revista unorp direito. v. 2, n. 2, 2011
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Chanceler Dr. Augusto Cezar Casseb
Vice-Chanceler Luiz Carlos Casseb
Reitor
Dr. Eudes Quintino de Oliveira Junior
Pró-Reitor Acadêmico José Luiz Falótico Corrêa
Pró-Reitor Comunitário e de Desenvolvimento
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Conselho Editorial Uderlei Donisete Silveira Covizzi (Coordenador)
Célia Regina Cavicchia Vasconcelos
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Marcelo Kobelnik
Márcia Maria Menin
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Equipe Técnica
Bibliotecária
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Diagramação e Editoração
Enio José Bolognini
José Renato Bianchi
Revisão Geral Ademir Pradela
EDITORIAL
PASSADO, PRESENTE E FUTURO DO DIREITO
O Direito é uma ciência racional, científica e evolutiva, na qual o passado, presente e
futuro, muitas vezes, se distanciam e em outras são conjugados na mesmo tempo
da história. O entrelaçamento com a ética e moral provoca uma contextualização
necessária, pois muitos costumes são arraigados e vigem para sempre. Enquanto
que outros, em razão da evolução da sociedade, exigem uma revisão e ajustamento
de valores.
Na realização do suum cuique tribuere, preconizado por Justiniano, em seu Digesto,
o pensamento jurídico ingressa, obrigatoriamente, em uma novo momento.
Abandona o Modernismo, período em que se sedimentou o liberalismo, o capitalismo
e, principalmente, o individualismo, com várias promessas de se atingir o bem-estar
social, por meio de uma sociedade livre, justa e solidária, além de reduzir a
desigualdade existente entre os cidadãos, pois não se admitem duas classes de
cidadania, sendo uma delas somente bem sucedida.
O pós modernismo não é rompimento, desagregação, mas sim um liame que
estabelecerá novos parâmetros para as ações tentadas e que não foram realizadas,
observando que todo esse processo se faz necessário, para que o homem possa
atingir a harmonia social desejada. Nem se falar de incompetência em realizar
espontaneamente o Direito, como pretendia Montesquieu. Todo homem traz dentro
de si a semente da evolução e o Direito nada mais faz do que espargi-la em seu
grupo social.
Com espírito elevado para tal finalidade, com os pés no pós-modernismo, sem
desprezar, no entanto, as conquistas até o presente auferidas é que se faz nesta
oportunidade o lançamento da Revista Unorp, com relevo para o Curso de Direito.
Artigos da autoria de professores e alunos desfilam assuntos que frequentam o dia-
a-dia dos operadores da área, fornecendo material filosófico e jurídico compatível
com a nova dimensão do mundo jurídico.
O Centro Universitário do Norte Paulista, desta forma, mais uma vez, confirma seu
espírito de trazer à baila reflexões que possam colaborar e transformar os
questionamentos contemporâneos para a edificação de uma sociedade mais justa.
Dr. Eudes Quintino de Oliveira Junior
Reitor da UNORP
FICHA CATALOGRÁFICA
Revista UNORP / Centro Universitário do Norte Paulista. – v. 2, n. 2,
(Nov. 2011) – . São José do Rio Preto, 2011.
Irregular.
ISSN 2178-3268 1. Poligrafias – Periódicos I. Centro Universitário do Norte Paulista.
CDU 08(05)
SUMÁRIO
ARTIGOS O devido processo e o rigorismo legal Eudes Quintino de Oliveira Junior ......................................................................... 7
O artigo 2.039 e a mudança de regime de bens para casamentos celebrados na égide do revogado código civil Márcia Maria Menin .............................................................................................. 16
A dignidade da pessoa humana Shirlei Paci de Rossi Moura .................................................................................. 36
Direitos fundamentais da criança e do adolescente – I André Luiz Nogueira da Cunha .......................................................................... 48
O imperativo categórico de Immanuel Kant Ana Paula Polacchini de Oliveira .......................................................................... 67
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO .......................................................................... 83
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ARTIGO
O DEVIDO PROCESSO E O RIGORISMO LEGAL
*Eudes Quintino de OLIVEIRA JUNIOR
*Mestre em Direito Público, Doutor em Ciências da Saúde, Pós-doutorando em Ciências da Saúde, Promotor de Justiça aposentado, Reitor da Unorp.
Resumo: O ajuizamento de uma ação penal requer redobrada atenção em razão dos princípios garantidores da liberdade individual assegurados na Constituição Federal. Basta ver que a instauração de um inquérito policial para apuração de um ilícito e o esclarecimento da autoria são providências necessárias para a deflagração posterior de uma pretensão acusatória. Justamente porque percorre um caminho investigatório, eminentemente inquisitivo, necessário para a elucidação do fato. As chamadas peças de informação, aquelas que dispensam o procedimento policial, quando servirem de base para o Ministério Público propor a ação pública1, devem reunir indícios que sejam convincentes e produzir uma garantia satisfatória a respeito da autoria.
Palavras-chave: princípio do contraditório; nulidade do processo; devido processo legal
Abstract: The judging of a criminal prosecution requires increased attention because of the principles that guarantee individual freedom assured in the Federal Constitution. The initiation of a police inquiry to investigate an illicit fact and the identification of their authorship are necessary steps for the subsequent deflagration of an accusatory pretension. Precisely because it follows a investigational path, highly inquisitive, necessary for the elucidation of the fact. Even pieces of information, those which do not require police procedure, when used as a basis for the prosecutor to propose the public action should gather evidence to be convincing and produce a satisfactory guarantee as to the authorship. Keywords: contradictory; nullity of process; due process of law
A revolução tecnológica traz inúmeras conquistas que deveriam ser colocadas
à serviço do homem, procurando atender suas necessidades e conveniências, para
contribuir com a formação de uma sociedade mais harmônica, com a possibilidade
de se atingir um estágio mais próximo da perfeição. Ocorre que, muitas vezes, a
1 O Supremo Tribunal Federal, confirmando esse entendimento, tem acentuado ser dispensável, ao oferecimento da denúncia, a prévia instauração de inquérito policial, desde que seja evidente a materialidade do fato alegadamente delituoso e estejam presentes indícios de sua autoria (AI 266.214-AgR/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - HC 63.213/SP, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA - HC 77.770/SC, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA - RHC 62.300/RJ, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO.
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tecnologia supera todos os valores do homem e como um tsunami passa arrastando
todas as conquistas morais, éticas e legais, sem qualquer parâmetro e provoca
consequências gravosas na área jurídica. “O crédito que toda Humanidade abre à
ciência, acentua Costa Jr., é ilimitado e preenche as esperanças, mas já não se
admite que o ingresso de nossa civilização na era da cibernética total possa operar-
se à margem da reflexão crítica. Especialmente quando se sabe hoje que que o
progresso técnico interfere até mesmo na evolução biológica, modificando o seu
curso.”2 Quando a ciência invade a área acobertada pelas liberdades públicas,
desrespeitando-as, faz-se necessária a utilização de um instrumento de controle e
restabelecimento do status quo ante.
O princípio do devido processo legal, que figura na Declaração Universal dos
Direitos do Homem,3 traduz, em sua própria definição, todos os demais princípios
aplicáveis ao processo penal. O due process of law4, significa a síntese de todas as
garantias individuais, legais e processuais conferidas ao cidadão quando diante de
uma lide de natureza penal, civil ou administrativa. É o garantidor que todas as
regras serão efetivamente aplicadas. Nenhuma pessoa será processada ou julgada
sem que tenha sido aplicado o processo previamente estabelecido e ajustado de
acordo com as leis.
Greco Filho, numa lapidar definição, assim se pronunciou:
“A expressão devido processo legal, no âmbito processual penal, tem duplo sentido:
significa processo necessário, porque não é possível aplicar pena sem processo, e,
a segunda acepção, significa processo adequado, ou seja , aquele que assegura
igualdade das partes, o contraditório e a ampla defesa”.5
2 Costa Jr., José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1970, p.14. Referida obra representa a monografia que o autor escreveu para conquistar, mediante concurso público, a Cadeira de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1969. Representa o marco inicial do princípio constitucional da tutela da intimidade abraçada posteriormente pela Constituição Federal de 1988. 3 A Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, anuncia em seu artigo XI: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.” 4A Constituição Americana, na Emenda nº XIV, de 1868, traz a seguinte regra: “Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência, Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis.” 5 Greco Filho, Vicente. Manual de processo penal, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 54.
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E a Constituição Federal incorporou o princípio em seu artigo 5º, inciso LV,
nos seguintes termos:
“Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes”.
O contraditório, entendido como aquele que estabelece o equilíbrio entre as
partes, ou como alguns preferem, a paridade de armas não surge isoladamente
como corolário do princípio do devido processo legal. Vários outros, como o da
ampla defesa, do juiz natural, do duplo grau de jurisdição, da legalidade, da
identidade física do juiz, da oralidade, da verdade real, da motivação das decisões,
incorporam a mesma roupagem e se apresentam como apanágio do referido
princípio norteador.
O regramento constitucional estabeleceu outra norma rígida e inflexível com
relação ao princípio do devido processo legal: “são inadmissíveis, no processo, as
provas obtidas por meio ilícitos”6. O texto, por si só, deixa transparecer que somente
as provas consideradas lícitas, colhidas de acordo com a determinação legal,
poderão ser apreciadas e valoradas no processo contraditório. Aquelas que
tangenciam a ilegalidade e que foram auferidas por meios escusos, não
homologados pelo devido processo legal, serão descartadas e, em caso de
utilização, fulminarão de ilegalidade todo o material probatório produzido. Desta
forma, pode-se apontar como provas ilícitas a confissão obtida por meio de tortura
psíquica, a invasão à privacidade, ao domicílio, à interceptação telefônica, à
intimidade, aos segredos, ao sigilo bancário, à comunicação ou qualquer outro ato
abusivo das liberdades públicas consagradas constitucionalmente.
É certo que o entendimento jurisprudencial mitigou a regra da
inadmissibilidade de referida prova, com a aplicação do princípio da
proporcionalidade, tão bem explorado por José Canotilho, assim como pela
aceitação do favor rei pela rotineira interpretação de nossos tribunais, para que o
réu, em casos excepcionais, possa lançar mão das provas ilícitas e delas se
beneficiar para alcançar sua absolvição. Desta forma, o acusado em processo
criminal pode utilizar-se de uma interceptação telefônica não autorizada para
6 Constituição Federal, artigo 5º, inciso LVI.
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comprovar sua inocência. Justifica-se o sacrifício de um direito que se apresenta
como inferior à vida e liberdade humanas.
Machado, em feliz observação, concluiu:
“Admite-se o uso da prova obtida por meios ilícitos pro reo ainda que a ilegalidade
tenha sido perpetrada pelo próprio beneficiado, ou seja, pelo próprio réu.
Argumenta-se que, nesse caso, o autor da ilegalidade na obtenção da prova terá
agido em legítima defesa do seu jus libertatis, ou mesmo premido pelo estado de
necessidade, o que excluiria a ilicitude de seu comportamento”.7
É no processo penal que se desenvolve a atividade essencialmente
persecutória estatal ou particular e a instrução do processo é ato relevante, pois as
partes indicarão os meios de provas para demonstrar sua pretensão. Sendo a prova
a reconstituição de um fato, não deve a princípio ser limitada e sua apresentação
seguirá as regras pré-constituídas para não acarretar cerceamento ou obstáculo
para o exercício de defesa do interessado.
A doutrina tem por costume distinguir as provas ilícitas das provas
ilegítimas. Essas últimas ofendem diretamente normas de direito processual, como,
por exemplo, a ordem de oitiva das testemunhas, que, se não observada, poderá
acarretar a nulidade processual. Aquelas que forem obtidas por meio ilícito, atingem
normas do direito material “porque, conforme salienta Avolio, a problemática da
prova ilícita se prende sempre à questão das liberdades públicas, onde estão
assegurados os direitos e garantias atinentes à intimidade, à liberdade, à dignidade
humana; mas também, de direito penal, civil, administrativo, onde já se encontram
definidos na ordem infraconstitucional outros direitos ou cominações legais que
podem se contrapor às exigências de segurança social, investigação criminal e
acertamento da verdade, tais os de propriedade, inviolabilidade de domicílio, sigilo
de correspondência, e outros”.8
Pois bem. Toda essa introdução foi elaborada para encaminhar o leitor com
mais segurança na leitura jurídica da decisão proferida pelo Superior Tribunal de
Justiça na chamada “Operação Castelo de Areia”, que representa a maior
investigação criminal desenvolvida pela Polícia Federal, envolvendo empresários e
políticos em fraudes em obras públicas, cuja denúncia foi formulada para perquirir os
7 Machado, Antonio Alberto. Curso de processo penal. 2.ed. – São Paulo: Atlas, 2009, p. 371. 8Avolio, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas e gravações clandestinas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p.39.
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crimes de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, doações ilícitas a campanhas
políticas e pagamentos de propinas a agentes públicos.
O STJ entendeu que as interceptações telefônicas realizadas e autorizadas
foram contaminadas por provas obtidas por meio ilícito, vez que tiveram como base
e sustentação a denúncia anônima. Segundo a decisão do órgão colegiado, a
denúncia anônima, pela sua fragilidade e inconsistência, não carrega força suficiente
para determinar restrições aos direitos fundamentais dos envolvidos.
Denúncia anônima em processo penal é aquela feita sob o manto do
anonimato, muitas vezes com o patrocínio do próprio poder público, que cria um
canal direto de comunicação com a comunidade através do “disque-denúncia”. Com
a organização e especialização de quadrilhas voltadas para a prática de ilícitos, a
notícia anônima carrega um arsenal importante de informações que deverão ser
filtradas e analisadas criteriosamente para verificar sua procedência. O crivo de
admissibilidade e idoneidade será feito pela autoridade policial ou Ministério Público,
ambos como destinatários credenciados e legitimados.
E é coerente tal linha de pensamento voltada para a denúncia anônima
porque o Estado, por si só, em razão da natural desvantagem que sofre com o ato
criminoso, cujo infrator, isoladamente ou em grupo devidamente organizado, tem
melhores condições de estruturar sua empreitada criminosa, com maior chance de
sucesso. A informação velada, por mais simples que seja, fornecida por qualquer
pessoa do povo a respeito da prática de ilícito, traz sempre um ponto inicial de
investigação, um norte para o caminhar da persecução penal. Mas não pode ser
considerada a única base sólida e consistente da persecutio criminis extra juditio “Daí que, conforme acentua Oliveira Júnior, a autoridade policial e o próprio
órgão do Ministério Público não podem repudiar liminarmente a denúncia anônima e
sim dar a ela o tratamento adequado de fonte de informação, com a realização da
pesquisa necessária para rastrear sua idoneidade. Se o denunciante permanecer no
anonimato e se suas informações forem consistentes, possibilitando uma correta
linha de investigação, não há qualquer interesse em se descobrir a identidade do
colaborador. Porém, se lançou mão do anonimato para prejudicar determinada
pessoa, a conduta é reprovável penalmente. Tanto é verdade que o crime de
denunciação caluniosa tem a pena aumentada de sexta parte se o agente se vale do
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anonimato ou de nome suposto para dar causa à instauração de investigação
policial contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente.”9
Desta forma, sem qualquer dúvida, a denúncia anônima carrega farto
material para se realizar investigação policial preliminar visando nortear os caminhos
de uma futura persecução criminal. Porém, não se presta para o embasamento da
instauração do inquérito policial. Os tribunais superiores vêm recomendando
extremada cautela com a denúncia apócrifa, que, se não for bem conduzida, poderá
acarretar sérios danos contra a segurança jurídica e gerar um terrorismo social
desnecessário.
O devido processo legal recomenda que a denúncia anônima não se firme
como peça preliminar e isolada de informação, que seja ela o núcleo em torno do
qual gravitarão todas as pesquisas, diligências e investigações. O que se pretende
não é desvalorizar a denúncia apócrifa e sim erigi-la a uma categoria de
assessoriedade para que as diligências policiais sejam iniciadas com base em uma
Portaria da autoridade policial, que tenha por finalidade pesquisar a ocorrência de
uma notitia criminis de cognição imediata, nos crimes de ação penal pública
incondicionada, em que há a obrigatoriedade de ofício da autoridade encarregada de
dar início ao inquérito policial.
O Ministro Celso de Mello, em seu voto, com a lucidez e perspicácia que lhe
são pertinentes, decidindo a respeito de um processo em que se discutia a validade
da denúncia anônima, assim se manifestou:
“No direito pátrio, a lei penal considera crime a denunciação caluniosa ou a
comunicação falsa de crime (Código Penal, arts. 339 e 340), o que implica a
exclusão do anonimato na notitia criminis, uma vez que é corolário dos preceitos
legais citados a perfeita individualização de quem faz a comunicação de crime, a fim
de que possa ser punido, no caso de atuar abusiva e ilicitamente.
Parece-nos, porém, que nada impede a prática de atos iniciais de investigação da
autoridade policial, quando delação anônima lhe chega às mãos, uma vez que a
comunicação apresente informes de certa gravidade e contenha dados capazes de
possibilitar diligências específicas para a descoberta de alguma infração ou seu
autor. Se, no dizer de G. Leone, não se deve incluir o escrito anônimo entre os atos
9Oliveira Júnior, Eudes Quintino de. Publicado no Informativo Migalhas, nº 2535, do dia 21/12/2010. <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI123465,31047-Denuncia+Anonima>. Acesso em 23 de abril de 2011.
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processuais, não servindo ele de base à ação penal, e tampouco como fonte de
conhecimento do juiz, nada impede que, em determinadas hipóteses, a autoridade
policial, com prudência e discrição, dele se sirva para pesquisas prévias. Cumpre-
lhe, porém, assumir a responsabilidade da abertura das investigações, como se o
escrito anônimo não existisse, tudo se passando como se tivesse havido notitia
criminis inqualificada." (grifei)10
O que a Constituição determina é a obediência ao devido processo legal
para que nenhuma pessoa seja acusada injustamente com base em provas obtidas
por meios considerados espúrios. À regra da acusação justa e equilibrada, que é
restrita, soma-se o direito do réu de se defender, de forma ampla, sem que haja
invasão aos seus predicados assegurados constitucionalmente. A denúncia
anônima, sendo ela a única propulsora da investigação policial, não carrega
idoneidade necessária para permitir a prática de vários atos investigativos contra o
suspeito.
Tanto é que o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, no
processo já referido, em seu voto, assim se posicionou:
“Tenho para mim, portanto, Senhor Presidente, em face do contexto referido nesta
questão de ordem, que nada impedia, na espécie em exame, que o Poder Público,
provocado por denúncia anônima, adotasse medidas informais destinadas a apurar,
previamente, em averiguação sumária, "com prudência e discrição" (JOSÉ
FREDERICO MARQUES, "Elementos de Direito Processual Penal", vol. I/147, item
n. 71, 2ª ed., atualizada por Eduardo Reale Ferrari, 2000, Millennium), a possível
ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, com o objetivo de viabilizar a
ulterior instauração de procedimento penal em torno da autoria e da materialidade
dos fatos reputados criminosos, desvinculando-se a investigação estatal ("informatio
delicti"), desse modo, da delação formulada por autor desconhecido, considerada a
relevante circunstância de que os escritos anônimos - aos quais não se pode atribuir
caráter oficial - não se qualificam, por isso mesmo, como atos de natureza
processual.
Disso resulta, pois, a impossibilidade de o Estado, tendo por único fundamento
causal a existência de tais peças apócrifas, dar início, somente com apoio nelas, à 10 <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo393.htm#transcricao1>. Acesso em 22/4/2011.
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"persecutiocriminis".
Daí a advertência consubstanciada em julgamento emanado da E. Corte
Especial do Superior Tribunal de Justiça, em que esse Alto Tribunal, ao pronunciar-
se sobre o tema em exame, deixou consignado, com absoluta correção, que o
procedimento investigatório não pode ser instaurado com base, unicamente, em
escrito anônimo, que venha a constituir, ele próprio, a peça inaugural da
investigação promovida pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público.”11
Feitas tais considerações, é intuitivo concluir que a legislação brasileira trata
com rigorismo indesculpável a inobservância do princípio do devido processo legal.
Isto porque o direito à prova resulta de uma árdua conquista processual e neste
patamar somente podem circular as provas consideradas legais, lícitas e legítimas.
Jamais, sob qualquer condição, pode prevalecer um conteúdo probatório obtido
mediante o arrepio da lei. E, assim, por não possuir uma sedimentação consistente,
qualquer castelo ruirá.
11<http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo393.htm#transcricao1>. Acesso em 22/4/2011.
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REFERÊNCIAS
AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas e
gravações clandestinas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.
CONSTA, Jr., José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1970.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1991,
MACHADO, Antonio Alberto. Curso de processo penal. 2.ed. – São Paulo: Atlas,
2009.
OLIVEIRA JÚNIOR, Eudes Quintino de. Disponível em:
<http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI123465,31047-Denuncia+Anonima>.
Acesso em 24 abr. 2011.
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ARTIGO
O ARTIGO 2.039 E A MUDANÇA DE REGIME DE BENS PARA CASAMENTOS CELEBRADOS NA ÉGIDE DO REVOGADO CÓDIGO CIVIL
*Márcia Maria MENIN
*Advogada. Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP-SP). Professora do Curso de Direito do Centro Universitário do Norte Paulista - UNORP
Resumo: A possibilidade da modificação pós nupcial do regime de bens conferida pelo artigo 1.639, parágrafo 2º do Código Civil, denota verdadeiro respeito ao princípio da Autonomia Privada, fato não demonstrado sob a égide da revogada codificação civilista. Contudo, o atual artigo 2.039 do Código Civil inserido nas Disposições Finais e Transitórias deixa dúvidas no que tange a extensão de tal prerrogativa àqueles que se casaram durante a vigência do Código Civil de 1916. O presente trabalho tem o propósito de apresentar-se como forma de solucionar referido problema a partir da demonstração, dentre outros aspectos, de que as normas de direito intertemporal são aplicadas de modo distinto a depender da natureza da matéria sob a qual ela se impõe. Palavras-chave: casamento, mutabilidade do regime de bens, direito intertemporal. Abstract: The possibility of post nuptial change of marital property regime informed by 2002 Civil Code (1.639, n 2º), respects individuals private autonomy. This situation was not a possibility at the preceding Civil Code. Even so, the 2002 Civil Code, on its 2.039 dispositive lines brings doubts if that post marital property regime change possibility is also applied on marriages that happened during the ruling of 1916 Civil Code. This work aims to analyses the problem and proposes a solution by discussing, among other things, that the intertemporal law applies differently in each case and depends on the nature of the subject. Keywords: marriage; marital regime mutability, intertemporal law.
1. INTRODUÇÃO
O atual Código Civil em seu artigo 1.639, parágrafo 2º, possibilitou a
modificação pós nupcial do regime de bens durante o casamento, desde que por
pedido judicial motivado por ambos os cônjuges. Entretanto, a redação do artigo
2.039 de referido texto legal gerou dúvidas na comunidade jurídica no que diz
respeito à possibilidade da modificação do regime de bens durante o casamento
consistir em uma prerrogativa também concedida àqueles que se casaram sob a
égide do revogado Código Civil.
No momento em que há determinada situação jurídica entre a vigência de
uma norma e o surgimento de outra, urge que se resolva qual delas lhe será
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aplicável. Sendo assim, resta saber se a nova lei poderá reger os atos já praticados
e aperfeiçoados durante o império da antiga lei, se apenas vigorará quanto aos
efeitos futuros daqueles atos pretéritos, ou se a lei revogada continuará produzindo
efeitos para além de sua vigência.
Para isso, o direito intertemporal se impõe, porquanto é “constituído pelo
conjunto de normas e princípios jurídicos que têm por finalidade resolver as
questões suscitadas pela sucessão de duas leis no tempo”.1
Desse modo, para que o conflito de leis no tempo seja solucionado, o direito
intertemporal faz uso de dois critérios. Um deles consiste na verificação da
existência da imediatidade da nova lei, sua retroatividade ou irretroatividade e,
ainda, se há pós-atividade da lei revogada. O outro critério consiste na inserção, no
próprio ordenamento jurídico, de normas denominadas disposições transitórias, as
quais possuem caráter temporário, uma vez que se tornarão inúteis em decorrência
da extinção das situações jurídicas pretéritas responsáveis por sua edição.
O Código Civil renovou seu conteúdo normativo por apresentar tais normas
de direito intertemporal disciplinadas nos artigos 2.028 a 2.046 no Livro
Complementar – Das Disposições Finais e Transitórias, não ficando tal
responsabilidade apenas adstrita à jurisprudência ou à doutrina, facilitando, assim, o
trabalho do exegeta da lei.
Importa, nesse contexto, dissertar sobre o artigo 2.039, relevante para melhor
entendimento da possibilidade da aplicação da lei mutabilista aos casamentos
celebrados na vigência do diploma civil anterior.
Diz o citado artigo: “O regime de bens nos casamentos celebrados na
vigência do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1o de janeiro de 1916, é o por ele
estabelecido”.
A partir da leitura de tal lei, surge a tentativa de interpretação mais fiel
possível da intenção do legislador. E qual seria ela? Será que ele se refere apenas
às regras específicas dos regimes de bens? Será que seu desejo também se
estende às Disposições Gerais? Ou, talvez, o legislador não se refira nem às regras
específicas nem às Disposições Gerais?
1 NORONHA, Fernando. Retroatividade, eficácia imediata e pós-atividade das leis: sua
caracterização correta, como indispensável para solução dos problemas de direito intertemporal. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo: RT, v. 23, 1988, p. 91.
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Para que se possa adquirir conhecimento acerca do assunto, é necessário
perpassar por breve análise do direito intertemporal com o objetivo de chegar ao
destino certo, qual seja, a verdadeira exegese do artigo 2.039 do novo Código Civil.
2. O DIREITO INTERTEMPORAL
As transformações sociais, muitas vezes, reivindicam a edição de novas
normas de modo a trazer regulamentações consentâneas com as urgências sociais,
políticas e econômicas e, por conseqüência, criar um ordenamento jurídico que
guarde estreita identidade com a sociedade na qual ele se impõe. Nesses casos,
crê-se que a aplicação da nova lei para a maioria das situações jurídicas nascidas e
ainda para aquelas que serão concebidas sob o seu manto seria, portanto, reflexo
de um senso de justiça por parte do legislador, e traria harmonia ao sistema jurídico.
Em outro vértice, a alteração normativa poderia ocasionar insegurança às
partes de uma relação jurídica já estabelecida sob a vigência de uma lei revogada.
Dessa forma, o abrupto surgimento de uma nova lei e sua imediata aplicação para
determinados casos seriam razão para a incredulidade social no que diz respeito ao
sistema jurídico, acarretando, quiçá, sensível diminuição na execução de atos
jurídicos e, como efeito, uma possível contaminação na economia do País.
Todavia, há uma zona intermédia em que, não obstante a existência de nova
lei, esta, salvo exceções, não modificará situações jurídicas pretéritas, mas, ao
mesmo tempo, produzirá um ordenamento jurídico atualizado conforme as
necessidades sociais. Destarte, a nova lei será aplicada apenas aos efeitos futuros
de atos jurídicos praticados quando da vigência da lei revogada. Preceitua o artigo
6o, caput, da Lei de Introdução ao Código Civil:2 “A lei em vigor terá efeito imediato e
geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.
A indigitada norma prevê como regra geral o que se denomina aplicação imediata da lei ou imediatidade, a qual consiste “na aplicação da lei nova a situações jurídicas que já vêm do passado, criando nova regulamentação para os efeitos que
se produzirem dali em diante, ou mesmo suprimindo pura e simplesmente essas
2 Nesse mesmo sentido dispõe o artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal: “a lei não prejudicará o
direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
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situações; em ambas as hipóteses, todos os efeitos que tenham sido produzidos
permanecem intocados”.3
Para a adequada compreensão desse modo de atuação da lei no tempo,
mister é explicitar os ensinamentos de Roubier4 a respeito do assunto.
O autor distingue os fatos já aperfeiçoados no passado, denominando-os de
facta praeterita, dos fatos que ainda estão em via de realização – os facta pendentia,
e dos fatos futuros – facta futura. O que interessa para que se possa compreender a
respeito da eficácia imediata da norma são os fatos pendentes.
Roubier divide os fatos pendentes em duas categorias: os fatos anteriores à
vigência da nova lei e os fatos posteriores a ela. Haverá eficácia imediata da nova lei
se ela atingir os fatos pendentes, cujos efeitos forem posteriores a sua vigência,
porquanto, se houvesse emprego da nova lei aos efeitos anteriores a ela,
configuraria hipótese de retroatividade.5
Importa nesse momento trazer à colação a razão pela qual foram feitas essas
breves e singelas considerações.
No direito de família, as normas de direito intertemporal são aplicadas de
maneira distinta dependendo da natureza da matéria sobre a qual ela se impõe.
No que diz respeito ao direito pessoal, haverá eficácia imediata da nova lei.
Assim, serão aplicadas as novas normas que se refiram, por exemplo, aos deveres
de fidelidade recíproca, à fixação do domicílio, ao poder familiar etc.6
Por sua vez, com relação ao direito patrimonial, deve-se distinguir os efeitos
decorrentes do casamento e que independem da manifestação de vontade das
partes e aquilo que advém do regime de bens. Isto porque “o primeiro constitui uma
3 NORONHA, Fernando. Retroatividade, eficácia imediata e pós-atividade das leis: sua caracterização correta, como indispensável para solução dos problemas de direito intertemporal, cit., p. 100.
4 Paul Roubier desenvolveu um dos mais importantes estudos sobre o efeito imediato e geral da norma em seu artigo “Distiction de l’effet rétroactif et de l’effet immédiat de la loi”, publicado na Revue Trimestrielle, em 1928, bem como dedicou-se à matéria em alguns capítulos da obra Les conflits des lois e no Le droit transitoire.
5 Para maior aprofundamento no assunto, ver: LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de introdução ao Código Civil. Rio de Janeiro: Jacintho, 1943, v. I; FRANÇA, Rubens Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2000; DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2007; e MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955.
6 Com relação aos direitos pessoais, preleciona Vicente Ráo: “(...) são em princípio definidos e regulados por leis de ordem pública, que, visando primordialmente realizar os fins sociais e morais da instituição da família, possuem, em conseqüência, maior intensidade em sua força obrigatória, alcançando os efeitos das relações constituídas sob as leis anteriores” (O direito e a vida dos direitos. 5. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 389).
20
situação jurídica decorrente da lei, puramente, ao passo que o segundo é um
produto contratual”.7
Nesse diapasão, para que se mantenha a segurança jurídica dos cônjuges
que optaram por certa espécie de regime de bens em razão das peculiaridades que
dele faziam parte, mantém-se a lei vigente na época da celebração do casamento,
não sofrendo o regime de bens, salvo menção expressa em contrário, qualquer tipo
de alteração por ocasião do advento de uma nova lei. Se esta cria um outro tipo de
regime supletivo de bens, não atingirá os cônjuges casados antes de sua vigência,
ou, ainda, se a nova lei altera as regras específicas de determinado regime, será
eficaz apenas para os casados posteriormente a ela. É o que ensina Pontes de
Miranda:
A Lei nova, que estabelece outro regime legal, ou que modifica o existente até então, não alcança os casamentos celebrados antes dela (...), salvo disposição em contrário. (...). Note-se a diferença entre o que se dá com os efeitos pessoais do casamento. Esses são regidos pela lei nova (...).8
Também é o que preceitua João Luiz Alves, citado por Wilson de Souza
Campos Batalha: “Quanto ao regime de bens entre os cônjuges, vigora a lei sob cuja
atuação o regime foi estabelecido, quer se trate de regime resultante de pactos
antenupciais, quer do resultante da própria lei.” 9
Conclui-se que, quanto às normas de caráter cogente, as quais não poderão
ser modificadas pelas partes, preza-se pelo emprego da nova lei, já que há no caso
um interesse público na sua edição e obediência. Frisa-se que isso ocorrerá tanto
com relação aos efeitos pessoais do casamento como no caso de se tratar das
Disposições Gerais (ou estatuto imperativo de base) dos regimes de bens.
7 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código Civil,
cit., p. 343. Vicente Ráo distingue os direitos patrimoniais dos cônjuges da seguinte maneira: “ou são direitos cuja constituição a lei anterior deixava à livre vontade das partes, por predominarem neles os interesses individuais, ou são direitos que se definem e caracterizam por sua natureza social, pelo interesse geral que envolvem” (O direito e a vida dos direitos, cit., p. 390).
8 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito de família. Direito matrimonial 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1947. v. 2, p. 200. Esse mesmo autor, prevendo a possibilidade da modificação do regime de bens durante o casamento, afirmava: “Se algum dia o direito brasileiro permitir a convenção pós-nupcial, a nova lei poderá ser seguida, quanto a isso, pelos casados anteriormente a ela. A regra de imutabilidade do regime (art. 230) é de direito substancial, e não de direito intertemporal” (Tratado de direito privado, cit., p. 283).
9 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 259.
21
Durante a vigência do Código Civil revogado, havia interesse geral na
imutabilidade do regime de bens. Como visto, baseava-se, mormente, na segurança
de terceiros e dos cônjuges. Sendo assim, se a nova lei deixa de considerá-lo por
entender o legislador que a prerrogativa concedida aos cônjuges de modificar seu
regime de bens originário trará benesses a eles e que, ao mesmo tempo, não
prejudicará terceiros, não há sentido entender que as pessoas que se casaram sob
a égide do antigo Código Civil não poderão ser contempladas com tal novidade. Não
é permitido, nesses casos, que se invoque violação ao direito adquirido à
imutabilidade do regime de bens, assim como não foi possível a invocação desse
mesmo direito por ocasião do surgimento da Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/77), a qual
modificou o regime supletivo de bens de comunhão universal para o regime da
comunhão parcial.
Esse é também o entendimento esposado por Miguel Maria de Serpa Lopes:
Não temos dúvida, a despeito da opinião em contrário de Roubier, que a eficácia imediata da lei se aplica, porquanto a prescrição da imutabilidade do regime matrimonial não é pertinente ao domínio contratual, mas sim um ditame expresso da lei.10
Ademais, existe outro argumento: depreende-se do entendimento do caput do artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil que a aplicação imediata da lei
consiste em regra geral, ou seja, conforme supramencionado, a nova lei deverá
ser aplicada aos efeitos futuros de atos jurídicos que se constituíram sob o
império da antiga lei. Todavia, juristas contrários à possibilidade de modificação
do regime de bens para os cônjuges que se casaram sob a égide do antigo
Código Civil sustentam, em sua maioria, que tal prerrogativa feriria o ato jurídico
perfeito.11 Leônidas Filippone Farrula Junior,12 indagando sobre a conveniência
da mutabilidade, afirma que, para que se alcance a resposta, faz-se necessário
analisar algumas questões e afirma:
10 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código Civil, cit., p. 344.
11 Conforme artigo 6º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil (Lei n. 3.238/57), “reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”. Em outras palavras, o ato jurídico perfeito é aquele cujos efeitos foram completamente verificados ao abrigo da lei anterior, e se uma nova lei o atingisse configuraria hipótese de retroatividade.
12 FARRULA JUNIOR, Leônidas Filippone. Do regime de bens entre os cônjuges. In: LEITE, Heloisa Maria Daltro (Coord.). O novo Código Civil. Do direito de família. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003, p. 315-316.
22
A primeira delas é saber se somente aqueles que se casaram após a entrada em vigor do novo Código Civil poderão alterar o regime de bens. A resposta é afirmativa, sob pena de se ferir o ato jurídico perfeito e, por conseguinte, a norma esculpida no inciso XXXVI, do artigo 5º, da Constituição da República, onde está cristalizado o Princípio da Irretroatividade das Leis. Afinal é com as núpcias, que o casamento se aperfeiçoa e assim, as questões patrimoniais decorrentes destes se regulam pela legislação vigente quando da sua celebração.
Grande parte das decisões negatórias do pedido de alteração do regime de
bens para os cônjuges que se casaram antes de 11 de janeiro de 2003 também se
fundamenta na ofensa ao ato jurídico perfeito e ao princípio da irretroatividade da
leis.13 Nessa direção é a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
O Código Civil revogado tratava do regime de bens no casamento em seus artigos 256 a 314, preceituando, ainda, que ‘o regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento, e é irrevogável’. Quando o ato jurídico perfeito e acabado ganhou roupagem constitucional foi exatamente para que se mantenha uma garantia de estabilidade, de perenidade, de segurança das condutas amparadas pelo texto constitucional. Se é certo que o Direito não é estático, que a lei reflete o momento em que é ela elaborada, não menos certo é que a partir o momento em que comandos legais expressos passam sistematicamente a ser tacitamente derrogados nas prestações jurisdicionais, perde-se o referencial, perdem-se os parâmetros, tudo isso, obviamente, em prejuízo do próprio jurisdicionado, que amanhã, no pólo oposto da demanda estará sujeito ao mesmo resultado, exatamente porque a falta de referencial torna o procedimento lotérico. (...) O pedido constante na presente ação é, portanto, juridicamente impossível, vez que os casamentos celebrados durante a vigência do Código Civil de 1916 são por eles regidos, constituindo, outrossim, atos jurídicos perfeitos, que não poderão ser desrespeitados pela lei nova (atual Código Civil), consoante determina o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.14
13 Uma lei é considerada retroativa quando volta ao passado e modifica os atos jurídicos já
aperfeiçoados sob a vigência da antiga lei. Destarte, o princípio da irretroatividade, o qual teria por fim impor-se como medida protetiva, traduz-se pela proibição legal conferida à retroatividade da nova lei disposta. Em que pese muitos considerarem que a atual Carta Magna, em seu artigo 5º, XXXVI, tenha realmente erigido referido princípio, alguns doutrinadores mostram-se desfavoráveis a tal posicionamento defendendo que há, na realidade, o princípio da retroatividade limitada, porquanto entendem que a lei sempre terá efeito imediato e geral exceto se houver ofensa a direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, até porque, diversamente do que dispunham as Constituições de 1824 e 1891, na atual Constituição Federal não há qualquer tipo de norma expressa nesse sentido. É o posicionamento de Mario Luiz Delgado, inspirado nas lições de José de Oliveira Ascensão, Roubier e Carlos Maximiliano: “(...) o princípio albergado na Carta Magna vigente não é o da irretroatividade, mas sim o da retroatividade limitada, vale dizer, a lei nova pode retroagir, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada” (Problemas de direito intertemporal no Código Civil. Doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 30-31).
14 Apelação Cível n. 1.0024.04.332426-8/001, 1ª Câmara Cível, relator Desembargador Gouvêa Rios, comarca de Belo Horizonte/MG, data da publicação do acórdão: 17/12/2004.
23
Mas qual razão levaria os juristas a crer que a concessão do pedido de
modificação do regime de bens para aqueles inseridos na situação particular até o
momento referida configuraria hipótese de violação a princípio constitucional?
No momento em que se dá o casamento, esse instituto jurídico começa a
produzir efeitos que perdurarão durante toda a existência da sociedade conjugal.
Então, mesmo que um dos cônjuges não exerça o direito de obter empréstimo para
compra de objetos necessários à economia doméstica, assim poderá fazê-lo, e
independentemente do regime de bens por ele eleito (CC, artigo 1643), a todo
momento, desde que ainda subsista o casamento.
Se o regime de bens se torna findo apenas com o término da sociedade
conjugal, não se pode afirmar que o casamento constitui ato jurídico perfeito, uma
vez que os efeitos de sua escolha – por exemplo, a partilha nos casos de regime
comunitários – somente surgirão no momento da dissolução. Como poderia ser
caracterizado ato jurídico perfeito se a todo momento é permitido aos cônjuges
exercerem direitos oriundos do casamento?
Quando o legislador opta por dar prosseguimento ao dispositivo legal anterior,
assim deve proceder de maneira expressa, visto que se trata de caso de pós-
atividade15 da norma anterior. É o modo como procedeu por ocasião da elaboração
dos artigos 2.036, 2.037, 2.038 e 2.041, todos do Código Civil.16
15 Dá-se pós-atividade ou ultratividade de uma norma quando, malgrado ter sido revogada,
permanece eficaz, uma vez que há continuidade da aplicação desta antiga lei para além do tempo de sua vigência. Assinala José Eduardo Martins Cardoso que, “sempre que se verificar, a sobrevivência da lei velha implicará, normalmente, a exclusão dos efeitos imediatos e futuros da lei em vigor, no que tange particularmente a situações ou relações em curso no momento da alteração legislativa, que passam, assim, a ser imunes aos naturais efeitos previstos na vigente legislação” (DELGADO, Mário Luiz. Problemas de direito intertemporal no Código Civil: doutrina e jurisprudência, cit., p. 23). Na Itália, por exemplo, a Lei n. 142, de 10 de abril de 1981, que suprimiu o controle judicial para a modificação do regime de bens após o casamento, conferiu essa prerrogativa apenas àqueles que se casaram após o advento de tal lei. Destarte, como se trata de norma de caráter pós-ativo, o seu artigo 2º ordenava que a autorização continuava sendo necessária, “soltanto per il mutamento, dopo la celebrazione del matrimonio, di convenzoni matrimoniali stipulate per atto publico prima dell’entrada em vigore della presente legge...”. Tradução livre da autora: “apenas para a mudança, após a celebração do casamento, das convenções matrimoniais estipuladas por ato público antes da entrada em vigor da presente lei.
16 “Art. 2.036. A locação de prédio urbano, que esteja sujeita à lei especial, por esta continua a ser regida.” “Art. 2.037. Salvo disposição em contrário, aplicam-se aos empresários e sociedades empresárias as disposições de lei não revogadas por este Código, referentes a comerciantes, ou a sociedades comerciais, bem como a atividades mercantis.”
24
Portanto, caso a intenção do legislador fosse manter a imutabilidade do
regime de bens, deveria assim se referir de modo claro e expresso na redação do
artigo 2.039 do Código Civil: “O regime de bens nos casamentos celebrados na
vigência do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele
estabelecido, sendo proibida posterior modificação”.
Ademais, cumpre advertir que uma norma com natureza tutelar não deve ser
concedida apenas para determinado grupo de pessoas que se encontram na mesma
situação jurídica das outras, contudo, separadas pelo lapso temporal; caso isso
ocorra, haverá flagrante violação ao princípio da igualdade disposto na Carta Magna,
artigo 5º, caput. Conforme mencionado, o princípio da igualdade caracteriza-se por tratar
igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se
desigualam.
É necessário primeiro individualizar o fato considerado como desigual para
que depois se proceda à análise a respeito da existência de fundamento lógico para
que efetivamente seja considerado distinto e, por fim, se essa desigualdade deve ser
considerada a ponto de ser concedido tratamento diferenciado às pessoas que se
mostrem inseridas nessa situação fática.
Impende concluir que não há qualquer espécie de correlação lógica entre o
elemento discriminador – casamentos celebrados antes da vigência da Lei n.
10.406/2002 – e a finalidade da norma, qual seja, a mutabilidade do regime de bens
durante o casamento.
Por conseguinte, não tem fundamento legal tal vedação, visto que, caso ela
existisse, não poderia ser erigida como asseguradora de interesses de terceiros, já
que o próprio texto da lei já o coloca a salvo, nem tampouco de interesses dos
cônjuges, pois, frisa-se, apenas poderá ser deferida a modificação do regime de
bens caso seja suprido o requisito consensualidade.
Nota-se, portanto, que o direito intertemporal mostra-se abrigo das pessoas
cujo casamento se deu na vigência do Código Civil revogado, de modo a protegê-las
“Art. 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, e leis posteriores.” “Art. 2.041. As disposições deste Código relativas à ordem de vocação hereditária (arts. 1.829 a 1.844) não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto na lei anterior (Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916).”
25
da aleatória intervenção estatal sob o fundamento de proteção e respeito à lei, mas
que esconde, verdadeiramente, exacerbado positivismo e efetiva lesão ao princípio
constitucional da isonomia.
3. A CORRETA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 2.039 DO CÓDIGO CIVIL
Como visto, a norma de direito transitório contida no artigo 2.039 do Código
Civil não se refere propriamente à inaplicabilidade do § 2o do artigo 1.639,
entretanto, na conveniência do momento atual, surge a questão: a que se refere o
artigo 2.039? Qual situação jurídica seria objeto da proteção dessa norma?
O Projeto de Código Civil havia acrescentado uma parte final à redação atual
da norma transitória ora em comento, a qual passaria a vigorar nos seguintes
termos: “O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil
de 1916 é o por ele estabelecido, mas se rege pelas disposições do presente
Código”.
Se a referida norma tivesse sido contemplada pelo atual Código Civil, quiçá
daria indícios de que apenas no que concerne às Disposições Gerais haveria a
aplicação da nova codificação. Entretanto, a parte final foi subtraída por meio da
Emenda n. 491-R pelo senador Josaphat Marinho, relator-geral do Projeto, que se
justifica:
Houve necessidade de se promover a modificação porque se, como dito na parte final do dispositivo, ‘o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por ele estabelecido’, não se regerá pelo novo. Dúvida, que porventura surja, será apreciada em cada caso.17
Caso seja percorrida a direção imposta pela maioria da doutrina e
jurisprudência brasileiras, ter-se-á que o artigo 2.039 do Código Civil é destinado às
disposições específicas sobre os regimes de bens.18
17 BARBOSA, Heloísa Helena. Alteração do regime de bens e o art. 2.039 do Código Civil. Anais... IV
CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 333. 18 Importa nesta ocasião fazer referência ao magistério de alguns juristas que possuem posição isolada no que
concerne à interpretação do artigo 2.039 do Código Civil. Silmara Juny Chinelato ensina que a regra de direito transitório é necessária, “pois na vigência do Código revogado havia um regime não existente, o dotal; o regime legal de bens era o da comunhão universal até o advento da Lei do Divórcio (...). O regime dotal reger-se-á pelo Código de 1916, bem como os casados sob o regime
26
Significa afirmar que, quanto ao regime escolhido, seja ele convencional ou legal, continuarão sendo eficazes as características particulares que compunham cada um deles sob a vigência do Código Civil revogado, ou seja, consoante grande parte dos juristas, as normas dos artigos 262 a 288 daquele Código continuarão a nortear as relações entre os cônjuges e entre estes e terceiros, caso aqueles tenham se casado antes da vigência da Lei n. 10.046 de 2002 – o Código Civil em vigor.
Corroborando as pesquisas realizadas, tem-se presente o entendimento de Euclides de Oliveira:
Somente as regras específicas acerca de cada regime é que se aplicam em conformidade com a lei vigente à época da celebração do casamento, mas quanto às disposições gerais comuns a todos os regimes aplica-se o novo Código Civil.19
Nesse diapasão, Sérgio Gischkow Pereira20 manifesta seu posicionamento:
(...) O art. 2.039 do Código Civil não é obstáculo para tal compreensão. Ele apenas impõe que o regime de bens seja regido pela lei da época da celebração do casamento; mas evidentemente, se não alterado o regime por vontade dos cônjuges. Enquanto não modificado o regime, a lei que regula o regime é a do Código Civil de 1916, quando a união ocorreu sob sua vigência.
Heloísa Helena Barbosa21 comenta que, se as disposições específicas dos
regimes de bens fossem atingidas pela nova lei, isso causaria “perplexidade em
razão das peculiaridades de cada regime”, e afirma:
legal de comunhão universal de bens continuarão a ter sua vida patrimonial por ele regida, não obstante o regime legal do novo Código seja o da comunhão parcial” (CHINELATO, Silmara Juny. Do direito de família, cit., p. 272). Ronaldo Álvaro Lopes Martins afirma: “O que se pode entender sobre a razão da existência do art. 2.039 é o fato de o atual Código Civil não ter agasalhado em seu texto o regime dotal e, além disso, ter criado o regime da participação final nos aqüestos” (A imutabilidade do regime de bens do casamento. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 6, n. 24, p. 280, 2003). Antonio Jeová Santos crê que a norma autorizadora da alteração do regime de bens “é de natureza vistosamente processual e, como tal, sua aplicação é imediata. Abarca todos os casamentos aqueles celebrados antes da vigência do Código Civil de 2002, inclusive” (SANTOS, Antonio Jeová. Direito intertemporal e o novo Código Civil. Aplicações da Lei 10.406/2002. São Paulo: RT, 2003, p. 117).
19 OLIVEIRA, Euclides de. Alteração do regime de bens no casamento. In: DELGADO, Mário Luiz;
ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Novo Código Civil: questões controvertidas. São Paulo: Método, 2006. v. 1, p. 395.
20 PEREIRA, Sérgio Gischkow. O direito de família e o novo Código Civil: alguns aspectos polêmicos ou inovadores. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, n. 18, jun./jul. 2003, p. 152.
21 BARBOSA, Heloísa Helena. Alteração do regime de bens e o art. 2.039 do Código Civil, cit., p. 333.
27
Razoável, por conseguinte, o entendimento no sentido de que essas regras gerais, incidentes sobre todos os regimes de bens, sejam atingidas pela lei nova, mantendo-se a orientação da lei anterior quanto à disciplina específica de cada regime, como determina o art. 2.039 (...).
Conclui a autora que esse posicionamento adotado poderá acarretar algumas
conseqüências, como:
a) manter o regime de bens dos casamentos anteriores à nova lei (...), salvo no que respeita às disposições gerais, que passam a ser do Código Civil de 2002; b) preservar os atos praticados por pessoas casadas na vigência da lei anterior, ainda que venham a modificar o regime de bens; c) permitir a aplicação das disposições gerais relativas a regime de bens (do Código Civil de 2002) a todos os casamentos, insista-se, mesmo aos celebrados antes da vigência da nova lei civil.
Cumpre enunciar que, atualmente, o entendimento suprademonstrado traduz-
se na maioria das decisões dos tribunais brasileiros, os quais caminham no sentido
de permitir a modificação do regime de bens para casamentos anteriores à entrada
em vigor do atual Código Civil. É o que se afigura em acórdão proferido pelo Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo:
Alteração de Regime – Retroação – Artigo 2.039 do CC de 2002, Inaplicável – Dá-se provimento ao recurso para acolher o pedido e autorizar a mudança do regime de casamento de comunhão parcial para separação total, expedindo-se mandado e as comunicações de praxe. A mutabilidade do regime de casamento é uma vitória do livre convencimento, que deve vigorar em todas as áreas em que o ser humano se movimenta, notadamente o casamento. É de se admitir que, sendo necessário ou justificadamente conveniente, se permita a mudança do regime de bens, evitando que a imutabilidade que antes oprimia os casais continue asfixiando as chances de viver novas perspectivas e outros desafios que a vida imprime. O que o artigo 2.039 do Código Civil pretendeu, ao instituir que a lei anterior vigora para os casamentos realizados na sua égide, é o de que somente as regras específicas acerca de cada regime é que se aplicam em conformidade com a lei vigente à época da celebração do casamento, mas, quanto às disposições gerais comuns a todos os regimes, aplica-se o novo Código Civil. 22
22 Apelação Cível n. 311.958-4/9-00, 4ª Câmara Cível, data da publicação do acórdão: 17/12/2004,
relator Desembargador Ênio Zuliani, j. 01/09/2006. Ver também STJ, Recurso Especial n. 0036263-0, 4ª Turma, relator Ministro Jorge Scartezzini, j. 23/08/2005; STJ, Recurso Especial n. 821.807, 3ª Turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 19/10/2006.
28
Tal posicionamento já se firmou no Enunciado n. 260 do Conselho da Justiça
Federal, o qual possui a seguinte redação: “A alteração do regime de bens prevista
no parágrafo 2º do art. 1.639 do Código Civil também é permitida nos casamentos
realizados na vigência da legislação anterior.”
Resulta evidente, senão prolixo, afirmar que realmente o artigo 2.039 do
Código Civil tende a assegurar e manter, para os cônjuges que se casaram sob a
vigência da revogada legislação civil, o regime de bens com todas as características
que lhe eram intrínsecas e que foram posteriormente revogadas pelo vigente Código
Civil. Ademais, embora o regime dotal tenha sido de rara eleição, há que se
preservar aqueles que possuem a sua vida patrimonial regida pelo indigitado regime.
Resguardados, portanto, serão os atos praticados pelos cônjuges e já
aperfeiçoados sob o império da lei anterior – ato jurídico perfeito –, bem como o
direito adquirido, ou seja, é impositivo que a proteção também recaia sobre o direito
subjetivo ainda não exercido durante a vigência da revogada lei, mas que se
incorporou ao patrimônio moral ou material dos cônjuges porquanto se trata de
situação jurídica em que há predomínio da vontade individual.23
Destarte, considerando a hipótese de haver, durante a égide do atual Código
Civil, a dissolução de um casamento realizado anteriormente à sua vigência e cujo
regime eleito tenha sido o da comunhão parcial de bens, tais consortes terão o
direito aos frutos civis do trabalho ou indústria de cada cônjuge (CC/16, artigo 271,
inciso VI). Ou seja, embora durante a existência do antigo Código Civil os cônjuges
não tivessem exercido o direito a eles conferidos, esse direito, por dizer respeito ao
domínio de suas escolhas e de seus interesses particulares, poderá ser concretizado
a qualquer momento, não obstante o império de uma nova lei.
É essa a direção que deve ser percorrida. Basta atentar para as sensíveis
modificações que sofreram as regras específicas de cada espécie de regime de
bens, a saber: no regime da comunhão universal de bens, foram revogados o artigo
23 Consoante apregoa o artigo 6º, § 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, “consideram-se
adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”. Rubens Limongi França, sobre o conceito de direito adquirido, assinala: “É a conseqüência de uma lei, por via direta ou intermédio de fato idôneo; conseqüência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência de lei nova sobre o mesmo objeto” (FRANÇA, Rubens Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido, cit., p. 216).
29
263, incisos IV, V, VI, X e XII; no regime da comunhão parcial de bens, não mais
vige disposição referente ao inciso III do artigo 269, bem como atualmente serão
excluídos da comunhão os frutos civis do trabalho ou indústria de cada cônjuge ou
de ambos, por causa da revogação do inciso VI do artigo 271 do antigo Código Civil.
No que concerne ao regime da separação de bens, conforme preceituava o artigo
276, os cônjuges eram dispensados de vênia conjugal apenas se houvesse negócio
jurídico que versasse a respeito de bens móveis. Atualmente, o artigo 1.647
dispensa a outorga conjugal independentemente de o bem em questão tratar-se de
móvel ou imóvel.
Cumpre advertir que, malgrado o magistério da corrente doutrinária
majoritária até o momento analisada, não são todas as regras constantes nas
Disposições Gerais do atual Código Civil que deverão ser aplicadas aos casamentos
anteriores à sua vigência.
O artigo 1.647 traz rol de atos que não poderão ser praticados pelos cônjuges
sem a devida autorização conjugal, contudo, o caput do indigitado artigo traz como
exceção a hipótese de os cônjuges serem casados sob o regime da separação de
bens. Portanto, a proibição de os cônjuges alienarem ou gravarem de ônus real seus
bens imóveis sem autorização conjugal trazida pelo inciso I daquele artigo esbarra
na ressalva que ocorrerá caso os cônjuges, frisa-se, forem casados sob o regime da
separação de bens.24
Por sua vez, advém da exegese do artigo 276 do Código Civil de 191625 que
não poderá haver alienação de imóveis sem a devida outorga conjugal. O artigo 235,
inciso I26 daquele mesmo Código, corrobora com tal interpretação, porquanto
interdita ao marido qualquer tipo de alienação de imóveis sem o devido
24 Consoante texto do artigo 1.647: “Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode,
sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; III – prestar fiança ou aval; IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação”.
25 “Art. 276. Quando os contraentes casarem estipulando separação de bens, permanecerão os de cada cônjuge sob administração exclusiva dele, que os poderá livremente alienar, se forem móveis (arts. 235, I, 242, II, e 310)”. (Grifo da autora).
26 “Art. 235. O marido não pode, sem consentimento da mulher, qualquer que seja o regime de bens: I – alienar, hipotecar ou gravar de ônus os bens imóveis alheios (...).” Importa observar que o mesmo ocorria com a mulher, já que nessa mesma hipótese não poderia praticar tais atos sem autorização de seu marido. É o que dispunha o artigo 242, inciso I, da vetusta legislação civil: “A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251): I – praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher (art. 235)”.
30
consentimento de sua mulher, fato que independe do regime de bens eleito pelos
cônjuges.
Logo, se a proibição de os cônjuges alienarem imóveis consta no artigo 276,
referente às regras específicas sobre o regime da separação de bens, e como estas
devem continuar em vigor por terem o caráter de ultratividade e por prestigiarem o
direito adquirido, deverão continuar tendo eficácia para além do tempo de sua
vigência. Em outras palavras, mesmo após o advento do atual Código Civil, haverá
necessidade de outorga conjugal para alienação de bens imóveis na hipótese de os
cônjuges terem contraído matrimônio sob o império da antiga legislação civil e sob o
regime da separação de bens.27
Ressalvada essa hipótese, as Disposições Gerais terão aplicação imediata,
entretanto, as regras específicas a respeito das espécies de regimes de bens
deverão continuar a produzir seus efeitos, exceto se o conteúdo de tais regras
contrariar o princípio constitucional da igualdade entre homem e mulher disposto no
artigo 226, § 5º da Constituição Federal. Por essa razão, são considerados
revogados os artigos 266, parágrafo único, 274 e 277, todos do Código Civil de
1916, em que pese estarem inseridos nas regras específicas sobre regimes de bens.
27 Entretanto, esse não é o posicionamento preponderante dos tribunais brasileiros cujas decisões
direcionam-se no sentido da dispensa da vênia conjugal, fundamentando-as na obrigatoriedade da aplicação das Disposições Gerais aos casamentos celebrados antes da vigência do atual Código Civil. Este é o teor da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “Registro de imóveis – Escritura pública de compra e venda – Alienante casado no regime da separação de bens – Desnecessidade de autorização da esposa para venda – Artigo 1.647, I do novo Código Civil, dispensando a outorga uxória – Alegação do Ministério Público de invalidade – Exigência de autorização, seja qual for o regime de bens, conforme os arts. 235 do antigo Código Civil e 2.039 do novo Estatuto Civil – Desacolhimento – Necessidade de proteção à instituição familiar que não se refere, nem é regulado pelo regime de bens – Negócio jurídico realizado na vigência do novo estatuto legal – Validade do registro – Recurso improvido”. Apelação Cível n. 000.356.6/6-00, Conselho Superior da Magistratura, data da publicação: 07/07/2005, relator Desembargador José Mário Antonio Cardinale, comarca de São José do Rio Preto/SP. Nesse mesmo sentido, Apelação Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais n. 1.0024.02.828636-7/001, data da publicação: 23/04/2004, relator Desembargador Alvim Soares, comarca de Belo Horizonte/MG, e Apelação Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo n. 323-6/6, data da publicação: 14/04/2005, relator Desembargador José Mario Antonio Cardinale. Silmara Juny Chinelato alia-se à interpretação dos tribunais supra-referidos e justifica-se: “Exemplifique-se, ainda, com a mudança do regime da separação de bens que, no novo Código, admite a livre alienação de bens da propriedade de cada cônjuge (art. 1.687) diferentemente do art. 276 do Código de 1916, que exigia autorização do outro. Se a alienação ocorre na vigência do Código de 2002, embora o casamento tenha sido celebrado sob o Código revogado, incide a lei atual, dispensando o cônjuge da outorga marital ou uxória conforme o caso” (Do direito de família, cit., p. 273). Débora Brandão, por sua vez, afiança ser indispensável a outorga conjugal no caso em tela: “(...) aos casados sob a vigência do Código de 1916 aplicam-se as Disposições Gerais do Código de 2002, exceto o inciso I do artigo 1.647, para os casados pelo regime da separação convencional, porque a existência da vênia conjugal faz parte da disciplina do seu regime-tipo do Código de 1916 (...)” (Regime de bens no novo Código Civil, cit., p. 263).
31
Por conseguinte, se o novel diploma civil ordena que haverá um sistema de
co-gestão conjugal no casamento, é evidente que essa possibilidade também se
estende aos que se casaram antes da vigência do atual Código Civil. Ainda, se uma
nova lei retira o prazo mínimo para concessão de separação judicial, beneficiará
aqueles que se casaram antes de sua vigência. Lembre-se que as normas de
caráter cogente devem ser imediatamente aplicadas, pois traduzem a legitimação da
evolução histórica social por meio das leis editadas pelo Estado.
Em que pese a eficácia da norma anterior no que diz respeito às regras
específicas sobre regime de bens, importa mencionar que, uma vez alterado o
regime de bens eleito pelos consortes durante a égide do Código revogado, o novo
regime não necessariamente deve obedecer às peculiaridades de seus antigos
preceitos.
Poderá ocorrer que a razão ensejadora da modificação do regime seja
mormente o novo conteúdo de determinado tipo de regime. Então, se durante o
império do antigo Código Civil os cônjuges se casaram sob o regime da separação
de bens, poderão modificá-lo por esse mesmo regime, mas com a roupagem que lhe
foi conferida pela legislação civil em vigor, a qual, como visto, consiste em eliminar a
outorga conjugal, antes necessária para a alienação imobiliária.
O exacerbado apego à interpretação restritiva engendraria o divórcio entre os
cônjuges cujo intuito seria a adequação da vida patrimonial à sua vida pessoal e
familiar, de acordo com o atual diploma civil.
Finalmente, conclui-se de modo seguro que o intuito do legislador foi autorizar
a mutabilidade do regime de bens na constância do casamento, independentemente
da sua data de celebração, e que a regra contida no artigo 2.039 é norma de caráter
pós-ativo, já que prima pela continuidade da aplicação das regras peculiares
referentes ao regime de bens eleito pelos cônjuges, com a ressalva, frisa-se, do
artigo 1.647, inciso I, do atual Código Civil.
4. CONCLUSÃO
Diante do estudo proposto, conclui-se que a aplicabilidade da norma em
apreço possibilita a homogeneidade do sistema jurídico, oferecendo tratamento igual
àqueles em igual situação, criando uma codificação civil que se destaca por
32
hierarquizar os valores afetivos e sociais, em detrimento do exacerbado positivismo
gerador de estagnação do processo evolutivo da sociedade.
O fim social da aplicação da norma de direito transitório aos casamentos
celebrados pela égide do antigo Código fundamenta-se na proteção da família no
âmbito da adequação das estruturas a um novo regramento patrimonial que seja
consentâneo com sua aspiração e necessidade, assim como é permitido afirmar que
é interesse do próprio Estado e da sociedade manter o equilíbrio da entidade
familiar, subtraindo os valores patrimoniais em nome da tão almejada concretização
da despatrimonialização e personalização do direito de família.
33
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36
ARTIGO
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
*Shirlei Paci de Rossi MOURA *Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Coordenadora e Professora do Curso de Direito do Centro Universitário do Norte Paulista - UNORP
Resumo: propõe-se, neste trabalho, a estudar a dignidade da pessoa humana como base para proteção da vida, analisando o conceito de pessoa humana, o conceito de dignidade da pessoa humana e, por fim, a dignidade da pessoa humana como princípio constitucional, pois ao destacar a dignidade da pessoa humana como um dos valores fundamentais, um dos pilares do Estado, e a partir daí, tendo dignidade como pano de fundo, a direcionar todo o sistema, surge a necessidade de garantir a proteção contra toda e qualquer atividade que lese ou desconsidere o status de pessoa em toda sua transcendência. Palavras-chave: dignidade da pessoa humana; princípio constitucional; valor Abstract: Is propose this work to study the human dignity as the basis for protection of life, analyzing the concept of man, the concept of human dignity and, finally, human dignity as a constitutional principle, because to highlight the human dignity as a fundamental value, one of the pillars of the state, and from there, with dignity as a backdrop, to direct the whole system, there is a need to ensure protection against any activity that causes harm or disregard the status of every person in his transcendence. Keywords:humana dignity; constitutional principle; value
1. A PESSOA HUMANA
O processo de desenvolvimento da noção de pessoa teve início a partir do
Cristianismo12, não que os filósofos gregos deixaram de valorizar o homem diante da
natureza - tanto os sofistas, quanto Sócrates, Platão e Aristóteles - contudo, neles
1 Estas reflexões foram sistematizadas em dissertação de mestrado, intitulada Clonagem Terapêutica: uma nova visão para os transplantes de tecidos e órgãos, defendida pela autora deste artigo, no Programa de Pós-Graduação (nível Mestrado) em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Prof. Dra. Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, em 2004. 2 A mensagem trazida pelo Cristianismo foi nos dizeres de Alexandre de Morais na sua obra Direito Humanos fundamentais, p. 25 de “igualdade de todos os homens, independentemente de origem, raça, sexo ou credo, influenciou diretamente a consagração dos direitos fundamentais, enquanto necessários à dignidade da pessoa humana.”
37
não existia ainda a noção de universalidade da pessoa humana. Aristóteles, por
exemplo, indagou que as mulheres e os escravos são seres intermediários entre os
homens e os animais.3
O Cristianismo traduz a idéia de que todos os homens são iguais e merecem
ser chamados e tratados como pessoas.
Contudo, foi o filósofo cristão Severino Boécio (480-524) que empregou, pela
primeira vez, o termo pessoa fora dos sentidos restritos que lhe eram dados tanto no
teatro quanto no direito de seu tempo. Inspirando-se no teatro, onde os atores
usavam máscara e representavam figuras importantes da vida política e social.
Assim, o ser humano é pessoa por causa de sua importância e de sua autonomia.4
Severino Boécio elaborou uma das mais famosas definições de pessoa, ou
seja, “pessoa é toda substância individual de natureza racional”, assim todos os
seres humanos são racionais e todos os seres racionais são pessoas.5 Porém, o que se torna difícil é determinar o momento em que o embrião e o
feto passam a ser tidos como pessoas. Diante disso, cabe ao direito determinar,
através das suas normas qual seria esse momento.
Encontramos em nossas pesquisas várias teorias que buscam determinar
qual seria esse momento, vejamos algumas: para o pensamento metafísico
medieval, o embrião é pessoa plena desde a concepção; em oposição temos várias
teorias utilitaristas, que afirmam que só existe pessoa quando o ser humano for
capaz de se expressar suas vontades. Todavia há uma teoria que sustenta que
existe pessoa quando o ser humano for biologicamente viável, ou seja, quando
puder sobreviver fora do corpo da mulher.6
Comungamos da primeira teoria, ou seja, já existe pessoa desde a concepção
e deve inquestionavelmente ter seus direitos garantidos, principalmente ter
respeitada sua dignidade humana, o direito à vida, pois a manipulação da vida em
laboratório já decifrou o ser humano biologicamente, mas nunca terá condições
tecnológicas e científicas para desvendar uma pessoa enquanto valor, porque esses
3 SAUWEN, Regina Fiuza; HRYNIEWICZ, Severo. O direito “in vitro”: da bioética ao biodireito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 59. 4 Ib., op. cit., p. 60. 5 Ib., Ibid., p. 60 6 PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais da bioética. São Paulo: Loyola, 2000, p. 69.
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dados não estão inseridos em genes, mas sim no desenvolvimento evolutivo do ser
humano, baseado na ética, filosofia etc.
Assim, a expressão pessoa humana, entendida, pois em sua acepção
ontológica, é o ente dotado de vida humana. A vida é o pressuposto da pessoa. A
pessoa é a essência do Estado, e, ao mesmo tempo, seu fim permanente. Ao
Estado cabe garantir a existência da pessoa (vida), o desenvolvimento de suas
potencialidades e a realização de seus valores (dignidade).7
Recasens Siches8 disserta que “o homem é um organismo animal e, por
tanto, um indivíduo;; mas é mais que isto, é uma pessoa” 9 e que além da sua
característica biológica o homem tem “unidade, identidade e continuidade
substanciais” 10.
José Cabral Pereira Fagundes Júnior entende o conceito de pessoa humana
como valor essencial:
A pessoa humana é hoje considerada como o mais notável, senão raiz, de todos os valores, devendo, por isso mesmo e dentro de uma visão antropocêntrica, ser o destinatário final da norma, base mesma do direito, revelando, assim, critérios essencial para conferir legitimidade a toda ordem jurídica. Não havia, na Antigüidade, o conceito de pessoa como o entendemos atualmente, sendo certo que o seu conhecimento surgiu apenas na era moderna. O homem para a filosofia grega era um animal político ou social, como em Aristóteles, cujo ser era a cidadania, fato de pertencer ao Estado. O conceito de pessoa como valor essencial que a legitimaria a ser possuidora de direitos subjetivos fundamentais e de dignidade, somente surgiu com o advento do Cristianismo11.
Para Fábio Konder Comparato a “idéia de que o indivíduo e grupos humanos
podem ser reduzidos a um conceito ou categoria geral, que a todos engloba, é de
elaboração recente na História”12, e continua, “essa convicção de que todos os seres
7 Maria Helena Diniz leciona que "a vida humana é um bem anterior ao direito, que a ordem jurídica deve respeitar. A vida não é uma concessão jurídico-estatal, nem tampouco um direito a uma pessoa sobre si mesma. Na verdade, o direito à vida é o direito ao respeito à vida do próprio titular e de todos...”. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18. ed., v. 1. atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei 10.406, 10-01-2002). São Paulo: Saraiva, 2002, p. 120. 8 Vida Humana, Sociedad Y Derecho. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 254. 9 “El hombre es un organismo animal y, por tanto, un individuo; pero es algo más que esto: es una persona.” 10 “unidad, identidad, y continuidad substanciales.” 11 FAGUNDES JUNIOR, José Cabral Pereira. Limites da ciência e o respeito à dignidade humana. In: LEITE, Maria Celeste Cordeiro (Org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 271. 12 Afirmação dos Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 11.
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humanos tem direito a ser igualmente respeitados pelo simples fato de sua
humanidade, nasce vinculada a uma instituição social de capital importância: a lei
escrita, como regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que
vivem numa sociedade organizada”13.
2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONCEITO
Temos notícia de que “a origem dos direitos individuais pode ser apontada no
antigo Egito e Mesopotâmia” 14, sendo que o “Código de Hammurabi (1690 a C)
talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os
homens, tais como a vida,... a dignidade...” 15.
Os antecedentes históricos da dignidade humana são brevemente relatados
por Ingo Wolfgang Sarlet:
No pensamento filosófico e político da antigüidade clássica, verifica-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, daí poder falar-se em uma qualificação e modulação da dignidade, no sentido de se admitir a existência de pessoas mais dignas ou menos dignas. Por outro lado, já no pensamento estóico, a dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo (o Homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem como à idéia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza, são iguais em dignidade.16
A idéia de dignidade humana na Antigüidade era imprecisa, vaga, na medida
em que, era determinada pela posição social, ou seja, quanto melhor a posição
social, mais respeito à dignidade. Este pensamento sofreu modificações com o
advento do cristianismo, que trouxe a idéia de igualdade entre os homens.
A Magna Carta (1215), a Petition of Right (1628), o Bill of Rights (1689), entre
outros, formam os mais importantes antecedentes históricos das declarações de
13 COMPARATO. Op. cit., p.12. 14 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p.24. 15 Id. ibid., p.24 16 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 30-31.
40
direitos humanos fundamentais.
Posteriormente surgiram as Revoluções que deram ensejo aos documentos:
Declaração de Direitos da Virgínia (16-6-1776), Declaração de Independência dos
Estados Unidos da América (4-7-1776), Constituição dos Estados Unidos da
América (17-9-1787).
Jacques Maritain assevera que “cada um de nós é portador de um grande
mistério que é a personalidade humana. Sabemos que um traço essencial de uma
civilização digna dêsse nome é a noção e o respeito da dignidade humana” 17, e por
isso “a pessoa humana tem direitos, por isto mesmo que é uma pessoa, um todo
senhor de si próprio e de seus atos, e que por conseqüência não é sòmente um
meio, mas um fim, um fim que deve ser tratado como tal. A dignidade da pessoa
humana – seria uma expressão vã se não significasse que, segundo a lei natural18, a
pessoa humana tem direito de ser respeitada e é sujeito de direito, possui direitos” 19.
O ser humano tem que ser respeitado como tal, pelo fato de ser inerentes a
ele todos os atributos essenciais da pessoa humana, sendo um em especial, ou
seja, a dignidade humana20.
Para Fábio Konder Comparato, tal dignidade: “não consiste apenas no fato de
ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si
e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta
17 MARITAIN, Jacques. Os direitos do homem. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p. 16. 18 Na concepção de Jacques Maritain direito natural diz respeito aos direitos e deveres que decorrem do primeiro princípio: fazer o bem e evitar o mal, de maneira necessária e pelo simples fato de que o homem é homem, fora de qualquer outra consideração. É por isso que os preceitos da lei não escrita são por si mesmos ou na natureza das coisas (não digo do conhecimento que o homem tem dêles) universais e invariáveis. Op. cit., p. 65. 19 MARITAIN. Ibid., p. 62 20 Vale ressaltar as palavras de Chaïm Perelman: “Com efeito, se é o respeito pela dignidade humana a condição para uma concepção jurídica dos direitos humanos, se se trata de garantir esse respeito de modo que se ultrapasse o campo do que é efetivamente protegido, cumpre admitir, como corolário, a existência de um sistema de direito com um poder de coação. Nesse sistema, o respeito pelos direitos humanos imporá, a um só tempo, a cada ser humano – tanto no que concerne a si próprio quanto no que concerne aos outros homens – e ao poder incumbido de proteger tais direitos a obrigação de respeitar a dignidade da pessoa. Com efeito, corre-se o risco, se não se impuser esse respeito ao próprio poder, de este, a pretexto de proteger os direitos humanos, tornar-se tirânico e arbitrário. Para evitar esse arbítrio, é, portanto, indispensável limitar os poderes de toda autoridade incumbida de proteger o respeito pela dignidade das pessoas, o que supõe um Estado de direito e a independência do poder judiciário. Um doutrina dos direitos humanos, que ultrapasse o estádio moral ou religiosos é, pois, correlativa de um Estado de direito.” Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 400.
41
também do fato de que, por sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de
autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita” 21.
Para Maria Celeste Leite Cordeiro Santos o conceito do termo dignidade
significa a “bondade superior correspondente ao absoluto, ao que é um fim em si
mesmo, com independência total de qualquer uso, utilidade ou gratificação” 22, e
continua ensinando:
A dignidade humana consiste no valor absoluto da pessoa, Santo Tomás de Aquino ensina-nos que ‘é a bondade por si mesma, utilidade, bondade para outra coisa. É a superioridade ou elevação da bondade, a interioridade ou profundidade de semelhante realeza. É a suprema valia interior do sujeito que a ostenta. É aquela excelência correlativa a um grau de interioridade que permite ao sujeito manifestar-se como autônomo, que se apóia ou sustenta-se em si mesmo. É sinônimo de ‘majestade’ ou de ‘realeza’23. (grifo no texto)
A dignidade é (dever ser) o atributo fundamental e essencial da existência
humana, pois se o direito é uma criação do próprio homem seu valor deriva do
próprio homem, dessa maneira o fundamento da dignidade não poderia ser outro,
senão o próprio ser humano.24
3. A DIGNIDADE DA PESSSOA HUMANA: PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 1º, a base principiológica
sobre a qual se assenta a República Federativa do Brasil. Dentre esses princípios
destacamos a dignidade da pessoa humana (Constituição Federal, art. 1°, III), que
estabelece um patamar mínimo da existência humana.
Para Celso Ribeiro Bastos a inclusão deste no rol dos princípios fundamentais
da República Federativa do Brasil foi “um acerto do constituinte, pois coloca a
21 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 21. 22 Limites éticos e jurídicos do projeto genoma humano, p. 307. 23 Ibid., p. 310. 24 COMPARATO, Fábio Konder. Fundamentos dos Direitos Humanos. In: MARCÍLIO, Maria Luiza; PUSSOLI, Lafaiete (Coords.). Cultura dos Direitos Humanos. Coleção Instituto Jacques Maritain. São Paulo: LTr
42
pessoa humana como fim último de nossa sociedade e não como simples meio para
alcançar certos objetivos”25.
O significado constitucional de dignidade está nas palavras de Uadi Lammêgo
Bulos “o valor constitucional supremo que agrega em torno de si a unanimidade dos
demais direitos e garantias fundamentais do homem, expressos nesta Constituição.
Daí envolver o direito à vida” 26.
Conseqüentemente, o Estado deverá adotar toda a instrumentação idônea e
necessária para atingir esse patamar mínimo no existir humano para proporcionar
uma melhor qualidade de vida ao ser humano.
Ao destacar a dignidade da pessoa humana como um dos valores
fundamentais, um dos pilares do Estado, e a partir daí, tendo dignidade como pano
de fundo, a direcionar todo o sistema, surge a necessidade de garantir a proteção
contra toda e qualquer atividade que lese ou desconsidere o status de pessoa em
toda sua transcendência.
Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana impõe uma tutela
adequada contra todas as atividades que tomarem o homem como meio, como
objeto, como mercadoria, atividades que desrespeitarem o homem em sua
integridade, menosprezarem a expressão de seus valores, que lhes desprezarem a
honra de ser um ente humano vivente.
Fernando Ferreira dos Santos, em sua obra27 cita Kant, para o qual “o
homem, (...), é um fim em si mesmo e, por isso, tem valor absoluto, não podendo,
por conseguinte, ser usado como instrumento para algo, e, justamente por isto, tem dignidade, é pessoa.” (grifo no próprio texto)
E continua:
Consequentemente, cada homem é um fim em si mesmo. E se o texto constitucional diz que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, importa concluir que o Estado existe em função de todas as pessoas e não em função do Estado. Não só o Estado, mas consectário lógico, o próprio Direito. ‘A dignidade é o fim. A juridicidade da norma positiva consiste em se poder reconhecer que, tendencialmente, ela se põe para esse fim. E se não se põe não é legítima. A razão jurídica se resolve em uma determinada condição humana em que cada indivíduo é, para a humanidade, o que uma hora é para o tempo: parte universal e concreta do todo possível’. Aliás, de maneira pioneira, o legislador
25 Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 166. 26 Constituição Federal Anotada. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 49. 27 Princípio Constitucional da Dignidade Humana. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 27.
43
constituinte, para reforçar a idéia anterior, colocou, topograficamente, o capítulo dos direitos fundamentais antes da organização do Estado.28
O que deve ser fervorosamente defendido, tanto pelas normas como pela
ética é impedir que a pessoa seja transformada em objeto, em coisa, em mercadoria,
em meio. Assim, quando o homem for transformado em objeto para se chegar a um
fim, sem dúvida, ocorrerá ofensa ao princípio da dignidade humana, o que vale
dizer, aniquila a pessoa enquanto ente humano digno de viver.29
Com o avanço da engenharia genética, a passos largos, vislumbramos a
transformação das pessoas em coisas onde é possível a manipulação do homem no
que ele tem de mais íntimo: sua identidade pessoal, por isso hoje podemos dizer
que o homem chegou a ponto de ser manipulado por ele mesmo.
Para Adriana Diaféria dignidade da pessoa humana se caracteriza como
sendo:
Um bem supremo, que garante não só a existência de nosso Estado, mas da história da evolução humana, por estar atrelada à toda construção ideológica, psicológica, religiosa e cultural que lhe dão suporte. Nos momentos em que foi demasiadamente desrespeitada, constatamos a ocorrência das grandes hecatombes, que nos compeliram, cada vez mais, a torná-la concreta, objetiva e factível no meio jurídico.30
Com o escopo de proteger a dignidade humana, a Constituição elencou no
seu artigo 6°, os direitos sociais, onde o Estado tem o dever de protegê-lo, pois
caracteriza-se como o piso vital mínimo, sendo que todas as normas constitucionais
devem estar direcionadas para a pessoa humana. 31
O ser humano é voraz por conhecimento, por isso será um incansável
pesquisador em busca de resposta para suas maiores dúvidas, e nesse contexto 28 Op. cit., p. 92. 29 José Cabral Pereira Fagundes Júnior infere que “sob justificativa de propiciar uma vida melhor, não podem os avanços da ciência ir além dos limites impostos pelo Princípio Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana, que vem permeado, dentre outros, pelos Direitos e Garantias Fundamentais”. FAGUNDES JUNIOR, José Cabral Pereira. Limites da ciência e o respeito à dignidade humana. In: LEITE, Maria Celeste Cordeiro (Org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 268. 30 Clonagem: aspectos jurídicos e bioéticos. Bauru: EDIPRO, 1999, p. 54 31 Segundo o entendimento de Celso Antônio Pacheco Fiorillo para que uma pessoa possa ter uma vida digna ela “reclama a satisfação dos valores (mínimos) fundamentais descritos no art. 6° da Constituição Federal”, quais sejam entre outros a saúde, de maneira que a este dispositivo constitucional estabelece um “piso vital mínimo de direitos que devem ser assegurados pelo Estado”, para que o ser humano possa ter uma sadia qualidade de vida. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 53.
44
Adriana Diaféria conclui que o “ser humano, por ser dotado de raciocínio, estará
eternamente elaborando mecanismos para compreender com maior clareza a sua
existência, pois sem eles não se poderia falar em evolução. E, na medida em que o
homem evoluir, passará a compreender com maior valoração o significado da
dignidade da pessoa humana, a sua posição dentro do universo, do mundo, da
natureza, enfim, passará a conceber a vida com maior respeito e humildade”32.
Com base no que foi exposto, bem como nos art. 5º caput e art. 225, § 1º, II
da Constituição Federal vigente, concluímos que existe vida a partir do momento em
que é possível a duplicação do “ser”. Assim, entendemos ter sido adotada a
concepção biológica da vida, pelo fato de que a Constituição Federal reservou como
dever do Poder Público a preservação do patrimônio genético.33
32 DIAFÉRIA, Adriana. Clonagem: aspectos jurídicos e bioéticos. Bauru: EDIPRO, 1999, p. 72. 33 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 163.
45
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ARTIGO
DIREITOS FUNDAMENTAIS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - I
* André Luiz Nogueira da CUNHA
*Promotor de Justiça. Mestre em Direito Público pela Universidade de Franca – UNIFRAN Resumo: No século XX, os direitos da criança e do adolescente passaram a ser garantidos em leis específicas, as quais observam sua peculiar condição de seres em crescimento. Em análise da evolução histórica, é possível verificar a adoção da proteção integral, atualmente, na Convenção Sobre os Direitos da Criança e, no Brasil, no Estatuto da Criança e do Adolescente. O objetivo deste trabalho é mostrar a evolução dos direitos e os meios legais para efetivá-los. Palavras-chave: Direitos da criança e do adolescente; criança e adolescente; Estatuto da Criança e do Adolescente.
Abstract: In this century, the rights of children and adolescents have become assured by specific laws, which observe their peculiar condition of beings in development. In an analysis of the h i s t o r i c a l evolution, it is possible to check the adoption of the integral protection, by the end of this century, in the Children’s Right Convention and, in Brazil, in the Children’s and A d o l e s c e n t s ’ Statute. The aim of this work is to show the evolution of the rights and the legal means to achieve them. Keywords: children’s and adolescents’ right;; children and adolescents; Statute of the children and adolescents. 1. INTRODUÇÃO
A proposta é realizar um comentário sobre os direitos fundamentais da
criança e do adolescente, cotejando o diploma legal brasileiro pertinente, o Estatuto
da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, que comemorou, no último dia 13 de
julho, dez anos de existência, e a Convenção sobre os Direitos da Criança.
É importante considerar, desde logo, que a criança e o adolescente
constituem seres humanos em formação e crescimento, desprovidos de capacidade
de fato ou de ação, é dizer, aptidão para o exercício e a proteção dos seus direitos,
em virtude de sua condição hipossuficiente e em decorrência de sua imaturidade
física e psíquica, necessitando, pois, de tratamento especial, como forma de garantir
o equilíbrio entre eles e os adultos.
De qualquer modo, tratando-se de seres humanos, independentemente da
existência de diplomas legais específicos, as crianças e os adolescentes já estão
49
protegidos pelos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos,
bastando mencionar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e
também encontram-se inseridos na proteção constitucional dos direitos e garantias
fundamentais.
Entretanto, a mera disposição genérica de direitos, sem especificação da
condição hipossuficiente da criança e do adolescente, não tem sido suficiente para
garantir os direitos mais básicos, criando distorções e abusos, que traumatizam
nossa infância e nossa adolescência, quando não a violentam, como constata o
Professor Sérgio Adorno em:
[...] Uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Pesquisa da Violência em 1993 revelou que - desculpem, a pesquisa foi realizada em 1993, mas os dados que vou citar aqui se referem a uma pesquisa feita, pelo Estado de São Paulo, no ano de 1990 - a pesquisa identificou 994 crianças e adolescentes assassinadas naquele ano, o que equivale a uma média de 2,72 crianças por dia. Desse total, 52% morreram no Município da Capital, 28% na Grande São Paulo e 19% no interior do Estado. Comparativamente à população, constataram-se 7,73 assassinatos por 100.000 habitantes. As vítimas se concentraram na faixa etária de 15 a 17 anos (80% delas), a maior parte pertencia ao sexo masculino (85%); quanto às vítimas do sexo feminino (14%), a maior incidência ocorre na faixa de 0 a 9 anos, casos em geral ocorridos no interior da esfera familiar (1999, p. 16/7).
Assim, há necessidade de especificação dos direitos da criança e do
adolescente, repetindo direitos já garantidos a todos os seres humanos, criando
outros, especializados, pela condição hipossuficiente da criança e do adolescente.
2. BREVES NOTÍCIAS HISTÓRICAS
Os direitos da criança e do adolescente estão inseridos, por óbvio, nos
direitos, e na luta pelos direitos, do homem, ou melhor, da humanidade.
A luta pelos direitos humanos foi árdua, gradativa e progressiva, além de
continuar existindo, pois as violações a esses direitos, com a necessária proteção,
bem como as conquistas de novos direitos, são permanentes.
Mas, o escopo deste trabalho é observar a luta pelos direitos da criança e do
adolescente, não os direitos gerais da humanidade.
50
2.1 No Brasil
2.1.1 Brasil Colonial
As crianças e os adolescentes não possuíam proteção específica, havendo
dispositivos nas Ordenações do Reino de Portugal que protegiam direitos inerentes
aos institutos do direito de família e do direito sucessório, como a herança, ou do
direito obrigacional, como os contratos efetuados por menor, que também obrigavam
o pai1.
A idade, à época, em que se considerava alguém maior e capaz era acima
dos 25 anos de idade, havendo dispositivos que consideravam idades mais
inferiores para a aquisição ou perda de direitos, como na hipótese da prescrição,
que corria contra o maior de 14 anos de idade2.
De qualquer modo, é interessante observar que as Ordenações Filipinas
protegiam bastante os órfãos, dispondo em vários títulos a respeito dos seus
direitos, chegando, mesmo, a criar o cargo especializado de Juízes dos Órfãos,
demonstrando preocupação com uma situação de possível abandono e infelicidade
dos menores de então, ou, quem sabe, uma preocupação demasiada com os bens
dos órfãos.3
Os órfãos poderiam ser crianças indesejadas pela família, sendo oriundos de
relações extraconjugais ou de pessoas não casadas, sendo criada, no Rio de
Janeiro, para acolher tais crianças, em 1783, a Casa dos Expostos, ou chamada
Roda, assim denominada, porque as crianças eram depositadas em uma roda de
madeira, que a introduzia na Casa, durante a noite, impossibilitando que fosse
descoberta a identidade dos pais.
No tocante à formação das crianças e dos adolescentes, aspecto também
interessante, uma vez que atualmente a educação é garantia do desenvolvimento e
progresso do ser humano em formação, é importante consignar que os primeiros
que se preocuparam, no Brasil, foram os jesuítas, pelo interesse que possuíam na
1 Ordenações Filipinas. Livro Quarto. Títulos 36, 81, 87, 92, 93 e 5º, § 3º 2 Ordenações Filipinas. Livro Terceiro. Título 42. Livro Quarto.Título 79, § 2º 3 Ordenações Filipinas. Livro Primeiro. Título 88.
51
catequização dos índios, sendo mais facilmente aceita a fé cristã e católica pelas
crianças.
Além disso, eram também os jesuítas que se ocupavam da formação dos
filhos dos colonos, sendo realizada a aprendizagem no interior dos colégios
jesuíticos.
Com poucos contos de réis, eles adquiriam, na Europa, o necessário didático para dar suas aulas no novo mundo e o material para multiplicar escolas de primeiras regras e colégios secundários. Ainda em 1549 foi fundado, em Salvador, o Colégio dos Meninos de Jesus com três padres professores, dois coadjutores, alguns meninos órfãos de Lisboa, voltados para o atendimento dos meninos brancos filhos dos colonizadores e os curumins, de várias nações, pois como afirma Ribeiro, (1991, p. 20), a organização escolar no Brasil-Colônia, naquele momento, estava, como não poderia deixar de ser, estreitamente vinculada à política colonizadora dos portugueses (CRUANHES, 2000, p.35-6).
Quando o Marquês de Pombal determina a expulsão dos padres jesuítas das
terras da Coroa Portuguesa, o ensino no Brasil declina, já que eram estes os mais
preparados para ministrá-lo, conforme ensina Maria Cristina dos Santos Cruanhes
(2000, p. 37) que:
[...] com a expulsão dos jesuítas dos reinos portugueses, a educação no Brasil, debilitou-se ainda mais, pois, somente alguns poucos filhos de fazendeiros ou de mineiros abastados passaram a procurar a Metrópole para se ilustrarem. Para Werebe (1994:26), as ordens dos carmelitas, beneditinos e franciscanos que aqui permaneceram ministravam um ensino medíocre.
A partir de 1772 em diante, inicia-se o período das aulas Régias, praticadas
como parte da política de Pombal.
Nesse sentido, quem soubesse mais que os outros e quisesse lecionar, poderia procurar algum vereador da Câmara Municipal local, para que este solicitasse junto ao Rei a permissão para assumir as aulas pretendidas, em nível primário ou secundário. Obtida a licença de Lisboa, o professor deveria encontrar um local apropriado, como uma sacristia de igreja ou uma sala de sua própria casa, matricular os alunos e receber da Câmara um vencimento mensal saído de um imposto criado com esta finalidade, o chamado subsídio literário, cobrado dos açougues e destilarias de cachaça, instalados na Colônia e que segundo Ribeiro (1991:35), servia apenas para minorar a situação dos recursos destinados à educação (CRUANHES, 2000, p. 39).
52
A política de Pombal serviu para aumentar o número de pessoas prontas a
ensinar, mesmo que de modo debilitado e desqualificado, por vezes. Entretanto,
intensificou-se na colônia o interesse pelo envio das crianças e dos adolescentes
para as aulas, criando uma cultura de necessidade da escola.
2.1.2 Independência e Império
Com a vinda da família real para o Brasil, em 1808, houve uma intensificação
da necessidade de escola, mormente na cidade do Rio de Janeiro.
De qualquer modo, com o reconhecimento da necessidade do estudo,
principalmente na classe mais abastada, agora formada não só por fazendeiros, mas
também por comerciantes, sendo perceptível a dificuldade no envio dos jovens
brasileiros para estudo na Europa, em guerra, com Portugal dominado pelos
franceses, não tendo o governo condições de arcar com a demanda estudantil.
[...] instaurou-se um impasse no sistema educacional: demanda crescente de alunos para cursos primários e secundários e falta de recursos humanos e financeiros para abrir e manter escolas públicas, surgiram escolas particulares patrocinadas por fazendeiros e comerciantes, e esses se tornariam os primeiros empresários do ensino, oferecendo escolas pagas no Rio de Janeiro e outras cidades maiores, contando, inclusive, com a presença de professores estrangeiros (CRUANHES, 2000, p. 40).
A falta de direitos e garantias às crianças e aos adolescentes do sexo
feminino, sendo reconhecida apenas a necessidade da aprendizagem de prendas
domésticas, cabendo ao pater familiae o controle do lar e do destino das filhas,
criadas para o lar e para a constituição da família, trazia a desigualdade, reflexo da
sociedade da época.
No final do período Imperial, tal situação começou a mudar, criando-se
escolas para o ensino das meninas, pois,
[...] nesse sentido Werebe (1994:34), afirma que: A educação feminina era completamente relegada a segundo plano. Nas famílias mais ricas, as jovens recebiam uma instrução limitada à alfabetização e ao cultivo de “certas prendas”. Algum progresso foi realizado na segunda metade do século XIX: em 1820 havia apenas 20 escolas femininas em todo país e, em
53
1873, só na província de São Paulo contavam-se 170 (CRUANHES, 2000, p. 42).
A partir da proclamação da Independência, começou a ser formado o direito
pátrio, tendo, em 1823, por ocasião dos trabalhos da Constituinte, sido apresentado,
por José Bonifácio, projeto para proteção do menor escravo, revelando, talvez, maior
preocupação com a mão-de-obra, e não com a criança propriamente dita.
Entretanto, com a outorga da Carta Constitucional de 1824, tal projeto foi
desconsiderado, não se tendo realizado referência ao menor de idade, em termos de
responsabilidade penal ou em relação à criança desassistida (VERONESE, 1999, p.
11 e 42).
Durante o Império, duas frentes foram atacadas em relação ao menor de
idade: o menor escravo e o menor abandonado, criando-se mecanismos de proteção
dos seus direitos e interesses.
Em 12 de junho de 1862, foi aprovada Lei, de autoria de Silveira Mota,
proibindo que fossem separados filhos de pais e maridos de mulheres, escravos
(VERONESE, 1999, p. 11).
Em 28 de setembro de 1871, a chamada Lei do Ventre Livre, também
conhecida por Lei Rio Branco, de nº 2.040, foi promulgada pela Princesa Isabel,
Regente do Império, que concedia liberdade às crianças nascidas de mães
escravas. Contudo, tal legislação previa cláusulas restritivas ao direito do menor
escravo, pois dispunha que ele deveria permanecer sob a autoridade do senhor
(antigo dono) e de sua mãe até a idade de 8 anos, pois juntos deveriam educá-lo.
Atingida a idade de 8 anos, o senhor teria uma opção a fazer: receber indenização
do Estado e colocá-lo em completa liberdade, ou utilizar o menor no trabalho. Até os
21 anos de idade, oportunidade em que seria livre. Insta considerar, no entanto, que
o diploma legal não estabelecia a jornada de trabalho, a remuneração, o período de
descanso e as funções que poderia exercer, levando-se em consideração sua pouca
idade, o que tornava, portanto, o “menor livre” um escravo, na prática, criando uma
nova modalidade de escravidão (VERONESE, 1999, p. 12).
2.1.3 República (Velha)
Na República, urge consignar que a Constituição de 1891 é silente no tocante
54
ao menor, mas o Código Penal de 1890 estipulava como não criminosos os menores
de nove anos, bem como os maiores de nove e menores de quatorze anos, que
agissem sem o completo discernimento (art. 27, §§ 1º e 2º).
Os Decretos nº 439, de 31 de maio de 1890, e nº 658, de 12 de agosto de
1890, organizaram os serviços de assistência à infância desvalida e estabeleceram o
Regulamento para o “Asilo de Meninos Desvalidos”, instituição criada e em
funcionamento no Rio de Janeiro (VERONESE, 1999, p. 19).
Já o trabalho do menor, acabou sendo regulamentado no mesmo ano, em
data anterior, em 17 de janeiro de 1890, pelo Decreto nº 1.313, que estipulava a
idade mínima de 12 anos para o trabalho, sabendo-se, entretanto, que tal
regramento era, na realidade, letra morta, uma vez que as indústrias nascentes e a
agricultura utilizavam mão de obra infantil, em idade bastante inferior ao limite
normativo (VERONESE, 1999, p. 20).
Com a liberdade dos escravos e a chegada dos imigrantes, agrava-se o
problema das crianças abandonadas, aumentando-se o número delas, criando-se
em 1896, em São Paulo, a Casa dos Expostos, com o fim de recolher essas
crianças, mas sem a roda existente na antiga Casa do Rio de Janeiro (1999, p. 16-
7).
Em 20 de dezembro de 1923, pelo Decreto nº 16.272, é autorizada a criação
do Juizado de Menores na Capital da República, instalado no ano seguinte, tendo
por função declarar a condição jurídica da criança, se abandonada ou não, se
delinqüente, e qual o amparo que deveria receber, estando subordinado ao Juizado
de Menores um abrigo, com dependências separadas por sexo e por situação dos
menores (abandonados e delinqüentes), criando-se ainda o “Conselho de
Assistência de Proteção aos Menores”, também no Distrito Federal (1999, p. 23).
Em 1927, de autoria de Mello Mattos, surge o projeto de Código de Menores,
tendo sido editado, tornando-se lei no mesmo ano, em 12 de outubro, pelo Decreto
nº 17.943 -A, consolidando as normas até então existentes, criando-se um diploma
legal específico para os menores em situação irregular (abandono e delinqüência),
tendo sido o primeiro Código de Menores da América Latina (VERONESE, 1999, p.
26).
O Código de Menores estabelecia que estavam submetidos à tutela da
autoridade competente, sujeitos às medidas de assistência e proteção, todos os
menores de 18 anos de idade, desde que abandonados ou delinqüentes,
55
especificando as situações de abandono no seu artigo 26. O Código instituiu, ainda,
um Juízo privativo de menores, aumentou a inimputabilidade penal para 14 anos de
idade, criando processo especial para os menores infratores entre 14 e 18 anos de
idade, e manteve a limitação da idade mínima para trabalho em 12 anos de idade,
proibindo o trabalho noturno para os menores de 18 anos de idade.
2.1.4 Brasil Pós Revolução de 1930
A Constituição de 1934 é a primeira a fazer referência direta à criança, no
tocante ao trabalho infantil, estabelecendo a proibição do trabalho aos menores de
14 anos de idade, do trabalho noturno aos menores de 16 anos e, em indústrias
insalubres, aos menores de 18 anos de idade. Tal Constituição dispunha, ainda,
sobre serviços de amparo à maternidade e à infância.
A Constituição de 1937 foi além da de 1934, pois protegeu as crianças,
sobretudo as mais carentes, estabelecendo que era obrigação do Estado dar
assistência à infância e à juventude, assegurando-lhes condições físicas e morais
para o desenvolvimento de suas faculdades. A Constituição repetiu as regras de
proibição ao trabalho do menor (art. 137, k), indicando que os pais miseráveis
poderiam pedir um auxílio ao Estado para a subsistência e a educação dos filhos
(art. 127), designando que era dever dos entes da federação a criação de
instituições de ensino público para os que não tivessem condições de estudar nas
escolas particulares (art. 129), imputando aos pais falta grave por abandono dos
filhos menores, cabendo ao Estado prover a subsistência deles.
Em 1941, pelo Decreto-lei nº 3.779, é criado o Serviço de Assistência a
Menores - SAM, tendo por função prestar, em todo território nacional, amparo social
aos menores desvalidos e infratores, tendo por meta a centralização da execução de
uma política nacional de assistência, mas sem a criação diretamente de entidades
assistenciais, apenas coordenando as entidades privadas e algumas estatais
(VERONESE, 1999, p. 31/2).
2.1.5 Brasil após a II Guerra Mundial
56
A Constituição de 1946 não introduziu alterações substanciais, repetindo as
regras já consagradas na Constituição anterior.
Em 1º de dezembro de 1964, pela Lei nº 4.513, é criada a FUNABEM -
Fundação Nacional do Bem Estar do Menor, substituindo o SAM. Por meio dessa
fundação, a criança abandonada deixa de ser preocupação de entidades privadas e
de alguns organismos estatais, passando a fazer parte da própria política do Estado
(VERONESE, 1999, p. 33).
A Constituição de 1967 previu a assistência à maternidade e à infância (art.
167, § 4º), determinando a obrigatoriedade das empresas comerciais, industriais e
agrícolas de manterem ensino primário gratuito aos empregados e seus filhos,
garantindo estas, ainda, o fornecimento da aprendizagem, em cooperação, aos
menores trabalhadores (art. 170). Tal Constituição instituiu o ensino obrigatório e
gratuito nos estabelecimentos oficiais para as crianças de 7 a 14 anos de idade.
Muito embora tenha instituído o ensino básico gratuito, teve um aspecto negativo no
tocante ao trabalho infantil, pois autorizou o trabalho para os maiores de 12 anos de
idade (art. 158, X).
A Emenda nº 1, de 1969, manteve os mesmos direitos, acrescentando,
entretanto, que as crianças excepcionais também teriam acesso à educação,
remetendo à legislação especial a regulamentação.
No Ano Internacional da Criança, em 10 de outubro de 1979, surge a Lei nº
6.697, instituindo um novo Código de Menores, criando, então, o termo “menor em
situação irregular”, que significava o menor abandonado materialmente, vítima dos
maus-tratos, em perigo moral, desassistido juridicamente, com desvio de conduta e
autor de infração penal (VERONESE, 1999, p. 35).
Em relação ao diploma legal então existente, o novo Código de Menores tinha
como vantagens:
a) nova conceituação do menor abandonado e indicação das medidas específicas a
serem tomadas pelo Estado frente a sua situação de carência;
b) criação de formas de atuação alternativas nos casos de falta ou mau
relacionamento entre menor/ família ou menor/ sociedade;
c) regramento de todas as atividades que atingissem o menor: trabalho, lazer,
educação e influências externas;
d) conferia poderes mais amplos aos juízes de menores, transformando-os em
verdadeiros pater familiae, uma vez que poderiam atuar em todos os segmentos da
57
sociedade, se constatada circunstâncias que pudessem atingir o menor, seja
individualmente, seja comunitariamente (VERONESE, 1999, p. 38).
Entretanto, várias eram também as desvantagens do Código de Menores,
conforme ressalta Josiane Rose Petry Veronese:
a) o processo ao qual o menor era submetido tinha caráter inquisitório, não
demandando a intervenção de advogado, não prevendo defesa, constituindo a
criança e o adolescente meros objetos da investigação realizada pelo Juizado de
Menores, que atingia, inclusive, sua intimidade, podendo as medidas legais intervir
em sua liberdade e na sua família.
b) o artigo 8º, do Código de Menores, garantia aos Juízes de Menores poderes
ilimitados, uma vez que, fora as medidas previstas na legislação, este poderia aplicar
outras, conforme seu prudente arbítrio, desde que necessárias à assistência,
proteção e vigilância do menor, respondendo por eventual abuso ou desvio de
poder.
c) a possibilidade de prisão cautelar, sem indícios de autoria, nem prova de
materialidade, nem mesmo em situação de flagrante delito (arts. 16 e 99).
d) o menor poderia ser internado ou sofrer medida de liberdade contida sem prazo
máximo, ficando a critério do Juiz de Menores a avaliação do momento de sua
soltura, podendo, se quisesse portanto, conforme a natureza do caso, requisitar
parecer técnico do serviço competente e ouvir o Ministério Público, com reexame
periódico do caso em dois anos pelo Magistrado e, ao completar 21 anos de idade, a
análise de sua internação estaria subordinada ao Juízo das Execuções Penais
(VERONESE, 1999, p. 38-41).
A Constituição da República, promulgada em 5 de outubro de 1988, introduziu
um capítulo dedicado à família, à criança, ao adolescente e ao idoso (Capítulo VII,
Título VIII, Ordem Social), tratando da criança e do adolescente nos artigos 227
(direitos), 228 (inimputabilidade penal), 229 (deveres dos pais em relação aos filhos),
admitindo ao adolescente direitos políticos, garantindo-lhe capacidade eleitoral ativa,
facultando-lhe o direito ao voto, desde que maior de 16 anos (art. 14, II, c).
Além disso, a Constituição de 1988, inicialmente, manteve o limite para
ingresso no trabalho em 14 anos de idade, salvo na condição de aprendiz (12 anos
de idade), proibindo qualquer trabalho noturno, perigoso e insalubre, para o menor
de 18 anos de idade, modificando-o, posteriormente, em 16 de dezembro de 1998,
pela Emenda nº 20, elevando-o para 16 anos de idade, colocando a condição de
58
aprendiz a partir dos 14 anos, adequando-se à Convenção nº 138, da OIT
(Organização Internacional do Trabalho), de 6 de julho de 1973, que recomenda
que:
1º - Cada país adote uma política nacional que assegure a extinção do trabalho das crianças, elevando progressivamente a idade para admissão ao trabalho, dando assim condições para que a criança melhor se desenvolva física e mentalmente; 2º - que a idade mínima não deverá ser inferior à idade em que cessa a obrigação escolar ou, em todo caso, 15 anos; 3º - no caso de países cuja economia e meios educacionais sejam ainda precários, tolera-se a idade mínima de 14 anos para ingresso no trabalho (VERONESE, 1999, p. 44).
Em 12 de abril de 1990, é extinta a FUNABEM em 12.04.1990, pela Lei nº
8.029, criando-se a FCBIA (Fundação Centro Brasileiro para a Infância e
Adolescência), que não possuía função de execução, mas de mero planejamento,
formulação e coordenação de projetos na área de infância e da juventude
(VERONESE, 1999, p. 42).
Em 13 de julho de 1990, surge a Lei nº 8.069, do Estatuto da Criança e do
Adolescente, com início da vigência 90 dias depois (art. 266, da Lei nº 8.069/90),
adequando os direitos fundamentais garantidos pela Constituição à criança e ao
adolescente, criando diploma legal específico protetivo e garantidor desses direitos,
esteja a criança e o adolescente em situação irregular, ou não. Introduz-se, assim, o
sistema da proteção integral, revogando o sistema da situação irregular, passando a
regular todos os direitos e os deveres das crianças e dos adolescentes, seu
exercício, bem como todas as situações jurídicas inerentes à condição de criança e
de adolescente.
A Convenção dos Direitos da Criança foi adotada pela Resolução nº L.44
(XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20.11.1989, tendo sido
ratificada pelo Brasil em 24.09.1990.
A FCBIA foi extinta em 1º de janeiro de 1995, pela Medida Provisória nº 813,
passando suas atribuições para o Ministério da Justiça diretamente.
O novo Código Civil, promulgado em 2002, tendo iniciado sua vigência em
2003, prevê, guardando similitude com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
nº 8.069/90) e com o Código Penal, a capacidade plena civil aos dezoito anos de
idade, considerando o adolescente maior de dezesseis anos relativamente capaz e o
59
adolescente menor dessa idade e a criança absolutamente incapazes (artigos 3º e
4º, do Código Civil), o que é interessante porque o Estatuto da Criança e do
Adolescente já previa certa capacidade ao adolescente (seja para responder por ato
ilícito por ele praticado, denominado ato infracional; seja para concordar com a
adoção que se pretenda fazer dele – conforme artigos 103 usque 105 e 45, § 2º, da
Lei nº 8.069/90), repetindo-se a exigência da concordância na adoção do maior de
doze anos também no novel diploma civil (art. 1621).
2.2 No Mundo
2.2.1 Antecedentes
Traçar historicamente, no mundo, os direitos da criança e do adolescente não
é tarefa que nos obrigue a remontar a muitas épocas, pois, na realidade, a criança e
o adolescente só foram descobertos como sujeitos de direitos específicos no século
XVIII. Basta lembrar que no século XVII, as crianças do sexo masculino usavam
vestidos com golas iguais às meninas, sendo que esta tendência vai se manifestar
ainda no início do século XX. No entanto, surge também a tendência de se vestir as
crianças iguais às pessoas do povo, como a utilização de roupa de marinheiro
(MELLO, 2000, p. 496).
De qualquer modo, não se pode olvidar que as crianças e os adolescentes
gozavam de alguma proteção quando órfãos, no caso das Ordenações Filipinas,
conforme já explicado alhures, e, também, muito tempo antes, na legislação
mosaica, como no Deuteronômio (24, v. 17).
Além disso, o primogênito era protegido no Deuteronômio (21, vv. 15-7),
criando situações de desigualdade entre os filhos/filhas, permitindo-se, ainda, aos
pais o direito de levar os filhos para o apedrejamento, caso fossem incorrigíveis
(Deuteronômio, 21, vv. 18-21), como forma de extirpar o mal de Israel.
Tais disposições repetiam os costumes da época, pois as Leis de Zoroastro
previam que o filho que desobedecesse o pai por três vezes deveria morrer
(ALTAVILLA, s.d., p. 26).
No Código de Hamurabi, excetuadas as disposições comuns referentes aos
direitos sucessórios, adoção e obediência do filho em relação ao pai (arts. 162, 165,
60
173, 185, 186, 188, 189, 190 e 195), eram previstas normas proibitivas de
escravidão de filhos nascidos de escravos e mulheres livres (art. 175), normas
proibitivas da renegação paterna sem culpa do filho (art. 168), normas que garantiam
a irrevogabilidade da adoção (art. 191) e, por fim, normas que dispunham a respeito
dos direitos dos menores na hipótese da mãe tomar outro marido (art. 177),
demonstrando uma preocupação com os direitos daqueles que, naturalmente,
encontravam-se desprotegidos (s.d., p. 37/9).
O Código de Manu, por sua vez, trazia disposições comuns aos direitos
sucessórios, sem nenhuma proteção específica das crianças e dos adolescentes,
garantindo apenas a sucessão ao patrimônio paterno, privilegiando, como era regra
na época, o primogênito(s.d., p. 54/7).
Duas tábuas da leidas XII Tábuasdos Romanos tratavam dos direitos e
deveres dos filhos, crianças ou não, dispondo na Tábua IV sobre o pátrio poder (De jure patrio), concedendo ao pai o direito de vida e de morte sobre o filho, e na Tábua
V sobre o direito sucessório (De haereditatibus et tutelis), tendo o poder absoluto do
pai sobre o filho sido abrandado durante os anos posteriores, até que o Digesto (L.
48, T. 9) passou a dispor que Patria potestas in pietate debet, non atrocitate consistere (o pátrio poder deve consistir na indulgência e não na crueldade)
(ALTAVILLA, s.d., p. 69/70).
É importante constar que o Alcorão, livro religioso e normativo dos
mulçumanos, traz em seus dispositivos regras referentes aos filhos adotivos, mas
com tratamento desigual em relação aos filhos consangüíneos (capítulo XXXIII, vv.
4, 5 e 37); ao direito da mãe repudiada pelo marido de continuar a amamentar seu
filho, por mais dois anos (surata II, v. 227); aos órfãos (o próprio profeta Maomé foi
órfão, sendo criado por um tio), dispondo expressamente que não se pode tomar
para si os bens dos órfãos, devendo sempre realizar boas ações para eles (capítulo
II e surata VI); aos deveres para com os pais; e, aos direitos sucessórios,
concedendo a maior parte da herança para os filhos homens, em detrimento das
mulheres, que herdavam bem menos (capítulo IV, v. 12) (ALTAVILLA, s.d., p.
96/103).
A Magna Charta Libertatum, outorgada pelo Rei João Sem Terra, em
Runnymede, nas proximidades de Windson, em 1215, após ser forçado pelos nobres
do Reino da Inglaterra, garantia direitos sobre a herança aos menores de 21 anos de
idade, ou antes dessa idade, caso fossem armados cavaleiros (artigo IV),
61
determinando as obrigações do tutor ou administrador de propriedades dos menores
(artigos V e VI), além de prever a isenção do pagamento do contrato de mútuo
efetuado com judeu, enquanto o herdeiro do devedor for menor (artigo XII),
possibilitando que do montante do patrimônio, caso o defunto fosse devedor de
judeu, antes do pagamento, fosse retirado o suficiente para o sustento dos herdeiros
menores (artigo XIII) (ALTAVILLA, s.d., p. 208/13).
Segundo Mello, (2000, p. 513):
A proteção da criança é encontrada em inúmeras culturas, especificamente em relação aos conflitos armados. Assim, o direito mulçumano proíbe que sejam molestadas ou mortas em combates as crianças. Estas também estão excluídas da “Gihad, que pode ser feita sob a forma de guerra. Na África Ocidental (Senegal, Gana, Togo e Alto Volta), as mulheres, crianças e velhos também eram protegidos dos combates. Na idade Média também era proibida a morte de crianças. É curioso que o movimento da Paz de Deus, existente na Europa Ocidental (que teria tido o seu início no final do século X com o desaparecimento da dinastia carolíngia), não menciona expressamente a criança, como no juramento estabelecido pelo bispo Beauvais, em Guerin (1023-1025).
Logo depois do Iluminismo, na época da revolução francesa e da
independência das treze colônias inglesas da América do Norte, nada foi
mencionado especificamente nas duas declarações mais importantes sobre os
direitos das crianças e dos adolescentes, até porque tais regramentos estipulavam a
igualdade absoluta entre todos os homens, incluindo-se, por certo, as crianças e os
adolescentes, bastando conferir que, indiretamente, estão incluídas as crianças e os
adolescentes, seja no artigo 1º, da Declaração de Direitos da Virgínia de 1776, seja
no artigo 1º, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, os quais
dispõem que os homens nascem livres e iguais, garantindo, portanto, que desde a
infância os homens são livres e iguais, estando protegidos pelos direitos inseridos
nessas declarações.
2.2.2 Séculos dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes
É no século XX que a criança e o adolescente começam a ser tratados pelos
diplomas internacionais, com o surgimento e intensificação do Direito Internacional
Humanitário.
62
Segundo Mello (2000, p. 497/98), o Direito Internacional Público tem se
preocupado com a questão infantil desde a Liga das Nações cujo Pacto estipulava:
Art. 23. Sob a reserva e na conformidade das disposições das convenções internacionais atualmente existentes ou que forem ulteriormente celebradas, os Membros da Liga: a) Esforçar-se-ão por assegurar e manter condições de trabalho eqüitativos e humanos para o homem, a mulher e a criança, nos seus próprios territórios, bem como em todos os países aos quais se estendem suas relações de comércio e de indústria e, para este fim, fundarão e manterão as necessárias organizações internacionais.
A primeira declaração internacional específica dos direitos da criança foi
formulada em 1924, pela Liga das Nações, constituindo a Declaração de Genebra
sobre os Direitos da Criança, por inspiração de Eglantine Webb, tendo entre os seus
princípios um que consagra a proteção de crianças civis e um outro estabelecendo
que em tempo de desgraça , a criança deve ser a primeira a receber socorro. Este
último princípio seria sempre aplicado seja em períodos de paz ou no caso de
existência de guerras, usando a expressão utilizada naquela época (MELLO, 2000,
p. 510).
A Declaração Universal de Direitos do Homem (ONU - 1948) trata das
crianças, mas apenas em alguns dispositivos:
Art. XXV... 2º. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social. Art. XXVI... 3º. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrado aos seus filhos.
Em 1959, a Assembléia Geral da ONU aprovou uma nova Declaração sobre
os Direitos da Criança, tendo o Relator do Comitê, Cuevas Cancino afirmado que “o
ponto de partida é o princípio não contratado de que a criança é fraca e portanto
necessita de cuidado especial e salvaguardas”, bem como acrescentou que “a
infância é a única classe privilegiada que transcende sociedade e épocas
‘históricas’”. O preâmbulo da Declaração (1959) repete o que já estava na anterior
Declaração (1924): “a humanidade deve à criança o melhor do que ela tem para
dar”, assim como que a criança, devido à sua imaturidade física e mental, precisa de
63
cuidados e salvaguarda especiais, introduzindo e sugerindo aos Estados a adoção
do sistema da proteção integral (MELLO, 2000, p. 510).
O Princípio 2 desta Declaração é relativo à situação da criança nos conflitos
armados:
A criança deverá gozar de proteção especial, e lhe serão dadas oportunidades, pelo direito e outros meios, para habilitá-la para se desenvolver de uma maneira saudável e normal e em condições de liberdade e dignidade.
Já o Princípio 8 estatui que: “A criança deverá, em todas as circunstâncias,
estar entre as primeiras a receber proteção e socorro”.
O Pacto de Direitos Civis e Políticos (ONU-1966) possui também alguns
dispositivos sobre a criança, como no artigo 23, que estabelece que em caso de
dissolução do casamento deverão “adotar-se disposições que assegurem a proteção
necessária para os filhos”. Ou no artigo 24, dirigido especificamente às crianças, que
dispõe que:
1. Toda criança terá direito, sem discriminação alguma por motivo de cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, situação econômica ou nascimento, às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte de sua família, da sociedade e do Estado. 2. Toda criança deverá ser registrada imediatamente após seu nascimento e deverá receber um nome. 3. Toda criança terá o direito de adquirir uma nacionalidade.
Já o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU-1966) dispõe
sobre a criança apenas no artigo 10:
Artigo 10 (...) b) As pessoas processadas jovens deverão ser separadas dos adultos e julgados o mais rápido possível. (...) 3. Os delinqüentes juvenis deverão ser separados dos adultos e receber tratamento condizente com sua idade e condição jurídica.
A Convenção de Genebra relativa à proteção dos civis em tempo de guerra
(1949) contém inúmeros dispositivos em que menciona expressamente as crianças:
artigo 38, alínea 5, artigos 50, 51 e 89, colocando como limite de idade, na maioria
dos casos, os 15 anos de idade.
64
Em 1978, o Governo Polonês apresentou à Comunidade Internacional a
proposta da Convenção Internacional relativa aos Direitos da Criança, tendo, em
1979, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas examinado o
documento, criando o Grupo de Trabalho, o qual, partindo do texto polonês, criou o
texto final da Convenção aprovada, por unanimidade, pela Assembléia das Nações
Unidas, em 20 de novembro de 1989, com a denominação de Convenção sobre os
Direitos da Criança, pela Resolução nº 44 (XLIV), exatamente quando se
comemoravam os trinta anos da Declaração Universal dos Direitos da Criança, de
1959.
Segundo Mello, (2000, p. 495/6/7):
A criança penetrou no Direito Positivo com um estatuto próprio com a Convenção sobre os Direitos da Criança, concluída sob os auspícios da ONU, em 1989. Inúmeros Estados passaram a elaborar um estatuto da criança, ou ainda, estatuto da criança e adolescente, com a finalidade de implementar o texto internacional.
A criança demorou, no âmbito da ONU, em ter um estatuto próprio, uma vez
que ela era considerada como protegida pelos tratados internacionais de direitos
humanos.
Campbell (Tom D. Campbell. The Rights of the Minor, Children, Rights and the Law, coordenado por Philip Alston, Stephen Parker e John Seymour. Oxford:
Clarendon Press, 1995, p.1-2) observa que há uma grande discussão em se saber
se uma criança tem ou não direitos. Se estes forem definidos sob o ângulo
voluntarista pode-se negar a existência de tais direitos, uma vez que a criança não
tem uma “relevante capacidade volitiva para reclamar direitos”. Por outro lado, se os
direitos “são definidos como interesses que são protegidos pelo direito”, pode-se
afirmar que as crianças possuem direitos.
Há, pelo que sabemos, uma redação na Convenção sobre os Direitos da
Criança (1989) diferente da que é utilizada nos tratados de direitos humanos. Estes
últimos afirmam a existência de direitos que se podem dizer preexistentes ao texto
legal. Já a citada convenção, nas expressões como “os Estados-Partes respeitarão”,
“os Estados-Partes tomarão medidas”, os “Estados-Partes deverão”, “os Estados-
Partes adotarão medidas”, etc. dão a entender outra coisa. É claro que tais
obrigações impostas aos Estados-Partes geram direitos para as crianças, mas foi a
65
fórmula encontrada para suprir uma “capacidade volitiva” incompleta por parte da
criança.
A Convenção sobre os Direitos das Crianças tem a peculiaridade de ser toda
ela formada por cláusulas pétreas, isto é, elas devem ser respeitadas em todas as
situações. Não é como ocorre com os tratados de direitos humanos que em
determinadas situações de emergência têm grande parte de sua cláusulas
suspensas.
Segundo Veronese (s/d., p. 97/8),
Ao contrário da Declaração Universal dos Direitos da Criança, que sugere princípios de natureza moral, sem nenhuma obrigação, representando basicamente sugestões de que os Estados poderiam se servir ou não, a Convenção tem natureza coercitiva e exige de cada Estado Parte que a subscreve e ratifica um determinado posicionamento. Como um conjunto de deveres e obrigações aos que a ela formalmente aderiram, a Convenção tem força de lei internacional e, assim, cada Estado não poderá violar seus preceitos, como também deverá tomar as medidas positivas para promovê-los. Há que se colocar, ainda, que tal documento possui mecanismos de controle que possibilitam a verificação no que tange ao cumprimento de suas disposições e obrigações, sobre cada Estado que a subscreve e ratifica.
66
REFERÊNCIAS
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prática. Dialogando sobre direitos humanos. Cadernos de direito e cidadania I - IEDC. São Paulo: Artchip, 1999.
ALBERNAZ J. V. H.; FERREIRA, P. R. Vaz. Convenção sobre os direitos da criança:
direitos humanos: construção da liberdade e da igualdade. São Paulo: Centro de
Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1998.
ALTAVILLA, J. de. Origem dos direitos dos povos. São Paulo: Melhoramentos, s/d.
CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição . 3. ed. Coimbra:
Livraria Almedina, 1998.
CRUANHES, M. C. dos S. Cidadania: educação e exclusão social. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris, 2000.
FERREIRA, P. R. V. ; ALBERNAZ Júnior, V. H.Convenção sobre os direitos da criança : direitos humanos: construção da liberdade e da igualdade. São Paulo:
Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1998.
MELLO, C. A. A criança no direito humanitário: o melhor interesse da criança: um
debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
MORAES, A. de. Direitos humanos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000.
SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 10. ed. São Paulo:
Malheiros, 1995.
VERONESE, J. R. P. O direitos da criança e do adolescente . São Paulo: LTr, 1999.
67
ARTIGO
O IMPERATIVO CATEGÓRIO DE IMMANUEL KANT
*Ana Paula Polacchini de OLIVEIRA * Advogada. Mestre em Filosofia do Direito pela USP. Pós-graduada em Direito Público e Filosofia. Docente do Curso de Direito.
RESUMO: O presente texto pretende descrever o caminho filosófico percorrido por Kant para pensar e compor o imperativo categórico (Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar pela tua vontade em lei universal da natureza), a partir de breve análise dos textos, Resposta à pergunta ‘o que é esclarecimento?’ (1784/1783), Transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico e Transição da filosofia moral popular para a metafísica dos costumes.
Palavras-chave: sujeito; razão; esclarecimento; ABSTRACT: This article describes Kant’s philosophical path to the categorical imperactive concept (Act only according to that maxim whereby you can, at the same time, will that it should become a universal law). In order to do so, this work analises some of Kant’s works, such as Answering the Question: What Is Enlightenment?(1784/1783), and Fundamental Principles of the Metaphysic of Morals. Keywords: subject; reason; enlightenment;
1. INTRODUÇÃO
Para facilitar a exposição, bem como do entendimento das proposições nela
contidas, cumpre apontar o contexto ao qual Kant estava inserido: séculos XVII e
XVIII, época de debate e crítica1. Kant viria a ser fonte das reflexões do século XIX e
XX: representante do esclarecimento alemão e otimista da razão, indaga acerca da
necessidade (de que adianta) da experiência se esta não oferece modo para
depurá-la. Kant propõe-se oferecer um novo caminho.
A Revolução Copérnica seria uma questão significativa para Kant. Assim
como Copérnico, Kant expôs que não são os homens que giram em torno dos
objetos. É o conhecimento que gira em torno do sujeito. E como Descartes, Kant
1 Tem-se o iluminismo (esclarecimento) do século XVIII, o liberalismo, a revolução industrial, a Revolução Francesa e o despotismo esclarecido.
68
entende que a filosofia precisaria pensar os novos tempos (desenvolvimento das
ciências, matemática) e, ainda, que seriam necessárias categorias que pensem o
novo tempo oferecendo um método adequado para o conhecimento. Para Kant as
pessoas devem agir moralmente. Daí a valorização do questionamento
transcendental. Procura, então, desvendar aquilo que acontece no processo de julgamento que leva o indivíduo a ter o processo privado de prazer, o que é comum e dado a todos (antes do julgamento). Considerando que o conhecimento
gira em torno do sujeito, para Kant, o conhecimento se restringe aos fenômenos, e
desta feita, existem questões que não podem ser conhecidas. Mesmo não podendo
ser conhecidas, tais perturbam o homem, incomodam a sua razão. O objetivo de
Kant é demonstrar que, pela análise da experiência vulgar, que a boa vontade é boa
em si porque age o indivíduo por dever, seguindo uma máxima universal2.
2. CONSIDERRAÇÕES PRELIMINARES
O homem é sujeito. Sujeito que conhece. A partir de influências do
pensamento de Descartes, para quem o momento essencial da verdade seria o
conhecimento de si, Kant trabalha os momentos de reflexão subjetiva3.
A incapacidade do homem de fazer uso autônomo e pleno do próprio
entendimento perfaz a menoridade. Vale dizer, aquele que, sem a direção de outro
indivíduo, sem um vetor externo que o guie e conduza, é pois incapaz. Cumpre
apontar que a menoridade é culpa do próprio homem, que tem na falta de decisão e
de coragem, sua condição de constituição.
O esclarecimento – Auflkärung – é a saída do homem4 da menoridade.
Pressupõe liberdade, o fazer uso público da razão: a decisão e coragem de servir-se
de si mesmo sem a direção de outrem – sapere aude5. Insuficiente a determinação
de “esclarecer-se um povo”. O processo de esclarecimento, o atingir a maioridade e
autonomia constitui ato evolutivo, e é por manus própria. Vale dizer, há que ser por
si, e não por determinação de outrem. Um povo deve se auto conduzir. A 2 Neste sentido tratar-se-á, também, do contexto histórico da mudança. O novo momento. A metafísica e as críticas de Kant a algumas colocações iluministas. 3 Ruptura, também, na concepção clássica do ente, do objeto. A modernidade passaria a refletir e considerar o “eu”, donde emana o próprio pensamento, enquanto fundamento de todos os entes. 4 Não só o homem, como o público pode ser ou tornar-se esclarecido. 5 Máxima do esclarecimento: ousar saber.
69
subjetividade do indivíduo torna-o maior, esclarecido.
Kant ainda aponta que existem questões que não podem ser conhecidas,
mas podem ser pensadas pelo homem. A estas questões, o homem tende a,
através da razão, extrapolá-las. O problema está no fato de que, apesar do domínio
sobre a natureza6 (modernidade), os homens continuam menores. Seguem
preceitos e fórmulas, fazem uso mecânico do entendimento e o mau uso dos dons
naturais. Kant apresenta como causa a preguiça e a covardia (fatores
subjetivos). Sendo que as formas de dependência são a dependência subjetiva,
institucional, e o uso inadequado da razão. A liberdade é pressuposto do
esclarecimento7. Carece querer fazer uso do entendimento, servindo-se dele,
rompendo as dependências e ousar saber.
2.1 Momento Histórico e Influências
Para tanto, e para melhor situar a problemática, cumpre oferecer um
panorama das influências da formação da concepção kantiana e os seus momentos
de exaltação.
Kant sucedeu o Renascimento, época que refletia uma forma rígida de
conceber o mundo: o mundo e a consciência deste é finita, acessível ao homem tão
só pela experiência, sendo que por um processo dedutivo, a partir de um princípio
hipostasiado, chegar-se-ia às demais verdades.
Já, o século XVIII apresentava-se como ruptura do modelo anterior. O
universo passava a ser visto como algo transitório e em constante mutação. Nem
tudo estaria acessível ao homem. Admitia-se a infinitude, acessível através da razão.
As leis regentes do universo seriam captadas (não mais somente parcela delas).
Neste sentido, Newton pôde ampliar as posições de Galileu e Kepler, que
conceberam as leis naturais através de fenômenos particulares, ao propor e
demonstrar o alcance absoluto de tais leis. Verificava-se um caminho de luzes, de
6 Grande questão: Ter o controle da natureza e deixar o medievalismo. Desenvolvimento da razão. Desenvolvimento científico. Viver melhor. Sonho iluminista. Profissão de fé. 7 Limitações. Desobediência civil: anarquia, bagunça. Se acha necessário desobedecer uma regra, aquele não é o momento. Romper com as tutelas, mas evitar a desobediência civil. Mudanças graduais. Existe tempo e espaço para o uso público da razão. Exercício da função. Obedecer a regras. Exercício privado.
70
esclarecimento, a partir de uma mediação legítima entre mundo sensível e o mundo
inteligível.
A manifestação de Kant deu-se enquanto vigorava o pensamento do século
XVIII, o próprio Iluminismo. Kant absorveria a crítica cética de Hume ao empirismo.
E, em Newton buscaria modelo para a teoria do conhecimento.
Apesar do momento esclarecido, Kant distancia-se, em parte, da concepção
iluminista até então proposta: tem-se que as coisas não são conhecidas em sua
essência última, pelos limites das faculdades humanas. A via analítica do saber
possibilita ao homem acessar a natureza. Pela experiência o conhecimento é
adquirido. Percorre-se o mundo empírico, não o transcendental.
É a partir da “revolução copérnica” que Kant chega ao seu idealismo
transcendental. Aquela se caracterizou por, vislumbrando a impossibilidade de
adequar sujeito ao objeto, isolou-o. Kant dizia ser impossível emitir juízos a priori
analisando os objetos e tentando ajustar o sujeito a eles. Tais juízos só seriam
possíveis ajustando o objeto ao homem, à sua capacidade e às suas limitações.
Seriam captados a partir do poder próprio do sujeito. Não o objeto em si, mas tal
como é concebido pelo sujeito. O ente passa a ser fenômeno.
2.2 Entendimento e Razão
Concebendo que,
- os conhecimentos racionais são necessários e universais, mas analíticos, não oferecendo contribuições quaisquer ao conhecimento, tautológicos, portanto; - os conhecimentos empíricos são sintéticos, mas contingentes e particulares, esgotando-se em si mesmos e não fornecendo proposições universais.
Kant realiza uma crítica às soluções anteriormente oferecidas para resolver os
problemas metafísicos. Crítica o racionalismo dogmático e o empirismo cético,
oferecendo a via transcendental. A ambição de Kant era fazer derivar o saber
adquirido através da experiência de princípios racionais (seguros), fundamento do
saber: proposições a priori que garantiriam o caráter universal e apodítico.
Verdadeiro núcleo da teoria do conhecimento. Juízos universais e necessários.
71
A metafísica, naquele momento, praticamente em desuso, é resgatada por
Kant, na tentativa de encontrar-lhe novos caminhos. Este dizia-a incapaz de
verdades na forma como era concebida. Indaga, portanto, acerca da possibilidade
das proposições sintéticas a priori. Seriam puras e trariam a possibilidade do
conhecimento. Kant então verificou sua existência e validade na matemática e física.
No ramo dos objetos finitos. Mas, considerando que na metafísica os objetos não
são sensíveis, tal não seria possível.
Daí aponta a validade da matemática e a condenação da metafísica de cunho
dogmático. Para esta consideração a constituição da subjetividade é essencial.
Veja que é a partir do sujeito que o conhecimento se torna possível. Mas não só. A
compreensão da objetividade fenomenal também se faz necessária. O idealismo
retira a latência do sujeito, faz dele determinante.
Kant considera a essência do idealismo, destacando-se dela na medida em
que não ambiciona o conhecimento de todas as coisas, tornando-o mera ilusão.
Admite tão só o conhecimento do fenômeno. O idealismo transcendental vai
envolver uma nova concepção de subjetividade – sujeito transcendental – e de
objetividade – fenômeno.
Ainda, estariam os iluministas, conforme coloca Kant, a confundir o
entendimento com a própria razão, hipertrofiando aquele na medida em que passa a
limitá-lo. O entendimento – verstand – opera dentro de limites. A razão – vernunft – vai além dos limites.
Consiste em tendência do homem e utilizá-la é extrapolar o limite das
instituições. Os homens foram naturalmente habilitados para usá-la. A finitude do
sujeito corresponderá sempre a finitude do saber. Demonstrada a finitude do saber
dos fenômenos, e não das coisas em si.
Kant não mais interroga o saber, mas sim o agir. A promoção da razão prática
pelos limites da razão teórica. Neste sentido aparece a ética, que realiza o homem
além das determinações naturais.
3. BOA VONTADE E DEVER
A boa vontade é a única possibilidade do bom, sem limitação.
72
Os talentos8 são suscetíveis de serem utilizados para o bem ou o mal,
conforme a vontade. É a boa vontade que imprime caráter ao indivíduo e que anima
os talentos. Os talentos, estes, carecem de valor absoluto. A boa vontade
pressupõe as demais. “(...) A boa vontade parece constituir condição indispensável
do próprio facto (sic) de sermos dignos de felicidade” (KANT, 1995, p. 22).
Veja que não é a busca pela felicidade que condiciona a vontade, mas sim a
vontade em si, plena de valor. “A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou
realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente
pelo querer (...)” (1995, p. 23).
A vontade leva o indivíduo a agir. Mas a ação em si não é boa ou má sob o
ponto de vista da moral. A ética kantiana – formal – não vai se preocupar com os
efeitos da ação. A moral está vinculada à intenção que determina a vontade9. Seres
humanos: possuidores de potencialidades. A vontade dá valor aos talentos. A
vontade os conduz. A moralidade não reside na natureza da ação. Basta a
intencionalidade. Vontade nela mesma. A vontade é um valor em si.
Não é em razão das inclinações do indivíduo que este passa a agir e da “boa
vontade” se utilizar. Não é isto que a torna boa. Ela o é não pela sua utilidade, mas
simplesmente por ser.
Aponta que se a intenção do homem fosse seu bem-estar e felicidade, não
seria ele guiado pela razão. Mais facilmente alcançaria seu objetivo se guiado pelos
instintos. E se a razão fosse um favor concedido ao homem, não seria ela a diretiva
de sua conduta. A razão, nem em um, nem em outro caso, teria caído no uso
prático.
O que a realidade coloca, segundo Kant, é que “quanto mais se consagra ao
gozo da vida e da felicidade, tanto mais o homem se afasta do verdadeiro
contentamento” (1995, p. 24).
A intenção privada do homem deve se subordinar a razão, condição suprema,
faculdade prática que pressupõe o querer. Ora, então o verdadeiro destino da razão
8 O autor, no texto, remete para o discernimento, a argúcia de espírito, a capacidade de julgar como talentos do espírito, ou coragem, decisão, constância de propósito, como qualidades de temperamento, todos que, inclusive, contribuem para tornar um homem bom ou ruim. E é exatamente por esta bipolaridade que não são por si só. Somente uma boa vontade faz com que esses “talentos” ou “qualidades” sejam benéficos. 9 Intencionalidade em Kant. Ato moral é aquele que é praticado com uma intenção e não aquele que leva em conta os efeitos.
73
é guiar o homem a produzir uma vontade boa em si mesma. Não é o bem total, mas
é condição para os demais, condição para agir.
A boa vontade é o bem supremo, condição de possibilidade de tudo o mais,
mesmo da felicidade. A felicidade é determinada pela razão. Não é através dos
instintos que se chega à felicidade. A felicidade não é conseqüência não buscada
pela boa vontade. A intenção per si de uma boa vontade já se basta. Sem intenção
ulterior, sem efeitos. Guiado o indivíduo por um bom senso natural.
Tem-se:
humano Æ razão e sensibilidade Æ natureza e instinto
Está, a vontade, condicionada pela razão e não pela tendência da
sensibilidade. A razão determina a vontade. A razão dá uma lei a um indivíduo,
determina-lhe um dever. O querer é conduzido pelo dever de agir puro:
humano Æ razão e sensibilidade Æ natureza e instinto.
dever, conduz a ação10.
As ações se dão por diversos fatores e inclinações de seus agentes. Kant
expõe ações contra o dever (imorais) e ações por dever, ou ainda, ações conforme o
dever, por inclinação pessoal, interesse estritamente privado e egoísta que tem nos
efeitos o motor da conduta.
A questão é que dificilmente, senão impossível alguém, que não o agente,
saber o que levou um indivíduo a agir. Tal é o campo da moral. O querer é
condicionado pelo dever. A motivação é o dever.
A ação por dever tem o seu valor moral não no propósito, mas na máxima que
a determina. O valor moral não advém dos efeitos, mas da razão que determina o
agir, isto é, do princípio da vontade (a lei é a priori, universal e necessária).
Se age o indivíduo por dever, a máxima que dali se extraí tem um conteúdo
moral (1995).
Veja:
10 Está o indivíduo sob obstáculos e limitações diversas, mas a boa vontade impera, expressando-se pelo dever.
74
Agir moralmente Ato (agir) Æ Conseqüência
IntençãoÆ Vontade Æ Ação ¬ foi por dever -------- ¬boa vontade (em si)
A ação resulta de vontade que pressupõe intenção. Sem vaidade ou
interesses. Intenção em si, por dever, donde tal assertiva pode ser universalidade. E
no dever tem-se a necessidade de uma ação por respeito a lei (um imperativo na
conduta). Tal tem autêntico valor moral.
Objetivamente: a lei impõe-se à vontade. Subjetivamente: tem-se o respeito à
lei. O bem é realizado por dever e não por inclinação.
A própria idéia de felicidade é vaga. Mas tem-se que na medida em que
assegurar a própria felicidade é um dever, transgredir deveres por aquilo que se
julga ser felicidade também é possível. Daí que agir por dever não se prima por
efeitos, mas tão só pelo dever em si. Propõe Kant: que “uma lei determina a
promoção da felicidade, não por inclinação, mas por dever” (1995, p. 29).
E, posteriormente diz que “uma acção (sic) praticada por dever tem o seu
valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a
determina” (1995, p. 30). Algo puro, não inclinado à motivações externas. Tem-se o
princípio do querer que determina ao indivíduo que cometa o ato. O princípio é a
priori, formal. Disso, Kant formula uma terceira proposição:
Dever é a necessidade de uma acção (sic) por respeito à lei. Pelo objecto (sic), como efeito da acção (sic) em vista, posso eu sentir em verdade inclinação, mas nunca respeito, exactamente (sic) porque é simplesmente um efeito e não a actividade de uma vontade. (1995, p. 42).
Para se chegar a ação não precisaria da razão caso se buscasse o efeito. O
objetivo de Kant é demonstrar que, pela análise da experiência vulgar, a boa
vontade é boa em si porque age por dever, seguindo uma máxima universal. Se não
for universalizável, deve ser rejeitada.
Ultrapassa as inclinações e age o indivíduo pela razão, por puro respeito à lei
prática. Tal constitui o dever. O dever é condição de uma vontade boa em si.
Funciona como parâmetro ao indivíduo, expressando que o é bom ou mau. Qualquer
homem disso saberia. Excluindo os motores sensíveis, até a razão das mais
vulgares.
75
Tal é o conhecimento da razão humana vulgar transposto em conhecimento
filosófico. A lei determina a vontade e não o efeito. “A razão impõe suas
prescrições, sem nada aliás a prometer às inclinações” (1995, p. 37) o que a razão
prática terminará por condenar.
Tem-se, então que objetivamente, a lei impõe-se à vontade. E,
subjetivamente tem-se o respeito à lei. E que pode-se apontar, da análise da
experiência vulgar, que a boa vontade é boa em si porque age por dever. Mas o
dever se fundamenta em dados teóricos, formais.
No campo da experiência não se sabe ao certo se a ação foi ou não por
dever. Uma ação pode ser boa/positiva ou negativa. Quando o indivíduo os usa de
forma positiva, pelos efeitos aparece positivamente. Isso não é garantia de que a
ação será moral. O bom uso depende da vontade.
Aponta Kant que não existem exemplos que demonstrem se a ação foi
conforme o dever ou por dever. Não se sabe ao certo o que a teria desencadeado. A
ação em si acaba sendo o resultado de atos tanto conforme o dever como por dever
o que impossibilita verificar a máxima que conduziu o agir. Neste caso teria valor
moral. Naquele não.
Inclusive nem o indivíduo pode atribuir o móbil da ação. Vale dizer, aquele
não sabe se a máxima mesmo que o moveu ou se a idéia dela que encobria móbiles
secretos deste ser. Princípios íntimos que não se vêem.
Tem-se, ainda, que a maior parte das ações são conforme ao dever. Mas tal
ocorrência não se justifica em si mesma. Ainda impera o severo mandamento do
dever.
E então nada nos pode salvar da completa queda das nossas idéias de dever, para conservarmos na alma o respeito fundado pela lei, a não ser a clara convicção de que, mesmo que nunca tenha havido acções (sic) que tivessem jorrado de tais fontes puras (...) elas não possam ocorrer.
A razão que determina a vontade a priori, anterior a experiência. Um dever
em geral. Não é o fato de não ter acontecido que nega a possibilidade do dever. Tal
tem validade para todos os seres racionais, é de alcance universal, sob pena de
estar-se a recusar toda a moralidade. Absoluta e necessariamente, a despeito das
circunstâncias, dos impulsos, das limitações dos homens.
76
Este universo, o das circunstâncias, limita o pensar e o agir do homem. Não
pode, pois, ser universalizado. Neste sentido é preciso que restem consolidados nos
homens os ditames da moralidade para que daí indague-se a sua ação. “Somente
da idéia que a razão traça a priori da perfeição moral e que une indissoluvelmente
ao conceito de vontade livre” (1995, p. 42).
Da filosofia moral popular para a metafísica dos costumes. Para vislumbrar
os conceitos populares é preciso invocar os princípios da razão. Firma-los
solidamente, pois são autênticos, para após ser acessível ao seu exercício, para
implantá-lo nos ânimos.
Os princípios morais se fundam em si mesmos, são a priori, e deles podem
derivar regras práticas. Tal é a importância do conhecimento teórico que vai servir
de sustentação para o agir. A origem do conhecimento teórico é puro, livre das
impurezas do universo donde as inclinações do homem são suscitadas. Todos os seres são regidos por leis morais, por uma razão em geral. Para
que aquilo que dita a vontade do homem possa ditar a vontade de todos é preciso
que as limitações circunstanciais não influenciem diretamente o agir. Daí dizer que o
dever não se extrai de exemplos. O exemplo deve ser julgado pela moralidade.
O homem, diferente daqueles entes não racionais, tem consciência daquilo
que segue, que obedece. Tem-se as leis e pode o homem segui-las ou não. Tal é o
império da vontade. E a razão determina a vontade.
Somente o indivíduo tem vontade, pode agir segundo princípio. Para que as
ações destes se expressem necessária a razão. Vontade é, pois, razão prática.
Daí dizer que as ações são também subjetivamente necessárias.
A vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer como bom. (1995, p. 47).
O reconhecimento da razão determina o agir através da vontade. Princípios
da razão determinantes de uma vontade racional, pela natureza deste, mas a qual
não se obedece necessariamente. Objetivamente necessárias, mas subjetivamente
contingentes.
A razão determina a vontade. Pode fazê-lo de diversas maneiras. São
objetiva e subjetivamente necessárias as ações onde a razão determina a vontade
infalivelmente. A vontade submete-se a lei moral automaticamente. É como se a
77
vontade não se sentisse obrigada diante da lei. Correspondência entre liberdade e
necessidade. A vontade ao império da lei, onde sem o seu atendimento não se teria
realização alguma. Casos há que a razão não determina a vontade, de forma
infalível. A vontade pode ou não aderir a ela. Considerando a condição humana, as
inclinações do indivíduo, neste caso a ação é objetivamente necessária, mas não o
é subjetivamente. Conforme Kant, tem-se uma obrigação. Age-se conforme a razão.
Veja:
Natureza Æ leis da causalidade
Moral Æ leis (razão) – respeito – dever – vontade ação (objeto).
liberdade consciência
A determinação desta vontade é obrigação. Um mandamento da razão, um
imperativo. Os imperativos se exprimem pelo verbo dever. A vontade nem sempre
exprime aquilo que deveria, pela razão. Determinar a vontade pela razão, por aquilo
que é bom, ou por causas subjetivas, inclinações. A boa vontade estaria circunscrita
ao bem, e por ele é determinada. Mas as inclinações subjetivas afastam essa sua
condição, e deixa de ser boa em si. Se não há sintonia, a lei objetivamente obriga.
E o faz através do imperativo. Reza como a vontade deve agir. A vontade pode ou
não acolher as suas determinações.
O imperativo aparece na lacuna existente entre a possibilidade ou não de agir
por dever. A vontade só é completa se atrelada à razão. Quando não a exprime,
tem-se uma vontade imperfeita, atrelada às inclinações do indivíduo. É o caso da
vontade do homem. Veja que a razão representa o bom. No caso do homem, há
que se considerar o imperativo, que remete para o bom. Se o indivíduo não age
naturalmente pela razão, tem no imperativo o mandamento para o agir.
Daí a condição de fórmula dos imperativos. Estabelecem relação entre leis
objetivas, da razão, gerais e universais, e as inclinações. Uma ação objetivamente
necessária, sem finalidades outras. Lei prática. Representa uma ação possível e
boa. Tem-se princípio de uma vontade boa.
78
Daí tipos de imperativos11. Os hipotéticos são contingentes. Só reside a
obrigação se restar a ação vinculada aos objetivos determinados por eles. O
categórico é ilimitado, necessário, vincula a vontade à lei. Não pode ser negado,
mesmo que na prática não seja realizado (a partir da vontade o sujeito nega-se a
cumpri-lo). Impõe-se por si mesmo. A validade permanece.
A bondade da ação está na obediência. O imperativo da moralidade
caracteriza-se pela forma e pelo princípio. É posto antes do julgamento e da ação.
Se boa como meio – hipotético. O que se tem de fazer para alcançar uma
finalidade. E, se boa em si – categórico. Apodíctico. Não se fala em finalidade. E
seja qual for o resultado. Mandamento, necessidade incondicionada. Imperativos
morais.
Como pode ser pensada a obrigação da vontade que o imperativo exprime na
tarefa a cumprir. Não há como saber o que necessariamente faria um homem feliz12.
A realidade do imperativo categórico não é dado da experiência. Caráter de lei
prática. Se o mandamento incondicional não deixa à vontade a possibilidade de
escolha Não vai existir um querer pressuposto, mas um querer em si.
A máxima é o princípio subjetivo da ação. “Age apenas segundo uma
máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”
(1995, p. 59).
Indica Kant que todas as máximas teria uma forma, uma matéria e uma
determinação completa (1995). O ser racional é o legislador. Há, ainda que se
tratar os indivíduos com fins em si mesmos. O reino dos fins, donde há uma ligação
entre os seres, regidos por leis. A máxima posta pelo homem nunca poderá se
contradizer. Mas, segundo Kant, a felicidade não pode ser o objetivo material da
ética. Somos seres racionais. Os seres racionais ao julgarem moralmente se auto
concedem uma lei, que é a priori, universal, necessária. A lei inspira respeito e se
apresenta como dever. O dever é o móbil (aquele que motiva e conduz) a vontade.
Ação.
Moralmente não existem exceções. Pode o indivíduo agir contra o dever, a
partir de uma máxima subjetiva. Mas esta não pode ser universalizada, contradiz-se
11 Imperativos hipotéticos (problemáticos e assertóricos) e os categóricos. Estes fornecem regras de destreza ou conselhos de prudência. No primeiro caso, técnicos. No segundo, pragmáticos. 12 Não se estaria a falar de um imperativo pragmático, que aparenta ser objetivo e necessário, mas que não deixa de ser meio, que chama atenção para as vantagens.
79
em si mesma. Uma oposição entre os ditames da razão e as inclinações do
indivíduo.
Quando o sujeito age pelo mal, não há de querer que tal assertiva se
universalize, sob pena de ele mesmo sofrer o mal.
Kant aponta então fórmulas derivadas do imperativo, proposições que o
completam. Na primeira, “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar
pela tua vontade em lei universal da natureza” (1995, p. 79). Neste sentido expressa
a forma de como deve se dar um julgamento de modo a ser moral. A condição
determinada pelo princípio (pela imoralidade) não se pretende fazer permanecer.
Qualquer que seja o conteúdo do problema, se moral, há que ser julgado segundo o
imperativo categórico, mesmo sob a influência dos elementos empíricos, um meio de
julgar casos concretos.
Após, apresenta uma segunda manifestação do imperativo, uma segunda
roupagem, “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como
na de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente
como meio” (1995, p. 79).
Nele apresenta a questão da finalidade. O imperativo categórico integra os
fins, admitindo-se a existência de um fim em si. O homem é um fim em si mesmo. O
fim em si é a razão mesma, forma que demonstra, analiticamente, a fórmula do
imperativo categórico. Como é o homem que vai determinar a lei, a vontade é lei ela
mesma. O que remete para o ser humano (humanismo). O homem é fim objetivo.
Após introduz uma terceira manifestação do imperativo, a “vontade de todo
ser racional concebida como vontade legisladora universal” (KANT, 1995, p. 72).
Aquilo que não for universalizável não é máxima legisladora universal.
Consiste, na realidade, em uma abordagem da junção das duas primeiras
proposições. O reino dos fins a partir do homem, um fim em si mesma. A vontade
racional é o dever que determina agir somente segundo uma máxima
universalizável. Desta forma a vontade é a legisladora universal. O homem
autônomo confere a si a sua vontade. A liberdade é condição para a autonomia da
vontade. O homem se eleva quando pode usar a razão, afasta a preguiça e o e é
livre, racional. Sua vontade é lei universal a priori que indica a conduta dos demais.
80
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Kant investiga os limites da razão, apresenta uma crítica generalizada às
construções metafísicas. Põe à mesa os limites do próprio homem, das suas
inclinações.
Conhece-se os fenômenos. Categorias do entendimento aliadas à
sensibilidade permite conhecer os fenômenos, a natureza. Algo – a razão – que quer
se aventurar além do seguro (conhecimento dos fenômenos).
Existem problemas que podem ser pensados: Deus, imortalidade da alma,
liberdade. Mas não conhecidos.
Remete-se para a esfera do conhecimento científico e esfera da liberdade
ética. O ser humano transita nos dois mundos. Enquanto no primeiro tem-se a
causalidade natural, no segundo, o uso da razão, a consciência, a autonomia. Tenta
desconstituir o abismo entre esses dois mundos.
A ética kantiana estabelece o papel do homem, o fim último. O horizonte é o
ser humano. Exalta a autonomia, essencial para a realização da moral.
No contexto do iluminismo, tenta superar céticos e dogmáticos. Superar
concepções morais amparadas na sensibilidade. O conceito de liberdade resta
destacado como da razão. Condição para autonomia da vontade, do pleno exercício
da liberdade.
O homem é sujeito de razão. Ao agir moralmente, age por dever à lei. A
vontade é em si. E esta é uma boa vontade. A ação não depende dos fins ou dos
resultados. As inclinações influenciam os indivíduos, mas existe o respeito à lei.
Julgar pela razão e afastar os móbiles. Juízo puro. A ação por dever e basta em si. É
o exercício da razão que indica de forma pura como se deve agir. O imperativo
categórico oferece o horizonte, uma fórmula dada aprioristicamente. O fato empírico
é o julgamento. O imperativo categórico vem antes.
A vontade está colocada entre o seu princípio a priori, que é formal, e o seu
móbil a posteriori, que é material. É determinada pelo princípio formal do querer em
geral quando a ação seja praticada por dever. A máxima que move o indivíduo
sintoniza-se com o universal. Recorrendo aos fundamentos da moralidade atinge-se
o rigor e após apresenta-o em termos práticos. Da faculdade prática da razão brota o
dever. Encontrando a origem do dever, tem-se o fundamento da moralidade.
81
Todos os elementos que se originam no universo empírico tem validade
limitada. O comportamento tem propriamente valor moral. Uma ação praticada por
dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na
máxima que a determina. A ação é pura. Dever é a necessidade de uma ação por
respeito a lei. Pelo objeto, como efeito da ação em vista, posso eu sentir em
verdade inclinação, mas nunca respeito, exatamente porque é simplesmente um
efeito e não a atividade de uma vontade.
82
REFERÊNCIAS
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes – Primeira Secção: Transição do Conhecimento Moral da Razão Vulgar para o Conhecimento Filosófico. 7.ª ed. Lisboa: 1995.
_____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes – Segunda Secção: Transição da Filosofia Moral Popular para a Metafísica dos Costumes. 7.ª ed. Lisboa: 1995.
_____. Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”?
83
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO – REVISTA UNORP 1. TIPOS DE TRABALHOS CIENTÍFICOS ACEITOS
9Artigos inéditos no Brasil. Em caso de divulgação prévia sob forma de
palestra, comunicações, informar em nota à parte;
9Comunicações ou notas, contendo uma ou várias informações científicas
novas, detalhadas ou não, com a finalidade de comunicar pesquisa em
andamento;
9Revisões de Literatura;
9Resumos de trabalhos publicados (livros, dissertações, teses, etc.);
9Relatos de casos (casos clínicos);
9Resenhas;
9Entrevistas.
2. FORMATAÇÃO
9Artigos com no mínimo 06 e no máximo 20 páginas.
9Fonte: Arial; tamanho 12; espaçamento 1,5; alinhamento justificado;
margens esquerda e superior 3cm, direita e inferior 2cm.
9Exceções: Resumos e abstracts dos artigos devem ser digitados com
espaçamento simples. Notas de rodapé e citações com mais de três linhas
devem ser digitadas em tamanho 10, espaçamento simples.
9Idiomas: Português ou Inglês;
9Os artigos devem estar de acordo com a norma culta e obedecer as novas
regras ortográficas.
3. ESTRUTURA DOS TRABALHOS
84
9 Título – em caixa alta, negritado e centralizado – deverá ser claro e objetivo,
expressando o conteúdo do texto. Pode ser acompanhado de um subtítulo.
Deve-se evitar título extenso, abreviações, parênteses e fórmulas que
dificultem a compreensão;
9 Nomes do(s) autor(es) deve vir abaixo do título, alinhado à direita, com o
último sobrenome em caixa alta. Em caso de mais de um autor, a ordem
deverá ser direta;
9 Indicar, em nota de rodapé, as credenciais dos autores, constando: cargo que
ocupa; instituição a que pertence e/ou formação acadêmica.
9 O resumo e o abstract, ambos devem conter no máximo 10 (dez) linhas cada,
em espaço simples (alinhamento justificado). Abaixo do resumo deverão estar
as palavras-chave, e do abstract, keywords – 3 a 5 palavras representativas
do assunto tratado no trabalho, separadas entre si por ponto e vírgula(;);
9 O texto deve ter introdução, desenvolvimento e conclusão, podendo ou não
conter subtítulos, de acordo com o tamanho do texto. Os textos pequenos não
precisam, necessariamente, conter subdivisões. Os casos especiais deverão
ser esclarecidos diretamente com o Conselho da Revista. Em caso de
pesquisas de campo, que exijam esta especificidade, o artigo científico deve
seguir a ordem: introdução, material e método, resultados, discussão e
conclusão.
9 O uso de aspas deve ser restrito aos casos de citações com menos de 3
(três) linhas. Destaque e diferenciações de palavras. Os nomes científicos de
espécies, as palavras em outros idiomas, o termo que se quer enfatizar, etc.,
devem ser grafados em itálico, sem aspas.
9 Notas de rodapé: chama-se notas apenas as informações explicativas
(comentários / observações complementares). Devem ser colocadas ao final
do texto, em espaçamento simples, tamanho 10. Para separar as notas entre
si, usa-se 01 espaço simples.
9 Pós-texto: Anexos (materiais complementares, não produzidos pelo autor) ou
apêndices (materiais complementares, produzidos pelo autor) devem ser
incluídos apenas quando imprescindíveis à compreensão do texto, e deverão
estar localizados imediatamente após as referências.
4. REGRAS PARA CITAÇÕES
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4.1. Citações com menos de 3 (três) linhas
As citações com menos de 3 (três) linhas deverão ser feitas no corpo do próprio
texto,destacadas por aspas em caso de citações diretas, seguidas da referência
bibliográfica simplificada (sistema autor/data). Citações diretas são transcrições
literais que devem especificar a página. Ex: Numa outra definição, violência é a
―qualidade de violento;; ato violento;; constrangimento;; emprego de força;; ato de
violentarǁ‖ (BUENO, 1980, p. 498).
Obs: As citações em língua estrangeira devem ser traduzidas como notas.
4.2. Citações com mais de 3 (três) linhas As citações com mais de 3 (três) linhas deverão ser feitas de modo especial:
parágrafo isolado, recuo de 4 cm da margem esquerda, margem direita
acompanhando o texto, sem aspas, tamanho 10.
Ex:
Os assassinatos, torturas e maus-tratos a que estes [crianças e adolescentes] são violentamente submetidos têm-se apresentado com um certo caráter de normalidade [...] tais ações [contudo] não são cometidas de forma individual, mas são conseqüências de um imaginário construído historicamente que concebe a violência como elemento estruturador e organizador das relações sociais. (ROURE, 1996, p. 23).
5. REFERÊNCIAS Apenas obras / documentos citados no trabalho devem ser referenciados. As
referências, ao final do texto, deverão ser feitas de forma completa, contendo todos
os elementos exigidos pela ABNT, conforme exemplos a seguir:
Citação de livro com apenas um autor FALCON, F. J. C. Mercantilismo e transição. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Citação de livro com dois autores
86
MARCONI, M. A.; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 1998.
Citação de livro com mais de dois autores
OLIVEIRA, A. S., et al. Introdução ao pensamento filosófico. 6. ed. São Paulo:
Loyola, 1998.
Citação de capítulo de livro PEREIRA, T. S. A convenção e o estatuto. In:
MARCONI, M. A (org.). Estatuto da criança e do adolescente: lei 8.069/90: estudos
sócio-jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 64-115.
Citação de artigo de jornal ESCÓSSIA. F. 40% das crianças do país são pobres.
Folha de São Paulo, São Paulo, 18 nov. 1997. Cotidiano, p. 1.
Citação de artigo de Revista JOHNSON, P. O islã na mira. Veja, São Paulo, ano
34, nº 38, p. 9-13, 26 set. 2001.
Citação de artigo de jornal na Internet MOREIRA, E. C. Hipocondria por procuração em crianças: relato de dois casos. Jornal de Pediatria, [S.l.], 1999.
Disponível em: http://www.sbp.com.br/jornal/99-09.10/relcas3.html. Acesso em: 24
jun. 2001.
6. FORMAS DE ENVIO Os trabalhos devem ser submetidos via email ([email protected]), no formato Word
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