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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA RICARDO HERMANN PLOCH MACHADO O vínculo entre a linguagem e a realidade Wittgenstein acerca da intencionalidade, do Tractatus às Bemerkungen São Paulo 2010

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  • UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

    RICARDO HERMANN PLOCH MACHADO

    O vínculo entre a linguagem e a realidade

    Wittgenstein acerca da intencionalidade, do Tractatus às Bemerkungen

    São Paulo 2010

  • Ricardo Hermann Ploch Machado

    O vínculo entre a linguagem e a realidade

    Wittgenstein acerca da intencionalidade, do Tractatus às Bemerkungen

    Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. João Vergílio Gallerani Cuter.

    São Paulo

    2010

  • Agradecimentos

    Aos meus pais,

    aos bons amigos,

    ao João Vergílio, à Geni e à Maria Helena, e à FAPESP, pelo apoio financeiro que possibilitou esta pesquisa.

  • RESUMO

    MACHADO, R. H. P. O vínculo entre a linguagem e a realidade – Wittgenstein acerca da intencionalidade, do Tractatus às Bemerkungen. 2010. 152 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. A noção de pensamento desempenha um papel fundamental no funcionamento da linguagem segundo a teoria da figuração do Tractatus Logico-Philosophicus. Cabe a ela realizar a projeção da realidade, composta em última instância de objetos logicamente simples, nas proposições de nossa linguagem que, não obstante não pareça assim, está em perfeita ordem lógica. Desse modo, quando a ontologia tractariana passa por uma radical revisão em 1929, ano em que Wittgenstein volta a Cambridge e ao trabalho filosófico em tempo integral, deixa de ser possível que o pensamento desempenhe a mesma função que anteriormente. Neste trabalho, buscamos investigar em que medida as transformações impostas à filosofia do Tractatus alteram a maneira como a linguagem consegue se referir com sucesso à realidade. Palavras-chave: Wittgenstein, linguagem, pensamento, lógica, gramática.

  • ABSTRACT

    MACHADO, R. H. P. The connection between language and reality – Wittgenstein on intentionality, from the Tractatus up to the Bemerkungen. 2010. 152 f. Thesis (Master Degree) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. The notion of thought plays a fundamental role in the way language functions according to the picture theory of the Tractatus Logico-Philosophicus. It is this notion that is responsible for the projection of reality, which is ultimately composed of logically simple objects, onto the propositions of our everyday language which, appearances notwithstanding, is in perfect logical order. In this way, when the tractarian ontology undergoes radical changes in 1929, the year of Wittgenstein’s return to Cambridge and to full time work in philosophy, it is no longer possible that thoughts play the same role as before. In this work, we try to investigate to what extent the transformations forced upon the Tractatus philosophy change the manner in which language can successfully describe reality. Key Words: Wittgenstein, language, thought, logic, grammar.

  • SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO....................................................................................8

    2 A INTENCIONALIDADE NO TRACTATUS......................................13

    2.1 O conceito de proposição tractariano............................................14

    2.1.1 Frege e Russell acerca da proposição e da verdade.................16

    2.1.2 O conceito de proposição das Notes on Logic...........................29

    2.2 A teoria do juízo de Russell...........................................................39

    2.2.1 A teoria das descrições..............................................................41

    2.2.2 A teoria dos tipos........................................................................53

    2.2.3 O juízo e a metafísica de fatos...................................................59

    2.3 A teoria da figuração e a ideia de uma sintaxe lógica...................62

    2.3.1 O pensamento............................................................................81

    2.3.2 As elucidações dos sinais primitivos..........................................90

    2.3.3 A linguagem ordinária e a completamente analisada.................96

    3 O COLAPSO DO MODELO TRACTARIANO DE ANÁLISE...........100

    3.1 O problema dos graus de qualidades..........................................100

    3.2 De uma lógica de tautologias a uma lógica de equações...........102

    4 A INTENCIONALIDADE NAS BEMERKUNGEN............................105

    4.1 Linguagem fenomenológica e verificabilidade.............................105

    4.2 O tempo e o fracasso do projeto de uma linguagem não hipotética...........................................................................................109

    4.3 A nova concepção de análise.....................................................117

    4.4 O desaparecimento do conceito de Vertretung...........................119

  • 4.5 A nova figuratividade...................................................................120

    4.6 A intenção....................................................................................130

    4.7 A ligação entre linguagem e realidade........................................136

    5 CONCLUSÃO.................................................................................144

    6 REFERÊNCIAS..............................................................................151

  • Tabela de abreviações

    Obras de Wittgenstein:

    Tractatus – Tractatus Logico-Philosophicus

    PhB – Philosophische Bemerkungen

    NB – Notebooks 1914-1916

    SRLF – Some Remarks on Logical Form

    WA – Wiener Ausgabe, volumes I e II

    Anotações de conversas com Wittgenstein:

    WWK – Wittgenstein und der Wiener Kreis

    VW – Voices of Wittgenstein

    Obras de Russell:

    Pples – The Principles of Mathematics

    OD – “On Denoting”

    Principia – Principia Mathematica

    Obras de Frege:

    Bg – Begriffsschrift

    KS – Kleine Schrfiten

  • 8

    1 INTRODUÇÃO

    Pode parecer estranho eleger como tema de pesquisa o que um determinado filósofo

    tem a dizer acerca de uma noção cujo nome nunca é mencionado em sua obra e que é central

    para uma tradição filosófica – a fenomenologia – normalmente caracterizada como

    diametralmente oposta àquela que o tem como uma de suas principais figuras. Até mesmo já

    foi dito que, se existe um filósofo de quem Wittgenstein está mais afastado no mundo

    filosófico contemporâneo, este é Husserl, justamente o fundador da fenomenologia.1 E, com

    efeito, não se vai encontrar na obra de Wittgenstein nada parecido com “uma ciência da

    consciência fundada na elucidação das estruturas intencionais dos atos e de seus objetos

    correlativos, o que Husserl chamava de estrutura noético-noemática da consciência.”2 De

    modo que, se a única forma de abordar a intencionalidade é por meio da fenomenologia

    concebida à maneira husserliana, é difícil deixar de imaginar que o que nos propusemos a

    fazer nesta dissertação constitua um imenso desperdício de tempo e papel. Mas, ao menos em

    relação ao antecedente do condicional anterior, a situação não é bem essa. Se tomarmos por

    base uma definição suficientemente geral e (na medida do possível) pouco contaminada

    filosoficamente da intencionalidade, poderemos imediatamente ver como o interesse por essa

    noção atravessa toda a obra de Wittgenstein – e em especial a parte dessa obra que

    pretendemos explorar, sua primeira filosofia e o início do chamado período intermediário.

    Encontrar esse ponto de partida, por sua vez, não é tarefa muito complicada.

    Em seu livro Intencionalidade, publicado em 1983, John Searle oferece esta

    formulação preliminar da noção cujo nome é o título de sua obra: “A Intencionalidade é

    aquela propriedade de muitos estados e eventos mentais por meio da qual eles se dirigem ou

    são sobre objetos e estados de coisas no mundo. Se, por exemplo, tenho uma crença, ela deve

    ser uma crença de que tal e tal coisa seja o caso; se tenho um medo, ele deve ser medo de algo

    ou de que algo vá acontecer; se tenho um desejo, deve ser desejo de fazer algo ou de que algo

    aconteça ou seja o caso; se tenho uma intenção, deve ser intenção de fazer algo.”3 Segundo

    esta definição, um relato como “Creio que a encomenda chegará hoje” descreveria um estado

    mental que é intrinsecamente individuado por duas características: em primeiro lugar, pelo

    tipo de fenômeno mental, especificado pelo verbo “crer”, do qual meu estado mental é uma

    instância; em segundo lugar, por aquilo em que creio quando estou nesse estado mental, a

    saber, que a encomenda chegará hoje. Pois, se, em vez de crer que a encomenda chegará hoje,

    1 Cf. [Bouveresse, 1987], pp. 20-21.

    2 [Moran, 2000], p. 16.

    3 [Searle, 1983], p. 1.

  • 9

    eu desejasse que isso acontecesse, ou ainda se eu não cresse que ela chegará hoje, mas

    amanhã, eu estaria em outro estado mental. No primeiro caso, o que muda é o tipo do estado

    mental em questão – o que era uma crença passa a ser um desejo – e, no segundo, o que pode

    ser chamado de conteúdo do estado intencional, indicado em um relato pela cláusula “que p”

    – p, que antes era “a encomenda chegará hoje”, passa a ser “a encomenda chegará amanhã”.

    Embora Searle também fale de estados intencionais que se dirigem a objetos no mundo,

    limitaremos nossa discussão a seguir aos estados que podem ser descritos por uma instância

    da forma “A verbo que p”, na qual “verbo” marca o lugar de algum verbo intencional, como

    “crer”, “desejar” ou “temer”, e “p”, o de uma proposição determinada.4

    Os verbos intencionais marcam as distinções específicas entre os estados descritos

    pelos relatos em que aparecem, de modo que é possível que estados de tipos distintos, mas

    mesmo conteúdo, mantenham relações diferentes com aquilo a que se dirigem no mundo. A

    fim de exemplificar isso, tomemos o caso das crenças, mencionado no parágrafo anterior.

    Estas, ao contrário de fenômenos mentais de outros tipos, como os medos ou desejos, podem

    ser verdadeiras ou falsas, propriedade que depende da existência ou inexistência daquilo em

    que se crê quando se está nesse estado. Ou seja, não é apenas o relato “A crê que chove” que é

    verdadeiro ou falso dependendo da ocorrência do estado intencional descrito – assim como o

    valor de verdade de “A deseja que chova” depende da ocorrência de determinado estado

    intencional em A –, mas também a própria crença descrita deve apresentar um valor de

    verdade: ela é verdadeira caso efetivamente esteja chovendo, ou falsa, caso não chova. E esta

    peculiaridade das crenças parece particularmente útil para o esclarecimento da natureza dos

    conteúdos dos estados intencionais. Pois, se o conteúdo desse tipo de estado é aquilo em que

    se crê quando se está nele – precisamente o que é indicado pela cláusula “que p” em seu relato

    –, a dependência do valor de verdade da crença em relação à ocorrência ou não ocorrência de

    um evento no mundo sugere que seja este evento o conteúdo do estado intencional em

    questão. Ora, esta afirmação não parece nada problemática se levarmos em conta apenas as

    crenças verdadeiras. Dizemos que A crê corretamente que chove quando efetivamente chove,

    e assim que o conteúdo de sua crença é o fato de que chove. Entretanto, a situação não

    permanece tão simples quando passamos a considerar as crenças falsas.

    4 Esta limitação ganhará pleno sentido quando abordarmos o uso que Wittgenstein faz da teoria das descrições

    russelliana no Tractatus. Pois ali ficará claro que, se é possível falar com sentido de um (e apenas um)

    determinado objeto – não tractariano, evidentemente –, ele deverá ser necessariamente complexo e, assim,

    descrito por uma proposição. Embora essa proposição não ganhe expressão sensível no sinal utilizado para

    nos referirmos ao objeto, no plano simbólico – do sentido, propriamente – o que ocorre é a “síntese de um

    complexo num símbolo simples”, que “pode ser expressa por meio de uma definição.” (Tractatus, 3.24)

  • 10

    Supondo que o comportamento das crenças falsas seja idêntico a esse suposto

    comportamento das verdadeiras, isto é, que seu conteúdo seja aquilo que é o caso quando ela

    é verdadeira, uma primeira possibilidade seria admitir que o mundo é composto tanto de fatos

    verdadeiros quanto de fatos falsos. Os primeiros seriam os conteúdos de crenças verdadeiras,

    os últimos, de crenças falsas.5 Mas será que é preciso pagar um preço tão alto como o de

    admitir falsidades objetivas a fim de explicar como é possível crer falsamente em algo? É

    fácil ver como a raiz dos problemas com essa linha de raciocínio está em tomar fatos no

    mundo enquanto conteúdos de crenças verdadeiras. Na medida em que crer em algo é dirigir-

    se a um evento como o conteúdo de um estado mental, crenças falsas, para que não deixem de

    ser crenças, precisam também possuir um conteúdo. Naturalmente, o conteúdo não pode ser o

    fato que a tornaria verdadeira, pois é justamente a ausência deste que a torna falsa. Postula-se,

    então, que crenças falsas possuam como conteúdo falsidades objetivas. E que outro caminho

    explicativo se abre se decidirmos negar que o conteúdo de um estado intencional seja um fato

    no mundo?

    A questão que reaparece com essa forma de compreender o conteúdo dos estados

    intencionais não é nada menos que o antigo problema do falso, tal como ele aparecera no

    Teeteto de Platão. Se parece possível explicar o funcionamento das crenças verdadeiras, uma

    vez que podemos encontrar no mundo algo a que elas supostamente se dirigem, as crenças

    falsas, por sua vez, tornar-se-iam impossibilidades de direito, já que seriam estados

    intencionais que não se dirigem a nada. A solução que encontramos para esse dilema nos

    escritos de Wittgenstein que cobrem sua primeira filosofia é bastante clara: quando cremos ou

    pensamos em algo, o que produzimos é uma representação de um evento no mundo. Esta

    representação é também um fato no mundo e é verdadeira ou falsa dependendo da existência

    ou inexistência do fato que ela representa. Desse modo, torna-se possível crer em p mesmo

    que p não seja o caso; o que faz as vezes de conteúdo do estado intencional é uma

    representação que não pode deixar de existir, porque é parte constitutiva do estado em

    questão:

    É claro, porém, que “A acredita que p”, “A pensa p”, “A diz p”, são da

    forma “ ‘p’ diz p”. E não se trata aqui de uma coordenação de um fato e um

    objeto, mas da coordenação de fatos por meio da coordenação de seus

    5 Este é a forma como Russell lida com as atitudes proposicionais nos Principles. Crer é uma relação binária

    que tem como termos o sujeito e uma proposição – uma entidade complexa objetiva, um constituinte da

    realidade. Se o sujeito crê em uma proposição verdadeira, sua crença é verdadeira; se crê em uma falsa, a

    crença é falsa. Esta noção de proposição é rejeitada com a teoria do juízo enquanto relação múltipla, fonte

    muito importante para a filosofia do Tractatus de Wittgenstein.

  • 11

    objetos. (Tractatus, 5.542)

    Para Wittgenstein, portanto, o problema da intencionalidade coincide com o problema

    da representação. Explicar como é possível dirigir-se a eventos no mundo requer explicar

    como é possível que um determinado fato no mundo possa ser utilizado como representação

    de outro fato possível. No Tractatus, as representações são concebidas como figurações, e seu

    funcionamento é explicitado pela famosa teoria da figuração que constitui o cerne da obra.

    Um fato pode ser utilizado como uma representação de outro fato na medida em que os

    constituintes de um correspondam, um a um, aos constituintes do outro, e estes estejam

    arranjados segundo uma estrutura que pode ser assumida pelos dois conjuntos de elementos.

    Contudo, para que a teoria da figuração sirva como uma explicação satisfatória da

    representação e, por conseguinte, da intencionalidade dos estados mentais, Wittgenstein

    propõe uma peculiar ontologia de objetos sempiternos dotados de propriedades essenciais que

    governam todas as suas possibilidades de combinação com outros objetos. Quando, em 1929,

    essa ontologia é rechaçada, torna-se necessário repensar a teoria da figuração e, por

    conseguinte, o funcionamento das representações.

    O que não quer dizer, no entanto, que, em suas grandes linhas, não persista algo

    semelhante à teoria da figuração na filosofia de Wittgenstein, quando este retorna a

    Cambridge e produz o material que serve para a compilação das Philosophische

    Bemerkungen. Pois representações continuam a ser concebidas como fatos no mundo que, em

    virtude de suas propriedades lógicas, estão internamente relacionadas a outros fatos possíveis:

    O que é essencial na intencionalidade, na intenção, é a figuração. É a

    figuração do que é visado. (PhB, § 21a)

    Eu apenas uso os termos a expectativa, o pensamento, o desejo etc. de que p

    seja o caso se esses processos têm a multiplicidade que se exprime em p;

    logo apenas se eles são articulados. (PhB, § 32a)

    Entretanto, sem a ontologia de objetos e estados de coisas elementares e logicamente

    independentes do Tractatus, a explicação do que seja a multiplicidade que um evento deve ter

    para representar um outro evento p deve assumir outras feições. A teoria da figuração, se deve

    poder ser preservada, terá de passar por transformações.

    Esta dissertação consiste, então, em uma investigação sobre teoria da figuração, desde

    sua origem nos escritos anteriores ao Tractatus até sua crise em 1929, com a volta de

  • 12

    Wittgenstein à filosofia e a compilação das Philosophische Bemerkungen.

  • 13

    2 A INTENCIONALIDADE NO TRACTATUS

    Tratar do tema da intencionalidade na filosofia de Wittgenstein à época do Tractatus é

    basicamente tratar da teoria da figuração que constitui o cerne dessa obra. Uma vez que essa

    teoria é uma maneira de explicar o sentido proposicional que diverge em importantes

    respeitos das explicações anteriores fornecidas por Frege e Russell, estes os responsáveis “por

    boa parte do estímulo às (…) ideias” de Wittgenstein expostas no Tractatus (TLP, Prefácio),

    parte importante do trabalho deverá ser o de obtermos clareza sobre o que deixava nosso autor

    insatisfeito com essas teorias alternativas e quais eram as razões que tornavam a nova

    concepção da proposição como figuração preferível àquelas. Do ponto de vista cronológico,

    basta uma breve leitura do mais antigo registro presente no Nachlass wittgensteiniano, as

    Notes on Logic de setembro de 1913, para perceber que nosso autor, mesmo antes de chegar à

    ideia de figuratividade que encontramos no Tractatus,6 já manifestava importantes reservas

    em relação a teorias da proposição de inspiração fregeana, principalmente no que dizia

    respeito à relação entre sentido e valores de verdade e ao estatuto das proposições lógicas, o

    que convidava a uma revisão fundamental das ideias de Russell e Frege a respeito do papel e

    funcionamento dos conectivos proposicionais.

    Grande parte das ideias presentes nesse texto foi posteriormente integrada ao

    Tractatus, o que mostra que essas críticas iniciais às posições de seus antecessores são

    consistentes com a teoria da figuração em sua forma acabada e constituem, ao menos

    temporalmente, o ponto de partida para a formulação da teoria. Especialmente significativa é

    a presença nas Notes de uma versão preliminar e quase literal do aforismo 4.063 do Tractatus,

    passagem que de certa forma encerra e resume as considerações sobre a proposição iniciadas

    no grupo de aforismos número 3, e na qual Wittgenstein propõe uma ilustração do conceito de

    verdade entendido à maneira de Frege e aponta quais são os equívocos contidos nesse modelo.

    Assim, começaremos nosso trajeto em direção à teoria da figuração pela exposição das

    principais ideias de Frege e de Russell (à época dos Principles) a respeito da proposição e da

    verdade, de modo que nos seja possível compreender o percurso realizado pelo próprio

    Wittgenstein até o Tractatus.

    6 Não há nenhuma ocorrência da palavra “picture” nas Notes on Logic e a palavra alemã “Bild” aparecerá pela

    primeira vez apenas em 29 de setembro de 1914, em uma passagem dos Notebooks, junto da célebre

    ilustração dos esgrimistas.

  • 14

    2.1 O CONCEITO DE PROPOSIÇÃO TRACTARIANO

    Wittgenstein pensa a proposição no Tractatus fundamentalmente à maneira de uma

    resposta às teorias da proposição de Frege e Russell. Sua nova teoria pode ser vista

    essencialmente como uma tentativa de restituir a unidade proposicional e superar as

    dificuldades que afligiam as teorias de seus antecessores justamente pela incapacidade de

    conservar essa unidade. O primeiro passo nessa restauração é resistir a tratar a proposição

    como o nome de um valor de verdade ou de um complexo, pois ao assim tratarmo-la fazemos

    com que a peculiar propriedade da proposição, a saber, a de ser um veículo de verdade ou

    falsidade, lhe seja algo exterior, e assim alheio à lógica. Tanto Frege quanto Russell, ao

    pensarem as proposições como nomes, fazem uso de dispositivos que introduzem uma cisão

    no conteúdo semântico proposicional e terminam por deixar logicamente inexplicável a

    relação que uma proposição tem com seu valor de verdade. O segundo passo diz respeito ao

    caráter composicional do sentido proposicional: contra Russell, e inspirando-se de certa

    maneira em Frege, Wittgenstein salienta o papel da forma na constituição do sentido, mas não

    como um dos constituintes da proposição, e sim como algo imanente ao símbolo, sem o qual

    ele não poderia chegar a significar o que efetivamente significa.

    Russell e Frege concebem a proposição como uma entidade complexa determinada

    pelas contribuições dadas por suas partes constituintes. À época dos Principles, Russell

    sustentava uma metafísica de proposições segundo a qual o mundo é constituído por termos,

    os quais, por sua vez, podem se agrupar em proposições. Termo é tudo aquilo que pode ser

    tornado o sujeito de uma proposição e todo termo tem ser. Proposições são agrupamentos de

    termos que têm uma propriedade especial: elas são verdadeiras ou falsas. A análise de Russel,

    portanto, comporta apenas dois níveis: por um lado, temos a expressão linguística da

    proposição e, por outro, os termos que a constituem e são significados pelas partes

    constituintes da sentença. Frege, por sua vez, adere a um modelo ternário de análise: partindo

    de uma expressão logicamente bem formada da linguagem, identificamos duas espécies de

    conteúdo semântico, a saber, a proposição expressa um pensamento, seu sentido, e além disso

    se refere a um objeto de um tipo determinado, um valor de verdade. Essa mesma duplicidade

    no interior do conteúdo semântico da proposição é encontrada em suas partes constituintes: o

    pensamento expresso por ela é constituído pelos sentidos de suas partes, e a referência (o

    valor de verdade) é uma função das referências das partes. Por conseguinte, à diferença de

    Russell, Frege sustenta que existe um nível intermediário entre as expressões linguísticas e

  • 15

    seus significados, o nível do sentido.

    Contudo, apesar de proporem semânticas distintas para explicar o funcionamento da

    linguagem, os dois filósofos enfrentam problemas análogos ao lidar com a verdade. Russell,

    ao conceber a verdade e a falsidade como propriedades indefiníveis de proposições, e Frege,

    ao conceber o Verdadeiro e o Falso como objetos aos quais as proposições se referem como

    seus nomes, não conseguem explicar logicamente por que o fato de a proposição ser complexa

    a torna um possível veículo de verdade. Partindo da notação de Peano (� p), Russell distingue

    dois componentes na proposição, o conceito proposicional e a asserção. O conceito

    proposicional é a proposição considerada independentemente de qualquer relação com sua

    verdade ou falsidade, e o acréscimo da asserção resulta em uma proposição tomada como

    verdadeira. Incapaz de chegar a uma posição que faça a distinção entre conceito e proposição

    dever-se a um constituinte que apenas a última possui, Russell passa a manifestar suas

    dúvidas acerca de se esses dois itens não são, na verdade, um e o mesmo. No caso de Frege,

    porém, a relação de uma proposição a seu valor de verdade é a mesma que um nome mantém

    com sua referência, isto é, proposições são, de um ponto de vista lógico, nomes. Sendo o

    sentido o modo de apresentação da referência do nome, uma proposição será verdadeira ou

    falsa na medida em que seu sentido nos conduz a um dos dois valores de verdade. Tomada em

    si mesma, portanto, a proposição nada diz sobre seu valor de verdade, de modo que a

    passagem de um Gedanke para sua verdade deve ser exterior: essa passagem é efetuada pelo

    ato de juízo. Desse modo, tanto a análise de Russell quanto a de Frege padecem do mesmo

    mal. Ambas tentam tratar proposições como nomes e assim fazem com que a relação

    privilegiada que imaginamos existir entre proposição e verdade não possa ser explicada

    logicamente.

    A estratégia de Wittgenstein para superar o impasse a que chegam as teorias de Frege e

    Russell é afirmar o vínculo necessário que deve existir entre sentido e condições de verdade.

    Uma proposição só tem sentido quando sabemos, apenas a partir dela, o que a tornaria

    verdadeira e o que a tornaria falsa. É essa a linha de pensamento que encontramos no

    aforismo 4.063 do Tractatus, que propõe uma imagem da teoria fregiana da proposição. Se a

    imagem da mancha preta sobre o papel branco serve para ilustrar a teoria fregiana, seu

    funcionamento deve ser o seguinte:

    - um ponto sobre o papel pode ser designado independentemente do conhecimento das

    situações em que o ponto deve ser chamado de branco ou preto. Esse ponto é o pensamento de

    Frege ou o conceito proposicional de Russell.

  • 16

    - branco e preto aparecem como propriedades externas dos pontos, uma vez que, assim

    concebidas, elas não lhes pertencem necessariamente. O fato de que um ponto é branco ou

    preto, portanto, corresponde perfeitamente à concepção da asserção ou juízo como a

    passagem do sentido a valor de verdade.

    Dessa forma, uma vez que a indicação de um ponto e a atribuição a ele de uma cor

    podem ser feitas de maneira independente, o que Wittgenstein acusa Frege e Russell de

    fazerem é separar sentido e condições de verdade. Seria possível obter um sentido (conceito

    proposicional ou pensamento) ao qual não fosse possível atribuir um valor de verdade, e é

    essa posição que Wittgenstein visa combater, mostrando que existe uma ligação interna entre

    ter sentido e ser verdadeiro ou falso. Em outras palavras, a proposição é essencialmente

    bipolar, e é impossível tornar manifesta esta característica essencial das proposições caso elas

    sejam tratadas, como querem Frege e Russell, como nomes.

    2.1.1 FREGE E RUSSELL ACERCA DA PROPOSIÇÃO E DA VERDADE

    Não pode haver dúvida de que a obra de Frege constitui o grande quadro de referência

    no interior do qual se insere o trabalho em lógica realizado no século XX e em especial o

    trabalho de Russell e Wittgenstein. Pois é Frege quem, em seu opúsculo Begriffsschrift,

    “expõe, exaustiva e sistematicamente, a nova teoria da quantificação e das funções de verdade

    (o chamado cálculo de predicados) que viria a constituir o cerne elementar dos sistemas

    lógicos contemporâneos.”7 A Begriffsschrift tinha a pretensão de ser um simbolismo no qual,

    ao contrário do que acontece na linguagem ordinária, as proposições construídas em

    conformidade com as regras sintáticas mostrariam suas propriedades lógicas na superfície

    material do símbolo. Utilizando esse simbolismo, seria possível ver que um pensamento8

    decorre de outro por meio da mera inspeção de suas expressões linguísticas, de maneira que o

    conteúdo lógico das deduções estivesse completamente manifesto e se pudessem sempre

    evitar faltas lógicas e lacunas nesses procedimentos.

    7 Santos, L.H.L, “A essência da proposição e a essência do mundo”, In: [Wittgenstein, 2001], p. 24. O que se

    segue sobre as posições de Frege acerca da proposição e da verdade apoia-se basicamente na exposição de

    Luiz Henrique Lopes dos Santos presente neste texto de apresentação da tradução brasileira do Tractatus. 8 O termo “pensamento” já era utilizado por Frege muito antes do artigo “Der Gedanke”, de 1918, e da

    elaboração da distinção entre sentido e significado, proposta a partir de 1891, de modo que nem sempre teve

    o sentido técnico que adquiriu em sua teoria madura da proposição. À época de Begriffsschrift (1879),

    “pensamento” refere-se aproximadamente a uma circunstância possível, uma vez que ele é o conteúdo de

    uma expressão que é determinado pelo conteúdo de suas partes constituintes e pode ser objeto de um juízo.

  • 17

    Dado que esse artifício é construído por Frege com vistas a oferecer um meio de

    expressão tão preciso e perspícuo quanto possível (uma lingua characteristica no sentido

    leibniziano9) para provar que as verdades aritméticas são todas, em última instância,

    redutíveis a verdades lógicas, não é de espantar que sua peculiaridade provenha da extensão

    de um traço presente no próprio discurso que visa fundamentar: o conceito de função.10

    No

    discurso aritmético, as expressões funcionais são aquelas obtidas pela substituição, nos termos

    numéricos (expressões como “7+5” ou “2.52-7”), de numerais por variáveis, produzindo

    expressões como “x+5”, “2.x2-7” ou “7+x”. Da mesma forma como, na interpretação ordinária

    da linguagem aritmética, os termos numéricos são designações complexas de um determinado

    número, a saber, do resultado da aplicação da operação indicada aos números designados por

    suas partes constituintes (“7+5”, assim como o numeral “12”, designa o número 12), as

    expressões funcionais que resultam da substituição de numerais por variáveis designarão

    funções que associam, para cada número a ser introduzido no lugar da variável (ou variáveis),

    um outro número, a saber, aquele designado pelo termo numérico obtido com a introdução do

    numeral correspondente. O que Frege faz, portanto, é apropriar-se deste conceito aritmético

    de função e estendê-lo para a totalidade da linguagem significativa, de maneira a torná-lo um

    conceito lógico geral:

    Se um sinal simples ou composto aparece em um ou mais lugares de uma

    expressão – cujo conteúdo não precisa ser judicável –, e nós o imaginamos,

    em todos ou em alguns desses lugares, substituível por um outro sinal, e

    sempre pelo mesmo, chamamos a parte da expressão que não sofre nenhuma

    alteração de função, e a parte substituível de seu argumento.11

    Se, como diz Frege, o conteúdo das expressões a serem analisadas dessa maneira não precisa

    ser judicável (beurtheilbar), tal modelo de análise se aplica tanto a proposições quanto às suas

    partes constituintes. Deve, então, ser possível encontrar o par função/argumento tanto na

    expressão o “mestre de Platão”, que designa Sócrates e pode ser analisada, se imaginarmos o

    símbolo “Platão” como substituível, como o preenchimento da função expressa por “o mestre

    de x” pelo argumento introduzido por “Platão”, quanto na proposição “Sócrates era mestre de

    Platão”, que pode ser analisada de diferentes maneiras, dependendo de que parte do símbolo

    9 “On the aim of the “Conceptual Notation””, In: [Frege, 1972], p. 91.

    10 Frege não explicita as origens do conceito de função utilizado em sua Begriffsschrift no opúsculo de

    apresentação desse simbolismo. Isto é feito apenas no artigo “Função e Conceito”, de 1891, em cujo

    conteúdo funda-se a discussão que se segue. 11

    Bg, § 9, “Die Function”, (itálicos no original).

  • 18

    proposicional imaginemos como substituível: seja como o preenchimento da função expressa

    por “x era mestre de y” pelos argumentos introduzidos por “Sócrates” e “Platão”, ou como o

    preenchimento de “x era mestre de Platão” por “Sócrates”, ou ainda como o de “Sócrates era

    mestre de x” por “Platão”. Em todos estes casos, temos o conteúdo expresso pela proposição

    (um conteúdo judicável, cf. Bg, §2) “Sócrates era mestre de Platão” aparecendo como o valor

    da respectiva função para o(s) argumento(s) apropriado(s).

    Se a análise de toda e qualquer expressão significativa nos faz reconhecer que seu

    conteúdo sempre pode ser visto como o valor de uma determinada função para certo(s)

    argumento(s) (e de diferentes funções para diferentes argumentos12

    ), resta ainda saber por que

    são funções e argumentos que se combinam dessa maneira e não outras entidades. A

    complementaridade que existe entre função e argumento deve-se ao fato de que “a função,

    tomada em si mesma, isoladamente, deve ser chamada de incompleta, carente de

    complementação ou insaturada.”13

    Essa insaturação da função é expressa pela presença de

    uma variável no símbolo que a designa, e assim a complementação de que a função carece

    vem com a substituição da variável por uma expressão que designe o argumento apropriado.

    Uma vez que esse modelo de análise deve partir de um símbolo completo que designe algo ou

    exprima um conteúdo proposicional, é fácil perceber que ele deve poder ser aplicado a toda

    expressão que apresente alguma espécie de complexidade, de modo que seu grande atrativo

    está em reduzir a enorme multidão de formas gramaticais dos conteúdos expressos na

    linguagem a uma única forma – lógica – que constitui o fundamento de todas elas.

    Em 1891, no artigo “Função e Conceito”, retomando o projeto de simbolismo

    logicamente perspícuo que havia sido apresentado doze anos antes, Frege pretende “examinar

    esse tema de uma outra perspectiva e comunicar algumas complementações e novas

    concepções cuja necessidade [lhe] ocorreu desde então.”14

    Este texto, juntamente com o artigo

    “Sobre Sentido e Significado”15

    , de 1892, aperfeiçoam o sistema expressivo da Begriffsschrift

    com novas distinções e apresentam os traços fundamentais da teoria fregiana da proposição.

    Uma consequência inevitável da aplicação do par função/argumento na análise dos

    enunciados e o incômodo por ela causada são abordados em uma passagem particularmente

    iluminadora do texto de 1891:

    12

    Pois a determinação dos argumentos e funções que são expressos pelas partes da expressão “hat mit dem

    begrifflichen Inhalte nichts zu thun, sondern ist allein Sachen der Auffassung” (Bg, § 9). Se um mesmo

    conteúdo pode legitimamente ser visto como o valor de diferentes funções para diferentes argumentos, toda

    proposição pode ser analisada de diversas maneiras. 13

    “Funktion und Begriff”, In: [Frege, 1990] (Doravante KS), p. 128. 14

    KS, p. 125. 15

    “Über Sinn und Bedeutung”, In: KS, pp. 143-162.

  • 19

    Aqui surge a objeção de que “2

    2= 4” e “2>1”dizem coisas bem

    diferentes, exprimem pensamentos bem diferentes. Mas “24=4

    2” e “4.4=4

    2”

    também exprimem pensamentos distintos, e no entanto pode-se substituir

    “24” por “4.4”, pois os dois sinais têm o mesmo significado. Por

    conseguinte, “24=4

    2” e “4.4=4

    2” também têm o mesmo significado. Disto se

    segue que a igualdade de significado não tem como consequência a

    igualdade do pensamento. Se dizemos “a Estrela da Tarde é um planeta cujo

    período de translação é menor que o da Terra”, exprimimos um pensamento

    diferente daquele que é expresso na proposição “a Estrela da Manhã é um

    planeta cujo período de translação é menor que o da Terra”. Pois quem não

    sabe que a Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde poderia tomar uma das

    proposições por verdadeira e a outra por falsa, sendo que, no entanto, o

    significado das duas proposições tem que ser o mesmo, uma vez que nelas

    são trocadas apenas as palavras “Estrela da Tarde” e “Estrela da Manhã”,

    que têm o mesmo significado, isto é, são nomes próprios do mesmo corpo

    celeste. É preciso distinguir sentido e significado (Sinn und Bedeutung). “24”

    e “4.4” têm, sim, o mesmo significado, isto é, são nomes próprios do mesmo

    número. Mas eles não têm o mesmo sentido, e por isso “24=4

    2” e “4.4=4

    2”

    têm o mesmo significado, mas não o mesmo sentido. O que, neste caso, quer

    dizer: eles não contêm o mesmo pensamento.16

    A insuficiência da dualidade sinal/conteúdo para explicar o funcionamento da linguagem fica

    patente quando são trazidas para a discussão considerações de ordem epistemológica.

    Segundo a concepção de proposição implícita na apresentação da Begriffsschrift, não era

    possível compreender enunciados que contivessem nomes diferentes de um mesmo objeto

    sem ipso facto saber que eles designavam a mesma coisa, uma vez que o pensamento

    expresso pelo enunciado era o valor de uma função para aquele objeto como argumento. Isto

    quer dizer, na linguagem do artigo de 1891 e utilizando o exemplo ali proposto por Frege, que

    o pensamento era determinado unicamente pelos significados dos sinais e que ninguém

    poderia compreender proposições em que ocorrem as palavras “Estrela da Tarde” e “Estrela

    da Manhã” sem saber que elas designam o mesmo objeto, o planeta Vênus.

    Se em 1891 Frege passa a sustentar que isso é possível, já que se pode acreditar que

    uma proposição que contém o símbolo “Estrela da Tarde” é verdadeira e, ao mesmo tempo,

    que outra proposição, cuja única diferença em relação à primeira é que “Estrela da Manhã”

    aparece no lugar de “Estrela da Tarde”, é falsa, a consequência natural desse movimento é a

    nova posição segundo a qual compreender uma proposição não é o mesmo que conhecer os

    significados dos símbolos que a constituem. Torna-se necessário, desde então, distinguir dois

    componentes no conteúdo semântico dos constituintes da linguagem: por um lado, eles

    exprimem seus sentidos, e por outro significam algo (isto é, têm significados). Enquanto o

    sentido da proposição, isto é, o pensamento que ela exprime, é determinado pelos sentidos de

    16

    KS, p. 132.

  • 20

    suas partes constituintes, a verdade ou falsidade do pensamento dependerá dos significados

    dessas mesmas partes.17

    São considerações de ordem epistemológica – sobre o que é possível acreditar ou

    saber – que levam Frege a propor um novo mecanismo de formação do sentido proposicional

    no qual as expressões constituintes de uma proposição apresentam, todas, duas camadas de

    conteúdo semântico. Se a partir desse momento é o sentido das expressões que assume o

    trabalho que antes era desempenhado pelo conteúdo semântico total delas – a determinação do

    sentido das proposições em que ocorrem –, cumpre perguntar qual é o papel de seus

    significados na determinação do conteúdo semântico das proposições em que elas aparecem.

    A resposta para isso é fornecida pelo paradigma funcional de análise. Vimos mais acima que

    uma função se caracteriza por assumir um valor para cada argumento que é nela introduzido,

    e isto de maneira que, para cada argumento determinado, a função assume um e apenas um

    valor determinado. Função e argumento são, na nova semântica fregiana, os significados de

    partes constituintes de proposições; a primeira, o significado da expressão que surge quando

    transformamos um de seus constituintes em uma variável, e o segundo o significado do

    símbolo substituído. O funcionamento do par função/argumento no nível subproposicional é

    bastante simples: a função designada por “o mestre de x” assumirá o valor Sócrates quando

    for preenchida pelo argumento introduzido por “Platão”, e o valor Aristóteles quando

    preenchida pelo argumento introduzido por “Alexandre”. O símbolo formado com a união das

    expressões para a função e o argumento poderá, por sua vez, fazer parte de proposições, e

    nestas introduzirá como argumento de outras funções o valor que a função designada por “o

    mestre de x” assume para um determinado argumento, como, por exemplo, em “O mestre de

    Platão morreu envenenado”, em que o símbolo composto “o mestre de Platão” introduz

    Sócrates como argumento na função designada por “x morreu envenenado”. Logo, a união do

    símbolo de uma função com o símbolo de seu argumento dá origem a um novo símbolo que

    tem como significado o valor da função para o argumento em questão. Se a aplicação da

    análise em termos de função e argumento deve ser irrestrita, o mesmo modelo deve aplicar-se

    às proposições, uma vez que é sempre possível, dada uma proposição, analisá-la em termos da

    17

    Embora Frege não seja explícito sobre sua noção de verdade no opúsculo de 1879, é possível inferir de uma

    passagem no § 3 que um conteúdo judicável deve ser considerado verdadeiro (e assim receber corretamente a

    barra de juízo) quando ele é um fato: “Es lässt sich eine Sprache denken, in welcher der Satz: “Archimedes

    kam bei der Eroberung von Syrakus um” in folgender Weise ausgedrückt werden: “der gewaltsame Tod des

    Archimedes bei der Eroberung von Syrakus ist eine Thatsache”. Hier kann man zwar auch, wenn man will,

    Subject und Prädicat unterscheiden, aber das Subject enthält den ganzen Inhalt, und das Prädicat hat nur den

    Zweck, diesen als Urtheil hinzustellen” (Bg, pp. 3-4). Julgar um conteúdo, portanto, é o mesmo que dizer a

    circunstância que ele descreve é um fato, e é razoável supor que esse fato será composto pelos conteúdos das

    partes constituintes do conteúdo judicável em questão.

  • 21

    união entre o símbolo de uma função e os símbolos de seus argumentos. Logo, proposições

    também devem ter significados, e estes serão os valores que surgem com a conjunção de

    funções e argumentos significados por suas expressões constituintes. Mas que espécie de

    objeto deve cumprir o estranho papel de significado de uma proposição?

    Em “Sobre Sentido e Significado”, Frege nos diz:

    O pensamento perde para nós todo valor tão logo constatemos que uma de

    suas partes é destituída de significado. Temos, portanto, toda razão em não

    nos darmos por satisfeitos com o sentido de uma proposição e perguntarmos

    também pelo seu significado. Mas por que será que queremos que todo nome

    próprio tenha não apenas um sentido, mas também um significado? Por que

    o pensamento não nos basta? Porque, e na medida em que, estamos

    interessados em seu valor de verdade. […]

    Vimos que se deve procurar o significado de uma proposição sempre

    que o que importar for o significado das partes constituintes; e este é o caso

    sempre e tão somente quando perguntamos pelo valor de verdade.

    Somos então impelidos a reconhecer o valor de verdade de uma

    proposição como seu significado.18

    A extensão do paradigma de análise em termos de função e argumento nos leva a buscar um

    significado para toda expressão constituída de partes dotadas de significado, em particular, de

    partes tais que umas significam funções e outras argumentos que as preencham. A fim de

    identificar o que sejam esses significados no caso das proposições, Frege sugere que

    atentemos para nosso uso da linguagem, ou seja, que tenhamos clareza sobre o que nos causa

    inquietação quando alguma parte proposicional é destituída de significado. Ao lermos uma

    narrativa fictícia, por exemplo, temos consciência de que as personagens ali descritas nas mais

    variadas atividades e situações nunca existiram ou não existem de fato, de modo que seus

    nomes, embora tenham um sentido, uma vez que compreendemos as proposições em que eles

    aparecem, não têm significado. A ausência de significado de alguns termos é o que nos

    demove, neste caso, de atribuir um valor de verdade à narrativa; se seus personagens não

    existem, não faz nenhum sentido dizer que os fatos ali descritos aconteceram ou não. Logo, o

    fato de que os termos constituintes de uma proposição tenham todos significado é condição

    sine qua non para que nos sintamos justificados em atribuir verdade ou falsidade ao

    pensamento expresso por ela, e assim a posição mais natural a adotar acerca dos significados

    de proposições é dizer que estes sejam seus valores de verdade. Estabelecida a identificação

    entre valor de verdade e significado, toda proposição, a expressão de um pensamento,

    significará um de dois objetos, o Verdadeiro ou o Falso; o primeiro, quando ela exprime um

    18

    KS, p. 149.

  • 22

    pensamento verdadeiro e o segundo, quando exprime um falso.

    Temos agora os elementos necessários para estabelecer os traços fundamentais da

    teoria da linguagem fregiana. O conteúdo semântico dos sinais constituintes da linguagem é

    formado por dois elementos: o sentido expresso pelo sinal e seu significado. O sentido de um

    sinal contém o modo de apresentação (“Art des Gegebenseins”) de seu significado, de

    maneira que é por meio dele que o sinal chega a designar o que efetivamente designa. Se os

    sinais “Estrela da Manhã” e “Estrela da Tarde” têm o mesmo significado e sentidos diferentes,

    isto quer dizer que um mesmo objeto, o planeta Vênus, é designado por eles de maneiras

    diferentes: pelo primeiro como o ponto luminoso que aparece no horizonte numa determinada

    posição pela manhã, pelo segundo como o ponto luminoso que aparece em outra posição ao

    pôr do sol. Assim, na teoria de Frege, o sentido figura como o conteúdo descritivo de um sinal

    que o permite identificar a entidade que designa. Esta entidade será aquela que satisfaz a

    descrição equivalente ao sentido do sinal, sentido este que todo falante com conhecimento

    suficiente da língua é capaz de apreender.19

    A mesma relação entre sinal e seu significado,

    mediada pelo sentido, deve então ser encontrada em todas as construções da linguagem, pois é

    necessário que toda expressão possua duas camadas de conteúdo semântico que determinam,

    em conjunto, sua contribuição às expressões mais complexas em que podem aparecer.

    No mais importante caso do ponto de vista lógico, o das proposições (uma vez que é

    por meio delas que é possível abordar a questão da verdade), teremos a seguinte situação: uma

    proposição é composta, no caso mais simples, pelo sinal de uma função e o sinal de um

    argumento para essa função; o valor assumido pela função para o argumento em questão, um

    dos dois valores de verdade, será o significado da proposição; seu sentido, isto é, o

    pensamento que ela exprime e é determinado pelos sentidos de suas partes constituintes, será

    o modo de apresentação desse significado. Sobre os pensamentos (Gedanken), Frege nos diz o

    seguinte:

    Sem com isso querer dar uma definição, chamo de pensamento algo acerca

    do qual pode-se colocar em questão a verdade. Conto entre os pensamentos

    tanto o que é falso quanto o que é verdadeiro. Deste modo, posso dizer que o

    pensamento é o sentido de uma proposição, sem assim querer afirmar que o

    sentido de toda proposição seja um pensamento. O pensamento, em si

    mesmo imperceptível, é vestido com a roupagem sensível da proposição e

    assim se torna apreensível por nós. Dizemos que a proposição exprime um

    pensamento.

    19

    Cf. KS, p. 144.

  • 23

    E sobre a relação dos Gedanken com a verdade:

    […] Não obstante, é de se pensar que não podemos reconhecer uma

    propriedade em uma coisa sem, com isso, ao mesmo tempo considerar

    verdadeiro o pensamento que essa coisa tem essa propriedade. Assim, a toda

    propriedade de uma coisa está ligada uma propriedade de um pensamento, a

    saber, a de ser verdadeiro. E também é digno de atenção que a proposição

    “sinto cheiro de violetas” possui o mesmo conteúdo que a proposição “é

    verdade que sinto cheiro de violetas”. De modo que parece que nada é

    acrescentado ao pensamento quando atribuo a ele a propriedade de ser

    verdadeiro.

    […] É portanto possível exprimir um pensamento sem propô-lo como

    verdadeiro. Em uma proposição afirmativa os dois elementos estão tão

    vinculados que é fácil perder de vista a possibilidade de análise. Deste modo,

    distinguimos:

    1. a apreensão do pensamento – o pensar,

    2. o reconhecimento da verdade de um pensamento – o juízo,

    3. a manifestação desse juízo – a asserção.20

    Do mesmo modo como o símbolo “o mestre de Platão” significa Sócrates por meio do sentido

    que exprime, uma proposição significará um dos dois valores de verdade por meio de seu

    sentido, o pensamento que ela exprime.21

    Se seu significado é o Verdadeiro, a proposição

    exprimirá um pensamento verdadeiro, se seu significado é o Falso, um pensamento falso.

    Comportando-se, então, como um nome, a proposição não é bipolar e tampouco assertiva.

    Uma proposição, segundo a teoria de Frege, não diz o que deve ser o caso para que ela

    assuma um ou outro valor de verdade, ela antes nomeia um dos valores por meio de seu

    sentido, de modo que a determinação de quais sejam as proposições verdadeiras, por

    conseguinte quais são aquelas que representam a realidade, equivale apenas ao

    reconhecimento de quais proposições significam o Verdadeiro e não o Falso, não havendo

    nada mais fundamental que isso. A constatação da ocorrência de um determinado fato, como a

    inerência de uma propriedade em algo, para utilizar o exemplo de Frege, é o mesmo que o

    reconhecimento da verdade de um pensamento.

    Este reconhecimento, uma vez que o sentido proposicional não é intrinsecamente

    assertivo, assumirá a forma de um ato exterior ao sentido e marcará a passagem dele ao valor

    de verdade que identifica. Este é o ato de juízo, cuja manifestação é a asserção, simbolizada

    pela anteposição do sinal “�” a uma proposição que exprime um pensamento que

    consideramos verdadeiro. Assim, ao escrevermos uma proposição sem antepormos a ela a

    20

    “Der Gedanke” (In: KS, pp. 342-362.), pp. 344-346. 21

    Mesmo um nome próprio como “Platão” ou “Sócrates” só chega a designar o indivíduo que significa por

    meio do sentido que exprime. Pois, se estes nomes não tivessem um sentido, o sentido das proposições em

    que eles ocorressem ficaria indeterminado.

  • 24

    barra de juízo, estamos apenas propondo um sentido proposicional para consideração, sem

    nada dizer sobre o valor de verdade que esse sentido identifica. Quando, no entanto,

    escrevemos “� 7+5=12”, dizemos que o valor de verdade nomeado pela proposição “7+5=12”

    é o Verdadeiro. Sentidos proposicionais verdadeiros não têm nenhuma espécie de privilégio

    ontológico sobre os sentidos falsos; ambos, enquanto pensamentos, são plenamente objetivos

    e podem ser apreendidos por qualquer sujeito que tenha o domínio da língua a que pertencem

    as proposições que os exprimem.

    A teoria da proposição de Frege caracteriza-se, portanto, por fazer uso de uma

    semântica ternária na qual a relação de um sinal a seu significado deve ser mediada pelo

    sentido que ele exprime. Este modelo sinal/sentido/significado aplica-se a todos os elementos

    da linguagem, fazendo com que as proposições, isto é, os veículos de expressão de verdades,

    tenham na verdade a mesma estrutura dos nomes próprios. Outra característica dessa

    semântica é a de que, embora um sinal não possa ter significado se não tiver um sentido, o

    contrário não é verdadeiro, já que é possível que sinais desprovidos de significado contribuam

    para a determinação do sentido das proposições em que eles ocorrem. Isso torna manifesto

    que, para Frege, o domínio do sentido é autônomo em relação ao do significado, permitindo

    que lidemos tanto com partículas subproposicionais destituídas de significado quanto com

    proposições que não assumem nenhum valor de verdade.

    Esta posição que sustenta a autonomia do sentido em relação às entidades designadas

    pelos sinais é justamente o que Russell pretendeu combater em toda sua filosofia posterior aos

    Principles of Mathematics.22

    Nesta obra em particular, Russell alia-se a Moore no combate às

    filosofias de teor idealista e defende uma ontologia que Peter Hylton, em seu abrangente

    comentário da obra do filósofo,23

    chama de “Atomismo Platônico”. Nessa ontologia, a

    categoria fundamental é a de termo:

    Tudo que possa ser um objeto de pensamento, ou possa ocorrer em qualquer

    proposição falsa ou verdadeira, ou possa ser contado como um, eu chamo de

    termo. Esta é então a palavra mais abrangente do vocabulário filosófico.

    Usá-la-ei como sinônimo das palavras unidade, indivíduo e entidade.

    (…) Um termo, na verdade, possui todas as propriedades comumente

    atribuídas às substâncias ou substantivos. Para começar, todo termo é um

    sujeito lógico; ele é, por exemplo, o sujeito da proposição de que ele mesmo

    é um. Além disso, todo termo é imutável e indestrutível. Um termo é o que é

    e nenhuma mudança pode ser nele concebida que não destruiria sua

    22

    [Russell, 1903] (Doravante Pples) 23

    [Hylton, 1990]

  • 25

    identidade e o tornaria outro termo.24

    Por conseguinte, tudo o que pode ser mencionado é um termo e, nesta medida, tem ser

    (being). Negar que seja lá o que for seja um termo deve ser sempre falso, já que a própria

    possibilidade de mencionar esse algo atesta sua qualidade de termo.

    Esses termos, por sua vez, se reúnem para formar complexos, as proposições. Estas,

    embora também sejam termos, pois podem ser o sujeito lógico de outras proposições, têm a

    propriedade especial de serem verdadeiras ou falsas. No prefácio dos Principles, Russell

    distingue seu conceito de proposição do conceito ordinário: enquanto o conceito ordinário

    toma as proposições por algo mental e passível de verdade e falsidade, para ele a marca

    característica das proposições é apenas a verdade ou falsidade.25

    Proposições são, então,

    entidades objetivas, constituintes da realidade independentes da mente.26

    Nessa medida, elas

    são os análogos dos Gedanken fregianos e devem ser expressas, por sua vez, por sentenças

    compostas de sinais que significam, um a um, os termos constituintes da proposição. À

    diferença dos Gedanken, porém, as proposições russellianas são constituídas pelas entidades

    reais designadas pelos nomes que aparecem em sua expressão, os equivalentes em Frege dos

    significados dos sinais. Não há lugar, em Russell, para o nível semântico intermediário do

    sentido; os sinais da linguagem significam seus termos diretamente, como rótulos afixados às

    coisas. No lugar da semântica ternária de Frege, Russell propõe uma semântica binária de

    referência direta, na qual os sinais introduzem, nos contextos em que aparecem, apenas os

    termos que significam.

    A definição tão abrangente da noção de termo cumpre uma função parecida à da

    distinção entre Sinn e Bedeutung no que diz respeito aos enunciados que versam sobre

    entidades inexistentes. Se os termos da linguagem possuem duas espécies de conteúdo

    semântico, torna-se possível falar sobre uma entidade que não existe porque o sinal que

    supostamente a designaria, embora não tenha significado, tem um sentido, e desse modo

    contribui para a determinação do sentido das proposições em que ocorre. Para o Russell dos

    Principles, com sua metafísica de proposições, a mera existência de um sinal que pode ser

    usado de forma sintaticamente correta para construir sentenças é indício suficiente de que há

    24

    Pples, § 47. 25

    “For example, propositions are commonly regarded as (1) true or false, (2) mental. Holding, as I do, that

    what is true or false is not in general mental, I require a name for the true or false as such, and this name can

    scarcely be other than proposition.” (Pples, p. xix) 26

    “On fundamental questions of philosophy, my position, in all its chief features, is derived from Mr G. E.

    Moore. I have accepted from him the non-existential nature of propositions (except such as happen to assert

    existence) and their independence of any knowing mind […].” (Pples, p. xviii)

  • 26

    um termo a que ele se refere. Esse termo, embora não seja necessariamente uma entidade

    existente,27

    tem ser e assim transmite esse caráter às proposições expressas pelas sentenças em

    que seu nome ocorre.

    Se proposições constituem a realidade e são elas mesmas verdadeiras ou falsas (e não

    suas expressões), a verdade é uma noção primitiva que não pode ser explicada em termos de

    um conceito ainda mais fundamental. Pois, se fosse possível decidir se uma proposição é

    verdadeira ou falsa com a ajuda de alguma outra parte da realidade, seria a esta parte que se

    poderia legitimamente atribuir o título de constituinte último da realidade e não mais às

    proposições. Para segregar proposições verdadeiras e falsas, então, torna-se necessário que

    haja um dispositivo de reconhecimento da verdade das proposições análogo ao juízo fregiano.

    Russell, atentando para o fato de que existe um sentido psicológico trivial de asserção, no qual

    mesmo proposições falsas podem ser asseridas, diz:

    Mas há um outro de sentido de asserção, muito difícil de trazer à mente de

    forma clara e no entanto impossível de negligenciar, no qual apenas

    proposições verdadeiras são asseridas. Proposições verdadeiras e falsas são,

    em certo sentido, igualmente entidades, e em certo sentido passíveis de

    serem sujeitos lógicos; mas, quando uma proposição é verdadeira, ela tem

    uma outra qualidade para além daquelas que compartilha com as proposições

    falsas, e é a esta outra qualidade que me refiro quando falo de asserção em

    um sentido lógico, oposto ao psicológico. A natureza da verdade, entretanto,

    é assunto para os princípios da matemática na medida em que o é para os

    princípios de tudo o mais. Eu então deixo esta questão para os lógicos com a

    breve indicação de uma dificuldade.28

    A asserção, portanto, é essencialmente uma verdade, e é isto que a distingue do restante das

    proposições. Mas por que toda proposição não se apresenta como verdadeira, como uma

    asserção? A resposta está justamente na qualidade de termo de toda proposição e

    consequentemente na possibilidade de sempre torná-la um sujeito lógico. Uma asserção

    sempre contém um verbo, uma vez que ela afirma algo a respeito de um determinado sujeito.

    Esse verbo, no entanto, diferentemente do que acontece com outros termos, como os

    substantivos, está sujeito a uma importante transformação lógica:

    Ao submeter o verbo, na forma como ele ocorre na proposição, a uma

    27

    A esse respeito, eis o comentário de Russell sobre o que se requer das entidades para que elas possam formar

    um par: “It should be observed that A and B need not exist, but must, like anything that can be mentioned,

    have Being. The distinction of Being and existence is important, and is well illustrated by the process of

    counting. What can be counted must be something, and must certainly be, though it need by no means be

    possessed of the further privilege of existence. Thus what we demand of the terms of our collection is merely

    that each should be an entity.” (Pples, § 71) 28

    Pples, § 52.

  • 27

    substantivação (By transforming the verb (…) into a verbal noun), toda a

    proposição pode ser transformada em um único sujeito lógico, não mais

    asserido e não mais contendo em si verdade ou falsidade. Mas aqui também,

    parece não haver possibilidade de sustentar que o sujeito lógico resultante

    seja uma entidade distinta da proposição. “César morreu” e “a morte de

    César” ilustrarão este ponto. Se perguntarmos: O que é asserido na

    proposição “César morreu”?, a resposta tem de ser “é asserida a morte de

    César”. Nesse caso, pareceria que é a morte de César que é verdadeira ou

    falsa; e no entanto nem verdade nem falsidade convêm a um mero sujeito

    lógico. A resposta aqui parece ser que a morte de César tem uma relação

    externa à verdade ou falsidade (dependendo do caso), ao passo que “César

    morreu” contém, de alguma maneira, sua própria verdade ou falsidade como

    um elemento.29

    No apêndice A aos Principles, onde encontramos um exame comparativo da teoria da

    proposição de Frege30

    , Russell chama o Gedanke fregiano de conceito proposicional e o valor

    de verdade de um Gedanke de uma suposição (assumption, indicando que Frege e Meinong o

    chamam de Annahme). Aplicando essas noções a sua própria teoria da proposição, Russell nos

    diz que, em “César morreu”, é asserido o conceito proposicional “a morte de César”. A

    tradução simbólica para isso, no caso de uma proposição p qualquer, é que “�p” é a asserção e

    “p” o conceito proposicional.

    Se o conceito proposicional é obtido meramente pelo ato de transformar a asserção em

    sujeito lógico, não pode existir algum termo que daria conta da diferença entre esta e aquele.

    Ou seja, “a verdade da morte de César” não é o conceito proposicional asserido em “César

    morreu”, mas um novo conceito, que contém, para além dos termos contidos na asserção, o

    termo “a verdade”. Nas palavras de Russell, “Se p é uma proposição, “a verdade de p” é um

    conceito que tem ser mesmo que p seja falsa, e assim “a verdade de p” não é o mesmo que p

    asserida. Logo, não é possível encontrar um conceito equivalente a p asserida,

    consequentemente a asserção não é um constituinte em p asserida” (Pples, §478) A questão é

    que, embora não seja possível encontrar algum termo que fundamente a diferença entre

    asserção e conceito proposicional, Russell não quer abrir mão da ligação essencial entre a

    asserção no sentido lógico e a verdade:

    É portanto quase impossível, ao menos para mim, separar a asserção da

    verdade, como faz Frege. Uma proposição asserida, ao que parece, tem de

    ser o mesmo que uma proposição verdadeira. Podemos admitir que a

    negação faz parte do conteúdo de uma proposição (Bg, p.4) e considerar que

    toda asserção assere que algo é verdadeiro. Dessa forma, correlacionaremos

    p e não-p como proposições não asseridas e consideraremos que “p é falsa”

    29

    Pples, § 52. 30

    Pples §§ 476-479.

  • 28

    significa “não-p é verdadeira”. Separar a asserção da verdade parece ser

    possível apenas se tomarmos a asserção em um sentido psicológico.31

    O impasse que se apresenta a Russell é fruto de sua concepção de termo e, portanto, da noção

    de análise proposicional que informa sua obra de 1903: embora não pareça possível dissociar

    a asserção da verdade, a possibilidade de transformar proposições em sujeitos lógicos por

    meio da substantivação do verbo dissolve as pretensões de verdade delas. A proposição passa

    a apresentar-se nesse caso apenas como um complexo que pode ser colocado em relação com

    outros termos, o que motiva a distinção entre conceito proposicional e a proposição

    propriamente dita, a asserção. Chega-se, dessa forma, a uma situação semelhante à que

    encontramos em Frege, uma vez que os conceitos proposicionais, enquanto não asseridos, não

    têm nenhum pretensão representativa, não passando de designações de complexos. Será

    preciso um ato, simbolizado pela barra de asserção, para restituir à proposição assim

    “neutralizada” sua verdade ou falsidade, exatamente como o Gedanke fregiano não diz, por si

    mesmo, se é nome do Verdadeiro ou do Falso.

    Embora tanto para Frege quanto para Russell a proposição seja o local de entrada em

    cena da verdade, suas teorias acabam por cindir a ligação essencial que existe entre essas

    noções. Frege, concebendo a proposição simultaneamente como o nome de um valor de

    verdade e a expressão de um pensamento, dissolve a conexão natural que há entre ter sentido

    e poder ser verdadeiro ou falso, uma vez que a proposição é apenas a designação de um objeto

    e nada tem de assertiva. Russell, por sua vez, embora reconhecendo a indissociabilidade das

    ideias de proposição e verdade, não consegue manter essa ligação no interior de seu sistema;

    sua noção de análise o acaba levando a separar a proposição em conceito proposicional e

    asserção, deslocando, por conseguinte, a assertividade do núcleo proposicional, assim como

    fazia Frege.

    Diante dessas teorias da proposição, Wittgenstein vê como sua primeira tarefa oferecer

    uma explicação satisfatória da proposição, em especial, uma que dê conta da estreita ligação

    que há entre uma proposição ter sentido e ela ser um veículo de verdade ou falsidade. Se esse

    trabalho de crítica culminará na teoria da figuração do Tractatus, as primeiras observações a

    respeito das posições de seus antecessores formarão o conjunto de premissas que orientarão a

    elaboração da teoria.

    31

    Pples § 478.

  • 29

    2.1.2 O CONCEITO DE PROPOSIÇÃO DAS NOTES ON LOGIC

    Na última seção vimos como as teorias da proposição de Frege e Russell, a despeito

    das diferentes semânticas que estão em suas bases, convergem na ideia de que existe apenas

    uma relação externa entre sentido proposicional e valores de verdade. Isso quer dizer que o

    mero fato de que uma sentença exprima um sentido (um pensamento, no caso de Frege e um

    conceito proposicional, no caso de Russell) não basta para que se lhe atribua um valor de

    verdade. Pois Frege, com sua distinção entre sentido e significado, deixa aberta a

    possibilidade da existência de proposições que, não obstante tenham um sentido, nada

    signifiquem porque alguma(s) de suas partes não tem (têm) significado. Russell, por sua vez,

    mesmo reconhecendo que ser verdadeira ou falsa é uma propriedade de toda e qualquer

    proposição asserida – que há, assim, uma relação interna entre proposição e valor de verdade

    –, ao reconhecer a possibilidade de substantivar o verbo de uma proposição e transformá-la

    em um sujeito lógico – em um conceito proposicional –, é levado a admitir que considerações

    sobre a verdade dependem de que algo seja acrescentado a esse sujeito que o torne uma

    asserção.

    No registro mais antigo do Nachlass wittgensteiniano, as Notes on Logic, fruto de

    seleções feitas em 1913 pelo próprio Wittgenstein a partir de anotações manuscritas em seus

    cadernos, um dos temas mais discutidos é a relação entre sentido proposicional e valor de

    verdade. A importância desse registro está em que ele pode fornecer preciosas indicações a

    respeito das origens da teoria da figuração na obra de Wittgenstein, uma vez que as críticas ali

    dirigidas à concepção fregi-russelliana do sentido proposicional são em larga medida

    independentes dos princípios dessa teoria tal como a encontramos no Tractatus. Esta situação

    é ilustrada pelo fato de que, nas Notes, a palavra “picture” aparece uma única vez, no contexto

    de uma distinção entre a filosofia e as ciências: “Philosophy gives no pictures of reality.”.32

    (NB, p. 106) De modo geral, embora nelas já apareçam noções capitais para a teoria da

    figuração, como a distinção entre sinal e símbolo, são tantos os elementos que ainda faltam

    que não é possível ver as posições ali defendidas por Wittgenstein como dependentes da

    teoria.

    Com respeito à questão da verdade, um dos aforismos mais citados na literatura

    32

    “A filosofia não oferece imagens da realidade.”

  • 30

    secundária sobre o Tractatus aparece já nas Notes em forma quase idêntica.33

    Este é o

    aforismo 4.063 – o primeiro parágrafo do terceiro manuscrito das Notes on Logic:

    Um modo figurado de explicar o conceito de verdade: mancha preta sobre

    papel branco; pode-se descrever a forma da mancha indicando-se, com

    respeito a cada ponto da superfície, se é preto ou branco. Ao fato de que um

    ponto é preto, corresponde um fato positivo – ao de que um ponto é branco

    (não preto), um fato negativo. Se designo um ponto da superfície (um valor

    de verdade fregiano), isso corresponde à suposição [Annahme] apresentada

    para julgamento, etc., etc.

    No entanto, para poder dizer que um ponto é preto ou branco, devo saber de

    antemão quando um ponto é chamado de preto e quando é chamado de

    branco; para poder dizer: “p” é verdadeira (ou falsa), já devo ter determinado

    em que circunstâncias chamo “p” de verdadeira, e com isso determino o

    sentido da proposição.

    Ora, o ponto em que a analogia faz água é este: podemos apontar para um

    ponto do papel mesmo sem saber o que são branco e preto; a uma proposição

    sem sentido, porém, não corresponde rigorosamente nada, pois ela não

    designa uma coisa (valor de verdade) cujas propriedades se chamassem,

    digamos, “falso” e “verdadeiro”; o verbo de uma proposição não é “é

    verdadeiro” ou “é falso” (como acreditava Frege), mas o que “é verdadeiro”

    já deve conter o verbo.

    O primeiro parágrafo do aforismo ilustra a compreensão fregiana da proposição como o nome

    de um dos dois valores de verdade. Se Frege está correto, deve ser possível pensar que a

    menção de uma proposição é equivalente à indicação de um ponto de uma superfície qualquer.

    Por conseguinte, a atribuição de uma ou outra cor a esse ponto corresponderia a dizer que a

    proposição é ou verdadeira ou falsa. O ponto crucial da analogia é a possibilidade de nos

    referirmos a um ponto de uma superfície sem fazer qualquer alusão a sua cor, pois é

    exatamente isto que deveria ocorrer com as proposições fregianas – a mera menção de uma

    determinada proposição é o caso de uma “suposição apresentada para julgamento”. A

    impressão que fica, portanto, é a de que a analogia corresponde perfeitamente à teoria

    fregiana da proposição.

    Essa impressão, contudo, começa a ser desfeita nos segundo e terceiro parágrafos,

    onde Wittgenstein explora o que é pressuposto pela minha capacidade de atribuir uma ou

    outra cor a um ponto. Pois, enquanto é possível indicá-lo sem fazer qualquer alusão à cor que

    ele efetivamente tem (posso usar um sistema de coordenadas para tanto, por exemplo), não se

    pode dizer que ele tem uma ou outra cor sem que se saiba quando é que essas atribuições

    33

    É importante ter em mente que as Notes on Logic, tal como a conhecemos, são em sua maior parte uma

    tradução feita por Russell de anotações ditadas por Wittgenstein a um estenógrafo numa escola Berlitz de

    Birmingham. (Cf. [Potter, 2008], p. 264) Assim, não é possível aferir com precisão se o aforismo já havia

    sido redigido por Wittgenstein a essa época exatamente como viria a aparecer no Tractatus.

  • 31

    estão corretas. Se essa exigência é transferida às proposições entendidas à maneira fregiana, a

    consequência é que só é possível dizer que “p” é verdadeira quando se conhecem as

    circunstâncias em que “p” é dita verdadeira. Assim, a mera possibilidade de um juízo – “o

    reconhecimento da verdade de um pensamento”, nos termos utilizados por Frege em seu

    artigo “O Pensamento” –, isto é, de dizer que “p” é verdadeira, passa a pressupor que já se

    saiba em que situações a proposição deve ser dita verdadeira. Em outras palavras, para que

    haja um juízo, já se deve saber de antemão se a proposição é verdadeira ou falsa, o que faz

    com que esse ato seja destituído da importância que Frege lhe conferia – na verdade, ele é

    supérfluo.

    Se a noção de juízo fregiana não desempenha, a bem dizer, nenhum papel logicamente

    relevante no reconhecimento da verdade ou falsidade de proposições, isso é indício de que a

    concepção de sentido proposicional que está na base dessa noção deve ser revisada. É

    justamente isso que Wittgenstein começa a fazer ao final do segundo parágrafo, quando

    equipara a determinação do sentido de “p” à determinação das circunstâncias em que essa

    proposição é chamada de verdadeira. Pois, para Frege, o sentido de uma proposição é o

    pensamento que ela expressa. Esse pensamento, por sua vez, é o modo de apresentação de um

    valor de verdade, valor este que é o significado da proposição, aquilo de que ela é o nome.

    Uma vez que é possível que uma proposição exprima um pensamento sem que assuma

    nenhum valor de verdade, a apreensão do pensamento e o reconhecimento de que ele seja

    verdadeiro ou falso devem ser eventos distintos e o primeiro absolutamente independente do

    último. Contudo, se agora determinação do sentido passa ser o mesmo que determinação das

    circunstâncias em que a proposição é dita verdadeira, essa dissociação não pode mais existir.

    “É claro que compreendemos proposições sem saber se elas são verdadeiras ou falsas”34

    , mas

    não há sentido proposicional sem saber o que torna a proposição uma coisa ou outra. O

    reconhecimento do valor de verdade de uma proposição deixa de ser obra de um ato de juízo

    que se aplica a um sentido proposicional e passa a consistir na constatação de que aquilo cuja

    ocorrência torna a proposição verdadeira, realmente ocorre.

    Essa mudança na maneira de conceber a verdade de uma proposição prepara a

    conclusão do aforismo, no terceiro parágrafo. Se o resultado da argumentação até o momento

    é restabelecer a ligação interna entre sentido proposicional e verdade, resta superar um último

    34

    NB, p. 103. Wittgenstein continua: “Mas apenas podemos conhecer o significado de uma proposição quando

    sabemos se ela é verdadeira ou falsa. O que compreendemos é o sentido da proposição.” Que Wittgenstein

    empregue aqui uma terminologia muito próxima da de Frege e fale do significado de uma proposição,

    corrobora a interpretação de que, nas Notes, encontram-se argumentos dirigidos às teorias da proposição de

    Frege e Russell que independem da teoria da figuração tal como a encontramos no Tractatus.

  • 32

    obstáculo para obter uma concepção satisfatória da proposição. A saber, resta mostrar que

    proposições são fundamentalmente diferentes de nomes. Conceber “verdadeira” e “falsa”

    como se fossem propriedades de algo que é designado pela proposição (um valor de verdade),

    assim como “branco” e “preto” são propriedades de pontos que podem ser apontados

    independentemente de que cor tenham, conduz à ideia de que uma proposição pode ter um

    sentido sem que seja nem verdadeira nem falsa. Russell tentara, sem sucesso, evitar essa

    consequência nos Principles. Pois, embora partisse da posição de que proposições são tudo

    aquilo que é verdadeiro ou falso, a possibilidade de transformar toda proposição no sujeito

    lógico de uma outra (uma vez que elas também são termos) conduz inevitavelmente à

    distinção entre proposições asseridas e não asseridas, entre conceitos proposicionais e

    asserções. Essa transformação consiste em substantivar o verbo da proposição de modo a, por

    assim dizer, neutralizar seu poder relacionante:

    Um e somente um verbo precisa ocorrer como verbo em toda proposição;

    mas toda proposição, se substantivarmos seu verbo, pode ser transformada

    em um único sujeito lógico, de uma espécie que chamarei no futuro de

    conceito proposicional. Todo verbo, no sentido lógico da palavra, pode ser

    considerado uma relação; quanto ocorre como verbo, ele efetivamente

    relaciona, mas quando ocorre substantivado é a relação nua e crua

    considerada independentemente dos termos que relaciona. […] Devido à

    maneira como o verbo efetivamente relaciona os termos de uma proposição,

    toda proposição tem uma unidade que a torna distinta da soma de seus

    constituintes.35

    O conceito proposicional, contendo os termos relacionados e a relação considerada “em si

    mesma”36

    que formam a proposição de que ele se origina, não possui mais a unidade que o

    verbo “usado como verbo” dá à proposição. Tal unidade resulta do fato de que, na proposição,

    o verbo – ocorrendo ou sendo usado como verbo – efetivamente relaciona os outros termos

    constituintes. Quando o verbo é substantivado, por outro lado, ele é apenas mais um termo

    entre outros, a “relação nua e crua considerada independentemente dos termos que relaciona.”

    Desse modo, o novo complexo contendo essa forma do verbo, na medida em que não tem a

    unidade característica das proposições, não pode ser verdadeiro ou falso. Como já vimos na

    primeira seção, Russell só consegue explicar a diferença entre proposição e conceito

    proposicional lançando mão da noção de asserção, equivalente ao ato de juízo fregiano e que,

    assim, faz os conceitos proposicionais assumirem, na teoria russelliana, uma posição

    semelhante à dos Gedanken na teoria fregiana.

    35

    Pples, § 55, p. 52. 36

    Pples, § 54, p. 49.

  • 33

    Essa semelhança entre os Gedanken fregianos e os conceitos proposicionais de Russell

    é o que permite a Wittgenstein concluir um aforismo cujo alvo é claramente a compreensão

    fregiana da proposição com observações que evocam a teoria da proposição encontrada nos

    Principles. Pois a atribuição a Frege da ideia de que o verbo de uma proposição é “é

    verdadeiro” ou “é falso” só ganha pleno sentido se pensarmos na função que os verbos

    desempenham na teoria russelliana. Ali, eles são os responsáveis pela unidade da proposição –

    e isto quando ocorrem como verbos –, pois é sua presença que torna um complexo de termos

    qualquer em algo passível de verdade ou falsidade. Logo, se as proposições fregianas são de

    fato nomes de valores de verdade, é necessário que se lhes acrescente algo para que os

    pensamentos que elas exprimem sejam apresentados como verdadeiros (ou falsos). Frege

    sustenta que é nesse momento que deve entrar em cena a noção de juízo, dando origem a uma

    asserção que o manifesta e propõe um determinado pensamento como verdadeiro ou falso.

    Mas o que Wittgenstein nos diz, por sua vez, é que o juízo cumpre propriamente a função de

    atribuir uma propriedade a uma coisa. Ou seja, Wittgenstein, ao criticar Frege, basicamente

    assume a posição de Russell: é o verbo que dá unidade à proposição e faz essa unidade

    complexa possuir ou a propriedade de ser verdadeira ou a de ser falsa. Estabelecida dessa

    forma a complexidade essencial da proposição, se resistirmos à ideia de que é possível

    neutralizar seu verbo substantivando-o, toda proposição será também essencialmente uma

    asserção e, assim, necessariamente verdadeira ou falsa.

    Desta forma, diante da separação entre sentido proposicional e valores de verdade

    presente nos trabalhos de Frege e nos Principles de Russell, seja na forma da relação apenas

    externa entre pensamento e o Verdadeiro ou o Falso, seja na da problemática passagem do

    conceito proposicional à asserção, Wittgenstein, ao invés de tentar fornecer uma resposta para

    a questão acerca da natureza dessa relação, realiza “antes uma crítica de sua formulação e de

    seus pressupostos. Wittgenstein ultrapassa, mais do que resolve, as dificuldades encontradas

    por seu antecessor [Russell].”37

    Trata-se, então, de recuperar o que o noção russelliana de

    proposição tinha de valioso e não dar o passo teórico que leva à distinção entre conceito

    proposicional e asserção. Desse modo, toda proposição deve ser intrinsecamente uma asserção

    (“o que “é verdadeiro” já deve conter o verbo”) e a ideia de que a asserção é um ato que se

    aplica a um sentido proposicional que, por si mesmo, não é capaz de verdade ou falsidade

    deve ser rechaçada como um equívoco. “A barra de asserção não tem nenhum significado

    lógico. Ela apenas mostra, em Frege e em Whitehead e Russell, que esses autores tomam as

    37

    [Gandon, 2002], p. 30.

  • 34

    proposições assim indicadas como verdadeiras. “�”, então, é tão pouco parte da proposição

    quanto (digamos) o número dela.” (NB, p. 103) Se o sentido da proposição consiste nas

    circunstâncias em que ela deve ser dita verdadeira, e esse sentido não está à espera de um ato

    qualquer (de juízo ou de asserção) para ser proposto como verdadeiro, toda proposição já diz,

    por si mesma, o que deve ser o caso para que expresse uma verdade. Por conseguinte, a

    asserção não pode passar de uma atitude psicológica que os sujeitos têm em relação a

    proposições e que não tem influência nenhuma sobre o valor de verdade delas – “só há

    proposições não asseridas. A asserção é meramente psicológica.” (NB, p. 95)

    A recusa a conceder qualquer importância do ponto de vista lógico à noção de asserção