revista piauiense de história social e do trabalho. ano i, n. 01

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A Revista Piauiense de História Social e do Trabalho é um periódico científico de acesso livre e gratuito, de edição semestral, vinculado à plataforma Mundos do Trabalho Piauí, que tem como objetivo facilitar e difundir investigações teóricas, pesquisas e resenhas que contenham análises, críticas e reflexões sobre História Social e os Mundos do Trabalho, a nível urbano e rural (com ênfase no Estado do Piauí), nas mais diversas temporalidades e temáticas variadas, como: Formação do mercado de trabalho, trabalho escravo, diversificação do mundo do trabalho, movimento operário, imprensa operária, cultura operária, dentre outros temas.

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Sumário

Expediente .......................................................................................................... 03 Ao Leitor ............................................................................................................. 04 Artigos: EM BUSCA DA DIGNIDADE: Migração, emprego doméstico e trabalho industrial de mulheres pobres na capital Fortaleza (1970-1990). Jormana Maria Pereira Araújo ........................................................................ 05 O MITO DA FÊNIX E A ESCRAVIDÃO: Reflexões historiográficas acerca do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Fagno da Silva Soares & Júlio César Suzuki .................................................. 17 PRECARIEDADE: Uma genealogia sócio-histórica do conceito. Francisco Raphael Cruz Maurício ................................................................... 29 Dossiê Mundos do Trabalho no Piauí: A MÃO DE DEUS E A MÃO DO HOMEM: Natureza e trabalho na forma-ção social do Piauí escravista (Brasil, sec. XVII-sec. XIX). Solimar Oliveira Lima ....................................................................................... 39 UM RIO ENTRE A MISÉRIA E O “PROGRESSO”: As relações entre Traba-lho e Natureza em Parnaíba-PI na primeira metade do século XX (1900-1920). Alexandre Wellington dos Santos Silva .......................................................... 50 JOSÉ CEARÁ E O PCB: A trajetória de um operário comunista no Piauí (1933-1964). Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais Sousa .................................................. 58 TURISMO, TRABALHO E ESTRANHAMENTO: As experiências dos traba-lhadores do setor no polo turístico do Delta do Parnaíba-PI. Amanda Maria dos Santos Silva ...................................................................... 70 A ALIANÇA NACIONAL LIBERTADORA NO PIAUÍ: Antecedentes e im-pactos dos Levantes de Novembro de 1935 José Maurício Moreira dos Santos .................................................................. 80

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Expediente A Revista Piauiense de História Social e do Trabalho é um periódico científico de acesso livre e gratuito, de edição semestral, vinculado à plataforma Mundos do Trabalho Piauí, e tem como objetivo facilitar e difundir investigações teóricas, pesquisas e rese-nhas que contenham análises, críticas e reflexões sobre o Mundo do Trabalho (urbano e rural), com enfoque no Estado do Piauí, nas mais diversas temporalidades e temáti-cas variadas, como: formação do mercado de trabalho, trabalho escravo, diversificação do mundo do trabalho, movimento operário, imprensa operária, cultura operária, den-tre outros, aceitando também colaborações com análises de outras realidades em lo-calidades distintas. Apoio: Plataforma Mundos do Trabalho - Piauí: http://mundosdotrabalhopi.blogspot.com.br Corpo Editorial Coordenação e Edição: Prof. Alexandre Wellington dos Santos Silva Prof. Msc. José Maurício Moreira dos Santos Conselho Consultivo: Profa. Msc. Amanda Maria dos Santos Silva Profa. Msc. Ana Maria Bezerra do Nascimento Prof. Msc. Francisco Raphael Cruz Maurício Profa. Msc. Maria Dalva Fontenele Cerqueira Prof. Msc. Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais Sousa Prof. Msc. Yuri Holanda da Nóbrega Foto de capa: “Progresso do Brazil – Aspecto das obras do Porto de Parnahyba”. In.: O Malho. Rio de Janeiro, 25 de Janeiro de 1913. Ano XII, n. 541. s/p.

Revista Piauiense de História Social e do Trabalho - Parnaíba-PI. Julho/Dezembro de 2015. Ano 01, n° 01. [email protected] http://www.rphst.com.br

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Ao Leitor O mundo está atravessando mais um período de crise do sistema capitalista,

uma crise estrutural que despeja seus efeitos sobre a classe trabalhadora no mundo inteiro, da China ao Brasil; desemprego, flexibilização de direitos, aumento da xeno-fobia e da violência são fenômenos que se aprofundam nessa conjuntura. No Brasil, os seus fortes impactos há muito se fazem sentir, porém, o aumento da resistência com a retomada das lutas sociais, seja de várias categorias da classe trabalhadora ou da juventude estudantil, dão contornos indefinidos ao cenário de polarização social que se abre. Diante dessa realidade, os estudos da História e da Sociologia do Traba-lho ganham uma grande relevância.

Nas ultimas décadas, pesquisas inovadoras contribuíram para a dinamização do campo de pesquisa da História do Trabalho no país. Muitas interpretações até então consolidadas passaram a ser questionadas, abrindo um fértil campo de debates. Tanto as relações de trabalho assalariadas como as escravocratas tornaram-se cen-trais nos estudos. Pesquisas sobre a situação da população negra no pós-abolição (até então um hiato historiográfico) também começa a apresentar importantes resultados. As especificidades da formação da classe a partir das relações de gênero, etnia, nacio-nalidade oferecem à História do Trabalho grandes oportunidades de entender a com-plexidade das relações sociais. E o diálogo, principalmente, com a antropologia e a sociologia tem alargado o horizonte teórico e metodológico dos historiadores.

Durante décadas, a maioria dos estudos concentrou-se em estudar a região sudeste e sul do país, induzindo uma análise generalizante da história do trabalho brasileiro, como se a trajetória dos sujeitos e grupos sociais do país inteiro tivesse passado pelas mesmas etapas e processos de desenvolvimento. Porém, anima-nos, que recentes estudos das regiões norte e nordeste comecem a desmistificar interpretações consagradas, apresentando suas especificidades. Especificidades, como por exemplo, as que por vezes fogem do estereótipo do imigrante europeu-anarquista como sujeitos determinantes no processo de formação da classe trabalhadora. Ademais, dentro da região Nordeste, devemos reconhecer desníveis no desenvolvimento de estudos da história do mundo do trabalho em alguns estados, como é o caso do Piauí, onde as pesquisas ainda são embrionárias.

Porém, cabe mencionar, que no Piauí nos últimos anos algumas importantes pesquisas foram realizadas por estudiosos das áreas da história, sociologia e educa-ção. Esses trabalhos vêm discutindo a formação do mercado de trabalho piauiense, o trabalho escravo, a transição das relações de trabalho escravo para o assalariado, a inserção do estado na dinâmica do mercado internacional, a formação da classe traba-lhadora e suas formas de organização coletivas, dentre outros temas. Dando segui-mento a esses estudos, nessa primeira edição da Revista Piauiense de História Social e do Trabalho os leitores vão encontrar algumas pesquisas que estão sendo realizadas e que visam contribuir com os estudos da História do Trabalho piauiense, um campo vasto e ainda pouco explorado pela historiografia.

Comissão de Organização e Edição da

Revista Piauiense de História Social e do Trabalho - RPHST

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Jormana Maria Pereira Araújo

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EM BUSCA DA DIGNIDADE: Migração, emprego doméstico e trabalho industrial de mulheres pobres na capital

Fortaleza (1970-1990).

Jormana Maria Pereira Araújo1 Resumo O presente artigo trata de um segmento de mulheres pobres na cidade de Fortaleza, Ceará, especificamente no mundo do trabalho, hierarquizando aspectos tais quais: migração campo-cidade, trabalho doméstico, trabalho industrial. Para isso realizo a análise à partir de suas memórias, debru-çando-me sobre a experiência de sobrevivência na cidade bem como suas expectativas em busca da dignidade no trabalho. Para isso articulo duas categorias essenciais a esse debate: gênero e trabalho, embasando-me no campo da História Social do Trabalho a fim de tecer considerações sobre um debate contemporâneo essencial, em tempos correntes como o nosso de perda dos direitos. Palavras-chave: Gênero, Memórias, Trabalho. Abstract This article analyzes a segment of poor women in the city of Fortaleza, Ceará, specifically in the world of work highlighting these aspects: rural-urban migration, domestic work, industrial work. To realize this analysis through his memories, leaning me about the experience of survival in the city as well as their expectations in search of decent work. For this articu-late two main categories in this debate: gender and work, basing myself in the field of Social History of Labour in order to make considerations about an essential contemporary debate, in current times as our loss of rights. Keywords: Gender, Memory, Work.

1 Graduada em Licenciatura - História, pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Mestre e Douto-

randa pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará (UFC),

[email protected].

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Introdução Quando comecei a coletar os “da-

dos” analisados ao longo desse artigo, imaginava pô-los em tabelas, problemati-zá-los em alguns parágrafos, e tudo esta-ria resolvido. Meu objetivo primeiro sem-pre foi analisar greves e processos de resistência promovidos pelas operárias têxteis da fábrica Santa Cecília, sujeitos do meu estudo durante o mestrado. Pois bem, vieram as entrevistas, e com elas, um relação tão profícua que não podia deixar de pensar no que dizia Paul Thom-pson (1992, p. 43) a respeito da constru-ção da história oral como fonte de pes-quisa: “um historiador que apenas se envolve com uma reminiscência casual coletará informações interessantes, mas desperdiçará a oportunidade de obter evidência crítica para a estrutura do de-bate e da interpretação histórica”.

A esse respeito, como poderia en-tender movimentos de contestação a “ordem do trabalho” aos quais elas esti-veram presentes, perdendo de vista raízes culturais diversas, peculiaridades acerca de suas origens sociais, a trajetória em outros empregos, o modo de conceber o certo e o errado advindos das leis, mas também de costumes trazidos de um passado tão pouco longínquo? Incorreria ao contínuo equívoco dos historiadores de negligenciar a expropriação cotidiana, dando a entender que o espaço campo donde algumas delas provinham estava lá antes que o latifúndio se lhes impuses-se, que a cidade estava lá antes que essas mulheres pobres, em geral mestiças, che-gando aqui, iniciassem o dia de trabalho nas casas das “madames”, e posterior-mente na fábrica têxtil Santa Cecília – como se migração, trabalho doméstico e trabalho industrial fossem uma “coisa” dada?

Percebe-se nesse fenômeno uma ação comum entre elas na cidade capital: vender a força de trabalho, e começaram na função de empregadas domésticas, desenvolvendo uma atividade não produ-

tiva, mas indispensável à reprodução do capital. Afinal, quem limparia a sujeira doméstica quando ninguém o queria fazer? “Rachadores de lenha e tiradores de água!”, em analogia a expressão anali-sada por Peter Linebaugh e Marcus Re-diker (2008) acerca dos mais degradantes ofícios realizados por homens e mulheres nos marcos do capitalismo em ascensão.

Destituídas de qualquer meio de produção, essas trabalhadoras adentram casas e condomínios localizados em regi-ões cujo metro quadrado é de exorbitante valor predial, vivendo relações em que muitas vezes se impõem a não distinção entre tempo livre – tempo de trabalho, vida pessoal – vida da família patronal, “presentes” – remuneração de direito. O objetivo aqui é lançar luz sobre uma “coi-sa” que não está lá, existe uma trajetória massacrante que elas buscam superar, almejando a função de operária na fábri-ca de tecidos imaginando ser melhor, mas que estava longe de sê-lo. Trato aqui, portanto, de um dos membros mais “frágeis” da estrutura demográfica atra-vés de suas memórias e nos marcos da experiência de classe.

Se para Ângela de Castro Gomes (1988, p. 8) os depoimentos podem ofere-cer ao pesquisador a contextualidade das opções tomadas pelos atores sociais dan-do novas “cores” ao perfil de personagens já conhecidos; se fomenta a interação entre a experiência pessoal e o fio histó-rico dos acontecimentos, possibilitando a revisão de dados e interpretações estabe-lecidas - tudo isso acontece sob um diá-logo intenso com um corpo teórico-metodológico articulado.

Para compreender esses aspectos, me foi imprescindível a sensibilidade para com a análise dos depoimentos, paciência no processo de construção de entrevistas - donde a confiança é um aspecto fundamental, e refletir sobre a relação gênero-trabalho, tomando como referência as discussões que vêm sendo

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travadas na história social desde os anos de 1980 no Brasil.

Segundo Ana Paula Vosne Mar-tins (1997, p. 142), as possibilidades de diálogo e a crítica à aproximação entre classe e gênero acontecem à medida que percebemos classe social como processo histórico, com diferenças internas que levam a experiências igualmente diversi-ficadas. Problematizar as diferenças de gênero, e ao mesmo tempo, compreender a luta entre interesses opostos de indiví-duos que reconhecem ter experiências comuns, antecede, e dá natureza política as relações sociais de classe.

Em busca de compreender a espe-cificidade gênero no processo de fazer-se classe dessas mulheres, procurei também entender suas experiências vividas quan-do adentram a fábrica têxtil Santa Cecí-lia, já nos anos de 1980, enfatizando pro-cessos de resistência e luta contra os desmandos patronais na periferia do capitalismo - quando se fortalecia a transferência do polo industrial têxtil para o Estado do Ceará e os incentivos fiscais do Estado, diga-se de passagem, transferência de dinheiro público para os cofres dos industriais.

Como parte disso, a ideia comum entre elas pela escolha do trabalho “me-nos ruim”, e constante busca pelo “me-lhor” são características de uma memória que enxerga o passado em perspectiva, à luz do presente, e que será analisado a seguir.

Você sabe o que é trabalho em casa de família? Tem que ter brasa no seio!

Meu estudo foi antes de eu traba-lhar. Eu só fiz até a quinta série, pa-rece mentira. Vim do interior e na-quela época não é como agora. A au-la era da prefeitura, era escolinha mesmo de prefeitura. Colégio mes-mo, só para os ricos. Lá [Pacatuba]

só tinha um grupo [escolar] porque chamava grupo. A vida no interior era a vida de sacri-fício. Eu estudava, chegava em casa, fazia as minhas obrigações de ajudar a minha mãe, trabalhava em borda-do, aquele de ponto de cruz. De ma-nhã pra meio-dia eu ajudava. Ia pra escola de meio-dia pra tarde, quando eu chegava eu ficava trabalhando com luz de lamparina até dez horas da noite. [Em Fortaleza], nas casas de família que eu trabalhava me prometeram que eu ia estudar. Mas na casa do pessoal, estudar? Eu fui foi traba-lhar. O tempo foi passando, fui tra-balhar e pronto. Hoje eu fico pen-sando, eu deveria ter estudado mais, ter tirado uma brechinha.1

O depoimento de Maria das Dores

Sampaio aponta vários matizes da vida de uma trabalhadora que nasceu na ci-dade de Pacatuba, tão próxima de Forta-leza. Faltava escola, água encanada, energia elétrica. Ainda menina, Dorinha, como gosta de ser chamada, vivia as difi-culdades da vida em uma família de pou-cas posses, com as tarefas domésticas e de costura costumeiramente assumidas pelas mulheres da casa. Dorinha já acor-dava ajudando a mãe, depois é que ia ao grupo escolar. À luz de lamparina ia até dez da noite bordando para ganhar o sustento.

Com o tempo passou a almejar um emprego, e nos anos de 1980 vem para Fortaleza. O primeiro trabalho na cidade foi de empregada doméstica. Teria patrão, patroa, mas nenhum direito tra-balhista. No começo, a promessa de um tempo sobrando para ir à escola; contu-do, a infindável labuta de uma casa de

1 SAMPAIO, Maria das Dores (Dorinha). Entrevis-

ta I [fev. 2012]. Entrevistadora: Jormana Maria P.

Araújo. Fortaleza, 2012. Arquivo mp3 (50 minu-

tos).

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família foi minando suas expectativas. Essa trajetória de Maria das Dores não é algo particular, episódico. É comum a maioria das operárias da fábrica Santa Cecília2 que entrevistei. A mudança para a cidade capital é acompanhada da espe-rança de um futuro melhor, uma sedução se impera, como analisa Rosilene Alvim (1997), mas a mudança quase sempre não significava melhoria de vida.

Muito semelhante é a história de Teresinha Alves. Nascida em Fortaleza, no bairro Montese, ainda menina come-çou a trabalhar como empregada domés-tica. Isto porque com o falecimento do pai, a família (de cinco pessoas) passou a viver apenas com o salário de um irmão que trabalhava na fábrica Santa Cecília; ganho salarial insuficiente para o susten-to de todos. À pedido da mãe, Teresinha, a filha mais velha, teve que começar a se virar para viver:

Fui criada sem pai e sem mãe, meu pai morreu eu tinha seis anos, minha mãe morreu eu tinha dezessete anos. A gente tinha que se virar pra viver. Eu fui pra casa de família, depois não deu certo. Você sabe o que é ca-sa de família, tem que ter brasa no seio. E a gente tem que procurar o melhor. Eu entrei na fábrica em ses-senta e cinco e trabalhei até noventa; noventa eu me aposentei.3 Foi no emprego doméstico onde

Teresinha iniciou sua trajetória de traba-lho. Mas ela não gostava, daí o desabafo 2 Fábrica de fiação, tecelagem e acabamento insta-

lada na cidade de Fortaleza na década de 1940,

componente de grupo empresarial de nome Unitêx-

til, e uma das grandes beneficiárias dos recursos

estatais advindos da SUDENE. Nas décadas de

1980 e 1990 empregava de modo direto, cerca de

2.000 operários. Entre seus acionistas majoritários,

a família empresarial Leite Barbosa/Pinheiro. 3 ALVES, Teresa (Teresinha). Entrevista I e II

[ago. 2009; set. 2012]. Entrevistadora: Jormana

Maria P. Araújo. Fortaleza, 2012. Arquivo mp3

(290 minutos).

ressentido: tem que ter brasa no seio! O dito é impactante. Ainda mocinha, aquele ambiente se tornou insuportável a tal ponto, que ficava aos prantos toda vez que sua mãe insistia que fosse trabalhar. Teresinha rememora que certo dia seu irmão, diante de sua angústia, diria que “naquela casa havia um homem, e ele é que sustentaria a família”. Pouco tempo depois, Raimundo, como se chamava seu irmão, falou com um supervisor da fábri-ca para uma vaga como estagiária auxili-ar de fiação para Teresinha.

Trabalhando desde pequena, Ma-ria Bezerra se lembra do tempo em que acordava de madrugada para a labuta na roça, puxando enxada, lá no interior de Aracoiaba. Ao final dos anos de 1970 migraria para a capital em busca de me-lhores condições após o nascimento da filha:

Eu sou Maria Bezerra Paulo. Nasci e me criei em Aracoiaba, cheguei em Fortaleza no começo de 74, eu tinha 19 anos. Eu vim pra Fortaleza, não para estudar, na verdade, nem meu nome eu sabia fazer quando eu che-guei. Eu me criei na fazenda traba-lhando mesmo, puxando enxada, aquela coisa toda, acordando quatro horas da manhã. E por conta de eu ter engravidado muito cedo, com 19 anos na fazenda onde eu morava, ou você casava, ou então não ficava, en-tendeu. E quando aconteceu, o rapaz foi embora. Quando ele voltou, eu não queria mais casar com ele por conta de que eu entrava por uma porta e ele saía por outra. Isso não era casamento, pra uma menina de 19 anos. Eu pra ficar lá, você sabe que nos anos setenta a coisa era bem crítica em relação à mulher. Então eu resol-vi ir embora. Meu pai ficou com a minha filha lá, pra não sair da terra. Quando eu cheguei aqui, eu fui pra casa de família mesmo. Comecei a

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estudar, e acabei aprendendo a fazer o nome. Depois fui tentar outra coi-sa, uma coisa melhor. Tirei docu-mento, fui pra fábrica de castanha lá no [bairro] Antônio Bezerra. Fui lá, fiz o teste, passei, mas a situação lá era mais ruim do que os têxteis. A vida pra mulher lá era difícil, o chei-ro era muito forte, o cheiro do óleo. O tempo que você passa ali você fica sentindo aquele cheiro, sabe, aquela gastura, aquela coisa enjoenta. Eu acabei ainda passando um ano. Vim pra casa, arranjei outro companhei-ro, engravidei de novo, e tive meu se-gundo filho. Quando meu filho tava com um ano e meio, fui para a Uni-têxtil.4 Na ocasião deste depoimento os

filhos já se encontravam ao lado da ope-rária. O passado, contudo, traz lembran-ças de uma longa e difícil trajetória: o penoso trabalho no campo, a exclusão social em virtude do rompimento dos costumes, a migração forçada e solitária, a preocupação com a família que tirava o sustento da terra. De propriedade do patrão, uma fazenda onde certamente os ganhos eram poucos, e o trabalho peno-so.

Em Fortaleza, o caminho conheci-do: trabalhar na casa dos outros, em casa de família como elas dizem, referindo-se a lembrança do emprego doméstico; a ida à escola, com o intuito de aprender a fazer o nome, e com os olhos postos nu-ma coisa melhor. No caso de Maria Bezer-ra, o primeiro emprego na indústria aconteceu ao lado de centenas de mulhe-res, operárias numa fábrica de castanhas. As terríveis condições de trabalho das mulheres “castanheiras”, a precarização, pode ser aquilatada nesta notícia publi-

4BEZERRA, Maria. Entrevista I [nov. 2011].

Entrevistadora: Jormana Maria P. Araújo. Fortale-

za, 2011. Arquivo mp3 (100 minutos).

cada no jornal O Povo quando da morte de mulheres na Usina Lindoya:

Nada menos de 600 mulheres que trabalhavam na Usina Lindoya Ltda, cuja caldeira explodiu no dia 5 últi-mo matando dez pessoas, foram de-mitidas, e durante a tarde de ontem muitas delas se postaram defronte ao portão da fábrica para receberem suas indenizações.5 Falta de manutenção da caldeira,

exposição das operárias ao perigo, à mor-te, e a usurpação dos direitos dão o retra-to da vida difícil das operárias nas fábri-cas de castanha em Fortaleza. Um cotidi-ano fabril “empestado” pelo cheiro insu-portável de óleo que “dava gastura” e mal-estar constante eram algumas carac-terísticas da indústria de castanhas que empregava centenas de trabalhadoras na produção. A expectativa de “coisa me-lhor” se traduzia em sofrimento cotidia-no.

Como podemos observar, são his-tórias de trabalhadoras que viveram uma vida de muitas agruras – a “gente tinha que se virar pra viver”, parecia uma sina. Vindas de Aracoiaba, Pacatuba, e vários outros lugares do interior do Ceará; eram muito jovens, quase meninas, e saíam de casa sonhando com uma vida melhor, quiçá chegar à escola. “Nem meu nome eu sabia fazer quando cheguei em Fortaleza”, é a lembrança comum a essas experiên-cias de migração forçada pelas circuns-tancias aqui demonstradas. Na cidade grande, lugar onde se vislumbrava uma vida melhor, o que quase sempre lhes reservava na travessia era um minúsculo quartinho de empregada, um cantinho num bairro ao longe, e com alguma sorte podiam até aprender a fazer o nome.

Para Liana Casimiro (1987, p. 29), a segunda metade do século XX no Ceará pode ser caracterizada por um duplo

5 Jornal O Povo,19 de março de 1985.

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processo na história dos pobres: expulsão dos trabalhadores das áreas rurais e in-tensificação da urbanização nas capitais. Em Fortaleza a oferta de postos de traba-lho não cresceria na proporção da cres-cente demanda. O quadro ocupacional era débil, a rotatividade nas ocupações predominava e continuavam muito bai-xos os salários, principalmente nos seto-res industriais têxtil, de vestuário e ali-mentos – os que mais absorviam traba-lhadores na produção.

Ao analisar empregos domésticos durante o ano de 1979 em Fortaleza, a desvalorização, a relação patroa-empregada bem como essa função como típica das mulheres nordestinas pobres, Zaira Ary Farias (1980, p. 135) observa:

No discurso das empregadas domés-ticas, apareceu bem evidente o incô-modo, quase estigma, que sentem por terem que trabalhar na casa dos outros. Há como que, marcadamente, uma dupla estranheza que decorre de sua função ocupacional. É como se dissessem: isto é um trabalho, mas não é um emprego, pois emprego é um trabalho que se executa a troco de remuneração, na esfera pública e não nas casas de família – lugar de consumo, de uso, de quotidiano pri-vado de pessoas integradas por vín-culos de parentesco ou vínculos econômicos (receitas e despesas pos-tas em comum). A “empregada”, atu-almente, mantém um vínculo especi-al – assalariamento – trabalhando nas casas (!), dos outros (!). E, no en-tanto, conforme depoimento de mui-tos de nossos entrevistados (empre-gadas e patroas), as empregadas do-mésticas repudiam esta condição e mesmo o nome de “domésticas”. As funções da empregada domés-

tica numa casa são várias: cozinheira, babá, copeira, arrumadeira, faxineira, entre outras. O serviço estabelecido pode

ser ampliado a cada momento, a depen-der das demandas domésticas que vão surgindo e das alterações de rotina no cotidiano. Face aos abusos e completa ausência de direitos e mínimas garantias trabalhistas, também não há fiscalização. Na atualidade, estes aspectos são alvo de debates, em razão da votação da Emenda Constitucional 66/2012, que garante àquelas empregadas os direitos de qual-quer outro trabalhador.

O estudo de Clóvis Cavalcanti e Renato Duarte (1980, p. 144-5) caracteri-za o emprego doméstico no enquadra-mento de trabalho informal, vista a au-sência de quaisquer vínculos e direitos no âmbito trabalhista:

Atividade especial pela importância que detém e pela forma peculiar e ainda tão primitiva que assume, en-tre os serviços de que uma unidade domiciliar necessita para sua boa administração, é o caso dos serviços prestados por empregados domésti-cos. Serviços que são informais por excelência – em Fortaleza, como, de resto, em quase todo o Brasil -, na medida em que envolve relações de trabalho soltas, imprecisas, sujeitas a arbitrariedades e fundeadas ao largo do esquema que governa a contrata-ção de mão-de-obra, por exemplo, numa fábrica, num banco ou numa repartição pública. Na pesquisa realizada ao longo da

década de 1970, os autores constataram ainda a existência de uma média de 10 empregadas domésticas para cada 28 famílias, acreditando, porém, que esses números fossem bem maiores em virtude da prática de agregação do “filho de cria-ção” ou “afilhada” nestas formas não contratuais de trabalho.

Quanto ao pagamento de salário em dinheiro, são obscuras as informações quanto ao dispêndio em valores mensais à medida que a burla dos direitos pelos

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patrões incluem “gastos” relativos à mo-radia, alimentação e outros “benefícios”. Importa ressaltar que os descontos em função dos ditos “benefícios”, na maior das vezes, diziam respeito aos descontos efetuados das peças de roupa do guarda-roupa da patroa, dos produtos de higiene pessoal e outras compras ordinárias tra-zidas do supermercado. Nada que repre-sentasse dispêndio significativo, ou que implicasse em alteração nas relações interpessoais. A empregada é quase sem-pre vítima de humilhações, exposta às mudanças de humor do patrão e dos seus filhos, tendo que aturar expressões do tipo: “conheça seu lugar!”, a frase mais recorrente na fixação dos papéis e do lugar subalterno da doméstica.

Para os anos de 1980, podemos observar nos dados estatísticos do Siste-ma Nacional de Emprego (SINE) que as trabalhadoras se mantinham no subsetor serviços, em especial no segmento infor-mal da economia: 28,6% da população feminina estava ocupada como emprega-da doméstica.6 Abandonar essa vida e conseguir uma vaga na fábrica passa a ser uma aspiração nas trajetórias aqui examinadas. Para essas mulheres, a espe-rança era o que prevalecia quando alme-javam a carteira assinada, a conquista dos direitos, as leis trabalhistas como promessa de inclusão no trabalho formal.

Lúcia Maria Feitosa quando veio para Fortaleza em busca de trabalho, tinha como objetivo imediato ajudar ma-terialmente no tratamento de saúde da mãe. Também começaria sua vida na cidade como empregada nas “casas de família” e, em seguida, como terceirizada de uma empresa do ramo de limpeza em telefones residenciais. É de se imaginar seu sofrimento num trabalho de atendi-mento a domicílio sem conhecer a cida-de. Quantas vezes terá se perdido em

6 Força de Trabalho Feminina no Município de

Fortaleza: caracterização geral. Fortaleza. SI-

NE/CE, 1985.

ruas estranhas, indo de um lado a outro para tentar achar a casa do próximo cli-ente da lista. Logo iria em busca de outro trabalho.

Em Busca do “Melhor”?

Aos poucos, Lúcia Maria foi des-cobrindo a localização das fábricas, indo até à Mundica Paula (fábrica de confec-ções) e à Santa Cecília, ambas localizadas no bairro Montese, em busca de vaga. Na primeira preencheria ficha; na segunda, aguardaria na porta do Cotonifício, dia após dia uma chance:

Eu morava em Quixadá. Eu vim pra cá com dezesseis anos porque eu precisava ajudar a minha mãe e o meu pai. Naquela época a gente não sabia o que era pressão alta, e tive que trabalhar para ajudar ela porque naquela época as coisas eram muito difíceis no interior. Eu precisava tra-balhar pra comprar os remédios dela. Comecei a trabalhar em casa de fa-mília, o nome da mulher era até Erismar. Quando era no fim de se-mana que eu recebia dinheiro, eu ia deixar no interior pra ajudar meu pai e minha mãe. Depois eu fui trabalhar na Teleceará. Era pra limpar os telefones nos apar-tamentos, e eu não sabia andar aqui [na cidade], eu era do interior, não conhecia as ruas. Trabalhei ainda um ano, fiz a inscrição na Mundica Pau-la só que não me chamaram. Depois eu fui lá na Unitêxtil, e todo dia eu ia lá pra vê se tinha vaga. Lá tinha uma supervisora que teve um mo-mento que ela teve tanta pena de mim, acho que não tinha mais nem calçado de tanto eu ir pra fábrica, ela disse: “mulher, todo dia você vem aqui. Surgiu uma vaga na sala de

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pano cru e o supervisor lá é Zé Ma-ria”. Eu fiquei morta de feliz.7 A dura vida de trabalho começa

muito cedo para os pobres. Falta alimen-to em casa, remédio para aliviar as doen-ças dos mais velhos; sobram necessidades e falta perspectiva. Tudo isto faz com que busquem na cidade grande algum ganho muitas vezes incerto nas “casas de famí-lia”, quando a “esperança” se volta ao horizonte de um emprego que lhes retire da sujeição do trabalho doméstico. Como aquilo não era vida, a fábrica aparecia a elas como uma “salvação”.

Lúcia Maria, assim como vários outras mulheres, faz parte da estatística de migrantes para a capital Fortaleza. Num estudo publicado pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, nos anos de 1960, foi possível detectar que numa amostra de mil habitantes, 827 eram migrantes contra 173, que se afir-mavam naturais de Fortaleza. Dentre os entrevistados, também foram contabili-zadas porcentagens relativas ao sexo. Elas são 61% dos migrantes e justificam que “motivos familiares”8 as fizeram sair da terra natal. É bem possível que te-nham acompanhado marido e/ou famili-ares em busca de trabalho.

Para o caso das operárias têxteis por mim entrevistadas, ao apresentarem sua origem e ocupações anteriores, pude analisar na trajetória de suas vidas a percepção sobre as tarefas executadas, e observar que as imposições da sobrevi-vência muitas vezes empurravam-nas para atividades mais precarizadas e pior remuneradas na cidade grande. Estes

7 FEITOSA, Lúcia Maria. Entrevista I [nov. 2011].

Entrevistadora: Jormana Maria P. Araújo. Fortale-

za, 2011. Arquivo mp3 (85minutos). 8As Migrações para Fortaleza. Governo do Esta-

do do Ceará. Publicação do Departamento de

Imprensa Oficial, da Secretaria de Administração

de Fortaleza, Ceará. Pesquisa encomendada ao

Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais,

1967.

aspectos são imprescindíveis à compre-ensão de suas experiências no mundo do trabalho fabril, o modo como se compor-taram perante as chefias e companheiros de seção, as formas de se moveram num espectro de possibilidades tão reduzidos, mas passíveis de algumas escolhas.

Se muitos dos trabalhos pelos quais passaram essas mulheres em estu-do foram temporários, o mesmo aconte-ceu a vida escolar, em geral, restrito ao tempo da infância. Em Fortaleza, os da-dos relativos ao ano de 1985 apontam que as operárias têxteis (futura ocupação das entrevistadas), entre 25 e 30 anos de idade, possuíam escolaridade média re-duzida ao primário.9 Na década seguinte (anos 1991 e 1995), a situação não se mo-dificava: 34,76% era o percentual de mu-lheres com idade entre 20-29 anos com apenas o ensino fundamental, incomple-to.10 De modo geral, alegavam “proble-mas domésticos e/ou familiares”. 11 Con-tudo, a prematura entrada de mulheres no mercado de trabalho não seria tam-bém um imperativo a baixa escolaridade? Certamente, e é o que vimos entre as operárias têxteis da fábrica Santa Cecília em estudo.

Assim percebo que com formação escolar mínima, as mulheres eram as mais requisitadas pela indústria durante este período: elas ocuparam 20,98% das vagas contra 17,21% de homens em 1991. Mantiveram-se maioria em 1995, 13,53% contra 12,86% para homens. Tal situação confirmava a hipótese do Serviço Nacio-nal da Indústria (SENAI) de que entre os cinco primeiros anos da década de 1990

9SENAI. Relatório da Pesquisa sobre Inovações

Técnicas na Indústria Têxtil. Fortaleza: Depar-

tamento Regional do Ceará, 1987, p. 26. 10

A Mulher no Mercado de Trabalho: perfil

socioeconômico. Fortaleza – Ceará: SINE/CE,

1995. 11

Ibid., p. 29.

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havia uma maior participação da mulher no mercado de trabalho em Fortaleza.12

Contudo, esse estudo não especi-fica os setores da indústria, dificultando uma observação geral das funções ocu-padas pelas mulheres. Todavia, devemos levar em consideração que as operárias que se empregaram na Santa Cecília durante as décadas de 1980 e 1990, de um modo geral, eram parte daquela estatísti-ca.

Aqui, passo a analisar o processo de seleção de mulheres para o ingresso na fábrica, em destaque, a têxtil Santa Cecília. Tal seleção requeria uma série de exames médicos, de gravidez, além da aplicação de testes que “mediam” habili-dade, agilidade; os requisitos próprios da racionalização do trabalho fabril:

Foi lá na Casa Preta que lá você ti-nha todo esse atendimento, psicotéc-nico, pra você testar as habilidades. Lá a gente fazia esses testes e fazia exames médicos, de admissão. Lá era pra todo o Grupo Unitêxtil. Lá den-tro tinha uma casa, ela era pintada de preto mesmo, sabe. Os trabalha-dores apelidaram de Casa Preta. De lá é que você ia, depois de passar por aquele processo, pronto e aprovado, é que você ia lá preencher as fichas, e passar pelos três meses de estágio lá. 13

Ao pesquisar a forma como acon-

teciam as contratações em estabeleci-mentos têxteis em Fortaleza, Elizabeth Fiúza Aragão (1983, p. 135) observou a existência de práticas que privilegiavam candidatos com parentes empregados nas fábricas; não havendo por parte dos empresários, forte preocupação em for- 12

SENAI. Relatório da Pesquisa sobre Inova-

ções Técnicas na Indústria Têxtil. Fortaleza:

Departamento Regional do Ceará, 1987, p. 27. 13

MARIANO, Vera. Entrevista I [nov. 2011].

Entrevistadora: Jormana Maria P. Araújo. Fortale-

za, 2011. Arquivo mp3 (100 minutos).

malizar o recrutamento da força de tra-balho. Na fábrica Santa Cecília, o empre-go do operariado acontecia de ambos os modos.

Para as operárias tudo aquilo era novo. Durante o depoimento de Vera Mariano houve até confusão acerca da nomenclatura dada aos testes, terminan-do por afirmar que na época foi conside-rada apta para trabalhar na seleção de tecidos. Para Maria de Lourdes, quando selecionada para trabalhar na limpeza dos escritórios da fábrica, aos quarenta e cinco anos, a surpresa aconteceu quando lhe foi exigido teste de gravidez!14

Segundo o SENAI, vários eram os requisitos adotados pela indústria têxtil cearense no processo de recrutamento: “o caráter físico e mental da mulher, descar-tando quaisquer características sociais – como capacidade de liderança, flexibili-dade e poder de decisão”; privilegiando-se adequação física baseada na estatura, resistência física e habilidade manual; coordenação motora, concentração, paci-ência, calma,15e não estar grávida. Com estas características o Serviço Nacional da Indústria considerava-as aptas ao trabalho fabril têxtil. Experiência e co-nhecimentos anteriores são descartados.

A apreciação de tais requisitos também foi observada quando da seleção de Vera Lúcia. Ela lembra que ao buscar emprego na Santa Cecília, mesmo com a indicação de um antigo chefe da fábrica Santa Teresa, unidade industrial perten-cente ao mesmo empresário, não foi libe-rada dos testes: “quando eu quis ir, liguei para o Seu Jarbas, ele me chamou, eu fiz os exames e entrei. [Eram] exames médi-cos, de ouvido, de audição para saber se

14

PEREIRA, Maria de Lourdes. Entrevista I [jan.

2013]. Entrevistadora: Jormana Maria P. Araújo.

Fortaleza, 2013. Arquivo mp3 (50 minutos). 15

SENAI, op. cit., p. 27.

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você tem problema no ouvido, dentário. E teste de gravidez.”16

Após alguns anos de trabalho nu-ma fábrica têxtil, era importante para os chefes da Santa Cecília a confirmação de boas condições de saúde, notadamente relativos aos sentidos da visão e audição, e ao estado geral dos pulmões, pois sabi-am os patrões do grau de insalubridade no ambiente fabril e do quão rapidamen-te os trabalhadores eram acometidos pelas doenças do trabalho: surdez, pro-blemas de vista, doenças respiratórias, tuberculose, entre outras. Através de “exames admissionais” ou de testes prá-ticos, podemos observar que as operárias são sempre esquadrinhadas durante o ingresso na fábrica. Os critérios são mui-to difusos, ao contrário do que ocorria noutra fábrica de tecidos também locali-zada em Fortaleza, de nome Finobrasa, que visava atender aos aspectos da or-dem do capital, como a exigência da altu-ra para o trabalhador se ajustar à enge-nharia da máquina, como bem analisa Francisco Alexandre Gomes (2012).

Analisando essas trajetórias de vi-da, cujas idas e vindas, visam suscitar a percepção do mundo do trabalho de mo-do processual, o foco se volta para os sujeitos em perspectiva, e não apenas para situações de intenso conflito de classe (a greve também não é um dado!). Foi partindo dessas mulheres pobres na capital Fortaleza, uma vez selecionadas e por mim entrevistadas - cujo critério inicial foi a ansiedade em conhecer o trabalho fabril feminino na fábrica Santa Cecília, e a sorte de estar no sindicato no momento em que aparecia a operária Teresinha Alves Bezerra para uma recla-mação trabalhista de um período anteri-or, que passei a construir uma rede de pessoas dispostas a falar sobre o passado, voltado eminentemente para o trabalho,

16

MENDES, Vera Lúcia. Entrevista I [nov. 2009].

Entrevistadora: Jormana Maria P. Araújo. Fortale-

za, 2009. Arquivo mp3 (90 minutos).

mas que não se reduzia a simples quatro paredes.

Do horizonte fabril tive a oportu-nidade de visualizar um processo que se desencadeou num tempo um pouco mais recuado: e como foi antes de entrar na fábrica? A pergunta nem veio na primeira entrevista, mas o “conteúdo processual” se tornou tão comum nos depoimentos que se seguiram, logo se deu a perceber. Tratava-se de um encadeamento de pala-vras que pareciam fugir do meu foco (trabalho), mas que ao fim percebi sua interligação a ele, pois lançava luz para o elemento humanidade que por vezes esquecemo-nos, daí, as expectativas pes-soais, a percepção de dignidade, as rela-ções familiares e de amizade, em tempos que exigiam o desprendimento da terra, do lugar, rumo à capital, e vale destacar, nem eram tempos de seca!

Conclusão

Através das memórias das operá-rias da fábrica Santa Cecília, passado e presente se entrecruzam, tecendo consi-derações sobre uma difícil e penosa traje-tória de vida. Como foi possível observar, ao almejarem melhores condições de vida na cidade, essas mulheres encontraram nos empregos doméstico e fabril, meios de sobrevivência. Trabalhos que num caso ou noutro eram bastante precariza-dos, pouco valorizados socialmente, mas imprescindíveis à reprodução do capital.

Pode-se perceber também que num universo tão restrito de possibilida-des, a palavra de ordem entre elas era “buscar o melhor”, o que possibilita in-terpretar a existência alguma margem de seleção da parte delas, tornando-se inte-grantes de uma classe trabalhadora hete-rogênea, componentes de uma grande fábrica de tecidos na capital, cuja resis-tência deve também ser compreendida, ainda que não de modo determinado, através dessa trajetória de vida. Aqui também, o pontapé inicial para o enten-dimento da resistência ao trabalho que

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impactava ditando novas noções de tem-po, disciplina, rotina, e esforço repetitivo a renegar todo conhecimento e modos de vida adquirido anteriormente.

Na dissertação de título: “Tecendo Memórias: resistência e luta das operá-rias têxteis da fábrica Santa Cecília (1999-1992)”, eu, Jormana Araújo (2013) analiso a documentação sindical do perí-odo, e logo me chamou atenção a presen-ça de mulheres com reivindicações de classe e de gênero. Entre as integrantes: Maria Bezerra Paulo, Vera Mariano (aqui citadas) e várias outras operárias perten-centes às demais fábricas de tecidos loca-lizadas em Fortaleza. Daqui, a criação da Secretaria de Assuntos da Mulher, de seminários, de diálogo com operárias que não estavam no sindicato e com outras categorias onde a presença feminina era marcante.

No mundo sindical ou no chão da fábrica, aquelas mulheres viviam os me-andros da luta de classes, às vezes de forma direta, em confrontos abertos co-mo costumamos ver nas greves, às vezes nas “negociações miúdas” com seus che-fes; cujos processos de resistência eram alimentados ora pelo medo de perder o pouco conquistado, ora pela necessidade de continuar sobrevivendo. Os estudos realizados por James Scott (2013) são bastante elucidativos para compreen-dermos a ação dos dominados, uma vez que para ele a resistência tem origem não apenas na apropriação material, embora ela tenha destaque, mas também nos mecanismos de humilhação pessoal que caracterizam essa exploração. Compre-ender as negociações e as greves lá adi-ante, requerem o entendimento de que a própria resistência é também produto de um acúmulo de humilhações, de expecta-tivas minadas, e de uma série embates que retiram do (a) trabalhador (a) a min-guada dignidade ainda nele (a) existente.

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O MITO DA FÊNIX E A ESCRAVIDÃO: Reflexões historiográficas acerca do

trabalho escravo contemporâneo no Brasil*

Fagno da Silva Soares1 Júlio César Suzuki2

Resumo O presente artigo está arquitetado em duas seções, a primeira pretende esquadrinhar detidamente os conceitos de trabalho escravo contemporâ-neo à baila da recente historiografia. Compreendemos, pois, que as dispu-tas conceituais em torno da temática da escravidão contemporânea no Brasil refletem a sua relevância social e acadêmica. Deste modo, objeti-vando a ampliação do instrumental teórico e aprofundamento dos estu-dos e reflexões futuros acerca deste tema. Palavras-chave: trabalho; escravidão; experiência vivida. Abstract This article is architected into two sections, the first intends to closely scrutinize the concepts of modern-day slavery to the fore in recent histo-riography. We understand therefore that the conceptual disputes around the theme of contemporary slavery in Brazil reflect their social and aca-demic relevance. Thus the aim of expanding the theoretical tool and deepening of future studies and reflections on this subject. Keywords: work; slavery; lived experience.

* Este artigo é resultado das pesquisas desenvolvidas durante o mestrado em História do Brasil pela

UFPI e o doutorado em Geografia Humana na USP. A arquitetura e escrita deste texto contou com a

inestimável colaboração de Adonia Antunes Prado e Edna Galvão do Núcleo de Políticas Públicas em

Direitos Humanos NEPP-DH do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo GPTEC-UFRJ. 1 Doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo-USP, mestre e especialista em

História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí-UFPI, professor de história do Instituto Federal

de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão-IFMA/Campus Açailândia. Líder do CLIO & MNE-

MÓSINE Centro de Estudos e Pesquisa em História Oral e Memória-IFMA. Pesquisador do Núcleo de

Estudos em História Oral NEHO/USP e Grupo Trabalho Escravo Contemporâneo GPTEC/UFRJ. E-

mail: [email protected] 2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana do Departamento de Geografia da

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo FFLCH-USP. Dou-

tor e mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo-USP. Pós-doutor em Geografia pe-

la Universidade de Paris I/Panthéon-Sorbonne, Université de Rennes II e Université de Pau et dês Pays

de l'Adour, França. [email protected]

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Pássaro sagrado, cujo nome é fênix. Eu mesmo nunca o vi, apenas figuras dele. O pássaro raramente vem ao Egito, uma vez a cada cinco séculos, como diz o povo de Heliópolis. É dito que a fénix vem [...] É parecido com uma águia em sua forma e tamanho. O que dizem que este pássaro é capaz de fazer é incrível para mim.

Heródoto de Halicarnasso, 1985, p. 273

Introdução Heródoto descreve com grande

encanto um pássaro mitológico de prová-vel origem egípcia, o qual se espalhou por outras civilizações, chegando até nós com o nome grego de phoenix, batizado pelo próprio historiador, símbolo da esperança que nunca morre, é representado pelo sol que renasce todos os dias ao morrer no final da tarde. Segundo a mitologia seu canto era melodioso, porém melancólico, capaz de conduzir à morte outros ani-mais, dada a sua formosura no canto e nas plumas. Reza o mito que depois de completos seus 500 anos, a ave mítica volta ao local de nascimento para cons-truir uma pira funerária de mirra e reali-zar o seu ritual fúnebre, deixando-se con-sumir pelo fogo para depois renascer das cinzas. A simbologia da fênix reside, mormente, na circularidade do tempo, e, sobretudo, no processo de renovação da vida, visto que, da sua morte, renasce para a vida.

Temos agora Fênix, o pássaro de fogo, símbolo do renascimento e da per-petuação. Utilizamos o mito da fênix aqui em analogia à capacidade de ressurgi-mento em vários momentos da história da escravidão com diferentes denomina-ções, especialmente para explicar no transcurso da seção, a polissemia da ex-pressão escravização contemporânea e sua gênese.

Gênese do trabalho escravo contem-porâneo no Brasil

As primeiras denúncias foram fei-tas nos anos 70 do século passado por

Dom Pedro Casaldáliga, bispo católico e defensor dos direitos humanos na Ama-zônia brasileira. Foi a partir de um caso denunciado pela Comissão Pastoral da Terra em 1978, envolvendo uma proprie-dade da Volkswagen, no Sul do Pará, que a temática ganhou repercussão mundial e o número de denúncias cresceu expo-nencialmente. Nos termos do historiador José Carlos Aragão, esse fato representou “ [...] um marco na denúncia e na luta contra a exploração e escravidão de ín-dios, posseiros e peões nas Amazônias. A carta pastoral de Casaldáliga, publicada em 10 de outubro de 1971 [...]” (SILVA, 2009, p. 65) intitulada, Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social mantém-se “ [...] atualizada com os problemas agrários do Brasil e da região Amazônica”, (SILVA, 2009, p. 65) mesmo pouco mais de 40 anos depois de sua publicação da Prela-zia de São Félix do Araguaia no nordeste do Estado de Mato Grosso para o mundo. Este foi, portanto, o primeiro documento oficial denunciando o processo de escra-vização contemporânea no Brasil, o que lhe rendeu duras críticas desde os setores mais conservadores da Igreja Católica até ameaças de morte vindas de alguns lati-fundiários da região.

Destacamos aqui a fundamental contribuição no campo teórico das refle-xões produzidas por estudiosos como os antropólogos Neide Esterci e Alfredo Wagner e, sobretudo, os escritos valiosos do sociólogo José de Souza Martins, que esteve junto a Comissão Pastoral da Ter-ra – CPT, intentado a desvelar a temática apesar de sua complexidade. Enfatizamos ainda, a atuação não menos conspícua do Padre Antônio Canuto, a criação da CPT, a militância teórica e prática do Padre Ricardo Rezende, respectivamente.

Cavaleiro andante, em sua bicicleta, veículo usado para o seu trabalho, peregrinava pelos ermos do nordeste mato-grossense, tomando conheci-

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mento desta realidade, registrando e denunciando as ocorrências e ampa-rando as vítimas ou, em casos extre-mos, dando-lhes um enterro mais adequado à condição de pessoa hu-mana [...] Em 1975 foi criada a Co-missão Pastoral da Terra, entidade ligada à CNBB, com a finalidade de atuar junto aos trabalhadores rurais, assessorando-os e principalmente denunciando as violências de que eram vítimas na disputa pela posse da terra. [...] Em 1977, chegou à Dio-cese de Conceição do Araguaia, Sul do Pará, o Padre Ricardo Rezende Figueira, que logo se integrou a CPT, Regional Araguaia-Tocantins e en-tregou-se a ação pastoral junto aos trabalhadores rurais. Viu de perto a situação dos peões das fazendas do Sul do Pará e as denunciou ao Esta-do brasileiro e a organismos interna-cionais, não se atemorizando ante as ameaças, calúnias e difamações constantes de que era vítima, a exemplo de Dom Pedro Casaldáliga. Também foi responsável pela cons-trução de ponte entre a CPT, entida-des e grupos da sociedade, Estado, entidades e organismos internacio-nais na busca por Justiça e erradica-ção do trabalho escravo. (MORAES, 2011, p. 10) Neste contexto, consideramos re-

levante a denúncia realizada pelo padre Ricardo Rezende, em 1992 à Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas - ONU e na Organização Internacional do Trabalho - OIT bem como, o apoio de instituições como a estadunidense American Human Rights Watch e da britânica Anti-Slavery que ajudaram a visibilizar internacionalmente o fenômeno da escravização contempo-rânea que ocorre no Brasil. Inúmeras denúncias foram realizadas neste período junto à Comissão Interamericana de Di-reitos Humanos da Organização dos Es-

tados Americanos - OEA. E como fruto destas frentes de atuação, o governo bra-sileiro reconheceu a existência em seu território desta prática, sendo, portanto seu dever erradicá-la.

Desde então, a escravidão con-temporânea tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores atingindo largo poder de alcance e visibilidade na socie-dade brasileira. Para discutir criticamen-te a temática durante a realização desta pesquisa e ao longo de toda dissertação, tratamos as proposições de antropólogos, sociólogos, juristas, jornalistas, historia-dores e especialistas da área.

Porém, tal prática aviltante de ex-ploração já havia sido descrita como sis-tema de aviamento no início do século XIX pelos escritos de Cunha e comparada ao mitológico trabalho de Sísifo, ao descre-ver em tom quase poético, a situação dos seringueiros na Amazônia

E vê-se completamente só na faina dolorosa. A exploração da seringa, neste ponto pior que a do caucho, impõe o isolamento [...] Nesta em-presa de Sísifo a rolar, em vez de um bloco, o seu próprio corpo – partin-do, chegando e partindo – nas voltas constritoras de um círculo demonía-co, no seu eterno giro de encarcerado numa prisão sem muros, agravada por um ofício rudimentar que ele aprende em uma hora para exercê-lo toda a vida, automati-camente, por simples movimentos re-flexos se não o atrofia todas as espe-ranças, e as ilusões ingênuas, e a to-nificante alacridade que o arrebata-ram àquele lance, à ventura, em bus-ca de fortuna. (CUNHA, 1994, p. 59) Para os historiadores Vitale Joa-

noni e Leonice Aparecida (2011, p. 276), estudiosos da temática, “o passado es-cravista do Brasil tem sido utilizado por alguns como argumento para explicar o fenômeno atual, por outros para negá-lo,

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em ambos os casos equivocadamente”. Mesmo durante o período que vigorou a escravidão negra no Brasil, houve regis-tros históricos que comprovam a presen-ça de trabalhadores imigrantes europeus juridicamente livres, sendo ‘escravizados’ em fazendas no sul e sudeste do país, a exemplo do que ocorria na Fazenda Ibi-caba, de propriedade do Sr. Nicolau Pe-reira de Campos Vergueiro, então Sena-dor Vergueiro, que através de sua com-panhia de comércio, recrutava os imi-grantes suíços e alemães para o trabalho na lavoura do café, estes por sua vez ti-nham a duras penas de saldar suas dívi-das, como não conseguiam tornavam-se cativos por dívida. Tinham, portanto, hipotecado a sua própria vida, seu futuro e de sua família (ESTERCI, 1999, p. 104). Assim, podemos constatar que mesmo depois de 1888, passou a vigorar em dife-rentes regiões e sob múltiplas facetas, práticas coercitivas de trabalho no Brasil, como a anteriormente descrita, que po-demos classificá-la como colonato,1 que logo se degenerou em servidão por dívida chegando até nós, que neste estudo con-vencionou-se chamar de trabalho escravo contemporâneo por nós renomeado de escravização contemporânea.

Em 1856, a Fazenda Ibicaba foi palco de uma crise sem precedecentes que culminou na chamada Revolta dos Parceiros, um levante capitaneado pelo colono suíço Thomaz Davatz contra a insatisfação dos imigrantes europeus aprisionados na maior produção de café da época, fazendo chegar às autoridades europeias a real situação de parte dos colonos que vieram para o Brasil. Desta experiência, Davatz (1980) escreveu o livro Memórias de um colono no Brasil 1 Prática comum desde o medievo europeu, que

consistia no trabalho gratuito do servo durante

alguns dias da semana ao senhor feudal, chegando

ao Brasil rural do século XXI, com o arrendamento

de porção de terra pelo colono, neste caso meeiro,

por destinar metade da produção obtida ao proprie-

tário da terra.

1850, descrevendo suas memórias indivi-duais e coletivas, que ajuda-nos compre-ender com clareza este período da histó-ria do Brasil.

Tendo sido extinta a escravidão no Brasil em 1888, ao menos no âmbito jurí-dico, como nomear tal fenômeno? Para-doxalmente, são justamente os juristas os primeiros a optarem pela expressão, tra-balho análogo à escravidão ou trabalho escravo, com vistas à visibilidade social desta prática e, portanto, a sensibilidade da sociedade para o não abrandamento da aplicação da lei junto aos que a prati-cam.2

Por um outro conceito de trabalho escravo contemporâneo

A Organização Internacional do Trabalho3 utiliza o termo ‘trabalho escra-vo’ para designar a atividade forçada que resulta da soma do trabalho degradante com a privação de liberdade. Segundo estatística da OIT em 2010, há pelo me-nos 21 milhões de pessoas no mundo nestas condições. Em suas publicações, vem utilizando, ainda, a expressão traba-lho forçado para classificar o ato no qual alguém desrespeita os direitos do traba-lhador, atingindo sua integridade física e moral, sua dignidade e o seu direito à liberdade e auto-gestão.

Sabe-se que o processo de escravi-zação contemporânea é um fenômeno mundial e se constitui como uma ativi-dade laboral degradante que envolve cerceamento da liberdade, por meio de uma dívida, aliado a péssimas condições 2 Ver, JESUS, J. G. ‘A cabeça do libertador’. In.:

FIGUEIRA, Ricardo Rezende& PRADO, A.A.

[Orgs] Olhares sobre a escravidão contemporâ-

nea: novas contribuições críticas. Cuiabá: Editora

da Universidade Federal do Mato Grosso, 2011.

pp. 153-169. 3 A Organização Internacional do Trabalho – OIT

criada em 1919 é uma agência especializada em

questões relacionadas ao trabalho no mundo, liga-

da à Organização das Nações Unidas- ONU. Órgão

responsável por grande parte das publicações

quantitativas sobre trabalho no mundo.

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de trabalho, alojamento, saneamento, alimentação e saúde, além do uso da violência. É uma atividade laboral em que o empregado é submetido a situações subumanas por seu empregador; e onde são violados os direitos trabalhistas e a dignidade da pessoa humana desde a deformação de consentimento, quando da celebração do vínculo laboral, até a restrição total da liberdade de ir e vir. O trabalhador é obrigado a prestar um ser-viço sem receber pagamento ou, quando recebe, trata-se de um valor insuficiente para suas necessidades básicas. Ademais, a escravização contemporânea se confi-gura para além de relações ignominiosas, são práticas ilegais de trabalho, não se limitando ao aspecto jurídico, mas a uma afronta aos direitos humanos.

No Brasil, o processo de escraviza-ção contemporânea se dá nos campos e cidades, em carvoarias e garimpos e em fazendas e indústrias. Na Amazônia bra-sileira é comum a prática no desmata-mento e na atividade conhecida como roço de juquira.4 Seguindo os passos de Ricardo Rezende, uma das maiores auto-ridades sobre a temática, podemos asser-tivar que a principal característica da escravização contemporânea é a dívida,5 além de alojamentos precários, péssima alimentação, falta de assistência médica e saneamento básico, maus tratos e vio-lência, jornada exaustiva, isolamento geográfico, retenção de documentos e salários, ameaças físicas e psicológicas, privação da liberdade e usurpação da dignidade. Em seu livro lançado durante a Eco92, Rio Maria Canto da Terra, o au-tor denomina-o como uma espécie de diário da violência e da resistência,6 a par-

4 Técnica rudimentar de abertura de um dado cam-

po para a expansão da pastagem destinada à cria-

ção bovina. 5 Ver, FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora

da própria sombra. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2004. 6 Para mais informações, ver FIGUEIRA, Ricardo

Rezende. Rio Maria. Canto da terra. 2.ed. Rio de

tir de seus olhos, traduzido em relatos e fotos que para nós equivalem há uma espécie de réquiem, termo que significa ‘dai-lhes o repouso eterno’, ou seja, prece fúnebre entoada para homenagear os mortos e ao mesmo tempo um canto para por fim as mortes pela disputa de terra na Amazônia brasileira.

A expressão ‘trabalho escravo con-temporâneo’ é polissêmica, a grosso mo-do, é capaz de abrigar um sem-número de situações, numa espécie de conceito guarda-chuva. Somente em 1995, o Brasil reconheceu oficialmente junto à Organi-zação Internacional do Trabalho a exis-tência de trabalho escravo em seu territó-rio criando assim, as primeiras estruturas para o seu combate como: Grupo Execu-tivo de Repressão ao Trabalho Forçado – GERTRAF, o Grupo Especial de Fiscaliza-ção Móvel - GEFM com o intuito de res-gatar os trabalhadores escravizados. Desde então, tem havido uma disputa pela nomenclatura mais adequada, so-bretudo, durante a elaboração dos Planos Nacionais para Erradicação do Trabalho Escravo de 2003 e 2008, sendo que duran-te o primeiro foi criado como estratégia de combate e prevenção ao trabalho es-cravizante, a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo – CO-NATRAE, órgão colegiado, destinado a integrar representantes dos trabalhado-res, governo e sociedade civil organizada para monitorar as ações previstas pelo Plano Nacional que vão desde acompa-nhamento de projetos de lei no Congres-so até a implementação destes junto à sociedade.

Categorias são conceptualizadas sob a égide dos que defendem, assim como nós, expressões capazes de dar a ver o fenômeno em sua face mais vil. Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. O texto da

orelha do livro escrito por Frei Beto é deveras

contundente traz como título um salmo em forma

de livro classificando a obra como uma crônica das

mortes anunciadas, aqui diremos – almas da terra –

em disputas fundiárias no Estado do Pará.

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Para Bhavna Sharma (2008, p. 40), repre-sentante da OIT, “a servidão ou escravi-dão por dívida é a forma mais comum de escravidão contemporânea”, o que torna a expressão escravidão por dívida, em certa medida, apropriada, sobretudo, ao caso brasileiro. É de domínio público que nenhuma ciência é neutra, tampouco seriam os conceitos por ela criados. As-sim, estamos mais uma vez convencidos, da validade da assertiva de Koselleck (2006, p. 52) ao nos alertar que todo con-ceito é portador de signos porosos que ganham e perdem fragmentos lexicais, sintáxicos e semânticos condicionadas a sua historicidade, não diferentes poderi-am ser os conceitos trabalho e trabalho escravo, eleitos em nosso estudo.

Optamos aqui, pela expressão por nós forjada, ‘escravização contemporâ-nea’ por acreditar que esta se enquadra bem ao caso brasileiro, justificando as-sim, a utilização mais próxima do antro-pólogo Ricardo Rezende Figueira, na tese, Pisando Fora da Própria Sombra, obra de capital importância para compreender a dívida e a impunidade como causas e meio desse tipo de escravidão, além das frequentes ameaças do escravizador para manter os trabalhadores cativos sob a alegação que os mesmos devem saldar suas dívidas para livrarem-se do trabalho, o que geralmente nunca acontece, visto que os produtos vendidos são sempre superfaturados, o trabalhador gasta mais do que recebe como salário, quando re-cebe, e vê-se então forçado a continuar trabalhando cada vez mais sem nunca quitar sua dívida num cercle vicieux como no trabalho de Sísifo. Atentaremos, por-tanto, à enfática corroboração de Rezen-de acerca das diferentes denominações para a categoria escravização contempo-rânea,

Como não se trata exatamente da modalidade de escravidão que havia na Antiguidade greco-romana, ou da escravidão moderna de povos africa-

nos nas Américas, em geral, o termo escravidão veio acrescido de alguma complementação: ‘semi’; ‘branca’, ‘contemporânea’, ‘por dívida’, ou, nomeio jurídico e governamental, com certa regularidade se utilizou o termo ’análoga’, que é a forma como o artigo 149 do Código Penal Brasi-leiro - CPB designa a relação. Tam-bém têm sido utilizadas outras cate-gorias para designar o mesmo fenô-meno, como “trabalho forçado”, que é uma categoria mais ampla e envol-ve diversas modalidades de trabalhos involuntários, inclusive o escravo. (FIGUEIRA, 2004, pp. 34-35) Justificamos reiteradamente, a ex-

pressão aqui adotada, escravização con-temporânea, como forma plausível não de relacionar à escravidão clássica, moderna e no caso brasileiro à época colonial e impe-rial, apesar das similitudes, estas não são objeto de nossa análise, embora indubita-velmente, ao tratar de qualquer tipo de escravidão remontamos aos tempos anti-gos, dadas as suas idiossincrasias. Deste modo, não há motivos para desassociá-los, uma vez que os diferentes tipos de escra-vismos praticados no passado ajuda-nos a compreendê-lo na contemporaneidade. Sabemos pois, que ao escolher qualquer vocábulo, pressupõe a relação com seu ‘uso político’.7 Neste sentido, para Angela de Castro Gomes defende que mas da bus-ca pela compreensão dos fenômenos soci-ais que “tem o poder de interpretar a rea-lidade social, desencadeando políticas pú-blicas, não só pela via da criminalização dos culpados, mas da garantia de direitos aos explorados.8 Logo não haverá consenso na conceituação, traz a tona desdobramen- 7 A esse respeito, ver GOMES, Angela de Castro.

Trabalho análogo a de escravo: construindo um

problema. In: História oral: Revista da Associa-

ção Brasileira de História Oral, v.11, n.1-2,

jan/dez. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de

História Oral, 2008, p.13. 8 Ibid., p.17.

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tos sócio-políticos conflitantes. A historia-dora também defende a necessidade de contruirmos um problema para análise historiográfica visando o reconhecimento da existência desta prática no Brasil, e não classifica como encerrado esse debate.

Para a antropológa Neide Esterci (1999, p. 121), a “ [...] ‘escravidão’ tem, entre nós, o poder simbólico de denunci-ar a redução de pessoas a coisas, objetos de troca, a mercadoria – vem associado a expressões como ‘compra’, ‘venda’, ‘pre-ço por lote’, ‘por cabeça’ [...]”. Neste sen-tido, necessitamos avançar ainda mais no debate para assim desvelar tal prática gerando visibilidade social e instrumen-talização jurídicas para enfrentá-la. A-demais, é preciso segundo Ricardo Re-zende, Adonia Prado e Horácio Júnior (2011, p. 22) “imprimir-lhe o caráter e a legitimidade científica necessária”, para conferir ao status de ciência e assim con-sidar enquanto objeto de reflexão da academia, que durantes anos oscracizou o tema do trabalho escravo contemporâ-neo.

Vale ressaltar que ao utilizarmos a expressão trabalho escravo contemporâ-neo objetivamos “acionar o potencial explicativo e mobilizador, que permite uma rápida apreensão de um fenômeno novo”. (GOMES, 2008, p. 38) Ainda nestes termos, trabalho análogo a de escravo surge “ [...] como uma metáfora, que ela chama os trabalhadores de ‘escravos’, justamente para dizer que eles não o são, e que é intolerável a existência de escra-vos e de escravidões de quaisquer tipos”. (GOMES, 2008, p. 39).

Afirmar que os antigos defensores da abolição sejam hoje, os reiventores do escravo contemporâneo, constitiui-se no mínimo em um erro crasso,9 pois, os que 9 A expressão designa um erro grosseiro e tem sua

origem na Antiguidade, mais precisamente durante

o Primeiro Triunvirato, na Batalha de Carras,

travada em 53 a.C. na disputa entre o Império

Parta e a República Romana, o general Marco

Licínio Crasso comandou 50 mil soldados de sete

advogam o atual fenômeno como origi-nário dos idos tempos do Império no Brasil, também o fazem no sentido de gerar mais do que discussões teóricas, visibilidade social e jurídica com vistas ao seu enfrentamento. Conforme destacado alhures, o autor enfatiza que do ponto de vista jurídico, há uma bifurcação de sen-tidos para o significado atual de escravos, sendo uma jurídica e a outra cultural. Assim para ele

não há escravos no Brasil porque a categoria não existe nem legalmente, nem no costume, portanto, nem no sentido histórico dessas dimensões. Poder-se-ia contra- argumentar que a categoria foi reinventada historica-mente e hoje, então, existe sim. Claro que categorias não são definíveis uma única vez e não devem permane-cer sem alteração infinitamente. Evi-dentemente, esse contra-argumento é legítimo e pertinente. (PAIVA, 2005, p. 17). Devemos concordar com o autor,

de que não existem escravos como havia no passado, visto que, a escravização por dívida hoje, difere dos moldes de outrora, por conseguinte, o conceito que temos de escravidão já não é o bastante para di-mensioná-lo. Portanto, é preciso compre-ender que o adjetivo contemporâneo que utilizamos para o atual fenônemo da escravização serve inclusive para distin-gui-la da praticada, quer seja na antigui-dade ou do século XVI ao XIX. Deste mo-do, pretendemos em estudos futuros forjar uma categoria historicamente mais apropriada ao fenômeno e que opere com mais fluidez e sirva a outros estudiosos, legiões, apesar da superioridade numérica de suas

tropas e, sucumbiu frente aos adversários que

mesmo em menor número sobressaíram-se em

virtude de seu preparo tático e militar. A escolha

de Crasso, portanto, constituiu-se num grande erro

estratégico que custou a vida de milhares de solda-

dos inclusive a sua.

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sobretudo os da história, o que não signi-fica afirmarmos que a expressão adotada neste estudo seja indevida ou como mui-tos podem pensar, anacrônica. Noutros termos, podemos dizer que tudo o que convenciou-se chamar de escravidão ou mesmo escravo, não o seja. Afinal, estar escravo, não significa ser escravo, e sim escravizado. Doravante, substituiremos os termos escravos e escravidão por es-cravizados e escravização, por entender-mos que são menos problemáticos à nos-sa orientação historiográfica, ainda que não sejam os mais adequados.

Assim, desnudos que quaisquer anacronismos ou mesmo maniqueísmo podemos ratificar, que as reflexões cons-truídas ao longo da pesquisa nos foram muito caras. Reconhecemos ainda que há parcialidade em qualquer estudo históri-co, no entanto evitamos definições redu-cionistas e visões militantes que obscure-ceriam o nosso propósito de analisarmos detidamente a escravização contemporâ-nea e, portanto, historicizá-la.

Entendemos que, os que utilizam a expressão trabalho escravo contempo-râneo o fazem auspiciosamente por indi-car a condição do trabalho que é escravo e não como adjetivo ao trabalho muito menos ao trabalhador, os conceitos não são construções perenes, pelo contrário sofrem transformações ao longo do tem-po e espaço até que seja mais consensual e consolide-se. Em entrevista realizada no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas CPDOC/FGV, com a auditora fiscal Ruth Vilela afirma de modo nada hermético que o conceito trabajo forçoso utilizado da Organização Internacional do Trabalho OIT é um tan-to generalista paradesvelar as idiocrin-crasias idenficadas em nosso país. Por-tanto, trabalho forçado é uma expressão incapaz de catalisar a real significação do fenônemo a que se pretende nominar. (VILELA, 2006, p. 33).

Logo, para os especialistas jurídi-cos e técnicos da CPT não é aplicável ao caso brasileiro, assim, a expressão o tra-balho análogo a de escravo, parece ser mais aplicável, embora juridicamente apresente imprecisões. Assim, a expres-são trabalho escravo contemporâneo foi ganhando força até a OIT reconhecer a expressão para o caso brasileiro. (VILELA, 2006, p. 34).

A OIT estabelece a relação entre trabalho forçado e trabalho escravo, sen-do que o segundo diferente do primeiro pelo cerceamento da liberdade dos traba-lhadores. Porém, as duas expressões são sistematicamente utilizadas pela institui-ção, sendo o trabalho forçado um concei-to mais generalista e empregado para indicar quaisquer práticas de trabalho degradante em diferentes lugares do mundo, permitindo especificações como no caso brasileiro, reconhecidamente com a escravidão contemporânea.

Com efeito, o Código Penal brasi-leiro de 11 de dezembro de 2003, através da Lei 10.803/2003, em seu art. 149 esta-belece que

Art. 149 - Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer subme-tendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou pre-posto: Pena - reclusão, de 2 [dois] a 8 [oito] anos, e multa, além da pena corres-pondente à violência. § 1º Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de tra-balho; II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do

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trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I - contra criança ou adolescente; II - por motivo de preconceito de ra-ça, cor, etnia, religião ou origem. Em linhas gerais, a nova legislação

atendeu aos interessados no enfrenta-mento da prática no Brasil, visto que a mesma favoreceu a criação de políticas públicas de caráter punitivo e combativo, sobretudo a partir de 2002, quando a OIT e o governo brasileiro firmaram o projeto de cooperação técnica, denominado de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil, que resultaram a posteriori na publicação de dois planos nacionais para erradicação do trabalho escravo no Brasil. Neste ín-terim mais precisamente em novem-bro de 2003, foi instituída a lista su-ja.10

Na obra Escravos da Desigualdade, a pesquisadora Neide Esterci (1994, p. 44) a escravidão contemporânea é “uma ca-tegoria eminentemente política.” Como se sabe, não se trata de um fenômeno inteiramente novo, nem tampouco de um retorno ao passado, mas é uma temática que tal como a mitológica Fênix surge e ressurge ao longo da história. Angela de Castro assevera que as “semelhanças irão emergir e, por vezes, de forma preponde-rante” (GOMES, 2008, p.38), daí a neces-sidade de analisar pormenorizadamente os diferentes contextos históricos em que se desenvolveram tais práticas, para evi-

10

Importante instrumento de combate à escraviza-

ção contemporânea mantida pelo Ministério do

Trabalho e Emprego – MTE, constitui-se em um

cadastro nacional de empregadores flagrados utili-

zando mão-de-obra escravizada. Em sua última

atualização, constam exatos 294 nomes de cerca de

20 estados brasileiros. Destes cinco empregadores

são de Açailândia com cerca de 150 trabalhadores

destinados a produção de carvão vegetal, criação

de bovinos e cultivo de pimenta-do-reino e milho.

tarmos análises anacrônicas e/ou mani-queístas

Neste sentido, Vilela brindou-nos comum a contundente reflexão acerca da analogia entre o trabalho escravo colonial e atual para quem a escravidão contem-porânea é mais truculenta que a colonial em muitos aspectos o trabalhador de hoje é descartável “ [...] não tem valor econômico, valor de mercado, como tinha o escravo negro [...] manter o escravo vivo e saudável. O escravo de hoje, não; ele é inteiramente descartável. (VILELA, 2006, fita 2, p. 34. grifo nosso)

Ainda sobre a conceituação e ca-racterização recorremos ao historiador Albuquerque com sua habilidosa relação com os conceitos dentre os quais nega-mos o da antimemória da história como invenção. Mas compreendemos que, para novos fenômenos, restam-nos novos no-mes e métodos, como o ensejado com magistral habilidade por Albuquerque ao narrar a história grafada em toda obra ‘História: a arte de inventar o passado’ sempre com H maiúsculo, para quem

[...] a História precisa de novas lin-guagens, de inventar novas palavras, de produzir novos conceitos, que se-jam capazes de conceder a glória à gosma da lesma nos vitrais das cate-drais, que sejam capazes de majesti-ficar a planta brotada nas frinchas dos fortes; de dar grandeza aos ho-mens que chafurdam nos lixos como porcos e urubus; dormem nas sarjetas como baratas; habitam buracos nos viadutos como os ratos; espojam-se nos barracos das favelas como mos-cas; queimam sob o sol e se cor-tam na lâmina verde dos canavi-ais como lagartos; que se tornam lama nos garimpos e nos man-gues; [...] de dar grandeza às cri-anças que enegrecem a vida nas carvoarias; que perdem as mãos nas máquinas de agave [...] É para eles que Manoel [de Barros] fez seus

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poemas, e eu faço minha prosa histó-rica [...] (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 95. grifo nosso). Por uma história capaz de carto-

grafar a sociedade para além de uma emergência poética com todo o seu acer-vo lexical, ensejada no uso de categorias conceituais diversas, tão inerentes ao trabalho do historiador para desvelar uma dada realidade social, por isso é preciso aventurar novos objetos, novas abordagens e novos problemas nas incur-sões historiográficas11 assim como pro-posto por Pierre Nora e Jacques Le Goff, no terceiro volume da série, que aponta para temas não muito comuns entre os historiadores, como o clima, o mito, o corpo, o inconsciente, as mentalidades, e outros que aparecem como um desses novos objetos de investigação historio-gráfica e geográfica.

Pensamos ser este, um rico filão praticamente inexplorado pelos historia-dores, portanto, uma discussão ainda incipiente, questão trazida à baila nos debates entre sociólogos, antropólogos e juristas, como já dissemos em outra parte da narrativa. Compreendemos, pois, que a escravização no Brasil refere-se a um sistema de trabalho cujas bases estão previstas em lei, deste modo, como a Lei Áurea, esta não existe mais, logo a outra também não existiria tal prática como fora no passado, o que não impediria o seu ressurgimento como a fênix, condici-onado ao mundo contemporâneo. De qualquer modo, o trabalho escravo, assim como o pássaro mítico que renasce das cinzas, nos parece ressurgir em diferentes momentos da história dada as idiossin-crasias de cada período de seu reapare-cimento.

11

Em meados dos anos 70, os historiadores france-

ses Jacques Le Goff e Pierre Nora organizam uma

coletânea contendo três volumes para apresentar os

novos rumos da história francesa.

Como nos fala Neide Esterci (1994, p.33), uma das mais respeitadas estudio-sas da área, existem “ [...] circunstâncias em que as noções que o termo ‘escravi-dão’ passou a designar podem não cor-responder nem mesmo ao entendimento que as vítimas têm das relações que vi-venciam”. Desta forma, encontramos assim como outros pesquisadores, entre-vistados que mesmo submetidos a condi-ções subumanas de trabalho, afirmavam não terem sido escravizados, pois para eles, escravo é inerente ao passado e ao negro’ (SILVA, 2009, p. 163). Destarte, “mesmo entre trabalhadores de uma mesma unidade produtiva, registram-se percepções diferentes acerca da domina-ção e da exploração a que estão sujeitos” (ESTERCI, 1994, p.11). Verificamos, pois, outros que declaram terem sido brutal-mente escravizados, estes eram em al-guns casos reincidentes, mais politizados ou já haviam mantido contato anterior com os órgãos de defesa dos direitos humanos.

Neste sentido, para os autores deste estudo, o trabalho degradante oposto do trabalho decente,12 ocorre quando somado ao cerceamento da li-berdade constitui precisamente em es-cravização contemporânea, visto que o indivíduo é impedido em seus aspectos físico, psicológico e moral de se constituir enquanto trabalhador com direitos bási-cos como salário e condições dignas de trabalho, ou de abandoná-lo, quando quiser. Deste modo, a escravização con-temporânea brasileira caracteriza-se por duas formas coercitivas: física e psicoló-gica. Sendo a primeira, ao ser submetido

12

O trabalho decente aqui compreendido como

uma ocupação produtiva e justamente remunerada,

exercida em condições de liberdade, que permite

satisfazer as necessidades básicas, equidade e

segurança capazes de garantir uma vida digna ao

trabalhador. Logo podemos concluir que o trabalho

degradante é exatamente o oposto, retira do traba-

lhador o direito de ir e vir e o coloca em uma con-

dição subumana de vida e trabalho.

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a castigos físicos, quando tenta empre-ender fuga. Já a segunda, ainda mais truculenta, quando o trabalhador sofre violência contra a sua integridade moral, a pretexto de uma dívida impagável que prende o trabalhador do ponto de vista ao trabalho. Somadas as pressões físicas e psicológicas sofridas por esses traba-lhadores ao baixo índice de escolaridade dos mesmos, podemos compreender co-mo os empreiteiros maquiam esta prática aos olhos dos próprios trabalhadores que se sentem obrigados do seu ponto de vista ético a quitar a dívida, uma espécie de servidão por dívida material e psicoló-gica. Importante salientar, igualmente, que a retenção de documentos é também prática comum para assegurar a perma-nência forçada do trabalhador.

Considerações finais

Desta forma, entendemos que a aplicação indevida do termo pode gerar anacronismos, daí a necessidade de no-vos estudos em busca dos caminhos e descaminhos da escravização contempo-rânea e seus desdobramentos no mundo contemporâneo Destarte, ficamos convic-tos que este tema será retomado e apro-fundado, também por outros estudiosos. Solenemente, com a epígrafe versejada abaixo, findamos este artigo, que é tam-bém um libelo em defesa dos trabalhado-res cativos ou livres, vivos ou mortos, que na busca de melhores condições de vida, sucumbiram face ao monstro da escravi-zação contemporânea no Brasil. Ode a estes trabalhadores!

Peço a atenção da pobreza que preci-sa trabalhar/Quando alguém lhe ofe-recer vantagens pra melhorar/Tenha cuidado de sempre é pra lhe escravi-zar./No Maranhão e Piauí, Tocantins e no Pará/Em Goiás e Mato Grosso, Pernambuco e Ceará/Bahia e Minas Gerais, também vão muitos pra lá./Se alguém lhe convidar para des-florestamento/Prometendo boa casa,

bom salário e alimento Tenha cuida-do que talvez aumente seu sofrimen-to./Eles quando lhe convidam, não mostram nenhum agravo/Mas todos que vão pra lá, tornam-se deles es-cravos,/Trabalham muito e não co-mem e não ganham nenhum centa-vo.13

E assim, fizemos uma história com

os pés fincados na experiência, as mãos na realidade e na cabeça uma quimera: um outro mundo é possível! Neste grande sertão veredas, façamos esta, a nossa sagarana.14

Referências ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passa-do. ensaios de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007. CUNHA, Euclides. Um clima caluniado. Um paraíso perdido. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil 1850. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. ESTERCI, Neide. Escravos da desigual-dade: estudo sobre o uso repressivo da força de trabalho, hoje. Rio de Janeiro, CEDI, Koinonia, 1994. ________. A dívida que escraviza. In.: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA VV.AA. [org.]. Trabalho escravo no Brasil contemporâneo. São Paulo, Lo-yola, 1999.

13

Fragmento do poema, Cartilha do Trabalho

Escravo. Grifo nosso. 14

Grande Sertão: Veredas, obra escrita em 1956

por Guimarães Rosa, remete as dificuldades a que

tiveram de passar nossos narradores. Já o termo

sagarana, é um neologismo cunhado por Guima-

rães Rosa para nomear sua primeira obra escrita

em 1946, o termo é aqui empregado com sentido

semelhante ao do autor como, resultante do hidri-

dismo do prefixo, saga que significa‘canto heroi-

co’ e rana vocábulo de origem tupi remete a ‘à

maneira de/que exprime’. Logo sagarana nos serve

para expressar a luta, um brado em meio às adver-

sidades.

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PRECARIEDADE: Uma genealogia sócio-histórica do conceito.

Francisco Raphael Cruz Maurício1

Resumo Neste artigo, elenco reflexões provenientes de diversos habitats epistemo-lógicos sobre a precariedade através de uma modesta arqueologia do termo para compreender as condições sócio-históricas que possibilitaram um saber sobre a precariedade, isso quer dizer, quando esta passa a ser percebida como objeto da ciência. É somente quando o termo precarieda-de passa a explicar a dinâmica laboral dos trabalhadores masculinos, brancos e da indústria dos EUA e da Europa, os estáveis, que seu uso pas-sa a ser operado sistematicamente nos estudos do trabalho e posterior-mente ganha diversificação teórica para se expandir como fator explicati-vo da sociedade contemporânea. Palavras-chave: Trabalho; Precariedade; Teoria. Abstract In this article, cast reflections from different epistemological habitats on the precariousness through a modest archeology of the term to under-stand the socio-historical conditions that enabled one know about the precariousness, it means, when it is perceived as an object of science. It is only when the term precariousness goes on to explain the labor dynamics of male workers, white and manufacturers from the USA and Europe, stables, that its use is now systematically operated in labor studies and later gained theoretical diversification to expand as explanatory factor of contemporary society. Keywords: Work; Precariousness; Theory.

1 Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. [email protected]

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Introdução Embora o termo precariedade seja

usado comumente para descrever um tipo de condição derivada de processos de trabalho, sua origem se localiza no campo da sociologia da família e da po-breza na França no final dos anos 1970 (SÁ, 2013; GEORGES, 2009; LEITE, 2009). Nos anos 1980, o termo desloca-se para o campo dos estudos do trabalho, onde se torna uma chave analítica na compreen-são das formas e conteúdos que permei-am a atividade laboral na contempora-neidade.

Na década de 1990, a assertiva de Bourdieu (1998) de que “a precariedade está hoje em toda parte”, reflete a disse-minação de uma categoria que borrou fronteiras epistemológicas. Produz-se uma polissemia em torno da precarieda-de, entendida não apenas nos termos de família e trabalho, mas como vida e exis-tência precária (BAUMAN, 2007; BU-TLER, 2011). Ou ainda, no aspecto mais abrangente de precariedade social (HI-RATA, 2011).

Neste artigo, elenco reflexões pro-venientes de diversos habitats epistemo-lógicos sobre a precariedade através de uma modesta arqueologia (FOUCAULT, 2009) do termo. O objetivo é refletir sobre as condições sócio-históricas que possibi-litaram um saber sobre a precariedade, isso quer dizer, quando esta passa a ser percebida como objeto da ciência. Con-cedo atenção especial ao debate advindo dos estudos sobre trabalho na sociologia e filosofia contemporâneas.

Podemos falar atualmente de uma literatura sobre a precariedade, confecci-onada por diversos autores, e que com-porta variados sentidos, o que imprimiu uma transversalidade ao termo. A etimo-logia de precariedade, um substantivo feminino em língua portuguesa, remete ao latim precor/precarius – pray em inglês – algo que, para ser obtido é necessário que se reze. Na França, país que dará origem ao debate acadêmico sobre o termo, a noção de precarité fora usada a partir do século XIV na teologia, em refe-

rência a diversos aspectos da existência humana (GEORGES, 2009, p. 156). Da família ao trabalho: o primeiro alargamento do campo da precarie-dade

No âmbito das ciências, os auto-res concordam que os anos 1970 são o marco inicial de discussão acadêmica em torno da precariedade. Esta manifesta-se nos estudos das famílias dos meios popu-lares e da “nova pobreza”, através do binômio pobreza-precariedade, relacio-nando-se à condição social, a situação da família e do domicílio (SÁ, 2013; GEOR-GES, 2009; LEITE, 2009). Neste campo, a precariedade está relacionada a elemen-tos como vulnerabilidade na saúde, es-cassez de recursos econômicos, deterio-ração de laços familiares e solidariedade precária (GEORGES, 2009, p. 156).

Georges (2009, p. 156) identifica que nos anos 1980, o debate desloca-se para o campo dos estudos sobre trabalho na França abrangendo as situações de emprego precário sob a alcunha das for-mes particuliéres d’emploi. O campo cien-tífico passa a refletir sobre mudanças sociais que surgem também no campo jurídico, isso quer dizer, o reconhecimen-to de outras formas de emprego reconhe-cidas pela lei. Essas outras formas dizem respeito às atividades laborais não vincu-ladas a contratos de emprego em tempo integral e ilimitado, que até então era a norma jurídica.

Para Sá (2013, p. 02), no final dos anos 1980, em artigos acadêmicos, a pre-cariedade já aparece expressamente liga-da ao trabalho, associada a contratos chamados empregos sem estatuto (empre-go incerto com menos garantias sociais). Presencia-se então o primeiro alargamen-to do campo de reflexão científica sobre a precariedade, esta transpassa as frontei-ras dos estudos das famílias pobres para os empregos sem estatuto.

Do trabalho à sociedade: O segundo alargamento do campo da precariedade.

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Georges (2009, p. 156) afirma que desde o início dos anos 1990, a noção de precariedade passa a ser usada em refe-rência a um processo de precarização da sociedade, imprimindo às categorias de vulnerabilidade e fragilidade um sentido aproximado ao de precariedade. Segundo Sá (2013, p.02), é no bojo dessas discus-sões que emerge um conjunto de autores que se detêm no fenômeno da precarieda-de laboral. Por exemplo, Robert Castel (2011) que passa a falar da desestabiliza-ção geral da sociedade advinda da corro-são do Welfare State e do padrão salarial fordista, processos referentes as mudan-ças socioeconômicas do trabalho e dos direitos sociais a partir da crise do petró-leo dos anos 1970.

Para Sá (2013, p.02), Castel observa uma precariedade mais ampla relacionada ao esboroamento da condição salarial, quando ocorre a desestabilização dos estáveis, isso quer dizer, o trabalhador com estatuto estável de emprego passa a experimentar uma nova dinâmica laboral após as transformações advindas da reestruturação produtiva. Estas mudanças dizem respeito ao recuo de direitos trabalhistas e garantias sociais do núcleo duro do mercado de trabalho assalariado constituído por homens brancos, adultos, especializados em uma função. Com a desestabilização dos estáveis, o operário padrão do fordismo passa a experimentar nas esferas econômica e jurídica as formes particuliéres d’emploi anteriormente vivenciadas por imigrantes, mulheres, jovens e trabalhadores não qualificados.

Pode-se compreender esses novos arranjos jurídicos como uma demanda para abarcar uma morfologia do trabalho que se desenvolvia em decorrência do a) esgotamento do padrão fordista de emprego e b) com o esmorecimento da cobertura social do Welfare State, que, enquanto instituição, não conseguiu se firmar na conjuntura aberta após a crise do petróleo dos anos 1970 e da reestruturação produtiva que a seguiu. Esses rearranjos jurídicos-políticos são,

poder-se-ia dizer, nos termos de Marx (p.49-54, 2000), transformações na superestrutura condicionadas por mudanças na infraestrutura econômica, ou, nos termos de Mészáros (p. 94, 2011) em determinações em conjunção, que indicavam mudanças pela qual estava passando o sistema do capital em toda a sua complexidade (Estado, trabalho e capital).

É nessa constelação de mudanças que se produziu um saber científico para explicar as novas dimensões da questão social experienciada pelas populações das economias centrais do capitalismo. O estabelecimento e o reconhecimento de um saber sobre a precariedade não surgiram durante o New Deal norte-americano (1933-1936) ou nos “anos de ouro” do capitalismo europeu, no auge do Welfare State (1945-1971), mas no processo de seu esmorecimento enquanto instituição social capaz de regular as relações entre capital, trabalho e Estado nas economias centrais.

A condição sócio-histórica da possibilidade de um saber sobre condições precárias de trabalho e de vida está ligada intimamente, assim, a um novo contexto de esgotamento do binômio fordismo-keynesianismo na Europa pós-choque do petróleo. Meu argumento é que, sejam as condições históricas (arqueologia) sejam as condições políticas (genealogia) da emergência de um saber sobre a precariedade, elas se relacionam com a diluição de uma conjuntura específica vivida pelas sociedades do capitalismo central.

É somente quando o pacto entre Estado, capital e trabalho é reconfigurado no processo de financeirização da economia e privatização dos serviços públicos, isso quer dizer, na ascensão do neoliberalismo, que se constitui um saber sobre a precariedade. É nesse contexto que Castel falará de uma nova questão social, não mais aquela derivada da “sociedade salarial”, mas ligada ao

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declínio do trabalho como porta de entrada para os direitos sociais. Da sociedade à vida: o terceiro alar-gamento do campo da precariedade

Neste tópico, abordarei a precari-edade em lato sensu, isto é, as leituras que observam a precariedade para além do local de trabalho, o que nomeio de um terceiro alargamento do campo de refle-xão sobre a precariedade.

Bourdieu (1998, p. 72-76) articu-lou, o termo precariedade a partir da análise das mutações do trabalho relaci-onadas à flexibilidade do emprego. A discussão tecida pelo sociólogo francês está imbrincada a sua reflexão sobre questões molares como o neoliberalismo e a mundialização do capital que redefi-niram o desenho social da Europa a par-tir dos anos 1970. Mas também está liga-do a questões moleculares como a disse-minação da sensação de insegurança relacionada à abrangência do desempre-go, dos trabalhos temporários e na cons-trução de um projeto política transfor-mador pelos sujeitos inserido nessas condições.

Constata-se claramente que a preca-riedade está hoje por toda a parte. No setor privado, mas também no se-tor público, onde se multiplicaram as posições temporárias e interinas, nas empresas industriais e também nas instituições de produção e difusão cultural, educação, jornalismo, meios de comunicação etc, onde ela produz efeitos sempre mais ou menos idênti-cos, que se tornam particularmente visíveis no caso extremo dos desem-pregados: a desestruturação da exis-tência, privada, entre outras coisas, de suas estruturas temporais, e a de-gradação de toda a relação com o mundo e, como consequência, com o tempo e o espaço. A precariedade afeta profundamente qualquer ho-mem ou mulher exposto a seus efei-tos; tornando o futuro incerto, ela impede qualquer antecipação racio-

nal e, especialmente, esse mínimo de crença e de esperança no futuro que é preciso ter para se revoltar, sobre-tudo coletivamente, contra o presen-te, mesmo o mais intolerável (BOURDIEU, 1998, p. 72). Bourdieu observa que a precarie-

dade está relacionada não apenas ao âmbito molar do processo de precariza-ção do trabalho, mas também adentra o território das experiências pessoais e de classe dos sujeitos inseridos em trabalhos precários, afetando as estruturas da sua existência. Acima de tudo, a percepção do autor é que a precariedade está hoje por toda a parte, é uma condição que se dissemina a partir do estatuto do traba-lho na contemporaneidade. A precarie-dade está presente na ordem econômica da sociedade e na ordem simbólica dos agentes históricos.

Na esteira do pensador francês, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, a partir de suas reflexões sobre a moderni-dade, observa o alargamento da precari-edade para além do local de trabalho, sua acepção possui um sentido global de vida precária quando afirma que “em suma: a vida liquida é uma vida precária, vivida em condições e incerteza constante.” (BAUMAN, 2007, p. 08).

Nessas leituras, a precariedade es-tá para além dos locais de trabalho, ex-pandindo-se para o tecido social como uma mancha e também colonizando o mundo simbólico dos agentes e das cole-tividades.

Como Pierre Bourdieu não se cansou de observar, o estado de perma-nente précarité — insegurança quanto à posição social, incerteza sobre o futuro da sobrevivência e a opressiva sensação de “não segurar o presente” — gera uma incapacidade de fazer planos e segui-los (BAU-MAN, 2003, p. 42. Destaques meus). A partir do artigo de Bourdieu,

Bauman observa que precariedade, ins-

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tabilidade e vulnerabilidade são as carac-terísticas mais difundidas das condições de vida contemporânea, espécie de gra-mática que permeia a sociabilidade na modernidade líquida. Ele ainda agrega à acepção francesa de precarité o que Ul-rick Beck narra como Risikogesellschaft (sociedade do risco), o que os ingleses classificam como insecurity e os italianos chamam de incertezza (BAUMAN, 2001, p. 184).

Incerteza, insegurança e instabili-dade traduzem a sensação de um “per-manente estado de precarité”. Isso cria condições sociais de concedermos a pre-cariedade o estatuto sociológico de fato social total? Que como nos disse Bourdi-eu “está hoje em toda a parte”. Se não um fato social total, isso quer dizer, um elemento a partir do qual podemos anali-sar as mais variadas questões da vida moderna, ao menos uma tendência que não está desaparecendo, mas predomi-nando nas relações sociais e com bastan-te relevo estrutural e fenomenológico no mundo do trabalho.

No plano da teoria, os esforços de captar esse zeitgeist (espírito do tempo) têm sido múltiplos, partindo de diferen-tes habitats epistemológicos que miram distintos aspectos do mundo social. De questão social a problema sociológico, a precariedade tem instigado reflexões em autores contemporâneos. Existem abor-dagens que definem a questão em termos existenciais, como em Judith Butler, econômicos, como em Guy Standing1, ou intersubjetivos, como em Neilson e Rossi-ter2 (BANKI, 2013, p. 02). 1 Banki se refere à STANDING, Guy. O

precariado: a nova classe perigosa. Belo

Horizonte: Autêntica Editora, 2013. Contudo, não

podemos resumir os esforços de Standing em tratar

a precariedade em termos estritamente

econômicos, pois o binômio

segurança/insegurança está presente na narrativa

de Standing sobre a precariedade e o precariado, o

que proporciona a sua discussão uma dimensão

social, política e existencial. 2 Os autores são filiados ao pós-operaismo de

Antonio Negri e Michael Hardt e suas discussões

em torno do trabalho imaterial e general intellect.

(...) A noção de precariedade tem tração teórica em outros lugares, (...) a literatura e outras obras têm ex-pandido a compreensão do termo pa-ra incluir a falta de segurança em outras áreas, a forma como gerimos o dia-a-dia, tais como o acesso à do-cumentação legal (Goldring e Lan-dolt, 2011), as normas de gênero (Abrahamson, 2004; Brah, 2002; Fan-tone, 2007) e “outros aspectos da vi-da intersubjetiva, incluindo a habita-ção, o endividamento e a capacidade de construir relações sociais afetivas” (Neilson e Rossiter, 2005) (BANKI, 2013, p. 03). Na acepção ampla do termo pre-

cariedade, o que lhe imprime ritmo teóri-co é a insegurança. De fato, a insegurança e vulnerabilidade são imanentes à pró-pria condição humana marcada pelo ho-rizonte da finitude orgânica do corpo. Contudo, ela se potencializa nos marcos da sociedade moderna, porque além do elemento biológico intransponível ope-ram dinâmicas sociais que disseminam a insegurança ao fragilizar dispositivos de proteção social (emprego, moradia, saú-de) como condição de realização da acu-mulação de capital.

A noção de precariedade descreve a condição de ser vulnerável à explora-ção devido à falta de segurança. Pre-cariedade sugere o potencial de ex-ploração e abuso, mas não a sua presença certa. Assim, o traba-lho precário não é de fato o de-semprego, mas sua ameaça imi-nente, e, talvez, de fato frequente. (...) Da mesma forma, precariedade

Ver NEILSON, Brett; ROSSITER, Ned. Precarity

as a political concept, or, fordismo as exception.

Theory, Culture & Society 2008 (SAGE, Los

Angeles, London, New Dheli, and Singapore), Vol.

25 (7-8): 51-72. Nesse artigo, os autores partem de

uma crítica a noção de fordismo para discutir a

relação entre novas formas de conexão,

subjetivação e organização política.

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social não descreve uma ausência de redes de apoio, mas o potencial para o seu desmantelamento (BANKI, 2013, p. 02. Destaque meu). Essa deterioração da proteção so-

cial na contemporaneidade, condicionada de forma molar pelas macropolíticas de cariz neoliberal, indica limites e tensões de conciliação entre uma vida digna e os imperativos da acumulação capitalista. Imperativos estes que burlam códigos e atravessam regulações numa dinâmica autocentrada, onde se acumula capital para que se possa acumular mais capital (WALLERSTEIN, 2001).

Pode-se dizer que a precariedade social, regida pelo signo da insegurança, possui uma dimensão também biopolítica que opera de forma assimétrica e seletiva em relação a populações, classes sociais e comunidades.

Segundo Judith Butler, a precarieda-de traduz uma condição politicamen-te construída através da qual deter-minadas populações são assimetri-camente expostas a contextos de vio-lência, perigo, enfermidade, migra-ção forçada, pobreza ou morte (BU-TLER, 2009, p. 25). De facto, todo o ser humano encontrasse exposto à vulnerabilidade e à contingência da sua condição. Todavia, a vulnerabili-dade e a contingência da condição humana apresentam graus assimétri-cos que variam consoante a comuni-dade em questão. Existem comuni-dades particularmente expostas à condição de precariedade, o que sig-nifica que esta pode ser compreendi-da como uma construção humana (MILITÃO, s/d, p. 01). A precareidade não atinge a todos

da mesma forma. Os segmentos mais subalternizados na periferia do capita-lismo, em decorrência da complexa inte-ração entre fatores de classe, raça, gênero e orientação sexual, experienciam varia-das configurações de precariedade. São

formas diversas de precariedade que de-correm do fato desses segmentos se en-contrarem assimetricamente privados dos recursos que possam minimizar sua vulnerabilidade.

The precarious conditions for so long confined to the global periphery, or to those occupations where women, non-citizens, or racialised others predominated, began to extend into the core zones of the world market, into the professional classes, into those spaces long considered to be secure (MITROPOULOS, 2011)3. Como afirma Mitropoulos, as

formas de precariedade que hoje experi-mentam os trabalhadores outrora está-veis na Europa, já eram experimentadas por frações não estáveis do mercado de trabalho, em segmentos como mulheres, jovens e imigrantes. O diferencial das recentes mutações do trabalho é que a condição de precariedade atinge hoje os segmentos estáveis da classe trabalhado-ra. A partir de um estudo que analisou trinta anos (1970-2000) de mudanças e reconfigurações no mercado de trabalho nos EUA, Branch e Hanley concluíram que o trabalho precário, que, segundo as autoras, é o emprego “incerto, imprevisí-vel e arriscado do ponto de vista do tra-balhador” (2011, p. 569), tem crescido desde os anos 1970 na esteira dos proces-sos de reestruturação produtiva.

O que era uma característica do mercado de trabalho secundário, ocupa-do por mulheres, negros e imigrantes, é agora quase universal, independendo de profissão ou setor econômico. É a emer-gência dos chamados bad-jobs, empregos ruins em termos de remuneração, estabi-lidade e possibilidades de carreira. O crescimento do trabalho precário disse-

3 MITROPOULOS, Angela. From precariousness

to risk management and beyond. Europäisches

Institut Für Progressive Kulturpolitik. Jan 2011. <

http://eipcp.net/transversal/0811/mitropoulos/en>.

Acesso 22 fev 2013.

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mina uma condição de precariedade en-tre trabalhadores outrora estáveis e limi-ta a essa condição, como uma “jaula de ferro”, aos segmentos sociais historica-mente inseridos nela.

Na União Europeia (UE) experi-menta-se uma situação similar. As for-mas mais flexíveis de trabalho têm sido justificadas pela UE como um requisito que permite o crescimento econômico em economias globalizadas. No estudo ela-borado pela própria UE, chamado Mo-dernizar o direito do trabalho para enfren-tar os desafios do século XXI, a Comissão Europeia salienta que as atuais formas de trabalho atípicas (temporário, freelancers, meio expediente) existentes no mercado europeu, representam 25% da mão-de-obra (SÁ, 2013, p. 13). Teresa Sá observa que as situações de precariedade mani-festadas primeiramente dentro do grupo dos “trabalhadores periféricos” se esten-dem posteriormente para uma parcela abrangente de trabalhadores fora desse segmento.

O que significa que uma parte da classe operária integrada e dos assa-lariados da classe média baixa está sob a ameaça de perder os seus pos-tos de trabalho. O que parece estar a acontecer é, por um lado, a substitui-ção de um conjunto de empregos – com ordenados superiores ao orde-nado mínimo, benefícios sociais, se-gurança no emprego – por outros com ordenados mais baixos, menos benefícios e sem segurança no em-prego; e por outro lado, o desempre-go da população mais idosa (com mais de 50 anos) (SÁ, 2013, p. 3-4).

A mancha de precariedade borra

as fronteiras do duplo mercado de traba-lho, formado por um lado por uma parce-la de trabalhadores integrados em direitos trabalhistas e cobertura social e, por ou-tro lado, por um conjunto de trabalhado-res não integrados à cidadania salarial e aos direitos sociais, uma espécie de prole-tariado marginal. A mancha de precarie-

dade compartilha os riscos de empregos com estatuto rebaixado para ambos os lados do mercado de trabalho.

A condição de precariedade e o pro-cesso de precarização

Alves, a partir de Marx, trava uma discussão que entende a condição de precariedade como atributo da sociabili-dade burguesa. Isso está imbricado a própria condição estrutural que confor-ma o trabalho vivo e a força de trabalho como mercadoria no capitalismo.

Nas observações de Marx de 1847, encontramos elementos para consi-derar a precariedade e a precari-zação como sendo atributos ontoló-gicos das individualidades sociais que se constituem na sociedade bur-guesa. A individualidade burguesa é, portanto, uma individualidade de classe (ou individualidade estranha-da) submetida ao acaso e ao poder das coisas. Deste modo, ao dizermos precariedade, tratamos de uma con-dição sócio-estrutural que caracteri-za o trabalho vivo e a força de traba-lho como mercadoria, atingindo aqueles que são despossuídos do controle dos meios de produção das condições objetivas e subjetivas da vida social. A precariedade do mun-do do trabalho é uma condição his-tórico-ontológica da força de traba-lho como mercadoria. Desde que a força de trabalho se constitui como mercadoria, o trabalho vivo carrega o estigma da precariedade social (ALVES, 2007, p. 113. Destaques meus). Por outro lado,

(...) o conceito de precarização diz respeito a um modo de reposição só-cio-histórica da precariedade. Se a precariedade é uma condição, a pre-carização é um processo que possui uma irremediável dimensão histórica determinada pela luta de classes e

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pela correlação de forças políticas entre capital e trabalho. (ALVES, 2007, p. 114). Assim, para Alves (2007), precari-

zação e precariedade estão imbricados à dinâmica de classes da sociedade capita-lista, ao conflito e tensões entre capital e trabalho, mas significam momentos dife-rentes dessa dinâmica. A precarização se constitui enquanto processo social com uma irremediável dimensão histórica derivada do equilíbrio de forças entre as classes, um processo que repõe histórica e socialmente a precariedade, que se constitui numa condição compartilhada por trabalhadores no capitalismo.

Enquanto a precarização possui uma dimensão molar, ligada a fatores históricos que condicionam estruturas e processos sociais, a precariedade possui uma dimensão molecular, que se mani-festa nos corpos e subjetividade dos tra-balhadores. Essa dupla dinâmica precari-zação-precariedade é derivada da condi-ção de mercadoria que a força de traba-lho assume no capitalismo, com desdo-bramentos estruturais na organização do trabalho e simbólicos na subjetividade do trabalhador. Essa dinâmica é alterável a medida que os conflitos de classes indi-cam um maior ou menor controle social por parte dos trabalhadores sobre o tra-balho e a vida social4. Considerações finais

O argumento exposto neste artigo é que a precariedade foi, inicialmente, uma questão social que se transformou, posteriormente, numa questão científica em um determinado período histórico 4 Apesar de corroborar as reflexões de Alves acer-

ca das noções acima expostas, Mota indica que o

“tratamento da precarização como processo relati-

vo ao precário não elucida suficientemente a ques-

tão, ainda que não possua nenhuma inconsistência”

(2013, p. 83). A autora propõe como alternativa,

compreender a precarização como um processo de

desvalorização da força de trabalho, logo a preca-

riedade, como a imersão nessa condição de desva-

lorização por homens e mulheres do proletariado.

(1970-1980) num determinado espaço geoeconômico (as economias centrais do capitalismo).

O campo de reflexão sobre a pre-cariedade passou por três alargamentos durante a história recente do conceito. O primeiro alargamento (1970-1980) ocorre quando a precariedade deixa de ter uso exclusivo nos estudos sobre as famílias dos meios populares e passa a ser incor-porada aos estudos do trabalho na socio-logia e na economia. Esse movimento teórico é análogo ao movimento histórico iniciado com a crise do petróleo nos anos 1970 e a reestruturação produtiva, com seus impactos sobre o mundo do traba-lho.

O segundo alargamento (1980-1990) ocorre quando a precariedade pas-sa a ser um fator explicativo das dinâmi-cas sociais para além do mundo do traba-lho e adentra a sociedade de maneira mais ampla, o que corresponde ao desen-volvimento do neoliberalismo com a per-da de direitos sociais e a deterioração dos serviços públicos.

O terceiro alargamento (1990-2000) ocorre quando a precariedade pas-sa a ser uma noção explicativa da vida contemporânea tecida pela insegurança, risco e incerteza. E é observada não ape-nas como existente no declínio do mer-cado de trabalho estável, na deterioração das condições de vida, mas como uma marca moderna que incide sobre a vida de diversos segmentos sociais, desde o trabalhador branco, o imigrante negro e a mulher subempregada.

Antes, o uso do termo precarieda-de era restrito a sociologia da família, como elemento explicativo dos “lares desestruturados”. Contudo, as mudanças no mundo do trabalho na Europa e nos EUA, economias centrais do capitalismo, a partir da crise do petróleo dos anos 1970, demandou uma compreensão des-sas mudanças, onde a noção de precarie-dade passou a ter relevo explicativo. É somente quando a precariedade passa a atingir os segmentos estáveis da classe trabalhadora das economias centrais,

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como o operário padrão fordista formado pelos caracteres sociais do homem bran-co, adulto e trabalhador especializado, que esta noção passa a ser incorporada sistematicamente ao campo das reflexões contemporâneas do mundo do trabalho.

A precariedade do trabalho já fora experienciada por segmentos subalternos como mulheres, jovens, negros e imigran-tes seja em economias centrais ou perifé-ricas em diversos contextos sócio-históricos, antes de desestabilizar os está-veis, mas é somente quando esta adentra o campo dos estáveis que seu uso passa a ser operado sistematicamente nos estudos do trabalho e ganha diversificação teóri-ca para se expandir como fator explicati-vo da sociedade contemporânea (MI-TROPOULOS, 2011).

A hipótese levantada é que a no-ção de precariedade dificilmente teria ganho tanto relevo explicativo se não passasse a fazer parte da dinâmica do trabalho dos assalariados estáveis, mas-culinos e brancos da Europa e dos EUA. Foi somente quando estes setores passa-ram a ser impactados em suas dinâmicas laboral e de vida que a precariedade tor-nou-se um problema científico. Isso reve-la o quanto a ciência, mesmo a que se coloca num campo crítico, ainda é mar-cada por certo colonialismo.

É necessário descolonizar, mesmo os estudos críticos e que os cientistas sociais das economias periféricas passem a fazer uma ciência enraizada, que olhe para seu contexto e não somente para a Europa ou EUA. Que o cientista social das economias periféricas transformem em questão científica os problemas soci-ais que os circundam e não apenas aque-les que chegam de fora.

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A MÃO DE DEUS E A MÃO DO HOMEM: Natureza e trabalho na formação social

do Piauí escravista (Brasil, sec. XVII-sec. XIX).

Solimar Oliveira Lima1 Resumo A pecuária nordestina que seguiu o curso do rio São Francisco, adentrou os sertões do território piauiense durante o período colonial. Este artigo tem como objetivo analisar as características desse processo de ocupação e transformação do território piauiense até o século XIX, quando a pecuá-ria ainda era a principal atividade econômica do estado. Para isso, as principais fontes de que fizemos uso foram os minuciosos relatos de via-jantes estrangeiros, dentre eles, os alemães Johann Spix, zoólogo, e Karl Martius, médico e botânico, e também obras de memorialistas brasileiros. Palavras-chave: Pecuária. Ocupação do território. Piauí. Abstract The northeastern livestock that follows the course of the São Francisco River, entered the backlands of piauiense’s territory during the colonial period. This article aims to analyze the characteristics of this process of occupation and transformation of piauiense’s territory until the nine-teenth century, when the livestock was still the main economic activity of the State. For this, the main sources that we used were the minute for-eign travelers' accounts, among them the German Johann Spix, zoologist, and Karl Martius, physician and botanist, and also works by Brazilian memorialists. Keywords: Livestock. Occupation of the territory. Piauí.

1 Doutor em História/PUCRS, professor do Departamento de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí. e-mail: [email protected].

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Ao findar o século XVI, as terras do litoral do Brasil demarcavam o territó-rio da presença portuguesa nas Américas. A aventura atlântica havia assegurado à Coroa lusitana uma rota segura para o domínio das riquezas que unia três mun-dos a partir das casas comerciais euro-peias, da região Nordeste no Brasil e das costas da África. O mercado colonial de diferentes mercadorias e suas exigências de crescente acumulação provocaram, no Nordeste, o surgimento de uma atividade especializada inserida no sistema de pro-dução do açúcar e que passou a fornecer com regularidade, à plantagem escravis-ta, carne e animais vivos como meio de transporte e força motriz para os enge-nhos. Trata-se da pecuária nas fazendas de gado (Maestri, 1994:89-93; Gorender, 1992:427).

As fazendas expandiram-se so-bremaneira para o interior, distanciando-se do litoral, adentrando, ocupando e povoando o sertão nordestino (Abreu, 1960:63-128). A vastidão de terras por ocupar e as qualidades das terras, consi-deradas sem donos e propícias ao criató-rio, provocaram uma corrida ao desbra-vamento. A saga do boi nos sertões esta-va praticamente concluída no final do século XVII. A essa altura, o atual solo do estado do Piauí era partilhado com prós-peras fazendas zeladas por poucos va-queiros. As origens das fazendas se con-fundem com a gênese da formação social do Piauí, que se iniciou a partir do rio São Francisco, na estrada da travessia da parte de Pernambuco, e nas notícias da terra por coevos que descreviam as suas farturas e atraíam cada vez mais currais (Pitta, 1950:243; Nunes, 1972:92).

Tomando como referência narrati-vas de viajantes, memorialistas e diversas autoridades dos séculos XVII ao XIX, ca-racteriza-se o contexto ecológico das fazendas piauienses apresentado como condição fundamental para o criatório em razão da presença de pastos naturais e a reduzida necessidade do uso do tra-

balho. Nas descrições, em diferentes anos e estações, a natureza aparece ofertando todas as condições necessárias à princi-pal base de acumulação - a reprodução do gado -, precisando apenas da vigilân-cia do homem para intervenção eventual, constituindo-se, o criatório, um sistema automático. A ação humana nos campos voltava-se a organizar, em especial, o resultado da ação da natureza, como a separação de bezerros em fase de des-mama, ou, em um segundo momento, para a formação de boiadas para o mer-cado. O trabalho humano aparecia como uma força imperfeita frente às forças naturais e era requerido sempre que a própria natureza, em desajuste climático, por cheias ou secas, impedisse a reprodu-ção do rebanho. Nas imperfeições das forças naturais, intervinha, porém, a for-ça humana corrigindo o curso da nature-za.

O território da ocupação político-administrativa lusitana compreendido como sertão do Piauí, segundo a descri-ção do Pe. Miguel de Carvalho, de 1697 (Ennes, 1938:370-72), estava situado “para a parte sul, no meio do sertão que se acha entre o rio São Francisco, e a costa do mar que corre do Ceará para o Mara-nhão, da qual dista pelo caminho sabido 80 léguas.” No nascente, encontravam-se “os sertões desertos que correm para Pernambuco pelos quais se não tem des-coberto caminho nem se vadeam, em razão dos muitos gentios bravos que ne-les habitam”; no poente, “os matos deser-tos que correm para as índias de Espa-nha, pelos quais não há caminho nem se sabe de seu fim”; e no norte, “a costa do mar correndo do Ceará para o Maranhão para a qual tem dois caminhos, abertos ambos em ano de 95 um vai ao Mara-nhão, e outro a serra da Ibiapaba.” Ao sul, situava-se a principal rota de comu-nicação com o litoral nordestino. Dirigin-do-se ao rio São Francisco, rumo à Bahia, contava-se com “dois caminhos com dis-

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tância igual de 40 léguas cada um por entre matos desertos.”

Para o referido vigário, a terra era “abundante de pastos” e com “famosos rios”, conforme a “Providência Divina”, parecendo um ato “prodigioso.” Porém, um sertão deserto de presença humana, mais precisamente de colonizadores, haja vista não considerar “gentios bravos” gente. Aliás, o padre não considerava humanos os bravos, tampouco os man-sos, muito menos os escravizados. No levantamento das 129 fazendas existentes no sertão do Piauí, segundo ele, todas visitadas, foram identificados os morado-res pelas seguintes categorias: Homem (para o colonizador, branco encarregado ou proprietário da fazenda), Negro (para o escravizado, trabalhador da fazenda) e Índio (para o “gentio” antes bravo, traba-lhador da fazenda). Em cada fazenda, em regra, havia a presença de um Homem e um Negro, às vezes um Índio. Curiosa-mente, segundo o religioso, os moradores eram “almas”, isto é, haviam passado pelo sacramento do batismo (Ennes, 1938:376).

O reduzido número de braços nas fazendas estava associado à percepção - e discurso reproduzido - de que a abun-dância natural bastava. Sem pudores, quase um século após o início do proces-so de ocupação, o autor anônimo (supos-tamente João Pereira Caldas, primeiro governador do Piauí) do “Roteiro do Ma-ranhão a Goiaz pela Capitania do Piau-hy”, de 1760, sintetizou, com a seguintes palavras, o sentido do trabalho humano nos novos domínios nos sertões piauien-ses:

[...] abertos e cheios de campinas [...] Não há neles aquele horroroso trabalho de deitar grossas matas abaixo, e romper as terras a força do braço, como sucede nos Engenhos do brasil, nas Roças das minas, e por es-te mesmo Estado do Pará, e mara-nhão na cultura dos seus gêneros.

Nele pouco se muda na superfície da terra, tudo se conserva quase no seu primeiro estado (Revista do Instituto Historico e Geographico Brazileiro, 1900:88). Fortalecia-se, assim, a construção

social de uma sociedade de pouco esfor-ço. As condições naturais apareciam co-mo determinantes para o estabelecimen-to das propriedades. Buscavam-se terras próximas a mananciais, com pastos bons e disponibilidade de sal. Estes requisitos eram indispensáveis à reprodução do rebanho. Esta necessidade estruturante do criatório do início do processo de ocu-pação do Piauí manteve-se pouco altera-da ao longo dos séculos seguintes. A marca das fazendas pastoris foi utilizar a natureza como uma forma determinada de objetividade em que o trabalhador a encontrava pronta e acabada como con-dição material da produção. Nada custa-vam as forças naturais incorporadas ao processo produtivo. Para consumir pro-dutivamente as forças naturais, não se necessitava de nada criado pelo esforço humano (Marx, 1984:423-40).

Contudo, pelos sertões, podia-se encontrar uma diversificada vegetação que se mostrava no segundo semestre do ano, muitas vezes adversa ao criatório e à própria presença humana. As descrições do governador João da Maia Gama, de 1728, registram o trajeto percorrido do Maranhão à Vila da Mocha [atual cidade de Oeiras, no Piauí] em pleno período considerado verão (Martins, 1944).

Em 15 de setembro daquele ano, Gama iniciou o trajeto em solo piauiense, percorrendo uma várzea com grandes pastos mimosos, embora estivesse “tudo seco”, até a fazenda Várzea Formosa. O percurso levava à fazenda Maroti, onde havia “boa água e algum pasto para os cavalos”, seguindo pela fazenda Berllen-gas - “nesta, há um sítio com uma fonte de água corrente” -; fazenda Rodiadouro, que possuía “duas baixas com grandes

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pastos e terras boas para mandiocas”; fazenda Roça, com “boas terras em que tem canas e mandioca, e legumes e boa água corrente e bem povoada de gados”; e fazenda Tabua, “com boas varzeas e bem povoada de gado”. Desistindo da visita à aldeia dos Aroazes em razão de ferimentos dos cavalos, o governador buscou as margens do rio Sambito em direção à Fazenda Varzea do Mel, pas-sando pela fazenda Tigre, fazenda Gado Bravo, fazenda Furtalhe a Volta e fazen-da Cana Branca, tendo atravessado “ser-ras escabrosas e de muita pedraria”, se-guiu para o rio das Talhadas, onde não encontrou pastos, indo se aquartelar du-as léguas após, em um alto, que “tinha pasto bravio e seco e na baixa entre grandes pedrarias e de grandes cavidades que ali fazia o mesmo rio das Talhadas onde havia poções de água de que nos servimos para nós e para os cavalos.” No dia 3 de novembro, após passar o rio Ca-nindé e mais fazendas, o governador chegou a Oeiras (Martins, 1944:14-18).

Nesse período seco, mesmo as fa-zendas que possuíam mananciais de-mandavam cuidados. Parece pertinente salientar que nas propriedades nem toda terra se constituía como campo e nem todo campo dispunha do conjunto de condições naturais ao criatório. Um cam-po com boa pastagem deveria, como dito, também possuir ou facilitar o acesso a mananciais. No século XVIII, houve um processo crescente de pressão sobre as terras que levou à ampliação de fazendas e à incorporação de áreas ao processo produtivo sem as fertilidades naturais, sendo, pois, áreas mais suscetíveis a pri-vações na época do verão. Em regra geral, para o conjunto de fazendas no período não chuvoso, fazia-se necessária a inter-venção humana. Na segunda metade desse século iniciou-se um processo de registro do trabalho e de suas necessida-des nas propriedades.

Onde a natureza acarretava certas dificuldades, frente à expansão do terri-

tório de domínio demarcado cada vez mais por grandes propriedades, o traba-lho humano era chamado a corrigir as falhas e imperfeições do trabalho de Deus. Contudo, a função da mão huma-na não era a de alterar a natureza; pelo contrário, o trabalho humano deveria apresentar uma suficiente disciplina a adequação e subordinação à natureza, sendo empregado de forma limitado e acessório. Surgia, como parte indispensá-vel, a infraestrutura que derivava da for-ça humana, que integrava de tal forma o processo produtivo que continuava a prevalecer a característica natural do pastoreio.

O trabalho humano concretizava-se, por exemplo, em currais, vaquejadou-ros e aguadas. “Vaquejadouros”, para que o gado se deslocasse pelos campos, che-gasse às reservas naturais de água e fosse conduzido, quando necessário, com segu-rança aos currais. O vaquejador, às vezes, conduzia o gado a uma “aguada”, “ca-cimba” ou mesmo a “alguns maus açu-des, a que chamam tanques nos quais em algumas partes represam as águas” ou a outras águas conservadas em tanques feitos por indústria dos habitantes, com muito trabalho e moléstia” (Mott, 1985:61; Revista do Instituto Historico e Geographico Brazileiro, 1900:82). Os ma-nanciais eram conservados com limpezas periódicas para que se evitasse o esgota-mento. O mesmo acontecia com os va-quejadouros, em que a limpeza “em tem-pos oportunos” mantinha dominado o crescimento de plantas, embora a passa-gem contínua das reses, por si, já contri-buísse para impedir o florescimento de vegetação.

O trabalho em infraestrutura, em-bora requerido, era visto como uma exce-ção, como um esforço aleatório que não fazia parte da rotina do pastoreio. Resul-tantes de tarefas que exigiam força física, as instalações foram desvalorizadas - e com elas o trabalho humano nelas reali-zado, frente a uma idealização do traba-

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lho nos campos. Nestes, o trabalhador era visto como “folgazão” e o trabalho, embora considerado “áspero”, distante de um “ trabalhado pesado” como realizado em outras regiões do país. Não sendo o trabalho uma “condição da economia”, vigorava o emprego acidental de força muscular e um estilo de vida “rude”, po-rém, “em perpétuo idílio com a natureza selvagem” (Nunes, 1974:241; Porto, 1974:144).

No século XIX, foram fortalecidas as leituras sobre a importância da natu-reza para o processo produtivo e também apareceram os primeiros registros sobre o processo de domesticação de plantas silvestres como elemento favorecedor da vida nos sertões. Neste contexto, a paisa-gem natural do trajeto de Pernambuco a Oeiras (no Piauí) foi densamente retrata-do em 1822. Os alemães Johann Spix, zoólogo, e Karl Martius, médico e botâni-co, percorreram o caminho partindo de Registro do Juazeiro [atual Petrolina], sendo este o principal mercado de co-mercialização de gado com a Bahia (Spix y Martius, 1938).

Os viajantes, em final de abril da-quele ano, indicaram que, em razão do inverno, evitaram seguir pela “estrada das boiadas” nas imediações de Registro. Durante o caminho, eles perceberam:

[...] quanto mais nos afastávamos do rio [São Francisco], tanto mais desi-gual se mostrava o terreno, compri-dos fossos atravessam-no em muitas direções. Durante os transbordamen-tos, enchem-se eles, como sangra-douros, e são também revestidos da vegetação marginal do alagadiço; es-pinheiros e trepadeiras, densamente entrelaçados. Já encontramos aqui e acolá esses fossos cheios de água da chuva, e mais de uma vez tivemos de transpô-los com grande risco de en-charcar toda a carga. Nos sítios, onde o terreno se abria entre as vargens fechadas de mato, alegrava-nos o as-

pecto das campinas viridentes, que se distinguiam de todos os outros cam-pos tanto pela cerrada igualdade do tapete viçoso de relva, quanto pela delicadeza dos tenros talos glabos, como nunca havíamos encontrado igual. A gente do lugar chama-os de campos minosos, e utilizam-se deles para pastos de suas numerosas boia-das. Entrávamos, pela primeira vez, no distrito de criação de gado, que, de certo modo, deve ser considerado a Suíça do Brasil (Spix y Martius, 1938:209). Os viajantes perceberam os con-

trastes das condições físicas e do clima da região. Suas descrições, segundo eles, pautam-se nas observações pessoais, em “narrações singelas de diversos vaquei-ros” passadores de boiadas para Pernam-buco e nas informações do arquiteto, morador de Oeiras, capitão Matias José da Silva Pereira, que “por suas múltiplas viagens por toda parte desse território, adquirira grande conhecimento dos luga-res” (Spix y Martius, 1938:211). Estas fontes indicam que a temperatura

[...] nesta terra montanhosa conti-nental, é mais instável; o céu é menos puro e desnublado; a chuva e o sere-no são mais abundantes do que na região da encosta oriental. Começa o tempo das chuvas, não no mês de se-tembro, como acontece no sul nas províncias próximas do mar, mas em janeiro, e dura até abril. Nesse perí-odo, tudo verdeja e floresce com exuberância; porém, durante os me-ses de agosto até dezembro, a terra se torna uma planície esturrada, morta. Este clima estende-se, assim como a natureza do solo, sua causa, a oeste da chapada do Ceará, tam-bém para o norte da província do Pi-auí. Chamam os sertanejos, tanto a esse clima, quanto à vegetação que lhe é peculiar, de agreste, e contra-

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põem-lhe o chamado mimoso [...]. Ademais, sofrem estas regiões, tanto a agreste, quanto a mimosa, de gran-des secas periódicas, como costuma acontecer de 10 em 10 anos, quando o tempo da chuva não chega de todo ou só pouco. A terra rasga-se então em grandes fendas, a vegetação mor-re completamente, os animais do ma-to e numerosos rebanhos são vítimas da fome e da sede, e os habitantes são forçados a exilar-se (Spix y Mar-tius, 1938:211). Na viagem, os naturalistas consta-

taram diversas alterações das condições geológicas. Spix e Martius (1938:213) notaram a presença de um “barro duro, frequentemente vermelho-tijolo” mistu-rando a fragmentos de quartzo, de cores cinza-azulado, preto e avermelhado; e ainda a existência de grandes jazidas de ardósia, cálcicas, de cor lilás-clara. Na fazenda Serrinha, após passarem entre caatingas e hospedaram-se “embaixo de um grande e frondoso juazeiro”, eles se-guiram por um

[...] vasto planalto, cuja vegetação de cerrada caatinga se transformou gradativamente em campos abertos de feição em extremo encantadora. Finas gramíneas e as flores da vege-tação dos campos mimosos cobriam o solo de areia branca, e variados grupos de Cactos, Acácias, Mimosas, Bauinias e Combretáceas, transfor-mavam a região num verdadeiro parque inglês (Spix y Martius, 1938:213). Ao norte da fazenda Serra Branca,

“graciosamnete situada na encosta da montanha de igual nome”, Spix e Martius (1938:217) constataram a mudança da vegetação, de mimoso para agreste. Os mesmo indicaram ter passado por cam-pinas alternadas por caatingas e, após a fazenda da Cachoeira, entrar “nos belos

campos de Santa Isabel” repletos de ar-bustos, carnaubeiras e de juazeiros fron-dosos, em cujas sombras descansavam os rebanhos.

A “linda” região contava ainda com “diversos açudes” e com a presença de “inúmeras” garças, mergulhões e pa-tos. Na fazenda Poções de Cima, Spix e Martius (1938:217) constataram ainda “morros cobertos de vegetação baixa cerrada” e jazidas de pedra calcária. A região próxima à fazenda era repleta de carnaubais que ocupavam terrenos “mais baixos de várzea, pantanosos, e as mar-gens dos riachos e dos açudes”. Na fa-zenda do Bom Jardim, eles encontraram uma formação de colinas espalhadas e alguns montes altos por onde “corre o rio Canindé”. Ao longo deste rio, atravessado várias vezes, os viajantes passaram pelas fazendas públicas da Inspeção Canindé - Poções de Baixo, Campo Grande, Caste-lo, Brejo e Ilha.

A região era dominada por “arbus-tos ralos” e carnaubeiras em “majestosos bosques”. Seguindo o curso do rio Canin-dé, destacava-se a vegetação agreste, com gramíneas, jacarandás e buritizais. Os viajantes chegaram a Oeiras atraves-sando “muitos outeiros baixos, achatados no cume ou apresentando encostas em terraços cobertos de moitas espessas” (Spix y Martius, 1938:217).

O viajante inglês George Gardner (1942), médico e botânico, em passagem pelo Piauí em 1836, descreveu duas rotas de comunicação com a Província e sua capital. Em janeiro, ele saiu de Crato, no estado do Ceará, percorrendo os grandes distritos do gado até Oeiras. De lá, em razão de conflitos no Maranhão, por on-de pretendia viajar para o Rio de Janeiro, o inglês resolveu seguir para o sul, alcan-çando a Corte via Minas Gerais. Para o Rio de Janeiro, o percurso foi realizado saindo de Oeiras para a vila Parnaguá, ainda no Piauí, de onde seguiu até as montanhas das minerações. Nos dois percursos, do Ceará para o Piauí e do

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Piauí para Minas Gerais, vários foram os registros das diferentes paisagens.

No primeiro trajeto percorrido por esse viajante, um pequeno lago indicava a divisa entre o Ceará e o Piauí. A região, próxima à fazenda São Gonçalo, mos-trou-se inicialmente “quase plana e sofri-velmente coberta de matas”; após léguas por terreno arenoso, encontara a fazenda Lagoa Comprida, situada às margens de uma lagoa que lhe dava o nome, medin-do “quatrocentas jardas de cumprimen-to” [cerca de 360 metros]. A jornada segiu pela fazenda Corumatá e por “pés-simos caminhos” marcados por “blocos de granitos” e “porções arenosas”, chuvas e enchentes até a Fazenda Canabrava, partindo, em seguida, para a fazenda Boa Esperança, de propriedade do Pe. Marcos de Araújo Costa (Gardner, 1942:199). A fazenda, segundo o viajante

[...] era das maiores que eu visitará no Brasil e nela estavam para mais de cinco mil cabeças de gado, além de centenas de carneiros. Embora su-jeita esporadicamente a longas secas, como todas as outras do sertão, há todavia nesta fazenda água abun-dante durante o ano todo, mesmo qundo não chove por mais de doze meses a fio. O rio corre a pouca dis-tancia da casa e, conquanto aenas tenha água na estação das chuvas, dele se obtem em todo o tempo abundante suprimento de liquido, graças a uma sólida represa nele construida em lugares onde as mar-gens são um tanto elevadas e rocho-sas de ambos os lados” (Gardner, 1942:199). Gardner (1942:200) constatou ain-

da outras vantagens para o êxito da Boa Esperança. A fazenda estava localizada, assim como “toda a parte oriental da Província”, no chamado “Sertão Mimo-so”, área distinta das zonas central e oci-

dental caracterizadas como agreste. Se-gundo Gardner (1942:200),

[a] vegetação dos sertões mimosos cacteriza-se em primeiro lugar pelo fato de serem as florestas da nature-za chamadas caatingas. São as flo-restas que perdem a folhagem na es-tação da seca. É de notar que produ-zem botões como outras árvores de-cíduas; mas, se acontece de aqui não chover, podem passar anos sem dar folhagem. Em segundo lugar, como foi corretamente assinalado por Von Martius, a vegetação geral dos cam-pos mimosos distingui-se pela deli-cadeza da fibra, rigidez das folhas e presença de pêlos, espinhas ou puas e sucos leitosos, especial e freqüente. A grama dos pastos é pela maior parte geralmente de um verde mais vivo, e de folhas mais flexíveis que a dos campos agrestes, O gado criado no sertão mimoso engorda logo após as chuvas e sua carne é muito mais apreciada que a dos que se alimen-tam nas rudes pastagens dos distritos agrestes (Gardner, 1942:200). Após pernoitar em Jaicós, Gardner

(1942:228) atravessou uma serra “bem plana no topo”, coberta de vegetações que “crescem em alguns pontos com densidade tal, que se tornam quase im-penetráveis”. Nas proximidades da Fa-zenda Santo Antônio, ele encontrou “uma floresta de carnaubeiras” com “várias lagoas”, seguindo-se mata virgem com “vegetação baixa”. A região continuava plana até as proximidades da fazenda Retiro, situada às margens do rio Guari-bas, um dos maiores vistos. Gardner (1942:228) seguiu pelas fazendas Boquei-rão, Canabrava e Canavieiras até as mar-gens do rio Canindé, na passagem de Dona Antônia. Após a travessia e pas-sando por uma “arenosa planície coberta de pequenas árvores e belos arbustos floridos”, chegou a Oeiras.

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Gardner permaneceu quatro me-ses em Oeiras, de onde seguiu, em julho, sua “penosa e cheia de tédio” jornada por terra, pelo sul do Piauí, ao Rio de Janeiro (Gardner, 1942:229). Cerca de duas léguas da Vila, encontrou

[...] uma bela região de cenário va-riado e semelhante a um parque. Aparecem vastos tractos de planícies a que dão o nome de chapada, com matas raras de ávores de cajú (Ana-cardium accidentale), jatobá (hyme-noea), paraíba (Simaruba vescicolor), e a folha larga (Salvertia convalla-riodora) - belas árvores de grandes folhas e vergonteas de flores delica-damente perfumosas” (Gardner, 1942:229). Ainda próximo a Oeiras, o viajante

passou por diversas fazendas públicas até chegar aos campos agrestes. Conforme sua descrição, os campos

[...] são em parte abertos, em parte cobertos de mato; os abertos cobrem-se de ervas perenes e grosseiras e não são de todo despidos de árvores, mas as que há são todas mais ou menos decíduas, com exceção de uma só que é verdadeiramente sempre verde, uma espécie de zizyphus, conhecida pelo nome de joazeiro, não é grande, mas tem ampla ramagem e dá exce-lente sombra, da qual por vezes nos valemos durante a calma do dia. Também o gado gosta da sombra amiga desta árvore, bem como do doce fruto carnoso, do tamanho de uma pequena cereja, que ela dá em grande quantidade e que, quando maduro, cai ao chão. O fruto, que se chama joá, também comem os habi-tantes. Muitas árvores destes tractos têm aspéto estiolado, com ramos no-dosos e tortos. Por vezes se encon-tram nos campos agrestes paus de grande extensão, onde crescem api-

nhadas as palmeiras do buriti, com fruto doce, que é o principal alimen-to das três espécies de araras que em bando as frequentam [...]. Muitas das chapadas, onde o solo é de argila vermelha, são cobertas de inúmeros formigueiros, ás vezes de seis ou oito pés de altura que, vistos de longe, parecem choças de barro. São for-mados pela formiga branca e como este inseto é o principal alimento do avestrus (Rhes americana) e do gran-de comedor de formiga, o tamanduá dos nativos (Myrmecophaga jubata), vimos muitos deles nos arredores dos formigueiros. Nas zonas de mata mais cerrada as árvores muito se as-semelham às caatingas dos campos mimosos e, como estas, são decíduas na estação da seca (Gardner, 1942:231-32). Cerca de 30 milhas [aproximada-

mente 48 km] de Oeiras, o viajante des-cansou um dia na aldeia Algodões, de onde seguiu para a fazenda Pombas, en-contrando em sua proximidade uma “grande lagoa de água doce” de 12 km de comprimento, “em quase toda a sua ex-tensão é cercada por uma cinta de car-naubeiras”, e repleta de vegetação aquá-tica, jacarés e capivaras. O percurso o levou ao sítio Retiro Alegre, situado em um pequeno vale, “rodeado de altas coli-nas e abundante em buritis”, onde encon-trou um “pretinho” encarregado de con-duzi-lo até a fazenda Genipapo, do capi-tão Valentim Pereira da Silva, proprietá-rio de toda a região, incluindo outra fa-zenda visitada: Canavieiras (Gardner, 1942:238).

Após a travessia do rio Gurgueia, Gardner (1942:238) entrou no distrito de Uruçuí, onde toda a região, “com exceção das ribanceiras do rio, estava inteiramen-te seca, por falta de chuvas”; descansou na Fazenda dos Prazeres, situada em um “outeiro um tanto elevado, dentro de um grande vale, cuja extremidade superior é

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pantanosa e cheia de buritizeiros”, de onde seguiu por 10 dias até a aldeia Ra-posa. A região que atravessara era

[...] uma planície geralmente árida, principalmente quando éramos obri-gados a caminhar a distância do rio, porque suas margens são pela maior parte cobertas de matas, com árvores de jatobá, piqui, diversas especiés de laurus e grandes bignonias, que se acham nesta estação ornadas de suas vivas flores amarelas. Entre estas cresciam muitas trepadeiras, bauhi-nias, cambretums, bignonias, mal-pighias e outras, cuja ramagem, co-berta de variegadas flores, adorna-vam lindamente a copa frondosa das árvores. Grandes e numerosas figuei-ras silvestres que cobrem a margem do rio serviam-nos frequentemente de abrigo, tanto de dia como de noi-te. Era sempre agradavel viajar à sua sombra e tanto mais porque a região em torno só apresentava umas pou-cas árvores sem folhas e o solo, de um vermelho cor de tijolo, tinha sua vegetação rasteira quase destruída. Durante esta estação, o gado fre-quenta as margens do rio, em procu-ra de água como de grama e outras ervas rasteiras que aí crescem mas no ano corrente estas haviam sido to-talmente destruídas pela grande ele-vação das águas durante as chuvas anteriores, mais pesadas, ao que se dizia, que quaisquer outras havidas desde 1820. Pelos sinais deixados nos troncos das árvores podia-se perce-ber que as águas lodosas se haviam elevado dez pés acima do nível da es-trada (Gardner, 1942:238). As descrições retratam uma pai-

sagem marcada por contrastes, ainda mais diversificada, considerando as esta-ções de chuva e de estiagem. Contudo, é fato que as condições naturais eram de-terminantes. Segundo o memorialista

José Martins Pereira D´Alencastre (1857:69),

[...] as fazendas de gado vacum es-tão situadas sobretudo nas fraldas de vários olhos d´água que delas nas-cem. Para que no sertão uma fazen-da mereça o nome de boa, deve ser primeiro bem provida de água, por-que sendo o Piauí sujeito a secas, como todos os altos sertões do Brasil, as fazendas com faltas de água são as primeiras que ficam despovoadas de seus gados. Os contrastes do clima e seu im-

pacto sobre a vegetação, os rebanhos e a vida dos sertanejos estão sintetizados no “Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capi-tania do Piauhy” (Revista do Instituto Historico e Geographico Brazileiro, 1900). O autor [supostamente João Pereira Cal-das] assegura que no

[...] inverno, as chuvas que nunca vem sem horrorosas trovoadas e são ordinariamente de leste, principiam no mês de outrubro, novembro ou dezembro, e acabam em abril. Neste tempo que os sertanejos só distin-guem pelo tempo das águas, é a Ca-pitania do Piauí fertilíssima: o seu terreno todo aberto com largos cam-pos, e povoado de dispersos arvore-dos aparece em bem poucos dias co-bertos de folhas, de flores, e frutos, e frutos silvestres, com tal variedade na cor e tal diversidade na figura, que não só recrião a vista, e o olfato; mas também o gosto daqueles, que com eles são criados, ou a eles se acostumam. No mês de abril tanto que sopram de Leste os ventos gerais, param as águas, e principia o tempo, a que chamam de seca, tempo, em que tudo se põe em decadência; e já em agosto, e setembro muita parte dos campos aparece sem erva, as ár-vores sem folhas; e se acontece não

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principiarem logo as águas, nos me-ses de outubro, novembro e dezem-bro, sofrem-se todas as calamidades da maior seca (Revista do Instituto Historico e Geographico Brazileiro, 1900: 75). Para a produção pastoril, tão im-

portante quanto os cursos perenes de água eram os campos e suas pastagens. Os sertões do Piauí eram ricos em vege-tações do tipo agreste e capim mimoso, que se adequavam à formação de pastos. As qualidades do capim mimoso apresen-tavam-se superiores ao criatório e permi-tiam uma maior produtividade do reba-nho. Nestas áreas denominadas campos mimosos, ricas em boas pastagens, cres-ciam os melhores rebanhos. Estes cam-pos foram os primeiros a sofrer os impac-tos do criatório extensivo, com uso inten-sivo da natureza e elevada concretração de terras e rebanhos. Uma das conse-quências materiais do processo foi a re-dução da capacidade produtiva a partir da segunda metade do século XVII. Para o engenheiro Gustavo Dodt (1981), em 1871, a causa era a ausência de um sis-tema racional de criação. Para ele, reina-va uma

[...] rotina mais trivial possível, achando-se a criação quase entregue à revelia. Solta-se o gado, o vaqueiro olha às vezes para ele a fim de saber se há alguma rês com bicheiras e neste caso leva-a para o curral a aplicar um remédio, se ele não prefe-rir por causa da sua preguiça e para evitar o trabalho de pegar a rês, a aplicação de uma simpatia estúpida, que eles chamam “curar pelo rasto” de cuja eficácia com toda razão se pode duvidar (Dodt, 1981:48). Para o referido engenheiro, a la-

voura no estado do Piauí seguia tão mal quanto a pecuária. A causa para o atraso da agricultura não estaria nas intempé-

ries naturais, que de certo influenciavam, mas não determinavam:

A causa verdadeira é outra e pode ser achada somente na indolência e preguiça da classe dos trabalhadores livres. A escravatura é tão insignifi-cante, que seu produto não pode en-trar na conta. A classe dos trabalha-dores livres, porém, acha na caça, na pesca, nos frutos do mato tantos meios de subsistência que a necessi-dade não os obriga a trabalharem, e eles preferem ao bem-estar, que po-diam obter por um trabalho regular, uma vida ociosa ainda que miserável, mendigando, furtando e caloteando aos proprietários, em cujas terras habitam (Dodt, 1981:51). Instituía-se, assim, a partir de en-

tão, a preguiça como explicação para a pobreza do sertanejo e do estado do Pi-auí. As fortunas da elite agrária piauiense aparecem como frutos de dádiva celestial como as supostas riquezas da terra. Referências ABREU, Capistrano. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Rio de Janei-ro: Liv. Briguiet, 1960. D´ALENCASTRE, José Martins Pereira. “Memoria: chronológica, historica e co-rographica”, Revista do Instituto His-torico e Geographico Brazileiro, t. XX, v. 20, pp. 5-164, 1857. DODT, Gustavo Luiz Guilherme. Descri-ção dos rios Parnaíba e Gurupi. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; EdUsp, 1981. ENNES, Ernesto. As guerras nos Pal-mares: Subsídios para sua história. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. GARDNER, George. Viagens no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. MAESTRI, Mário. Os senhores do lito-ral: conquista portuguesa e agonia

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Tupinambá no litoral brasileiro. Porto Alegre: UFRGS, 1994. MARTINS, F. A. Oliveira. Um herói es-quecido (Diário da viagem de regres-so para o reino de João da Maia da Gama, e de inspecção das barras dos rios do Maranhão e das capitanias do norte, em 1728). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1944. MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Difel, lv. 1, v. I., 1984. MOTT, Luiz R. B. Piauí colonial: popu-lação, economia e sociedade Teresina: Fundação Cultural do Piauí, 1985. NUNES, Odilon. Os primeiros currais: geografia e história do Piauí seiscen-tista. Teresina: Comepi, 1972. NUNES, Odilon. Pesquisas para a his-tória do Piauí. Rio de Janeiro, Artenova, 1974. PITTA, Rocha. História da América portuguesa. Rio de Janeiro: W. M. Jack-son, 1950. PORTO, Carlos Eugênio. Roteiro do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, 1974. REVISTA DO INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAPHICO BRAZILEIRO, (1900), Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhy, t. LXII, pp. 60-161. SPIX, Johann Baptist von y MARTIUS, Carl Friedrich Phillipp von. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacio-nal, 1938.

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UM RIO ENTRE A MISÉRIA E O “PROGRESSO”: As relações entre Trabalho e Natureza em

Parnaíba-PI na primeira metade do século XX (1900-1920).

Alexandre Wellington dos Santos Silva1 Resumo O presente artigo busca compreender as sociabilidades urbanas de traba-lhadores e trabalhadoras na cidade de Parnaíba-PI com o Rio Parnaíba, e da mesma forma, compreender como este último interferia no cotidiano dos primeiros. Possui como bases teóricas a História Social (THOMPSON, 2001; SAMUEL, 1990) assim como a História Ambiental (WINIWARTER, 2010; WORSTER, 2015). Metodologicamente trabalha com estudos biblio-gráficos e de imprensa. Divide-se da seguinte forma: “A natureza vista de baixo”, realiza um debate entre a História Social e a História Ambiental; “Os trabalhadores e a natureza” formula as interações entre as diversas categorias laborais da cidade e o meio ambiente; “Conclusão”, observa a influência do Meio Ambiente na vida dos trabalhadores. Palavras-chave: História Ambiental; História Social; Parnaíba; Trabalho. Abstract This article aims to understand the urban sociabilities of workers in Par-naíba-PI with the Rio Parnaíba, and likewise understand how the last interfered in early daily life. Has as theoretical basis the Social History (THOMPSON, 2001; SAMUEL, 1990) as well as Environmental History (WINIWARTER, 2010; WORSTER, 2015). Methodologically works with bibliographic studies and press. Divided as following way: "Nature from below", makes a debate between the Social History and Environmental History; "Workers and nature" formulates interactions between the vari-ous job categories in the city and the environment; conclusion, observes the influence of environment on the lives of workers. Keywords: Environmental History; Social History; Parnaíba; Work.

1 Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí. Coordenador do GT

“Trabalho e Natureza” do Núcleo de Estudos Aplicados ao Meio Ambiente (NEAMA)

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Por uma Natureza “vista de baixo” E. P. Thompson dá o título de

“History from below” ao artigo que de acordo com Sharpe (1992, p. 41) fez com que o conceito de “história vista de bai-xo” entrasse “na linguagem comum dos historiadores”. Nele, o autor busca rom-per com a “historiografia inglesa oficial-mente correta”, isto é, uma oposição à história “das elites” e passava a analisar a “gente comum”.

Estes e outros escritos, deste e de demais autores abriram caminho para a solidificação das teorias da História Soci-al, campo da História dedicado ao estudo da “‘vida real’ ao invés das abstrações, pela gente comum ao invés das elites privilegiadas, pelas coisas cotidianas em vez dos eventos sensacionais” (SAMUEL, 1991, p. 135).

Além da característica de oposição a História dos grandes homens e dos grandes acontecimentos, outra marca da História Social é sua interdisciplinarida-de, que busca analisar os fenômenos so-ciais e culturais através de diversos pris-mas e não somente da economia, levando em consideração que estes não estão “a reboque”, “seguindo os fenômenos econômicos a distância: eles estão, em seu surgimento, presos na mesma rede de relações” (THOMPSON, 2001. p. 208).

Apesar do esforço da História So-cial em compreender o real a partir de múltiplas perspectivas, Worster (2015, s/p) aponta que “Os historiadores nunca acreditaram que seu trabalho incluía levar em conta a natureza, nem o lugar da humanidade na natureza”, e aponta que “Mesmo historiadores dos oprimidos têm tendência para se concentrar exclu-sivamente na espécie humana, fazendo do ‘ser humano’ uma ideologia de exclu-são e superioridade” (idem).

Esta História Ambiental que se-gundo Winiwarter (2010. p. 02), “preocu-pada com as interações entre a natureza e as sociedades humanas do passado, dá importância ao lugar e tenta associar a

história humana com os sistemas natu-rais” busca estudar as consequências da interação dos indivíduos com a natureza, e vice-versa.

Tal interação por sua vez possui um sem-número de “recortes”, mas neste trabalho optou-se por centrar a análise sob o viés de classe, isto é, “(...) um fenô-meno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemen-te desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciên-cia” e que não pode ser tratado como “uma ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas”. (THOMPSON, 1987. p. 09). Esta tomada de decisão se dá pela necessidade de compreender que as relações sociais com o meio ambiente não produzem experi-ências de forma igual para todos, ou seja,

“(...) é preciso recordar que vivemos em um regime guiado por uma divi-são social do trabalho, onde a uns cabem as decisões e a outros, o cum-primento de diretrizes previamente traçadas. É preciso lembrar que o ca-ráter privado da propriedade no re-gime capitalista determina uma apropriação privada da natureza, se-ja em escala local, nacional, e dada à extensão de uma divisão internacio-nal do trabalho, em escala mundial”. (WALDMAN, 1990. p. 36). Desta forma, a proposta geral des-

te artigo consolida-se na busca por uma “natureza vista de baixo”, isto é, na jun-ção entre a História Social e a História Ambiental, ansiando em perceber as rela-ções de trabalho dos setores marginali-zados de determinado local com a natu-reza, e o quanto esta última afeta os pri-meiros.

Os “Mundos do trabalho” no Rio Par-naíba.

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O Rio Parnaíba foi fundamental para o estabelecimento da cidade de Par-naíba como um dos principais entrepos-tos comerciais do Nordeste durante a primeira metade do século XX. Welle (1912. p.10), discutindo o desenvolvimen-to do Estado do Piauí, defende que uma das dificuldades para acompanhar seus vizinhos é sua falta de comunicação, con-siderando que “O único canal de comuni-cação, relativamente fácil, mas vagaroso, é o rio de Parnaíba (...)” (tradução nossa). Percebe-se ainda mais a importância do rio para a vida comercial do Estado e da cidade através de sua utilização para tal fim:

“Importa-se diretamente da Inglater-ra e da Alemanha armas, munições, tecidos e roupas feitas, calçados, chapéus, louças, talheres, azeite, manteiga, queijos, presuntos, massas alimentícias, farinha de trigo, medi-camentos, sabão, ferragens, tintas, artigos de armarinhos, moda, escritó-rio, dentre outros. Da Guiana Fran-cesa recebia o Piauí também louças, espelhos, conservas alimentícias, manteiga, farinha de trigo. Direta-mente da França, medicamentos, vi-nho, charuto, peixe em conserva, ci-garros e muitos outros artigos”. (NUNES & ABREU apud BARBOSA, 1995. p. 99) Esta vasta rede econômica guiada

através da lógica do rio não se constituiu pelo mero desejo de uma dúzia de gran-des abastados. Foi forjada através do suor de milhares de trabalhadores que, marginalizados do poder instituído, ti-nham, por vezes, no labor, a única ferra-menta de sobrevivência. A experiência coletiva de múltiplos ofícios gerados a partir da existência do rio produziram saberes e peculiaridades no modo de viver destes trabalhadores, constituindo assim os “mundos do trabalho”, isto é,

“ (...) o conjunto de fatores que en-globa e coloca em relação a atividade humana de trabalho, o meio ambien-te em que se dá a atividade, as pres-crições e as normas que regulam tais relações, os produtos delas advindos, os discursos que são intercambiados nesse processo, as técnicas e as tec-nologias que facilitam e dão base pa-ra que a atividade humana de traba-lho se desenvolva, as culturas, as identidades, as subjetividades e as relações de comunicação constituídas nesse processo dialético e dinâmico de atividade. Ou seja, é um mundo que passa a existir a partir das rela-ções que nascem motivadas pela ati-vidade humana de trabalho” (FIGA-RO, 2008. p. 92). Estes trabalhadores e trabalhado-

ras constituíam numericamente a maio-ria esmagadora da população, encontra-vam-se duplamente marginalizados: Dis-tanciados das esferas de decisão coletiva e habitando a periferia da cidade de Par-naíba no início do século XX, nos “ (...) bairros proletários, uma enorme cinta de palhoças e casebres, onde as ruas não eram calçadas, não havia jardins nem praças arborizadas e onde os fios elétri-cos não chegavam. Eram a Coroa, os Tucuns e os Campos” (BRANCO, 1981. p. 20). Parte destes bairros beiravam as margens do Rio, onde, segundo RECLUS (1900, p. 169), “As casas erguem-se na margem direita d'um abraço do delta (...), num terreno humido de alluviões, onde a acclimação não se faz sem perigo” Ainda segundo Branco (1981. p. 20-21), sua “ (...) população, duas vezes maior que a de Parnaíba propriamente, vivia inteiramen-te em dependência da cidade”. Das diver-sas categorias de trabalhadores, elenca-mos três delas para analisar suas relações com o Parnaíba: Os estivadores, os varei-ros, e as prostitutas. Estes primeiros eram responsáveis pela carga e descarga de produtos vindos de diversas partes do

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país e do mundo. Branco (1981. p. 20) nos expõe o cotidiano destes trabalhadores:

E entre as sacas e os armazéns, fervi-lhavam os estivadores, a catraia, os vareiros, os embarcadiços, só de tan-gas, pés descalços, tronco nu, uma faca de marinheira pendurada na cintura, ou um grande punhal, o “es-pin”, que é sua arma, seu compa-nheiro, seu tudo. À cabeça levavam um saco de estopa, ora em carapuça para proteger do sol e da chuva, ora em “rodia” para amortecer o peso das cargas. A fisionomia, os costumes e as

vestimentas destes estivadores permite-nos revelar um panorama mais amplo da “gente comum” que subsistia através do trabalho no rio. Trazem a reflexão do tipo de trabalho que realizavam, das suas dificuldades diárias e de suas peculiari-dades. Campos (1983, p. 306), em suas “Memórias”, manifesta, também, suas impressões acerca dos estivadores: “Por toda a extensão do pequeno cais, que tomava a largura da rua e era continuado pelos telheiros dos armazéns da Alfânde-ga, enxameava todo um mundo de esti-vadores, pretalhões e caboclos despidos da cintura para cima e da coxa para bai-xo (...).” O autor continua:

“Ao cair da tarde, terminadas as des-cargas, vinham aqueles homens esti-rar-se no largo passeio do estabele-cimento, e à sombra dele, as mãos cruzadas por baixo da cabeça, tro-cando pilhérias grosseiras (...). Às ve-zes, excedidos na aguardente, trava-vam luta, investindo-se de cacete em punho, a mão no cós à procura da faca. (...)”. (CAMPOS. 1983. p. 306-307) Estes combates eram quase que

corriqueiro entre os estivadores, para demonstrar superioridade física ou até

mesmo como divertimento. Uma catego-ria dominada pelo sexo masculino, onde “Tudo, nesse ambiente, respirava cora-gem, valentia, força física, e quase sem-pre, ingênua, leal e desassombrada fero-cidade”. (CAMPOS. 1983. p. 307)

Embora essas ações possam deno-tar cisões internas ou total fragmentação de classe, os estivadores manifestavam períodos de unidade em prol da catego-ria. A exemplo disto, o jornal A Semana, de Parnaíba-PI, noticiava no ano de 1916 sobre a ocorrência de uma greve em um dos navios de carga no Porto da cidade, organizada pelos estivadores:

“Foi muito grave a greve havida ha dias à bordo do vapor Christino Cruz, ao nosso porto em ocasião de seguir viagem para Tutoya. O caso foi que os tripulantes do sobredito vapor não recebiam suas soldadas nas quaes estavam atrasados havia algum tempo. Consta-nos que à vista dessa reclamação aliás bem justa o sr. capitão do Porto intimou o vapor a não sahir enquanto não satisfazes-se aquelle compromisso. Consta-nos ainda mais que o ser agente depois de ter rezado o padre nosso de traz para diante e diante para traz e o credo em cruz conseguiu que lhe em-prestassem o dinheiro para o paga-mento e o Christino lá se fio lampei-ro com a tripulação garbosa rumo de Tutoya. Antes assim...”. (Greve Gra-ve. A SEMANA, 3 de dezembro de 1916. ano I, n° 8. p. 03). Estas ações podem refletir o pro-

cesso organizacional no qual os estivado-res passaram ao longo do tempo. Tal premissa é defendida por conta dos regis-tros documentados no Almanak Admins-trativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, também conhecido como “Alma-nak Larmmert1”. Em sua edição do ano

1 III Vol, “Estados do Norte”. p. 3910

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de 1921-1922, deram conta da existência, na cidade de Parnaíba, da “Sociedade União dos Estivadores”. Os conflitos, métodos organizacionais e especificida-des locais desta associação ainda estão por serem analisados, por conta da au-sência de fontes.

Tão árduo e intenso quando o tra-balho dos estivadores era o dos vareiros, que recebiam esse nome devido as varas que utilizavam para guiar a velocidade e direção das precárias barcas onde trans-portavam, por vezes, toneladas de produ-tos, e, segundo Campos (1962, p. 168), “O que caracteriza êsse gênero de transporte primitivo é, todavia, a fôrça que o aciona. Fôrça humana. Braço de caboclo. Múscu-lo negro. Energia de homem branco em-brutecido pela pobreza”, e que “ (...) le-vam aquelas toneladas de carga, no valor de centenas de contos, de Floriano a Par-naíba, rio abaixo, ou e Parnaíba a Floria-no, Rio acima, através de centenas de léguas, vencidas penosamente” (idem). Formavam a base do transporte fluvial no Rio Parnaíba, e, por isso, uma das forças principais para o “crescimento” do co-mércio no Estado. Porém, Lima (1987. p. 15) nos indica que:

(...) esse comércio vivo e vigoroso, que prosperava rapidamente a pouca distância do porto de amarração (...), teve sua origem na força física do homem do rio. No chamado vareiro, que antes de contar com o concurso da pequena embarcação a vapor teve ele mesmo que gerar força motriz necessária para acionar as primeiras embarcações, desde o Porto Salgado, até além do curso médio do rio Par-naíba. Realizando seu trabalho ao longo

do Rio Parnaíba “semi-nus, tendo apenas, entre a cintura e coxa, um calção de zuar-te ou de estopa, molambo que os mendi-gos recusariam, resto de uma calça ou de um saco, a musculatura à mostra (...)”

(CAMPOS, 1962. 168-169), sofriam as intempéries do tempo, traduzidas em tempestades, ou mesmo nas cheias do rio. Adquiriam enfermidades, e eventu-almente iam a óbito, como narra Campos (1962. p. 162-163).

“O “vareiro” vomita sangue. Faz mais uma ou duas viagens. Emagrece. A febre, que o visitava cada ano, tor-nou-se a sua companheira de cada dia. Desambarca para curar-se. To-ma um ou dois remédios caseiros. Sustenta-se com as esmolas que lhe dão, no povoado em que agoniza. E morre, indo fecundar com a sua car-ne mortificada, ou com os seus ossos, as ribanceiras do rio, que as águas avolumadas cobrirão nas enchentes do próximo inverno. Os vareiros não foram páreo para

a concorrência desleal dos “vapores” de pequeno porte, mais ágeis, mais fortes, podendo levar o dobro das cargas trans-portadas por eles, por um preço relativa-mente mais alto, que para serem instala-dos, necessitaram de quantias significati-vas de capital, irônica e lamentavelmente extraídas através do processo de mais-valia das diversas categorias de trabalha-dores, dentre elas, os próprios vareiros. Desta forma, concordamos com Lima (1987. p. 16) quando este declara que

(...) o progresso foi baseado princi-palmente no oportunismo do esforço alheio. Na energia daqueles que mo-rejando de sol a sol numa cruenta batalha pela própria sobrevivência, atolados na completa ignorância em que viviam, cedo desapareciam, sem deixarem um marco sequer na cami-nhada empreendida pela prosperida-de material da região, da qual nunca participaram. Outra contradição dialética do

trabalho através do Rio era a incidência

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da prostituição, geralmente no porto. Campos (1983, p. 306) nos relata que “No cais, era possível vislumbrar “ (...) uma infinidade de pretinhas adolescentes, ou velhas megeras desgrenhadas e sujas, que se degradavam na embriaguez e na prostituição”. Estas mulheres, de acordo com Branco (1981. p. 21) “ (...) recebiam em seus braços os caboclos de sua zona ou os rapazes do centro e os mandavam de volta com cargas idênticas de 'doença do mundo'“.

A ameaça da pobreza quase sem-pre, para estas mulheres, acompanhava a ameaça dos preconceitos sociais, advindo de trabalhadores, e de ambos os sexos, entre a elite, e da ameaça constante das enfermidades causadas pelas relações sexuais, como a sífilis. Campos (1962. p. 180-181) nos apresenta o interior da mo-radia de parte dessas prostitutas, próxi-mas ao porto:

Eram quartos isolados, comparti-mentos de um telheiro baixo, espécie de 'cortiço' do norte, sem qualquer dependência para a higiene do mo-rador. (...) O chão, de tijolo, achava-se esburacado, como se por alí pas-sassem carroças, veículos de grande pêso. O teto, baixo, inclinava-se para o interior, ficando quasi à altura da mão. Porta, não havia senão aquele, por onde eu entrara. E o quarto era tão estreito, que a rede o atravessava, de uma parede a outra. Rede imun-da, escura, e sem varandas. Rede que substituía a cama dos prostíbulos ci-vilizados. Rede em que havia, talvez, areia dos pontos mais remotos da ci-dade, trazida nos pés sujos dos cabo-clos urbanos e dos mulatos pacholas da redondeza. Na rígida hierarquia social da

época, as prostitutas alcançavam o últi-mo lugar, pois somente a presença destas entre a alta sociedade parnaibana feria duplamente os “padrões” destes: Econo-

micamente, por serem pobres; Moral-mente, por serem prostitutas. A contradi-ção, porém, surge no momento em que parte dos homens que compunham as famílias tradicionais usufruíam dos “ser-viços” das prostitutas. Branco (1981. p. 88), ao expor as paixões que este e outros filhos dos vultos da cidade tinham pelas mães e filhas dos “grandes homens” de Parnaíba, declara que não poderiam vê-las senão de forma platônica, e que “Nos-sos amores humanos, as exigências de nossos corpos, íamos satisfazer nas em-pregadinhas, nas mulatas, nas cunhãs. Pois não era esta a tradição do machismo luso-brasileiro, que herdáramos, sem discutir nem analisar, de nossos avós?”.

Conclusão

Parnaíba sempre sofreu influên-cias consideráveis da natureza. Os bair-ros pobres, expostos por Renato Castelo Branco, carregam em seus nomes a mar-ca da interação entre a sociedade e o Meio Ambiente: A Coroa “ (...) situa-se à beira-rio. O seu nome original nasceu das “coroas” do rio, espécie de minúsculas ilhas, formadas ao leito do Igaraçu, quando diminui a sua correnteza” (PAS-SOS, 1987. p. 25).

O Bairro dos Tucuns, descrito por Passos (1987. p. 44), era conhecido assim por ser erigido em “uma mata cerrada. O tucum, planta da família das palmáceas (...) imperava na região. (...) O homem, aventureiro audaz, começou a fazer às margens do Igaraçu as suas casas de barro batido, cobertas das palhas dessas palmeiras (...)”. Passos (idem) ainda in-forma que “Ali moravam as famílias que faziam do rio o seu ‘tesouro encantado’. Eram vareiros, canoeiros e pescadores”.

Essas regiões próximas ao rio so-friam constantemente com inundações. Nos Relatorios dos Presidentes dos Estados Brasileiros (1917. p. 06), composto pelo Governador Eurípedes de Aguiar, dá con-ta que em diversas regiões do Estado “Riachos insignificantes fizeram-se rios

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caudalosos, baixões e várzeas transfor-maram-se em lagôas immensas (...). Os caminhos, alagados, ficaram intransita-veis, muitas casa ruiram (...). No ano se-guinte, os “Relatórios” (1918. p.07) regis-tram um “Auxilio do Governo Federal ás victimas das inundações”, destinadas ao “ (...) soccorro ás victimas das inundações neste Estado”, sendo repassada a quantia de 4:250$00 para a Santa Casa de Miseri-córdia, em Parnaíba.

Desta forma, concluímos que a percepção da função do rio estava dire-tamente ligada aos aspectos econômicos, culturais e sociais de determinada classe. O rio que trazia produtos de importação dos principais centros comerciais mundi-ais, ou que importava artigos produzidos em solo parnaibano para outras cidades ao longo de sua encosta, era o mesmo que devorava a vida e o suor de inúmeros trabalhadores. O rio que carregava as riquezas, refletidas nos casarões dos grandes comerciantes da cidade, levava consigo, em tempos de enchente, as resi-dências do povo simples que habitava em suas margens. O rio, sinônimo de pro-gresso econômico para as classes domi-nantes, significava trabalho, miséria e morte para os subalternos.

A pesquisa encerra-se na esperan-ça de colaborar para análises futuras, tendo como norte teórico História Social e a História Ambiental. Tenta também construir a perspectiva de que as rique-zas produzidas durante o período de fausto da urbe foram usufruídas por uma ínfima parcela da população, e que as classes produtoras não participaram igualitariamente do processo de divisão destas riquezas; da mesma forma, tenta compreender o papel fundamental da natureza no sistema de construção de sociabilidades e experiências coletivas, e o quanto estas mesmas sociabilidades e experiências influenciam a natureza.

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JOSÉ CEARÁ E O PCB: A trajetória de um operário comunista no

Piauí (1933-1964).

Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais Sousa1 Resumo O presente artigo se propõe a discutir a trajetória do operário José Ceará tomando como ponto de inflexão a relação que este personagem constru-iu ao longo da sua vida com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) no Pi-auí. No tocante a perspectiva teórica, dialogamos com a recente produção sobre biografias históricas, ressaltando a miríade de possibilidades que o tema suscita. Outrossim, a pesquisa foi realizada a partir de um amplo leque documental que fundamenta o debate proposto pelo artigo. Palavras-Chave: biografia; militância; comunismo. Abstract This article aims to discuss the trajectory of the workers José Ceará tak-ing as a turning point the relationship that this character has built throughout his life with the Brazilian Communist Party (PCB) in Piauí. Regarding the theoretical perspective, we dialogue with the recent litera-ture on historical biographies, highlighting the myriad of possibilities that the subject raises. Furthermore, the survey was conducted from a broad array document underlying the discussion proposed by the article. Keywords: biography; militancy; communism.

1 Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí. [email protected]

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1. Sobre biografias e operários A ideia de fazer este artigo nasceu

ainda durante a escrita da minha disser-tação sobre a história das Ligas Campo-nesas no Piauí, quando me deparei com o velho pedreiro José Ceará, Secretário Geral do PCB do Piauí. Conhecer este personagem me levou a refletir sobre a importância dos indivíduos na história, bem como sobre a capacidade transfor-madora que o projeto inaugurado pela Revolução Russa de 1917 exerceu sobre homens como José Ceará.

Neste sentido, o presente artigo se propõe a realizar uma biografia histórica de José Ceará. Ao discorrer sobre a re-descoberta da biografia pelos historiado-res, Sabina Loriga pontuou que não se trata mais da busca pelo “grande ho-mem”, mas do homem comum, que se tornou o objeto principal dos estudos sobre “a cultura popular, dos trabalhos de história oral ou da história das mulhe-res” (LORIGA, 19998, p. 244). Segundo a autora, os trabalhos de E. P. Thompson, e suas reflexões sobre as relações

entre experiência e estrutura, fo-ram fundamentais para a constituição deste novo olhar sobre a biografia.

No Brasil, trabalhos de historiado-res como Benito Bisso Schmidt, acerca da trajetória de operários socialistas no Rio Grande do Sul, têm sido fundamentais para a retomada da biografia como pers-pectiva de análise. Abordando a historio-grafia recente sobre biografias no Brasil, o referido historiador salientou que a relação entre trajetórias individuais e contextos passou a ser encarada como uma “via de mão dupla” evitando, assim, o “individualismo exacerbado”, e seu extremo oposto, “a determinação estru-tural estrita” (SCHMIDT, 1998, p. 239).

Deste modo, abordo a trajetória de vida de José Ceará elegendo como eixo da narrativa a relação construída entre este personagem e o PCB. Esta escolha justifica-se, em grande medida, pelo acesso a fontes que tornaram possí-

vel pensar esta relação. Entres tais fontes, encontra-se o Inquérito Policial Militar (IPM) aberto contra os militantes presos no Piauí em abril de 1964 por ocasião do Golpe Militar, cujos anexos apresentam uma importante documentação sobre as atividades do PCB no início dos anos 1960, com destaque para a participação de José Ceará neste contexto.

Seguindo as proposições de Jac-ques Revel, no decorrer deste trabalho procuro abordar a “experiência biográfi-ca” de José Ceará como “um conjunto de tentativas, de escolhas, de tomadas de posição diante da incerteza” (REVEL, 1998, p. 38). Desta maneira, as trajetórias podem ser lidas como “um campo de possibilidades” onde os sujeitos constitu-em-se como protagonistas de sua própria história.

2. Caminhos cruzados: José Ceará, a Classe Operária e o PCB em Parnaíba

José Pereira de Sousa, que ficaria mais conhecido durante sua vida como José Ceará, nasceu na pequena cidade de Ipueiras localizada no noroeste do Estado do Ceará em 19 de março de 1901 (TER-MO, 2015). Não localizei qualquer refe-rencia sobre sua infância ou adolescên-cia. Voltamos a encontrar de José Ceará apenas em 1933, já estabelecido na cida-de de Parnaíba onde passou a trabalhar como estivador no porto daquela cidade. O percurso realizado por nosso persona-gem confunde-se com o de milhões de cearenses neste período, impelidos a mi-grar para outras regiões em virtude dos extensos períodos de seca que assolavam as cidades do semiárido nordestino.

Deste modo, grandes períodos de seca, como o de 1915, podem ter obrigado José Ceará (e talvez sua família) a migrar para outras regiões. Mas por que Parnaí-ba? Nas primeiras décadas do século XX, a economia piauiense passou por impor-tantes transformações. A produção extra-tiva (borracha da maniçoba e cera de carnaúba) dinamizou a economia do Es-

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tado, integrando-a ao comércio mundial. Neste contexto, a localização de Parnaíba como centro exportador daqueles produ-tos representou um crescimento vertigi-noso de sua atividade comercial, da po-pulação urbana e, dentro de determina-dos limites, das atividades industriais.

Nesta perspectiva, Parnaíba se transformou em um polo de atração de pessoas e capitais, recebendo constantes contingentes de migrantes do interior do Piauí, do Maranhão e do Ceará, entre eles o jovem José Pereira de Sousa. Como muitos trabalhadores que chegavam a Parnaíba, José Ceará passou a trabalhar como estivador, carregando e descarre-gando mercadorias dos navios atracados no porto daquela cidade (MOREIRA, 2015, p. 114). Além de trabalhar na estiva, nosso personagem era (pelo menos desde 1933) Primeiro Secretario do Sindicato dos Estivadores de Parnaíba.

Por que ingressar em um sindica-to? A escolha feita por José Ceará prova-velmente foi atravessada por sua capaci-dade de se indignar diante da exploração sofrida pelos estivadores que laboravam sem descanso no porto de Parnaíba. Por outro lado, sua escolha também foi pos-sível na medida em que o mundo do tra-balho no Piauí transformou-se significa-tivamente naqueles anos. O desenvolvi-mento econômico do Piauí no inicio do século XX possibilitou o surgimento dos primeiros estabelecimentos industriais (pequenos e médios) em Parnaíba. A ex-ploração da mão de obra assalariada, e os embates daí oriundos, são importantes para compreendermos a emergência do movimento operário e sindical nesta ci-dade (MOREIRA, 2015, p. 107-126).

É neste ponto que surge outro personagem fundamental nesta história, o Partido Comunista Brasileiro1. Criado

1 O PCB nasceu como Partido Comunista do Bra-

sil. Modificou seu nome para Partido Comunista

Brasileiro apenas em 1961. Em 1962, um grupo

dissidente criou um segundo partido comunista,

no esteio da Revolução Socialista na Rús-sia em 1917, o PCB constituiu-se como uma das principais referências dos traba-lhadores brasileiros durante o século XX. Ao longo de sua existência, o PCB adotou a defesa de uma “revolução democrático-burguesa” que visava à consolidação do capitalista no Brasil como etapa necessá-ria para uma futura revolução socialista no país (DEL ROIO, 2007, p. 38). Entre-tanto, esta concepção etapista não impe-diu que os comunistas elegessem o mo-vimento operário como principal lócus de sua atuação política.

No Piauí, o PCB surge pela pri-meira vez em Parnaíba, cidade com mai-or concentração de trabalhadores urba-nos do Estado. Em artigo escrito em par-ceria com José Maurício Moreira dos Santos, pontuei que os primeiros grupos de comunistas em Parnaíba surgiram a partir dos militantes comunistas do Cea-rá, sobretudo, daqueles que vieram de Camocim, Francisco Theodoro Rodrigues e Miguel Pereira Lima. Pelo menos desde 16 de agosto de 1932 havia um Núcleo dos Comunistas de Parnaíba funcionan-do sob a liderança de Miguel Pereira Li-ma naquela cidade litorânea (SOUSA; SANTOS, 2014, p. 02).

Em trabalho recente, Maurício Moreira aduziu que Parnaíba foi palco do sindicalismo vermelho de resistência cuja principal influência eram os militantes do PCB como o advogado Audyr Mentor (MOREIRA, 2015, p. 162). O próprio Sin-dicato dos Estivadores de Parnaíba fazia parte da esfera de atuação dos comunis-tas parnaibanos. Desta forma, argumento que José Ceará entrou nas fileiras do PCB entre os anos de 1932 e 1935, foi neste último ano que nosso personagem

retomando o nome Partido Comunista do Brasil e

adotando a sigla PC do B.

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sofreu sua primeira prisão sob a acusação de comunismo2.

Ingressar no PCB certamente foi uma escolha bastante difícil na vida de José Ceará. Mais uma vez, sua escolha nos informa sobre os sonhos e esperan-ças que contagiaram aquela geração con-temporânea da Revolução Russa que sonhava em construir um mundo melhor. Sonho este que foi impulsionado pela construção da União das Repúblicas So-cialistas Soviéticas. Encontramos outra pista da trajetória de José Ceará no tele-grama encaminhado ao interventor do Estado no dia 03 de julho de 1933:

Representados pelas suas diretorias, infra-assinadas, os Sindicatos de Operários em Construção Civil e dos Estivadores, enviam sinceros cum-primentos em virtude do regresso de v. excia. à direção do Governo do Pi-auí. Aproveitamos a oportunidade para comunicar que foram escolhi-dos seus respectivos delegados-eleitores Candido Oliveira Neto, José Pereira de Sousa, que deverão parti-cipar da Convenção que elegerá os representantes profissionais à As-sembléia Nacional Constituinte. De-legados seguirão primeiro vapor, le-vando instruções para cooperar, me-dida seu pequeno contingente, gran-de obra destinada grandeza Brasil. (TELEGRAMAS, 1933, p. 01). Não sabemos José Ceará (José Pe-

reira de Sousa) chegou a viajar ao Rio de Janeiro, tão pouco se ele já ele já era um militante do PCB neste período. Contu-do, sua escolha como delegado do Sindi-cato dos Estivadores de Parnaíba para Convenção que iria eleger os deputados 2 Em seu depoimento prestado no IPM de 1964,

José Ceará aduziu que ingressou no PCB na época

da legalidade (1945-47). Todavia, compreendo que

tal declaração consistiu numa estratégia para res-

paldar sua filiação ao PCB que a partir de 1961

buscava recuperar seu registro legal.

classistas da Assembléia Nacional Cons-tituinte de 1933 nos permite inferir sobre a grande influência que este operário detinha no movimento sindical daquela cidade.

Em 1935, o PCB passou a adotar uma linha política pautada pela forma-ção de frentes populares antifascistas. Foi neste contexto que os comunistas passa-ram a apoiar e integrar a Aliança Nacio-nal Libertadora (ANL). O historiador Francisco Alcides Nascimento pontuou que no Piauí existiram dois núcleos da ANL situados nas cidades de Teresina e Parnaíba. Segundo este autor, em Teresi-na a ANL era formada, sobretudo, por “intelectuais oriundos das camadas mé-dias”, entre eles Odonel Leão Marinho que publicava o jornal aliancista “O Li-bertador” (NASCIMENTO, 1988, p. 19).

Em relação ao núcleo da ANL em Parnaíba, Francisco Alcides Nascimento argumentou que a participação do opera-riado foi muito mais significativa do que em Teresina, tendo em vista a maior atu-ação do movimento sindical naquela cidade, com destaque para os trabalha-dores do porto. O referido historiador conjectura que “José Pereira dos Santos, vulgo José Ceará” era o dirigente da ANL em Parnaíba devido a sua “influência no meio do operariado local”. Não sabemos ao certo o porquê do erro no último so-brenome, mas Alcides certamente está se referindo a José Pereira de Sousa, o Jose Ceará. (NASCIMENTO, 1988, p. 19).

Apesar da forte influência que Jo-sé Ceará dispunha no seio dos operários parnaibanos, podemos inferir que o nú-cleo da ANL em Parnaíba era dirigido pelos comunistas Audyr Mentor e Fran-cisco Theodoro Rodrigues, os militantes mais visados repressão estatal. Diante do chamado de “Todo o poder à ANL”, lan-çado por Luiz Carlos Prestes em 05 de julho de 1935, o Governo Vargas decre-tou o fechamento daquela organização poucos dias depois. Uma vez na clandes-tinidade, a ANL radicalizou-se cada vez

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mais e em novembro de 1935 promoveu levantes armados nas cidades de Natal, Recife e Rio de Janeiro3.

A derrota destes movimentos ar-mados desencadeou uma brutal repres-são do Governo Vargas contra todos os movimentos sociais no país. No Piauí, a despeito de tentativas de resistência (NASCIMENTO, 1988, p. 20), todos os militantes e operários que participavam da ANL foram presos ainda em dezembro de 1935, sobretudo, em Parnaíba e Tere-sina, e conduzidos ao Quartel da Polícia Militar desta última cidade.

Entre os presos encontrava-se José Pereira de Sousa “vulgo Ceará” (por ve-zes seu nome aparece como José Pereira dos Santos). Também foram presos ope-rários como Raimundo Andrade Jucá e Feliz Lopes de Barros (provavelmente filiados ao PCB já nesta época). Entre os presos também estavam Audyr Mentor e Francisco Theodoro Rodrigues (este últi-mo espancado pela polícia na prisão). Entre os detidos em Teresina estavam Odonel Leão Marinho e Amador Vieira de Carvalho, o célebre militar que liderou a “Revolta dos Cabos” no Piauí em 1931.

No Piauí, as prisões atingiram 52 pessoas. Os primeiros depoimentos des-tes presos foram colhidos pelo Juiz Ari-matheia Tito, nomeado pelo Presidente para tal propósito em 10 de dezembro de 1935 (NASCIMENTO, 1988, p. 21). Em 09 de julho de 1936, o Diário Oficial do Es-tado publicou a sentença que condenou grande parte daqueles militantes presos no ano anterior. O jornal integralista “A Ofensiva” de 04 de agosto de 1936 publi-cou alguns trechos daquela sentença, onde o Juiz afirmou que “se consertou nesse Estado um vasto plano para a im-plantação do regimen communista no Paiz”. Por outro lado, a sentença apresen-

3 A greve dos estivadores que ocorreu em 1935 em

Parnaíba provavelmente relacionou-se com este

contexto de radicalização política.

ta talvez o único relato sobre a organiza-ção do PCB em Parnaíba:

Saber ter existido naquela cidade (Parnahyba) até o mês de novembro próximo findo, um “Comitê Regio-nal” communista, que se reunia em vários pontos, nas casas e no matto, para tratar de assuntos que lhe eram inherentes, existindo egualmente va-rias cellulas, umas de “residência” e outras de “empresa”. Esclarece que as primeiras se compunham de 5 a 6 membros, sendo vedados a estes co-nhecerem os membros das outas; que as segundas se compunham dos che-fes dos syndicatos...” (CONDEMNA-DOS!, 1936, p. 07). Em 29 de outubro de 1937 sobre-

veio decisão do Superior Tribunal Militar que condenou definitivamente 38 presos políticos piauienses. Comunistas como Audyr Mentor, Francisco Theodoro Ro-drigues e José Ceará foram condenados as penas mais elevadas: 04 anos e 04 me-ses de prisão (CONDEMNADOS, 1937, p. 03). Considerando o tempo já cumprido àquela altura na Penitenciaria de Teresi-na, José Pereira de Sousa “vulgo Ceará” ganharia a liberdade somente em abril de 1940. Foram anos difíceis para os comu-nistas piauienses... 3. José Ceará e o PCB durante a lega-lidade: os limites da democracia bra-sileira

Em 10 de novembro de 1937, as forças varguistas desferiram o Golpe que iniciou a Ditadura do Estado Novo no Brasil. No Piauí, ao contrário do que ocorreu em outros Estados, o então go-vernador Leônidas de Castro Melo não foi destituído de seu cargo, sendo nome-ado por Vargas como interventor. Deste modo, quando José Ceará e seus compa-nheiros deixaram a prisão, provavelmen-te no inicio de 1940, havia poucas mar-gens para reorganizar o PCB no Estado.

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Por outro lado, a intensa repressão que se abateu sobre os comunistas após 1935 esfacelou quase completamente a existência do PCB. A despeito do esforço de vários grupos de comunistas para reorganizar sua estrutura partidária, a reconstrução do PCB teve como marcos a Conferência do Nordeste do PCB (onde não houve representação do Piauí), ocor-rida em dezembro de 1941 em Salvador-BA, e a Conferência da Mantiqueira que ocorreu no Vale do Paraíba em agosto de 1943. A partir deste último encontro foi eleito um novo Comitê Central do parti-do com Luiz Carlos Prestes como Secre-tário-Geral (FALCÃO, 2012, p. 29-31).

No início de 1945, diante da vitória iminente dos aliados na Segunda Guerra Mundial, o regime de Vargas começou a adotar uma série de medidas liberalizan-tes como a anistia dos presos políticos, a previsão de eleições presidenciais e a legalização dos partidos políticos. Em abril daquele ano, o PCB conquistou sua legalidade nas ruas e passou a intervir publicamente no cenário nacional. Como palavras de ordem, os comunistas defen-deram uma ampla “unidade nacional” e a convocação imediata de uma “Assem-bléia Nacional Constituinte” (FALCÃO, 2012, p. 34).

Diante deste novo contexto, José Ceará e os comunistas piauienses tam-bém emergiram da clandestinidade, pas-sando a atuar publicamente no Estado. Neste contexto, o jornal comunista Tri-buna Popular de 18 de agosto de 1945 noticiou que naquele momento já funci-onava um Comitê Municipal do PCB em Parnaíba (MENSAGEM, 1945, p. 04). Poucos dias depois, em 26 de agosto de 1945, o mesmo jornal informou que foi realizado em Teresina, “sob aclamação da classe operária”, o “segundo grande co-mício comunista pró-constituinte” (CO-MÍCIO, 1945, p. 08). O referido texto aponta a importância da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte

para a reorganização dos comunistas teresinenses neste período.

A despeito do entusiasmo certa-mente compartilhado por José Ceará e pelos demais comunistas com esta nova fase, o PCB foi intensamente perseguido pelas forças conservadoras do Estado, como denunciou um militante do recém instalado Comitê Estadual (CE) do PCB no Piauí através de uma matéria publica-da no Tribuna Popular:

1. Foram demitidos de seus empregos por terem aderido ao Partido Comu-nista, entre outros, os seguintes mili-tantes: Raimundo Andrade Jucá, Luiz do Amaral Soubreira, George Pires Chaves, Antonio Pitombeira, Agosti-nho Alves Cavalcante e José Marzal Cavalcante. [...] 4. Um padre, reconhecidamente inte-gralista, ousou afirmar publicamente que a militante comunista Zulmira Matias, honrada esposa de Deoclecio Ribeiro, também militantes comunis-ta, pais de cinco filhos, conhecia o pai apenas de seu primeiro filho. Igualmente difamadas foram as mili-tantes comunistas Maria Elisa Cha-ves e Odete Vieira Rocha. [...] 6. Os integralistas, aliados ao clero, tem conseguido persuadir aos pro-prietários de imóveis de Teresina de que não devem alugar suas casas pa-ra a sede do Comitê Estadual do Par-tido Comunista. [...] 8. Tendo um membro do Partido inaugurado em sua residência um re-trato de Prestes, sua casa está sendo alvo de pedradas, desde o dia em que a fotografia do líder comunista foi colocada numa das paredes da sala principal. (ATAQUES, 1945, p. 08). O anticomunismo que grassava

no Piauí não era um privilégio do Estado, mas um traço intimamente relacionado à cultura política brasileira. A perseguição não se restringia as já conhecidas demis-

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sões, mas atingia também a vida privada dos militantes como no caso de Zulmira Matias, Maria Elisa e Odete Vieira Ro-cha. O caso do militante que teve sua casa depredada por colocar um retrato de Prestes em sua sala tem muito a nos di-zer sobre a dimensão da intolerância contra os comunistas no Estado.

Apesar desta renhida perseguição, os comunistas piauienses conseguiram registrar o CE do PCB no Tribunal Regi-onal Eleitoral do Piauí e participar das eleições de 02 de dezembro de 1945 no Estado. Segundo dados do TRE-PI, os comunistas piauienses lançaram 06 can-didatos ao cargo de deputado federal, entre eles os já conhecidos Audyr Mentor (283 votos) e Amador Vieira de Carvalho (19 votos), além de Odete Vieira da Ro-cha (44 votos), provavelmente a primeira mulher a se candidatar a um cargo eleti-vo no Piauí. (TRIBUNAL, 2014, p. 01).

Outrossim, o candidato do PCB à presidência, Yedo Fiúza, foi o terceiro candidato mais votado no Piauí, rece-bendo 548 votos em 14 municípios do Estado. Os 250 e 149 votos recebidos por Yedo Fiúza em Teresina e Parnaíba, res-pectivamente, demonstra a centralidade das atividades dos comunistas piauienses nestas duas cidades. Em âmbito nacional, o candidato a presidente do PCB con-quistou 10% do total dos votos. Os co-munistas ainda elegeram uma bancada histórica composta pelo Senador Luiz Carlos Prestes e mais 14 deputados fede-rais.

No ano seguinte, o CE do PCB no Piauí consolidou suas atividades no Esta-do. O jornal Tribuna Popular noticiou que entre 15 e 16 de junho de 1946, os comunistas piauienses realizaram um Pleno Ampliado do CE onde foram discu-tidas questões políticas, organizativas e sindicais. Nesta reunião, os comunistas piauienses também escolheram o jovem militante George Pires Chaves como seu delegado para a III Conferência Nacional

do PCB que ocorreria em julho de 1946 (INSTALOU-SE, 1946, p. 02).

O fortalecimento do PCB no Esta-do permitiu que o partido lançasse 32 candidaturas para Deputado Estadual nas eleições de 19 de janeiro de 1947 (TRIBUNAL, 2015, p. 01-06). Além de nomes já conhecidos, esta extensa chapa contava com candidatos com inserção no meio operário como Félix Lopes de Bar-ros e José Pereira de Sousa, o José Ceará. Nos arquivos do TRE-PI não consta a quantidade de votos que os comunistas receberam nas eleições de 1947. Contudo, militantes como José Ceará certamente utilizaram sua candidatura como instru-mento de denúncia contra as graves con-dições de trabalho de operários nas di-minutas fábricas do Estado, como a Companhia de Fiação e Tecidos Piauien-se4.

As eleições de 1947 também foram marcadas pela escolha dos governadores dos Estados. A eleição para o governo do Piauí foi disputada entre General Gayoso e Almendra (PSD) e o médico Rocha Fur-tado (UDN) em um contexto de aguçada e violenta luta entre as elites políticas locais. Ao final, o candidato udenista, apoiado pelos comunistas piauienses, alcançou a vitória.

Apesar da perseguição sofrida no Estado, os comunistas realizaram sua campanha eleitoral até o último momen-to como informou o jornal udenista O Piauí de 15 de janeiro de 1947 através do texto intitulado “Grande Comício do PCB”:

Encerrando a campanha eleitoral nesta capital, o Comitê Estadual do Partido Comunista do Brasil, realiza-rá um grande e monumental comício na Praça Rio Branco, às 17 horas de

4 Instalada em Teresina em 1890, a Companhia de

Tecidos e Fiação Piauiense foi o maior estabeleci-

mento industrial do Estado até a sua falência no

início dos anos 1950.

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hoje, onde, além de outros oradores, falará ao proletariado e ao povo do Piauí, o operário Claudino José da Silva, Dep. Federal pelo Estado do Rio de Janeiro, eleito pela legenda do Partido Comunista do Brasil. Pela vi-tória das candidaturas da chapa po-pular e democrática do PCB, todos ao grande comício (GRANDE, 1947, p. 06). O fato do deputado federal comu-

nista Claudino José da Silva ter partici-pado do encerramento da campanha eleitoral dos comunistas piauienses é importante para refletirmos sobre a im-portância que a direção nacional do PCB conferia ao partido no Piauí. Poucos me-ses depois das eleições, sob o influxo das forças da burguesia brasileira, o Tribunal Superior Eleitoral cassou o registro legal do PCB. A democracia brasileira inaugu-rada em 1945 ruiu como um castelo de areia. José Ceará e os comunistas pi-auienses tiveram que mergulhar mais uma vez na clandestinidade.

4. De Teresina à Moscou: José Ceará e o apogeu do PCB no Piauí

Não temos informações sobre o

rumo que José Ceará seguiu após a cas-sação do registro legal do PCB. É prová-vel que ele tenha permanecido em Tere-sina trabalhando como pedreiro na cons-trução civil, profissão que declarou exer-cer quando foi interrogado em 1964 (TERMO, 2015). Neste mesmo depoimen-to, José Ceará aduziu que por volta de 1950, foi procurado por um membro do Comitê Central do PCB chamado “Izaias” que lhe incumbiu de reorganizar o partido no Estado5.

5 “Izaias” era provavelmente o codinome de alguns

dos membros do Comitê Central eleitos durante a

III Conferência Nacional do PCB realizada em

julho de 1946.

Foi a partir deste momento que Ceará passou a constituir-se como prin-cipal figura do partido, tornando-se mais tarde seu Secretário Estadual. O processo de reorganização foi bem sucedido, infe-rência que podemos fazer a partir da publicação do semanário do PCB “Tribu-na Piauiense”. Este periódico circulou no Estado entre 1947 e 1951, conforme nos informou Raimundo Alves de Sousa, o célebre operário gráfico do Voz Operária, que iniciou seu ofício no Tribuna Pi-auiense (SOUSA, 2005, p. 22).

Após a cassação de seu registro legal, o PCB passou por uma fase de aguda “radicalização” que começou a modificar-se somente em meados da década de 1950. A crise do movimento comunista internacional em 1956, bem como a mudança da conjuntura nacional durante o governo Juscelino Kubitschek e a ascensão do movimento nacionalista no Brasil compeliram o PCB a rever sua linha política. Este processo culminou na chamada “Declaração sobre a política do PCB” de março de 1958 que representou uma reorientação dos comunistas brasi-leiros no sentido de impulsionar uma “revolução nacional e democrática” no Brasil a partir de uma ampla “frente na-cionalista e democrática” (FALCÃO, 2012, p. 259).

Uma das consequências desta no-va linha política a participação dos co-munistas brasileiros nas eleições estadu-ais de 1958. No Piauí, os comunistas apoiaram o candidato Chagas Rodrigues (PTB) que venceu o pleito daquele ano. Durante o governo petebista (1959-1962), os comunistas voltaram a atuar aberta-mente no Piauí, inclusive apontando ao governador as medidas que considera-vam fundamentais ao desenvolvimento do Estado (SOUSA, 2015, p. 156).

Por outro lado, José Ceará empe-nhou-se particularmente na organização de Comitês Municipais do PCB nas cida-des de Parnaíba, Floriano e Amarante (SOUSA, 2015, p. 162). Os comunistas

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piauienses voltavam a atuar a luz do dia, o que certamente facilitou sua participa-ção durante o I Congresso Sindical dos Trabalhadores e Camponeses do Piauí realizado no final de abril de 1961 (SOU-SA, 2015, p. 179). Outro aspecto da nova linha política dos comunistas foi a Cam-panha de Legalização do PCB. Sobre esta campanha, José Ceará enviou uma carta ao jornal Novos Rumos em 14 de janeiro de 1962:

Escrevemos estas linhas para o vosso conceituado jornal, grande jornal do povo brasileiro, para dizer que se es-ta realizando nesta Capital, palestras populares pró-legalidade do Partido Comunista Brasileiro, a que teve ini-cio no dia 3 do corrente e as quais estão sendo no centro e nos bairros da cidade, promovidos pela Comis-são Pró-legalidade do PCB. Desde a primeira, que estão sendo bem con-corridas, comparecendo regular nu-mero de pessoas de todas as camadas (CARTA; 2015a). A relação dos comunistas com o

governo Chagas Rodrigues certamente contribuiu para o desenvolvimento da campanha de legalização do PCB. Diante desta nova conjuntura, os comunistas piauienses realizaram sua III Conferencia Estadual do PCB em 04 de março de 19626. Reunidos na sede do partido, casa nº 520-N, da Rua Firmino Pires em Tere-sina, os comunistas iniciaram sua confe-rência com um informe de José Ceará sobre a frente de organização e finanças do PCB local:

Intervenção especial da frente de or-ganização e finanças – diz: conforme se vê no Informe, temos de organiza-ção do partido no Estado do Piauí,

6 Não foi possível identificar quando e em que

circunstancias ocorreram as duas conferências

anteriores.

dois Diretórios Municipais, em Par-naíba e Floriano, com oito membros (4 em cada). Quatro Organizações de Base em Teresina, com 43 militantes. Total 51. No decorrer do Plano de Construção do Partido, que finda no dia 25 deste mês, foram recrutados 21 novos membros para o partido. Na segunda conferencia, chegamos com 64 membros (RELATÓRIO, 2015). O informe de José Ceará apresen-

tou uma firme crítica ao trabalho desen-volvido pelos comunistas no Estado. A despeito da presença do PCB em três cidades do Piauí, o velho operário censu-rou a redução de membros do partido entre a II e a III Conferência Estadual. Para Ceará, o motivo desta queda era o débil trabalho de organização do partido que envolvia aspectos como o funciona-mento irregular de suas organizações de base, bem como a displicência dos mili-tantes diante das suas obrigações finan-ceiras.

O crescimento do PCB no Piauí desde 1958, provavelmente, trouxe pro-blemas ao funcionamento do partido no Estado, a exemplo do afluxo de novos militantes sem a disciplina partidária exigida pela tradição comunista. Ao final do seu informe, José Ceará convocou os comunistas a reverter aquele quadro e sair da conferência “dispostos a lutar pelo engrandecimento e fortalecimento do Partido Comunista, no Piauí, na luta pela emancipação do povo e dos traba-lhadores”.

De todo modo, a III Conferência do PCB no Piauí reafirmou as novas fren-tes de luta abertas pelos comunistas no Piauí: a atuação nas Associações de Mo-radores (mormente no bairro Pirajá) e nas Associações de Lavradores e Traba-lhadores Agrícolas, mais conhecidas co-

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mo Ligas Camponesas7. O ingresso do camponês José Esperidião Fernandes no PCB, bem como a atuação do jornalista José Ribamar Lopes (antigo militante comunista), fortaleceu a intervenção dos comunistas no campo, sobretudo, em Teresina e Campo Maior (SOUSA, 2015, p. 200).

O ano de 1963 foi especialmente importante para José Ceará. No final de julho daquele ano, o velho militante pi-auiense integrou uma delegação de 15 comunistas que viajou a União das Re-públicas Socialistas Soviéticas. É possível imaginar a emoção sentido por este ope-rário ao visitar Leningrado e Moscou e pisar nas mesmas pedras que Lênin e os bolcheviques pisaram. Entre a correspon-dência trocada entre José Ceará e a dire-ção do PCB no Piauí, uma carta chama nossa especial atenção, vejamos:

Terminamos a excursão que fizemos, indo a duas repúblicas na Ásia cen-tral Kasakistam, Ubeskestam e à Le-ningrado. No dia 30 (setembro) do corrente, sábado, os camaradas, com quem viajamos juntos, regressam ao Brasil. Eu ainda fico mais uns dias, ou seja, o tempo necessário ao tra-tamento dos dentes. Já comecei a ex-tração. Vou me submeter ao exame médico. Exame geral. Depois do re-sultado de tudo é que regressarei, devendo chegar ao Rio na primeira quinzena de outubro e na ultima quinzena do mesmo estarei em Tere-sina. De tudo que vimos e nos infor-mamos só quando eu voltar é que poderei dizer, conforme já disse em

7 A inserção do PCB nos movimentos sociais

possibilitou que os comunistas lançassem três

candidaturas nas eleições de outubro de 1962 sob a

legenda do PTB. José Esperidião Fernandes e José

Rodrigues da Silva (para vereador de Teresina) e

Honorato Gomes Martins (para Deputado Estadu-

al). Este último candidato obteve votação suficien-

te para conquistar a suplência na Assembléia Le-

gislativa Piauiense.

carta anterior, o povo soviético vive realmente vida feliz. Vale apena se lutar por essa vida que estou vendo e vivendo, esses dias no mundo socia-lista em marcha para o comunismo (CARTA, 2015b). O entusiasmo de José Ceará em

estar na “pátria do socialismo” não pode-ria ser menor. A Revolução Russa de 1917 provocou um grande impacto na vida de milhões de homens e mulheres, sobretu-do, naquela geração de militantes do pré-1964. A existência da URSS, agora vista por Ceará com seus próprios olhos, refor-çava sua convicção da construção de um novo mundo, onde operários como ele conseguissem viver dignamente, tendo acesso a serviços básicos como um tra-tamento dentário.

José Ceará, assim como tantos ou-tros militantes comunistas deste período, talvez tenha passado por um duro dilema interior: como conciliar o desejo da revo-lução socialista com a estratégia de revo-lução por etapas do PCB que postulava uma revolução democrático-burguesa como pressuposto para o socialismo no Brasil. Como questionar este postulado que foi parte integrante da cultura políti-ca do PCB desde sua fundação? A despei-to destes dilemas, era exatamente a cer-teza de que o mundo caminhava irrever-sivelmente para o socialismo que justifi-cava a abnegação e o sacrifício de mili-tantes como José Ceará.

A intensa esperança por trans-formações sociais que norteava a ação dos comunistas brasileiros e de inúmeros outros personagens no início dos anos 1960 foi bruscamente interrompida pelo Golpe Militar que instalou uma longa ditadura no Brasil em 31 de março de 1964. Como principal dirigente do PCB no Estado, José Ceará foi um dos primei-ros militantes atingidos pelo movimento golpista articulado no Piauí pelas Forças Armadas com o apoio das elites locais.

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Depois de sua prisão em 1964, não encontramos mais nenhuma informação sobre José Ceará. É possível que ele tenha ficado na prisão até 19728. Após ter obti-do sua liberdade, nosso personagem pode ter permanecido no Piauí; talvez tenha retornado para Ipueiras, sua cidade natal; ou pode ter sido relocalizado pelo partido em outro Estado (o que não era uma prá-tica incomum) com o propósito de conti-nuar sua militância em outras frentes. Enfim são muitas as conjecturas que podemos levantar sobre os últimos anos da vida de José Ceará.

Acompanhar a trajetória de José Ceará nos colocou diante de um tempo atravessado pelo signo da esperança, onde as possibilidades de mudança eram ilimitadas e a marcha do mundo para o socialismo e o comunismo parecia irre-freável. Resgatar este tempo é algo im-possível. Todavia, aproximar-se ao máxi-mo dele é fundamental para compreen-dermos as expectativas que informaram os sacrifícios, as escolhas e os sonhos de José Ceará e de inúmeros outros comu-nistas brasileiros.

REFERENCIAS ATAQUES deshonestos aos comunistas. Tribuna Popular. Rio de Janeiro, 27 de set. 1945, p. 08. COMÍCIO pró-constituinte no Piauí. Tribuna Popular. Rio de Janeiro, 26 de ago. 1945, p. 08. CONDEMNADOS definitivamente os implicados na tentativa de rebelião, em 1935, no Estado do Piauhy. Diário de

8 O IPM aberto em 1964 no Piauí contra os “sub-

versivos” originou o Processo nº 19/66 que trami-

tou na 10º Auditoria Judicial Militar (Fortaleza-

CE). Apenas cinco réus foram condenados quando

o processo foi julgado em 1971, entre eles José

Ceará. Contudo, àquela altura a pena de 01 ano de

detenção foi declarada prescrita, decisão esta que

foi confirmada pelo Superior Tribunal Militar

através da Apelação nº 30.057/1972.

Notícias. Rio de Janeiro, nº 3605, 30 de out. 1937, p. 03. CONDEMNADOS! A Offensiva. Rio de Janeiro, nº 249, 04 de ago. 1936, p. 07. DEL ROIO, Marcos. Os comunistas, a luta social e o marxismo (1920-1940). In: RIDENTI, Marcelo; AARÃO REIS, Da-niel. História do marxismo no Brasil: par-tidos e organizações dos anos 1920 aos 1960. Campinas-SP: Editora da UNI-CAMP, 2007. FALCÃO, Frederico José. Os homens do passo certo: o PCB e a esquerda revolu-cionária no Brasil (1942-1961). São Paulo: Sundermann, 2012. GRANDE Comício do PCB. O Piauí. Teresina, 15 de jan. 1947, p. 06. INSTALOU-SE ontem à note o Pleno Ampliado do Comitê Metropolitano. Tri-buna Popular. Rio de Janeiro, 25 de jun. 1946, p. 02. LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques. Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. MENSAGENS de solidariedade a Luiz Carlos Prestes. Tribuna Popular. Rio de Janeiro, 18 de ago. 1945, p. 04. NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A Aliança Nacional Libertadora no Pi-auí. Cadernos de Teresina, Teresina, nº 06, p. 17-21, dez. 1988. REVEL, Jacques. Microanálise e cons-trução social. In: ______. Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Var-gas, 1998. SANTOS, José Maurício M. dos. “União, força e trabalho”: trabalhadores, mutu-alismo e sindicatos no Piauí (1900-1945). 207 f. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Uni-versidade Federal do Piauí, 2015. SCHMIDT, B. B. Trajetórias e vivên-cias: as biografias na historiografia do movimento operário brasileiro. Projeto História, São Paulo, v. 16, p. 233-244, 1998.

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Documentos do Acervo do Projeto Brasil Nunca Mais:

CARTA de José Pereira de Sousa ao Dire-tor do jornal Novos Rumos - 14 de janei-ro de 1962. BNM nº 185 (Apelação nº 30.057/1972). Disponível em: http://www.bnmdigital.mpf.mp.br. Aces-so em 10 de maio de 2014. (a) CARTA de José Pereira de Sousa aos co-munistas piauienses – s/d. BNM nº 185 (Apelação nº 30.057/1972). Disponível em: http://www.bnmdigital.mpf.mp.br. Aces-so em 10 de maio de 2014. (b)

RELATÓRIO de intervenções dos partici-pantes da III Conferência do Piauí do PCB - 04 de março de 1962. BNM nº 185 (Apelação nº 30.057/1972). Disponível em: http://www.bnmdigital.mpf.mp.br. Aces-so em 10 de maio de 2014. TERMO de perguntas ao indiciado - 18 de abril de 1964. BNM nº 185 (Apelação nº 30.057/1972). Disponível em: http://www.bnmdigital.mpf.mp.br. Aces-so em 10 de maio de 2014.

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TURISMO, TRABALHO E ESTRANHAMENTO: As experiências dos trabalhadores do setor no polo

turístico do Delta do Parnaíba-PI.

Amanda Maria dos Santos Silva1

Resumo A presente pesquisa teve como propósito investigar as experiências labo-rais dos trabalhadores do setor do Turismo que atuam na região do Delta do Parnaíba em sua extensão piauiense, em especial na cidade de Ilha Grande do Piauí, Para tanto, nos apropriamos da perspectiva do materia-lismo histórico dialético. O fio condutor de nossa analise se processa me-todologicamente no entrelaçamento de fontes escritas e orais. Para isso utilizamos uma abordagem qualitativa composta com pesquisas biblio-gráficas e de campo onde identificamos e inserimos nossos sujeitos de pesquisa através da História Oral. A partir das entrevistas realizadas foi possível perceber que os trabalhadores da região tem uma relação estra-nhada com o produto de seu trabalho e devido essa constatação não se percebem enquanto protagonistas do processo de desenvolvimento da atividade no local. Palavras-chave: Turismo, Trabalho, Estranhamento, Delta do Parnaíba. Resumo The present research aimed to investigate the work experiences of the Tourism sector workers that operate in the region of Delta of Parnaíba in its piauiense extension, especially in the city of Grande do Piauí Island Therefore, we use the Materialist Dialectics Historical perspective. Meth-odologically, we use the intertwining of written and oral sources, combin-ing bibliographic and field research where we identify ours study subjects through Oral History. From the interviews it was revealed that the work-ers in the region have a relationship estranged with the product of his work and because this finding does not perceive themselves as protago-nists of the activity development process on site. Keywords: Tourism, Labour, Strangeness, Delta of Parnaíba.

1Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará, Bacharel em Turismo pela Univer-

sidade Federal do Piauí, Licenciada em História pela Universidade Estadual do Piauí. [email protected]

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INTRODUÇÃO Como propõe o título do trabalho,

a intenção é apresentar aos leitores de que forma os trabalhadores do setor tu-rístico, em especial os condutores de Eco-turismo, que atuam na região do Delta do Parnaíba se relacionam com o sua atividade laboral e como se percebem dentro do processo de desenvolvimento do Turismo na localidade.

O cenário que possibilita essa in-vestigação é a crescente expansão da atividade, mesmo com o contexto de crise econômica, exemplo desse cresci-mento é a evolução dos indicadores do turismo: quando começou a ser “medido” em 1950 houve um crescimento pratica-mente ininterrupto da atividade que em 2013 movimentou aproximadamente 1bilhão e 800milhões de pessoas caracte-rizando 9% do PIB mundial, onde um em cada dez empregos (diretos ou indiretos) são ligados ao setor, gerando 1,4 bilhões em exportações o que corresponde a 6% do comércio internacional e a 29% de exportação de serviços. (OMT, 2014).

Com o “boom turístico” houve o florescimento da atividade turística em áreas anteriormente não exploradas, fez com que surgisse nos núcleos receptores de Turismo um maior interesse com rela-ção à distribuição dos lucros gerados com essa atividade a fim de melhorar a quali-dade de vida das comunidades locais. Essa necessidade de inserção no mercado visando a melhoria das condições maté-rias pode ser vista em nosso lócus de pesquisa materializado na fala de José (2014)

Eu trabalhava só com a pesca, até que um tempo a situação ficou difícil e um amigo perguntou se eu queria trabalhar com o turismo e o mesmo barco que eu trabalhava transformei para o turismo. Fiz uns cartões e co-mecei a trabalhar com o Pedro.

Dessa forma fica evidenciado que o Turismo seria uma “tábua de salvação” para as comunidades locais (DAMATTA, 1996), contudo, na maioria das vezes – assim como em nosso caso - a atividade turística é desordenada e ocorre o que afirma Beni (2007, p.87)

O grupo social receptor de turismo, isto é, os habitantes estáveis de um núcleo receptor, sofrem muitas vezes uma autêntica colonização econômi-ca e são encarados como joguetes de poderosos e levianos interesses ocul-tos.

Uma vez incorporada nos núcleos

receptores à premissa do turismo en-quanto fator de geração de riquezas mo-vido pela lógica capitalista acaba predo-minando e os turistas em diversas dessas comunidades acabam sendo vistos como um mal necessário. Paradoxalmente, “os visitados, quanto mais pobres, mais de-positam no turismo suas expectativas de progresso, de integração ao processo civilizatório, à economia de mercado.” (THEVERIN, 2004, p.8).

Essa é uma realidade que pode ser percebida entre os habitantes da cidade de Ilha Grande do Piauí, que possui baixo grau de desenvolvimento e deposita suas fichas no turismo, conferindo a atividade um status de “tábua de salvação” para os moradores que ocupam o espaço desti-nado a prática. Podem ser detectadas outras situações conflitantes entre os moradores dos núcleos receptores e os turistas que visitam as localidades

METODOLOGIA

Para nortear essa investigação, as-sumi como opção metodológica, a pers-pectiva dialética proposta por Marx. Co-mo apontamento inicial para possibilitar o entendimento sobre o meu percurso metodológico devo destacar que ele parte do movimento real da ação humana, como Marx (1989, p.16) indica “a investi-

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gação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas dife-rentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão íntima que há entre elas”.

Em termos práticos, todo e qual-quer objeto de estudo é real e efetiva-mente aparece como objeto humano, social e histórico. Portanto, o processo de conhecimento do objeto não ocorre de modo direto, imediato ou espontâneo, mas articulado num todo, que só existe como produto de uma atividade específi-ca e teórica.

Essa análise se torna possível por-que o método dialético (ANDRADE, 2010, p.121) “é contrário a todo conhecimento rígido: tudo é visto em constante mudan-ça, pois sempre há algo que nasce e se desenvolve e algo que se desagrega e se transforma”. Compreendo ser este o me-lhor caminho para analisar as contradi-ções presentes nas propostas de qualifi-cação aos trabalhadores do setor do Tu-rismo.

A pesquisa que se desenvolve é de cunho bibliográfico, uma vez que, “se realiza a partir do registro disponível, decorrente das pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, arti-gos, teses, etc. Utiliza-se de dados ou de categorias teóricas já trabalhados por outros”. (SEVERINO, 2007, p. 202).

Foram realizadas ainda pesquisas de campo, definidas como realizei pes-quisas de campo que (MINAYO, 2006, p. 62) “o recorte que diz respeito à abran-gência, em termos empíricos do recorte teórico como correspondente ao objeto da investigação”.

Para compreender essas experiên-cias trilhei os caminhos da História Oral, suas definições, técnicas e ferramentas. É importante ressaltar que não se trata (ALBERTI, 2005) simplesmente de sair com um gravador em punho, algumas perguntas na cabeça, e entrevistar aque-les que cruzam nosso caminho. Minha compreensão é a de mesma de Portelli

(2010, p.3), pois [...] buscamos fontes orais porque queremos que vozes, – que, sim, existem, porém ninguém as escuta, ou poucos as escutam”. Dessa forma, foram entrevistados três condutores de Ecoturismo que fazem parte da única entidade organizada no segmento, a As-sociação dos Condutores de Ecoturismo de Ilha Grande do Piauí-ILHAECOTUR.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Como ponto fundamental neces-sário para compreender essa investigação é necessário destacar o entendimento Marxiano da categoria Trabalho. Esta pode ser apresentada enquanto uma re-lação estabelecida entre homem e natu-reza. Seu processo se torna possível à medida que o homem interage, se apro-pria e transforma o meio que está inseri-do. Nessas circunstâncias dialeticamente transforma também a si mesmo, como nos mostra Marx (2013) “trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com a sua própria ação, impulsiona, re-gula e controla seu intercambio material com a natureza”.

A partir desse movimento de transformação da natureza, o homem se “constrói”, atuando sobre a natureza externa a ele, modificando-a, enquanto simultaneamente tem sua própria natu-reza modificada (Marx, 2013). Logo, se entende que o trabalho é o elemento que possibilita a construção de uma identi-dade humana uma vez que esse processo permite a constituição de um “ser social” e é, por conseguinte um artifício funda-mental de sua organização coletiva, pois, esse movimento possibilita sua organiza-ção em sociedade.

Torna-se necessário, contudo, ca-racterizar o trabalho em sua natureza dúplice, se por um lado ele possibilita a constituição do homem enquanto ser social pertencente/transformador de uma sociabilidade ele também tem como ca-racterística a alienação/estranhamento

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proporcionado pelo assalariamento e pelas condições em que suas atividades são desenvolvidas. Dessa forma o traba-lho se desenvolve processualmente em suas dimensões basilares com seus aspec-tos positivos e negativos.

É importante ressaltar que em Marx existe uma relação conectada entre o trabalho útil-concreto (positivo), produ-tor de valores de uso indispensáveis à (re)produção humana e o trabalho abs-trato (negativo), contido nas mercadori-as, cujo principal fim é a criação de mais-valia indispensável a lógica do capital.

Dialeticamente Marx considera seus aspectos positivos e negativos, onde se debruça sobre a contribuição dada pelo trabalho, entre elas o “tornar-se homem” propiciado pela produção dos seus meios de subsistência.

[...] para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico, é portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato esse é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a his-tória, que ainda hoje, mesmo a mi-lhares de anos, deve ser cumprida todas as horas, para manter os ho-mens vivos. (MARX e ENGELS, 2001, p.39)

Dessa forma, o homem em seu

contato com a natureza, se utiliza de suas forças vitais: pernas, braços, cabeça e mãos transformando a matéria prima contida na natureza para canalizar os recursos disponíveis com o objetivo de subsidiar sua vida social. Assim, o ho-mem imprime na natureza a sua forma útil a vida humana. A partir desse movi-mento, o homem transforma a natureza e forja sua condição humana.

Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela reli-gião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a se diferen-ciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua or-ganização corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente sua própria vida mate-rial. (MARX e ENGELS, 2001, p.27.)

Observo esse movimento entre os

associados da ILHAECOTUR à medida que analiso a forma como o trabalho é produzido por eles, primeiro em um pla-no ideal, para após esse momento se ma-terializar na realidade, sobre esse aspec-to, Francisco (2014) nos relata sobre as-sunto.

Alguns roteiros nós criamos. A Trilha da caída do morro1, o morro geme-dor e o tour pela cidade nós que cri-amos. Inclusive tem outros passeios criados pela gente que as outras agências comercializam como o safa-ri noturno no Delta. As trilhas são feitas só pela gente. Vamos antes ao local, fazemos um estudo, vemos a viabilidade e depois disso organiza-mos e que comercializamos o roteiro.

Partindo dessa colocação, fica ex-

plícito o papel dos condutores de ecotu-rismo enquanto mercadoria a ser dispo-nibilizada aos compradores: sejam eles turistas ou agências de turismo. Essa situação se materializa à medida que novos roteiros são criados e guiados por eles. Existe a partir desse ponto a modifi-cação do espaço, que passa ser utilizado para o turismo e a modificação dos ho-mens que cotidianamente através de seu envolvimento/participação em um setor que anteriormente não fazia parte de seu

1 O descritivo desse roteiro, hoje denominado de

Trilha das Dunas está disponível nos anexos.

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campo de trabalho se reconhecem de forma cada vez mais efetiva enquanto trabalhadores do setor turístico.

Nesses termos o trabalho pode ser exposto como um movimento de trans-formação/apropriação da natureza pelo homem com o objetivo de subsidiar sua existência. Marx (2013), ainda relaciona-do a esse processo, apresenta que outros animais tem essa interação com a natu-reza, contudo, nos mostra que por não ser uma atividade mediada pela consci-ência e sim por instinto, apenas ao ho-mem carrega consigo esse status trans-formador da natureza com a finalidade de prover sua existência. Isso fica claro quando ele expõe que

Uma aranha executa operações se-melhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua constru-ção antes de transformá-la em reali-dade (MARX, 2013, p.212) Com isso Marx afirma que o pro-

cesso em sua integralidade, desde a for-mulação até a execução pertence exclusi-vamente ao homem, ao trabalhador. Ele não apenas transforma o material que está a sua disposição como dá uma mate-rialidade/utilidade a partir de um projeto desenvolvido a priori em sua consciência, construindo valores de uso, compreendi-dos como a transformação da natureza em elementos úteis a manutenção da vida humana.

Em suma, a compreensão marxia-na relacionada ao processo de trabalho mostra como o homem participa de di-versas fases de produção até que seu trabalho chegue a um final. Esse processo apresenta categorias diversas que estão em permanente interligação e que são fundamentais para a problematiza-ção/compreensão do trabalho enquanto processo. Essas categorias são vistas no

processo de transformação do Delta do Parnaíba em um produto turístico bem como a transformação trabalhadores que vivenciam a exploração cotidiana de sua força de trabalho.

Um aspecto fundamental para a compreensão das experiências laborais vivenciadas pelos trabalhadores do setor é o debate sobre estranhamento e reifica-ção. No contexto de trabalho desses su-jeitos isso é percebido na forma como os trabalhadores são vistos e se veem du-rante seu processo de trabalho. Evidencio essa situação na fala de José (2014)

O trabalho que a gente faz não é va-lorizado por aqui, muitas pessoas que contratam veem a gente às vezes até como uma máquina, que tá aqui pra dar informação e nem ligam se a gente tá bem ou mal, se tá doente ou com problema.

Essa sociabilidade abre margem

para a configuração de um trabalho es-tranhado e para a reificação dos traba-lhos do setor. Dessa forma, se configura então a objetivação do trabalho como estranhamento, uma vez que o produto configurado através da ação direta do trabalhador se opõe a ele como um ser independente e oposto dele enquanto produtor. Sobre essa reflexão Marx (2008, p.80) destaca que

Este fato nada mais exprime, senão: o objeto (Gegenstand) que o traba-lho produz, o seu produto, se lhe defronta com um ser estranho com um poder independente do produ-tor. O produto do trabalho é o tra-balho que se fixou num objeto, fez-se coisal (sachlish) é a objetivação (Vergegenstandlichung) do seu tra-balho. A efetivação (Verwirklichung) do trabalho é a sua objetivação. Es-ta efetivação do trabalho aparece o estado nacional-econômico como desefetivação (Entwirklichung) do

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trabalhador, a objetivação como perda do objeto e a servidão ao objeto, a apropriação como estra-nhamento (Entfremdug), como alie-nação (Entausserung).

Assim, o estranhamento do traba-

lhador significa que o seu trabalho se transforma em um objeto com uma exis-tência independente e exterior de seu produtor, se tornando um ser estranho com um poder autônomo. Dessa forma a vida que o trabalhador deu ao objeto, faz com que ele se torne uma força hostil ao próprio produtor. “A apropriação do obje-to tanto aparece como estranhamento (Entfremdug) que, quanto mais, objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, o capital. (Idem, 2008, p.81)”. Logo aponto um aspecto fundante do estranhamento: a autonomia agregada ao objeto face o seu produtor.

O ápice desse domínio/autonomia se materializa quando o trabalhador se mantém enquanto sujeito físico, como um mero produtor de objetos, utilizando todas as suas energias para o processo de objetivação. Esse se caracteriza como a base do problema do estranhamento: o trabalhador é encarado como mercadoria viva para a produção de mercadoria ina-nimada. “O trabalhador encerra sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto”. (Idem, 2008, p.81) Entre meus sujeitos essa rela-ção é materializada na fala de um dos condutores que atuam no Delta ao anali-sar sua importância para o desenvolvi-mento da atividade.

Eu acho até difícil falar sobre essas coisas. Eu sei fazer o serviço, mas não posso lhe responder, porque o próprio turista que me contrata é que pode dizer qual é a minha im-portância e se eu sou importante ou não. (José, 2014)

Não existe por parte desse traba-lhador o reconhecimento da sua impor-tância para o desenvolvimento do Delta do Parnaíba como produto turístico da região. Ele se percebe como ferramenta, como objeto e deixa a cargo dos consu-midores a avaliação da atividade que desenvolve cotidianamente de forma sistemática.

Feita essa explanação, examinei o processo de estranhamento do trabalha-dor a partir da sua relação com os produ-tos de seu trabalho. A revelação desse processo não se dá apenas no resultado, no trabalho objetivado, mas, sobretudo, no processo de produção onde os traba-lhadores atuam. O estranhamento do trabalhador, antes de ser relacionado ao produto de seu trabalho está relacionado ao processo produtivo. Para Marx (2008, p.82) esse processo se dá primeiramente da seguinte forma

Primeiro que o trabalho é externo (ausserlich) ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se dele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e ar-ruína o seu espirito. (...) o seu traba-lho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho vira assim um meio

para subsidiar outras necessidades do capital e não uma determinação para a realização do homem como tal. Assim, o trabalho estranhado, é o trabalho res-ponsável pela mortificação do trabalha-dor, tornando seu trabalho um sacrifício “o trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer as necessidades fora dele” (MARX, 2008, p.83) Percebo essa situação entre meus sujeitos na fala de José (2014)

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Na maioria das vezes eu acompanho um passeio por dia. Que sai às 8 da manhã e volta às 4 da tarde. Depen-dendo do turista a gente fica até mais porque não tem a obrigação de fazer a vontade dele. Se eu faço um passeio com você claro que eu tenho que tirar o meu dinheiro, mas você tem que ficar satisfeita pra poder voltar e trabalhar comigo ou me in-dicar pra algum amigo. Se não, eu fi-co sem trabalho e sem o sustento de casa que eu tiro do turismo nesses períodos de alta temporada. É importante pontuar que Turis-

mo e o Trabalho para suprir a necessida-de dos consumidores são percebidos apenas como uma atividade que viabiliza a reprodução material desses homens, não sendo notado nas falas uma auto avaliação ou mesmo uma valorização da atividade por eles desenvolvida. O estra-nhamento no ato da produção é uma con-sequência direta a relação estranhada estabelecida entre o trabalhador e os produtos de seu trabalho. Marx (2008, p.83) mostra essa situação como mais um sacrifício ao trabalhador, pois,

A relação do trabalhador com a pró-pria atividade como uma [atividade] estranha, não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força com impotência, a procriação como cas-tração. A energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal – pois o que é a vida senão atividade – como uma atividade vol-tada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele. O estra-nhamento-de-si (Selbstentfremdung) tal qual o estranhamento da coisa.

A partir dessa determinação Marx

nos mostra que o homem vê em sua ati-vidade produtiva apenas um meio para a satisfação de suas necessidades de exis-tência física “a vida aparece mesmo como

meio de vida”. O trabalho estranhado faz com que o homem veja em sua atividade apenas um meio de produção de sua exis-tência. Ao ser questionado sobre os seg-mentos que são fundamentais para a existência do turismo no Delta do Parna-íba José (2014) nos apresenta a seguinte consideração.

O mais importante do Delta pra ele ser procurado e a Natureza. O poder público não ajuda em nada. Pra você ter uma ideia no final de ano passam entre cinco e seis mil turistas e não fica um centavo dentro da Ilha Grande. Não tem organização, divul-gação nem nada. A gente que traba-lha não pode fazer nada, quase não tem voz pra definir nada. A gente só pode acompanhar o turista, ganhar nossa diária e pronto.

Apesar de produzir, comercializar

e vivenciar cotidianamente o espaço (seja profissional ou pessoalmente) não é per-cebido na fala dos trabalhadores uma valorização do trabalho realizado por eles, uma vez que eles se colocam como peça pouco fundamental no desenvolvi-mento do turismo. Esse processo é des-crito de forma mecânica e não acompa-nha um sentimento de realização pessoal com a atividade e como consequência de não se reconhecer em sua atividade ele não pode “fazer-se” através dela, se tor-nando estranhado de si e de sua nature-za.

Como desfecho que sua análise Marx (2008) conclui que a propriedade privada é fruto da relação externa do trabalhador a natureza e a si mesmo (trabalho estranhado). O desenvolvimen-to da propriedade privada, ao atingir seu pico como o trabalho estranhado e o meio pelo qual o trabalho se torna estra-nhado, por isso, é possível definir as de-mais categorias da Economia Política como, por exemplo, o salário, comércio, dinheiro, encontrando em cada uma de-

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las uma expressão particular dos elemen-tos fundamentais que as constitui.

Para compreender as relações es-tabelecidas entre meus sujeitos de pes-quisa e sua atividade profissional uma categoria merece destaque nesta análise: a reificação. Essa elucidação pode ser encontrada nas páginas de O Capital (2013) onde ele expõe que “a riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar” (MARX, 2013, p. 57). Assim, a mercadoria é elencada como forma ele-mentar do modo de produção capitalista carregando consigo a chave para o en-tendimento dos fundamentos que regem esse modo de produção.

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objeti-vas dos próprios produtos de traba-lho, como propriedades sociais des-sas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre ob-jetos. [...] Não é mais nada que de-terminada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (MARX, 2013, p. 94)

O fetichismo da mercadoria, que

nos apresenta as relações de trabalho reificadas, não é um produto de nossa consciência. Antes de mais nada, a reifi-cação é a base onde as relações sociais mercantis se manifestam. Marx (2013) nos mostra que essa relação assume uma forma “fantasmagórica de relação entre coisas”, pois, em nossa sociedade as rela-ções entre as pessoas são mediadas pelos

produtos de seu trabalho, ou seja, pelas mercadorias.

A mercadoria carrega consigo uma unidade entre valor de uso e de troca, possibilitada pela divisão social do traba-lho e pela propriedade privada que são historicamente desenvolvidos. Com a propriedade privada, o produtor possui a possibilidade de escolher como, o que e quanto deve produzir, contudo, dialeti-camente em um movimento combinado sua inserção na divisão social do trabalho do deixa dependente de outros produto-res. Assim, cada produtor produz para o outro e não exclusivamente para si, o que faz da mercadoria uma mediadora de infinitas relações sociais.

A coisa adquire as propriedades de valor, dinheiro, capital, etc., não por suas propriedades naturais, mas por causa das relações sociais de produ-ção às quais está vinculada na eco-nomia mercantil. Assim as relações sociais de produção não são apenas “simbolizadas” por coisas, mas reali-zam-se através de coisas. (RUBIN, 1980, p.26) Assim, na sociedade mercantil, em

seu caráter reificado, atribuímos às coisas características e aspectos pertencentes das quais são expressão se tornam meio de realização. Em meu lócus percebi esse caráter reificado ao notar a forma como os sujeitos são vistos pelos consumidores (turistas e proprietários de agencias) co-mo um apêndice, uma ferramenta que viabiliza a produção/comercialização do produto Delta do Parnaíba. Essa situação fica clara na fala de José (2014) ao relatar que muitas vezes não existe um contato entre eles e os turistas que em diversas situações os tratam apenas como objeto para conhecer a localidade.

Essa relação reificada, ganha pro-porções ainda mais serias e perigosas na sociabilidade capitalista, onde a produ-ção tem como finalidade principal a

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transformação de dinheiro em mais di-nheiro, se distanciando do que deveria ser seu principal motivo que consiste na realização das necessidades humanas sejam elas do corpo ou do espirito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve como ob-jetivo apresentar as experiências laborais dos trabalhadores do setor turístico da região do Delta do Parnaíba, em especial, na cidade de Ilha Grande do Piauí. Para tanto foi necessário elucidar em um pri-meiro momento a categoria Trabalho a fim de subsidiar o entendimento do cerne dessa investigação, o estranhamento do trabalho realizado.

Entendemos que a mesma sociabi-lidade que possibilitou o surgimento e a consolidação do Turismo tem como cen-tro a transformação da natureza em mer-cadorias que necessitam da atuação hu-mana nesse processo. Devo salientar que a participação do trabalhador traz em seu bojo sua mortificação e a exploração cada vez mais crescente de sua força de trabalho deixando suas condições de vida cada vez mais precárias.

É possível perceber entre os sujei-tos elencados para essa pesquisa que não existe um sentimento de reconhecimento de sua importância para o desenvolvi-mento do Turismo e da região como um todo. Os trabalhadores se percebem en-quanto ferramentas do processo e não como protagonistas dessa relação.

Assim, com o presente estudo através da análise da teoria e das entre-vistas narrativas, busquei nas falas dos nossos sujeitos, recompor e debater os processos de trabalho aos quais os traba-lhadores estão submetidos. Esse debate vem a contribuir sobre a temática da educação profissional, uma vez que está aberto a novas pesquisas, debates e in-terpretações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTI, V. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005. ANDRADE, Maria Margarida de. Intro-dução a Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Atlas, 2010. 10ª ed. DAMATTA, Roberto. Turismo a Contra Gosto. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. MARX, Karl. O Capital. Crítica da eco-nomia política. Vol I, Livro I. O processo de produção do capital. 13ed. Rio de Ja-neiro: Bertrand do Brasil, 1989. ___________. O Capital: crítica da economia política. Livro I. 31ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideo-logia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MINAYO, M.C. O desafio do Conhe-cimento. São Paulo: Hucitec, 2006. OMT. Organização Mundial do Turismo. Em http://www.unwto.org PORTELLI, Alessandro. História oral e poder. In: Mnemosine, v.6, n.2, p.2-13 (2010). PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política, luta e senso comum. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J. (Org.). Usos e abusos da his-tória oral. Rio de Janeiro: Fundação Getú-lio Vargas, 1998. RUBIN, I. A teoria marxista do valor. São Paulo: Brasiliense, 1980. SAVIANI, Dermeval. Trabalho e educa-ção: fundamentos ontológicos e his-tóricos. Revista Brasileira de Educação. s/l. v.12, n. 34, p. 152-165, jan/fev, 2007. SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodo-logia do Trabalho Científico. São Pau-lo: Cortez, 2007. 23ª ed. THEVENIN, J. M. R. O turismo e suas políticas públicas sob a lógica do ca-pital. Caderno Virtual de Turismo. Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p.122-133, abr. 2011. THOMPSON, E.P. A Formação da Clas-se Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Vol 1 A árvore da liberdade

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THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ENTREVISTAS Francisco José da Silva. Entrevista conce-dida a pesquisadora Amanda Maria dos Santos Silva no dia 30/05/2014. 48 minu-tos. José Ribamar da Silva. Entrevista conce-dida a pesquisadora Amanda Maria dos Santos Silva no dia 22/05/2014. 58 minu-tos.b

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A ALIANÇA NACIONAL LIBERTADORA NO PIAUÍ: Antecedentes e impactos dos Levantes de

Novembro de 1935.

José Maurício Moreira dos Santos1

Resumo Em novembro de 2015 completaram-se 80 anos dos Levantes de 1935, movimento que por muito tempo foi chamado pela historiografia de Intentona Comunista. Os Levantes de 1935 podem ser considerados mais um capítulo da história brasileira escrita pelos setores populares na luta pela emancipação e justiça social, mesmo com todas as suas contradições. Influenciados pelo simbolismo da data muitos trabalhos têm sido publicados lançando novos olhares e oxigenando os debates sobre aqueles acontecimentos, dialogando com os estudos já existentes. Importan-te destacar que os levantes que eclodiram nas cidades de Natal, Recife e Rio de Janeiro, também deixaram marcas em outros lugares, mesmo onde não chegou a ser consumado, como é o caso do estado Piauí. Portanto, a intenção do artigo é analisar o processo de construção e atuação do movimento/partido Aliança Nacio-nal Libertadora no Piauí (ANL), e também buscaremos reconstituir o processo de repressão e perseguição política que se abateu sobre muitos piauienses, fazendo uso principalmente dos inquéritos policiais do período. Palavras-chave: Aliança Nacional Libertadora. Impactos dos Levantes de 1935. Pi-auí. Abstract In November 2015 it was completed 80 years of the uprisings of 1935, a movement that has long been called the historiography of Communist Conspiracy. The upris-ings of 1935 can be considered another chapter in Brazilian history written by the popular sectors in the struggle for emancipation and social justice, even with all its contradictions. Influenced by the date symbolism many papers have been pub-lished launching new looks and oxygenating the discussions about those events, and dialogue with existing studies. Importantly, the uprisings that erupted in the cities of Natal, Recife and Rio de Janeiro, also left marks elsewhere, even where there was even finished, such as the state of Piauí. Therefore, the intention of the article is to analyze the process of construction and operation of the move-ment/party Aliança Nacional Libertadora in Piauí (ANL), and also seek to recon-struct the process of repression and political persecution that befell many Piaui, making use mainly of surveys police the period. Keywords: Aliança Nacional Libertadora. Impact of the uprisings of 1935. Piauí.

1 Licenciado em Historia, Mestre em História do Brasil pela UFPI e professor da rede pública de ensino.

Email:[email protected]

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Introdução Alguns acontecimentos marcaram

profundamente a sociedade brasileira durante o “breve século XX”, como de-nominava Eric Hobsbawn, e que para serem analisados em sua amplitude, os elementos conjunturais são imprescindí-veis. Um desses fotos marcantes foi os Levantes de Novembro de 1935. A pers-pectiva histórica provocada pelo distan-ciamento do fato (que neste ano comple-ta 80 anos) permite uma análise mais ampla e detalhista do acontecido e dos personagens nele envolvido. Mesmo as-sim, as explicações sobre os Levantes continuam gerando controvérsias, reflexo da encarniçada disputa política em torno da construção da memória social. De um lado as forças conservadoras que buscam realçar que as insurreições tentavam implantar um regime comunista no Bra-sil, do outro, setores da esquerda que afirmam ter sido um movimento de cará-ter reformista, anti-imperialista e anti-fascista, diminuindo também a impor-tância da Internacional Comunista1 no processo. De forma que analisar qualquer acontecimento histórico que tenha ocor-rido naquele período não é tarefa fácil, tendo em vista a complexidade e a di-mensão das transformações que se ope-ravam naquele período. O mundo vivia uma forte crise econômica (crise de 1929) onde o liberalismo econômico era forte-mente questionado. Por outro lado, o mundo viu ascenderem novas propostas políticas, de um lado o comunismo, do oposto, o fascismo. Na Europa, as ten-dências conservadoras que vinham se fortalecendo desde meados da década de 1920 com o fascismo italiano, ganhou projeção ainda maior com a chegada do nazismo ao poder em 1933 na Alemanha.

1 A Internacional Comunista, também chamada de

Terceira Internacional, era uma organização mun-dial que buscava orientar a ação política dos Par-tidos Comunistas no mundo inteiro.

No Brasil, a forte crise econômica dentro de uma economia agrário-exportadora que dependia, basicamente, de um só produto (o café), levou o país a uma forte crise social e política. A saída encontrada pela burguesia foi a constru-ção de um Estado centralizador e promo-tor de algumas reformas sociais com um regime político bonapartista, tendo à frente Getúlio Vargas. Getúlio assume o governo com a missão de pacificar o país e governar acima dos conflitos entre as classes. Se de um lado a burguesia procu-rava caminhos a seguir, as forças políti-cas do proletariado, tendo à frente o Par-tido Comunista Brasileiro (a maior força política da esquerda), colocava-se como oposição ao governo de Getúlio Vargas. Passaremos agora a analisar a política dos comunistas no período, que desdo-bou-se na construção da Aliança Nacio-nal Libertadora (ANL). O surgimento da ANL

A Aliança Nacional Libertadora foi um movimento/partido político criado em março de 1935, cujo surgimento “constituíra um fato marcante no cenário político daquele momento2” A ANL foi criada por forças de oposição ao governo Getúlio Vargas e congregou “grande par-te dos setores da nação insatisfeitos de uma maneira geral com o Governo Var-gas e o processo como haviam sido con-duzidos os trabalhos da Constituinte e a eleição do presidente da República3”, mas também os que eram contrários “a domi-nação imperialista do país e a força do latifundismo”, lutando contra “o avanço do integralismo e as medidas antidemo-cráticas adotadas pelo Governo, como a Lei de Segurança Nacional4”. Reuniram-

2 PRESTES, Anita Leocádia Prestes.Luiz Carlos

Prestes e a Aliança Nacional Libertadora, os cami-nhos da luta antifacista no Brasil (1934-1935).São Paulo. Ed. Brasiliense, 2008.p. 38. 3 Idem.

4 Idem.p.47.

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se sob a bandeira a ANL várias organiza-ções antifascistas, setores do tenentismo, parte do Partido Socialista, organizações estudantis e feministas, personalidades como jornalistas, advogados e intelectu-ais, alguns parlamentares5.

A ANL tinha amplitude nacional, uma novidade diante do regionalismo oligárquico que caracterizava os partidos brasileiros. Prova disso, foi que em pouco menos de três meses e meio de legalida-de, “a ANL chegou a fundar mais de 1.600 núcleos em todo o território nacio-nal, atingindo na capital da República 50 mil inscritos [...]6”. O historiador e então militante comunista Caio Prado Junior, presidente da ANL no estado de São Pau-lo, afirmava que no inicio de julho, o par-tido nacionalmente contava com “um número de militantes que variava entre 70 e 100 mil [militantes]7”. E ainda con-forme o brasilianista russo Boris Koval, a ANL teve um crescimento espetacular em pouco tempo de legalidade, quando fo-ram criados no mais de 1100 núcleos, que atuavam em 17 estados, e em 300 cida-des. Suas fileiras chegaram a reunir, se-gundo Koval, mais de um milhão e qui-nhentos mil ativistas8”. Programa defendido pela ANL

O Partido Comunista Brasileiro, que estava na clandestinidade, foi uma das forças políticas que incentivaram a formação dessa Frente Popular, e Luis Carlos Prestes, o cavaleiro da esperança, que abraçara a causa comunista, foi aclamado seu presidente de honra, mes-mo estando exilado na Rússia. O mani-festo de lançamento da ANL resumia seu programa, ao dizer que a organização lutava pelo “[...] o cancelamento das dí-

5 KOVAL, Boris. História do Proletariado Brasileiro

(1857-1967). Editora Alfa-Ômega. São Paulo. 1982. 6 PRESTES.p.102.

7 Idem.

8 KOVAL, p. 296.

vidas imperialistas; a nacionalização das empresas imperialistas; a liberdade em toda a sua plenitude; o direito do povo manifestar-se livremente;” e para a mas-sa camponesa defendia “a entrega dos latifúndios ao povo laborioso que os cul-tive; a libertação de todas as camadas camponesas da exploração dos tributos feudais pagos pelo aforamento, pelo ar-rendamento da terra, etc.; a anulação total das dívidas agrícolas;” sendo que para os pequenos proprietários apresen-tavam “a defesa de pequena e média propriedade contra a agiotagem, contra qualquer execução hipotecária (...)9”.

Observa-se que a ANL tinha um programa político essencialmente refor-mista, comprometendo-se com a manu-tenção da propriedade privada. Esse pro-grama que procurava apresentar-se para setores da burguesia nacional e da pe-quena burguesia como aceitável e atrati-vo pode ser comprovado após a tomada do poder na cidade de Natal10, quando o jornal A Liberdade buscava dialogar e acalmar os comerciantes locais afirman-do que

“O Comitê Popular Revolucionário faz um apelo a todos os camaradas em armas, e ao povo em geral, para que respeitem os adversários, na sua pessoa e propriedade, não cometen-do excessos de qualquer natureza [...] procurando garantir aos comer-ciantes, em especial ao pequenos11”. E continuam se dirigindo para que

os comerciantes normalizem suas ativi-dades evitando crise de abastecimento na cidade, ao dizer que “garantimos o livre

9 Idem.p.82.

10 Em 23 de novembro de 1935 ocorreu um Levan-

te na cidade de Natal promovido por militantes comunistas. 11

A Liberdade (órgão oficial do Governo Popular e Revolucionário). Natal-Rio Grande do Norte. 25 de novembro de 1934. Ano I.p.03.

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funcionamento de todo comércio no qual procuraremos beneficiar, diminuindo os impostos de comum acordo com os se-nhores comerciantes [...]12”. No entanto, nem todos os grupos políticos de esquer-da estavam empenhados na construção do projeto frente populista da ANL.

Em contraposição, a proposta dos militantes trotskistas13 era a frente única pela base apenas com os partidos e orga-nizações operárias. No Brasil, existia des-de o início dos anos 30 um grupo de mili-tantes pcebistas que discordavam dos rumos tomados pelo Estado Soviético stalinizado. Esse grupo, que se reivindi-cava como parte da Oposição de Esquer-da internacional liderada por León Trotsky (que já havia sido expulso do partido russo e da URSS no final dos anos 20), foram críticos ferrenhos das orientações do PCB no período e de sua tática de frente popular com setores da burguesia nacional. É verdade que for-mavam um pequeno grupo (a Liga Co-munista Internacionalista-LCI), diante do tamanho do PCB, mas contavam com militantes de grande estatura intelectual como Mário Pedrosa e Lívio Xavier, e estavam enraizados nas lutas da classe operária em alguns centros importantes do país, desempenhando importante papel, dentre outro feitos, na fundação da Frente Única Antifacista em 1933 jun-tamente com outras forças políticas. ANL no Piauí

No Piauí, a ANL tornou-se uma al-ternativa diante da questionada Aliança Liberal14 (já abrigada dentro de uma nova sigla, Partido Nacional Socialista) e tam-

12

Idem. 13

Os militantes trotskistas formavam uma corren-te política influenciada pelas ideias do líder revo-lucionário russo León Trotsky, que tinha sido expulso da URSS por enfrentar-se politicamente com Stalin. 14

Partido em que Getúlio Vargas disputou as eleições de 1930.

bém dos velhos partidos oligárquicos. Recordamos que as principais fontes de pesquisa sobre a atuação da ANL no Pi-auí são; artigo elaborado por Francisco Alcides do Nascimento15 e o Inquérito Policial produzido pela polícia piauiense entre o final de 1935 e 1936.

Desde o início dos anos 30 os co-munistas atuavam em solo piauiense, notadamente na cidade de Parnaíba, onde o movimento sindical era mais forte e organizado, muito em função do perfil econômico da cidade. O trabalho dos comunistas piauienses foi lembrado por Boris Koval, quando ressalta que o Piauí foi um dos estados que teve importante participação na articulação do movimen-to antifascista durante o ano de 1934: “amplo movimento antifascista abran-gem os estados de São Paulo, Bahia, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Piauí, Minas Gerais e outros16”. Refere-se tam-bém a Confederação Sindical Unitária do Brasil (CSUB), fundada em 1935, por iniciativa dos comunistas, para servir de ponto de apoio para o enraizamento da ANL no movimento sindical. E enfatiza que estiveram presentes no congresso de fundação dessa entidade “delegados de 400 sindicatos de 11 estados [...] 8 sindi-catos do Piauí [...]17”, muitos deles, cer-tamente, estavam sob influência dos co-munistas. Abro parêntese para mencio-nar a importância dessas citações do historiador russo, pois seu texto permite que tenhamos uma ideia da influência que os comunistas tinha sobre o movi-mento operário piauiense durante os anos de 1930, fato que possibilitou enviar representantes de 8 sindicatos para o congresso de fundação da CSUB.

15

O artigo de Nascimento, “A ANL no Piauí”, usava algumas entrevistas de ex-membros da Aliança Nacional Libertadora, o que foi de grande impor-tância para nós. 16

KOVAL, p.288. 17

Idem, p.294.

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A ANL teve pelo menos dois nú-cleos funcionando no estado do Piauí, em Teresina e Parnaíba. Acreditamos que contribuíram para a criação de núcleos da ANL nessas duas cidades a experiên-cia associativa preexistente, com vários sindicatos já fundados, assim como fato-res objetivos, com a emergência de um proletariado urbano e de setores médios em numero razoável. Todavia, a composi-ção social dos dois núcleos era distinta, pois como afirma Francisco Alcides do Nascimento:

No que tange a composição dos mili-tantes da ANL no Piauí em Parnayba a participação do operariado foi muito mais significativo do que em Teresina. Em primeiro lugar porque o movimento sindical naquela cidade era muito mais ativo [...] possuiu grandes firmas estrangeiras, entre as quais podemos destacar a Booth Line (inglesa) que possuía em seu estalei-ro cerca de 150 operários.18 As características econômicas da

cidade de Parnaíba fizeram dela um lugar onde se instalaram muitas empresas, empregando uma grande quantidade de trabalhadores. Ali se instalaram alguns estabelecimentos industriais que chega-vam a empregar mais de 100 operários, sem falar da categoria dos portuários. “O movimento portuário era significativo e ali os operários já tinham certa experiên-cia de luta19”. A cidade crescia com gran-de velocidade e, como afirma o marcenei-ro parnaibano Felix Lopes de Barros: “não faltava trabalho para os operários da construção civil.”20O marceneiro ao se referindo ao trabalho político da ANL em Parnaíba e sua atuação junto aos traba-lhadores afirma que “durante a madru-

18

NASCIMENTO, Francisco Alcides. ANL no Piauí. 1988.p.19. 19

Idem. 20

Idem.

gada, eram colocados panfletos debaixo das portas das casas dos trabalhadores da cidade21”.

Reflexo do tamanho do proletari-ado parnaibano e do seu protagonismo nas lutas sociais desse período é que “se tomarmos a relação dos prisioneiros que vieram para Teresina logo após novem-bro de 1935, a absoluta maioria era com-posta de operários22”. O trecho comprova a prisão de várias pessoas em Parnaíba depois dos Levantes de 1935.

Já na capital Teresina, era grande a participação dos setores médios na ANL. Por isso “a composição dos militan-tes da ANL [...]” possuía caráter “mais estratificado; [...] jornalistas, professores, um dentista etc”, havendo, assim, “a pre-sença significativa dos intelectuais e das camadas médias da população23”.

O Jornal teresinense O Tempo pu-blicado no dia 4 de julho de 1935, um dia antes da leitura do Manifesto de Luis Carlos Prestes, e à poucos dias da decre-tação da ilegalidade da ANL, assinala que “A Aliança Nacional Libertadora realizará amanhã, nesta capital, a praça João Luis Ferreira, o primeiro comício de propa-ganda de seus princípios fundamen-tais24”. E dois dias depois o mesmo jornal faz referência ao evento informado que “o comício da sexta-feira, realizou-se sob os melhores auspícios, pois não só atraiu considerável assistência como decorreu na mais perfeita ordem25”. Naquele mo-mento usaram a palavra Vicente Muri-nelli e os professores João Câncio e Leo-poldo Cunha26”. Ressalta-se que nesse momento já existia um núcleo da Ação Integralista Brasileira organizado na ci-dade de Teresina, não por acaso a ênfase de que o comício da ANL ocorreu sem

21

Idem, p.20. 22

Idem. 23

Idem. 24

Idem.p.19 25

Idem. 26

Idem.

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sobressaltos, já que em outras cidades brasileiras era comum o enfretamento público entre aliancistas e integralistas. Para ser mais preciso, desde o início de 1932 já circulava em Teresina o Jornal A Liberdade, periódico que divulgava a dou-trina integralista27.

Nacionalmente, desde 1934 o mo-vimento operário voltou a protagonizar grandes lutas e durante o ano de 1935 acorreram muitas greves e no estado do Piauí não foi diferente. Uma matéria do jornal piauiense O Tempo de 1935 afir-mava que naquele ano a cidade de Par-naíba foi sacudida por agitações operá-rias e denunciava que a liderança do mo-vimento era o comunista Audyr Men-tor28.

NOTICIAS DE PARNAÍBA (...) desde sabbado correm nesta cidade notícias (...) de ter havido agitações de fundo comunista e mesmo assalto ao BB e de deposição dos poderes locaes. O facto da remessa de tropa não aucto-rizava a versão de uma simples greve pacífica (...) Ademais tudo pode acontecer em Parnaíba, no terreno da questão social, desde que alli vem sendo mantida uma situação de constante intraquilidade, resultante da forma agressiva de syndicalização que foi implantada por elementos perniciosos (...)subversivo (...) provo-cadores (...)29. Em outra passagem, a matéria en-

fatiza que as “agitações de fundo comu-nista” foram desencadeadas por uma “greve de trabalhadores do Porto” lidera- 27

VALE, Gerlândia Moura do. Sertanejos Anauê: A construção da Ação Integralista Brasileira no Piauí. Picos: Monografia, 2013. 28

Audyr Mentor morava em Parnaíba, era advo-gado e liderança do PCB no estado do Piauí. 29

NASCIMENTO, Ana Maria Bezerra. Trabalhado-res e Trabalhadoras no fio da história das práticas e projetos educativos no Piauí (1856-1937). Tere-sina. Dissertação de Mestrado. UFPI. 2008, p.118.

da pelo advogado Audyr Mentor que se considera, segundo o jornal, “chefe do operariado nortista”.

(...) uma greve de trabalhadores do Porto (...) do apoio dos syndicatos operários (...) um dos agitadores o conhecido bacharel Aldir Mentor que se considera chefe do operariado da cidade nortista (...) realizou manifes-tação na praça da graça aos gritos morra a burguesia, morra o capita-lismo, viva a Rússia comunista e pro-letária, abaixo o integralismo. E tudo isso nas barbas da polícia! Os comu-nistas fizeram um reboliço dos dia-bos. Urge que as autoridades locaes e do Estado tomem medidas acautela-doras da segurança pública (...) A si-tuação é de insegurança30. Assim, notamos que os sindicatos

sob a influência dos militantes comunis-tas buscavam organizar os trabalhadores na defesa de seus direitos. Não obstante, a matéria não informa o alcance do mo-vimento e a quantidade de trabalhadores que participaram e nem os seus resulta-dos. Mas, de qualquer forma, esse regis-tro do movimento grevista nos ajuda a entender as movimentações políticas e a influência dos comunistas na ação dos sindicatos parnaibanos, sobretudo junto aos trabalhadores do porto. Apesar de não termos conseguido identificar a data que a matéria foi publicada, possivelmen-te esse ascendo grevista na cidade de Parnaíba, onde o PCB tinha significativa influência, pode está relacionado a decre-tação de ilegalidade da ANL ainda em julho, causando uma reação do PCB em escala nacional que orientava os sindica-tos a deflagrarem movimentos grevistas em protesto. Existem relatos que confir-mam que setores do movimento sindical ensaiaram uma reação à ilegalidade da ANL, quando em São Paulo milhares de 30

Idem.

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manifestantes saíram as ruas exigindo a revogação do decreto do dia 12 de julho que caçou o registro da ANL e “mais de 9 mil têxteis de São Paulo declararam gre-ve política que durou dois dias. [....] par-ticiparam também 1700 operários meta-lúrgicos de empresas de São Bernar-do.”31E no Rio de Janeiro saíram em ma-nifestação os operários gráficos. No en-tanto, essas iniciativas grevistas não sur-tiram o efeito desejado, pois como de-nunciavam os militantes trotskistas, refe-rindo-se ao que consideravam equívocos do PCB; “falou muito em greve geral, depois em greves de massa, e acabou se contentando com grevinhas parciais, mesmo de caráter econômico32”.

O cientista político Homero Costa, ao estudar as Revoltas de 1935 na cidade de Natal, faz referência a atuação da ANL no estado do Piauí. De acordo com autor, uma correspondência apreendida com o presidente da ANL do estado do Mara-nhão, Evandro Cunha, comprova os con-tatos mantidos entre os Diretórios da ANL dos dois estados. Na correspondên-cia constava que os aliancistas piauienses receberam apoio de militantes de outros estados na estruturação da entidade no estado. Segundo Costa “Vitor Correia havia estado diversas vezes em Teresina e estabelecido contatos com militares do 25º Batalhão de Caçadores, em especial cabos e soldados” e no meio civil fez con-tato com “Raimundo Nonato de Souza Santos e Antônio Rodrigues Silva”. Sendo que cabia a “Piberone Lemos a responsa-bilidade de articulação entre militantes do Piauí e Maranhão33”.

31

Koval.p.304 32

ABRAMO, Fluvio; KAREPOVS. Daines (orgs). Na contracorrente da História. Documentos do trots-kismo brasileiro (1930-1940). São Paulo. Editora Sundermann. 2º edição.2015. p.229. 33

COSTA, Homero de Oliveira. A insurreição co-munista em 1935: Natal, o primeiro ato da tragé-dia. São Paulo.Cooperativa Cultural do RN.1995.p.113.

Assim, existem fortes indícios, de que a secção da ANL no Piauí foi acom-panhada pelos militantes maranhenses. A ANL foi fundada no Maranhão no mês de abril de 1935 e Vitor Correia Silva era um pcebista e membro da direção nacio-nal da ANL que foi “enviado pelo comitê central [do PCB] aos estados do Mara-nhão e Piauí afim de ajudar na prepara-ção dos levantes34”. Portanto, Homero Costa menciona em sua obra, que existia de fato uma articulação nos quarteis do nordeste com o objetivo de organizar os levantes na região, e o estado do Piauí fazia parte do plano.

Sobre o plano insurrecional, Costa diz que os militantes piauienses também arquitetaram um plano para a tomada do poder, orquestrada após tomarem conhe-cimento que na cidade de Natal a insur-reição já havia sido desatada. Nesse sen-tido, os aliancistas teresinenses;

No dia 24 de novembro de 1935, ao terem conhecimento do levante do 21º BC de Natal, decidem pela defla-gração para o dia seguinte, à meia noite, horário em que seria mais fácil sublevar o quartel com poucos ho-mens bem armados. O plano consis-tia em render a guarda e em seguida disparar tiros de metralhadora, que constituiriam a senha para os civis que seriam mobilizados e orientados a entrar no quartel. Mas para isso te-riam que ter armamentos e muni-ções, e ficou decidido que seriam re-tirados do próprio quartel e entre-gues aos civis. No dia 25, as 22:00h, Viegas, que pela conhecia bem o quartel, e por isso tinha ficado res-ponsável pela retirada dos armamen-tos e munições, encontra esse setor com vigilância reforçada e o quartel já de prontidão. O plano fracassa.35

34

COSTA, p.113. 35

COSTA, 1995.

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O plano dos militantes piauienses seguiram as mesmas táticas adotadas nas demais cidades onde ocorreram os levantes. Além de Teresina, na cidade de Parnaíba também houve um plano para deflagrar um movimento insurrecional. O operário parnaibano da construção civil, Felix Lopes, numa entrevista, demons-trou saber dos planos do PCB e da possi-bilidade das insurreições acontecerem, ao enfatizar que os aliancistas parnaibanos “ficaram escutando o que podia aconte-cer. Eu sei que muita gente ficou no “pé do rádio” e na sede do sindicato [possi-velmente dos trabalhadores da constru-ção civil]. Nós sabíamos que aquilo ia ocorrer, agora não era tempo ainda, aqui-lo ocorreu antes do tempo [se referindo ao levante de Natal]36”. O discurso de Felix Lopes é revelador, demonstrando que ele conhecia os detalhes da orienta-ção política pcebista para aquela conjun-tura, que era a organização das insurrei-ções para a instauração de um governo Popular Nacional Revolucionário. Isso nos leva a inferir também que Felix Lopes seria além de membro do núcleo da ANL de Parnaíba também militante do PCB.

O plano dos aliancistas parnaiba-nos foi antecipado após ficarem sabendo das notícias que chegavam de Natal. Conforme Felix Lopes, eles “até reuniram lá perto de um campo de futebol e depois parece que avisaram a polícia, não sei como, foi esfacelado37”. Em entrevista, outro membro da ANL parnaibana, cha-mado Francisco Peixoto da Mota, detalha melhor o plano aliancista ao afirmar que “o plano do levante em Parnaíba era mui-to ruim. Os aliancistas tinham poucas armas e pensavam invadir a delegacia de polícia para consegui-las38”. Mas a inicia-tiva foi rapidamente desbaratada pelas forças policiais da cidade, supõe-se que

36

NASCIMENTO, 1988. p.20. 37

Idem,p.20. 38

Idem.

em função de denuncia feita por um infil-trado.

Depois das Revoltas de novembro de 1935 encabeçadas por membros da ANL/PCB em três capitais, e possíveis planos que não se concretizaram em ou-tros lugares, uma forte repressão se aba-teu sobre os militantes da organização em todo o país. No estado do Piauí, ainda no ano de 1935 foram abertos Inquéritos Policiais e dezenas de pessoas foram acu-sadas e presas. Nas investigações, várias pessoas foram intimadas a prestarem depoimentos sobre o que sabiam a res-peito de indivíduos supostamente ligados à ANL nas cidades de Teresina, Parnaíba, Floriano, Amarante, Picos e Campo Mai-or. No Inquérito Policial que tivemos acesso, aberto em Teresina, tinha anexa-do mais dois inquéritos, provenientes das cidades de Floriano e Amarante, respecti-vamente. Infelizmente, não tivemos aces-so aos inquéritos que foram abertos em Parnaíba. Ao todo, conforme os inquéri-tos, foram ouvidas 17 testemunhas e 26 pessoas foram acusadas. Porém, somente 18 acusados tiveram seus nomes citados nos depoimentos das testemunhas. E conforme afirma o Delegado de Polícia de Teresina, Delfino Vaz de Araújo, no inquérito concluído em 12 de agosto de 1936, “por mais esforços que empregasse a polícia não foi possível a esta [polícia] apanhar dados positivos ou provas recen-tes contra os acusados39”. Em detalhe, foram 21 acusados da cidade de Teresina e 1 em Floriano, 1 em Picos e 1 em Cam-po Maior. Os documentos também tra-zem as profissões de alguns acusados, que eram; funcionários públicos munici-pais, funcionário do Telegrafo Nacional, funcionário do Ministério do Trabalho e militar do exército.

Apesar do inquérito afirmar que não foi possível levantar provas suficien-tes contras os acusados, muitos militan-tes da ANL e do PCB foram presos na 39

Chefratura de polícia. Teresina. 1936.p.98.

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penitenciária de Teresina, como foi o caso do advogado Audyr Mentor40 e do dentista Odonel Leão41. No Rio Grande do Norte a repressão foi muito maior, tendo em vista que na cidade de Natal foram 154 pessoas condenadas e nas demais cidades do interior foram 42 con-denações. Reunindo as três cidades onde ocorreram levantes (Natal, Recife e Rio de Janeiro) foram mais de 5.000 pessoas indiciadas, segundo Homero Costa.

Foram abertos inquéritos policiais para investigar os supostos envolvidos, mesmo onde o movimento não chegou a ser deflagrado. No Piauí, logo no início de 1936, iniciaram as investigações. A prin-cipal fonte que nos subsidiou para anali-sar a repressão pós-novembro de 1935 no estado do Piauí foi um inquérito policial que foi instaurado logo após aqueles acontecimentos. Um dos estudiosos pio-neiros no Brasil a explorar os inquéritos policiais como fonte de pesquisa histórica foi Sidney Chlhoub com sua obra Traba-lho, Lar e Botequim. Seu trabalho apre-senta importantes inovações metodológi-cas, pondo em discussão a validade des-ses documentos para os historiadores. Ele cita que: “[...] ler processos criminais não significa partir em busca ‘do que real-mente aconteceu’ porque esta seria uma expectativa inocente – da mesma forma como é pura inocência objetar à utiliza-ção dos processos criminais porque eles ‘mentem’42”. Pois o mais importante é “estar atento às ‘coisas’ que se repetem sistematicamente: versões que se repro-duzem muitas vezes, aspectos que ficam mal escondidos, mentiras ou contradi-ções que aparecem com freqüência.”43As- 40

Audir Mentor foi um advogado comunista que morava em Parnaíba. 41

Odonel Leão era dentista, profissional liberal, integrante da ANL e editor do jornal aliancista que circulava em Teresina. 42

CHARLHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e botequim. 2º Edição. Campinas. Editora da Unicamp. 2001.p.41. 43

Idem.

sim, partindo dos pressupostos aponta-dos pelo autor, os processos criminais são verdadeiros caldeirões de possibilidades de investigação. E percebemos isso, de fato, ao analisarmos o inquérito aberto contra os membros da Aliança Nacional Libertadora no Piauí, no qual constata-mos não só contradições, como também, convergências nos depoimentos dos acu-sados e testemunhas.

Muitos depoimentos convergiram em determinados pontos, principalmente quando se tratou de denunciar os nomes das lideranças da ANL. Nas falas das testemunhas teresinenses, sempre apare-ciam os nomes de José Vicente Murinelli (Alcides Nascimento o cita como o pro-vável presidente do núcleo teresinense da ANL) e do dentista Odonel Leão Mari-nho44, como sendo as lideranças do nú-cleo da ANL em Teresina. Quando do depoimento de “[...] Gerúsio Leite, de quarenta e um annos de idade, piaui-hyense [...] artífice, residente nesta capi-tal [...]” ele afirmou que “ [...]no meio do ano passado [1935], estava na sua offici-na quando alli chegou o senhor José Mu-rinelli e convidara para fazer parte da Aliança Nacional Libertadora, ao que se negara visto já ter compromisso com o Partido Nacional Socialista (PSN) [parti-do governista piauiense que apoiava Var-gas]45”. Em um outro depoimento, o acu-sado“ [...]Amadeu hygino de Sousa, trin-ta e oito anos, [...] mecânico [...]46” da cidade de Teresina vaticina que “ [...]quando da fundação do Partido Ali-ança Nacional Libertadora foi convidado pelo senhor Vicente Murinelle, que não aceitou por já fazer parte do Grêmio Polí- 44

O dentista Odonel Leão, até onde conseguimos averiguar, não era uma comunista. Havia partici-pado da Aliança Liberal apoiando a Getúlio Var-gas. Mas, em seguida, rompe e integra-se a ANL. 45

Chefratura de Polícia do estado do Piauí. 31 de julho, 1936, Teresina. Documentação encontrada no Arquivo público do estado do Piauí. Caixa Arquivo 0066. Autos Crimes Teresina. 46

Idem, 13 de agosto de 1936.

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tico Operário Teresinense [foi uma inicia-tiva de criar um partido operário no Pi-auí, mas não se concretizou]47”. São falas que se repetem e que confirmam José Vicente Murinelli como a principal lide-rança responsável pela estruturação do partido na capital. O guarda civil teresi-nense Francisco Pereira declarou em seu depoimento à polícia que fazia parte da ANL a convite do pintor Salustiano Go-mes Costa que o “convidara para ir até o prédio que fica acima da Usina Elétrica, onde se davam as reuniões da Aliança, afim de ser ele depoente apresentado ao ex-cabo Amador, presidente da sessão secreta ali realizada48”. O ex-cabo do exército, Amador Vieira de Carvalho, era militante do PCB e havia liderado a Re-volta dos Cabos no 25º Batalhão de Ca-çadores em 1930 (não se sabe se nesse período ele já era membro do do).49Sabe-se que depois que saiu do exército passou um tempo escondido no estado do Maranhão e quando voltou passou a ser ourives. Acredita-se que ele foi um dos primeiros militantes do PCB em Teresina e também uma das princi-pais lideranças do núcleo regional da ANL na cidade junto com José Vicente Murinelli. Ademais, constata-se pelos relatos dos depoentes, que a ANL busca-va a adesão do proletariado teresinense (artífices, mecânicos, pintores, guardas civis, etc.), mesmo que, segundo Alcides Nascimento, tenha predominado na ANL de Teresina, setores da classe média e intelectualidade.

O inquérito aponta que, além de Teresina e Parnaíba, a ANL manteve con-tato com militantes de outras importan-tes cidades do estado do Piauí e que de-nuncias feitas durante a repressão, acu-

47

Idem. 48

Idem.2 de dezembro de 1935. 49

Movimento que destituiu e prendeu o então governador Landri Sales, que havia sido nomeado pelo presidente Getúlio Vargas e tomou conta da administração por dois dias.

sando pessoas de envolvimento com a ANL, pode também ter sido usada como arma política contra adversários. Em seu depoimento, o florianense Raimundo Antônio Ribeiro, guarda livros50, que teve seu nome encontrado em um suposto documento apreendido no poder de mili-tantes comunistas de Parnaíba, negou seu envolvimento com a ANL. “Pergun-tado se conhece Aldy Mentor [...]disse que conhecia Audyr Mentor talvez de nome e com elle nunca teve correspon-dência alguma [...] que está convencido de que foi a forte perseguição de elemen-tos políticos desta cidade [Floriano] que desejavam afastá-lo do meio51” que isso se devia ao “[...]seu prestígio no seio de todas as classes trabalhistas daqui [...]52” pela sua “[...]atuação na União Artística Operária Florianense [...].”53Sua liderança no meio proletário foi confirmada pelo depoimento deWaldivino de Araújo, 26 anos, empregado público, que afirmou “ [...]que Raimundo Antônio Ribeiro é um defensor da classe operária onde [...] tem prestígio [...]54”. Outro acusado de ser comunista e de pertencer a ANL foi o artista, José Passos, morador da cidade de Amarante. Em seu depoimento, ele negou ter mantido qualquer relação com a ANL. No dia 14 de junho de 1936, na cidade de Amarante, a testemunha Fran-cisco de Arimathéa da Silva, artista, pres-tou depoimento e afirmou que “Natalino José Passos não só é conhecido delle de-clarante como também de todos os habi-tantes desta cidade55” e que ele “faz parte como membro da Sociedade União Artís-tica Operária Amarantina, e por ocasião de uma reunião dos sócios, que attinge o número de 400 mais ou menos, foi de

50

Profissão que corresponde ao técnico em con-tabilidade. 51

Inquérito policial. p.105. 52

Idem. 53

Idem. 54

Idem.p.109. 55

Idem, 14 de junho de 1936.

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Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano I, n° 01. Julho-Dezembro de 2015. Parnaíba-PI

ISSN 2447-7354

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admirável surpresa para todos os sócios [...]56” as acusações contra ele.

Conclusão

Escrever este artigo representou um grande desafio, em função, princi-palmente, da dificuldade de acesso a fontes primárias. Mas ao me deparar, por acaso, no Arquivo Público do Piauí, com um inquérito policial de quase 100 pági-nas com depoimentos de testemunhas e também de acusados de fazerem parte da ANL no Piauí, me causou uma enorme satisfação, pois tive certeza de que estava diante de um documento de inestimável valor histórico. O inquérito mostra que além das querelas intra-oligarquicas que fazia parte vida social e política do estado do Piauí, setores médios e os mais pobres da classe trabalhadora, tentavam forjar suas alternativas políticas e sonhavam com projetos sociais que rompessem com o circulo viciosos da política tradicional piauiense. Isso indica para um amadure-cimento político de outros setores sociais, notadamente a nascente classe trabalha-dora urbana, que buscava conquistar espaço político e ter suas demandas atendidas, bem como, articular-se com a luta antifascista e anti-imperialista que a ANL representava. Destaca-se também a importância das cidades de Teresina e Parnaíba nesse processo, que pelo peso econômico e político, fica comprovado que foram centros irradiadores de novas ideias políticas ligadas ao pensamento de esquerda no estado. Referência Bibliográfica COSTA, Homero de Oliveira. A insurrei-ção comunista em 1935: Natal, o pri-meiro ato da tragédia. São Paulo: Coo-perativa Cultural do RN.1995. CHARLHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e botequim. 2ed. Campinas: Editora da Unicamp. 2001.

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Idem.

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