revista - história da historiografia

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  • 7/28/2019 Revista - Histria da historiografia

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    Histria daHistoriografia

    Sociedade Brasileira de Teoria e Histria da Historiografia

    1agosto 2008revista eletrnica semestral

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    Histriada Historiografia

    nmero 01 agosto 2008

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    Histria da Historiografiawww.ichs.ufop.br/[email protected]

    Conselho Editorial

    Helena Mollo (UFOP)Pedro Spinola Pereira Caldas (UFU)

    Srgio da Mata (UFOP)Temstocles Cezar (UFRGS)Valdei Lopes de Araujo (UFOP)

    Conselho Consultivo

    Astor Diehl (UPF)Carlos Oiti (UFG)Cssio Fernandes (UFJF)Durval Muniz de Albuquerque (UFRN)Edgar De Decca (UNICAMP)Estevo de Rezende Martins (UnB)Francisco Murari Pires (USP)Guillermo Zermeo Padilla (Colegio de Mxico)Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University)Jos Carlos Reis (UFMG)Jrn Rsen (Kulturwissenschatliches Institut / Universitt Witten-Herdecke)Lucia Maria Paschoal Guimares (UERJ)Luiz Costa Lima (PUC-Rio/UERJ)

    Manoel Salgado Guimares (UFRJ)Silvia Petersen (UFRGS)

    Secretaria

    Flvia Florentino Varella (USP)

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    ARTIGOSHistria da Histria (1950/60). Histria e Estruturalismo: Braudel versus Lvi-StraussJos Carlos Reis

    Alm da racionalidade instrumental: sentido histrico e racionalidade na teoria dahistria de Jrn RsenMartin Wiklund

    Idias de futuro no passado e cultura historiogrfica da mudanaAstor Antnio Diehl

    Sine ira et Studio: retrica, tempo e verdade na historiografia de TcitoFlvia Florentino Varella

    Fixar a onda de luz: o problema da transio das pocas histricas no conceito dehelenismo em Johann Gustav DroysenPedro Spinola Pereira CaldasHenrique Modanez de SantAnna

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    EDITORIAL/APRESENTAO 06

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    RESENHASRSEN, Jrn. Histria Viva: teoria da histria: formas e funes do conhecimentohistrico. Traduo de Estevo de Rezende Martins. Braslia: UNB, 2007, 159p.Sabrina Magalhes Rocha

    MARQUARD, Odo. Las dificultades con la filosofa de la historia. Valencia: Pre-Textos,2007, 268p.Srgio da Mata

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    ARTICLESHistory of history (1950/60). History and Structuralism: Braudel versus Lvi-Strauss

    Jos Carlos Reis

    Beyond instrumental rationality: historical meaning and rationality in Rsens theoryof historyMartin Wiklund

    Future ideas in the past and historiographical culture of changeAstor Antnio Diehl

    Sine ira et Studio: rethoric, time and truth in Tacitus historiographyFlvia Florentino Varella

    Fixed the light wave: the problem of historical epoch transition in the concept ofHellenism in Johann Gustav DroysenPedro Spinola Pereira CaldasHenrique Modanez de SantAnna

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    EDITORIAL/FOREWORD 06

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    REVIEW ESSAYSRSEN, Jrn. Histria Viva: teoria da histria: formas e funes do conhecimentohistrico. Traduo de Estevo de Rezende Martins. Braslia: UNB, 2007, 159p.Sabrina Magalhes Rocha

    MARQUARD, Odo. Las dificultades con la filosofa de la historia. Valencia: Pre-Textos,2007, 268p.Srgio da Mata

    EDITORIAL GUIDELINES

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    editorialEditorial

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    Em seu primeiro nmero, a revista Histria da Historiografia j expe o tipo dereflexo que procurar abrigar, assim esperamos, por muitos e muitos outrosnmeros. De maneiras distintas, os artigos e resenhas agora disposio doleitor interessado examinam temas e apresentam questes sobre o sentido dahistoriografia, sobre sua necessidade e sua legitimidade, sem, todavia, deixarde enfrentar francamente os desafios que freiam e paralisam a atividade tericasobre a escrita da histria.

    E esses desafios j se evidenciam no artigo de Jos Carlos Reis, que recupera odebate sobre o conceito de histria a partir do confronto entre Fernand Braudele Claude Lvi-Strauss. Um outro embate poder ser conhecido pelo leitor notexto de Martin Wiklund, que no somente oferece uma introduo para a obraterica de Jrn Rsen, bem como a situa no debate a propsito da perda desentido na histria, tema que tambm merece a ateno de Astor Diehl, aindaque voltado diretamente para o registro historiogrfico da mudana e da

    temporalidade.

    Mas as fronteiras, ao serem temticas, tambm so temporais. Pensar ahistoriografia, bem o sabemos, no exclusividade resultante das durasexperincias do sculo XX. Como o leitor poder perceber no trabalho de FlviaVarella, as fronteiras entre retrica e verdade histrica podem ser elaboradaspor meio da obra de Tcito. E a relao nem sempre simtrica entre historiografiae filosofia abordada por Pedro Caldas e Henrique SantAnna em um textosobre a cunhagem do conceito de helenismo em Johann Gustav Droysen. Oxala nossa revista possa sempre ajudar a responder, no mbito da histria, apergunta de talo Calvino feita para a literatura: Por que ler os clssicos?.

    Na seo de resenhas, este primeiro nmero abre espao para discussesmotivadas por lanamentos de obras relevantes para a Teoria da Histria e aHistria da Historiografia, mesmo porque, no que diz respeito a esse campo doconhecimento histrico, o mercado editorial brasileiro ainda est longe de sergeneroso. Portanto, nos orgulhamos de oferecer ao leitor duas resenhas, uma

    feita por Sabrina Rocha sobre Histria viva, de Jrn Rsen (Braslia: Editora daUnB, 2007) e outra assinada por Srgio da Mata, que apresenta ao pblico acoletnea Historiografia alem ps-muro, organizada por Ren Gertz e Marcusde Souza Correa. E, veja o leitor, ao conhecer um pouco melhor o que foirecentemente feito do outro lado do Reno, no ignoramos a rgida fronteiraimaginria entre a cultura historiogrfica francesa e a alem? com esse espritode convergncia que a Histria da Historiografia se apresenta pela primeira veza um pblico que esperamos acolher como hspede freqente, e, claro,colaborador.

    Os editores

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    O objetivo deste artigo retomar e refletir sobre o intenso debate entre Antropologiae Histria nas dcadas de 1950/60 sobre o conhecimento histrico. A AntropologiaLevi-Straussiana obrigou a histria a se colocar algumas questes sobre as articulaesentre evento e estrutura, novidade e repetio, conscincia e inconsciente, singular euniversal, sincronia e diacronia. A resposta dos historiadores dos Annales foi dadapor Fernand Braudel.

    Histria da Histria (1950/60)

    Histria e Estruturalismo: Braudel versus Lvi-Strauss

    History of the history (1950/60)History and structuralism: Braudel versus Lvi-Strauss

    Resumo

    The aim of this article is retakes and reflects about the intense debate betweenEthonology and History in the 1950/60 decades about the historical knowledge. TheLevi-straussianne Ethnology has obliged the History to put some questions aboutthe articulations between event and structure, newness and repetition, conscienceand inconscient, singular and universal, sinchrony and diachrony. The answer of theAnnales historians was donne by Fernand Braudel.

    Abstract

    Jos Carlos ReisProfessor do departamento de histriaUniversidade Federal de Minas [email protected] Mangabeira, 436/401 - Santo AntnioBelo Horizonte MG303050-170

    Palavras-chaveEstruturalismo; Escola dos Annales; Tempo histrico.

    KeywordStructuralism; Annales; Historical time.

    Enviado em: 19/03/2008Aprovado em: 11/07/2008

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    H cerca de 2500 anos, a histria, a etnologia e a geografia nasceramjuntas, trigmeas e siamesas, filhas do mesmo pai: Herdoto de Halicarnasso.Desde ento, lutam para se separar fsica-institucionalmente e para se distinguirem

    epistemologicamente. Durante dois milnios, a histria venceu este combate,pois se dedicou genealogia e ao elogio dos vencedores. Mas, a etnologiapermaneceu viva entre as suas dobras e fissuras e, recentemente, nos anos1950/60, sob o impacto da mar estruturalista, cuja onda mais alta e maisforte foi a obra de Lvi-Strauss Antropologia Estrutural, publicada em 1958 (aintroduo Histria e Etnologia foi publicada pela primeira vez como artigo naRevue de Mthaphysique et Morale, em 1949), ela reapareceu com fora,recomeando a luta original entre os saberes sobre os homens em sociedade erelanando os historiadores em sua permanente e saudvel crise acerca do

    conhecimento que produzem. A antropologia Levi-straussiana forou ahistoriografia a se colocar os seguintes problemas: o conceito de estruturaseria compatvel com o de histria ou se excluiriam? A proposta de umahistria estrutural no seria contraditria? Os homens fazem a histria e nosabem ou a fazem e sabem que a fazem? A percepo de uma estruturasocial no imporia o determinismo e aboliria a liberdade individual? Seria possvela emergncia do novo ou toda novidade seria aparente, pois apenas odesdobramento do mesmo? (Lvi-Strauss, 1958)

    Estas questes reapareceram porque Lvi-Strauss ps em dvida a

    cientificidade da histria e at mesmo a sua possibilidade como saber. Em defesado renascimento da etnografia e da etnologia, ele atacou a sociologia e a histria.Da sociologia, cujo pai talvez possa ter sido Tucdides, ele se livrou rapidamente.Para ele, a sociologia no havia atingido o sentido de corpus do conjunto dascincias sociais como para ela aspiraram Durkheim e Simiand. Ela se confundecom a filosofia social, quando reflete sobre os princpios da vida social e sobreas idias que os homens tm dela ou se reduz a uma especialidade menor daetnografia, quando faz pesquisas positivas sobre a organizao das sociedadescomplexas. Para Lvi-Strauss, se algum dia a sociologia vier a integrar os

    resultados das pesquisas sobre as sociedades primitivas e complexas, oferecendoconcluses universalmente vlidas, ela merecer o lugar de coroamento dapesquisa social que foi sonhado para ela por Durkheim e Simiand. Mas, ela aindano obteve este sucesso e poderia ser ou substituda ou absorvida pela etnologia.Quanto histria, ele parecia querer substitui-la pela etnografia, definida comoobservao e anlise dos grupos humanos em sua particularidade, visando areconstituio to fiel quanto possvel da sua vida. A etnologia (ou antropologia,para os pases anglo-saxes) faria a anlise dos documentos apresentadospelo etngrafo. Antes de Lvi-Strauss, os socilogos durkheimianos j tinham

    posto o historiador na posio de coletor de fontes, atribuindo-se a condiosuperior de terico e analista das fontes. Agora, em Lvi-Strauss, o etngrafoparece substituir o historiador e o etnlogo-antroplogo substituiria o socilogo.

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    Contudo, se o ataque sociologia foi aparentemente rpido e fcil, oataque histria lhe deu mais trabalho. Lvi-Strauss ambguo em sua avaliaoda relevncia da histria. Se, por um lado, sustenta que histria e etnologia

    no podem nada uma sem a outra, que os procedimentos so indissociveis,que as duas juntas so como Janus de duas faces, por outro, pode-se perceberum forte mal-estar com a hegemonia da histria entre as cincias sociais. Eleprotesta contra o tratamento especial que alguns filsofos, especialmenteSartre, com quem dialoga tambm rispidamente, do ao tempo e histria,que considera um preconceito contra os homens primitivos e arcaicos, ditossem histria, um etnocentrismo injustificvel. Para ele, o etnlogo respeita ahistria, mas no lhe d um valor privilegiado. Ele a concebe como pesquisacomplementar sua: a histria desdobra as sociedades no tempo; a etnologia,

    no espao. (E a geografia faria o qu?) Para ele, a histria no merece ter maisprestgio porque o tempo e a diacronia no oferecem uma inteligibilidade superior da sincronia e do espao. O prestgio da histria viria do fato de se prestar aum equvoco: ela oferece uma iluso de continuidade, apoiada em uma outrailuso interna, a de que o eu contnuo. A etnologia oferece, ao contrrio, umsistema descontnuo, as diversas sociedades no espao, e no aceita a ilusoda continuidade do eu, que constitudo mais pela exterioridade social do quepela conscincia de si.

    Para ele, geralmente se define histria e etnologia afastando-as de tal

    forma que chegam a se opor:a) a histria trata de sociedades complexas e evoludas, cujo passado atestado por arquivos, e a etnologia trata das sociedades impropriamente ditasprimitivas, arcaicas, sem escrita, com um passado de difcil apreenso, tendoque reduzir o seu estudo ao presente;

    b) a histria privilegia os fatos produzidos pelas elites e a etnologia osfatos da vida popular, costumes, crenas, relaes elementares com o meio;

    c) a etnologia estuda as sociedades frias (sem histria) e a histria associedades complexas ou quentes (histricas). (Lvi-Strauss, 1958)

    Lvi-Strauss, num primeiro momento de paz, contesta estas distines eoposies, pois acredita que a histria e a etnologia podem e devem trabalharjuntas: o conhecimento da estrutura no significa renncia a conhecer a suaevoluo, a anlise estrutural e a pesquisa histrica fazem bom casamento, preciso ultrapassar o dualismo entre evento e estrutura, a busca de umaordem e a exaltao dos poderes criadores dos indivduos no so excludentes,a histria s faz sentido prxima do estruturalismoe, citando Febvre e Bloch,afirma que toda boa obra histrica etnolgica. Neste momento de brandura,Lvi-Strauss prope a pesquisa interdisciplinar entre histria e etnologia ao

    defender a possibilidade de uma histria estrutural.Contudo, este momento de aceitao romntica da companhia da histriapela etnologia no permanente. Logo, Lvi-Strauss passa ao ataque maisraivoso contra a historiografia:

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    1) ele ctico, agnstico, em relao possibilidade do conhecimentodos fatos do passado. Para ele,

    a) o fato histrico nunca o que se passou, pois constitudo

    abstratamente pelo historiador. O historiador um bricoleur. Tanto ele quanto oagente histrico escolhem, recortam, so parciais. Uma viso total doacontecido impossvel. As interpretaes jacobina e aristocrtica da RevoluoFrancesa so opostas e verdadeiras. A Revoluo Francesa tal como se falajamais existiu. O contedo factual no sustenta uma narrativa verdadeira;

    b) ilusrio e contraditrio conceber o devir como um desenvolvimentocontnuo, desde a pr-histria. As datas so separadas como os nmeros: nose passa de uma outra. H descontinuidade entre as evolues. Esta ideologiado progresso se refere Europa e impe o seu domnio sobre realidades sociais

    que desconhecem continuidade e progresso;c) os registros histricos nada mais so do que interpretaes, tanto noestabelecimento dos eventos quanto nas avaliaes deles. A coerncia formalde qualquer narrativa histrica um esquema fraudulento imposto pelohistoriador aos dados. Um fato histrico acontece, mas onde aconteceu? Qualquerepisdio histrico pode ser decomposto em uma multido de momentos psquicose individuais. Os fatos histricos no so dados ao historiador, mas construdospor ele. A histria mtica;

    d) O historiador tem que escolher entre explicar bem e, para isso, diminuir

    o nmero de dados, ou aumentar o nmero de dados e explicar menos. Umahistria detalhada no melhora a compreenso do passado, dificulta. Se quisernarrar a mudana, o historiador est condenado ao Castigo de Ssifo. A realidadeno um agregado de unidades elementares: fatos, smbolos, idias. No hmensagem pontual, mas um sistema subjacente. (Lvi-Strauss, 1958; White,s/d)

    2) Lvi-Strauss ope e sobrepe o conhecimento da estruturainconsciente, produzido pela etnologia, ao conhecimento da diacronia superficialdos fatos, produzido pela histria:

    Ele retira o valor cognitivo da temporalidade, que a histria privilegia. Paraele, a diferena essencial entre a histria e a etnologia no nem de objeto enem de objetivo. Ambas tm o mesmo objeto, a vida social, e o mesmo objetivo,uma melhor compreenso do homem. Elas se distinguem pela escolha deperspectivas complementares: a histria trata de expresses conscientes e aetnologia trata das condies inconscientes da vida social. A etnologia oestudo da cultura ou civilizao: crenas, conhecimentos, artes, moral, direito,costumes, hbitos, para os quais difcil obter uma justificao racional. Osindgenas diro que os homens sempre foram assim, por ordem de Deus ou

    ensinamento dos ancestrais. Quando h interpretao so apenas elaboraessecundrias, racionalizaes. As razes inconscientes de um costumepermanecem inconscientes. Os homens no buscam uma legislao racionalpara a sua ao. O pensamento coletivo escapa reflexo. Os fenmenos

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    culturais tm uma natureza inconsciente como a da linguagem. A estrutura dalngua permanece desconhecida daquele que a fala e ela impe ao sujeito quadrosconceituais que so tomados como categorias objetivas.

    O lingista faz uma comparao real. Das palavras, ele extrai a realidadefontica do fonema; deste, a realidade lgica de elementos diferenciais. Equando ele reconhece em vrios lugares a presena dos mesmos fonemas ouo emprego dos mesmos pares de oposio, ele no compara seresindividualmente distintos entre si: o mesmo fonema, o mesmo elemento,que garante a identidade profunda a objetos empiricamente diferentes. No setrata de dois fenmenos semelhantes, mas de um nico. A atividade inconscientedo esprito impe formas a um contedo e so as mesmas formas paratodos os espritos, antigos e modernos, civilizados e primitivos. A estrutura

    inconsciente que explica as mesmas instituies e costumes em lugares/pocas diferentes.Jean Piaget, procurando definir mais sistematicamente o conceito fugidio

    de estrutura, chegou s seguintes caractersticas:a) um sistema, uma coerncia, que comporta leis que conservam o

    sistema, enriquecendo-o pelo jogo de suas transformaes sem fazer apelo aelementos exteriores;

    b) uma totalidade, os elementos constituem um todo, submetidos sleis de composio do sistema. Os elementos so relacionais;

    c) ela se transforma: as leis de composio so estruturadas eestruturantes. O sistema sincrnico da lngua no imvel e repele ou aceitainovaes. H um equilbrio diacrnico, uma reorganizao, uma reestruturao.As estruturas so intemporais, lgico-matemticas;

    d) ela se autoregula: elas so fechadas e as transformaes no levampara fora de suas fronteiras. Uma subestrutura pode entrar em uma estruturamaior, mas isto no anula as suas leis internas. H auto-regulao lgico-matemtica

    e) permite a formalizao, que obra do terico e pode traduzir-se em

    equaes lgico-matemticas ou em um modelo ciberntico. Mas, a estrutura independente do modelo e pertence ao domnio particular da pesquisa. (Piaget,1970)

    Contudo, qual a via para se atingir esta estrutura inconsciente? Por umlado, Lvi-Strauss continua valorizando a histria, porque para a anlise dasestruturas sincrnicas necessrio recorrer a ela. A histria mostra a superfcieda sucesso de instituies, dos acontecimentos, permitindo etnologia perceberabaixo deles a estrutura subjacente e a ordem permanente. Este esquemasubjacente se reduz a algumas relaes de correlao e oposio inconscientes.

    Fatores histricos mltiplos como guerras, migraes, presso demogrfica,fazem desaparecer cls e aldeias, mas a organizao social profunda e complexapermanece. Apesar dos eventos histricos, aparentemente desestruturantes,a estrutura inconsciente sempre se reestrutura, se reorganiza e se restabelece.

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    Mas, por outro lado, o estruturalismo de Lvi-Strauss sobretudo anti-histrico.Se a etnologia estrutural no indiferente aos processos histricos e sexpresses conscientes, ela os leva em conta para elimin-los. Sua finalidade

    atingir, alm da imagem consciente e sempre diferente que os homens formamde seu devir, um inventrio de possibilidades inconscientes, que no existem emnmero ilimitado e que oferecem uma arquitetura lgica do desenvolvimentohistrico, que pode ser imprevisto, mas no arbitrrio. Para Lvi-Strauss, a frasede Marx os homens fazem a histria, mas no sabem que a fazem, justificaprimeiro a histria e, depois, valoriza sobretudo a etnologia.

    Lvi-Strauss acredita na perenidade da natureza humana, que se revelana ordem mental, intelectual. O intelecto humano permanente e se impesobre a mudana. Para ele, o social no predomina sobre o lgico-intelectual.

    As estruturas lgicas das normas e costumes abolem a mudana histrica. Abusca da inteligibilidade no chega histria; parte dela, para aboli-la. O espritohumano sempre idntico a si mesmo e predomina sobre o social e o histrico.A histria no diferencia o selvagem e o civilizado, pois tm a mesma estruturalgico-intelectual, que torna irrelevante a sua aparente diferena histrica. Lvi-Strauss prefere distinguir as sociedades arcaicas das histricas pela relaoque mantm com a temporalidade. Para ele, o que as separa no o fato deserem umas quentes e outras frias, umas primitivas e outras civilizadas.Para ele, todas as sociedades so histricas. Entretanto, algumas o admitem

    francamente, enquanto por outras a historicidade rejeitada e ignorada. Associedades mitolgicas negam a histria, o ritual suprime o tempo transcorrido.A histria se anula a ela mesma. O tempo melhor quando suprimido e noquando reencontrado. Os mitos foram criados para o enfrentamento, pelasua supresso, das sacudidas e da frico dos eventos. O mito contra amudana histrica. A mitologia resiste mudana histrica ao reequilibrar osistema. (Lvi-Strauss, 1971)

    Para ns, Lvi-Strauss deixou-se influenciar pelo seu objeto de estudo, associedades arcaicas ou primitivas e absorveu a sua representao do tempo

    e da histria. Ele se ops ao Iluminismo europeu, utopia socialista moderna,ao sonho revolucionrio da sua poca, recorrendo representao do tempo eda histria dos indgenas boror. Para ele, o objetivo das cincias humanas no constituir o homem ou lev-lo realizao final em uma sociedade moral,mas dissolv-lo. A anlise etnogrfica no visa a produo da mudana, masquer atingir invariantes que revelem a ordem subjacente diversidade empricadas sociedades humanas. A etnologia quer reintegrar a cultura na natureza, avida em suas condies fsico-qumicas. Para ele, dissolver no significa destruiras partes do corpo submetido ao de outro corpo. A soluo de um slido

    em um lquido apenas modifica o agenciamento de suas molculas. A idia dahumanidade integrada natureza pela etnologia contra o projeto cristo-iluminista, que via a histria como a via real para a emancipao da humanidade.Lvi-Strauss quer compreender a vida como uma funo da matria inerte.

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    Para ele, a explicao cientfica no consiste em passar de uma complexidade auma simplicidade, mas na substituio de uma complexidade menos inteligvelpor outra mais inteligvel. (Lvi-Strauss, 1962)

    Concluso: para ele, a complexidade mais inteligvel a histria sob odomnio (dissolvida) das estruturas permanentes da natureza. A histria comodiacronia e mudana incognoscvel, pois apenas a superfcie das estruturasnaturais profundas. Para ns, Lvi-Strauss, em certa medida, foi vtima do seumtodo emptico, da sua observao participante. Ele se deixou seduzir edominar pela representao do tempo e da histria dos indgenas que estudava.E com este excesso de empatia e participao, ele, o sujeito da pesquisa,perdeu o seu controle e se deixou dissolver no seu objeto-sujeito de anlise.Ele entrou com uma representao europia na aldeia e saiu convertido pelo

    bom selvagem brasileiro, para quem a mudana histrica motivo de medo eangstia e cuja utopia integrar-se o mais radicalmente ordem natural. Parao indgena, a ordem natural a ordem verdadeiramente sagrada e Lvi-Strauss,talvez, tenha reconhecido em sua representao do tempo e da histria apromessa de uma emancipao da humanidade mais profunda e serena, menosdramtica e sangrenta, do que a prometida pelo projeto revolucionrio europeu.Ele aderiu ao modelo de representao fria da histria ao abolir a temporalidade.Teria Lvi-Strauss se transformado em um indgena brasileiro? Afinal, Rousseautambm fora seduzido pelo ideal do bon sauvage e o Brasil se consolida

    como exportador de matriz cultural para a civilizao europia!Enfim, em Lvi-Strauss, a etnologia se ope radicalmente histria emtrs aspectos: institucionalmente, porque disputa a preeminncia entre ascincias sociais, para controlar as instituies de ensino e pesquisa;epistemologicamente, porque se ope histria progressiva, evolutiva,teleolgica, que considera ideolgica e no cientfica, e prope a busca da ordemsubjacente, imvel, permanente, que permite uma anlise matemtica, cientfica;politicamente, porque se ope ao projeto utpico-revolucionrio damodernidade, que acelera a histria com a produo de eventos dramticos, e

    prope uma desacelerao conservadora da histria com a sua dissoluo naordem natural-sagrada.

    A Rplica dos Historiadores: Braudel e a Defesa da Histria Estrutural

    A resposta dos historiadores a Lvi-Strauss foi dada por Fernand Braudelem seu artigo A Longa Durao, publicado na revistaAnnales ESC, em 1958,e republicado posteriormente na coletnea Escritos sobre a Histria. Este um dos captulos mais importantes da histria da historiografia contempornea,

    que todo historiador no pode desconhecer. Na primeira metade do sculo XX,os Annales defenderam a histria contra os ataques dos socilogosdurkheimianos e dos filsofos e antroplogos estruturalistas. Foi uma poca decombates e apologias da histria, sob a liderana de Lucien Febvre e Marc

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    Bloch. Uma estratgia freqentemente usada pelos Annales transformar osseus fortes adversrios em aliados, como fizeram com Durkheim e Simiand,que foram ao mesmo tempo combatidos e recebidos e apropriados. Braudel

    usar esta mesma estratgia com Lvi-Strauss ao explorar a sua ambigidadeem relao histria e fazer o seu elogio do historiador. Como vimos, o prprioLvi-Strauss j duvidava da sua rejeio da histria quando sustentou emdiversos momentos que a histria e a etnologia deviam trabalhar juntas, queo conhecimento da estrutura no significava renncia a conhecer a sua evoluo,que a anlise estrutural e a pesquisa histrica fazem bom casamento. OsAnnales e Braudel iro argumentar a favor da histria nessa direo: precisoevitar o dualismo entre evento e estrutura. A histria o conhecimento dadialtica da durao e em sua articulao de duraes o evento no se ope

    estrutura. (Braudel, 1969)Ao mesmo tempo em que combate o seu estruturalismo anti-histrico,Braudel procura reconhecer a importncia da avaliao feita por Lvi-Strauss dahistoriografia. Mas, para ele, Lvi-Strauss, ao chamar a ateno para o ladoestrutural da vida dos homens, no estava trazendo nenhuma novidade, poisos Annales j faziam o entrelaamento de evento e estrutura desde os anos 20em obras monumentais como O Problema da Descrena no Sculo XVI, aReligio de Rabelais, de Febvre, e Os Reis Taumaturgos, de Bloch. Portanto,a rigor, o historiador no tinha muito a aprender com Lvi-Strauss, pois j

    praticava uma histria estrutural consistente e fecunda h muito tempo, soba influncia de Saussure, Durkheim e Vidal de la Blache. Ao contrrio, Lvi-Strauss, sim, teria muito a aprender com os historiadores dos Annales, poisequivocava-se ao desvalorizar a dimenso temporal, que os historiadores sempreprivilegiaram. Alis, todos os cientistas sociais deveriam ler os historiadores dosAnnales para compreenderem a importncia central da dimenso temporal navida social. Para Braudel, os cientistas sociais em geral, e no somente Lvi-Strauss, se equivocam ao desprezarem a pesquisa do passado, ao tentaremescapar durao, explicao histrica. Eles erram quando consideram a

    explicao histrica como empobrecida, simplificada, reconstruda,fantasmagrica. Para Braudel, os cientistas sociais evadem do tempo histricopor dois caminhos opostos: o eventualista, e dialoga com a sociologia deGeorges Gurvitch, que valoriza em excesso os estudos sociais, fazendo umasociologia empirista, limitada ao tempo curto do presente, enqute viva,servindo aos governos atuais; o estruturalista, que suprime a diacronia, asucesso dos eventos, a mudana. Lvi-Strauss ultrapassa o tempo vividoimaginando uma formulao matemtica de estruturas quase intemporais. Seuobjetivo ultrapassar a superfcie de observao para atingir a zona dos

    elementos inconscientes dos quais se possa analisar as relaes, esperandoperceber as leis da estrutura simples e gerais.Para Braudel, quem ope evento e estrutura e se detm ou no evento ou

    na estrutura so o socilogo e o antroplogo. O historiador no comete este

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    erro de anlise. Ele os articula em uma dialtica da durao. Por isso, para ele, importante afirmar com fora a importncia e a utilidade da histria, que tratadas duraes sociais, dos tempos mltiplos e contraditrios da vida dos homens.

    O historiador se interessa pelo que mais importante na vida social: a oposioviva, ntima, repetida, entre o instante e o tempo lento a passar. A histria dosAnnales, ao no se restringir ao tempo do evento, curto, individual,acontecimental, no produz mais a narrativa dramtica e precipitada da histriatradicional. Os Annales no narram apenas a sucesso dos eventos, queconsideram barulhenta, explosiva, fumaa que ofusca a conscincia doscontemporneos, pois no dura. O historiador dos Annales j sabia que o tempocurto a mais caprichosa e ilusria das duraes e tinha levado a histriatradicional a ser tambm caprichosa e enganadora. Mas, a histria dos Annales

    tambm no se deixou enganar pelo conceito de estrutura social e no aceitoua imobilidade, a perenidade, a intemporalidade atribuda vida social. Na histriano pode haver sincronia perfeita. Uma parada instantnea, que suspenda todasas duraes ou um absurdo ou muito abstrato. Em histria, para Braudel,no h estrutura, mas longa durao.

    A longa durao no uma imobilidade sem mudana, no umaausncia de durao. uma durao longa, i.., uma mudana lenta, umtempo que demora a passar. Quando entrou no trabalho do historiador, aperspectiva da longa durao o transformou. A histria mudou de estilo, de

    atitude, passou a ter uma nova concepo do social. A estrutura histrica oulonga durao uma arquitetura, uma realidade que o tempo gasta lentamente.A longa durao suporte e obstculo. Como obstculo, ela se refere aoslimites que os homens no podem ultrapassar: quadros geogrficos, realidadesbiolgicas, limites de produtividade, quadros mentais. So prises de longadurao. Como suportes, elas so a base que sustenta todo empreendimentohumano, que explica a histria. O historiador, portanto, h muito no comete oerro cometido pelos cientistas sociais: no opem evento e estrutura. Ele articuladuraes curtas, mdias e longas. A histria dos Annales mais econmico-

    social-mental do que poltica e faz outro corte do tempo social, uma outraperiodizao, articulando o tempo curto a ciclos, interciclos, de 10 a 60 anos, atempos mais longos de 100 a 1000 anos. Por dispor de uma temporalidadenova, o historiador dos Annales podia recorrer a mtodos quantitativos, aosmodelos, s matemticas sociais, informtica.

    O historiador dos Annales admite que h um inconsciente social, umpensamento coletivo irrefletido, que aparece em fontes massivas, seriais. Elej utiliza desde os anos 20/30 modelos simples ou complexos, qualitativos equantitativos, estticos e dinmicos, mecnicos e estatsticos na sua anlise

    dessas semi-imobilidades profundas. Mas, esta aceitao do tempo longo e ouso de modelos no impediram a abordagem da mudana. Os modelos soconfrontados durao e valem o quanto dura a realidade que eles registram.As estruturas no so eternas, no h homem eterno. Os modelos so como

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    navios que flutuam por algum tempo e depois naufragam. O historiador seinteressa sobretudo pelo momento do naufrgio, quando o modelo encontra oseu limite de validade. Lvi-Strauss trata de fenmenos de muito longa durao:

    mitos, proibio do incesto, como se as matemticas qualitativas pudessemrevelar o segredo de um homem eterno. Mas, para Braudel, as matemticasqualitativas podem ser muito eficientes para as sociedades mais estveisestudadas pelo antroplogo, mas tero a sua prova de fogo quando trataremdas sociedades modernas, quentes, dos seus problemas encavalados, dasvelocidades diferentes da sua vida. As matemticas sociais devem reencontraro jogo mltiplo da vida, todos os seus movimentos, duraes, rupturas, variaese s o historiador poder realmente test-las.

    Enfim, o historiador no foge do evento e nem da estrutura e no simplifica

    a sua anlise da vida social. Ele no sai jamais do tempo da histria, que cola aoseu pensamento como a terra p do jardineiro. Ele at desejaria evadir-se datemporalidade, como Lvi-Strauss. Braudel mesmo, no cativeiro nazista, quisescapar queles eventos difceis dos anos 40. Ele quis recusar o tempo doseventos, para olh-los de longe, julg-los melhor e no acreditar muito neles.Quando os historiadores dos Annales fazem a dialtica da durao, eles passamdo tempo curto ao tempo longo e retornam ao tempo curto reconstruindo ocaminho j feito. Mas, esta operao temporalizante e no lana para forado tempo histrico, que Braudel descreve como imperioso, pois irreversvel,

    concreto, universal. O tempo histrico exterior aos homens, exgeno, e osempurra, obriga, oprime. Lvi-Strauss s poderia escapar ao tempo da histriase emigrasse para uma aldeia indgena. Mas, l tambm o tempo da grandehistria chegou de forma arrasadora e no foi possvel restabelecer, reequilibrarou reestruturar quase nada! Em relao aos indgenas americanos e do mundotodo, a histria venceu a etnologia. As sociedades frias evaporaram sob ocalor causticante, nuclear, do tempo histrico.

    Para Burguire, pouco estruturalismo afasta da histria; muitoestruturalismo exige o retorno histria. O historiador usa os mtodos

    estruturalistas no para fugir ao barulho e furor da instabilidade da realidadehistrica, mas para observar melhor as transformaes e se manter o maisperto da sua tarefa: a anlise da mudana. Em seu artigo de 1958, Braudelconvocou as cincias sociais ao trabalho interdisciplinar, em equipes, para aobteno a mais ideal possvel de uma viso global da vida social. Para osAnnales, a histria s voltaria a ter a fora que teve antes do sculo XX sevoltasse a dialogar e a trabalhar em conjunto com as suas irms gmeas esiamesas. melhor que se aliem, pois o litgio sobre a qual delas deveria caber amaior parte da herana de Herdoto s poderia lev-las ao fracasso na obteno

    do conhecimento o mais fecundo e eficiente da vida dos homens em sociedade.A histria dos Annales interdisciplinar: etno-histria ou histria antropolgica,histrica social, histria demogrfica, geohistria, histria econmica, histriaimediata (em aliana com o jornalismo/mdia), psico-histria etc. (Burguire, 1971)

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    Braudel defende a melhoria das relaes entre os cientistas sociais entresi e com a histria e a filosofia. As interfaces so inmeras, as pesquisas comunsdevem ser empreendidas atravs do dilogo, da troca de servios, da

    comunicao conflituosa/respeitosa, do emprstimo e apropriao/ressignificao recprocas de bibliografia, tcnicas, temas e problemas. Os nossosparadigmas so os mesmos: os filsofos Kant, Hegel, Nietzsche, os socilogosMarx, Weber, Durkheim, os antroplogos Mauss, Franz-Boas e Lvi-Strauss,os historiadores Ranke, Bloch e Braudel, sem mencionar os geniais mdicos-psiclogos e literatos. Ou o melhor caminho para as cincias humanas seriacontinuar lutando entre si por verbas, lugares institucionais e reconhecimentocientfico com a faca entre os dentes?

    Bibliografia

    ARANTES, Paulo. Um Departamento Francs de Ultramar. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1994.BRAUDEL, Fernand. La Longue Dure. In crits sur lHistoire. Paris:Flammarion, 1969.BURGUIRE, Andr. Histoire et Structure. In Annales ESC, n 3. Paris: A. Colin,mai/juin, 1971.CLEMENT, Catherine.Claude Lvi-Strauss. Paris: PUF, 2003.

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    Alm da racionalidade instrumental: sentido histricoeracionalidade na teoria da histria de Jrn Rsen1

    Beyond instrumental rationality: historical meaning and rationality in Rsenstheory of history2

    AbstractMeaning is a central concept in contemporary historical discourse. How meaning is understood hascrucial consequences for the use of history, the possibilities of historical orientation and the risks ofinstrumentalizing history. This article explains the meaning of the concept of meaning in Jrn Rsenstheory of history, and argues that his perspective on meaning provides a more promising alternativethan objectivism and relativist constructivism with regard to historical orientation and instrumentalism.

    In order to explain Rsens concept of meaning, different concepts of meaning are distinguished. Asignificant distinction is made between meaning as constitution and meaning as representation.Several different aspects of Rsens concept of meaning are then articulated. Against this background,the concept of rationality of meaning is explained and opposed both to constructivism and its inherenttendency to instrumentalism, and to the tendency to objectify meaning in empirical analyses of historicalconsciousness.

    Martin WiklundPesquisador de ps-doutorado no Departamento de Histria das Idias e Teoria da CinciaGteborg [email protected] 200SE-405 30 Gteborg

    Sweden

    Palavras-chaveFilosofia da Histria; Sentido; Racionalidade instrumental.

    KeywordPhilosophy of history; Meaning; Instrumental rationality.

    histria da historiografia nmero 01 agosto 200819

    1 Os editores da Histria da Historiografia agradecem ao autor e revista Ideas in History(www.ideasinhistory.org/cms/) pela permisso de traduo e publicao do presente artigo.2Traduzido por Pedro Spinola Pereira Caldas.

    ResumoO conceito de sentido central no discurso histrico contemporneo. A forma como o sentido compreendido tem conseqncias cruciais para o uso da histria, para as possibilidades de orientaohistrica e para os riscos de sua instrumentalizao. Este artigo explica o sentido do conceito desentido na teoria da histria de Jrn Rsen, argumentando que sua perspectiva fornece, no que dizrespeito aos temas da orientao e da instrumentalizao, uma alternativa mais promissora do queo objetivismo e o construtivismo relativista. Com o objetivo de explicar o conceito de sentido emRsen, diferentes conceitos de sentido sero destacados. Uma distino importante ser feita entresentido como constituio e sentido como representao. Em seguida, diferentes aspectos do conceitode sentido de Rsen sero articulados. Nesse pano de fundo, o conceito de racionalidade de sentido

    ser analisado e oposto tanto ao construtivismo, em sua inerente tendncia ao instrumentalismo,quanto tendncia a objetificar o sentido em anlises empricas da conscincia histrica.

    Enviado em: 18/07/2008

    Autor convidado

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    Ao longo das ltimas dcadas, o sentido tornou-se um dos conceitos maiscentrais na cincia histrica e na histria intelectual. De um lado, este fenmenoserve de testemunho reao contra a percepo da perda de significado,

    sendo, pois, resultado de uma racionalizao das vises de mundo e da crisede legitimidade das antigas meta-narrativas. As experincias dos paradoxos doiluminismo e suas idias de progresso e emancipao exauriram muito suasenergias utpicas. O crescente interesse manifestado na religio, na histria,na tradio e no conceito de identidade so fenmenos paralelos, relacionados crtica ao modernismo ilustrado e renovada necessidade de orientao culturale histrica. De outro lado, o interesse no sentido tambm expressa umdescontentamento com diferentes tipos de objetividade, tais como identidadessexuais e tnicas, verdade histrica e conceitos de progresso, racionalidade,

    sade e natureza humana. Com o auxlio do conceito de sentido, objetividadesforam relativizadas, contextualizadas e historicizadas como construes sociaise culturais.

    Infelizmente, estas correntes conflitam-se. A ltima delas aniquila aspossibilidades de se encontrar respostas plausveis para questes que sustentama primeira. O desconforto com a racionalidade, a verdade e a objetividadefreqentemente levou ao ceticismo e a uma rejeio generalizada das exignciasde legitimidade e plausibilidade.

    Sem quaisquer idias de plausibilidade, porm, as controvrsias inerentes

    s interpretaes histricas tendem a degenerar em lutas estratgicas, onde ahistria instrumentalizada em prol de interesses ideolgicos e polticos dopresente. Da forma como vejo, a perspectiva do pensamento histrico e dacincia histrica desenvolvida pelo filsofo alemo Jrn Rsen significativamentemais promissora no que diz respeito capacidade de responder tanto necessidade de orientao histrica quanto ao descontentamento com osparadoxos do iluminismo. Seu conceito de racionalidade de sentido[Sinnrationalitt] toca o fundamento destes problemas.

    Como nem todos esto familiarizados com Jrn Rsen, primeiramente

    introduzirei o leitor em sua formao, sua obra e sua perspectiva sobre opensamento histrico. Depois, na parte final deste ensaio, analisarei o papel quepossui o sentido em sua teoria da histria, e a significncia da idia deracionalidade de sentido com relao ao problema da instrumentalizao.

    Situando Rsen historicamente

    Em primeiro lugar, algumas palavras sobre sua carreira. Rsen estudouhistria, filosofia, pedagogia e literatura alem na Universidade de Colnia.

    Tambm foi em Colnia que ele, assim como Hans-Ulrich Wehler3

    , escreveu sua

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    3 Wehler um dos principais integrantes da Escola de Bielefeld, caracterizada por pesquisas em HistriaSocial e tambm autor de importantes obras sobre o perodo imperial da histria alem. (N. do T.)

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    tese de doutorado, orientada por Theodor Schieder. Em 1966 ele concluiu suatese sobre a teoria da histria de Johann Gustav Droysen4, um dos historiadoresde maior talento terico no Historismus5 alemo. A Historikde Droysen continuou

    a inspirar Rsen e ainda aparece aqui e acol como uma fonte de argumentaoem sua obra. Nos anos seguintes tese, ele ensinou filosofia e teoria da histriaem diferentes universidades alems, e preparou o solo para um novo paradigmade cincia histrica e pensamento histrico. Estes ltimos esforos foram coligidosna obra Fr eine erneuerte Historik: Studien zur Theorie derGeschichtswissenschaft.6 [Para uma teoria renovada da histria: Estudossobre a teoria da cincia histrica]. Em 1974, foi-lhe oferecida uma ctedra emhistria na Universidade do Ruhr, em Bochum, onde permaneceu at sucederReinhart Koselleck na Universidade de Bielefeld, em 1989. Durante este perodo

    Rusen elaborou diferentes aspectos de sua teoria geral da histria,compreendendo campos como teoria e metodologia da cincia histrica, Didticapara a Histria, Teoria da Historiografia, Teoria da Histria da Historiografia eTeoria da Conscincia da Histria e da Cultura histrica.7 Entre 1994 e 1997,esteve na diretoria do Centro para Pesquisa Interdisciplinar em Bielefeld. Em1997, tornou-se presidente do Kulturwissenschaftliches Institut8 em Essen, ondecontinuou seu trabalho sobre a conscincia histrica e o pensamento histrico,ainda que, em alguns casos, partindo de novas abordagens, tais como a lidehistrica com o holocausto e traumas em geral, estudos comparativos

    internacionais sobre conscincia histrica e historiografia, a histria da culturahistrica e a teoria das cincias da cultura.9 Rsen se aposentou em 2007 como

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    histria da historiografia nmero 01 agosto 2008

    4 RSEN, Jrn, Begriffene Geschichte. Genesis und Begrndung der Geschichtstheorie J.G. Droysens.Paderborn: Schningh, 1969.5 Em alemo no original.6 RSEN, Jrn. Fr eine erneuerte Historik. Studien zur Theorie der Geschichtswissenschaft. Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromann-Holzboog, 1976.7RSEN, Jrn. sthetik und Geschichte. Geschichtstheoretische Untersuchungen zumBegrndungszusammenhang von Kunst, Gesellschaft und Wissenschaft. Stuttgart-Bad Cannstatt:Fromann-Holzboog, 1976; ______. Historische Vernunft. Grundzge einer Historik I: Die Grundlagender Geschichtswissenschaft. Gttingen: Vandenheock & Ruprecht, 1983; ______. Rekonstruktion derVergangenheit. Grundzge einer Historik II: Die Prinzipien der historischen Forschung. Gttingen:Vandenhoeck & Ruprecht, 1986; ______. Lebendige Geschichte. Grundzge einer Historik III: Formenund Funktionen des historischen Wissens. Gttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1989; ______. Zeit undSinn. Strategien historischen Denkens. Frankfurt am Main: Fischer, 1990; ______. & JAEGER, Friedrich.,Geschichte des Historismus. Mnchen: Beck, 1992; ______. Konfigurationen des Historismus.Studien zur deutschen Wissenschaftskultur. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993; ______. HistorischeOrientierung. ber die Arbeit des Geschichtsbewutseins, sich in der Zeit zurechtzufinden. Kln: Bhlau,1994; ______. Historisches Lernen. Grundlagen und Paradigmen. Kln: Bhlau, 1994.8 Instituto de Cincias da Cultura. (N. do T.)9 Rsen, Jrn & MLLER, Klaus E. (orgs.). Historische Sinnbildung Problemstellungen, Zeitkonzepte,Wahrnehmungshorizonte, Darstellungsstrategien. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1997; ______;GOTTLOB, Michael; MITTAG, Achim, Die Vielfalt der Kulturen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998;

    ______. (org.), Westliches Geschichtsdenken. Eine interkulturelle Debatte. Gttingen: Vandenhoeck& Ruprecht, 1999; ______; KTTLER, Wolfgang; SCHULIN, Ernst (orgs), Geschichtsdiskurs. Bd. 15.Frankfurt am Main: Fischer, 19931999; ______ (org.), Geschichtsbewutsein. PsychologischeGrundlagen, Entwicklungskonzepte, empirische Befunde. Kln: Bhlau, 2000; ______.Zerbrechende

    Zeit. ber den Sinn der Geschichte. Kln: Bhlau, 2001; ______ & LIEBSCH, Burkhard (orgs.), Trauerund Geschichte. Kln: Bhlau, 2001; ______., Kann Gestern besser werden?Essays zum Bedenkender Geschichte. Berlin: Kadmos, 2002; ______. Geschichte im Kulturproze. Kln: Bhlau, 2002;Jaeger, Friedrich & ______., Handbuch der Kulturwissenschaften. Bd. 3, Themen und Tendenzen.Stuttgart: Metzler, 2004; ______. Kultur macht Sinn. Orientierung zwischen Gestern und Morgen.Kln: Bhlau, 2006.

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    presidente do Kulturwissenschaftliches Institut, mas permanece como pesquisadorsnior deste instituto e coordena um projeto de pesquisa sobre o humanismona era da globalizao.

    Com o objetivo de demarcar o ambiente intelectual de Rsen, pode serconveniente relacion-lo a uma gerao intelectual. Nascido em 1938, portanto,alguns anos mais velho que Jrgen Kocka (1941-) e ligeiramente mais jovemque Hans-Ulrich Wehler (1931-) e Jrgen Habermas (1929-). Pertence a umagerao que cresceu depois da guerra, e adotou a democracia e o iluminismocomo estrelas-guias. Assim como Kocka e Wehler, dois dos principais historiadoresda Gesellschaftsgeschichte10 [Histria social] praticada em Bielefeld, Rusenfreqentemente adotou a perspectiva da modernizao sobre o desenvolvimentosocial e cultural com uma interpretao essencialmente positiva da modernizao

    e da racionalizao.Esta gerao pode ser contrastada com uma gerao intelectual antiga o

    suficiente para ter percebido de maneira mais intensa as contradies entre avelha Alemanha e a nova Bundesrepublik11 [Alemanha Ocidental]. Suas inclinaesintelectuais tenderam a se aproximar do conservadorismo cultural e da heranaclssica provenientes de Grcia e Roma, e rechaara a americanizao daAlemanha Ocidental nos anos 1950 e 60. Membros proeminentes desta geraoso Reinhart Koselleck (1923-2006), Hermann Lbbe (1926-), Odo Marquard(1928-). Em 1957, Helmut Schelsky cunhou a expresso a gerao ctica

    para descrev-la; suas caractersticas eram a desiluso, a despolitizao e umtipo de realismo que servia de oposio abstrao excessiva (cf. MARQUARD2000, p. 4-9).

    claro que no se trata somente de uma questo de geraes, mastambm de um problema de tradies intelectuais. Dois dos professores deKoselleck e Lbbe foram Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e Joachim Ritter(1903-1974), e de todos se poderia dizer que pertenciam a uma mesma tradiointelectual.

    Uma linha divisria geral entre duas tradies poltica e filosoficamente

    opostas , por vezes, traada na Alemanha Ocidental do ps-guerra: A Ritter-Schule (de Joachim Ritter), inspirada por Aristteles e Hegel, com tendnciaspara o conservadorismo ctico, e a Escola de Frankfurt, inspirada por Kant,Marx, Freud e Nietzsche, com inclinaes socialistas. Grosso modo, a linhadivisria separava anlises sociolgicas como parte do projeto ilustrado deemancipao, antitradicionalismo e utopismo (a Escola de Frankfurt), oposta hermenutica, Begriffsgeschichte12 [Histria dos Conceitos], ceticismo,integrao da tradio e do significado das instituies existentes (a Escola deRitter). Tais divises tenderam a ocultar fontes comuns e conexes entre

    opostos; neste caso, por exemplo, o significado geral de Hegel para ambas as

    Martin Wiklund

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    10 Em alemo no original.11 Idem.12 Idem.

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    tradies, e a crtica racionalidade instrumental, ao cientificismo e alienaona sociedade moderna.

    Onde Rsen se situa nesta paisagem intelectual? Ele tem sido chamado a

    cabea terica da Escola de Bielefeld, e possui vrios traos em comum comHabermas. Tal caracterizao, contudo, oculta alguns aspectos vitais da teoriada histria e da identidade filosfica de Rsen que apontam em outras direespara alm da sociologia histrica e da teoria crtica. Uma importante tradiopela qual Rsen foi influenciado e viria a ser posteriormente desenvolvida o Historismus, uma tradio que, em vrios sentidos, crtica em relao aoIluminismo. Seu interesse pelo Historismus mantm pouca ligao com umconservadorismo terico, e foi, a princpio, motivada por uma idia de razohistoricamente situada, como uma alternativa aos princpios abstratos, externos

    e dogmticos da racionalidade. Toda nova perspectiva sempre porta algo datradio existente como seu ponto de partida, seja ao neg-la, afirm-la oucontinu-la. Lanar mo de princpios independentes de racionalidade, com ofito de escapar das contingncias das tradies particulares, no uma soluopara o problema da contingncia, porquanto os princpios mais fundamentaisficaro desprovidos de toda e qualquer fundao, tornando-se assim...contingentes. Logo, mais razovel comear a partir do j acumulado manancialde experincias, elabor-lo e desenvolv-lo em meio ao confronto com umanova crtica e novos desafios. Isto torna indispensvel pensar a histria da

    cincia histrica ou qualquer fenmeno sob discusso tendo em vista uminteresse e uma inteno sistemticas. Em um contexto levemente distinto,Rsen expressa tal idia da seguinte maneira: Somente perspectivas do futuroque so baseadas na experincia de um passado submetido elaborao, e,assim, historicamente fundamentado, do esperanas de sucesso (RSEN1993, p.158).13

    Esta idia guiou a prpria obra terica de Rsen. A tradio estabelecidana Alemanha poca era uma forma renovada do Historismus. Nos anos 1960e 70, o Historismus foi desafiado, de um lado, por novas questes tericas e

    perspectivas histricas no escopo da cincia histrica, e, por outro, pelasmudanas culturais e sociais. Ter sido o Historismus capaz de interpretar odesenvolvimento da sociedade moderna capitalista e industrial, e, alm disso,ter sido capaz de lidar com alteraes estruturais e processos sociais quemudaram de maneira no-intencional? Outro tema importante era comoconfrontar a experincia do nacional-socialismo e seu legado. Que tipo deautocompreenso o Historismus criou? No teria ele meramente legitimadotradies existentes, ao invs de examin-las criticamente? No era suahistoriografia uma legitimao da sociedade burguesa, determinada e distorcida

    por interesses sociais e polticos externos? At que ponto o Historismusconsolidado poderia permanecer relevante para o presente?

    Alm da racionalidade instrumental

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    histria da historiografia nmero 01 agosto 2008

    13 Ver tambm RSEN 1976, p.11f, 18f. e RSEN 1983, pp.7-11, 15-17.

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    Ao mesmo tempo, o Historismus foi desafiado por um novo paradigma decincia social histrica que inclua fatores no-intencionais como determinantesda ao humana, construes tericas importadas das cincias sociais, mtodos

    de explicao geral, interpretaes crticas de condies estruturais no-intencionais que determinam a direo e o carter da cultura e da sociedadecontemporneas, e a funo emancipatria de se tornar consciente de taiscondies estruturais no-intencionais, de modo a no se deixar ser determinadocegamente pelas mesmas.

    Nesta situao, Rsen comeou a desenvolver uma teoria geral da histria,ou Historik, uma meta-perspectiva que permitiria reflexo e justificativa histrico-racional na modelagem de um novo paradigma. Tal perspectiva no poderiameramente ser a teoria de um novo paradigma, mas devia ser capaz de lidar

    com diferentes paradigmas da cincia histrica, tais como o Historismus, opositivismo, o marxismo, a hermenutica e a Gesellschaftsgeschichte, comoalternativas possveis.14

    No escopo desta perspectiva ampla, ele defendia a Gesellschaftsgeschichtecomo resposta sensata para os desafios da situao histrica da AlemanhaOcidental nos anos 70. Rsen a interpretou como um progresso, se comparadacom o Historismus dos anos imediatamente aps a guerra, que no maisconseguia suprir as funes de orientao histrica, embora importantes insightsdo historicismo devessem ser mantidos.15 Posteriormente, a renovada teoria

    da modernizao oferecida pela Gesellschaftsgeschichte foi confrontada comdiferentes tipos de crtica ao seu ideal de modernizao e seus modelos tericos,mtodos e formas de representao. Novas experincias, relacionadas aoscustos e s vrias crises da modernidade, resistiam a ser inseridas nasnarrativas fundamentalmente positivas da modernizao, e, portanto, motivaraminterpretaes no-lineares, como a micro-histria, a histria do cotidiano, novosmodelos de descrio densa, e novas formas narrativas de representao.16 Demodo similar, o giro lingstico e o desafio ps-moderno clamaram por umareflexo terica renovada. Ao confrontar tais desafios, o mtodo de Rsen

    sempre procedeu dialeticamente: com o fito de atingir uma sntese que mantenhainsights de ambos os oponentes, ele procura articular as tendncias opostas ediscernir de que modo especfico eles se contradizem.

    14 Cf. RSEN, Jrn. Fr eine erneuerte Historik. Vorberlegungen zur Theorie der Geschichtswissenschafte Der Strukturwandel der Geschichtswissenschaft und die Aufgabe der Historik. In: ______. Fr eineerneuerte Historik. . Studien zur Theorie der Geschichtswissenschaft. Stuttgart-Bad Cannstatt:Fromann-Holzboog, 1976.15 Cf. RSEN, Jrn. Der Strukturwandel der Geschichtswissenschaft und die Aufgabe der Historik.In:______. Fr eine erneuerte HistorikStudien zur Theorie der Geschichtswissenschaft. Stuttgart-BadCannstatt: Fromann-Holzboog, 1976; ______. Grundlagenreflexion und Paradigmenwechsel in derwestdeutschen Geschichtswissenschaft. In ______. Zeit und Sinn. Strategien historischen Denkens.Frankfurt am Main: Fischer, 199016 Cf. RSEN, Jrn. Grundlagenreflexion und Paradigmenwechsel in der westdeutschenGeschichtswissenschaft, in ______. Zeit und Sinn. Strategien historischen Denkens. Frankfurt am Main:Fischer, 1990.

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    Quando experincias de mudana temporal no presente no somais possveis de serem integradas nos padres estabelecidosde interpretao do pensamento histrico, um exame dasfundaes destes padres torna-se urgente. Se as experinciasirritantes que clamam por uma reviso no presente dizemrespeito prpria modernidade, esta reviso j se tornou partedo pensamento histrico, pois o pensamento histrico em simesmo confronta os limites de sua prpria modernidade. Eleprecisa transcender esses limites, caso ele queira, no futuro,preencher suas funes culturais de orientao, i.e., interpretaras mudanas temporais das pessoas e seu mundo atravs darememorao histrica, e de tal modo que seja possvel tornaro presente passvel de ser compreendido e o futuro passvel deser antecipado (RSEN 1994, p.192).

    Sob uma perspectiva nrdica, interessante considerar como as primeirastradies cientficas e filosficas podem ter afetado a forma como o desafiops-moderno foi recebido distintamente em diferentes pases. algo bem diversoconfrontar o ps-modernismo, tendo a herana do Historismus, dahermenutica, da fenomenologia e da Escola de Frankfurt, se compararmoscom o horizonte do positivismo e do marxismo.

    Perceber que o conhecimento situado, e que isto tambm se aplica aotipo de conhecimento desenvolvido no seio da cincia histrica era parte da

    teoria da histria de Rsen muito antes do desafio ps-moderno. Que oconhecimento histrico depende de normas e esquemas conceituais, e que osmesmos funcionam de acordo com uma lgica narrativa, mais do que emconsonncia com o espelho da natureza e do representacionismo tudo istoj foi discutido por historiadores e filsofos alemes, entre outros que inspirariamo desafio ps-moderno.17 Que razo e racionalidade so historica e culturamentesituadas no foi tanto o desafio de Rsen, mas seu prprio ponto de partida.

    Logo, no deveria parecer surpresa que o desafio ps-moderno e o girolingstico no apareceram para Rsen como o grande despertar do sono

    dogmtico, cientificista e objetivista do modernismo. Alm de pr questessobre quais aspectos do ps-modernismo representaram um progresso novoe potencial o que defensores do ps-modernismo consideram a partir deuma comparao com o paradigma moderno, embora poucos se sintamconfortveis com o uso no-irnico do conceito de progresso ns tambmdevemos discutir quais aspectos e questes foram perdidas, deixadas de lado eesquecidas.18

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    17 Ver as discusso terica e histrica de Baumgartner sobre as construes narratives e o sentido doconhecimento histrico. BAUMGARTNER, Hans Michael, Kontinuitt und Geschichte. Zur Kritik undMetakritik der historischen Vernunft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972 (publicado em 1971 comotese de habilitao: Die Idee der Kontinuitt, Ludwig-Maximilians-Universitt Mnchen); ver tambmRSEN 1994, pp. 201203.18 Cf. RSEN 1994, pp. 188208.

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    O sentido de sentido

    Com este pano de fundo em mente, voltemos ao conceito de sentido.

    Qual o sentido de sentido [Sinn]? Qual seu status na teoria de Rsen? Eem que medida ainda plausvel falar em sentido da histria?Sentido um conceito notoriamente ambguo e, logo, pode ser til para

    distinguir entre alguns diferentes conceitos de sentido. As distines subseqentesde modo algum esgotam os numerosos aspectos do conceito de sentido einevitavelmente simplificam bastante as coisas, mas sero suficientes por orapara os meus propsitos.

    De acordo com um conceito de sentido, este pode ser entendido comodenotao ou referncia realidade. Esta foi uma teoria influente na antiga

    tradio da filosofia analtica. O sentido da proposio a guerra dos trinta anosterminou em 1648 seria sua referncia ao evento passado sobre o fim destaguerra.19

    Nas cincias humanas sentido tem sido tradicionalmente associado coma inteno de um autor ou de um agente. O sentido de um texto ou do sentidode uma ao , portanto, compreendido nos termos da inteno que lhe estpor detrs (sentido como inteno). Um conceito similar de sentido, emborano restrito inteno consciente, foi usado por Dilthey em sua formulao daidia de cincias humanas como compreenso de um sentido expresso nas

    manifestaes da vida ou objetificaes da experincia vivida (sentido comoexpresso). Para compreender um romance seria necessrio, destarte, viveratravs da experincia vivida no romance como objetificao humana.20

    Ainda algo diferente se almeja, porm, quando o sentido de certosfenmenos, por exemplo, chuva, carro, ou amor, descrito dentro da tradiofenomenolgica: a essncia do fenmeno como ele se mostra para o olharfenomenolgico. Compreender o sentido de chuva no significa entender ainteno do criador da chuva, ou compreend-la como manifestao da vida,ou como expresso da experincia de vida de algum. Tampouco significa

    compreend-la como referncia chuva real ou ao fato de estar chovendo. Osentido fenomenolgico de chuva alcanado pela descrio da idia de chuvacomo contedo de algo que se nos apresenta ou pela articulao de nossacompreenso do sentido de chuva. Se sentido-referencial pode ser explicadocomo sendo o da existncia de alguma coisa, que esta coisa exista, o sentidofenomenolgico pode ser compreendido como a essncia de alguma coisa, oque esta coisa .

    Martin Wiklund

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    19 H vrios conceitos de sentido dentro do escopo da tradio da filosofia analtica, e a teoria

    referencialista de sentido apenas um deles. Sentido em linguagem tambm tem sido compreendidoem termos de valor de verdade ou condies de verdade das proposies, em termos de como aspalavras so usadas, em termos de critrio de validade de atos lingsticos ou nos termos da distinode Frege entre sentido [Sinn] e referncia [Bedeutung]. Todas essas teorias podem ser vistas comodiferentes conceitos de sentido, embora elas nem sempre usem a palavra sentido.20 Cf. DILTHEY 1981, p.177-180.

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    O sentido de uma estria, de um texto ou de um drama diz respeito aainda um outro conceito de sentido. Um aspecto importante disto pode serexplicado como o argumento, a moral ou o ponto da estria - aquilo que

    resume tudo- e no necessariamente corresponde inteno de um autor.Na fico, o sentido no est diretamente relacionado realidade, e em umaacepo radicalmente distinta do sentido-referencial. A anlise da historiografia,em termos de literatur,a tem demonstrado a relevncia deste tipo de sentidopara a filosofia da histria. O sentido como ponto ou a moral da histria, oque a histria lhe conta, pode ser distinguido do sentido da sinopse, ou do quea histria trata. Por exemplo: a sinopse pode tratar do amor entre um rapaz euma moa, mas ambos precisam passar por uma srie de dificuldades para quepossam ficar juntos. O ponto desta estria pode ser algo como: o amor

    algo pelo que vale a pena lutar, mesmo se voc acha que existam impedimentosinstransponveis para sua realizao.21

    O mais importante conceito de sentido na tradio da filosofia da histria,porm, diz respeito relao com um objetivo, um fim ou um telos sentidoteleolgico e tem sido tipicamente expresso na idia de desenvolvimentohistrico como realizao da vontade de Deus.22 Neste caso, o sentido dahistria pode ser tambm explicada pela inteno de seu autor Deus oupelo objetivo a que finalmente atingir. Tambm as intenes humanas podemser descritas em termos de objetivos, como objetivos pretendidos por meio de

    aes. Na filosofia idealista da histria, a vontade de Deus foi transformada emidias que guiam o desenvolvimento histrico e expressam qual o tema dahistria; por exemplo, o desenvolvimento e aperfeioamento das habilidadesinerentes do homem, ou o desenvolvimento e realizao da conscincia que ohomem tem de sua liberdade.

    Constituio de sentido versus representacionismo

    O que significa sentido na teoria da histria de Rsen? H vrios aspectos

    de seu conceito de sentido. Em um nvel, sentido o que o conhecimentohistrico e o pensamento histrico consistem, bem como de seu contedo.Pensamento histrico produz sentido a partir do mago do tempo, diz Rsen(RSEN, 1990, p.11). Ou, para colocar de maneira ligeiramente diferente, ocontedo da conscincia histrica constitudo pela formao de sentido dadapor meio das experincias do tempo. Experincias do tempo no devem serentendidas como uma dimenso especfica e limitada de nossa experincia,

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    21 Ver, por exemplo, BROOKS 1998, p.11f; , WHITE 1975, p.11.22 Ver, por exemplo, LWITH, Karl. Weltgeschichte und Heilsgeschehen. Stuttgart 1961 (1953),pp. 1127.

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    mas, antes, como todo um espectro de experincia que pode ser relacionadoao tempo, isto , ao agora, ao antes e ao futuro. Este tipo de sentido asntese de duas diferentes dimenses que s podem ser separadas

    analiticamente; experincia e inteno. A experincia, em sua relao com otempo, interpretada com referncia s intenes, e vice-versa. assim comoum intrprete se compreende, compreende o mundo e sua relao com ele.Esta tambm a maneira como a conscincia histrica se forma. A narraohistrica descrita como o procedimento mental que produz conscincia histricaao conectar fenmenos histricos, formando concepes coerentes e dotadasde sentido (cf. RSEN 1983, p.50f).

    Este tipo de sentido no se refere somente ao passado, ou s aespassadas e suas intenes, mas, tradicionalmente, tem sido uma maneira comum

    de definir a que se refere o conhecimento histrico (res gestae como oposio historia rerum gestarum). A diviso entre o passado em si mesmo e o passadocomo para ns reflete a diviso entre sujeito e objeto, que pertence tradiodo realismo objetivo metafsico, do empirismo, do representacionismo e teoriada verdade como correspondncia. (cf. TAYLOR 1997, p. 2-8). H, supostamente,uma realidade objetiva de um lado, dada independentemente das interpretaes,culturas e linguagens humanas, e, de outro lado, imagens, interpretaes,expresses lingsticas e narrativas. Se este espelho corresponder ao anterior,tais imagens, interpretaes, expresses e narrativas so verdadeiras.

    Uma forma bastante comum de crtica ao representacionismo consiste naafirmao de que a linguagem no um espelho da realidade, mas, antes,distorce ou filtra nossas vises sobre esta. O uso de metforas como filtros,culos, lentes, telescpios, binculos etc., pressupe a diviso entre o observadore uma realidade externa independente. Que a linguagem no um espelhoperfeito da realidade dificilmente se apresenta como uma descoberta muitoexcitante; , na verdade, um lugar comum. Mesmo os mais contundentesdefensores do ideal do espelho que tentaram criar uma linguagem perfeita comtais propsitos foram motivados, precisamente, por sua frustrao perante as

    imperfeies da linguagem ordinria. Um tipo paralelo de crtica dirigida contraa possibilidade de conhecimento objetivo e contra a ingenuidade da idia de queo pesquisador seria capaz de atingir o passado em si mesmo, ser imparcial elivre de preferncias e valores. Reconhece-se que alguns historiadores tmpoucas dvidas quanto possibilidade de atingir tal ideal, mas a maior partedeles, a maioria deles defensores do objetivismo, tem conscincia da tendnciados historiadores em serem parciais, subjetivos e normativos. De fato, precisamente por causa desta conscincia que eles sublinharam a necessidadede aplicar mtodos rigorosos de crtica e anlise documental e de lutar pela

    objetividade.Uma forma muito mais interessante de crtica ao objetivismo e ao

    representacionalismo parte do insightkantiano de que, para que haja todo equalquer objeto de experincia, ns necessitamos de conceitos que englobem

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    tais objetos como objetos, para alm de serem meras impresses humanasflutuantes. Para entender o que experimentamos, precisamos de conceitos quedem ordem ao que percebemos. Aparte dos conceitos aprioride entendimento,

    h uma necessidade de conceitos empricos de entendimento e de esquemasconceituais produzidos pela imaginao. Tais conceitos e esquemas no sodados pela natureza, mas formados e criados pela conscincia e sua relaocom as aparncias.23 Pessoas com formao positivista ou no marxismocientfico tendem algumas vezes a rejeitar todos os desvios em relao aoobjetivismo e ao realismo metafsico, considerando-os como expresso doirracionalismo, do relativismo ps-moderno, de contra-iluminismo e at mesmode fascismo. Para aqueles que estranham quando escutam que o conhecimentohistrico depende da sntese da imaginao [Einbildungskraft], e que no h

    realidade independente e definitiva que sirva de medida absoluta para a verdadee validade das representaes histricas, deve ser confortvel saber que Kant,o grande filsofo do iluminismo, os sustenta quando deixam para trs oobjetivismo e o realismo metafsico. Para aqueles que, ao contrrio, se animame se extasiam com a idia da imaginao como conditio sine qua non doconhecimento e a usam como libi para a criatividade anrquica, poder terum efeito calmante, como uma ducha fria, lembrar que os esquemas daimaginao de Kant de modo algum implicavam ficcionalidade, nem contradiziama importncia da racionalidade e da disciplina de pensamento.

    A idia de conscincia constitutiva tornou possvel um tipo de idealismoque no separa as idias produzidas pela conscincia da realidade, ou sujeitodo objeto. De acordo com esta perspectiva, verdade e fatos somente sopossveis em relao a uma matriz conceitual que determina no o que verdadeiro, mas que verdades so possveis dentro desta matriz, isto , quetipo de afirmaes podem se candidatar a ser verdadeiras.24 Antes que sejaverdadeiro qualquer juzo sobre, por exemplo, o renascimento, o conceito derenascimento deve ser formado e seu sentido mais ou menos definido.Somente tendo como pano de fundo a conceitualizao da experincia de uma

    cadeira ou de uma revoluo possvel comparar um juzo sobre o assuntocom a experincia e dizer: sim, o que voc diz verdadeiro.

    Esta perspectiva tem conseqncias cruciais para a consolidao denarrativas histricas e a compreenso dos critrios de acordo com os quaistais narrativas podem ser julgadas. Obviamente, h mais em jogo do que asimples correspondncia a uma realidade independente. Porm, o que estemais significa e quais so suas conseqncias algo menos bvio. Que umsujeito, seus conceitos e suas matrizes interpretativas moldam, em algumamedida, o conhecimento humano no necessariamente visto como distoro

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    23 KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft. Pp. B 176-181.24 Ver, por exemplo, a idia de Putnam sobre realismo interno: PUTNAM, Hilary. Two philosophicalperspectives, In: ______. Reason, Truth and History. Cambridge 1995 (1981). Chris Lorenz aplicouesta idia teoria da histria: LORENZ, Chris. Historical Knowledge and Historical Reality: A Plea forInternal Realism, pp. 297327, History and Theory, Vol. 33, Issue 3 (Oct. 1994).

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    ou desvio da realidade objetiva ou do prprio passado. Tampouco so conceitos,matrizes e ferramentas lingsticas vistos como filtro, ou um par de culosescuros, atravs dos quais a realidade percebida e compreendida, como se

    houvesse, do outro lado destes culos, uma realidade objetiva, independentedefinida e determinada dada pela natureza. Isto no significa que no h realidadeou que o conhecimento o que voc bem entende que ele deva ser, mas que aquidditas da realidade tambm depende do sujeito que constitui sentido emsua relao com as aparncias.

    Na teoria de Rsen, a conscincia constitutiva a conscincia histrica. Aeste respeito, o conceito de sentido em Rsen similar ao conceitofenomenolgico de sentido. Assim como na tradio fenomenolgica, o mundoda vida (die Lebenswelt) visto como logicamente prioritrio em relao

    cincia. A idia de Husserl da conscincia como constituidora de sentido umasucessora tardia da teoria kantiana da conscincia transcendental, que, por suavez, constitui objetos da experincia com o auxlio de conceitos empricos deentendimento e esquemas de imaginao.

    A conscincia histrica a quintessncia das operaes mentais (emocionaise cognitivas, inconscientes e conscientes) com cuja experincia do tempo processada a orientao da vida prtica com a ajuda de lembranas (RSEN1994, p.6). A conscincia histrica o lugar em que o passado pode ser ouvidoe tornar-se visvel, pois que o acesso ao passado, e a forma como ele aparece

    ao intrprete, depende das questes que so levantadas no presente questesmotivadas pela necessidade por orientao histrica com o objetivo de tornarpossvel lidar com o presente e antecipar o futuro (cf. RSEN 1983, p.54).Assim, quando Rsen defende que a conscincia histrica a base doconhecimento histrico e da cincia histrica, ele no se refere a uma dependnciameramente sociolgica ou psicolgica, mas a uma lgica e epistemolgica. Sesomente a dependncia sociolgica estivesse implicada, o ideal de conhecimentohistrico ainda poderia ser o de uma verdade independente do intrprete, davida do mundo e da sociedade. Por esta perspectiva, todavia, a validade do

    conhecimento histrico no independente do intrprete do mundo da vida, e,assim, se torna essencial, por razes epistemolgicas, lev-la em considerao.

    Com o fito de formular princpios gerais de validade na cincia histrica, essencial compreender a proposta do pensamento histrico, a que se presta opensamento histrico, ou porque h simplesmente algo como o pensamentohistrico. Isto obtido pela interpretao da prxis do pensamento histrico epela articulao de uma matriz que torna possvel seu entendimento. Somenteao compreender o interesse humano e a necessidade do pensamento histrico,e ao articular a lgica do pensamento histrico com o mundo da vida, possvel

    compreender a proposta ou funo do pensamento histrico e, comoconseqncia, que tipo de validade est em jogo quando narrativas histricasso avaliadas dentro ou fora da cincia histrica (cf. RSEN 1983, pp.76-84).

    Outro aspecto da conscincia histrica seu contedo em oposio sua

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    funo. O contedo da conscincia histrica constitudo e moldado pelanarrativa histrica que conecta a interpretao do passado e a compreensodo presente com antecipaes do futuro. H diferentes maneiras de relacionar

    as diferentes dimenses de tempo entre si, que correspondem a diversos tiposde narrativa histrica: tradicional, exemplar, crtica e gentica. A teoria daconscincia histrica tem sido, por vezes, compreendida equivocadamente comosendo restrita ao conceito de tempo tipicamente ocidental, linear e evolutivo,mas, com o objetivo de transcender o etnocentrismo, a teoria de Rsen desenvolvida para compreender conceitos de tempo circulares, cclicos e noevolucionistas, bem como aqueles lineares e evolucionistas.25

    A narrativa histrica no somente uma questo de representao como o passado representado em seus textos que tanto os defensores

    como os crticos do giro lingstico por vezes argumentam. tambm umaquesto de constituir a histria que supostamente deve estar representadanos textos, de relacionar o passado com o presente e com expectativas defuturo. Uma importante diferena entre fatos e fatos histricos que os ltimosesto relacionados a uma dimenso do tempo e percebidos a partir de umponto de vista tardio dado no e pelo intrprete: Nem tudo o que tem a vercom o homem e com seu mundo histria, s porque j aconteceu, masexclusivamente quando se torna presente, como passado, em um processoconsciente de rememorao (RSEN 2001, p.68).26

    Isto significa que somente podem pertencer histria eventos e aesdo passado tm algum tipo de significado para o presente do intrprete. Umalista de fatos, como uma crnica, no constitui ainda histria. (cf. RSEN 1994,p.196). Elas [as aes] s so histricas porque ns a concebemos comohistricas, no em si e objetivamente, mas exclusivamente em nossa concepoe por intermdio dela (RSEN 2001, p.67), Rsen cita afirmativamente Droysen.Isto possibilita discernir uma diferena importante entre o narrativismo de Rsene as verses do narrativismo centradas no texto. Rsen criticou os defensoresdo giro lingstico por no diferenciarem entre as narrativas como constituio

    ou interpretao do passado e narrativa como representao. Enquanto a versotextualista do narrativismo centra-se na construo de sentido por meioslingsticos, tais como figuras poticas e retricas, Rsen tambm aponta paraa importncia da cunhagem de sentido de uma histria por meio de categoriase valores interpretativos, independentemente de como esta histria

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    25 Ver RSEN, Jrn. Die Vier Typen des historischen Erzhlens, In:_____. Zeit und Sinn: . Strategienhistorischen Denkens. Frankfurt am Main: Fischer, 1990; ______. Historical Narration: Foundation,Types, Reason, History and Theory, pp. 8697, Vol. 26, No. 4, Beiheft 26: The Representation ofHistorical Events, (Dec. 1987); ______. Theoretische Zugnge zum interkulturellen Vergleich. In:______.Geschichte im Kulturproze. Kln: Bhlau, 2002.26 As passagens citadas pelo autor que estejam em livros traduzidos para a lngua portuguesa foramretiradas da verso brasileira, cujas referncias completas se encontram na bibliografia final nesteartigo. (N. do T.)

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    configurada e representada em um texto, um museu ou um filme.27 A tendnciado narrativismo textualista em reduzir tudo que no pertence aos eventos dopassado a texto e fico parece meramente repetir a diviso objetivista entre

    sujeito e objeto, representao e realidade, ao invs de reconceitualizar a idiade realidade e conhecimento histricos. Todos os aspectos da historiografia edo conhecimento histrico que transcendem o nvel dos fatos ou dos signosvisveis do material documental, ou que no se referem aos eventos no passado,ou que so dependentes do intrprete, so facilmentes compreendidos, ento,como arbitrrios e fictcios. Mas, de acordo com a perspectiva da narrativa e daconscincia histrica como constitutivos da histria, segundo a qual o fato deconceitos e categorias serem dependentes do sujeito no lhes transforma emalgo fictcio ou arbitrrio, ou oposto racionalidade e realidade (RSEN 2001,

    p.17f; RSEN 2002, p.114f).Como paralelo constituio de um objeto feita pelo sujeito, a conscincia

    histrica constitui histria: uma histria coerente que relaciona umainterpretao do passado com a compreenso do presente e expecativas defuturo, independentemente de como ela ser ou no posteriormenterepresentada em um texto. Para explicar esta forma de constituio de histriae para explicar o que d coeso histria necessrio fazer uma introduosobre o aspecto teleolgico do conceito de sentido em Rsen.

    O sentido teleolgico

    A dimenso teleolgica um importante aspecto do conceito de sentidoem Rsen. Tal dimenso costumava estar no centro da filosofia da histria, maspraticamente desapereceu no nvel da reflexo explcita quando a filosofiasubstancialista da histria foi descartada por seus aspectos metafsicos em prolda epistemologia e da teoria da cincia. Segundo Rsen, porm, todo pensamentohistrico tem uma dimenso teleolgica, uma dimenso de objetivos e valores.Quando a conscincia histrica, ou um intrprete, compreende o passado com

    o objetivo de entender o presente e antecipar o futuro, ele relaciona a experinciado passado com expectativas de futuro. O que conecta as diferentes dimensesde tempo que atravessam o intrprete a idia, ou critrio de sentido, quedetermina sobre o que a histria. Como se deve compreender tais critrios desentido? Eles correspondem s referncias com as que interpretamos a histriacom o fito de responder nossas questes sobre como viver e agir no presente,e como relacionar-nos com o futuro. O que especificamente histrico e

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    27 Para a discusso da importncia das categoiras, ver: RSEN, Jrn. Der Teil des Ganzen berhistorische Kategorien. In:______. Historische Orientierung: ber die Arbeit desGeschichtsbewutseins, sich in der Zeit zurechtzufinden. Kln: Bhlau, 1994; Para a crtica de Rsen teoria da histria ps-moderna, ver RSEN, Jrn. Postmoderne Geschichtstheorie. In:______.Historische Orientierung: ber die Arbeit des Geschichtsbewutseins, sich in der Zeit zurechtzufinden.Kln: Bhlau, 1994.

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    significativo no passado em relao ao presente por meio do qual interpretamoso passado? As idias tm o carter de quase-intenes e indicam a direo dealgum objetivo em relao ao qual o sentido da ao humana e o sofrimento

    do passado podem ser interpretados. Elas organizam a interpretao do mundoe de uma pessoa com a finalidade de possibilitar o enfrentamento do mundo nopresente, e para orientar a ao na antecipao do futuro. um jeito deinterpretar o tempo de um ponto de vista humano, isto , em relao aosseres humanos, suas situaes e preocupaes. Posto que seres humanosvivem em diferentes situaes histricas e culturais apropriado que os pontosde vistas sejam distintos entre si, em oposio ao ideal de Deus correspondenteao realismo metafsico e ao objetivismo.

    Exemplos bem conhecidos de sentido da histria, nesta acepo, so a

    salvao da humanidade, a civilizao da humanidade, a racionalizao domundo, o desenvolvimento da tecnologia e o desenvolvimento da liberdadehumana. Sentidos circulares correspondentes podem ser como mudam asconstituies polticas ou o caminho eterno do mundo. este tipo de sentidoao qual nos referimos quando defendemos ou duvidamos que a histria tenhaalgum sentido. Neste contexto, todavia, til distinguir entre dois aspectos desentido.

    De um lado, a histria pode ter sentido porque possvel formar umainterpretao coerente da nossa histria em torno a um contedo ou tema.

    Eventos histricos tambm podem ter este tipo de sentido, por exemplo, comoparte de um movimento mais amplo de mudana, um passo na estrada quenos leva a algum lugar, um momento decisivo e de guinada. Tais qualificaesso somente possveis em relao a alguma idia ou a algum critrio de sentido.Este pode ser chamado o sentido da histria como enredo uma resposta questo sobre qual o tema da histria.

    De outro lado, a questo sobre o sentido na histria usualmente se refere idia de um objetivo positivo ou uma direo, realizao de valores emetas. Este o tpico sentido teleolgico. este tipo de sentido ao qual nos

    referimos quando perguntamos se h algum sentido em que estamos fazendoou no que est acontecendo. Aes que levam a um declnio, ou a umacatstrofe, no so dotadas de sentido nesta acepo, ou seja, adeqadas aoseu propsito de buscar um objetivo desejvel, mas, ainda assim, tm umsentido como parte de um enredo. Filosofias pessimistas da histria, filosofiasda decadncia podem, contudo, tambm aparecer como dotadas de sentidoteleolgico, apontando em direo a um fim negativo que tambm possui ocarter de uma meta. Em geral, porm, o cerne de tais histrias consiste emcriticar ou em apelar para a resistncia contra a direo vigente do

    desenvolvimento da sociedade. Pode ser tambm expresso de resignao,descrena, ou a convico da futilidade de tudo que existe a ausncia desentido e propsito como um todo, tal como expresso no antigo slogan punk:

    Alm da racionalidade instrumental

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    histria da historiografia nmero 01 agosto 2008

  • 7/28/2019 Revista - Histria da historiografia

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    No future!.28 O sentido negativo, nesta conotao, pertence, destarte, aosentido teleolgico, visto que est implicitamente relacionado a um objetivo,embora no inclua qualquer objetivo positivo ou desejvel.

    Qual o estatuto ontolgico do sentido teleolgico? subjetivo ou objetivo?De acordo com a idia subjetivista de sentido teleolgico, realidade e passadoem si mesmos esto desprovidos de sentido e, logo, este s pode ser adicionadoa algo que lhe seja externo. O passado interpretado em relao s preocupaese projetos do presente, com respeito aos quais ele aparece como algo dotadode sentido, mas o sentido enquanto tal pensado como sendo algo subjetivo.

    Tal compreenso de histria faz com que o passado parea uma marionetecom a qual o intrprete pode brincar como quiser e bem entender. O sentido dahistria e seu tema so, ento, totalmente determinados pelo ponto de vista e

    os valores escolhidos. Nada no passado faz com que algum valor, idia oucritrio de sentido seja mais plausvel do que outros. Logo, o sentido da histriaest completamente merc do sujeito, e a moral da histria ser o que eledesejar que seja (cf. RSEN 1983, p. 59f). Algumas verses do giro lingsticose aproximam desta viso sobre a ontologia do sentido, quando se diz que asnarrativas constroem sentido, atribuem sentido ao passado e a eventos, oudotam ou investem o passado com sentido. Neste ponto, ironicamente,eles concordam com os tradicionais advogados do empiricismo e do objetivismorealista, que tambm crem que o sentido teleolgico totalmente subjetivo e

    fictcio, visto que o passado, em si mesmo, no possui este sentido.Objetivismo do sentido teleolgico, por outro lado, implica que o sentido

    da histria dado objetivamente, independentemente do intrprete, de suasintenes e objetivos. A Histria aparece, ento, como destino, ou governadapor Deus, pela natureza das coisas, ou pelas leis da histria. A tradicional filosofiacrist da histria, o marxismo-leninismo, e o tipo de historicismo que Karl Poppercriticou so exemplos do objetivismo do sentido teleolgico.

    De acordo com Rsen, o subjetivismo subestima a experincia e sua relaocom o sentido histrico. H coisas que aconteceram no passado sobre as quais

    no podemos mais fazer nada. Embora o sentido de tais eventos no sejadeterminado, tampouco completamente independente destes. De mais a mais,a histria tem uma qualidade objetiva, no sentido de que h condies histricasdeterminando nossa situao que no podemos escolher. No criamos nossasituao histrica, parte da qual consiste de nossos conceitos, normas, moldurasinterpretativas e intenes futuras. Antes de comearmos a construir opassado, sempre somos [immer schon]29 construdos pelo passado. Antesde comearmos a fazer projetos para o futuro, somos sempre projetados ougeworfen30 no passado. Se queremos compreender nossa situao e nossa

    Martin Wiklund

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    28Mesmo este slogan pode ser compreendido como uma crtica a uma certa direo de desenvolvimentona sociedade, em oposi