ritos fÚnebres(no interior cearense)

72
RITOS FONEBRES HO lKTE~IOR ~~~EN5E ~971

Upload: antonio-galeno

Post on 09-Aug-2015

275 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

RITOSFONEBRESHO lKTE~IOR ~~~EN5E

~971

Page 2: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

RITOS FÚNEBRESNO INTER!OR CEARENSE

Page 3: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

CANDID.A GALENO

.. :-,;.

RITOS FÚNEBRESNO INTERIOR CEARENSE

EDITORA HENRIQUETA GALENOFORTALEZA-CE -1977

Page 4: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

FICHA CAT ALOGRAFICA

Galeno, Cândida

G 153r Ritos fúnebres no interior cearense. Forta-

leza, Henriqueta Galeno, 1977.

p.72.

1 - Ceará - Usos e costumes.

2 morte e funerais. 1. Título.

CDV: 393. 1

Page 5: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

SUMARIO

Nota preliminar - Ftoríval Seraine/1In trodução/ 9Enterro em Canto Grande/LãTratamento do corpo/LãVestuário do derunto/LêA guarda do morto/ãlAs "inselências"/31A despedida/SêAcompanhamen to do enterro/éü"Chega, irmão das almas!"/48O sagrado e o profano nas "sentinelas"/56No domínio da lenda/70

5

Page 6: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

NOTA PRELIMINAR

o estudo dos socíoíatos, isto é, daqueles"fenômenos culturais que consistem na proje-ção diferenciada da natureza social do ho-mem" - conforme as expressões de Guizzet-ti - ocupa lugar relevante no âmbito folcló-rico.

Entre eles incluem-se, na generalidadedas classificações' especializadas, Os costumesrelativos a certos momentos da vida, como onascimento, o matrimônio e a morte. Os ritosíúnebres e mortuários peculiares às comuni-dades folk acham-se, pois, integrados nesseplano da investigação cultural.

Apesar de 'haver merecido a atenção dereputados folcloristas como Pitré, Gubernatís,J. Amades e Hoyos Sainz, o tema, em nossopaís, não vem atraindo o mesmo ínteresse queoutros aspectos da vida popular, devendo ape-nas salientar-se, a propósito, os artigos deAlceu Maynard Araújo, José Nascimento deAlmeida Prado, Gonçalves Fernandes e alguns.mais.

7

Page 7: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Destarté, a-produção de Cândida Galeno -Ritos Fúnebres no Interior Cearense - avulta,ern .nossa bibliografia folclórica, e não .foí sem'c~l'níi'~azao__queos membros da Comissão Jul-·gàdQ~ado Concurso Mário de Andrade.etetua-d~·'e~~'B..Pa~lo', lhe outorgaram "menção hon-

. -. .," .~. ",

rosa", não' obstante ha.ver sido esse o primeiro-: ~. . .; . - .

trabalho da Autora, na especialidade., .,' Trata-se, em verdade, do resultado de pes-:quXsª'.~x~rcidain loco, em que a matéria é dis-'tribuida. sob acertada técnica e se acham des-r : . . -: .... :," .~

.critos os aspectos culturais mais significativos'do fenômeno social.

Reeditando a excelente monografia, Cân-'{r'da Galen'Q torna o seu conhecimento maisacessíve,l aos interessados, que dela poderão uti-lizar-se proveitosamente nos estudos compara-tivos.

Tomamos apenas a liberdade de .recomen-dar à escritora cearense que prossiga nesse gê-

- . .... ,

nero de pesquisa~, completandoa sua obra commonografias, concernentes a outros momentosdaexistência humana,em.especial o riascímen-

'to e o matrimônio. F1.oRIVAL SERAINE

~

Page 8: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

INTRODUÇÃO·.

Nasceu-me a idéia de escrever este traba-lho depois que estive em julho de 1956 a pas-sar férias no interior do Ceará, com a poetisaAbigail Sampaio, no sítio S. Lourenço, muni-cípio de S. Gonçalo do Amarante, onde se en-sejou oportunidade de assistir a um enterro. eanotar-lhe todas as ocorrências. Enterro naroça, com todo o prímítlvismo que a era doavião a jato, da bomba de hidrogênio e do ci-nemascópio ainda não. logrou- apagar de todonas regiões longínquas deste país imenso.

De volta à capital, li minhas anotaçõespara o. ilustre folclorista conterrãneo Dr-.Flo-rival Seraine, que gostou da, maneira como.observei o. fato em campo e incentivou-me' aprosseguir no trabalhe.

Comecei, então, a rebuscar na memória

Page 9: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

lembranças de outros enterros assistidos nainfância, a compiJar dados sobre o assunto, li-dos em diversos autores, a fazer pesquisa compessoas de diversos pontos do Estado, para ve-rificar as variantes observadas nas diversas re-giões, e deste material colhido surgiu este des-pretensioso estudo,

Do meio das minhas remotas lembrançassurge-me a cena do primeiro enterro a que as-sisti, criança, na cidade de Jardim, situada aosul do Estado, na zona limítrofe com Pernam-buco. Era um enterro de l.a classe: morrera anora do chefe político da localidade. A casa damorta, como a nossa, ficava situada na praçada Matriz, e pude, assim, observar todo o mo-vimento.

o enterro verificou-se à noite. O pessoalque o acompanhava, homens, trajava roupaescura e conduzia às mãos velas acesas, de sor-te que a praça ficou repleta de gente e pontea-da de luzes. A banda de música do lugar seguiao cortejo, tocando um "funeral" que arrancavalágrimas às pessoas mais empedernidas. O cai-

-.10

" ,.

Page 10: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

xão da morta, todo preto.eraconduzído à mãopor diversos homens.

Nunca mais me esqueci desta cena, presen-ciada em 1925. -

Depois, fui mudando de cidade, à medidaque a instabilidade da vida de magistrado demeu Pai exigia, e assisti a enterros sem conto,de adultos e de crianças, em caixão e em rede,em cidade do interior e na capital.

O material dessas observações foi-se sedí-mentando no meu cérebro, até que, agora, ocomparecimento a um enterro na roça, reali-zado em rede e ainda com o ritual da "sentine-la" e o canto das "ínselências", avivou emmim o desejo de escrever sobre os ritos fúne-bres no interior do C'eará.

Dividirei o meu trabalho nos seguintesítens:

1. Enterro em Canto Grande2. Tratamento do corpo3. Vestuário do defunto4. Guarda do morto5. As "ínselêncías"

Page 11: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

12

6.7.8.9.

10.

A despedidaAcompanhamento do enterro"Chega, irmão das almas!"O sagrado e o profano nas "sentinelas,"No domínio da lenda.

Page 12: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

1. ENTERRO EM CANTO GRANDE

Morrera, a 25 de julho de 1956, João Maxi-miniano, agricultor, irmão de Josefa e Rai-munda Maximiniano, as mais afamadas ren-deiras do lugarejo Canto Grande, municípiode S. Gonçalo do Amarante, que dista uma lé-gua de areia frouxa de Síupé, em cujo cemité-rio se deu o enterro.

Logo que acabou de expirar, ajudado pelainvocação de "Jesus, Maria, José, a minh'almavossa é" e pelas orações do Santo Sudário e doAnjo da Guarda, o morto foi trazido da camari-nha para a sala. Houve o cuidado de se efetuartal transporte com Os pés do defunto para olado da porta da rua, o que é feito para evitarque morra outra pessoa da casa.

- E'ntra-se no mundo pelos pés, são, elesque mandam nosso corpo, por eles devemos sair.

13

Page 13: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

No dia em que sai enterro, não se deve var-rer a casa. Não se deixa caixão ou rede em quevaí defunto bater no portal, pois morre outrapessoa.

Depois de colocado na sala, o corpo vai servestido, ° que se faz cantando a Ave-Maria.Quando se está vestindo o defunto, chama-sepor ele, assim: - João, acorda para vestir a tuaderradeira camisa. - Esta constbu de umamortalha de morim branco, vestida por cimadas calças e da camisa, com o cordão de SãoFrancisco amarrado à cintura do morto.

Quando o defunto é rico, vai ensapatado,engravatado e vestido com a melhor roupa.Quando é pobre, vai de mortalha, que. pode serbranca ou de cor. Na cintura põe-se sempre ocordão de S. Francisco.

Não havendo na casa de taipa e palha ondeestávamos, uma mesa grande, o defunto foi co-locado numa esteira, no centro da sala compiso de areia socada, sendo acesas quatro velas,colocadas em tijolos, à falta de castiçais, emforma de cruz - uma aos pés, outra à cabecei-T~, uma à direita e outra à esquerda.

:14

Page 14: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

2. TRATAMENTO DO CORPO

Não há entre nós notícia de lavação docorpo, de que trata em seu estudo (1) o escritorJosé Nascimento de Almeida Prado.

Em São Paulo, onde reside o autor e acujo interior se refere o trabalho em apreço,"depois que o corpo esfria bem, mas antes quecomece a enrigecer, mais ou menos 1 hora apósa verificação da morte, procede-se à "lavaçâo,lavagem ou banho do corpo", para cujo serviçohá também pessoas procuradas e como espe-cíalízadas, em regra estranhos e pessoas. de res-ponsabilidade, "que tem coragem" e geralmen-te gostam mesmo de se prestar para isso" .

1 - "Trabalhos Fúnebres na Roça" - José Nascimento deAlmeida Prado - Separata da Revista do Arquivo, n.oCXV - Departamento de Cultura - S. Paulo, 1947.

10

Page 15: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Este uso de se banhar o morto no sul doPaís talvez se deva à acentuada influência es-trangeira ali existente, visto serem oriundos daEuropa e da América do Norte estes hábitos.Em Portugal, informa-me o médico Dr. JoãoSaraiva Leão, ao morrer um cidadão, a primeiracoisa que se lhe faz é barbear. Não se compre-.endecomo se possa sepultar um cristão barba-do. O banho vem depois. Na América não só sebanha, como se faz a "maquilagem" completado defunto.

Enquanto assim se procede noutros países,•. ' I •

, e no sul do nosso próprio, aqui no Nordeste nãose banha, não se faz barba ou qualquer "ma-

, quilagem" em quem morre, antes de o sepult~r.Apenas, quando se trata de "anjo" (criança),pinta-se-lhe com papel de seda encarnada O'U

carmím as faces lívidas.

Perguntando à professora do sítio S. Lou-renço (município de São Gonçalo do Amaran-te) e também poetisa, Abigail Sampaio, se era'costume por lá dar banho nos defuntos, res-'Pohdeu:"me ela com muito espírito: "Não, o de-, ,

Page 16: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

funto vai com a sujeira que guardou na mo-léstia" .

Já em Limoeiro do Norte e em Tauá, cida-des do interior cearense, segundo depoimentodas educadoras Carmus'na Arraes Fre.re e LiliFeitosa, depois de morto, fecham-se os olhos di)

defunto, amarram-se-lhe O'S pés, cruzam-se-lheas mãos sobre o peito, penteiam-se-lhe Os ca-belos e faz-se uma limpeza nas partes do corpoque ficam expostas, descobertas, para dar aomorto boa aparência.

Page 17: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

3. VESTUARlO DO DEFUNTO

Ao acabar de morrer, a pessoa que ajuda omoribundo neste último transe diz-lhe: - F'u-lano, fecha os olhos.

Quando a boca do defunto fica aberta,atam-Se-lhe Os queixos, e o mesmo se faz aos.pés e às mãos, que só são soltos ao descer paraa. sepultura .

.Ao vestirem a mortalha, dizem ao morto:- Fulano, acorda para vestir tua última ca-misa.

As mulheres entre nós usam sempre mor-talhas, geralmente traje do santo de maior de-voção na localidade ou na família: traje deNossa Senhora do Carmo e hábito franciscano,indistintamente, para homens e mulheres, ope-rários e mulheres mais. pobres, por serem maisacessíveis à bolsa de todos. As moças vão tra-

·18_

Page 18: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

[adas de branco, ora com vestes de Nossa Se-nhora de Lourdes, Imaculada Conceição, NossaSenhora de Fátima, ora de Santa Terezinha.

Não é costume entre nós a mulher vestirpara enterrar-se nenlhuma roupa. que tenhausado em vida, como ocorreu ~~ América comCarmen Miranda, que veio a sepultar-se comvestido vermelho. Aqui a mulher usa sempremortalha, enquanto os homens tanto podem ircom traje de santo como com _roupa já usadaem vida: uniforme, a roupa qH;e serviu no ato

Ido casamento (Limoeiro do Norte),

Quando homem, íníorma-me Lili Feitosa,professora em Tauá, O' morto VA.i com sua rou-pa mais nova, de gravata ê ~apatos; quandomulher, vai em traje de Nossa Senhora do Car-mo, de Fátima ou de outra devoção da morta.Noutras regiões, como por exemplo CantoGrande, Siupé, São Gonçalo (município de S.Gonçalo do Amarante) o defunto tem que levartoda a roupa nova: se é mulher a mortalha demorim e o cordão de São Francisco na cintura,se é homem leva a mortalha por cima da ca-misa e das calças e o cordão de S. Francisco à

19

Page 19: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

cintura. Não usam paletó. Isso para os pobres.Os que se 'consideram ricos não usam marta-lha, vão em traje de qualquer santo, íníorma-me Abigail Sampaio .. i! D. Raimunda Maximiniano da Silva, quemora nessa zona, disse-me a razão de não pu-;derem os defuntas vestir roupa usada, e terque vestir tudo novo: é porque os anjos, ao vi-Eem buscar a alma do que morreu, seguram-seria fazenda, que se for usada rasga-se, caindo..;.}...

a alma novamente na terra .

Page 20: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

. ..•... :~ .

4. AGUARDA DO ,MORTO

o "velório" do defunto varia muito.de de-nominação. Há lugares em que se chama "sen-tinela" (Itapipoca, Tauá, Juazeiro do-Norte);noutros, "quarto" (São Gonçalo do' Amarante,São Bernardo das Russas e também Juazcir~,do Narte); já em Limoeiro do Nor'te:'chama-se-"guarda" .

"Quarto", "sentinela" ou "guarda", comoquer que o chamemos, é o ato de ficar com rdefunto durante as últimas horas que eleper-manece neste mundo.

Quando o passamento severíf'ca à 'tarde,a "sentinela" se estende portodaa noite" quan-do ocorre pela manhã, faz-se o "quarto'tduran-te o dia e o enterro se efetua à tarde, Muitoembora tenha 'eu assistido, em 1925, '~'Jrn:·.en-

• '!·l

'21

Page 21: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

terro à. noite, não é mais usado este horário desepultamento entre nós.

A hora do entêrro é determinada pela horada morte. Costuma-se esperar que decorram 24horas do passamento ao entêrro, devido ao re-ceio de que, enterrando-se antes, talvez a pes-ma esteja viva e possa tornar. Há até uma his-tória passada no interior do Ceará (Quixera-mobím), nos fins do século passado, que me foirelatada pelo Dr. Saraiva Leão e ilustra bem acausa deste medo. Vejamo-Ia.

o defunto vinha carregado em rede, quan-do, à certa altura do caminho, cansados os seuscarregadores, 'ao defrontarem-se com enormelagedo que fica na fazenda Salva Vida, puse-ram a rede à margem da estrada, sentaram-sena pedreira e começaram a comer rapaduracom farinha, comida típica dessa nossa região.Nessa parada forçada, a morta ressuscitara -a defunta que ia na rede fora vítima de ataquecataléptíco e,.ao voltar a si, em plena estrada,olhou em tomo, viu aqueles homens a comer econversar e disse-Ines então: - Quero um pe-dacinho de rapadura. O SUE.toque-eles tiveram,

Page 22: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

ouvindo falar a defunta que conduziam, foi talque abalaram em louca oorrida,deixando na

. estrada a suposta morta. O lagedo, a partirdeste dia, ficou sendo conhecido o Lagedo daRapadura, e ainda lá está desafiando o tempo.

A "sentinela" é constituída de grandeajuntamento de pessoas. Parenteaamigos e co-nhecidos do morto ou da sua família vão pres-tar-lhe a última homenagem.

O defunto é colocado na sala de visitas, ru,caixão, com o crucifixo sobre o peito, com ospés para a rua e nessa posição será levado àigreja para a encomendação e dali para o ce-mitério.

Outra imagem, de São José, algumas ve-zes, por ser o Patrono da boa morte, é colocadanuma mesa, e quatro castiçais em redor docaixão, que é posto em cima de quatro cadei-ras, tamboretes ou caixotes.

Quando o defunto é pobre e não há na CREio].

cama nem caixão, ele é colocado no chão, emcima de um táboa, porta ou esteira, donde é re-tirado para a rede, na hora do entêrro.

As velas ardem durante todo tempo da

23

Page 23: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

"'sentinela'" seja noite ou dia, e as rezas maisusadas durante a mesma são: têrço, tirado pelapessoa mais letrada do lugar, ou mais amigada família: a professora, a estudante; Ofíc odas Almas (Limoeiro do Norte); têrço e Ofício

. de Nossa Senhora (Tauá, Juazeiro do Nort c:,. São Gonçalo do Amarante, rtapipoca); terço eladainha (S. Bernardo das Russas).

Nas "guardas" ou "sentinelas", enquantouns rezam contrítos, outros conversam anima-dos; muitos a elas comparecem só para ter oca-siâo de conversas as mais variadas, até de na-mo.os, enquanto vão sendo distribuídos com ospresentes café e cachaça, quando se trata deenterro mais pobre, como o que assisti no mu-nicípio de São Gonçalo. Quando a família dodefunto tem posses (Tauá e Juazeiro do Nor-te), distribuem, além do café e bebida, tambémo caldo de carne. O comum, entretanto, é adistribuição permanente do café para todos ede cachaça entre os homens. Se a família domorto tem recursos e mora em sítio ou fazen-da, oferece aos transportadores do defun to,

'24

Page 24: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

quando regressam do enterro, almoço ou jan-tar, conforme a hora.

Para elaborar este trabalho, colhi infor-mações de muita gente de diversos pontos doEstado. Assim é que o Sr. J. David Aragão, re-sidente em Aires de Sousa, município de So-bral, mandou-me a narrativa das peripécias deuma "sentinela" a que assistira em 1932, nolocal onde se construia o açude General Sam-paio. Dado o ajuntamento de famintos queafluiam, assediados pela seca, de todos, os re-cantos do Estado, grassavam diversas doenças:sarampo, gripe, disenteria, varíola, morrendomiseravelmente número considerável de pes-soas, especialmente crianças r, Eis como nos falao Sr. J. David Aragão sobre o que presenciou:

- Assisti à morte de um velhinho, filho daterra. Solteiro e na flor dos anos, encontrei aliuma assistência fazendo "sentinela", compostade moças e rapazes em namoro, sentados. embancos de forquilhas, espalhados pelo terreiro,o que não deixou de chamar-me atenção, espe-cialmente quando uma moça se fez logo meupar. Uma fogueira ardia, ali perto, clareando,

25

Page 25: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

em lugar de luz elétrica. Um cafezinho saiasempre, correndo todos os bancos. Lá na sala•.sobre mesa tôsca, em caixão pobre, o defunto,com os queixos amarrados com uma faixabranca. E dos lados, em cada canto da mesauma lamparina de querosene clareava. Via-setambém uma imagem do Senhor, nas mãospostas sobre o peito do cadáver. E na parede aimagem de São José, o advogado dos moribun-dos. Nunca havia eu assístido àquilo, e se metornou bem curioso, quando vi, na sala, umgrupo de mulheres que rodeavam o defuntocantar, em côro, div:ersos benditos, Salve-Rainha e outros cân tãcos.."

Em Granja, também no norte do Estado,segundo testem unho de um filho da terra, Sr.Eduardo Carvalho, havia, há trinta anos, idên-tico intuito nas "sentinelas" que por lá se fa-ziam: namoros, narração de anedotas e histó-rias diversas e até apostas para ver quem tinhacoragem de ir, dentro da noite, ao cemitério,buscar galhos de cipreste. Em Granja tambémse cantavam as "inselências" e a banda de mú-sica acompanhava os enterros, tocando "fune-

26

Page 26: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

ral", ISto há. 4Ó anos. Em zona diversa, porqueno sul do Estado, na cidade de Juazeiro do Nor-te, 20 anos decorridos,quando morria uma pes-soa, o canto das "inselências" fazia parte indis-pensável da "sentinela".

Maria Gonçalvesda Rocha Leal, que meforneceu dados a este respeito, disse-me havercrescido ao som das."inselências" que enchiamo silêncio das noites sertanejas de lúgubres,melopéias, chegando a aterrorizar as crianças.Não obstante, continuaram a ser cantadas até15anos atrás, quando a polícia, por medida deordem e segurança, proibiu-as, para evitar asdesavenças que sempre surgiam no "sereno"que as "inselências" atraiam para o terreiro dodefunto.

Havia geralmente uma "cantadeira" paratirar rezas, benditos e "inselências".

A oração "Repouso eterno, daí-lhes Se-nhor", era tirada por um homem, enquanto ocôro respondia: "A luz perpétua, o res-plendor" .

Em Juazeiro do Norte, a cujos hábitos fú-nebres estou-me reportando, eram muito can-

Page 27: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

· tadas as seguintes "ínselêncías" das Virgens ede Nossa Senhora das Dores, cuj as letras e mú-sicas me foram fornecidas pela educadora aci-ma mencionada. Vejamos a "inselência" dasVirgens:

Uma inselença das virgensQuem mandou foi a Mãe de Deus,Adeus, irmã dos anjos,Irmã dos anjos, adeus.

Duas "inselenças" das virgens, depois três,quatro, até completar dez "inselenças". A "in-selença" de Nossa Senhora das Dores, rezaassim:

Uma inselença de Nossa Senhora das DoresQuem foi que mereceuEsta capela de flores?Os anjos lá no céu tão cantando mil louvores.

Esta, como a anterior, é cantada até oom-pletar dez vezes.

Pelo texto, as duas "inselências'' acima de-

Page 28: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

viam ser cantadas de preferência na "sentine-la" de moça, isto é, pessoa que morre virgem.Este "adeus, irmã dos anjos" só pode referir-se.a pessoa que nunca teve contato carnal. Na se-gunda "inselência" também vemos o seguinte:"Quem foi que mereceu esta capela de flo-res?" - capela de flores alusiva, não resta amenor dúvida; à virgindade da morta, pois,como sabemos, o uso da grinalda de flores delaranjeira entre nós é privilégio das virgens.

Entre o povo do Nordeste o tabu em tornoda virgindade, mormente no interior, é coisa.seríssíma, mantém-se inalterável. Moça queperde a virgindade, sem ser pelo casamento,corresponde a morrer em vida para a família ea sociedade, que a relegam ao ostracismo.

Quando morrem solteiros, rapazes ou mo-ças, têm enterro diferente, o caixão é azul e ascoroas ou flores que acompanham são brancas,símbolo da virgindade, Em Juazeiro do Norte,quando morria uma moça, o enterro só podiaser acompanhado por moças e crianças, emrespeito à pureza da morta.

A "sentinela" dura toda a noite, ao som

2Q

Page 29: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

das "ínselêncías", da reza do Ofício de NossaSenhora, do terço e da ladainha. Quando vem"rompendo a barra", isto é, amanhecendo, can-tam então o seguinte bendito:

Lá vem a barra do dia,Lá vem a Virge Maria.Lá vem três anjinho do céuPara sua companhia.

As rezas, os benditos, as palestras, os na-moros, a distribuição de café e cachaça prosse-guem até que chegue a hora da despedida.

30

Page 30: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

5. AS "INSELÊNCIAS"

Começou-se em seguida a rezar, eram 13horas, aproximadamente, "Maria Valei-me", oSanto Ofício e outros benditos, Cantou-se a"inselência" das Almas" que é repetida dozevezes, mudando-se apenas o primeiro verso:

Uma inselência das almasQuem nos deu foi a Mãe de Deus,Adeus, irmão das almas,Ó irmão das almas, adeus.

Na 2.a vez canta-se alterando o 1.0 versoda seguinte forma:

Duas, inselências das almas

Na 3.a vez: - Três inselências das almas,

31

Page 31: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

- e assim por diante, até cantar doze vezes,com o restante da quadra igual à primeira.

As "inselêncías" têm diversas letras e mú-sicas, e diversas delas foram cantadas no"quarto" feito a João Maximiniano.

Raimunda Maximiniano da Silva, primado morto, que foi o grande amor de sua vida, éexímia "cantadeíra" (nome que se dá, no inte-rior do Ceará, às carpideíras) , acostumada acantar nas "sentinelas" dos defuntos da região.Neste enterro, porém, a sua dor impediu-a decantar e as "inselêncías" foram tiradas pelasjovens Maria Silva, Francisca e Antônia Maxi-miniano, sobrinhas do morto, Sentadas nochão, do lado dos pés do cadáver, tinha cadauma delas um lenço na mão, que, de vez emquando levavam aos olhos como se isso fizesseparte do ritual, pois não estão chorando. Vãocantando seguidamente as "inselências", pri-meiro a das Almas, depois a dos Anjos, mesmosendo enterro de adulto:

32

Page 32: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Lá vai um anjinho pro céuTodo cercado de luz,Nossa Senihora da GuiaAbra as portas, meu Jesus r ,

Deus te salve,casa santa,Onde Deus fez a morada,Onde mora o cálix bentoE a hóstia consagrada.

Os versos prosseguem neste diapasâo, atécompletarem doze anjinhos ,

O número de vezes que f(~ repetem os ver"sos varia: há "inselências" que devem ser can-tadas 7, 10, 11 nu 12 vezes e delas r:IOS fala apoetisa paraibana radicada €m S. Paulo, Mari-lita Pozzoli:

"Vão cantar a noite inteiraaté o dia raiar.Vão cantar as "inselença"que é pro João se salvar.Uma "inselença" da Virge da Conceição,Deus num primitas que eu morra sem

Icunfíssão,

r 3::3:

Page 33: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Duas "inselença" da Virge da Conceição,Deus num primitas que eu morra sem

lcunfissào,Três "inselença" da Virge da Conceição,Deus, num primitas que eu morra sem

lcunfíssão,Quatro "inselença"- São doze "ínselença"E não pode pararPorque senão dá azar ... "

Quando se aproxima a hora do enterro,canta-se então o Santo Ofício, (Ofício de NossaSenhora), o que foi feito por um tio do morto,Raímundo Maxíminíano da Silva, homem deidade avançada, acompanhado por Josefa, irmãdo morto e outras pessoas presentes.

No trecho do Ofício em que há o verso -"Desce Deus do Céu para às criaturas" - osrezadores se inclinam até encostar a testa nochão. O Ofício é reza muito em uso em toda aregião e é cantado, tanto como o terço e a la-dainha são rezados.dê joelhos. Depois dele vementão a "ínselêncía" da Despedida, tambémcantada doze vezes, da seguinte forma:

Page 34: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Bendito, louvada sejaMeu Jesus da Piedade.VaE10Srezar aos doze após talosE a San tíssíma Trindade.

É um irmâo apóstoloQue ganhou o Paraíso,Adeus, irmão, adeus,Até dia de juiza.

QuandO' eu falo em Deus, me alegraNo meio da cristandade,Me alembro das três pessoas, irmão,Da Santíssima Trindade.

E-sta "inselência" é das mais longas, poisestes versas vão repetidas doze vezes, com estasimples mudança:

É um irmão apóstolo, na I." vez,Somos dois irmãos apóstolos, na 2.a,

Somas três irmãos apóstolos, na 3.a e assimpor diante, acrescentando:

Que ganhemas O' paraíso, a partir da 2';a vez.

Page 35: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Depois de rezada a "inselência da despedi-da", a rede é trazida para a sala, depois de colo-cada numa grade feita de quatro paus fortes. Àstestas da grade são amarradas os punhos darede onde o defunto é colocado sem que cresseacantoria. Ao colocar o morto verificaram que agrade estava muito estreita, não dando passa-gem ao corpo enlarguecido pela posição dosbraços cruzados e das mãos trançadas sobre opeito. Apesar de experimentarem a entrada docadáver em todas as posições, de quina, viradopara um e outro lado, não conseguiram fazê-toentrar ..Colocam novamente o defunto na estei-ra no centro da sala e voltam com a rede parao terreiro a fim de alargar a grade.

Enquanto o enterro não sai, fica-se rezan-do ou cantando terços, benditos, "inselências",pois é corrente que quando não se reza, o de-mônio vem para perto do morto, em forma deraposa ou de cachorro.

Sem que cesse a reza, ouve-se por fim acantoria da "despedida" propriamente dita,nestes termos:

Page 36: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Lá se vai quem cá tornouQue Jesus nos concedeu,Vem nos renovar saudadeAdeus, Nossa Senhora, adeus.

Se o tempo for duranteEu cá tornarei avir,Vem nos renovar saudadeAdeus, Nossa Senhora, adeus.

Ajudai-me meu povo,Ajudar-me a despedir,Até dia de juizoAdeus, Nossa Senhora, adeus.

Adeus casa, adeus saudade,Onde as aves entristeceram,Vem nos renovar saudadeAdeus, Nossa Senhora, adeus.

Nesta "ínselência" o termo durante (se otempo for durante) quer dizer duradouro, e overso "eu cá tornarei a vir", evidencia clara-mente a idéia cristã da sobrevivência do espí-rito, ou a idéia espírita da reencarnação.

37

Page 37: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

6. .A' DESPEDIDA

Chegada a hora de sair o enterro, vem adespedida da família, ponto culminante dacena mortuária. A despedida é feita em geralcom grandes choros, beijos, abraços no morto,lágrimas abundantes e exclamações que como-vam 08. presentes. Há ainda a tragédia dos des-maios, dos ataques nervosos, remediados pelosocorro dos amigos, dos chás calmantes, daesfregação dos pulsos com álcool e, moderna-mente, com a aplicação de injeções sedativas,etc ..

Terminados os últimos adeuses, fecha-se ocaixão e acha ve é guardada pela família domorto. Em Juazeiro do Norte, usava-se anti-gamente fechar o caixão do defunto com ca-deado. Hoje se usa apenas fechadura simples,

" ·,38

Page 38: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

e dela temos notícia através desta quadra donosso poeta Soares Bulcão:

A chave de fita escuraCom que fechei teu caixão,Ê a mesma da fechaduraQue trancou meu coração.

.39

Page 39: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

7. ACOMPANHAMENTO DO ENTEHHO

Colocado por fim o defunto na rede, trazi-da pela segunda vez para o centro da sala, re-pousa este de braços cruzados sobre O' peito. ""-rede é carregada por quatro homens, cada umdos quais segura uma das pontas dos quatropaus que formam a grade.

Na zona de S. Gonçalo do Amarante o en-terra [,8 faz geralmente entre quatorze e quin-ze horas, debaixo de um sol de fogo, tendo osacompanhantes que romper uma légua deareia, subindo morro, com a rede aos ombros.Para terem ânimo nesta escalada, tomam ca-chaça, quando vêm para a casa do defunto, enesta a garrafa de cachaça anda entre os quevão acompanhar o enterro, para que cada umtome seu "trago". No caminho ainda vão pa-rando nas vendas para tomar outras "doses".

\ 40

Page 40: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

No trajeto de casa para o cemitério osacompanhadores do enterro marcham em com-

-.passo de trote e vão gritando, numa espécie deaboio:

- Chega, "irmão das almas" -. para quevenham outras pessoas ajudar a carregar o de-funto. Este, ao ser levado para o cemitério, não

· deve parar diante de nenhuma residência, o· que é sinal de mau agouro - está chamando· outro.

No entêrro verificado no cemitério de Siu-pé, não houve toque de sinal, (dobre de sino),nem encomendação do corpo na igreja, em vir-tude da ausência de padre na região. A rede foiconduzida diretamente para o cemitério, ondefoi depositada no chão, enquanto abriam a

· cova, após o que o corpo foi enterrado apenascom a mortalha. Rede e lençol voltaram para afamília e, depois de bem lavados, terão a ser-ventia anterior.

-;41. \;

Page 41: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

A hora da saída do enterro varia entre 8,10, 16 e 17horas, de acordo com a da morte; ànoite, só em casos excepcionais.A professoraCarmusina Arraes Freíre, disse-me ter assisti-do excepcionalmente, nestes últimos anos, emLimoeirodo Noite, a um enterro à noite e comvelas acesas. Em Juazeiro do Norte, mesmo du-rante o dia, usavam Os acompanhantes velasacesas, distribuídas pela família do morto. Como encarecimento do custo de vida perdeu-seessecostume. Nesta cidade também era uso dasfamílias ricas fazerem acompanhar os enterrosdo toque do "funeral", Já em Tauá e Limoeirodo Norte não se usa acompanhamento de en-terro com música, mas com a reza do terço, ti-rado pelo Padre, que abre o oortejo, e pelo"sinal" que vai tocando o sino, de acordo com

Page 42: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

à vontade e posses da família; quem quer maissinal paga mais, uma, duas horas, contantoque a um defunto cristão não deve faltar o"[Ir.Ct~", que tanto pode ser simples como do-brado, isto é, tocado em um só sino ou em maisde um. Para enterro de crianças usa-se o repi-

. que, combinação de sons festivos de sinos.João Brígido, no seu livro "O Ceará (lado

cômico)" traz esta página sobre o "sinal":"Um Peixoto, do Riacho-da-Sangue, con-

tava assim o enterro de sua mãe:- Quando a velha minha mãe morreu, tio

José disse ao são cristão: Toca vintem! toca, " I' . té !'v.ntem: ... e o smo começou: Vln m ..... VIn-

tém!l/tas ti Mané arrojou pra riba e disse ao são

cristão: toca tostão, toca tostão e o sino come-çou: tostão... tostão ...

Depois veio o Padre, botaram ela no girauda igreja e sairam cantando.

Vintém era o sinal em sino pequeno, desom estridente; tostão no sino maior, de somcavernoso. Girau da igreja era a tumba, que osconvidados carregavam à mão.

Page 43: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Um nosso tio-avô, sempre convidado parafazer tais honras, desapontou um dia:

- Quanto defunto morre nesta vila eu heide carregar! ...

Quando eu morrer, não há de haver quatrodiabos que me carreguem!"

O enterro é acompanhado pelo vigário, porhomens, mulheres e crianças. Quando o mortoé bem relacionado ou pertence a alguma asso-ciação religiosa, é seguido por todas as outrasirmandades, que vão formando alas de um ladoe outro do caixão, transportado pelos amigosdo defunto. Em algumas cidades do interior,como por exemplo em Juazeiro do Norte, usava-se cantar no acompanhamento dos enterros demoças e de crianças o bendito - "Com minhaMãe estarei".

o préstito entra obrigatoriamente na igre-ja, a não ser em caso de suicídio, quando nempassa pela igreja e nem se enterra no "sagra-do". o Padre faz a encomendação do corpo esegue à frente do cortejo até o cemitério. A fa-mília e os amigos mandam fazer coroas cominscrições, que são colocadas sobre o caíxâo,

44

Page 44: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Quando o defunto é pessoa bem relacionada ouimportante, é político ou autoridade, há dis-cursos no cemitério e, ao descer o caixão à cova,(isso se faz de preferência nos enterros pobres),os amigos colocam sobre ele uma pá de terra.Em Limoeiro do Norte, cada acompanhante doentêrro põe sobre o defunto uma mão cheia deterra e raramente usa a pá, o que é uma supers-tâção: colocando a terra com a mão, a pessoanão terá medo da alma do morto.

Quando o enterro é feito no interior, a fa-mília do morto, querendo e podendo, mandabuscar caixão envernizado na capital; quandohá falta de transporte, manda fazer, na própriacidade, caixão de cedro coberto de fazenda pre-ta e com galões dourados, quando o morto écasado ou viúvo. Anjo, moça e rapaz têm caixãocoberto de fazenda azul e enfeitado com galõesprateados.

Mas, esses enterros de que estamos falandosão enterros de cidade do interior, feitos emcaixão. Vejamos agora quando o enterro é feitoem rede e vem de sítios ou fazendas distantes,onde não há cemitérios.

45

Page 45: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

A rede usada para enterro é a comum, comvarandas de croché ou de malha, de preferên ~cia branca. O morto vem envolto em lençol. Naocasião do enterro, tanto a rede corno o lençolsão retirados e voltam para a família que, de-pois de lavá-los, passa a usá-los como dantes. Ocadáver é lançado à cova apenas C:Jn1 a mor-talha.

Corno já relatei no m.lClO deste trabalho,para facilitar o transporte a rede em que o de-funto é conduzido vai colocada em. uma s:a~Lfeita de quatro paus fortes" em cujas testas ospunhos são atados. Em outras ocasiões e cnmaior número de localidades usam apenas urrpau furte e longo, em cujas extremidades sâcpresos os punhos da rede. Dois carregadores, :::,';a rede pende de pau, e quatro se vai em gradelevam o defunto numa marcha em compass,de trote.

Esta observação muito oportuna da mareha em compasso de trote em que é levado (defunto, foi-me feita por Maria Gonçalves, de

46

Page 46: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Rocha Leal e Martins d'Alvarez se refere a estacadência própria da marcha de carregar defun-to denominando-a de marche-marche.

Geralmente vem o defunto acompanhadode grande número de pessoas, algumas a cava-lo, outras a pé, e que se vão revezando no car-regamento, Em zonas de várzeas extensas eplanas, como as do vale do Jaguaribe, o acom-panhamento também é feito em bicicletas,transporte característico da zona.

Page 47: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

8. "CHEGA, IRMÃO DAS ALMAS!"

Durante a jornada, não se dispensa bebi-da, de preferência cachaça. Assim, vão osacompanhantes "matando o bicho" em todasas vendas por onde passam. Vão conversandopelo caminho, contam anedotas, riem. Há re-giões, como a de S. Gonçalo do Amarante, pormim visitada e onde assisti ao enterro inicial-mente descrito, em que, quando o cortejo seaproxima de uma casa onde há homem, gritamO'S acompanhantes - "Chega, írmâo das al-mas!", para que venha alguém auxiliá-los, en-quanto noutras, como Limoeiro do Norte, nãose faz convite na estrada a pessoas que encon-tram, estas seguem espontaneamente o en-terro.

Vejamos, pela descrição que nos faz o poe-ta Martíns d'Alvarez, a maneira. como eram

Page 48: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

feitos, há quarenta 'anos, os enterros-de roça-dasua terra natal - Barbalha (2r::

"Trata-se do funeral que se costuma fazerna roça. Antes, porém, é bom advertir aos quenão conhecem o interior nordestino, que o ser-tanejo de lá tem duas paixões na vida: o cavaloe a rede. 'o cavalo para a luta e-a rede para odescanso. Assim, quando o sertanejo morre ou"descansa", como também se diz entre eles,ainda é na rede que vaí levado ao.cemitério; Semorre no sitio ou na fazenda, a rede é atadapelos punhos a uma longa estaca de madeira.Dentro dela põem o defunto e cobrem-no comum lençol. Quase todos os sertanejos são cató-licos fervorosos; daí só admitirem o sepulta-mento de seus mortos no cemitério do povoadoou cidade mais próxima, ao qual chamam sim-plesmente "o sagrado". Como sempre precisamde auxílio para carregamento do defunto atra-vés de longos percursos, instituiram uma asso-ciação denominada "Irmandade das Almas".

2 - "O Nordeste que o Sul não conhece" - Martlnsd'Alvarez - Publicação do Rotary Olub de aio Pau-lo - 1955.

Page 49: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

_,Qg.~~o .têm, portanto, um.deíunto a enterrar,os irmãos das .Almas da vizinhança se reúnem,

'~J~ois<ie,les.suspendem aos ombrosas .extremida-<. d,e1?da -estaca.ida _qual pende a rede com·o de-fu,uto, e s~ vão estrada em fora, mudando de.carregadores .aqui -e ali. Durante o percurso os

;;.homensmarcham aceleradamentee umdeles,'. de vez.em quandogrita bem alto conclamando

.D,8 conírades que moram perto para aux.liá-loc,;.9c;>_p::1O .todos são ocupados durante o dia, estes,..funerais tem sempre lugar à noite, o Que torna

-t ~" ,_ •. , "" . . - .

i:;ai.nd_~mais triste e lúgubre o cortejo.Este quadro, a que assisti .muitas vezes na

,,-minha meninice, ficou-me gravado de tal modono espírito, que pude reproduzí-lo, há bem

,.pouco tempo, neste poema:.).... . . .

Dentro da noite,num marche-marchecortando a fitada estrada clara,os homens seguem,num marche-marche,levando a redepro cemitério.

Page 50: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Dentro da redese embalançando,bambo e curvadocomo um presunto,como um presentodentro de um. saco,se embalançandovai o defunto.'

E a voz dos homens,de quando. em quandofere a dormêncía .das horas calmas,num. vago apêlo .cheio de angústia:- Vínde ajudar-nos,Irmãos das Almas!

Punhos atadosà longa estaca,que os homens levamsuspensa aos ombros,a rede seguepara a cidade, '.

. ,.

·····51

Page 51: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

leva o defunto ,,", ,.',para o "sagrado"., ..

' .... I"

Grilos ~\~ila;p",: ",.; :-dentro q~.mato. ';'}Sapos r(!~pQn~aÍn" ,_ ,na escuridão.:';) ",' -' , ~"

.. ;..• - '.:, ,.'

E o vento 're,~~;_) .."nas folhas secas,singelos Atos,de COlúiíç'ã;o: j; ,

E a voz doshomenssobe na nôite'·, ." ':,<,1;

como o louco anséíode mãos, espalmas,mãos .que aflítivaspedem sOcorro:" .',. ;- Vinde ajudar-nos,Irmãos das Almas!

.••. i

A rede ..passasuspensa: em ..ombros"se embalançando, ;"se embalanç~49:~ .. ,;. :'.'

, ;

Page 52: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Come)' se o" mortofosse a ninar ,E aves noturnastecendo ágoíros,

,;

sobre o cortejo,cheias de espanto,rasgam mortalhasnegras pelo ar.

E 00 triste apêlnque os homens lançam,de vez em quando,nas horas calmas,apenas o eco,bruxoleante,responde ao longe:

... Irmãos das Almas!"

Há uns bons quarenta anos, Martins d'Al-varez assistiu, na zona sul do ,E~t~<l:o,no Carírí,a um enterro assim descrito. Hoje, volvidostodos estes anos, assisto noutra zona" no norte

53

Page 53: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

00 mesmo Estado, a enterro semelhante. Hou-ve apenas duas variantes: a hora em que o en-terro é realizado e a maneira de conduzir arede. No assistido outrora, o enterro se fazia ànoite, por estarem durante o dia todos ocupa-dos. A rede era atada pelos punhos a uma lon-ga estaca de madeira ..O enterro a que tive deassistir, realizou-se às 14 horas. A rede estavacolocada numa grade feita de quatro estacasfortes. Razão tinha, pois, José Nascimento deAlmeida Prado quando disse que no nordeste,pelo espírito conservador e índole do povo, de-vem perdurarpor mais tempo esses costumesdos nossos maiores ..' .

É costume que, ao aproximar-se do cemi-tério, os mesmos homens que saíram com arede de casa também entrem com ela no cam-po santo.

Quando, no lugarejo para onde se dirige oenterro há igreja, o corpo fica no adro, espe-rando que cavem a sepultura. Onde não háigreja, o cadáver fica no cemitério, enquantoabrem a cova.

54

Page 54: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

o acompanhamento do Padre e o toque do"sinal" são pagos pela família do morto. Se elaé pobre e o enterro é feito com auxilio dos co-nhecidos, o defunto, irá para o céu mesmo semsinal e sem Padre.

Page 55: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

g. o SAGRADO E O PROF'ANONAS "SENTINELAS"

Artur Ramos, referindo-se ao guardamen-to do defunto, itambi ou funeral (3), diz que omesmo "constitui para uns pretexto para co-mer, motivo de festas para outros e para algunscausa de choros e de lamúrias: é uma cerímô-nia em que o profano corre de mistura com osagrado. Chora-se, dão-se tiros em sinal detristeza, mas simultânamente dançam, jogam,brincam, comem e embrigam-se. "

Efetivamente o guardamento do defunto,que entre nós toma o nome de "sentinela""guarda" ou "quarto", é ocasião de mágoa,choro, Iamentações para a família do morto,

3 - "O Negro Brasileiro" - Artur Ramos, BibliQteca deDivulgação Cientiflça,R1o, 19a4.

Page 56: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

más para o ajuntamento de pessoas que sem-pre se forma no chamado "sereno", é lugarpara encontro de namorados, de amigos que sedistraem contando anedotas, e outras vezeslugar para desavenças entre pessoas que, exce-dendo-se na bebida que comumente distribuemnessas ocasiões, perdem o controle. Namoros,conversas e arruaças fazem com que o ambien-te da "sentinela" perca aquele clima de proíun-da tristeza, de pesado luto que espantaria fa-talmente os que ali vão, não para rezar ou pres-tar a última homenagem ao morto, mas parafolgar. Daí a razão de se terem acabado, emalgumas zonas, como no Juazeiro do Norte, as"sentinelas" com o canto das "inselêncías'v.oque ainda atraia mais gente.

Corroborando o que acima expressa ArturRamos, vamos encontrar em escritores do sé-culo passado, como Rodolfo Teófilo e JuvenalGaleno, primos e contemporâneos, o relato fiel,no primeiro, em prosa, no segundo, em verso,da maneira como era recebida e comemoradapelos pais a morte de uma criança. Esse fato,em vez-de proporcionar tristeza, era motivo de

Page 57: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

grande satisfação, pois é corrente ainda -hojeque quem manda um "anjinho pro céu temquem interceda noite e dia por si junto :ienem"."

A Igreja nos fornece na pa.rte relativa à li-turgia dos mortos esclarecimento para expli-carmos a razão de ter degenerado a "sentinela"feita às crianças em festa, em dança, em lou-vação.

Diz a liturgia dos mortos, no que se refereà sepultura das crianças: "Quando uma crian-ça morre antes de ter o uso da razão, vai logopara 0' céu louvar a Deus com Osanjos. Assim,nos salmos não se diz RE'QUIEM AETERNAMMAS SIM GLORIA PATRI; a missa é a dosAnjos, com paramentos brancos e GLORIA INEXCELSIS. Cantam-se Vésperasdos Anjos" (4)

A caminho da Igreja, no. enterro, cantam-se os Salmos 118, 148, 149, 150. NO'Salmo 149encontramos 0' seguinte: "Cantai ao Senhor umcântíco novo. Louve-O a assembléia dos fiéis -

4 - "Missal Quotidiano e Vesperal" - Dom Gaspar Le-. febure - Bruges, Bélgica.

58-

Page 58: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Louvem em côro o seu nome: cantem-lhe aosom do tambor e do saltérío'' .

No Salmo 150 há esta parte: "Louvar-O aosom da trombeta: Louvaí-O com o saltérío e acíta:ra. Louvai-O com tímbales e em côro: Lou-vai-O com instrumentos de corda e cem órgão."

Creio estar aí a explicação para a maneiraaltamente profana como foi em algum tempocomemorada a morte das crianças. O "cânticonovo" do salmo, com que a assembléia dos fiéisdevia louvar o Senhor, o louvor ao som do tam-bor e do saltério, com tímbales e em côro, cominstrumentos de corda e com órgão, veio sendocorrompido através dos tempos, deturpadopelas sucessivas gerações até ser reduzido à"função" e ao "samba" de que nos falam osescritores acima citados.

Vejamos como nos descreve Rodolfo Teó-filo (5) a cena a que intitulou de "morrercriança" e que lhe causou grande estranheza:

"Atraído pelos acordes de uma viola, cno-

i - "O CUnduru" - Rodolfo Teófilo - COntos _ L" edi-ção - Tip, Minerva, Oeará, Fortaleza, 1910.

59"

Page 59: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

romíngandoum baíão, cheguei auma casinhade palha à sombra, de umfrondoso cajueiro:Um samba em dia nãosaritificado, era-casoestranho.

Aproximei-me e vi reunida no terreiro-dácasa muita gente em traje domingueiro.

Um tocador, um caboclo novo e franzíno,arrancava do instrumento tão.doces melodiasque não parecia um leigo na arte da música.Como vibravam aquelas cordas com tanta har-

. I'moma.

A viola; a lendária viola, o instrumentoquerido do baile popular, vai pouco a poucocedendo o lugar à harmônica do paroara, deuma melopéia áspera e pouco melodiosa.

Ao lado do tocador sentavam-se dois mestí-,ços, Os cantadores, os bardos da plebe, que vi-nham louvar - a bela sociedade - no dizer,deles.

As caboclas formavam roda. Quase todasvestiam o casaco de cassa florida e tinham oscabelos amarrados em cocó, cercado de cravôs.de defunto.

Page 60: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

. ;.: ;,Os homens, . de. camisa e calça" cercavam-por .sua vez o grupo de 'mulhere~,.

Aproximei -me.quanto pude .. Q1,leria.·sabe)o motivo do samba em dia útil.

Um dos cantadores 'cantou esta, quadra:

. Vivaseu Chico .das Neves,Viva Rosa de .Jesus,Viva o anjo filho delesQue foi de Deus ver a luz.......

<,,' t, A quadra deu-me o 'motivo da festa: era amorte de uma criança. Que selvagens, pensei.Aberei-me da pequena janela que se abria parao terreiro. A salinha da entrada estava deserta,'apenas o anjo, deitado no seu taboleiro, guar-'dado por um caboclo velho, o avô dele, que ca-beceava, não de sono, mas de aguardente.

01 anjo, o cadáver de uma criança de pou-co mais de um ano, estava amortalhado de.branco, tinha as mãos cruzadas sobre o peito,. sustentando uma pequena cruz de papelão_dourado. Da cinta para baixo matizavam o alvosudário inúmeros laços de fita estreita, de va-

Page 61: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

riadas cores. A cabeça emergia de um ramalhe-te de cravos amarelos. As faces, rubras de car .•mim, fingindo vida, destoavam dos olhos, mui-to abertos, mas rem brilho, apagados. O cabo-clinho estava teso como um prego.

Lá fora fervia o samba. Os cantadores nãocessavam de louvar a dita daquele menino quemorrera sem ter pecado.

As tijelas de aluá passavam de mão emmão e, de quando em vez, alguns copos deaguardente eram distribuídos aos convivasmais graduados.

Aquela alegria, aquela folgança me faziammal. Que usança bárbara! Eu desconhecia essapágina do viver do povo. Seria possível que atéa mãe do anjo se regozijasse com a morte dofilho, dançasse em roda do seu cadáver? Não,a mãe é sempre mãe. Ela devia estar na cama-rinha, afogando a sua dor no mais copiosopranto. Até as mães dos brutos choram, quan-do lhes morrem Os filhos. Pensava assim, quan-do a voz tremida de um dos cantadores mos-trou-me como sofria a mãe do anjo:

62 .

Page 62: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

, :;' .

"

Viva Rosa de Jesus,Que dança agora na rodaCom seu Bento das MarrecasRapaz galante, da moda,Viva a mãe do nosso anjoQue dança agora na roda.

Fitei a cabocla e tive o desgosto de ver queela não estava ali somente por comprazer. Dan-çava toda requebrada, saracoteando, tendo orosto radiante de satisfação. Que bárbaros!

Olham a morte de modo diferente. Não tê:mnervos para sentir as delicadas filigranas dasaudade. Eu não compreendia a psicologia dopovo. Eu os cria fracos, quando talvez fossemfortes até o estoicismo.

O que via, não era fortaleza, era dureza decoração, era insensibilidade.

Demorei -me para assistir o fim daquelacena selvagem. Não esperei muito tempo Eraa hora de mandar o cadáver para o cemitério.

O velho que o guardava teve ordem de con-duzí-lo. Deram-lhe uma lanterna de papelbranco, com uma vela acesa, que segurouna

'63

Page 63: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

mão direita, enquanto o pai 'do morto, comgrande desamor,sem um olhar de despedida,sem um beijo, o beijo da pragmática dos civili-zados, punha o taboleiro na cabeça do velho eo mandava embora.

A mâevíu sair o filho, para nunca maisvoltar e não o procurou para dar-lhe o últimobeijo!

Eu julgava cruel aquele proceder porque. ignorava o modo de sentir do povo. Este desco-nhece o beijo que, entre a gente educada, fazmuito mal e nenhum bem. A morte para eles f:-um beneficio, a cessação dos. sofrimentos, comopárias que são da humanidade.

Quando o enterro passou, os sambistas for-maram ala e romperam nos mais estrondososvivas ao anjinho, ao pai e mãe dele e à sua ma-drinha, a Virgem da Conceição. Enquanto agente assim berrava, foguetes estouravam noar.

Sumido que foi o esquife, continuou o sam-ba na mais viva animação. Saciado de tantabarbaria retirei-me, intrigado com semelhanteusança" .

Page 64: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Esse uso de que há memória apenas naspáginas de, escritores antigos, como RodolfoTeófilo,e Juvenal Galeno, hoje está completa-mente abolido.Das pessoas com quem falei ne..nhuma me deu notícia desse costume antigade celebrar com dança e cantaria a morte een-terro de um anjo.

Eis como Juvenal Galeno (6) descreve afunção, explicando-a antes com a seguintenota:

"É comum entre o povo festejar a morteda criança. Logodepois do enterro, faz-se umafunção, e nesta, ao som da viola, entoa-se adesafio louvores ao anjinho e aos pais deste,enquanto dança-se a bomdançar e perto estou-ra a roqueira ou bacamarte. Dizem - que felizé quem morre em tenra idade, porque livra-sedo futuro sofrimento e talvez da perdição eter-na, e que o anjo vai ao céu advogar a causa deseus pais. "

Agora nos descreve cena idêntica à narra-

6 - "Lendas e Canções Populares", 2.& edição _ GualterR. Silva, Editor...:,;.. Fortaleza, 'Ceata, UI92,.' '

Page 65: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

da por Rodolfo Teófilo, apenas com uma va-ríante: fala-nos da "função" realizada antesdo enterro dovanjo", estando este ainda nasala, enquanto Juvenal descreve a animação,mas já depois de realizado o enterro. Não 01....s-tante, de uma ou de outra forma, esse era cos-tume primitivo, chegando mesmo às raias daselvageria.

o ANJINHOCantiga a Desafio

- Nós que somos cantadoresDa função junto à viola,Enquanto dançam, cantemosAo soar de castanhola:

Louvemos da casa o dono,Can temos nosso louvor,A quem mandou um anjinhoPara os pés do Redentor.

-- Para 02, pés do RedentorPor seu pai e mãe pedir;Como são eles ditosos,E mais serão no porvir;

00- I

Page 66: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Por isso agora se ínãama,Nesta função o meu estro;Haja aluá e aguardente,Ai, senão, senão não presto!

- Ai, senão, senão não presto,Não é zombaria, não,A roqueira não estoura,Sem carrego e sem tíção;

Por isso sou atendido,Já sou outro, a voz se afina;Vivam os pais do belo anjinho,Enfeitado de bonina.

- Enfeitado de bonina,O anjo pra o céu subiu,Um adeus dizendo ao mundo,Quando a morrer se sorriu!

Por isso agora o louvemosNesta tão bela função,Enquanto na igreja o sino,Toca o bom do sacristão.

Page 67: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

- Toca obom do sacristão,Ê o sinal da alegria,De Jesus foi para o seio,O anjinho neste dia.

Por isso o louvo contente,Contigo,' meu companheiro,Ê'nquanto lá toca o sino,Dança o povo no terreiro.

- Dança o povo no terreiro,Onde corre a viração,Pois ° riso e felicidadeTêm aqui habitação;

Por isso agora louvemos,Ao som da corda dourada,Do anjo o pai venturoso,Do anjo a mãe estimada.

- Do anjo a mãe estimada,Ouça atenta o meu dizer:Como a Tola vi seu filhoVoar ao' céu com prazer;

Page 68: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

Por isso cantando eu louvoO anjinho que fugiuDeste vale só de prantos,Onde a dor talvez sentiu.

-' "Onde a dor talvez sentiu,Sentã-la não pode mais,

, Na terra passou ligeiro,Qpal brisa nos laranjais;

Por isso louvando, eu digoDa viola ao camarada:Brademos três vezes - vivamOs donos desta morada!

- Os donos desta morada,Pai e mãe do belo anjinho,Que por entre frescas flores,Voou como um passarinho;

Por isso meu camaradaBrademos na ocasião:Salve o anjo, os donos vivamDesta casa e da função! ...

-"69;

Page 69: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

10. NO DOMíNIO DA LENDA

Interessante é verificar como certos fatosverídicos, pelo caráter extraordinário de quemuitas. vezes se revestem, assumem, com o cor-rer do tempo, foros de lenda, e como históriasfantásticas correm de boca em boca, como serealmente não tivessem acontecido.

A respeito da invasão motorizada do ser-tão, pelo caminhão, trem e até avião, ainda épossível encontrar recantos onde os habitasprimitivos continuam os mesmos e um exem-plo frisante desta assertiva é termos encontra-do hoje, decorridos quarenta anos da época fo-calizada por Martins d'Alvarez, no enterro deroça a que se reporta e em zona diversa, osmesmos costumes por ele descritos.

O avanço da civilização,com.o seu cortejoobrigatório de utilitarismo e de deslocaçãopara

: 70

Page 70: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

segundo plano das coisas do espírito, quase quenão permite mais em nossos dias a manuten-ção de clima favorável para a sobrevivência doque assume caráter lendário. Não obst'ante, édos nossos dias a história que me contou a pro-fessora Carmusina Arraes Freire, residente nacidade, sede de Bispado, de Limoeiro do Norte.Eis o que ela nos conta, com a recomendaçãode merecer fé, por ter sido ouvido de pessoasverídicas:

- Um homem acompanhava todos os en-terros que passavam à sua porta, Morava elenuma fazenda do município de Iracema, Ceará.Não se sabe porque o referido homem, ao acom-panhar os enterros, só ia até determinado lugar.

Ultimamente morre esse homem. Levam-no para 0' cemitério mais próximo. Não conse-guiram, porém, ultrapassar o lugar de onde elesempre voltava dos enterros. E lá se ficou o cor-po dele no sopé da ladeira. No local uma cruzfoi erigida para que a tradição sertaneja trans-mi ta essa história às gerações vindouras, di-zendo da força invisível que deteve o cortejoali, impedindo que fosse adiante o cadáver do

7t

Page 71: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)

-sertanejo avaro de maior generosidade paraacompanhar os. mortos à sua últímamorada.

•• •• *

São estes alguns dos RITOS FÚNEBRES]),9 INTERIOR DO CEARÁ, vários já inteira-mente desaparecidos, como o da louvação do,:'~anjínho", de que só temos notícia através deescritores de outro século, outros ainda em ple-no vigor, como o do enterro em rede, encontra-'do em extensaregião do Ceará, ou o da "senti-nela" comas "ínselêncías", atualmente jámui to raras.

7'i

Page 72: RITOS FÚNEBRES(no interior cearense)