris, Presses Universitaires de France (coleção "Sociologie d'Aujourd'hui"), 1995,261 p.

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Eduardo
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Claude Riviére, Os Ritos Profanos. Petrópolis: Vozes, 1997
Eduardo
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se apercebam de seu reflexo na percepção dos outros. A interação social realiza-se através de reflexos de reflexos. O rito representa, para empregarmos os termos de Emile Durkheim - do qual Claude Rivière é herdeiro, tanto nas idéias como na cátedra que ocupa na Sorbonne - a socie­dade em ato, a sociedade agindo precisamente enquanto sociedade:

O rito exprime o ritmo da vida social, da qual é o resultado. Só se reunindo é que a sociedade pode reavivar a percepção, o sentimento que tem de si mesma2.

Rivière confere às idéias de Durkheim surpreenden­te ampliação. Já não precisamos passar pelos aborígenes' da Austrália, com seus complicados sistemas de divisão em clãs exogâmicos e seus rituais totêmicos. O rito tor­na-se fenômeno banal e quotidiano, mesmo sem que essa descoberta venha a contradizer a distinção durkheimia- na entre tempo profano e tempo sagrado.

Vamos encontrar a ritualidade já na vida infantil, Ri­vière assinalando que a educação em grande parte se ba­seia "na aquisição de hábitos e valores que implicam em numerosos microrrituais na vida diária da criança" . Pode-se igualmente reconhecê-la nos trotes estudantis, bem como nos concertos de rock e outros grandes espe­táculos musicais, representando "os ritos de exibição da adolescência marginal"4.0 ritualismo encontra-se igual­mente na apresentação regulada do corpo, "feita de evi- tamentos e de ocultações, canalizando assim as emoções que implicam numa ameaça constante de desequilí­brio"5. Há também a ritualidade associada à prática es-

2. Emile Durkheim, Les formes élémentaires de lã vie religieuse: Le système totémique en Austrnlie, Paris, Alcan, 1925, p. 499.

3. Op. cit., p. 81.4. Op. cit., p. 121.5. Op. cit., p. 141.

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portiva. A propósito desta e sobretudo do futebol, Riviè­re se baseia inclusive em Roberto da Matta6, para desta­car a integração resultante da "comunicação simbólica entre os participantes, conectando numa vasta repre­sentação os sentidos e os valores mobilizados pelos par­ticipantes"7.

E não esqueçamos os rituais ligados à alimentação, que formam inclusive a base da Eucaristia, configurada na missa, que é o rito por excelência da tradição católica. Como salienta nosso autor, "partilhar com os outros a alimentação, muitas vezes significa situar a identidade individual dentro da identidade do grupo, no lar ou na Eucaristia"8. O capítulo sobre "o cerimonial da comida" bem que poderia ser ampliado em livro independente, já que em talvez nenhum outro domínio seja mais íntima e

_____ fundamental a imbricação entre ritmos biológicos e ri­tuais. Segundo Rivière:

Momento-chave da interação familiar e elemento da arquitetura da vida social, a refeição apresen- ta-se como ritualização da partilha da comida, num crimonial influenciado pelas preferências religiosas e que se transmite através das gerações, respondendo à lei cultural da aliança e de troca representada pela comensalidade. No seio da fa­mília, a refeição contribui para o aprendizado dos papéis, da solidariedade e da distinção so­cial. No seio do grupo dos comensais, ela assegu­ra a transmissão e a permanência dos valores cul­turais e das regras socialmente definidas, a con-

6. A referência de Rivière é a "Notes sur le Football Brésilien", Le Débat (Paris), 1982, p. 68-76. Este artigo, porém, é versão resumida de "Esporte na Sociedade; Um Ensaio sobre o Futebol Brasileiro", em Roberto da Matta et al., Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira, Rio de Janeiro, Edições Pinako- theke, 1982, p. 19-42.

7. Rivière, op. cit., p. 168.8. Op. cit., p. 190.

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lores metafísicos; potências superiores mitifica­das pertencentes ao domínio do indizível, inaces­sível e inefável. Essa força é ainda chamada de imperativo categórico, de instituído inquestioná­vel, de postulado arbitrário, transferindo para o invisível as razões da ordem social e cósmica. O sagrado religioso, como o sagrado político ou so­cial, é o que se situa além de nossa apreensão e de nosso poder; é o mito ou a certeza íntima (que significam a mesma coisa) de uma totalidade que se responsabilizaria por tudo aquilo que nos su­pera. É um modo de teorizar a impotência18.

O que significa não que a religião se reduza a simples epifenômeno de forças sociais, mas o caráter analógico do conceito de sagrado, que se realiza de muitas manei­ras19. Qualquer que seja o outro, implícito no vivido da ritualização, o ponto de partida dó aütor ê qüe nãò há sociedade sem rito, nem rito sem sociedade.

Ora, o Brasil em matéria de secularização - e de se- cularização acelerada - em nada fica a dever à França e a outros países do mundo ocidental. E secularização se entende em primeiro lugar como declínio da influência exercida pelas grandes igrejas históricas, no nosso caso a católica. Trata-se de uma das características decisivas da modernidade, implicando a'perda da referência especi­ficamente religiosa para a afirmação da identidade cole­tiva. Já não nos definimos como cristãos em face de mou­ros, como nas cruzadas ou na Reconquista do solo ibérico, nem como católicos diante de protestantes, nas lutas contra os invasores holandeses do Nordeste no século XVII. Fazemos parte de uma organização política, a Re­

is. Op. cit., p. 16-17.19. Sobre esta temática, pode-se ler com proveito Claude Rivière e Albert

Piette (dirs.), Nonvelles idoles, novenux cultes: dérives de Ia sacralité, Paris: L'Har- matten, 1990.

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pública Federativa do Brasil, que simplesmente não pos­sui filiação religiosa, apesar das reivindicações por assim dizer residuais do Catolicismo que presidiu a nossa for­mação.

O início dessa descatolicização remonta seguramente a meados do século XIX e mesmo a antes. Nessa mudan­ça desempenhou papel decisivo o exemplo do enciclope- dismo francês, cujo ideário foi posto em prática pela Re­volução, com suas muitas seqüelas, na Europa e nas Américas. Entre os primeiros sinais da quebra do mono­pólio religioso encontra-se, em meados do século XIX, o aparecimento de congregações protestantes compostas de luso-brasileiros, bem como, no outro extremo de nos­so espectro religioso, dos primeiros terreiros afro-brasi- leiros mais ou menos autônomos, isto é, separados, de

-irmandades e confrarias ostensivamente católicas, ao mesmo tempo em que distintos da simples prática oca­sional de algum curandeirismo pela invocação a deuses ou espíritos africanos20.

Trata-se de processo muito lento e que, embora já an­tigo, ainda hoje não se completou, atingindo, em diferen­tes velocidades, regiões, classes e segmentos de classe. O processo parece ter se acelerado muito no último quartel do século XX, em ligação com as mudanças experimen­tadas pela Igreja em decorrência do II Concilio do Vati­cano ou contemporaneamente a ele. Passa então a predo­minar, em ambientes da própria Igreja, sobretudo nos mais chegados à teologia da libertação, uma concepção do relacionamento entre catolicismo e sociedade priorizan­do não mais a dominação, ou impregnação, das estrutu­ras sociais pela Igreja, mas a transformação muitas vezes

20. Sobre descatolicização e sincretização ver Roberto Motta, "Le Métis- sage des Dieux dans les Religions Afro-Brésiliennes" Religiologiques (numéro special sur Le métissage des dieux, dirigé par Guy Ménard), Montreal, p. 17-34.

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formidade com o modelo expressando a partici­pação do indivíduo no grupo9.

Aparte mais descritiva do livro não se acaba sem ca­pítulos adicionais sobre o ritualismo das empresas, do qual servem de exemplo, ainda este "eucarístico", os banquetes de confraternização, dos lazeres e diversões, sem contar com saudações e cumprimentos, "microrri- tuais do quotidiano, que perpetuam uma identidade na medida em que sua execução revela a identificação a um grupo específico e diferenciado"10.

Rivière trata ainda da loteria, da caça (na qual, se­gundo Walter Burkert11, encontra-se o arquétipo do ar­quétipo de todos os ritos, que é o sacrifício, compreen­dendo imolação e comunhão), dos espetáculos teatrais e dos ritos do judiciário. Luxo e ostentação não são esque- cidos, através dos quais se exibem e reafirmam classe, identidade e poder. Tudo isto porque outro não é o pro­jeto do autor senão "colocar" o quotidiano sob o micros­cópio sociológico"12.

Já vimos que o rito é a respiração da sociedades Ri­vière, ainda na introdução, o define, da maneira mais ge­ral, como

conjunto de condutas individuais ou coletivas, relativamente codificadas, com base corporal (verbal, gestual, postural), de caráter mais ou me­nos repetitivo, com forte carregamento simbólico para seus atores e habitualmente para os seus as­sistentes, condutas essas fundamentadas numa adesão mental, muitas vezes inconsciente, a valo­

9. Op. cit., p. 217.10. Op. cit., p. 239.11. Walter Burkert, Homo Necans: The Antropology ofAncient Greek Sacrifi-

cial Ritual and Myth. Berkeley: University of Califórnia Press, 1983.12. Op. cit., p. 237.

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res relativos a escolhas sociais consideradas como importantes, e cuja eficácia não depende de uma lógica puramente empírica que se esgotaria na instrumentalidade técnica da ligação entre causa e efeito13.

Coloca-se aqui o problema da relação entre três ter­mos, que são rito, sagrado e religião, que já era, a seu modo, o problema fundamental de Emile Durkheim, em As formas elementares da vida- religiosa. A obra de Rivière configura-se, como ele próprio diz e já foi aqui citado, na elaboração de um paradigma pára a análise microscópi­ca da vida social, o sagrado constituindo a transfigura­ção da experiência social. Nosso autor encara o rito como "forma geral de expressão da sociedade e da cultura"14, o que lhe possibilita "emancipar-se do contexto religioso no qual costumava ser enquadrado"15. Ora, "o funciona-. mento dos ritos encontra-se ligado à sua utilidade so­cial"16, o que implica - e a passagem seguinte poderia ser subscrita pelo próprio Durkheim - que "sua execução é imperativa para recriar periodicamente a identidade moral (L'être moral) da sociedade"17.

O sagrado, portanto, não se confunde com o religio­so, se este se conceber como transcendente ou sobrena­tural no sentido mais estrito. Para Rivière:

O campo do sagrado supera em muito o campo do religioso, sobretudo do religioso instituciona­lizado. [...] A essa força fascinante e terrível que Rudolf Otto denomina de sagrado, os povos atri­buem conteúdos diferentes: gênios; Augusto; va-

13. Op. cit., p. li.14. Rivière, op. cit., p. 45.15. Op. cit., ibid.16. Op. cit., ibid.17. Op. cit., ibid.

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revolucionária dessas estruturas, o que vem a envolver, não sem algum paradoxo, a secularização da própria igreja.

Secularização e descatolicização implicam, como sem dificuldade se compreende, a superação do ritoie- ligioso como expressão da sociedade global. Tomemos o exemplo da festa de Corpus Christi, isto é, da celebraçãd solene do dogma central do catolicismo, que é a presença real e, por assim dizer, material, de Cristo, em "corpo", sangue, alma e divindade", sob as espécies eucarísticas do pão e do vinho, festa essa que, nos países católicos do Antigo Regime, isto é, no período anterior à Revolução, era também o do solene desfile de toda a sociedade, ci­mentada pelo vínculo eucarístico, com suas hierarquias e corporações, sem faltar sequer, conforme consta de al- gumas descrições, a participação, por certo um pouco constrangida, dos judeus.

Tornou-se inconcebível, no Brasil contemporâneo, a expressão da identidade nacional em termos de Catoli­cismo, apesar, repita-se, de algum resíduo que subsista aqui ou acolá. A Igreja Católica acabou, afinal, por trans­formar-se em não mais do que uma das religiões ou sis­temas ideológicos que concorrem dentro do mercado na­cional dos bens simbólicos. A procissão de Corpus Christi subsiste como um fantasma do que foi outrora, servindo às vezes de pretexto para exibições folclóricas.

Mas, como dizia Oscar Wilde, "a verdade é raramen­te pura e nunca simples". Uma das características da for­mação social brasileira encontra-se não apenas nas dis­paridades regionais, mas, ainda mais, na coexistência de estilos de sociedade, cultura e economia, na verdade de períodos históricos completamente diferentes e que muitas vezes "hurlent de se trouver ensemble", dentro das próprias regiões e áreas urbanas. E a secularização se faz em ritmo menos rápido entre certos setores de nossa sociedade, os quais, confrontados com o avanço da des­crença entre as elites e com o recuo consentido da Igreja, -:

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elaboram sua própria religiosidade a partir dos mate­riais legados pela história.

Apesar, então, dos progressos da descrença, ou por causa desse progresso, que eliminou o monopólio reli­gioso exercido pelo catolicismo tradicional, o Brasil pos­sui enorme variedade de manifestações religiosas. As­sim é que convivem em nosso País, muitas vezes em ás­pera disputa pela mesma clientela, religiões sacrificiais e religiões éticas21 .As primeiras em grande parte derivam do catolicismo popular da tradição ibérica, seus ritos fundamentais assumindo a forma do dom exterior, pro­messas, peregrinações, procissões, quando não repre­sentados, sob influência do sincretismo afro-brasileiro, pelo sacrifício cruento de animais, muito mais praticado entre nós do que se poderia imaginar. Já nas religiões éti-

cas o sacrifício assume, ou tende a assumir, a forma pura da "adoração lógica", da "logike latreia''22 a que já se refere São Justino, que vem afinal confundir-se com o "sacrifice de la pensée" de que tanto fala Durkheim em seu livro sobre As formas elementares da vida religiosa. E essa moda­lidade mais interiorizada de sacrifício vem resultar, nas versões renovadas de catolicismo, que surgem em nosso País em ligação com a chamada romanização ou reeuropei- zação da Igreja, a partir da última parte do século XIX, bem como em igrejas e seitas protestantes, numa espécie de racionalização do próprio comportamento do devoto, em vez de limitar-se ao plano da manifestação exterior.

O contraste entre ritos religiosos, uns de caráter sa- crificial e outros mais de tipo ético, está evidentemente

21. Sobre este contraste, nas religiões populares do Brasil, ver Roberto Motta, Edjé Balé: Alguns aspectos do sacrifício no Xangô de Pernambuco, tese de titularização, Universidade Federal de Pernambuco (Recife), 1991, no momento no prelo em coedição da EDUSP (São Paulo) e da Editora Universitária (Recife).

22. Sobre o "sacrifício lógico" e outros conceitos, ver Louis Bouyer, Le rite et lliomme: sacralité naturelle et liturgie, Paris, Le Editions du Cerf, 1962.

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muito longe de coincidir com a oposição entre o sagrado e o profano. Estamos diante de uma sociedade "fractal". De modo que, lado a lado com as liturgias sacrificiais e com a racionalização ética do catolicismo renovado e das igrejas protestantes (como se fôssemos disputados por períodos históricos em teoria separados por milênios), o quadro se complica com o avanço da secularização e com o surgimento, ou pelo menos a intensificação dos ritos profanos.

Retomemos a análise de Rivière. O rito é a respiração da sociedade. Mesmo se as pessoas não se articulam só por causa do prazer de estarem juntas, mas com objeti­vos políticos e econômicos, mesmo aí, e talvez sobretudo aí, a execução do rito, como assinala nosso autor, é indis­pensável para recriar periodicamente, isto é, para reno­var ou refazer a identidade, a personalidade, l'être moral, do grupo e da sociedade. Lembremos também que em todo rito há os participantes e os excluídos. E, entre aque­les, nem todos participam da mesma maneira. Há neófi- tos e iniciados e, entre os extremos, muitas gradações. Se precisamente o rito deve servir para reafirmar a identi­dade coletiva, fatalmente os critérios de inclusão e exclu­são têm de alguma maneira que manifestar-se durante o processo ritual. Sancta sanctis, as coisas santas para os santos: até às reformas dos últimos 20 ou 30 anos, distin- guia-se na missa católica a "missa dos catecúmeros" (até à leitura do evangelho) e a "missa dos fiéis" (a partir do ofertório).

Lembremos ainda que se, como assinala Rivière, o processo ritual pode levar a um estado de "communitas" na qual os participantes se percebem como se, pairando um momento acima do tempo roedor acedessem à imor­talidade, ao eterno presente da comunidade primitiva e arquetípica (e é por aí que se pode começar a entender o fenômeno do transe, no qual as consciências individuais se deixam penetrar e anular pela consciência coletiva através da qual recebem valor, identidade e reconheci­

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mento), é também verdade que o rito significa ao mesmo tempo reafirmação da estrutura social, com todas as suas desigualdades e hierarquias.

Mas é impossível, nestas notas, replicar o trabalho de Rivière em Os ritos profanos, isto é, passar no microscópio as manifestações rituais presentes na formação social brasileira. Para o futuro pode-se talvez pensar em pes­quisa que conduza ao inventário e à descrição de todas as nossas manifestações rituais, religiosas, sacrificiais, éticas, profanas... Já dispomos inclusive dos estudos pio­neiros de Roberto da Matta, cuja metodologia difere da de Rivière por causa sobretudo da escala macro-socioló- gica adotada pelo brasileiro. Matta quer descobrir nos ritos que analisa - carnavais, paradas, procissões, cam­peonatos de futebol - a expressão dramatizada de nossa sociedade global. Não se trata apenas, para nosso emi- - nente compatriota, de fazer a sociologia desses ritos; eles próprios já representariam a sociologia espontânea do homem comum, buscando, a seu modo, compreender o funcionamento das estruturas sociais23.

Já Rivière, não obstante sua nítida afiliação ao soció­logo por excelência que é Emile Durkheim (o qual, dire­tamente ou através de Victor Tumer e de outras media­ções, acha-se também muito presente na genealogia inte­lectual de Roberto da Matta), adota outra perspectiva. Pois não se trata tanto de descrever fenômenos ligados à sociedade global (se é que, nesta nossa época de "de- construções", pode-se ainda admitir a existência, ou pelo menos o pleno valor operacional de tal sociedade), mas de destacar manifestações associadas a grupos de paren­tesco ou de ocupação, conjuntos de coetâneos (corres­pondendo mais ou menos aos age sets da Antropologia

23. Ver Roberto da Matta, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1980.

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de língua inglesa), enfim, aos muitos grupos, às comu­nhões, aos nós em que a sociedade se acha fragmentada. Notemos ainda que o paradigma de Rivière atribui me­nos importância à representação intelectual (ainda que transposta ou codificada em termos simbólicos) da es­trutura social, do que ao sentimento de pertença suscita­do pelo rito, e do qual nasce a intuição da identidade coletiva e individual.

Tomemos, como exemplo de possível aplicação deste modelo, os ritos dos universitários, isto é (entendendo o termo em acepção restrita), de professores e pesquisado­res. Estes, enquanto cultores professos e declarados de valores científicos, deveriam ser os mais desencantados de todos os homens, os menos afeitos a mitologias e rito- logias, sem outro compromisso que com a formulação e a verificação de hipóteses e teorias. Mas na verdade, poucas profissões levam tanto à articulação de seus membros em comunidades para-religiosas como as que pretendem justificar-se não mais que pela pesquisa e o ensino.

Ora, já sabemos que não há sociedade, qualquer que seja sua escala, que não sinta a necessidade de, peri­odicamente, reafirmar em comum seus valores comuns. É daí que nasce o comportamento ritual, cujo protótipo encontra-se no sacrifício, pouco importando que a maté­ria deste sejam palavras, gestos, cantos, posições, dan­ças, objetos, animais, seres humanos ou o pensamento em sua forma aparentemente mais pura e decantada. Não há então sociedade que, de um modo ou de outro, próxima ou remotamente, fundada sobre o rito, não es­teja conseqüentemente baseada em alguma forma de dom e sacrifício.

No concreto, importa saber o que se oferece, por quem se oferece, a que ou a quem e em proveito de quem se oferece. Nas formas mais tradicionais de culto afro- brasileiro, o sacrifício básico, a obrigação por excelência, é constituído pela imolação de animais, oferecidos pelos

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devotos (os sacrificantes, na terminologia de Hubert & Mauss)24, através de sacerdotes, denominados pais-de- santo ou babalorixás sacrificadores, a divindades conheci­das como orixás (nos quais se pode sem dificuldade des­cobrir a projeção da comunidade), em proveito dos pró­prios sacrificantes, o que à primeira vista redundaria em benefício da comunidade como um todo. Notemos ain­da, a respeito do candomblé-xangô, que, de maneira se­melhante ao que acontecia na prática ritual da Grécia Antiga ou do Israel do Antigo Testamento, nele não se estabelece, pelo menos não ao modo nítido das religiões ocidentais, separação entre alma e corpo, entre saúde e santidade, entre este mundo e o outro. O que acaba fa­zendo com que o sacrifício, a princípio bom para rezar e para pensar, termine bom para comer. A imolação resulta em banquete, no qual os deuses repartem generosamen- te com os homens as carnes que lhes foram dadas. Mas este esquema complica-se quando se levam em conta as desigualdades inerentes ao terreiro, isto é, ao próprio gru­po de culto. Enquanto proprietários dos meios da produ­ção sagrada, os hierarcas, os pais e mães-de-santo, exigem e obtêm um proveito, um lucro, tanto material como sim­bólico, que bem podemos chamar de mais-valia sagrada.

Voltemos aos nossos universitários e esclareçamos que os ritos que aqui nos interessam são menos as ceri­mônias sujeitas a um calendário mais ou menos regular, vestibulares e formaturas, do que outros mais sutis, inte­ressando segmentos especializados da academia, que se configuram em defesas de tese de mestrado e doutorado, congressos, conferências e assemelhados. Se a universi­dade está formalmente dividida em centros, institutos, faculdades, fundações, etc., tampouco são essas as cate­gorias mais pertinentes para a análise aqui sugerida. O

24. Henri Hubert & Mareei Mauss, "Essai sur la Nature et la Fonction du Sacrifice", UAnnée sociologique, 1899, p. 29-138.

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que nos importa são antes os grupos e comunidades quase sempre informais, que se constituem à base da partilha de idéias aparentemente abstratas e interesses muitas vezes altamente práticos.

Prossigamos com a metáfora afro-brasileira. Se, nos terreiros, se oferecem animais, bons para pensar (en­quanto metamorfose tangível das representações dos de­votos), porém logo transformados em alimento material, na comunidade universitária o sacrifício assume a forma abstrata do pensamento puro. São teses, conferências, trabalhos, comunicações, em que a procura utópica da verdade se subordina à promoção do grupo e de seus chefes.

No terreiro, dá-se a obrigação aos orixás que repre­sentam, afinal, o próprio grupo de culto, inclusive com suas desigualdade. Na academia, a situação parece in- verter-se. O dom, no plano manifesto, dirige-se à comu­nidade, muitas vezes concebida de maneira etérea e abs­trata. Mas, na realidade o sacrifício universitário é desti­nado, nem sempre de maneira só latente, ao Mestre ou aos Mestres, que, presumivelmente devido a seu talento pessoal e a toda uma série de circunstâncias aleatórias, conseguiram impor ao grupo sua maneira de pensar e a busca de seus interesses.

A organização do grupo acadêmico não é mais igua­litária que a dos terreiros. Cá e lá ocorre a apropriação da mais-valia simbólica. Lá, nos terreiros, sob a forma de acesso privilegiado - a parte do leão - às carnes das víti­mas de que desfrutam os hierarcas, das taxas e emolu­mentos que recebem, do poder de consagrar e excomun­gar, do prestígio ou reconhecimento de seu carisma e das muitas homenagens que lhes são dirigidas, gestos de de­ferência, pedidos de bênção, chegando até às prostrações solenes. Cá, na academia, a mais-valia atribuída a mes­tres e fundadores, a seu modo igualmente proprietários dos meios da produção simbólica, está representada pelo poder de aprovar e excluir, de atribuir cargos, empregos,

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promoções e bolsas, de ser citado e reverenciado, muitas vezes se tornando não só o chefe, mas o totem do grupo. Tudo isso sem falar em vantagens mais tangíveis, com- plementações salariais, subsídios, verbas para pesquisa, licenças, viagens de estudo, convites, consultorias, fun­ções gratificadas em agências de fomento, etc. Na reali­dade, não há na República cargo suficientemente eleva­do que não se possa atingir através de uma sagaz admi­nistração do capital simbólico.

E por aí também se vê como o sacrifício do pensa­mento é paradoxalmente bom para comer. Os universitá­rios encontram-se presos a estruturas de poder, poder não apenas simbólico, mas do qual dependem empre­gos, aprovações em concursos, promoções, publicações, congressos e conferências no Brasil e no exterior. Daí jus­tamente a adoção de estratégias sacrificiais de confor­mismo e adesão, o reconhecimento, a homenagem pres­tada aos orixás do candomblé, ou aos senhores mestres da academia, representando a condição sine qua non do eventual reconhecimento do próprio sacrificante, de sua cooptação e de seu avanço.

Os ritos universitários significam essencialmente ex­pressão de identidade de grupos que não são mais que variantes das "sociedades de pensamento", já estudadas, a partir de uma inspiração muito próxima à de Durk­heim, por Augustin Cochin. Para este historiador-soció-logo:

"Na vida real a comunhão de todos aparece como efeito da convicção de cada um. Seria uma ilu­são? É o que pensa a escola sociológica do senhor Durkheim. Mas mesmo essa ilusão representa um fato, o único que aqui nos interessa. [...] Na sociedade de pensamento tudo se passa ao con­trário. Pois é justamente para formar, através da discussão e do voto, a opinião comum - logo, fora de qualquer convicção comum - que as pessoas se reúnem. Não que as pessoas se reúnam porque

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já estão de acordo, mas porque se reúnem ficam de acordo. É o fato social que vem em primeiro lugar"25.

Foi sobretudo à origem e ao desenvolvimento da Re­volução Francesa que Cochin aplicou sua análise. Efeti­vamente, trata-se de um dos fenômenos típicos de nossa época, inclusive daquilo que vem sendo chamado "pós- modernidade". O que vêm fazer nossos acadêmicos em colóquios, congressos e reuniões, senão sacrificar seu pensamento e seus trabalhos aos deuses (inclusive ao deus Durkheim) e, sobretudo, a seus sacerdotes e a seus profetas? E é nessas "sociétés de pensée", as quais vimos que estão muito longe de excluírem todo utilitarismo — o sacrifício nunca é apenas bom para pensar, mas, de ma­neira direta ou indireta, também serve para comer - que, com um gasto de emoções e sentimentos apenas na apa- rência mais moderado, vamos descobrir, de acordo com as sugestões teóricas de Claude Rivière, o equivalente das matanças e dos transes do candomblé e do xangô, nos quais o ser, a identidade dos participantes, flui do reconhecimento proporcionado pelo grupo, ao mesmo tempo em que este, simbolizado pelos orixás, jorra do sangue do animal, o qual afinal outra coisa não é que efusão de pensamento.

***

Toda forma de vida social exige - é conclusão funda­mental de Os ritos profanos - que o fiel abandone aos deu­ses, isto é, à vida social em diferentes formas e fases, al­guma coisa de suas palavras, gestos, posições e convic­ções, de seu pensamento e de suas possessões. Mas o que exatamente se abandona, a quem, a quê ou como? São

25. Augustin Cochin, La révolution et Ia libre pensée, Paris, Copemic, 1979,p. 39.

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perguntas a que Rivière, examinado cada caso específi­co, responde com a clareza, a limpidez, a simplicidade (características também de Durkheim), que representam algumas das qualidades mais preciosas do estilo francês.

Claude Rivière vem se afirmando como um dos prin­cipais ritólogos contemporâneos. Seu livro anterior, As li­turgias políticas,26 já representou, no seu campo, ensaio paradigmático. Em que pesem os trabalhos de outros au­tores - entre eles o. inglês Victor Turner, prematuramente falecido, e o nosso Roberto da Matta, que fez escola no Brasil - é certamente Rivière que mais tem contribuído para a codificação desta disciplina, que está longe de re­duzir-se a simples departamento da Sociologia ou da Antropologia da religião.

Se nos lembrarmos que o rito é a respiração da socie­dade, entenderemos como a ritologia bem compreendi­da significa a quintessência, o aspecto mais fino da pró­pria Sociologia. Cada terra tem seu uso, cada tempo seus costumes. Os ritos variam de acordo com a época e o lu­gar. Certo, o Brasil não é a França. Nossa interpenetração de épocas e estilos talvez seja maior. Mas a secularização, mesmo competindo ou convivendo com outras atitudes, não parece, apesar de tudo, menos avançada aqui que na Europa. Nossos ritos profanos ocupam cada vez mais es­paço. Tanto por tratar, em geral, do estudo dos ritos, e, em particular, desse sagrado que é paradoxalmente pro­fano, o leitor brasileiro, antropólogo, sociólogo ou sim­ples estudioso, tem muito o que ganhar com a leitura de Os ritos profanos e com a adoção de sua metodologia.

Roberto Motta Universidade Federal de Pernambuco

26. Claude Rivière, As liturgias políticas, Rio de Janeiro, Imago, 1989.

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Introduçãoooooo

Em particular, desde os anos 80, a proliferação dos es- tudos sobre os ritos - a ponto de se tomarem obses­

sivos - deve-se ao fato de que, para além dos modos utilizados na apreensão de certos objetos teóricos, existe, sem dúvida, um fenômeno que se realiza com maior fre­qüência na sociedade, ou cujas significações se têm mo­dificado, ou cuja riqueza explicativa está longe de se esgotar; a menos que, pouco a pouco, cheguemos a nos convencer da autonomia de um objeto científico a ser ex­plorado sob novas dimensões.

Enquanto os antropólogos, principalmente, se de­bruçam sobre o fenômeno ritual, parece que a sociedade adota pontos de vista mais restritivos em relação ao rito: alergia à ritualidade, verificação de sua obsolescência, confisco da ritualidade por novos poderes - religião da técnica, biopoder, regimes políticos mobilizadores. Entre os intelectuais educados em uma tradição utilitarista, o rito - considerado irracional ou forma de sortilégio va­zia, oca e superficial - goza de má reputação.

Na verdade, a "desritualização", que parece estar a acontecer atualmente, limita-se à perda de certas práti­cas religiosas historicamente datadas, correlata a um de-

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clínio das crenças. A partir de tal verificação, é possível desacreditar a ritualidade ao considerá-la como destina­da a desaparecer em uma sociedade moderna em que a imagem ocupa o primeiro lugar, o ver é o último resíduo do crer e "é necessário ver para crer". No entanto, simul­taneamente, alguns pretendem combater o desencanta- mento do mundo com uma ritualização deliberada, ad­ministrada com finalidade terapêutica (cf. as múltiplas' formas de culto do corpó.ou a política gerencial da ritua­lização de uma cultura da empresa); outros, com inten­ção exclusivamente científica, julgam perceber um de­senvolvimento da ritualidade profana e política que fun­cionaria como mecanismo de compensação pela perda do religioso. Será que o investimento de novas crenças em novos cultos profanos poderia, nesse caso, ser inter- -pretado como uma nova ritualização, embora bastante lábil (o tempo de uma moda), ou como um ersatz de ri­tualidade com perda do sentido profundo da atitude de respeito e submissão em relação a potências sobre-hu­manas, em situações predominantemente lúdicas?

Todo aquele que se questiona dessa forma acaba ce­dendo diante do antigo monopólio eclesial de tratamen­to do que era considerado como dependente da religião. Se as sociedades religiosas colocam em limites diferentes a distinção entre sagrado e profano é porque o sagrado é uma construção de diversos imaginários sociais. Como os mitos transbordam o quadro das crenças teofânicas e cosmogônicas, a ritualidade constitui uma atitude que faz parte, como é observado pela etologia, ao que há de mais arcaico e constante nos comportamentos entre seres vivos. Afirmar que só existem ritos profanos por analo­gia com o rito religioso é esquecer que, no início, este foi elaborado por analogia com os costumes codificados en­tre seres vivos/sendo que Deus foi concebido, progressi­vamente, como o Ser Vivo supremo insuperável e a codi­ficação, adotada como arma suprema do poder de uma religião, foi instituída como lei moral.

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Com certeza, o estudo dos ritos profanos utilizará uma verdadeira reflexão sobre os ritos, produzida em um quadro religioso, mas pode dispensar uma colocação em perspectiva temporal relacionada com o destino do aspecto religioso (desaparecimento, mutação, migração, ressurgimento) nas sociedades atuais, no sentido em que sempre existiram ritos profanos, independentemente do estado da sociedade na qual eles se foram inscrevendo e embora nos dêem a impressão de serem mais numerosos e legíveis na vida cotidiana moderna por efeito da foca- lização de nossa atenção.

Com o declínio não só dos ri]tos tradicionais no Ter­ceiro Mundo, mas também dos ritos cristãos na Europa, antropólogos e sociólogos tendem cada vez mais a se de­bruçar sobre a observação e conceitualização da ritualidade

profana nas sociedades contemporâneas. Para nós,não se trata de produzir um novo ungüento sociológico, misturando determinados elementos - festa, hábitos, co­tidiano, símbolo - com resíduos de sagrado, mas de abrir novas janelas para formas de relações sociais. Quem não se entrega de bom grado, sem colocar o rótulo de rito, ao prazer codificado e coletivo de um esporte ou de uma refeição completa? Quem não fica encantado com uma medalha de mérito do trabalho que é alfinetada no correr de cerimônia solene, ou com a participação em um con­certo de rock ou o desfile do "Dia da Pátria"?

Ao ouvir falar de rituais esportivos ou alimentares, e dos ritos do trote de calouros ou do sexo, alguns recla­marão contra semelhante libertinagem conceituai, na medida em que a relação com o sagrado ou o elo com uma crença não são, de modo algum, garantidos. Mas tenham a ousadia de nos acompanhar ao longo desta tentativa para se questionarem, no fim, se não valeu a pena explorar a perspectiva ritual no cotidiano.

Tão rico e diversificado parece esse cotidiano nas so­ciedades - pelo menos, européias - que seria necessário

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selecionar nosso enfoque, não só do ponto de vista geo­gráfico (sobretudo, a sociedade francesa), mas também do ponto de vista temático (ritos de formação, do corpo, do trabalho e dos lazeres). Deixaremos de lado os ritos ligados ao calendário das comunidades camponesas ou regionais estudados pelos historiadores locais ou pelos folcloristas; os ritos puramente familiares e de passagem (nascimento, casamento, morte...) descritos pelos etnólo­gos e objetos de estudo de uma vasta literatura; os ritos de alegria ou aflição que são desencadeados por um acontecimento contextualizado (fim do ciclo agrícola, matança do porco, perda de um animal doméstico); as­sim como os ritos que implicam uma negociação entre grupos participantes (regresso de emigrante, rivalidade entre duas aldeias).----- O fato de nos interessarmos por uma categoria limi-tada de ritos profanos não impede de nos interrogarmos sobre a razão de ser não só de tal rito, mas do rito em geral, enquanto modo de existência dos seres humanos, atividade refletida produzida por organizações huma­nas e forma de objetivação intencional do pensamento em comportamentos simbólicos. Colocar-nos-emos tam­bém a questão de saber como a representação coletiva, até mesmo fora da religião, implica a crença e esta a con­duta correspondente; como tal rito acaba sendo adotado: por costume familiar, gosto pessoal, tradição local...; e como se faz sua iniciação.

No início de qualquer pesquisa existe uma supera- bundância de questões. Como as que nos formulamos no momento de uma reflexão com psicanalistas sobre o ri- tualismo em situação de conflito. Por que motivo e de que maneira a atitude ritual se apresenta como resposta a uma crise antiga, atual ou ameaçadora? Qual é a parte de teatralidade na tentativa de transformar o enfrenta- mento em complementaridade? Qual tipo de reestrutu­ração (mental, psíquica, cósmica) é produzido pela ritua- lização? Na negociação ritual com uma alteridade, como

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se organizam os campos de força afetivos? Onde se si­tuam os códigos de conduta legitimados que, nos grupos efervescentes, fazem apelo a comportamentos de reve­rência e conformidade? Será sempre a ordem dominante que se exprime por metáfora e metonímia no ritualismo? Não será que o fenômeno de ritualização pode suscitar, por si só, conflitos de integração, atribuição de papéis e diferença de potencial entre atores e espectadores? Antes de responder a algumas dessas questões, importa definir os conceitos utilizados com maior freqüência.

Rito, ritualismo, cerimonial

Entre o costume clássico de restringir o rito ao campo do sagrado e a tentação de considerar rituais todos os comportamentos rotineiros, o espectro da sinalização e explicação do rito é bastante amplo. Tanto a definição de M. Mauss (ato tradicional eficaz que remete a coisas cha­madas sagradas), como a de J. Beattie (ato social simbó­lico), devem ser indicadas com precisão e matizadas. Cada um puxa a definição para seu terreno. Em ligação com a magia e a religião das sociedades africanas, M. Fortes afirma o seguinte: "O oculto... é o objetivo princi­pal dos ritos (in Huxley, p. 254). Os culturalistas têm ten­dência a mostrar que, sendo produtos de uma cultura que articula representações, palavras e ações, os ritos fo­ram elaborados e repetidos por várias gerações, mas abrangem muitos campos profanos.

Até mesmo a etimologia consegue apenas esclarecer- nos a respeito de um aspecto fragmentário do rito, ou seja, sua relação à ordem. Segundo E. Benveniste, o rito- da palavra latina, ritus, ordem prescrita - está associa­do a formas gregas como artus (prescrição), amrisko (har­monizar, adaptar), arthmos (elo, junção). Por sua vez, a raiz ar deriva do indo-europeu védico (rta, arta) e remete à ordem do cosmo, à ordem das relações entre os deuses

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e os homens e à ordem dos homens entre si (Benveniste, p. 100).

Antes de especificar nossas asserções pelos comentá­rios dos capítulos seguintes, propomos esta definição inicial dos ritos: quer sejam bastante institucionalizados ou um tanto efervescentes, quer presidam a situações de comum adesão a valores ou tenham lugar como regula­ção de conflitos interpessoais, os ritos devem ser sempre considerados como conjunto de condutas individuais ou coletivas, relativamente codificadas, com um suporte corporal (verbal, gestual, ou de postura), com caráter mais ou menos repetitivo e forte carga simbólica para seus atores e, habitualmente, para suas testemunhas, ba­seadas em uma adesão mental, eventualmente não cons­cientizada, a valores relativos a escolhas sociais julgadas

importantes e cuja eficácia esperada não depende de uma lógica puramente empírica que se esgotaria na ins- trumentalidade técnica do elo causa-efeito. Esta defini­ção não prejulga de modo algum o conteúdo das crenças, a força das adesões, os ritmos de reprodução das condu­tas, ou o grau de coloração misteriosa, fascinante ou ter­rível, dos valores que dão sentido à vida.

Para eliminar as ambigüidades, indicamos algumas precisões quanto a termos que poderiam parecer familia­res ou ter sido sobrecarregados com acepções exclusiva­mente religiosas. Antes de designar a ordem das cerimô­nias e das orações que compõem o serviço religioso, a palavra liturgia (leitourgía, de leitos = público, e érgon = obra) significou, em Atenas, um serviço público oneroso, prestado em favor do povo, pelas classes mais,ricas da cidade. A mesma origem profana é legível na etimologia da palavra cerimônia que foi aplicada aos ritos cívicos solenes antes de se referir às formas exteriores regulares da celebração de um culto religioso. Da mesma forma que a festa, com seus aspectos de jogo, efervescência e consumo, faz parte do registro profano (feiras, festa das

mães, do trabalho) e igualmente do registro religioso, as­sim também o termo rito abrange atos estereotipados, simbólicos e repetitivos do campo secular (rito do espor­te, do falatório, do show-biz) e do campo eclesial.

Na tradição francesa, os termos cerimonial e ritual possuem zonas semânticas vizinhas com fronteiras inde­terminadas e interpenetrações recíprocas - aliás, como os termos rito e ritual - a ponto de se tornarem, muitas vezes, sinônimos. No século XIII, a cerimônia refere-se à solenidade da celebração do culto religioso, sendo que o culto era o conjunto dos ritos; no século XX, qualquer forma de solenidade reconhecida a um acontecimento ou ato importante da vida social é cerimônia. Em 1614, sob o pontificado do papa Paulo V, foi publicado o Ritual Romano, livro litúrgico que contém a ordem e a forma das cerimônias católicas com as orações que devem acompa- nhá-las. No século XX, fora da Igreja, é inútil procurar uma verdadeira distinção, tanto em inglês quanto em francês, entre rito e ritual (cf. Moore, Lane, Higgins, Moingt). Também é difícil opor rito e cerimônia, toman­do como referência o caráter sério dos ritos cerimoniais e a familiaridade dos ritos não cerimoniais! A seriedade cerimonial em Le bourgeois gentilhomme, como demons­tração excessiva de etiqueta, derrapa na familiaridade; por sua vez, o não-cerimonial na maquilagem pode ser levado muito a sério.

Temos de evitar pensar a cerimônia como carência de alguma coisa (a partir da falsa etimologia: careo; a verda­deira é em sânscrito, kar = fazer, môn = a coisa, ou seja, a coisa feita, a coisa sagrada), como formalismo, superfi­cialidade e esclerose, como pura exterioridade que mar­ca uma falta de profundidade, de substância interior e de vida. A vida interior encontra-se tanto na cerimônia, quanto na pura crença. Da mesma forma que, a propósi­to dos deuses, apenas sabemos o que lhes é atribuído pe­los mitos, assim também sua verdadeira existência limi­ta-se, para nós, ao que se diz a seu respeito e ao que se

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manifesta na objetividade da coerimonia, na pseudo-hie- rofania das liturgias. A exterioridade do rito corresponde à exterioridade do sagrado. Ritos e símbolos têm apenas o sentido que lhes é atribuído pelos homens, fabricantes de mitos e ideologias. Não existe precessão necessária de um significado (Deus tem de existir para que tenhamos tal idéia), mas uma possibilidade de criação simultânea do significado e do significante. A exterioridade do repe­titivo na vida social, duplicando a interioridade de uma vivência, enuncia em linguagem gestual, de postura ou verbal, a mesma coisa que o mito como narração a ser decriptada ou que a ideologia em termos abstratos.

Pelo fato de que ele se inscreve em um sistema de comunicação hierarquizado, o ritual - quer seja religio­so, político ou cotidiano - assume quase sempre o caráter de

um comportamento cerimonial e, até mesmo, cerimo-nioso Se não devemos confundir código com cerimônia, nem tampouco o rito com a parte cerimonial de certos códigos, também não devemos afirmar que todos os có­digos culturais - ética, etiqueta, estética... - têm a ver

com a ritualização.No entanto, é verdade que um excesso constante de respeito pela etiqueta pode ser qualificado de ritualismo. Nos Estados Unidos, na classe média baixa, o respeito pelos preceitos morais pode reprimir o esforço no senti­do de uma promoção social. Os perigos da luta social incessante e seus riscos de fracasso explicariam que o in­divíduo reduza suas aspirações e fique demasiado agar­rado aos costumes e rotinas. No entanto, parece-nos que o ritualismo cerimonioso não é o caráter próprio das so­ciedades nas quais a posição social do indivíduo depen­de de seu sucesso; aliás, isso também é legível nas socie­dades tradicionais baseadas no estatuto, como se obser­va nos ritos da saudação demorada e do acolhimento na África. O respeito pelas distâncias e o ritualismo consti­tuem tanto a conduta do neurótico obsessivo ou do jo­vem africano em relação às gerações mais velhas, quanto

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a do burocrata ou do empregado conformista zeloso, na medida em que todos evitam a inquietação e as ameaças de uma frustração. Como teremos ocasião de assinalar, o ritualismo animal visa também o evitamento de confli- tos.

Diversidade das taxinomias

Talvez menos imprecisas do que as definições de ter­mos vizinhos que acabamos de apresentar, as classifica­ções variam, no entanto, de autor para autor, não abran­gem o conjunto do campo ritual e dependem das pers­pectivas adotadas: etológica, evolucionista, psicossocial, religiosa, etc. Para examinar a Índia, C. Malamoud esta­belece a distinção entre rito solene e rito doméstico (in Higgins). Em outros contextos, a partir do critério de fre­qüência temporal, alguns etnólogos preferiram a dicoto- mia: ritos da vida cotidiana (caça, pesca, cultura, consu­mo) e ritos comemorativos com referência a modelos mi­tológicos ou a tempos fortes da história do grupo. O psi­cólogo colocará em evidência os gradientes da submis­são passiva à participação intensa a partir de critérios de adesão vivenciada.

Em geral, as dicotomias são bem aceitas: religio­so/mágico, positivo/negativo, manual/verbal, ocasio­nal/periódico. Para a escola sociológica francesa, o rito religioso pressupõe a intervenção de um poder sagrado solicitado como tal, enquanto o rito mágico age de ma­neira automática pelo controle exercido por um ator so­bre uma certa força imanente a um objeto ou palavra. Ao se basear na relação ao sagrado, Mauss estabelece a dis­tinção entre os ritos positivos de ação participante, tais como oração, oferenda, sacrifício, e os ritos negativos, tais como tabus sexuais e alimentares ou a ascese que proíbem o contato com um poder perigoso. Durkheim acrescenta os ritos piaculares de expiação e purificação

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que visam a libertação de uma impureza contagiosa - por exemplo, no momento de um luto - pela água ou fogo, ou pela expulsão de um bode expiatório encarrega­do de transportar as culpas do grupo.

Ao tomar como critério a dialética indivíduo/grupo e tendo focalizado as passagens culturais no espaço e tempo que imitam os ritmos de crescimento e decrésci­mo presentes na natureza, A. Van Gennep discerne três fases sucessivas nesses ritos de passagem que marcam os tempos fortes da vida individual e coletiva: separação, marginalização e reintegração.

Manual ou verbal, o rito mantém uma certa relação Com a ordem; assim, podemos estabelecer a distinção en­tre os ritos de inversão (incesto régio, transgressão das normas permitidas temporariamente) e os ritos de con- versão para transcender a desordem ou dedicar um fiel aos poderes sagrados. Turner opõe os ritos de aflição no momento em que acontece uma desgraça aos ritos life- crisis que marcam, com regularidade, as etapas da vida; no entanto, entre estes últimos, ainda é possível especifi­car, segundo sua freqüência temporal, os ritos da vida cotidiana e os ritos comemorativos.

Determinados ritos de forma relativamente seme­lhantes podem visar diferentes finalidades: demanda de chuva, de fecundidade; interrogação do transcendente na adivinhação; ação de graças após um nascimento, uma boa safra, uma vitória; dessacralização para tomar profano um objeto de culto; comemoração (sigi entre os dogon); vingança (bugush entre os diola); propiciação (oferenda de primícias); regeneração (condenação à morte dos reis bantos); etc.

Da mesma forma que nem sempre é possível dis­cernir as fronteiras entre sagrado e profano, assim tam­bém não é fácil especificar se tal rito é religioso ou secu­lar. A investidura régia dos capetos (rito primordialmen­te político) comporta um desfile-parada (rito secular),

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uma sagração pela autoridade eclesiástica (ação religio­sa) com aclamação dos grandes senhores do reino (ação civil) que, além disso, fornece o poder (mágico) de curar as escrófulas.

Uma solução artificial e pouco satisfatória para con­seguir uma classificação sistemática consistiria em colo­car o dado em um sistema de várias entradas e, por exemplo, compor a recorrência ou ocorrência singular, por um lado, com a sociedade e, por outro, com o indiví­duo. Aos ritos periódicos que fazem referência ao calen­dário astronômico ou baseados em um cômputo biológi­co, opor-se-iam os ritos ocasionais associados aos avata- res do destino cuja ordem não é fixada antecipadamente e que se realizam em determinadas circunstâncias coleti­vas (seca, epidemia, guerra...) ou individuais (doença,

-nascimento de gêmeos, esterilidade...). O rito periódico enfrenta uma crise previsível ou celebra algumas expec­tativas satisfeitas; quanto ao rito ocasional, atende, pon­tualmente, a eventualidades funestas ou a surpresas agradáveis. O rito coletivo faz apelo a atores individuais; por sua vez, o rito individual é realizado por uma pessoa que utiliza uma cenografia coletiva.

Como estamos vendo, os critérios de base das classi­ficações têm a ver com realidades bastante diferentes, al­gumas das quais poderão ser prescritas em um mesmo rito. Assim, um rito pode ser classificado em uma ou ou­tra das categorias conforme nossa atenção fixa este ou aquele aspecto: participantes, objetivos pretendidos, modo de ação, etc.

A propósito dos ritos seculares, os dados coletados até o presente ainda são bastante escassos e demasiado fragmentários para que tenhamos a pretensão de catalo­gá-los, fazer a triagem dos pontos comuns e tipologizá- los de maneira exaustiva. Já que se trata, aqui, de ritos ditos profanos, devemos indicar com precisão o que os distingue dos ritos religiosos. No entanto, o qualificativo

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de profano não significa que tais ritos não religiosos não mantenham relações com o que se poderia entender como o sagrado moderno.

O sagrado e a modernidade

Em outro contexto, já mostramos o quanto era lábil a distinção sagrado-profano, frágil o ideal-tipo do sagrado e inútil a ligação do rito ao mito se admitirmos que qual­quer crença pode servir de referente (cf. Rivière, Piette et ai). Aqui, repetiremos somente que existem formas de sacralidade fora da religião, nas quais se inscrevem vá­rios de nossos ritos cotidianos.

/

O campo do sagrado transborda bastante o campo -do religioso, a fortiori institucionalizado, sem abranger toda a experiência social. A religiosidade tende, assim, a passar por um processo de deslocamento em um mundo secularizado e, ao mesmo tempo, de degradação como fenômeno residual de uma emotividade que procura se agarrar a um absoluto na prática das religiões seculares e políticas, e não a um absoluto puramente ideologizado- como entre os românticos ou em Heidegger. A essa for­ça fascinante e terrificante chamada por R. Otto de sagra­do, os povos atribuem diversos conteúdos: gênios, Deus, Augusto, valores metafísicos, poderes superiores mitifi­cados pertencentes ao domínio do indizível, inatingível e informulável, do imperativo categórico, do inquestio­nável instituído, do arbitrário postulado, mas, na reali­dade, referindo ao invisível as razões de ordem social e cósmica. Não passa de um postulado inverificável o fato de que o alhures ou o além forneça ao homem suas de­terminações. O sagrado religioso, assim como ò sagrado político ou social, está além de nosso controle e poder; é o mito ou a segurança íntima (o que significa a mesma coisa) de uma totalidade que assumiria o encargo daqui­lo que não sou responsável. Uma forma de teorizar a im­

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potência! Somos nós que, através de uma exterioridade, atribuímos sentido ao sagrado: parece que, através de sua expressão verbal e ritualização, as hierofanias - que eram teofanias - tornam-se cada vez mais cratofanias.

Em uma modernidade na qual as atividades são cada vez menos orientadas pela religião, alguns setores da vida social desenvolvem formas de fascínio em relação a determinados objetos, ideais, personagens ou fenôme­nos, considerados mais ou menos misteriosos porque se situam além dos desempenhos habituais, assim como das reações de temor, eventualmente traduzido ou es- conjurado por ritos, em relação aos riscos que poderia' comportar o excesso de proximidade com o domínio da autoridade imperativa e preservada (o poder), do legíti­mo indubitável (a ciência), da força insuspeita (o disco

-voador), do funcionamento lógico extraordinário (o computador), ou de problemas que nos atormentam (sexo e morte).

Na modernidade, devemos ler um processo de ideo- logização que incorpora mitos: o mito da ciência substi­tuto da revelação; o mito da transcendência dos poderes; o mito do indivíduo como exaltação reacional e recicla­gem de uma subjetividade ameaçada pela homogeneiza­ção da vida social; o mito do sexo como libertador de uma libido que, durante muito tempo, ficou esmagada pelas exigências do superego; o mito do trabalho ao qual aderimos como se fosse um código e um estatuto social; o mito da mudança perpétua, paródia da revolução; o mito da imortalidade que dá respaldo às experiências de criogenização dos cadáveres...

Um grande número de tais mitos fazem apelo a um culto, manifestado por atitudes ritualizadas e constituí­do pelo conjunto dos sinais de deferência em relação às forças, poderes e valores que, supostamente, são supe­riores e transcendentes ao indivíduo. Os objetos, símbo­los, comportamentos e idéias que fazem parte dos ritos

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profanos, são tão inquestionáveis quanto os dos ritos re­ligiosos e podem ter também um forte impacto afetivo e mobilizador.

Plano da obra

Com o objetivo de apreender esse campo relativa­mente novo, consagraremos os dois primeiros capítulos a uma teorização global. O primeiro comportará uma análise crítica dos elementos de literatura sociológica e antropológica existentes sobre a questão; o segundo apresentará nossas teses concernentes à estrutura, fun­ção e dinamogenia do rito profano. É evidente que al­guns leitores não acostumados à linguagem técnica de um pensamento que, no entanto, procuramos tornar cla- ro, poderiam ficar desencorajados com um discurso, por vezes, árduo. Nosso conselho é que se limitem a passar os olhos por esses dois primeiros capítulos e comecem por ler, segundo seus interesses (concerto de rap, partida de handebol, ritos do trabalho) um dos capítulos seguin­tes que são mais descritivos; com efeito, cada capítulo pode ser lido isoladamente, embora seu tratamento este­ja em relação com idéias-força esboçadas no início. Os capítulos III, IV e V analisam o papel dos ritos no período de formação do indivíduo jovem: vida infantil; iniciações; exibições no plano da música e vestuário, assim como no plano gestual, gráfico e acrobático nos grupos juvenis. Nos capítulos VI, VII e VIII, o corpo é tomado como ob­jeto e suporte do rito a partir de uma apresentação que obedece a determinadas regras (cumprimentos, cortesia, dança, bod.y-a.rt), no esporte (Jogos Olímpicos, futebol, artes marciais) e no cerimonial da alimentação (aperiti­vo, maneira de estar à mesa, banquete de gala,fast-food). Quanto aos últimos capítulos, IX e X, circunscrevem a ritualidade na vida de trabalho (aprendizagens, cultura da empresa) e no lazer (loto, viagens, teatro...).

Ao longo das análises concretas, esforçar-nos-emos em descrever com uma precisão de antropólogo os pro­cessos rituais, e glosar como sociólogo sobre o contexto socioeconômico, sua gênese histórica, suas significações simbólicas e eventuais analogias religiosas. Insistimos sobre o fato de que nossa acepção da palavra rito situa-se a meio caminho entre uma concepção estreita ou pesada (?) habitual em sociologia ou etnologia religiosa, e uma ex­tensão demasiado grande que a transformaria em termo equivalente a usos; costumes e tradições no sentido em que estes comportam ações repetitivas e hábitos adquiri­dos.

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Capítulo IA emancipação teórica do rito dessacralizado

PRIMEIRAS CONTRIBUIÇÕES

Concebido durante séculos, exclusivamente, como elemento de uma religião da mesma forma que as cren­ças e a organização, o rito (liturgia, culto, celebração, ofí­cios, sacramentos) acabou adquirindo, há pouco tempo, uma considerável independência de objeto social. Na França, é sobretudo com Jean Cazeneuve que, em 1958, se torna o objeto de um tratamento consistente de 500 páginas. A enorme tese Les rites et la condition humaine foi condensada, em 1971, em uma Sociologie du rite que acen­tua a parte das problemáticas teóricas, reduzindo o apa­relho acadêmico dos exemplos convincentes tirados da etnologia. Pureza e sacralidade constituem o pano de fundo da interpretação.

Com certeza, no final do século XIX, a mitologia com Max Müller tinha suscitado numerosas pesquisas. Nessa época, o autor de Rameau d'or, James C. Frazer - assim como a maior parte dos especialistas das religiões arcai­cas - pensava que os mitos e ritos se refratavam mutua-

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mente e representavam um estágio do pensamento ante­rior ao saber científico. Antes que Lévy-Bruhl tivesse afirmado que a mentalidade primitiva era regida pela lei da participação, J. Frazer pensava os ritos mágicos ba­seados em leis de similitude: o semelhante faz apelo ou engendra o semelhante; e de contágio: dois objetos em relação de contato ou contigüidade encontram-se em in­teração.

Apenas no início deste século é que, a reboque, a ri- tologia começou a ter peso científico: por um lado, com a acumulação de dados empreendida pelos folcloristas europeus, entre os quais Arnold Van Gennep; por outro, com a organização explicativa de materiais exóticos por sociólogos da Escola Francesa - em particular, E. Durk­heim, M. Mauss e L. Lévy-Bruhl.

Rito de passagem e linha de diferença estatutária

Enquanto essa Escola durkheimiana (incluindo H. Hubert e R. Hertz) analisava com minúcia algumas prá­ticas rituais (orações, sacrifícios, ritos funerários, práti­cas mágicas), associando-as às representações que as contextualizam, o folclorista Van Gennep, independen­temente das autoridades universitárias, identificava de­terminados ritos de passagem (entre outros, nascimento, iniciação, casamento, morte) que, em geral, comporta­vam três fases:

1. Separação e ruptura em relação ao mundo profa­no.

2. Marginalização em um espaço sagrado e formação para uma nova maneira de ser.

3. Ressurreição simbólica e agregação solene na co­munidade, com um estatuto superior.

Após uma morte simbólica que marca uma ruptura em relação ao passado (infância, ignorância), os noviços

- submetidos a inúmeros interditos, em especial, sexuais e alimentares - são orientados por instrutores', antigos iniciados. Durante o período de reclusão, recebem a re­velação de um saber (mitos, linguagem, costumes) sobre a sociedade que os acolhe. Adquirem novos esquemas de pensamento e comportamento através de uma apren­dizagem dos ritos, provas de coragem e habilidade que os condicionam à resistência e observância de um código moral rigoroso. Muitas vezes, a circuncisão tem lugar durante tal estágio. A mudança de estatuto se manifesta- no momento de grandes festas nas quais participam todos os membros da sociedade circundante - por um novo nome, nova linguagem, escarificações, adereços, nova indumentária que são peculiares aos novos inicia­dos. Neste aspecto, Van Gennep associa o funcionamen­to dos ritos à sua utilidade social. O rito parece eficaz não pelo que exprime e significa, mas porque ele próprio opera uma mudança de forma real e não simbólica.

Esses dados já passaram ao domínio do patrimônio corrente ou, pelo menos, encontram-se entre as banali­dades da etnologia. No entanto, convinha lembrá-los na medida em que vários autores têm tomado o esquema da iniciação:

1. Para propor, a seu respeito, outras interpretações - por exemplo, psicanalíticas em Geza Roheim, Bruno Bet- telheim e Theodor Reik.

2. Para modular suas fases em Victor Tumer.

3. Para sublinhar com Pierre Bourdieu a importância da passagem-limite.

4. Para tentar reduzir a esse molde a maior parte dos ritos da vida, da infância à morte, passando pela adoles­cência (examinaremos esses tópicos em dois capítulos).

5. Para mostrar que a sacralidade é apenas uma no­ção secundária nesse tipo de interpretação dos ritos, adaptável aos contextos profanos, tais como os dos mar­ginais, bandos de adolescentes ou entronizações régias.

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Como exemplo de fecundidade teórica desse modelo de passagem, citemos, sem respeitar rigorosamente a cronologia, um autor contemporâneo que renovou a re­flexão sobre o tema. Com perspicácia, Pierre Bourdieu propõe, assim, a hipótese estimulante que consiste em interpretar os ritos de passagem como atos de institui- ção."Falar de rito de instituição é indicar que todo rito tende a consagrar ou legitimar - isto é, a não reconhecer como arbitrário e reconhecer como legítimo, natural - um limite arbitrário; ou o que vem a dar no mesmo, a ope­rar solenemente, isto é, de forma lícita e extraordinária, uma transgressão dos limites da ordem social e da or­dem mental que deverão ser salvaguardados a qualquer preço - como a distinção entre os sexos quando se trata dos rituais de casamento. Ao marcar com solenidade a

mental da ordem social, o rito atrai a atenção do obser­vador para a passagem (daí, a expressão rito de passa­gem) quando, afinal, o importante é a linha" (Bourdieu, p. 58). Linha entre um antes e um depois, entre dois es­tatutos, mas também linha de diferença entre dois gru­pos preexistentes. O rito institui no sentido em que san­ciona e santifica uma ordem estabelecida. Ao notificar alguém sobre seu novo papel, o ato solene de investidura (rito de passagem) produz o que designa ("magia perfor- mática"), tem um efeito de confirmação estatutária e en­coraja o promovido a viver segundo as expectativas so­ciais ligadas à sua posição.

Na iniciação, Durkheim vê, sobretudo, uma prova de resistência física pela qual o homem controla seu ser na­tural em proveito de seu ser social porque a sociedade só poderia funcionar através da oposição aos desejos dos indivíduos. No entanto, trata-se apenas de um elemento secundário em uma reflexão mais geral que ocupa toda a terceira parte da obra Les formes élémentaires de la vie religieuse.

Funcionalidade principal dos ritos

Ao definir a religião pelo sobrenatural e misterioso, Durkheim considera os ritos como "regras de conduta que prescrevem como o homem deve se comportar em relação às coisas sagradas" (Durkheim, p. 56). Para ele, esse sagrado, ambivalentemente puro e impuro, não passaria de uma hipóstase da força coletiva do corpo so­cial; por conseguinte, o rito constituiria uma expressão simbólica dos valores fundamentais que unificam os membros de uma sociedade. Ao fazer transbordar o reli­gioso pela noção mais ampla de sagrado e ao indicar a sociedade como fonte da sacralidade, Durkheim tende, conscientemente ou não, para uma forma de dessacrali- zação dos ritos já que acaba por reconhecê-los como for­ma geral de expressão da sociedade e da cultura. Ao pro­ceder desse modo, explora as intuições de seu mestre Fustel de Coulanges.

Com efeito, o autor de La cité antique (1864) tentou explicar o surgimento das primeiras sociedades huma­nas (em particular, da Grécia e Roma) e sua evolução, imaginando que as crenças religiosas e os ritos que cons­tituíam suas manifestações (e não somente os pactos, a utilização da força ou as idéias filosóficas) tinham contri­buído para engendrar elos bastante fortes entre os ho­mens. Segundo este historiador, os ritos funcionavam como um sistema. Graças a determinados ritos, os ho­mens se reuniam, comemoravam seu passado comum, mantinham os elos estabelecidos entre si; outros permi- tiam-lhes regenerar os grupos pela incorporação dos jo­vens que tomavam o lugar deixado vago pelos defuntos; enfim, outros visavam a expiação das faltas cometidas na prática ritual já que estas poderiam torná-los inefica­zes. Fustel de Coulanges pensava que o caráter normati­vo dos ritos tinha sido forjado após a verificação de sua eficácia; assim, a posteriori, os ritos passaram a ser sua condição necessária.

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Segundo o parecer de Durkheim, tal eficácia estaria relacionada/ sobretudo, com a submissão à norma ou preceito ritual que liga o indivíduo à coletividade. E a socialidade do rito que constitui sua própria eficácia. Por outras palavras, a execução dos ritos é um imperativo que não é possível ser evitado porque, periodicamente, eles recriam o ser moral da sociedade do qual dependem todos os membros. Como fez Mauss em sua obra Théorie de la magie, datada de 1903, podemos estabelecer uma di­ferença entre ritos negativos (tabus e proibições) e posi­tivos. Para obter a efervescência coletiva nesse segundo tipo de rito - como o intichiuma dos aborígenes australia­nos que lhe serve de exemplo - é necessário passar pelos primeiros (respeito pelas proibições, ascese dolorosa) que são uma escola de formação e têm como objetivo tra­çar a separação entre o profano e o sagrado. Por parte dos indivíduos, a exaltação das forças humanas exige perpétuos sacrifícios. É ao violentar, incessantemente, nossos apetites naturais que conseguimos nos superar. Elemento essencial de toda religião, o ascetismo é tam­bém uma "parte integrante de toda cultura humana" (Durkheim, p. 432).

Durante muito tempo monopolizado pelos liturgis- tas cristãos, o pensamento sobre o rito se laicizava, por um lado, aplicando-se a qualquer religião, ao pseudoto- temismo primitivo como à magia; por outro, sendo rela­cionado à sociedade produtora de ritos e à cultura da qual o rito é, ao mesmo tempo, produto, instrumento, veículo e símbolo. Ao mostrar que a religião é a forma na qual a sociedade se contempla a si mesma e que o culto é a maneira pela qual a sociedade se constitui como tal, Durkheim incita a uma visão profana do rito.

Ainda seria necessário reconhecer o seguinte: é a propósito de religião que ele trata dos rituais, como co­rolário operatório e sensível das crenças. Para ele, como mais tarde para Lévy-Strauss, as operações materiais do rito são a revelação das operações mentais. Além do pró­

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prio contágio emotivo do rito e da participação social, é necessário ler o estabelecimento de relações racionais por meio de símbolos.

"Assim, observa J. Maisonneuve, oscilamos entre um certo racionalismo e uma espécie de afetivismo social que corresponde à dicotomia entre pensamento e ação; ora, o ritual tem a ver, evidentemente, com a ação - soli­citada e regulada por ele - que satisfaz a necessidades, talvez, universais,do que quaisquer outras. Para Durk­heim, livre pensador espiritualista, se 'o princípio sagra- do'é simplesmente a sociedade hipostasiada e transfigu­rada, a vida ritual deve poder ser interpretada em termos lai­cos e sociais'-o que confere aos ritos, sob a diversidade de seus aspectos, uma forte unidade no plano de seu objeto latente" (Maisonneuve, p. 98).

Reconheçamos a Durkheim o mérito de ter laicizado o rito, ao socializá-lo. Apesar disso, para Lévi-Strauss, a teoria durkheimiana dos ritos parece ser vulnerável no sentido em que Durkheim faz derivar da afetividade es­ses fenômenos sociais que são os ritos: "Sua teoria do totemismo parte da necessidade e termina em um recur­so ao sentimento" (Lévi-Strauss, Totémisme..., p. 162). Por sua vez, a teoria da origem coletiva do sagrado "apóia-se em uma petição de princípio: não são as emoções atuais, sentidas no momento das reuniões e cerimônias, que en­gendram ou perpetuam os ritos, mas a atividade ritual que suscita as emoções. Em vez da idéia religiosa ter sur­gido 'de meios sociais efervescentes e da própria eferves­cência' (Durkheim), é pressuposta por esses meios" • (Lévi-Strauss, ibid., p. 102-103).

Uma crítica bastante semelhante é feita a Malinowski que explica os ritos e práticas mágicas como redutores de riscos no caso de empreendimentos incertos. No mo­mento em que Freud tira o rito de seu contexto puramen­te sociológico para construir sua teoria psicológica do ri­tual da neurose obsessiva, e de seu contexto religioso

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para transformar o tabu em uma constante de origem so­cial e familiar e o elemento de uma instância capital da personalidade representada pelo superego, Malinowski capta-o como uma instituição social funcional em sua obra Les Argonautes du Pacifique, colocando a ênfase na significação da simbólica e na eficácia empírica ou extra- empírica esperada da realização dos ritos segundo re­gras invariáveis. O papel que Freud atribui à libido nas crenças e práticas religiosas é desempenhado, segundo Malinowski, pela inteligência humana; quanto a Berg- son, é esta, sobretudo, que toma perigosas as carências do instinto no homem, tendo como paliativo o recurso aos hábitos, costumes e ritos.

A propósito dos rituais trobriandeses, Malinowski insiste sobre os mecanismos emocionais em ação nos ri- tos, sendo que estes são efetuados em vista da realização de desejos poderosos e irrealizáveis.

O rito seria redutor de risco no caso de empreendi­mentos incertos. No entanto, perguntamo-nos se qual­quer rito corresponde a uma expectativa emotiva, se qualquer empreendimento não comporta o risco de fra­cassar e por que motivo determinadas sociedades não se defendem com ritos contra riscos certos. Pelo contrário, Radcliffe-Brown, discípulo de Malinowski, chega até a pensar que o rito tem como efeito psicológico criar um sentimento de insegurança e perigo, em vez de tranqüi­lizar tal sentimento.

No entanto, a perspectiva interpretativa deste autor continua sendo também funcional. Ao sublinhar deter­minadas funções do rito (instituir, manter, reforçar, dar coerência, diferenciar, transformar, reativar, regenerar), Radcliffe-Brown mostra que a atitude ritual é, essencial­mente, de respeito em relação a centros de importantes interesses comuns que unem as pessoas de uma comuni­dade ou representam simbolicamente tais objetos (Rad- cliffe-Brown, p. 215).

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Para este autor, como para Loisy, o rito é o elemento mais consistente e duradouro de uma religião. Como para Robertson Smith, rito e prática tradicional consti­tuem o essencial das religiões antigas que não têm um sistema firme e organizado de crenças (Radcliffe-Brown, p. 247-249).

Na escola de etnografia francesa de M. Griaule, os ritos remetem a uma coisa diferente deles mesmos: os mitos e a organização social. De uma outra maneira, Evans-Pritchard, Malinowski e Radcliffe-Brown, mos­tram muito interesse pelos ritos mágicos e religiosos, so­bretudo para pesquisar os processos mentais em questão nas crenças associadas aos ritos, e não diretamente pelo conteúdo mítico que, supostamente, justificaria tal rito.

Em Caillois, Eliade e Cazeneuve, o rito permanece inserido em uma perspectiva religiosa e mágica. No en­tanto, a laicização do saber, que é também separação de um fruto maduro de sua origem eclesial, acarreta uma espécie de libertação relativamente ao que tinha sido considerado como o único referente do rito e que corres­pondia à nossa tendência a personificar os valores meta­físicos, atribuindo-os a um ser único: Deus, o sagrado ab­soluto e puro, ou o santo em contato com ele, ou a força sobrenatural. Pouco a pouco, apercebemo-nos de que existem ritos não religiosos que tomam como referente um valor abstrato que lhes dá sentido e autoridade, sem os justificar por algum mito fundador representado em imagens.

ESTRUTURAS DA DRAMATURGIA RITUAL

No início do século, produziu-se uma focalização so­bre as funções psicológicas e sociais do rito (manutenção da ordem, aumento das energias, derivação das pulsões) que correspondia a uma fase de constituição das ciências do homem e a uma primeira decriptação da finalidade

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dos comportamentos. No momento em que uma corren­te dessas ciências mostra interesse pelas situações em que diferentes papéis são desempenhados e pelas intera­ções entre atores, o indivíduo é apreendido aí como parte do rito: seu criador, participante e espectador. Sob um ângulo psicossocial, E. Goffman empenha-se, deste modo, em dissecar os efeitos da dramatização na encena­ção da vida cotidiana e os ritos de interação.

A encenação do cotidiano, segundo Goffman

Todas as obras desse representante do interacionis- mo simbólico, entomologista do cotidiano, fazem parte das teorias da ação - de uma ação apreendida ao micros-

_copio. Na criança, a interação entre indivíduos é bastante espontânea; em seguida, elaboram-se rapidamente pat- terns ou modelos culturais que fornecem modos de agir utilizados nos ritos, os quais fazem apelo à deferência, componente simbólico da atividade humana. A obriga­ção de boa apresentação observa-se pela postura, vestuá­rio, maneira de andar, outras tantas rotinas cotidianas tí­picas que não são exibições insignificantes, mas formas de exprimir determinados estatutos que, em cada intera­ção, constituem o objeto de negociação. Fazer boa figura, conservar a distância em relação ao papel, não perder a linha são comportamentos que estão inscritos em uma ordem expressiva ritual.

Como método exemplar, Goffman propõe a análise dramatúrgica que associa situações humanas definidas às regras emitidas pelas estruturas sociais. Desde a sua primeira obra sobre La mise en scène de la vie quotidienne, este autor utiliza sistematicamente a analogia e o voca­bulário do teatro à maneira italiana como utensílio de descrição do cotidiano. A partir da analogia da situação e da encenação são extraídos paradigmas com alcance metodológico e teórico. Sua análise incide sobre o traba­

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lho do comediante no palco, diferentemente de Turner que fica preocupado com a perspectiva do autor ou dire­tor que dá as regras do espetáculo.

As condutas ritualizadas constituem, com toda a evi­dência, máscaras simbólicas. Sua significação intrínseca se integra em um léxico cultural que comporta uma par­te de mentira correspondendo à preocupação da boa apresentação de si em uma vida teatralizada. Uma re­presentação é montada aí entre atores que desempe­nham uma parte ou um papel. A mentira social é utiliza­da como maneira de preservar seu ego. Por exemplo, no pai que repreende o filho em decorrência de uma falta no momento em que transborda de afeição por ele, o papel- enquanto forma de mentira social e porque visa dar uma impressão sobre o interatuante - mostra-se clara­mente distante do ego profundo. Nas instituições do tipo. carceral (hospital, prisão, caserna), pesa uma ameaça so­bre o estatuto; assim, ao ritualizarem sua existência de reclusos, os indivíduos tentam preservar um resto de dignidade humana.

"Ao definir o social role como a atualização de direi­tos e deveres ligados a determinado estatuto, podemos dizer que um social role recobre um ou vários papéis (parts) e que o ator pode apresentar cada um desses pa­péis em toda uma série de ocasiões, para públicos do mesmo tipo ou então para um único público constituído pelas mesmas pessoas" (Goffman, La mise en scène..., 1.1, p. 24). Alguns papéis sociais como os de mordomo, ecle­siástico, comediante, exigem que o ator represente a maior parte do tempo. Em resumo, o controle das regras e do enquadramento, mais do que a consciência do ator, permite-lhe causar maior impressão aos outros no de­senrolar da interação. Existe, neste caso, duplicidade a partir de um fundo de consenso, isto é, o autor desdobra- se em um "ego" representado, diferente de seu ego au­têntico, com o objetivo de conservar sua dignidade e não perder a linha.

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Com o desenvolvimento da semiótica, outras pers­pectivas de interpretação vão se impor: a intencionalida- de, a significação, a representação mental e a simbólica que, sobretudo, são percebidas no rito entendido como linguagem com repercussão afetiva e cognitiva. Segun­do E. Leach, ao desenvolver o pensamento de R. Jakob- son, o princípio de base de qualquer sistema de signifi­cação verbal ou não verbal no rito seria a transformação de metonímias em metáforas e de metáforas em metoní- mias.

No meio desse percurso histórico e reflexivo sobre o rito, já foram colocados em evidência quatro pólos im­portantes de estruturação:

1.0 referente: divindade para os teólogos, sociedade para Durkheim e Van Gennep, alter ego para Goffman.

2. O efeito consciente ou inconsciente corresponden­do ao que os autores apreendem como funções do rito.

3. O ator desempenhando um papel específico e hie- rarquizado em um palco teatral, perspectiva privilegia­da de Goffman e de Turner.

4. O signo e o símbolo por meio dos quais se expri­mem mensagens decriptadas pela semiótica.

Por sua vez, a descrição etnológica insiste sobre o modo de funcionamento da ritualidade sob o ângulo de seus diversos desenrolamentos temporais, de seus tipos e variantes culturais, enquanto uma corrente dinamista em sociologia mostra seu interesse, não só pela manu­tenção do rito como poder de modelagem sociocultural das consciências, até mesmo políticas, mas também pelo "processo" ou seqüência ritual, isto é, pelo trabalho rea­lizado pelo rito no espaço que produz e no tempo que vai desdobrando, e pelos processos de surgimento, utiliza­ção estratégica, desvio, sobrevivência, metamorfose, usura e desaparecimento dos ritos, embora essa ênfase colocada no dinamismo dos ritos ainda seja pouco re­presentada no plano da pesquisa.

Nos anos 60, M. Gluckman, V.W. Tumer e T.O. Bei- delman fazem explodir a abordagem funcionalista, in­sistindo sobre a canalização da afetividade pelo rito, e ampliam o campo explicativo. O mesmo se passa com E. Leach que coloca em evidência o aspecto "conduta de comunicação" dos ritos, considerados por ele como sis­temas de sinalização a partir de códigos definidos sob o ponto de vista cultural.

A revelação feita por Max Gluckman da existência de ritos de rebelião e desarmonia não atinge, na realidade, a idéia durkheimiana de consenso. Mostra somente que, em qualquer sociedade, existem fases de transição e transformação, e que o rito é uma forma de digerir a des- continuidade do tecido social, assim como as desconti- nuidades nas biografias dos membros de uma sociedade nos ritos de passagem. Os ritos de rebelião bastante pas- - sageiros e institucionalizados aparecem como operações da sociedade sobre ela própria e seus membros. Aliás, a sociedade se mitifica a si mesma através desses ritos de rebelião ou de jogo da desordem para fazer graça, embo­ra tais ritos possam comportar germes de indetermina- ção se, em certas circunstâncias, a desordem fictícia esti­ver em condições de impulsionar uma desordem real.

Processo e drama rituais, segundo Turner

Ao desenvolver uma idéia de seu mestre Gluckman, Turner formula a hipótese de que a manutenção de uma ordem pressupõe reticências, ou antes momentos de sus­pensão durante os quais se desenrola um drama social que tem como desfecho remanejamentos mais ou menos radicais. Passagens e rebeliões devem ser situadas na li- minaridade, tema recorrente da obra The Ritual Process. Para Turner, a sociedade não é uma coisa ou estado, mas um processo com fase estruturada e fase de antiestrutura (a da communitas). A generalização é ambiciosa na medi­

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da em que o paradigma dos ritos de passagem é trans­posto para o estudo de todos os movimentos sociais que implicam uma crise: a teoria da liminaridade atinge não só o social, mas também os acontecimentos psicológicos que afetam os indivíduos.

O ritual representa um drama para resolver uma cri­se e constitui, assim, um mecanismo de resposta social às mudanças e conflitos. O desempenho cultural consiste em administrar as indeterminações de uma situação por determinações parciais extraídas dos ritos, assim como das crenças, lendas e anedotas que servem de enquadra­mento no sentido de Goffman (Frame analysis), para identificar uma situação e indicar a maneira de vivê-la. A idéia que guia a reflexão é aquela segundo a qual cada coletividade integra, progressivamente, sua própria ex- periência, exprimindo-a em um drama social repre- sentado. Para ser plausível, a crise deve não somente ser definida de uma forma objetiva, isto é, narrada, mas vi­vida emocionalmente. Ao utilizar um jogo de transferên­cia entre a ficção e a realidade, a forma teatral aparece como uma expressão original das crises e o rito teatrali- zado investe essa expressão com um suplemento de emoção por um investimento pessoal. Na obra From Ri­tual tô Theatre, Turner junta-se a C. Geertz quando perce­be a ação ritual "como uma história que um grupo se narra a si mesmo" (Turnér, From Ritual..., p. 104).

Sendo a passagem vivida como drama e a vida limi­nar como jogo, as teorias do ritual entendido como de­sempenho associam, daí em diante, o rito ao teatro e ao jogo. O rito permite viver o drama social e representar o jogo social. Evidentemente, o termo "drama" apresenta necessariamente ambigüidades; no entanto, Turner é le­vado a tratar os ritos como se fossem ações dramáticas pelas seguintes características:

1. As semelhanças entre o rito nas sociedades não in­dustriais e o teatro nas sociedades complexas.

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2. Em ambos, a existência de acontecimentos e pro­cessos liminares.

3. Sua função comum de metacomentário social.

Reguladas segundo o modo dramático, as mudanças da vida social seguem uma ordem regular de sucessão, constituída por quatro fases: ruptura; crise; ação reorien- tada; conclusão. Ou seja:

1. Break: ruptura em relação a uma ordem simbólica que serve de referência.

2. Crisis: descarga emotiva diante de uma situação de questionamento da coesão social.

3. Redress: intervenção de terceira pessoa para resta­belecer um consenso e negociação entre opositores.

4. Reintegration: conclusão da crise por reconciliação.e restauração de uma situação normalizada, reviravolta de situação, nova ordem, ou reconhecimento de um cis­ma.

A fase redress ou de ação reorientada, que comporta uma concentração das intenções e uma compactação dos objetivos para levar ao processo final, mostra de forma particular que o ritual é processo, associado à vida social. Imitação dessa terceira fase, do desejo, da possibilidade, da hipótese e das antecipações sobre a existência ulterior, o teatro - apesar das aparências - não é imitação do con­junto do drama social. Assim como o teatro, o rito forne­ce uma representação do drama social segundo determi­nadas regras e uma sucessão ordenada de seqüências. Os intervenientes ou atores submersos pelo turbilhão da tensão entre a realidade e a ficção (nas iniciações, inter­venção do monstruoso, bizarro ou fantástico), entre o ne­cessário e o contingente, escapam disso renascidos, rein­tegrados, transformados e dispostos a conduzirem sua vida social em outro sentido, depois de terem aprendido, na fase de liminaridade, que ignoravam o que deveriam conhecer. No entanto, esse caso de ação performática não

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poderia ser generalizado. Muitos ritos profanos do coti­diano não voltam a representar os aspectos tensos de si­tuações críticas.

Para Turner, os caracteres de repetição, estereotipia e rigidez não são os mais importantes no rito, e a eficácia não passa de uma ilusão, ou melhor, da imagem falsa de um resultado quando, afinal, trata-se simplesmente de uma transição; com efeito, o drama ou o jogo nunca che­gam ao seu termo, embora as seqüências tenham um princípio e um fim.

Se a cerimônia é um elemento estabilizador da vida social, o rito enquanto processo comporta um acentuado dinamismo no sentido em que é produtor de significação e exerce conseqüências tangíveis sobre os participantes, nem que fosse pelo fato de revestir um caráter coletivo e da carga afetiva contida nos símbolos. A ação simbólica é, com certeza, polissêmica, mas tem sobretudo um valor condensador no sentido em que se fundem aí o mundo vivo com o mundo imaginário em uma transformação idiossincrásica da realidade, sem que seja necessário es­tabelecer, como em Durkheim, a necessidade de uma so­ciedade hipostasiada, enquanto coroamento do conjun­to.

Tanto Geertz, quanto Wolf ou Turner observaram as mudanças de significação de um símbolo social no correr do tempo e a significação diferente atribuída, segundo os grupos e indivíduos, aos mesmos símbolos, sem que existam significações absolutamente essenciais ou estru­tura de oposições binárias generalizáveis. O simbólico permite a manobra e a manipulação no processo ritual. Neste, as pessoas caracterizam-se mais por sua heteroge- neidade do que por sua uniformidade, por seu confronto do que por sua unanimidade sem negar sua participação em um mesmo corpus de tradições, ou sua inde­pendência; no entanto, esta é apreendida como feita de tentativas e negociações.

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Tal visão do social parece mais ajustada às socieda­des complexas do que à visão unanimista durkheimiana. Aplica-se até mesmo às sociedades primitivas que dão uma impressão de homogeneidade porque as conhece­mos mal; com efeito, essa homogeneidade é mais uma construção induzida ou desejada do que uma realidade.

Em resumo, parece-nos que, no rito, Turner subli­nhou, em particular, as seguintes características: o aspec­to, ao mesmo tempo, concreto e metafórico das informa­ções estocadas nos objetos, gestos e palavras rituais sim­bólicos; a equiparação desses símbolos catalisadores de ação a valores decisivos para a comunidade e com acen­tuada ressonância afetiva; a orientação dos meios de contato com o numinoso segundo as finalidades profun­das do ritual; a estrutura dramática do rito comportando progressão das ações, reciprocidade dos papéis, defini­ção dos espaços e inserção em uma longa duração do efeito de breves ações rituais.

Ao tratar do rito como estrutura e antiestrutura na obra The ritual process, Turner coloca em evidência a os­cilação existente entre a tradução repetitiva e rígida de uma ordem concebida como absoluta, e os elementos im­provisados e variáveis que exprimem a criatividade do social e, por vezes, um lado anárquico e conflitante.

Contextualização do rito secular

Será que a análise estrutural dos ritos pode ser tão formalizada quanto a dos mitos, à maneira de Lévi- Strauss? Por que não? No entanto, até o presente, nin­guém se empenhou com rigor em colocar em evidência as leis de composição interna de tais estruturas, sua for­mação e transformações, suas relações de inclusão ou complementaridade. Concebendo o mito, o rito e a ico­nografia como três maneiras de enunciar as mesmas coi­sas, embora com códigos diferentes, Lévi-Strauss inte-

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ressa-se realmente pelo rito, em particular, na parte final da obra L'homme nu. Apesar de ter a intenção de estudá- lo em si mesmo, não chega a fazer tal estudo e tende a apreendê-lo como perspectiva complementar de suas pesquisas sobre os mitos, ao ponto de pensá-lo como uma exibição ridícula, um comportamento no final de contas supérfluo a serviço do pensamento classificató- rio. Não há necessidade de agitação, limitemo-nos a es­tabelecer uma classificação - eis o que poderia ter sido sua opinião - mas seus últimos escritos matizam essa primeira posição. No entanto, mantém aí a idéia-força

- segundo a qual o rito visa obter o contínuo a partir do descontínuo por um excesso de idêntico na repetição-re- dundância. "Ao fragmentar as operações que vai deta­lhando indefinidamente e repetindo sem descanso, o ri-

tual aplica-se a uma reparação minuciosa, veda os inters-tícios, restabelece o contínuo a partir do descontínuo. Sua preocupação maníaca... traduz uma necessidade lancinante de garantia contra qualquer ruptura que vies­se a comprometer o desenrolamento do vivido" (Lévi- Strauss, Uhomme nu, p. 603). Este autor não cessa de opor o rito, aspecto vivido, ao mito, vertente do pensamento, do mesmo modo que opõe o corpo ao espírito, a biologia à psicologia, com uma valorização do segundo termo dessas oposições, como se a vida não fosse a mistura de afeto e intelecto. Colado ao vivido, o rito colmata somen­te os vazios do pensamento.

O rito refaz o contínuo da vida com o descontínuo do pensamento, a partir das oposições encadeamento/in­terrupção, imediato/diferido. A repetição pode ter as­pectos positivos: é um recomeço, uma mesma coisa, em­bora indefinidamente nova..., assim como aspectos ne­gativos quando a liturgia leva a melhor sobre o rito, quando a palavra é oca e há fuga do sentido. Apesar de estimar que ele cativa, isto é, captura o espírito, Lévi- Strauss julga que seu caráter é frio, opondo-o ao caráter quente das experiências vividas. Resta ver se, no corrobo-

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ri, o rito não é particularmente quente e intensamente vivido.

Tendo reconhecido essas contribuições notórias rela­tivamente recentes para uma sociologia do rito, convém situar nossa pesquisa sobre os ritos profanos em outras duas correntes que, na França, tiveram Georges Balan- dier como figura de proa e incitador: trata-se da antropo­logia política e da sociologia do cotidiano. Atenta às en­cenações do poder, aos jogos de inversão temporária dos papéis, à simbólica do político..., a antropologia política de Balandier permanece próxima de um tipo de reflexão histórica sobre as liturgias revolucionárias, nacionais ou comemorativas, desenvolvidas pela Escola dos Annales, na esteira de F. Braudel, assim como dos estudos da es­cola americana de R. Bellah, D. Apter e outros sobre as

religiões civis que constituem o objeto da nossa obra Les liturgies politiques. Quanto à antropologia da modernida­de, cujo promotor na Universidade francesa foi Balan­dier, inclui também a atenção a todos os aspectos da vida cotidiana: suas micropráticas (maquilagem, comensali- dade), suas rebeliões ritualizadas na marginalidade (ri­tos da droga, concertos de rap), seus ensaios de ressacra- lização ritual do trabalho ou do esporte, da saúde ou do sexo.

O livrinho de J. Maisonneuve sobre Les rituels mostra que existem, com certeza, outras fontes de reflexão para a construção de uma teoria dos ritos, mas sublinha si­multaneamente qual é a parte importante a ser consagra­da a uma abordagem dos ritos profanos, festivos ou não, em um estudo ritológico global da vida humana.

O motivo dessa atenção prestada aos ritos profanos explica-se pelo progresso das diversas disciplinas cientí­ficas, na medida em que estas procuram interpretar as diversas faces do real submetendo, de forma perpétua, objetos científicos antigos a uma análise em novos ter­mos. Mas trata-se não tanto de mudança de linguagem, mas de mudança de perspectiva.

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Se, porém, as perspectivas mudam, acontece que an­tigos problemas continuam a ser agitados, entre outros, o do fundamento original do rito: sacrifício e violência inicial segundo Girard, inscrição do rito profano no mais profundo da animalidade como dizem os etólogos, ou então mecanismo de sublimação na base da libido sexual para os psicanalistas. A adesão determinada de alguns, e próxima de uma fé religiosa, a essas correntes de pensa­mento exige que passemos essas teses enriquecedoras, mas sobrecarregadas de postulados, pelo fogo da crítica.

A BUSCA DO ORIGINAL

A origem sacrificial do rito

Do mesmo modo que, a partir da lógica do pensa­mento e da vida, Claude Lévi-Strauss extrai a lógica do rito, assim também René Girard - em sua obra La violence et le sacré - procura reduzir os ritos a uma explicação úni­ca e original, empreendendo um trabalho que pretende ser pluridisciplinar, mas carece de cientificidade biológi­ca e antropológica, e se coloca à margem das ortodoxias psicanalíticas.

Em suma, para o autor, o homem é um ser de desejo que não pode desejar sozinho, mas cujo objeto de desejo é sempre designado por uma terceira pessoa. No fundo da natureza humana: esse desejo mimético, compreen­dendo a mimesis como força de imitação que leva a dese­jar o que já é desejado pelos outros. Daí, uma violência original pela apropriação do raro e do outro em seu ser e haver. Não se trata de exploração e alienação marxista, ou rivalidade edipiana entre pai e filho, mas de violência recíproca pela satisfação dos desejos pessoais que é a conseqüência de uma imitação, fonte de aprendizagem e conformismo, ao mesmo tempo que de rivalidade pela partilha de mulheres, alimentos, armas e territórios.

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Quando as proibições não são suficientes para frear a violência, um mecanismo sobressalente é o da vítima ex- piatória. O sacrifício de um bode expiatório (ser sacrifi-

cável tal como o estrangeiro, o deficiente, a criança, o ani­mal, determinado bem ou objeto), enquanto aconteci­mento fundador da comunidade, permite que, de forma ritual, esta conserve sua coesão. Nas sociedades arcaicas, esse sacrifício de uma vítima carregada arbitrariamente com todos os males do grupo é um remédio curativo- preventivo para fesolver ou impedir as explosões de vio­lência. Opera uma transferência coletiva dos problemas internos para uma vítima de substituição.

Nessa catarse, diversas idéias são postuladas por Gi­rard como fundamentais: o pensamento mítico refere-se sempre ao começo. Na origem, em qualquer ritual, existe um assassinato. Os deuses e os heróis apresentam o jogo dá violência em seu conjunto. Ora recíproca, ora unâni­me, a violência fundadora dá conta do duplo caráter de toda divindade primitiva. A vítima expiatória é conde­nada à morte sob a aparência do duplo monstruoso. Toda criatura sagrada é monstruosa e desempenha, su­cessivamente, todos os papéis na violência. A função da religião como máquina de sublimação social é produzir não-violência por um ato violento. Nos ritos mágico-re- ligiosos, teatrais ou terapêuticos, assim como no sistema judiciário, a liberação purificatória do grupo situa-se no prolongamento ritual da violência fundadora.

Observaremos, com certeza, que a cortesia pode ser concebida como precaução contra o surgimento poten­cial da violência e que os ritos profanos atuam, em geral, como inibidores da violência (exceto em alguns ritos mi­litares). No entanto, será verdade que existe, como é enuncia'do por Girard contra Freud, uma primazia da violência no desejo e um imperativo de imitação mais importante do que o desejo sexual?

Girard apóia sua teoria no fato de que o mimetismo e a violência são naturais ao homem. No entanto, Kon-

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rad Lorenz mostrou que, até mesmo no animal, existem mecanismos reguladores da agressividade (submissão, fuga), assim como do não-gregarismo. Será que existe, efetivamente, um mecanismo universal das regulações culturais da violência? Estaremos seguros da origem de seu desencadeamento? Pecado original, estupidez hu­mana, instinto irrepressível? Os postulados girardianos devem ser ponderados. Da mesma forma que nem toda a violência é sagrada, assim também o sagrado não é re- dutível à violência. Nem todos os ritos têm o mesmo ob­jetivo ou mecanismo. O reducionismo filosófico atinge seu cúmulo nesse apetite de generalização apodíctica a partir de pressupostos, somente lógicos e insuficiente­mente escorados em dados científicos que cedem ao cos­tume evolucionista de explicar tudo pela origem, como se esta não fosse hipotética e como se o complexo encon­trasse sua explicação no simples, è o atual no arcaico. Com que direito poderá o rito ser isolado de seus contex­tos socioculturais, como se um significado flutuasse fora dos significantes? Será que o sacrifício é verdadeiramen­te hierofânico e originário? Será que a origem é acessível e verificável? Será possível resolver a etiologia da violên­cia fora da etologia e da pré-história? Será que a função do bode expiatório tem a mesma eficácia reconhecida por toda a parte? Será que as religiões (assassinas, no Ocidente) são realmente os baluartes contra a violência? O que representa essa mimesis na natureza do homem, como o flogístico na natureza do fogo? Poupemos os se­res de pensamento, diria Guilherme de Ockam!

A maneira como formulamos as questões leva, com certeza, a uma resposta que contesta as posições de R. Girard. No entanto, embora atacando os princípios de sua demonstração, podemos julgar bastante sedutoras algumas de suas argumentações fragmentárias. De qual­quer modo, ao inscrever à violência e o sacrifício no âma­go do sagrado, a teoria tem pouca utilidade para apreen­der os ritos profanos, a menos que seus mecanismos se­jam idênticos - mas tal asserção teria de ser comprovada

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fora de uma referência ao transcendente - ou que todo rito profano tenha sua origem no mito ou rito religioso, limitando-se a reproduzi-lo; ora, mostraremos que isso é improvável.

Em suma, da mesma forma que a releitura da men­sagem crística da misericórdia ou o receio de uma vio­lência nuclear não suscitarão tal racionalidade invocada por Girard para liquidar a violência e o rito, assim tam­bém não nos parece razoável reduzir a maioria dos ritos profanos ao esquema sacrificial, fazendo-os derivar de ritos religiosos.

A origem animal do rito: dados da etologia

Se a suposta origem dos cultos do homem, sua vio­lência^ sua mimesis não são suficientes para explicar toda a riqueza do processo de ritualização, será que po­demos encontrar um fundamento desse processo em nossa relação originária ao mundo animal e explicar por esse meio o que haveria de profano em nossa tendência para ritualizar um grande número de nossos comporta­mentos? Sem que seja possível demonstrar, experimen­talmente, a fixação de um comportamento ritualizado do ponto de vista da evolução, os biólogos pensam que um processo de ordem filogenética tem como efeito fornecer um excelente valor sinalético para certos padrões-moto- res provenientes de atividades instintivas específicas às quais, por herança, ter-se-ia acrescentado uma função de comunicação, sendo que a realização do rito teria, então, valor de sinal desencadeador.

O padrão-motor pode assumir a forma de:

1. uma atividade instintiva - por exemplo, alimenta­ção ou fuga - com valor funcional direto.

2. um movimento de intenção, inibido pelos centros motores, ou incompletamente realizado por falta de mo­tivação.

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3. uma atividade de conforto (higiene, alisamento das plumas) integrada na exibição sexual (como a ma- quilagem para os seres humanos).

4. uma atividade de deslocamento na interação de duas tendências antagonistas como a agressão e a sexua­lidade (afirma-se o entendimento para evitar uma briga).

5. determinados apelos à reciprocidade que, no jogo sexual, desencadeiam coordenações motoras nos dois parceiros. A ritualização propriamente dita acentuaria o caráter expressivo desses comportamentos e tornaria es­pecífico e não ambíguo o sinal desencadeador, seja por um movimento exagerado e ostensivo, seja pela apresen­tação de uma parte do corpo ou por uma mímica que reduziria a incerteza da informação transmitida (exibi­ção do traseiro em sinal de submissão, pênis-sentinela delimitando o território por micção, ritos de intimidação para decidir a respeito de uma dominância hierárquica, arrulho do pombo e roda do pavão como convite à cópu- la, alimentação dos filhotes pelo macho em certas espé­cies, etc.). Como as mensagens são transmitidas mais pe­las posturas, gestos e mímicas do que por vocalização, não seria possível ler no animal a infra-estrutura primi­tiva de alguns de nossos ritos profanos: os gestos de sal­vação traduziriam o embaraço, o beijo encontraria sua origem na alimentação?

Tendo dirigido um colóquio sobre a ritualização no homem e no animal, Julian Huxley propõe a seguinte de­finição: "Etnologicamente, a ritualização (no animal) pode ser definida como a formalização ou a canalização adaptativa de um comportamento com motivação emo­cional, sob a pressão teleonômica da seleção natural des­tinada a:

a) garantir uma eficácia maior da função de diversão e diminuir a ambigüidade, do ponto de vista intra-espe- cífico como interespecífico;

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b) fornecer aos outros indivíduos determinados esti­mulantes ou desencadeadores de esquemas de ação mais eficazes;

c) reduzir as perdas no interior da espécie;

d) servir de mecanismo de ligação sexual e social" (Huxley, p. 9).

Duas tendências se opõem no comportamento ritual do animal: "Por um lado, ele tende para o reflexo etoló- gico através da elaboração de sinais que desencadeiam a ação apropriada no prazo mínimo; por outro, para a pro­dução de cerimônias persistentes que servem para refor­çar o elo sexual e social" (ibid., p. 21).

Da diferença entre ritualização humana e animal, o mesmo autor retém seis pontos de comparação: conver­gência dos resultados funcionais da ritualização no ani­mal e no homem; diferença no modo de transmissão - genética no animal, cultural no homem; capacidade re­dobrada de aprendizagem do homem que engendra uma grande complexidade e variabilidade de ritos; no homem, grau de individuação superior ao de todos os outros animais; consciência da individualidade peculiar ao homem; recalcamento humano do sentimento de cul­pa infantil em decorrência da formação do inconsciente (cf. ibid., p. 23-25).

Convém acrescentar que a função de comunicação é indubitavelmente um ponto de convergência entre ritos animais e humanos; no entanto, em relação ao homem, o rito tem lugar a partir de uma alteridade que ocorre, si­multaneamente, no plano material pela comunicação in- terindividual e no plano das idéias com seres de pensa­mento ou potências sobrenaturais. Quanto à função de reconhecimento e coesão social, vamos encontrá-la tam­bém em muitos ritos profanos entre os quais os ritos ali- mentares abordados por Mary Douglas: refeições em co­mum e crenças compartilhadas como são as proibições

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alimentares. No entanto, M. Douglas adotou uma abor­dagem mais cognitivista lembrando que, paralelamente às funções conativas, as crenças e os ritos possuíam uma função de conhecimento. As crenças dos homens dife­rem das representações animais no sentido em que pro­duzem uma ordem, graças a seus "sistemas simbólicos" que variam enormemente no âmago da mesma espécie (cf. Douglas, passim). Se tais variações fossem transpa­rentes, não haveria necessidade de etnólogos para deci­frá-las. Enfim, se a função de canalização da agressivida­de convergir para a teoria de Girard, será passível das mesmas observações. Determinados ritos, como a ora­ção, são dificilmente redutíveis a essa função. Em algu-

- - mas culturas, certos comportamentos agressivos podem ser reprimidos ou, pelo contrário, encorajados. E, em uma mesma cultura, os ritos são comportamentos espo-

rádicos que, muitas vezes, caracterizam somente algunsmembros, enquanto o rito animal repetitivo caracteriza

toda a espécie.Apesar de serem perceptíveis analogias pontuais, as diferenças são suficientemente importantes para que o etnólogo renuncie a efetuar extrapolações de etologia animal que se fundamentariam nas relações de identida­de entre o homem e os outros animais.

A origem sexual da ritualização: a psicanálise

Justiça seja feita à psicanálise pela originalidade de sua abordagem em relação à psicologia clássica, embora tenha tendência a patologizar demasiado o rito. Para captar o que Freud pensa a respeito do assunto, não há necessidade de solicitar suas grandes teorias da natureza da religião (Moíse et le monothéisme) ou sua suposta ori­gem (Totem et tabou). O essencial encontra-se em L'avenir d'une illusion (1907), no capítulo "Atos obsessivos e exer­cícios religiosos" e em Cinq psychanalyses, no capítulo "O homem dos ratos".

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Motivado por um sentimento de culpa, o rito para Freud é, antes de tudo, um ato de defesa, identificado por sua motivação - proteger o indivíduo; ou por seu desenrolamento - receio de omitir um detalhe ou ser in­comodado em sua execução. Sob esses dois ângulos, atos obsessivos e ritos religiosos podem ser colocados em pa­ralelo.

Em particular, através do sentido pejorativo do ter­mo ritualismo, o rito é pensado como conjunto de gestos estereotipados e recorrentes, esvaziados de significação simbólica. Pelo menos, sob o efeito do recalcamento, seu sentido tornou-se inconsciente. Na neurose obsessiva, para lutar contra a angústia, o doente utiliza procedi­mentos ritualizados de execução repetitiva de um ato co­tidiano (rituais de higiene, ao deitar-se, ao fechar as por­tas).

Em "O homem dos ratos", a ritualização infinda das menores ações pelo paciente age como esconjuro. Deve evitar o suplício chinês de ratos que saem de um frasco, devoram o ânus do supliciado e introduzem-se em seu corpo. No sentido freudiano tais ritos substituem, em ge­ral, uma ação obsessiva inaceitável.

Dúvidas, escrúpulos, ruminações mentais, inibições e ritualismo compulsivo são os sintomas de um conflito psíquico (luta entre o ego e o cruel superego) que blo­queia as energias do sujeito, deslocando seus afetos para representações mais ou menos distantes do conflito ori­ginal. O caráter anal e sadomasoquista de tal ritualismo neurótico difere, evidentemente, pela carga de incons­ciente e de compulsão do que os antropólogos concebem como realização intencional de ritos.

Quando compara o cerimonial neurótico com os fa­tos religiosos segundo o raciocínio analógico, Freud ob­serva, a propósito do cerimonial, que se trata "de peque­nas práticas, pequenas adjunções cujas ocasiões são fú- teis": lavar-se, vestir-se, dobrar suas roupas, deitar-se,

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satisfazer suas necessidades corporais... Fúteis, com cer­teza, em relação à sua significação inconsciente, mas po­demos nos perguntar a razão pela qual esses gestos atin­gem diretamente o corpo. Essa questão é colocada a Freud pelo psicanalista R. Higgins que observa: "Por ou­tro lado, Freud nota uma diferença entre os rituais obses­sivos e os atos religiosos: a ausência de publicidade, uma vez que esses atos se efetuam sem a presença de outra pessoa. Essa dupla referência ao corpo, considerado como fútil, e à alteridade (ausente) parece-me ser de uma grande importância, tratando-se de atos que, justamen­te, na infância não podem ser realizados isoladamente e implicam a presença da mãe ou de uma personagem ma-

~ terna. Para introduzir a interpretação das ações compul­sivas, e por via de conseqüência dos rituais religiosos, como manifestações de culpa ou de medidas de proteção associadas ao recalcamento de noções pulsionais, se- xuais, assassinas ou anti-sociais, Freud escreve uma frase de uma violência surpreendente: 'A ilusão segundo a qual essas ações compulsivas seriam destituídas de sen­tido será destruída pela raiz/ Sublinhemos essa destrui­ção da ilusão acompanhada pela violência da fórmula" (Higgins, p. 14).

Evidentemente, Freud não ignora a diferença entre os atos obsessivos, "pequenos atos destituídos de senti­do" que têm uma variabilidade individual, e a significa­ção dos ritos religiosos, objetos de um consenso coletivo, embora no detalhe cada um lhes atribua justificações pessoais variáveis. No entanto, os atos obsessivos, assim como os exercícios religiosos, têm em comum o seguinte: participam do processo de civilização que consiste em uma "renúncia ao exercício de instintos constitucional­mente determinados" (Freud, L'avenir..., p. 94). No final de contas, Freud defende que a neurose é uma espécie de religiosidade individual ou de religião privada, enquan­to a religião é uma neurose obsessiva da humanidade. Em Moise et le monothéisme (1939), chega mesmo a admi­

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tir que a neurose e a crença são ambas redutíveis a fenô­menos de compensação.

Pouco me importa a ortodoxia psicanalítica (aliás, qual delas?). Pelo contrário, tenho interesse em observar que Freud foi um dos primeiros a invadir um espaço re­servado aos teólogos e a participar na dessacralização da análise dos ritos. Sem sacrificar à neurose benigna con­traída por alguns psicanalistas ao lerem em todo ato sin­tomas patológicos e remetendo-os a recalcamentos de natureza sexual, eu colocaria, de preferência, em dúvida o totalitarismo da explicação pela libido.

No entanto, a explicação psicanalítica, uma vez mo­dulada, ajuda a compreender o que leva os marginais a traduzirem em ritualização e, até mesmo, em desordem de conduta ritualizada o que é conflito entre diversas pulsões, conflito entre desejo e proibição, conflito entre instâncias da personalidade, conflito edipiano com cará­ter acentuadamente sexual. Assim como o sonho, o ato falho e a lembrança-anteparo, o rito pode ser uma forma- / ção de compromisso entre princípio de prazer e princí- pio de realidade, espaço em que se encontram ética e es- f tética: no rock ou rap, o princípio materno do rito se con­juga com um pólo de identificação paterno; e no tag ou nas violências dos subúrbios retraduzidas em West side 1 story, o superego sádico e tanático transige com o eros. Resta ver se é necessário reconhecer um privilégio à se­xualidade no conflito pessoal e interpessoal e se a maior parte dos conflitos sociais devem ser pensados a partir do tipo das relações intrafamiliares.

Apesar de reconhecer a importância das relações de parentesco na gênese das marginalidades sociais, a antro­pologia tem tendência não só a examinar o conjunto do campo social no qual a família não passa de uma depen­dência, mas também a acreditar, em razão da pressão do volume molar sobre o molecular, que a família é tanto, se­não mais determinada, quanto determinante em nossas condutas, como é sugerido por Deleuze e Guattari.

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CONCLUSÃO

Nosso percurso teórico permite fazer emergir as se­guintes hipóteses:

1. Sem outro projeto que não seja o de sua própria realização e sem ligação a um mito, mas somente a valo­res importantes, o rito profano encontra sua lógica em sua efetuação e satisfaz-se com sua intensidade emocio­nal (partida de futebol, concerto).

2. Reconhecido como forma geral de expressão da so­ciedade e da cultura, o rito emancipa-se do contexto reli­gioso no qual, até então, era obrigatoriamente percebido.

3. O funcionamento dos ritos deve ser associado à sua utilidade social; sua execução é imperativa para re- criar periodicamente o ser moral da sociedade.

4. Na iniciação opera-se uma transgressão de limite tendo como efeito a promoção a um estatuto superior.

5. O rito solicita e regula a ação; além disso, suas ope­rações materiais são reveladoras de operações mentais porque operamos aí com símbolos.

6. Será necessário considerar os ritos como redutores de riscos e incentivadores do sentimento de segurança, ou então, inversamente, como motivadores de mais an­siedade? A primeira solução parece ser a mais habitual.

7. Os ritos são sistemas de sinalização a partir de có­digos definidos do ponto de vista cultural.

8. Os ritos utilizam modelos de açãõ tirados do regis­tro da deferência entre estatutos desiguais. Sua ordem expressiva inscreve-se em uma ordem de negociação.

9. Os ritos de rebelião subvertem temporária e excep­cionalmente a ordem a fim de restaurá-la em melhores condições.

10. O papel ritual inclui a utilização de uma máscara em uma encenação que procura evitar que os parceiros venham a perder a linha.

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11. Drama que resolve uma crise, o rito é um meca­nismo de resposta às mudanças e conflitos. Na medida em que é emocionalmente expressivo, o jogo dramático ritual é operador de uma mudança; comporta uma fase de ação reorientada.

12. O rito liga entre si determinados elementos des­contínuos do cotidiano pela repetição-redundância e col- mata vazios do pensamento.

13. Com função, muitas vezes, catártica e, em geral, redutora da agressividade, o rito pode, por descarga emocional ab-reativa, resolver ou impedir explosões de violência, ao transferir os problemas internos de um gru­po para uma vítima expiatória que não tem condições de se vingar.

14. Mecanismo de defesa, age como uma forma de esconjuro nos casos de conflitos recalcados. Sublimador, pode também fazer reviver fantasmas que proporcio­nem satisfações simbólicas.

15. Pela adoção de regras e papéis, no quadro de uma ordem que ele exprime, acaba reforçando o elo social in­tegrador.

16. A não ser por um ato de fé, não seria possível for­necer o fundamento original do rito: segundo Girard, sa­crifício e violência inicial; para os etólogos, inscrição do rito profano no mais profundo da animalidade; ou então, para os psicanalistas, mecanismo de sublimação com base na libido sexual.

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Capítulo IIEstrutura, função e dinamogenia do rito profano

O exame de diversas teorias concernentes ao rito per­mite que sejam propostas algumas referências metodo­lógicas de análise a respeito dos principais pontos que são comuns aos autores, quaisquer que sejam suas diver­gências secundárias. Com uma finalidade heurística, propomos considerar o rito de forma analítica:

1. Como seqüência temporal de ações. Um rito sistê­mico total (iniciação) divide-se em séries de ritos sistêmi­cos elementares (provas, purificação, sacrifício...), sendo que cada seqüência ritual comporta ritemas (por exem­plo, circumambulação) e estes compreendem motivos (sentido do giro, número de voltas). Por vezes, a duração estruturada remete a uma duração estruturante, a do mito ou acontecimento fundador que serve de paradig­ma à série de ritemas*.

* N.T.: Neologismo que, para o autor, significa rito elementar (cf. cap. III, subtítulo "Ritos ordinários e extraordinários").

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