revista opinião jurídica 16

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Page 1: Revista opinião jurídica 16
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REVISTAOPINIÃO JURÍDICA

R. Opin. Jur. Fortaleza v. 12 n. 16 p.1-414 jan./dez. 2014

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R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 12, n. 16, p.1-414, jan./dez. 2014

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Fortaleza, 2014

REVISTAOPINIÃO JURÍDICA

R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 12, n. 16, p.1-414, jan./dez. 2014

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Ficha Catalográfica

Opinião Jurídica – Revista do Curso de Direito da Unichristus - n. 16, ano XII, 2014

© Unichristus, 2014

Opinião Jurídica- [n. 16] – Fortaleza: – Unichristus.[2014]-v.I. Direito

CDD : 340

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP).

R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 12, n. 16, p.1-414, jan./dez. 2014

ImpressãoGráfica e Editora LCR Ltda.

Rua Israel Bezerra, 633 - Dionísio Torres - CEP 60.135-460 - Fortaleza – CearáTelefone: 85 3105.7900 - Fax: 85 3272.6069

Site: www.graficalcr.com.br – e-mail: [email protected]

Page 6: Revista opinião jurídica 16

Opinião JurídicaRevista do Curso de Direito da Unichristus n. 16, ano XII, 2014

ReitorJosé Lima de Carvalho Rocha

Pró-Reitor de Administração e PlanejamentoEstevão Lima de Carvalho Rocha

Pró-Reitor de GraduaçãoMauricio Lima de Carvalho Rocha

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós GraduaçãoMarcos Kubrusly

Pró-Reitor de ExtensãoRogério Frota Leitão dos Santos

Editora-ChefeDra. Fayga Silveira Bedê (UNICHRISTUS – Fortaleza, CE – Brasil)

Editora-AdjuntaDra. Paula Tesser (UNICHRISTUS – Fortaleza, CE – Brasil)

Editora-AssistenteCamila Figueiredo Oliveira Gonçalves (UNICHRISTUS – Fortaleza, CE – Brasil)

Editores-AssociadosMe. Ana Paula Pinto Lourenço (Universidade Autônoma de Lisboa – UAL, Lisboa - Portugal)

Me. Ana Stela Vieira Mendes Câmara (UNICHRISTUS – Fortaleza, CE – Brasil)Me. Antonio Torquilho Praxedes (UNICHRISTUS – Fortaleza, CE – Brasil)

Dr. Emerson Gabardo (UFPR- Curitiba, PR - Brasil)Me. Gustavo Fernandes Meireles (Université d’Évry Val d’Essonne, Évry - France)

Me. Henrique Botelho Frota (PUC – São Paulo, SP/Brasil)Dr. Horácio Wanderlei Rodrigues (UFSC- Florianópolis, SC - Brasil)

Dr. Isaac Costa Reis (UFSB- Porto Seguro, BA - Brasil)Me. Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto (UniCEUB, Brasília, DF - Brasil)

Dr. Paulo Ferreira da Cunha (FDUP –Porto, Portugal/ USP – São Paulo, SP - Brasil)Dr. Roberto Bueno Pinto (UFU-Uberlandia, MG - Brasil)

Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas (UNINOVE / MODERA– São Paulo, SP - Brasil) Me. Tércio Aragão Brilhante (AGU – Fortaleza, CE)

Comissão Editorial Dr. Alexandre Antonio Bruno da Silva (UNICHRISTUS, UECE- Fortaleza, CE - Brasil)

Me. Alexandre Fernandes Dantas (Universidade Estácio de Sá, UNESA – Rio de Janeiro, RJ - Brasil)Dr. Altamirando Pereira da Rocha (Universidade Federal de Uberlândia – Uberlândia, MG - Brasil)Me. Ana Paula Pinto Lourenço (Universidade Autônoma de Lisboa – UAL, Lisboa - Portugal)

R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 12, n. 16, p.1-414, jan./dez. 2014

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Dr. Antonio Baptista Gonçalves (Escola Paulista de Política, Economia e Negócios, EPPEN - São Paulo, SP- Brasil)

Dr. Antonio Celso Baeta Minhoto (USCS- São Paulo, São Caetano do Sul, SP - Brasil)Dra. Bárbara Silva Costa (Centro Universitário Ritter dos Reis - Porto Alegre, RS – Brasil)

Dra. Cláudia Sousa Leitão (UECE- Fortaleza, CE - Brasil)Dr. Clóvis Gorczevski (UNISC-Santa Cruz do Sul, RS - Brasil)

Dr. Daniel Francisco Nagão Menezes (Universidade Presbiteriana Mackenzie - Campinas, SP - Brasil)

Dra. Danielle Annoni (UFSC- Florianópolis, SC - Brasil)Dr. Diego Richard Ronconi (Universidade do Vale do Itajaí – Florianópolis, SC - Brasil)

Dr. Edson Kiyoshi Nacata Junior (Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte, MG – Brasil)

Dra. Elaine Harzheim Macedo (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - Porto Alegre, RS – Brasil)

Dr. Élcio Nacur Rezende (Escola Superior Dom Helder Câmara - Belo Horizonte, MG - Brasil)Dr. Emerson Gabardo (UFPR- Curitiba, PR - Brasil)

Dra. Érika Pires Ramos (UEPB/ UNISANTOS/UNIMEP- São Paulo, SP - Brasil)Dr. Etienne Picard (PARIS I – SORBONNE – Paris, France)

Dr. Everton das Neves Gonçalves (UFSC- Florianópolis, SC - Brasil)Dr. Fabrício Bertini Pasquot Polido (UFMG- Belo Horizonte, MG - Brasil)

Dra. Fernanda Busanello Ferreira (UFG- Goiânia, GO - Brasil)Dra. Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros (Unilasalle, FADERGS e PUC-Porto Alegre, RS - Brasil)

Dr. Flávio José Moreira Gonçalves (UFC/ UNICHRISTUS/UNIFOR - Fortaleza, CE - Brasil)Dr. Friedrich Müller (Universidade de Heidelberg- Heidelberg - Alemanha)

Dra. Gabrielle Bezerra Sales (UNICHRISTUS- Fortaleza, CE - Brasil)Dra. Germana Parente Neiva Belchior (FA7- Fortaleza, CE - Brasil)

Dra. Gloria Cristina Flórez Dávila (Universidad Major de San Marco – Lima, Peru)Dra. Gretha Leite Maia (UFC- Fortaleza, CE - Brasil)

Dr. Horácio Wanderlei Rodrigues (UFSC- Florianópolis, SC - Brasil)Dr. Ingo Wolfgang Sarlet (PUC - Porto Alegre, RS - Brasil)

Dr. Isaac Costa Reis (UFSB- Porto Seguro, BA - Brasil)Dra. Jamile Bergamaschine Mata Diz (Universidade de Itaúna -Itauna, MG- Brasil)

Dra. Joana Stelzer (UFSC- Florianópolis, SC - Brasil)Dr. João Luís Nogueira Matias (UFC- Fortaleza, CE - Brasil)

Dr. João Maurício Adeodato (UFPE- Recife, PE - Brasil)Dr. José Calvo González– (Universidad de Málaga- Málaga, Espanha)

Me. José Edmar da Silva Ribeiro (UFC – Fortaleza, CE – Brasil)Dr. José Francisco de Assis Dias (Universidade Estadual de Maringá – Maringá, PR - Brasil)

Dr. Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho (FGV, PUC - São Paulo, SP - Brasil)Dr. Juraci Mourão Lopes Filho (UNICHRISTUS – Fortaleza, CE – Brasil)

Dr. Leonardo Netto Parentoni (Universidade Federal de Minas Gerais - Belo Horizonte, MG - Brasil) Dr. Leonel Pires Ohlweiler (Universidade Luterana do Brasil- Canoas, RS – Brasil)

Me. Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto (Centro Universitário de Brasília, UniCEUB –Brasília, DF - Brasil)

Dr. Maurício Timm do Valle (UNICURITIBA/ UFPR - Curitiba, PR - Brasil)Dra. Maurinice Evaristo Wenceslau (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Campo

Grande, MS-Brasil)Dr. Nelson Finotti Silva (UNIVEM – Marília, SP – Brasil)

Dr. Nitish Monebhurrun (UNICEUB – Brasília, DF – Brasil)

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R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 12, n. 16, p.1-414, jan./dez. 2014

Dr. Octávio Campos Fischer (UNIBRASIL- Curitiba, PR - Brasil)Dr. Oksandro Osdival Gonçalves (PUCP – Curitiba, PR – Brasil)

Dr. Paulo Bonavides (UFC- Fortaleza, CE - Brasil)Dr. Paulo Ferreira da Cunha (FDUP –Porto, Portugal/ USP – São Paulo, SP/Brasil)

Dr. Rafael Santos de Oliveira (UFSM- Santa Maria, RS - Brasil)Dra. Renata Giovanoni Di Mauro (Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas

- São Paulo, SP - Brasil)Dr. Renato Duro Dias (Universidade Federal do Rio Grande - Rio Grande, RS – Brasil)

Dr, Rennan Faria Kruger Thamay (FADISP, São Paulo, SP – Brasil)Dr. Roberto Bueno Pinto (UFU-Uberlandia, MG - Brasil)

Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas (UNINOVE / MODERA– São Paulo, SP -Brasil) Dr. Roberto da Silva Fragale Filho (UFF- Niterói, RJ - Brasil)Dra. Vera Lucia da Silva (UFSC- Florianópolis, SC - Brasil)

Dr. Willis Santiago Guerra Filho (UNIRIO- Rio de Janeiro, RJ - Brasil)Dra. Yvete Flávio da Costa (UNESP - Franca, SP - Brasil)

Assistente-EditorialEsp. Ricardo Henrique Silva de Sá Cavalcanti (UNICHRISTUS – Fortaleza, CE – Brasil)

Bibliotecárias ResponsáveisTusnelda Maria Barbosa

Patrícia Vieira Costa

Revisão de Língua PortuguesaHeitor Nogueira da SilvaHelena Cláudia Barbosa

Idália Cavalcanti Parente (Coord.)Maria Gleiciane Araújo

Raquel Leite Saboia da CostaSilvana Rodrigues de OliveiraVictor Alan Andrade Marques

CapaIvina Lima Verde

Coordenação de DesignJon Barros

Projeto Gráfico/ DiagramaçãoJuscelino Guilherme

CorrespondênciaUnichristus

Editoria da Revista Opinião JurídicaAvenida Dom Luís, 911 – 1º andar

Aldeota – CEP 60.160-230 - Fortaleza – CearáTelefone: 85 3457.5396

e-mail: [email protected]

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R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 12, n. 16, p.1-414, jan./dez. 2014

ApresentAção

É com viva alegria que anunciamos a toda a comunidade acadêmica que fomos requalificados para o estrato B1, no ranking de periódicos da Capes. Essa alvissareira requalificação nos alegra ainda mais, pois estamos conscientes da ava-liação exigente, minuciosa e rigorosamente cumpridora do documento de área, levada a efeito pela laboriosa Comissão Qualis do Direito.

Agradecemos a todos os que fizeram parte dos quase treze anos de história da Opinião Jurídica, aqui representados pelo Prof. Edmar Ribeiro; assim como agradecemos a cada integrante de nossa equipe editorial, cujos talentos e compe-tências são a pedra angular de nossa revista: sintam-se abraçados!...

Uma palavra especial a todos os colegas que nos confiaram os seus saberes e fazeres, o seu tempo, o seu esforço, a sua expertise: essa 16ª edição é trama que se urde na teia da brasilidade e do cosmopolitismo – do Norte ao Sul do Brasil; e do além-mar – a palavra que melhor designa o trabalho de articulistas, pareceristas, membros da Comis-são Editorial, Editores-Associados e Equipe Editorial não pode ser outra: generosidade.

Dos 18 artigos que compõem essa edição, apenas 04 são provenientes do Ceará; ao passo que 14 provêm de fora de nosso Estado; atingindo-se 77,77% de exogenia quanto à procedência dos artigos. Dos artigos exógenos, 02 iluminam a nossa tradicional seção de “Doutrina Estrangeira”, com o artigo (inédito no Brasil) do ambientalista Klaus Bosselmann (Nova Zelândia) e com o artigo (inédito no Planeta Terra) do constitucionalista Paulo Ferreira da Cunha (Portugal) – a eles, toda a nossa gratidão pela confiança depositada. Os outros 12 artigos que compõem essa edição são oriundos de 07 (sete) Estados da Federação, espalhados por 04 (quatro) regiões do País: Nordeste (PI); Centro-Oeste (DF); Sudeste (SP/MG) e Sul (PR/SC/RS).

Dos 63 pareceristas cegos que avaliaram artigos para essa edição, observando o sistema double blind review, apenas 02 são provenientes de nosso Estado; contra 61 avaliadores exógenos; alcançando-se 96,8% de exogenia quanto à procedência dos pareceristas, os quais são oriundos de Portugal, bem como de outros 16 (dezesseis) Estados da Federação, contemplando as 05 (cinco) regiões do país: Sul (SC/PR/RS), Sudeste (SP/MG/RJ/ES); Centro-Oeste (DF/MS/GO), Nordeste (BA/AL/SE/RN/MA), além do Norte (PA).

Em nossa Comissão Editorial, incluímos diversos colegas que, de um modo ou de outro, fazem parte da história da Opinião Jurídica, com atuações cujo com-promisso e competência merecem ser destacados; na esperança de fazermos justiça a seus valorosos esforços: são, atualmente, 61 ilustres Membros, dentre os quais, 51 colegas são oriundos de outros 11 Estados da Federação, contemplando-se 04 (quatro) regiões do país: (PE/BA) Nordeste; (MS/DF/GO) Centro-Oeste; (SP/RJ/MG) Sudeste; e (RS/PR/SC) Sul; bem como de países Alemanha, França, Portugal, Espanha e Peru; perfazendo, assim, 83,6% de exogenia, quanto aos integrantes da Comissão Editorial.

Que essas páginas vicejem, iluminem e rendam bons frutos: obrigada a todos!...

Profa. Dra. Fayga BedêEditora-Chefe da Revista Opinião Jurídica

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sumário

APRESENTAÇÃO

PRIMEIRA PARTE – DOUTRINA NACIONAL

O Brasil em juízo: o caso Damião Ximenes Lopes e o seu reflexo no âmbito brasileiro ...11Ademar Pozzatti JuniorBianca Barbosa Mattar Valente Constante

Fomentando a legalidade e a estabilidade do mercado de videogames no Brasil: em busca da nomenclatura correta, da igualdade tributária e do preço justo ..............35Albano Francisco SchmidtOksandro Osdival Gonçalves

Desconsideração da personalidade jurídica: histórico, natureza e aspectos processuais .... 58Arthur Maximus Monteiro

O direito a não saber: novos contornos do direito à intimidade ........................... 86Camila Figueiredo Oliveira Gonçalves

Legitimação decisória no novo Código de Processo Civil ........................................112Christiano Rodrigo Gomes de FreitasCristiano Duro

A judicialização da saúde e seus desafios ................................................................ 130Eduardo Carlos PottumatiJussara Maria Leal de Meirelles

A antecipação de tutela em face do poder público na internação psiquiátrica compulsória: o império da jurisdição provisória sobre a jurisdição definitiva nos limites do novo CPC......147Elaine Harzheim MacedoFábio de Holanda Monteiro

Los derechos económicos, sociales y culturales como fundamentos de la dignidad e igualdad humanas ................................................................................................. 165Francisco Ercilio Moura

Ensino jurídico e a disciplina de História do Direito no Brasil: discussões parlamentares e alterações curriculares ....................................................................................186Gabriela Natacha BecharaHorácio Wanderlei Rodrigues

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A teoria do direito natural de Tomás de Aquino na filosofia do direito contemporâneo ... 208Júlio Aguiar de OliveiraBárbara Alencar Ferreira Lessa

Influências materiais e estruturais sobre a jurisdição constitucional brasileira ........ 232Juraci Mourão Lopes Filho

A inclusão do elemento “democracia” ao conceito de Estado de Direito e seus efeitos sobre o princípio da solidariedade no âmbito das contribuições sociais .................. 258Marlo Thurmann GonçalvesMarciano Buffon

O projeto geoestratégico multipolar dos BRICS, a nova globalização e as assimetrias tributárias entre brasil e china ............................................................................... 285Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto

A aplicação da prescrição nos processos para apuração de atos infracionais ............ 324Rafaela Beltrami MoreiraAna Cláudia Vinholes Siqueira Lucas

O Direito é ciência e a Terra é plana: investigação sobre a natureza do conhecimento jurídico, implicações e desdobramentos ................................................................. 339Ricardo Henrique Silva de Sá CavalcantiFayga Silveira Bedê

Contrato administrativo concertado, causa e boa-fé: maior eficiência e eficácia à luz das teorias dos atos separáveis e da incorporação .......................................................... 357Roberto Correia da Silva Gomes Caldas

SEGUNDA PARTE – DOUTRINA ESTRANGEIRA

Global environmental constitutionalism ............................................................ 372Klaus Bosselmann

A caminho do constitucionalismo 4.0: teses constitucionais para hoje e amanhã .......... 391Paulo Ferreira da Cunha

Normas de Publicação ...................................................................................... 409

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o BrAsil em Juízo: o cAso DAmião Ximenes lopes e o seu refleXo no âmBito BrAsileiro

Ademar Pozzatti Junior* Bianca Barbosa Mattar Valente Constante**

Introdução. 1 Síntese fática do caso Damião Ximenes Lopes. 2 O caso Damião Ximenes Lopes no sistema interamericano de direitos humanos. 3 O reflexo do caso Damião Ximenes Lopes no Estado brasileiro. Conclusão. Referências.

RESUMO

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem o papel de atuar na responsabilização internacional pelas violações de direitos cometidas em âmbito interno dos Estados-partes que ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos atua de forma sub-sidiária, diante da ineficácia da prestação de tutela jurisdicional estatal. Nesse contexto, destaca-se o caso Damião Ximenes Lopes, que gerou a primeira condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Por meio do método dedutivo, este artigo pretende apontar os reflexos desse caso trouxe no direito brasileiro.

Palavras-chaves: Direito Internacional dos Direitos Humanos. Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Caso Damião Ximenes Lopes.

INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro dedica atenção especial à proteção dos direitos humanos, o que, nem sempre se traduz em uma eficaz observância desses compromissos por parte das políticas públicas implementadas pelos esta-dos. Nesses casos de violações de direitos humanos, as vítimas buscam o sistema jurisdicional brasileiro visando à garantia de seus direitos, contudo nem sempre o judiciário é eficaz na tutela dos direitos humanos, restando aos prejudicados pleitear a tutela de tais direitos no âmbito das cortes internacionais na proteção dos direitos humanos.

* Doutorando em Direito Internacional do Programa de Pós Graduação em Direito da Univer-sidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). E-mail: [email protected]

** Graduanda em Direito do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina.

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Ademar Pozzatti Junior | Bianca Barbosa Mattar Valente Constante

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O Brasil, ao ratificar a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992, favoreceu o acesso à justiça no plano internacional. Com isso, surgiu a possibilidade de os cidadãos buscarem a proteção e a garantia de seus direitos humanos perante a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, por meio de recomendações e julgamentos, tem o papel de atuar na res-ponsabilização internacional dos Estados-partes nos casos em que não foram efetivadas a proteção e a garantia dos direitos humanos e não se alcançou o acesso à justiça no sistema jurisdicional interno. Dessa forma, o direito internacional contribui para dirimir as violações de direitos humanos e para que estas não sejam reiteradas no âmbito interno.

O presente artigo versa sobre a condenação do Brasil pela Corte Intera-mericana de Direitos Humanos (CIDH) no caso Damião Ximenes Lopes. O problema central da referente pesquisa é verificar se houve ou não cumprimento das determinações da CIDH pelo Estado brasileiro no citado caso e verificar a efetividade da jurisdição internacional na garantia dos direitos humanos no âm-bito brasileiro. A hipótese a ser testada neste artigo é que o caso trouxe mudanças positivas que contribuíram para o avanço da proteção dos direitos humanos no Estado brasileiro.

O caso Damião Ximenes Lopes foi o primeiro caso brasileiro julgado e condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com ele, pretende-se averiguar as violações dos direitos humanos na saúde pública brasileira e as mu-danças que este julgado ocasionou em âmbito interno. Para tanto, a primeira parte deste artigo vai fazer uma síntese fática do caso, apresentando o ambiente em que foram ofendidos os direitos de Damião Ximenes Lopes (1). Na segunda parte, será abordada a tramitação do caso no âmbito da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, apresentando o conteúdo da decisão da Corte (2). Por fim, a terceira parte deste trabalho será dedicada ao cumprimento da decisão por parte das autoridades brasileiras, onde será investigado o impacto dessa decisão no sistema de justiça brasileiro assim como no sistema brasileiro de saúde psíquica (3).

1 SÍNTESE FÁTICA DO CASO DAMIÃO XIMENES LOPES

Damião Ximenes Lopes era de uma família de sete filhos, seus pais eram Albertina Ximenes Lopes e Francisco Leopoldino Lopes, entre os seus irmãos, citam-se Cosme Ximenes Lopes (irmão gêmeo) e Irene Ximenes Lopes. Cosme Ximenes Lopes também sofria de doença psíquica. A família possuía uma rea-lidade financeira difícil, como é o caso de muitas famílias brasileiras, situação que pode ter contribuído para agravar a saúde psíquica dos dois irmãos: Damião e Cosme, que sofreram diversas crises psiquiátricas no decorrer de suas vidas, principalmente durante a fase da adolescência1. De acordo com os relatos de Irene Ximenes Lopes (irmã):

Durante as crises, Damião ficava isolado, quieto, não se mani-festava, tampouco escutava o que os outros diziam. Um sintoma comum de Damião, segundo o relato de sua irmã, era olhar para

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O Brasil em juízo: o caso Damião Ximenes Lopes e o seu reflexo no âmbito brasileiro

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determinado ponto e rir de forma que seu corpo tremia. As crises de Damião foram piorando até que, em dezembro de 1995, foi levado pela família à Casa de Repouso Guararapes, em Sobral - CE. Nessa oportunidade, ficou internado por dois meses e desde então passou a fazer uso constante de medicação.2

Damião precisou de atendimento médico para tratar as suas crises psí-quicas por diversas vezes, no decorrer de sua vida. Irene relatou que, após a primeira internação de Damião na Casa de Repouso de Guararapes, em Sobral, em dezembro de 1995, o paciente, ao retornar para casa, descreveu que a clínica tratava com violência os seus pacientes, o que fez que a família decidisse não voltar a internar o familiar nessa clínica médica. Contudo, por falta de opções, a família posteriormente teve de voltar a internar o paciente na Casa de Repouso Guararapes.3

Em março de 1998, Damião teve de ser internado novamente nessa clínica. Na ocasião, verificou-se que ele estava triste, depressivo, nitidamente abatido e com diversos machucados espalhados pelo corpo, o que demonstrou novamente as violências cometidas contra os pacientes dessa clínica. No início do mês de outubro do ano de 1999, a saúde de Damião deteriorou, o que desencadeou uma nova internação na Casa de Repouso Guararapes, a sua última internação e responsável pela morte deste paciente.4

Essa última internação ocorreu no dia 1º de outubro de 1999, na Casa de Repouso Guararapes, clínica que fazia parte do Sistema Único de Saúde (SUS). A sua internação se iniciou no dia 1º de outubro de 1999 e terminou no dia 04 de outubro de 1999, data do seu falecimento.5

De acordo com o site da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em relação à data da morte de Damião: “O senhor Damião Ximenes Lopes tinha 30 anos de idade e vivia com a sua mãe, na cidade de Varjota, situada aproximada-mente a uma hora da cidade de Sobral, sede da Casa de Repouso Guararapes”.6

Após essa internação, o paciente nunca mais pôde voltar ao zelo familiar, pois os maus-tratos foram piores dos que os já apresentados nas outras vezes. Damião Ximenes Lopes morreu em decorrência de sinais evidentes de tortura.7

O senhor Damião Ximenes Lopes foi internado na Casa de Re-pouso Guararapes, como paciente do Sistema Único de Saúde (SUS), em perfeito estado físico, no dia 1 de outubro de 1999. No momento de sua internação, não apresentava sinais de agressivi-dade nem lesões corporais externas. No dia 3 de outubro de 1999, o senhor Damião Ximenes Lopes teve uma crise de agressividade e estava desorientado. Entrou no banheiro da Casa de Repouso Guararapes e se negava a sair dali, assim foi dominado e levado à força por um auxiliar de enfermagem e outros dois pacientes. Na noite do mesmo dia, a presente vítima teve uma nova crise de agressividade e voltou a ser contido de forma física, entre a noite do domingo e a manhã de segunda-feira.8

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Ademar Pozzatti Junior | Bianca Barbosa Mattar Valente Constante

14 R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 12, n. 16, p.11-34, jan./dez. 2014

A mãe de Damião foi visitá-lo no mesmo dia em que o paciente faleceu, no dia 4 de outubro de 1999. Ao chegar à clínica para encontrar o filho, ela o viu sangrando, com as mãos amarradas para trás, com marcas pelo corpo, com aparência suja e com odor de excremento.9

Quando D. Albertina Ximenes Lopes voltou à clínica, três dias depois, foi impedida de visitar o filho. Desesperada, passou a gritar por Damião, seu filho surgiu, então, “cambaleando, com as mãos amarradas para trás, roupa toda rasgada, a mostrar a cueca, corpo sujo de sangue, fedia a urina, fezes e sangue podre. Nas fossas nasais bolões de sangue coagulado. Rosto e corpo apresentavam sinais de ter sido impiedosamente espancado.” Uma faxineira contou a D. Albertina que os autores dos maus-tratos eram os auxiliares de enfermagem e os monitores do pátio, profissionais que, pelo menos em tese, atuam para manter a tranqüilidade do local.10

Após presenciar esse episódio com seu filho, D. Albertina retornou para casa preocupada. Ao chegar a sua moradia, recebeu a notícia de que seu filho havia falecido em decorrência de uma parada respiratória, ou seja, o falecimento se deu durante o tempo em que dona Albertina voltava para casa, e os motivos que causaram a morte de Damião foram dados como naturais. O médico da clínica fez um laudo médico afirmando que a morte tinha sido em decorrência de um problema cardíaco, extinguindo como causa da morte os maus tratos cometidos pelos profissionais da clínica e as condições desumanas da Casa de Repouso Guararape.11 Ora, “o senhor Damião Ximenes Lopes faleceu no mesmo dia, aproximadamente duas horas depois de ter sido medicado pelo diretor clínico do hospital, e sem ter a assistência de nenhum médico no momento de sua morte.”12

Os familiares não aceitaram o laudo do médico da clínica, pois queriam saber o verdadeiro motivo que levou à morte do familiar.13

A partir daí, iniciou-se a luta da família Ximenes Lopes pelo esclarecimento do que de fato ocorrera com Damião, pela identi-ficação e pela responsabilização dos responsáveis por sua morte. O primeiro passo, a polícia civil local, foi em vão, pois o médico responsável pelo laudo, na polícia, era o mesmo Dr. Ivo. O corpo de Damião foi então enviado para necropsia no Instituto Médico Legal de Fortaleza, mas o resultado foi certamente manipulado: “causa morte indeterminada e sem elementos para responder”. Irene, irmã de Damião, passou a acionar todos os órgãos públicos e entidades de defesa dos direitos humanos a que teve acesso, da Secretaria de Saúde de Varjota à Comissão Interamericana de Di-reitos Humanos, todos receberam uma carta de Irene, denunciando o caso e a “Casa de Tortura”.14

Diante do ocorrido, os familiares buscaram, no sistema jurisdicional bra-sileiro, alguma resposta, tendo em vista o desrespeito aos direitos humanos que causou a morte desse paciente. Além de tentarem acessar a justiça em âmbito interno, e, em nada resultar, resolveram buscar a tutela jurisdicional internacio-

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O Brasil em juízo: o caso Damião Ximenes Lopes e o seu reflexo no âmbito brasileiro

15R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 12, n. 16, p.11-34, jan./dez. 2014

nal. Com o auxílio de organizações da sociedade civil, puderam pleitear justiça pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos.15

Sobre as medidas adotadas pela família de Damião Ximenes Lopes em âmbito interno:

Após muita luta e insistência da família, algumas providências fo-ram tomadas em nível local. Ocorreram auditorias, sindicâncias, a mãe de Damião propôs uma ação de indenização por danos morais, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará investigou o caso e a Casa de Repouso Guararapes terminou com uma intervenção e descredenciamento. Procedimen-tos relacionados à atribuição de responsabilidade administrativa e penal foram iniciados, porém nenhum resultado prático havia sido alcançado quando da denúncia perante o sistema interamericano de direitos humanos.16

Nas Alegações Finais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pode-se verificar a síntese fática em relação aos procedimentos adotados em âmbito interno. Consta que o Promotor de Justiça, Dr. Alexandre de Oliveira Alcântara, informou ao Delegado de Polícia da cidade de Sobral, Dr. Francisco de Assis Ribeiro Macêdo, sobre o falecimento de Damião Ximenes Lopes, o que desencadeou a abertura de um inquérito policial na data de 09 de novembro de 1999 para inves-tigar a causa morte da vítima. Com o término do inquérito (25.02.2000), foram denunciadas quatro pessoas pelo promotor, em 27 de março de 2000:17

Sergio Antunes Ferreira Gomes (proprietário da Casa de Repouso Guararapes), Carlos Alberto Rodrigues dos Santos (auxiliar de enfermeiro da Casa de Repouso Guararapes), André Tavares do Nascimento (auxiliar de pátio da Casa de Repouso Guararapes) e Maria Salete Moraes Melo de Mesquita (enfermeira da Casa de Repouso Guararapes).18

O Promotor, ao fazer a denúncia em relação ao caso, entendeu que as mar-cas no corpo de Damião indicavam que a morte teria ocorrido em decorrência de maus tratos com o paciente. Dessa forma, os quatro acusados foram denunciados pela prática do artigo 136, parágrafo 2º, do Código Penal Brasileiro.19

Recebida a Denúncia pelo Juiz da 3” Vara da Comarca de Sobral em 07 de abril de 2000, foram ouvidos os quatro acusados, as oito testemunhas de acusação, três informantes e as seis testemunhas de defesa. A instrução foi então concluída, com a colheita dos depoimentos de todas as testemunhas e informantes, e os autos foram conclusos ao Juiz em 04 de julho de 2002. Em 24 de setem-bro de 2003, a Promotora de Justiça, Dra Rosina Lúcia Frota de Aragão, solicitou ao Juiz o Aditamento da Denúncia para incluir mais dois réus: Francisco Ivo de Vasconcelos (Diretor Clínico da Casa de Repouso Guararapes) e Elias Gomes Coimbra (auxiliar de enfermagem da Casa de Repouso Guararapes), e os autos foram conclusos ao Juiz para decidir sobre o pedido”.20

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16 R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 12, n. 16, p.11-34, jan./dez. 2014

Em 17 de junho de 2004, o magistrado da 3ª Vara da Comarca de Sobral recebeu o pedido de Aditamento e, assim, interrogou os novos réus e marcou audiência de instrução para o dia 17 de novembro de 2005. Constou, nas alegações finais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que “o Caso tramitou de acordo com o disposto pela Convenção Americana, e, em 08 de outubro de 2003, a CIDH aprovou o Relatório de Mérito n”. 43/03”.21

Essa incapacidade do Estado brasileiro em dar uma resposta consentâ-nea aos envolvidos motivou a família de Ximenes Lopes a buscar auxílio da jurisdição internacional. A denúncia da família de Damião perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos ocorreu no dia 22 de novembro de 1999.22 Nessa data, ainda não haviam sido esgotados os recursos da jurisdição interna do Estado. O caso só veio a ser analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nas seguintes datas: no dia 30 de novembro de 2005 sobre a análise das preliminares,23 enquanto a sentença foi proferida no dia 04 de julho de 2006.24

Dessa forma, o próximo item irá tratar sobre esse caso no Sistema Intera-mericano de Direitos Humanos, desde a data em que o Estado brasileiro foi de-nunciado até a sentença de mérito da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

2 O CASO DAMIÃO XIMENES LOPES NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

A busca pelo acesso à justiça perante o Sistema Interamericano de Direi-tos Humanos ocorreu no dia 22 de novembro de 1999. Nesta data, Irene (irmã) denunciou o Brasil pela violação de inúmeros direitos.25

Inicialmente, trata-se sobre o procedimento do caso Damião Ximenes Lopes na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Após o recebimento da denúncia, mais precisamente no dia 14 de dezembro de 1999, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos abriu o prazo de 90 dias para manifestação do Estado brasileiro sobre o caso. Contudo, o mesmo decorreu sem manifestação. A referente inércia ocasionou a admissibilidade do caso Damião Ximenes Lopes na Comissão Interamericana de Direitos Humanos no dia 9 de outubro de 2002. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos entendeu pelo cabimento da ação e aprovou o Informe de Admissibilidade nº 38/02 e no dia 25 de outubro de 2002 este informe foi apresentado às partes.26

A irmã de Damião apresentou, na Comissão Interamericana de Di-reitos Humanos, uma denúncia contra o Estado brasileiro, por violação aos direitos à vida, à integridade pessoal, à proteção da honra e dignidade de Damião Ximenes Lopes e o direito a recurso judicial. No final de 1999, a Comissão remeteu ao Estado a denúncia de Irene Ximenes Lopes Miranda, concedendo-lhe o prazo de 90 dias para resposta. Em razão do silêncio do Estado brasileiro e diante do preenchimento dos demais requisitos de admissibilidade, a Comissão admitiu a denúncia e aprovou o Relatório de Admissibilidade da petição.27

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No dia 8 de maio de 2003, a Comissão Interamericana de Direitos Hu-manos se prontificou para que a lide em questão fosse solucionada de forma amistosa, o que restou inexitosa. E, no dia 17 de outubro de 2003, foi solicitado a pela parte autora a inclusão do Centro de Justiça Global no processo.28

No dia 8 de outubro de 2003, foi aprovado o Informe de Fundo nº 43/03. Constaram neste as violações dos direitos dispostos na Convenção Americana de Direitos Humanos cometidas pelo Estado brasileiro no caso Damião Ximenes Lopes, como o direito à integridade pessoal disposto no artigo 5, o direito à vida disposto no artigo 4, o direito à proteção judicial disposto no artigo 25 e o direito às garantias judiciais disposto no artigo 8.29

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, além de tratar sobre essas violações dispostas na Convenção Americana de Direitos Humanos, dispôs também sobre as condições em que se encontrava a Casa de Repouso Guara-rapes, descritas como degradante e em condições desumanas.30 Além destas, a Comissão tratou sobre as seguintes violações: “obrigação de investigar, do direito a um recurso efetivo e das garantias judiciais relacionadas com a investigação dos fatos [...] a Comissão recomendou ao Estado brasileiro a adoção de uma série de medidas para reparar essas violações”.31

No Informe de Fundo nº43/03, constavam as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e este foi enviado para o Estado brasileiro no dia 31 de dezembro de 2003. Nessa data, a parte autora foi informada sobre as recomendações enviadas ao Estado Brasileiro e foi aberto o prazo de dois meses para o país realizar as medidas recomendadas. Além disso, a Comissão requereu a manifestação de interesse da parte autora em submeter o caso perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.32 As recomendações da Comissão ao Estado brasileiro foram as seguintes:

1. Realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos relacionados com a morte de Damião Ximenes Lopes ocorrida na Casa de Repouso Guararapes em 4 de outubro de 1999. Tal investi-gação deve ser conduzida de modo a determinar a responsabilidade de todos os responsáveis, sejam estas responsabilidades por ação ou por omissão, e a punição efetiva dos responsáveis. 2. Reparar ade-quadamente os familiares de Damião Ximenes Lopes pelas violações de direitos humanos estabelecidas no presente relatório, incluindo o pagamento efetivo de urna indenização. 3. Adotar as medidas necessárias para evitar que ocorram fatos similares no futuro.33

Antes da apresentação de resposta do Estado brasileiro sobre as recomen-dações à Comissão, houve a manifestação de interesse da parte autora. Esta se ma-nifestou afirmando o seu interesse para que o caso Damião Ximenes Lopes viesse a ser julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos sob a contenda do Estado não ter cumprido com as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Importante informar que esta manifestação foi recebida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no dia 08 de março de 2004.34

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A resposta do Estado brasileiro sobre as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi apresentada somente no dia 29 de setembro de 2004, pois o prazo para o cumprimento das recomendações foi prorrogado duas vezes. Contudo, a Comissão ao receber a resposta do Estado brasileiro verificou que não houve o cumprimento das recomendações, e, com isso, a Comissão apresentou o presente caso à jurisdição da Corte.35

Sobre o julgamento do caso Damião Ximenes Lopes na Corte Interame-ricana de Direitos Humanos, verificou-se que no dia 01 de outubro de 2004, a Comissão apresentou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos e no dia 3 de novembro de 2004 a Secretaria da Corte Interamericana de Direitos Humanos notificou o Centro de Justiça Global para apresentar os requerimentos, fundamentação e provas em defesa ao Damião.36

A parte autora apresentou manifestação no dia 14 de janeiro de 2005 e na fundamentação foi aduzido que o Estado brasileiro não havia cumprido com os artigos 1.1, 4, 5, 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Foi anexado prova documental e requerido prova testemunhal e pericial. Requereu--se também a indenização por danos materiais e morais e a não repetição das violações cometidas.37

O Estado brasileiro apresentou contestação no dia 8 de março de 2005, onde foram ofertadas as preliminares, a fundamentação jurídica e a manifestação sobre os requerimentos e as fundamentações da parte autora. O Estado brasi-leiro juntou prova documental à sua contestação e requereu prova testemunhal e pericial.38

Nas preliminares, o Estado brasileiro alegou que não foram esgotados os recursos internos e que por isso o presente caso não poderia ser admitido para ser julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.39

Tanto a Comissão quanto os representantes da vítima apresen-taram suas razões por escrito sobre esta exceção preliminar, em 06 de maio de 2005. Em 22 de setembro de 2005, o Presidente da Corte convocou uma audiência pública sobre a exceção pre-liminar e eventuais mérito e reparações, a ser realizada em 30 de novembro e 01 de dezembro de 2005. Durante a audiência pública e após escutar os argumentos orais das partes na fase inicial da audiência sobre a exceção preliminar, na data de 30 de novembro de 2005, a Corte emitiu uma Sentença por meio da qual rejeitou a exceção preliminar apresentada pelo Estado devido a sua extemporaneidade.40

No dia 22 de setembro de 2005, o Presidente da Corte, além de convocar a audiência pública, informou as partes para apresentarem as suas alegações finais até a data de 9 de janeiro de 2006.41

Em relação à sentença das exceções de preliminares prolatada no dia 30 de novembro de 2005, foi determinado:

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1. Afastar a exceção preliminar de não esgotamento dos recursos internos interposta pelo Estado. 2. Continuar com a celebração da audiência pública convocada mediante a Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 22 de setembro de 2005, bem como os demais atos processuais relativos à questão de fundo, e eventuais reparações e custas no presente caso. 3. Notificar a pre-sente Resolução ao Estado, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e os representantes da suposta vítima e de sua família.42

No dia 01 de dezembro de 2005, foi realizada a segunda parte da audiência pública, em que o Estado brasileiro reconheceu ter violado os artigos 4 e 5 da Convenção.43 Diante desse reconhecimento, no dia 23 de dezembro de 2005, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apresentou as suas Alegações Finais à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nesta, a Comissão dividiu os fatos entre incontroversos e controvertidos. Os fatos incontroversos dizem respeito às violações reconhecidas pelo Estado brasileiro, ou seja, as que ocorre-ram antes do falecimento de Damião. Essas violações correspondem ao artigo 4 e 5 da Convenção Americana de Direitos Humanos e estão relacionadas à falta de condições da Casa de Repouso Guararapes e às violências cometidas pelos funcionários da clínica contra o paciente Damião.44

Em relação aos fatos controvertidos, a Comissão apresentou nas Ale-gações Finais:

Há fatos e violações controvertidas pelo Estado no presente Caso Com efeito, toda a matéria relacionada com a investigação policial e a posterior apuração judicial dos fatos e causas que levaram à morte da vítima, assim como os esforços empreendidos pelos familiares da vítima e o impacto das violações sobre os mesmos, isto é, os fatos relacionados às violações dos artigos 8(1) e 25, em conjunto com o artigo 1(1) da Convenção, bem como os relacionados à reparação devida, foram contestados pelo Estado.45

No dia 9 de janeiro de 2006, ambas as partes apresentaram as suas alegações finais, e, no dia 13 de junho de 2006, a Secretaria da Corte Interamericana de Direitos Humanos requereu à Comissão e às partes a apresentação de diversas provas documentais para averiguar os fatos controvertidos. Com isso, as provas documentais requeridas foram apresentadas nas seguintes datas: a Comissão enviou os documentos no dia 22 de junho de 2006, a parte autora apresentou as provas no dia 26 de junho de 2006, e o Estado brasileiro enviou parte das provas documentais nos dias 26 e 28 de junho de 2006.46

As provas documentais apresentadas constaram na sentença de mérito da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi proferida no dia 04 de julho de 2006, na Demanda nº 12.237. Nesta a Corte verificou que foram trazidas provas documentais testemu-nhais e periciais. A prova pericial foi apresentada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, em relação às provas testemunhais, a parte autora apre-sentou uma, e o Estado brasileiro apresentou quatro.47

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Os representantes da parte autora apresentaram como prova testemunhal, o depoimento com firma autenticada de Milton Freire Pereira que declarou ter sido paciente durante dez anos de instituições psiquiátricas. Nas suas internações, passou por alguns tratamentos com choques e, durante esses dez anos, verificou-se que o modelo hospitalar psiquiátrico do Estado brasileiro tem matado os pacientes e deixado de dar o tratamento devido a eles.48 De outra fenda, o Estado brasileiro apresentou quatro provas testemunhais, a primeira delas foi o depoimento de José Jackson Coelho Sampaio (médico psiquiatra),49 em que constou o seguinte:

A Casa de Repouso Guararapes atendia uma região de quase um milhão de habitantes, contudo esse hospital tinha somente cento e dez camas de internação. A assistência ambulatória era precária. A atenção à saúde mental mudou muito depois que a Casa de Repouso Guararapes foi fechada em julho de 2001. Esta data marca o processo de transição de um modelo de assistência focado na atenção médico-hospitalar e de manicômios, para uma abordagem descentralizada, regionalizada, com novas equipes e propondo a reabilitação e a reinserção social das pessoas com enfermidades mentais.50

O segundo depoimento trazido pelo Estado brasileiro foi de Domingos Sávio do Nascimento. A testemunha foi coordenadora de Saúde Mental no Ministério da Saúde, no Brasil. Desse modo, suas declarações foram sobre os projetos implantados no país em relação à saúde mental desde o ano de 1990. O terceiro depoimento foi de Luís Fernando Farah de Tófoli que era médico da Secretaria de Desenvolvimento Social de Saúde, em Sobral. Constou, no depoi-mento deste, que o caso Damião Ximenes Lopes trouxe uma maior atenção à saúde mental na cidade de Sobral, como é o caso da Rede de Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral que começou a funcionar em 10 de julho de 2000.51

A última prova documental testemunhal trazida pelo Estado Brasileiro foi o depoimento de Braz Geraldo Peixoto que foi eleito representante dos fa-miliares dos usuários do sistema de saúde mental e relatou que o ocorrido com Damião foi consequência da forma em que se tratavam os pacientes. Contudo, a testemunha asseverou que esse tipo de tratamento psiquiátrico tem diminuído significativamente desde a década de 1970.52

Em relação à prova pericial trazida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, consta, na sentença de mérito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, em alguns casos, é utilizada a contenção física nos tratamentos psiquiátricos para proteger o paciente de se machucar.53 Contudo:

No caso do senhor Ximenes Lopes, não há evidências de que ele representava um perigo eminente para si mesmo ou para terceiros. Não foi comprovado que se tentou utilizar um método menos agres-sivo para controlar um possível episódio de violência deste senhor. Portanto, o uso de qualquer forma de força física nesse caso foi ilegal. Uma vez preso, com as mãos amarradas para trás, pertencia ao Estado o dever supremo de proteger o senhor Damião Ximenes

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Lopes devido à sua condição de extrema vulnerabilidade [...] O uso injustificado e excessivo da força no presente caso constitui uma prática desumana e um tratamento degradante. [...] A violência com o senhor Damião Ximenes Lopes – e a sua posterior morte – poderiam ter sido evitadas se o Estado tivesse cumprido com a sua obrigação de proporcionar uma instituição com funcionários capacitados para cuidar a sua enfermidade mental.54

As provas testemunhais e periciais foram recebidas pela Corte In-teramericana de Direitos Humanos nas audiências realizadas nos dias 30 de novembro e 1 de dezembro de 2005. Constaram na sentença de mérito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, os testemunhos de Irene Ximenes Lopes (irmã) e de Francisco das Chagas Melo (ex-paciente da Casa de Repouso Guararapes), propostos pela Comissão. Francisco declarou que sofreu violência quando foi internado na Casa de Repouso Guararapes e que, por isso, denunciou a clínica à polícia local, que nada fez. Ademais, relatou que os pacientes não eram tratados, os profissionais da clínica eram violentos e desrespeitosos com eles.55

No depoimento de Irene, foi relatado que Damião apresentou ferimentos físicos todas as vezes em que foi internado na Casa de Repouso Guararapes e que, na última internação do dia 4 de outubro de 1999, Damião faleceu apresentan-do diversos ferimentos pelo corpo. Os médicos locais alegaram que a morte foi em decorrência de uma parada cardíaca, e, na cidade de Fortaleza, por meio de uma autópsia, constatou-se que a causa morte era indeterminada. Os familiares sofreram muito com essa morte, a mãe de Damião nunca se recuperou desse ocorrido com seu filho. Na busca de justiça, a família denunciou o caso à polícia local que deixou de iniciar uma investigação. Com isso, buscou-se, também, acesso à justiça perante a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa.56

A morte do senhor Damião Ximenes Lopes, até o momento, con-tinua impune em todas as instâncias. O processo tem demorado muito. [...] A mãe da vítima, assim como toda a família, se recusam a receber a pensão vitalícia oferecida pelo Estado por considerar que se trata de uma pensão que está inferior ao que poderia reparar os danos causados. Consideram a proposta do Estado humilhante. Valoriza a nomeação do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) com o nome de seu irmão, porém não considera que isso signifique justiça e que era o mínimo que poderiam fazer57.

Entre as testemunhas e as perícias trazidas pelas partes, verificou-se que os representantes da parte autora trouxeram como testemunha o Sr. João Alfredo Teles Melo que era, na época, deputado da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará e prova pericial produzida pela Sra. Lídia Dias Costa, médica psiquiatra. O Estado trouxe como testemunhas o Sr. Luiz Odorico Monteiro de Andrade, que era, na época, Secretário de Desenvolvimento Social e de Saúde da cidade de Sobral e o Sr. Pedro Gabriel Godinho Delgado, que era Coordenador Nacional do Programa de Saúde mental do Ministério da Saúde.58

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Na sentença de mérito, a Corte, após analisar a valoração das provas docu-mentais, testemunhais e periciais, tratou sobre os fatos que foram comprovados, no qual versou sobre o histórico clínico, os maus tratos e o falecimento de Damião, a investigação policial e o processo penal sobre a morte de Damião, a ampliação da denúncia e o estado atual do processo, a ação indenizatória, a exumação do corpo de Damião, a Casa de Repouso Guararapes e a sua intervenção, as pensões que Damião recebia do Instituto Nacional de Segurança Social e o estado em que se encontravam os familiares.59

Em seguida, foram analisados os artigos da Convenção Americana de Di-reitos Humanos que foram violados pelo Estado brasileiro, para que, assim, fosse proferida uma decisão. A Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu sobre as reparações devidas e condenou o Estado brasileiro.60

A Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu o caso Damião Ximenes Lopes por unanimidade. Foi reconhecida a responsabilidade parcial internacional do Estado brasileiro por ter violado os direitos à vida e à integridade pessoal, o Estado violou os artigos 4.1, 5, 5.1, 5.2, 8.1 e 25.1 da Convenção Ame-ricana. Constou, na sentença de mérito, que a própria sentença era considerada uma forma de reparação.61 Foi disposto na sentença que:

O Estado deve garantir, em um prazo razoável, que o processo in-terno pendente à investigar e penalizar os responsáveis pelos feitos neste caso surtam seus devidos efeitos [...] O Estado deve publicar, no prazo de seis meses, no Diário Oficial e em outro diário de ampla circulação nacional, por somente uma vez, o Capítulo VII relativo às violações provadas por esta Sentença, sem as notas nos rodapés das páginas correspondentes, assim como a parte resolutiva da presente Sentença.62

Sobre a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil, verificou-se que o país teria que indenizar a família de Damião Ximenes Lopes e providenciar investigações para descobrir quem seriam os culpados por esta morte. Além disso, deveria haver investimentos na política pública de saúde na formação dos profissionais da saúde mental.63

A falta de investigação e punição dos responsáveis, e ainda de ga-rantias judiciais, acabaram caracterizando a violação da Convenção em quatro principais artigos: o 4º (direito à vida), o 5º (direito à integridade física), o 8º (garantias judiciais) e o 25º (direito à prote-ção judicial). [...] A Corte Interamericana determinou, entre outras coisas, a obrigação do Estado brasileiro de investigar os responsáveis pela morte da vítima e de realizar programas de capacitação para os profissionais de atendimento psiquiátrico, e o pagamento de indenização (no prazo de um ano) por danos materiais e imateriais à família da vítima, no valor total de US$146 mil.64

Ademais, a sentença determinou, em relação aos danos materiais, que o Estado brasileiro indenizasse a mãe e a irmã, Irene, e, em relação aos danos

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morais, fossem indenizados a mãe, a irmã, Irene, o pai e o irmão gêmeo de Da-mião. O Estado brasileiro foi condenado a pagar as custas processuais internas e as custas internacionais à mãe. A sentença determinou, ainda, a supervisão do cumprimento da sentença no prazo de um ano, tendo que, no final desse prazo, o Estado apresentar um informe constando as medidas realizadas.65

Verificado o conteúdo da decisão da CIDH, cumpre investigar o cum-primento da decisão por parte das autoridades brasileiras e analisar o impacto dela no sistema de justiça brasileiro assim como no sistema de saúde psíquico.

3 O REFLEXO DO CASO DAMIÃO XIMENES LOPES NO ESTADO BRASILEIRO

Em um contexto geral, sobre o caso Damião Ximenes Lopes, foram veri-ficados os reflexos trazidos pelas recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pelas decisões da CIDH:

O sistema interamericano tem assumido extraordinária relevância, como especial locus para a proteção de direitos humanos. O siste-ma interamericano salvou e continua salvando muitas vidas; tem contribuído de forma decisiva para a consolidação do Estado de Direito e das democracias na região; tem combatido a impunidade; e tem assegurado às vítimas o direito à esperança de que a justiça seja feita e os direitos humanos sejam respeitados.66

Muitas das contribuições que este caso trouxe para o âmbito interno ocorreram durante a tramitação do caso na CIDH.67

Mesmo antes da sentença final da Corte, já foi possível perceber avanços importantes que refletem como o caso teve uma reper-cussão interna positiva. Dentre os principais progressos, vale destacar: a clínica Casa de Repouso Guararapes, onde ocorreu a morte de Damião, além de ter tido o seu descredenciamento como instituição psiquiátrica para prestar serviços ao SUS em julho de 2000, foi desativada quase um ano depois do acontecido; em 2004, houve a concessão de uma pensão vitalícia para a mãe de Damião por parte do Estado do Ceará e também houve a inauguração de um centro de saúde chamado “Damião Ximenes Lopes”, dentro da nova política de saúde mental, no marco da Lei n. 10.216/2001.68

O caso Damião Ximenes Lopes trouxe como reflexo em âmbito interno a aprovação da Lei nº 10.216/2001 (Lei de Saúde Pública Mental). O presente caso demonstrou as violações de direitos humanos ocorridas no sistema de saúde mental no Brasil e, por isso, o caso contribuiu na aprovação dessa lei.69 “A referida lei somente foi aprovada após doze anos de tramitação no Congresso Nacional, o que permite afirmar que o Caso Damião Ximenes contribuiu para acelerar o processo de aprovação da mesma.”.70

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Após a ocorrência do caso, o Município de Sobral recebeu o “prêmio David Capistrano da Costa Filho de “Experiências Exitosas na Área da Saúde Mental”, o que demonstra que a política de saúde mental na cidade melhorou em decorrência do caso Damião Ximenes Lopes.71

O presente caso foi o primeiro a causar a condenação do Estado brasilei-ro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Foi um precedente para a defesa de futuros casos de violações dos direitos das pessoas com deficiência.72

A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Damião Ximenes é a primeira que aborda o tratamento cruel e discriminatório dispensado às pessoas com transtornos mentais. Ao reconhecer a situação de vulnerabilidade a que estão submeti-das essas pessoas, a Corte amplia a jurisprudência internacional e fortalece, no âmbito nacional, as ações das organizações do Movi-mento da Luta Antimanicomial, que visam denunciar as violações de direitos humanos em instituições psiquiátricas.73

Quando o Estado brasileiro é condenado, a União é a responsável pelos pagamentos indenizatórios, contudo a União poderá posteriormente propor ação de regresso contra quem cometeu as violações de direitos humanos que causaram a condenação do Estado brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.74

A Corte produz relatórios de supervisão do cumprimento das determina-ções da sentença de mérito proferida por ela. Em relação ao relatório realizado no dia 17 de maio de 2010, constou que o Estado brasileiro ainda não havia cumprido com todas as determinações sentenciadas.75

Interessante inicialmente tratar sobre a determinação em relação ao pagamento indenizatório. Ao dia 13 de agosto de 2007, foi publicado o De-creto nº 6.185 para que fosse realizado o pagamento relativo à indenização por danos materiais e morais. No dia 14 de agosto de 2007, o Brasil cumpriu com o determinado em sentença e realizou o pagamento indenizatório aos familiares. Desse modo, na condenação do caso Damião Ximenes Lopes, o Estado brasileiro cumpriu o determinado em sentença em relação ao paga-mento da indenização.76

O governo brasileiro, neste caso, decidiu pagar imediatamente, sponte sua, o valor ordenado pela Corte Interamericana, em res-peito à regra do art. 68, § 1 do Pacto de San José [...] Por meio do Decreto nº 6.185, de 13 de agosto de 2007, o Presidente da República autorizou a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República a “promover as gestões necessárias ao cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, expedida em 4 de julho de 2006, referente ao caso Damião Ximenes Lopes, em especial a indenização pelas violações dos direitos humanos aos familiares ou a quem de direito couber, na forma Anexa a este Decreto” (art. 1º).77

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O Brasil em juízo: o caso Damião Ximenes Lopes e o seu reflexo no âmbito brasileiro

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Os danos materiais foram pagos pelo Estado brasileiro: à Albertina Viana Lopes (mãe) no valor de US$41.850,00 (quarenta e um mil, oitocentos e cin-quenta dólares) e à Irene Ximenes Lopes (irmã) no valor de US$10.000,00 (dez mil dólares).78

O Estado brasileiro cumpriu o pagamento relativo aos danos morais devi-dos: ao Damião Ximenes Lopes no valor de US$50.000,00 (cinquenta mil dólares) a serem repassados à sua irmã (US$10.000,00) e à sua mãe (US$40.000,00), à Albertina Viana Lopes (mãe) no valor de US$30.000,00 (trinta mil dólares), à Irene Ximenes Lopes (irmã) no valor de US$25.000,00 (vinte e cinco mil dólares), ao Francisco Leopoldino Lopes (pai) no valor de US$10.000,00 (dez mil dólares), ao Cosme Ximenes Lopes (irmão gêmeo de Damião) no valor de US$10.000,00 (dez mil dólares).79

O Estado brasileiro cumpriu de forma célere a determinação acerca da indenização aos familiares, o que traz como reflexo uma maior credibilidade às sentenças da Corte Interamericana.80 Tal fato ocasiona uma maior busca de acesso à justiça perante a jurisdição internacional. Em relação à condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos:

Esse fato abriu precedente ao acesso à justiça no plano externo, não apenas a movimentos e instituições de tutela de direitos humanos, mas também de indivíduos que passam a visualizar a possibilidade concreta de exercer cidadania em foros inter-nacionais. [...] Nos anos subsequentes, o Estado brasileiro passou a ser denunciado em diversos outros litígios perante o Sistema Interamericano.81

Sobre as determinações de publicar a sentença em diário oficial e a con-denação dos custos e dos gastos processuais em US$10.00,00 (dez mil dólares), ambas foram cumpridas.82

Em relação às outras determinações da sentença de mérito do presente caso, a parte mais difícil para se alcançar o cumprimento integral da sentença encontra-se na investigação na punição dos responsáveis pelas violações cometidas, e a parte mais fácil está ligada ao pagamento indenizatório.83

Sobre a determinação da sentença de mérito que versa sobre as investiga-ções e a sanção dos responsáveis pela morte de Damião, a Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos demonstra que foi iniciado, no Estado brasileiro, um procedimento no Conselho Nacional de Justiça para averiguar como estava o desenvolvimento da ação penal em âmbito interno.84

Foi analisado e posteriormente concluído que o processo penal estava cor-rendo dentro dos prazos processuais, contudo, para acelerar o processo em âmbito interno e efetuar o cumprimento da determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, foram promovidas algumas gestões que desencadearam na sentença da Ação Penal nº 2000.0172.9186-1/0 em 29 de junho de 2009. Os seis funcionários da Casa de Repouso Guararapes foram condenados a uma pena de

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seis anos em regime semiaberto. Em âmbito interno, o proprietário da clínica e o diretor clínico foram condenados a pagar indenização por danos morais à mãe de Damião.85

Em 2010, em uma ação cível de danos morais ajuizada pela família Ximenes Lopes, o Tribunal de Justiça do Ceará confirmou a sentença de primeira instância que condenou o proprietário da clínica psiquiátrica e também o diretor clínico e o diretor administrativo a pagarem uma indenização no valor de R$150 mil à mãe de Damião.86

Portanto, em relação ao surtimento de efeitos do processo interno pen-dente à investigação e sanção dos responsáveis pelas violações cometidas com Damião Ximenes Lopes, houve o cumprimento parcial dessa determinação.87

A solução do caso demorou do ponto de vista do direito interno. Tanto na ação criminal como na cível a família teve que esperar mais de dez anos para ver a sentença de primeira instância que condena os responsáveis na ação criminal e para receber a indenização por danos morais, decorrente da morte de Damião Ximenes. [...] Se entende que a medida foi parcialmente cumprida, tendo em vista que não apenas a família teve que esperar dez anos pela sentença em primeira instância, mas, sobretudo pelo fato de não se tratar de uma decisão transitada em julgado, cabendo, portanto, recursos por parte dos réus.88

Em relação à determinação de estabelecer programas de capacitação para profissionais que atuam na rede pública de saúde mental, foram promovidas muitas ações para cumprir o sentenciado, porém o cumprimento dessa determi-nação ainda não foi integralmente cumprida.89

Na Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 21 de setembro de 2009, constou que o Estado brasileiro apresentou um relatório com as medidas adotadas para o cumprimento das determinações da sentença de mérito. O Estado brasileiro informou que para capacitar os profissionais da área da saúde mental, foi criado o Programa Permanente de Formação de Recursos Humanos para a Reforma Psiquiátrica e que foram consolidados os Programas de Residência Multiprofissional em Saúde Mental no Estado da Bahia, do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro. O Estado brasileiro criou o Programa Pró--Saúde para averiguar os currículos das instituições de ensino superior.90

O Ministério da Saúde instaurou o “Programa Emergencial de Ampliação do Acesso para a Atenção de Problemas relacionados ao Álcool e outras Drogas”, no qual se incluem cursos de especia-lização e atualização em saúde mental, com ênfase em problemas relacionados ao abuso das referidas substâncias. Outrossim, no ano de 2009 se expandiram os cursos de capacitação em saúde mental para os profissionais do “Programa Saúde da Família” e para profissionais de apoio que atuam nas regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil.91

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A Corte Interamericana na Resolução de 2009 considerou as ações promovidas pelo Estado brasileiro, porém declarou que fosse apresentadas no próximo relatório do Estado brasileiro, as informações relativas às atividades de capacitação desenvolvidas posteriormente à decisão. Ademais, a Corte deter-minou a continuidade no desenvolvimento de formação e capacitação para os profissionais da área da saúde mental.92

Na Resolução de 2010, o Estado brasileiro apresentou relatório e informou as mesmas medidas apresentadas na Resolução de 2009. O Estado versou sobre os cursos da área de saúde mental nas universidade brasileiras e informou que foram investidos R$ 15.320.379,47 (quinze milhões, trezentos e vinte mil, trezen-tos e setenta e nove reais e quarenta e sete centavos)” em cursos de especialização na área de saúde mental. A Corte, por sua vez, declarou que o Estado brasileiro deixou de enviar algumas informações necessárias para a análise do cumprimento das determinações da Corte e que, por isso, decidiu que fosse entregue um novo relatório pelo Estado brasileiro.93

Contudo, apesar de não ter sido cumprida integralmente a determinação de capacitar os profissionais que atuam na área de saúde mental, após o caso Damião Ximenes Lopes, houve várias repercussões na política pública de saúde mental do Brasil.94

Entre os reflexos que o caso trouxe para o âmbito interno, verificou-se como reflexo o aprimoramento dos serviços dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os dados apontam que houve uma significativa melhora entre os anos de 2002 e 2009 nos atendimentos da região do nordeste.95

Embora esse quadro apresente uma série de avanços no âmbito das políticas de atenção em saúde mental no Brasil, o Estado brasileiro ainda não adotou programas específicos de formação dos profis-sionais que trabalham nos serviços de saúde mental, sobretudo, nos Hospitais Psiquiátricos (como foi determinado na sentença da Corte), o que denota grande fragilidade da rede de atenção em saúde mental do país. [...] A supervisão feita pela Corte sobre o cumprimento da sentença, no caso em tela, demonstra que, apesar das melhorias identificadas na política de saúde mental, ainda há muitas etapas a serem vencidas.96

Por meio da análise do cumprimento das determinações da decisão, verificou-se que o caso Damião trouxe como reflexo no âmbito brasileiro a efetividade do acesso à justiça perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a revisão da política pública de saúde mental no país,97 “desde o ponto de vista legislativo, ao nível de gestão e da prestação de serviços à sociedade como um todo”.98

Portanto, o presente caso trouxe diversos reflexos positivos para o Estado brasileiro, como o cumprimento por parte do Estado em relação às indenizações determinadas pela Corte, o que não representa apenas um montante pecuniário, mas uma reparação moral. Mas mais do que isso, os avanços nas políticas de saúde

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mental contatados pelos relatórios de cumprimento da CIDH demonstram os avanços nessa seara e aponta para o que resta melhorar. Por fim, o cumprimento da decisão da CIDH indica a credibilidade da Corte na reparação das violações de direitos humanos, ao menos neste caso.

CONCLUSÃO

O objetivo principal deste trabalho foi verificar, por meio do caso Damião Ximenes Lopes, a importância da atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos para o Estado brasileiro e os reflexos que esse caso trouxe para a consolidação dos direitos humanos no âmbito interno. Trata-se da primeira condenação do Estado brasileiro perante a CIDH, justamente pelo fato de o Brasil ter violado os compromissos internacionais de tutelar o direito a vida, a integridade pessoal e as garantias judiciais em território nacional.

Em âmbito internacional, o Estado brasileiro foi denunciado pela violação de inúmeros direitos, sendo admitido na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em que ocorreram tentativas de solucionar o caso antes deste ser submetido à julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sem êxito, o caso foi apresentado à jurisdição da Corte.

O Estado brasileiro foi condenado pelo inadimplemento dos artigos 4º (direito à vida), 5º (direito à integridade pessoal), 8º (garantias judiciais) e 25º (proteção judicial). A Corte, ao proferir sentença de mérito, determinou que o Estado brasileiro pagasse indenização por danos materiais e morais à família de Damião, que fosse realizada a investigação dos responsáveis pela morte da vítima e que fossem promovidos investimentos na capacitação dos profissionais de política pública mental.

Por meio das análises expostas, conclui-se que, embora algumas deter-minações da Corte não tenham sido integralmente cumpridas, o caso Damião Ximenes Lopes trouxe diversos reflexos positivos para o Estado brasileiro. Além do pagamento das indenizações determinadas pela Corte, o que traz maior credi-bilidade na busca do acesso à justiça perante a CIDH, o Brasil se mostrou aberto para promover avanços nas políticas públicas de saúde mental, o que demonstra a atenção do Brasil as determinações da CIDH e favorece um aumento no nú-mero de denúncias envolvendo o Brasil no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Além dessas, há de se ressaltar que tal jurisdição internacional se traduz em um importante mecanismo para a garantia dos compromissos internacionais por parte dos Estados. Além disso, a CIDH se coloca ao lado dos indivíduos na sua pretensão de responsabilizar o Estado quando a sua estrutura institucional, que deveria tutelar os direitos dos indivíduos, se transforma em uma violenta fonte de violações de direitos.

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1 FRISSO, Giovana; PAIXÃO, Cristiano; SILVA, Janaína Lima Penalva da. In: DIREITOGV. Caso Ximenes Lopes versus Brasil. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Relato e Reconstrução Jurisprudencial (2007). Direito.FGV. Disponível em: <http://direitogv.fgv.br/sites/direitogv.fgv.br/files/narrativa_final_-_ximenes.pdf>. Acesso: 25 set. 2013, p. 4.

2 Ibid., p. 4.3 Ibid., p. 4-6. 4 Ibid., p. 5. 5 OLIVEIRA, Erival da Silva. Direitos Humanos. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2013, p. 113.6 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS In: Ficha do Caso. Caso Damião Ximenes

Lopes versus Brasil. San José, 2014. Corte IDH. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/tablas/fichas/ximeneslopes.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2014. “El señor Damião Ximenes Lopes tenía 30 años de edad y vivía con su madre en la ciudad de Varjota, situada aproximadamente a una hora de la ciudad de Sobral, sede de la Casa de Reposo Guararapes”

7 FRISSO; PAIXÃO; SILVA, op. cit., p. 5. 8 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, op. cit., 2014. “El señor Damião Ximenes

Lopes fue admitido en la Casa de Reposo Guararapes, como paciente del Sistema Único de Salud (SUS), en perfecto estado físico, el 1 de octubre de 1999. Al momento de su ingreso no presentaba señales de agresividad ni lesiones corporales externas. El 3 de octubre de 1999

9 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, op. cit., 2014.10 FRISSO; PAIXÃO; SILVA, op. cit., p. 5.11 Ibid., p. 5-6.

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12 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, op. cit., 2014. “El señor Damião Xime-nes Lopes falleció el mismo día, aproximadamente dos horas después de haber sido medicado por el director clínico del hospital, y sin ser asistido por médico alguno en el momento de su muerte.”

13 FRISSO; PAIXÃO; SILVA, op. cit., p. 6.14 Ibid., p. 6.15 VIEIRA, Gustavo Adolfo Menezes. In: GAJOP. Acesso à Justiça Transnacional. O Sistema Interameri-

cano e o Processo Ximenes, 2010. GAJOP.ORG. Disponível em: <http://gajop.org.br/justicacidada/wp-content/uploads/Acesso-aa-Justi%C3%A7a-Transnacional.pdf>. Acesso: 25 set. 2013, p. 201.

16 FRISSO; PAIXÃO; SILVA, op. cit., p. 6.17 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Alegações Finais. Caso Damião

Ximenes Lopes versus Brasil. Washington, 2005. CORTE IDH. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/ximenes/agescidh.pdf>. Acesso: 25 mai. 2014, p. 5.

18 Ibid., p. 5.19 Ibid., p. 6.20 Ibid, p. 6 -7.21 Ibid,, p. 6.22 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Sentença de Mérito. Caso Damião

Ximenes Lopes versus Brasil. San José, 2006. CORTE IDH. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_149_esp.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2014, p. 3.

23 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Sentença de Exceções Preliminares. Caso Damião Ximenes Lopes versus Brasil. San José, 2005. CORTE IDH. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_139_esp.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2014.

24 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, op. cit..25 FRISO; PAIXÃO; SILVA, op. cit., p. 826 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, op. cit., p. 3.27 FRISSO; PAIXÃO; SILVA, op. cit., p. 8-9.28 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, op. cit., p. 3.29 Ibid., p. 3.30 FRISSO; PAIXÃO; SILVA, op. cit., p. 8.31 Ibid., p. 8;32 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, op. cit., p. 3.33 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2005, op. cit., p. 2.34 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, op. cit., p. 3.35 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2005, op. cit., p. 2-3. 36 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, op. cit., 2006, p. 4. 37 Ibid., p. 4-5. 38 Ibid., p. 4-5.39 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2005, op. cit., p. 3.40 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2005, op. cit., p. 3. 41 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, op. cit., p. 5.42 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2005, op. cit., p. 4. “1. Desestimar la

excepción preliminar de no agotamiento de los recursos internos interpuesta por el Estado. 2. Continuar con la celebración de la audiencia pública convocada mediante Resolución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos de 22 de septiembre de 2005, así como los demás actos procesales relativos al fondo, y eventuales reparaciones y costas en el presente caso. 3. Notificar la presente Resolución al Estado, a la Comisión Interamericana de Derechos Humanos y los representantes de la presunta víctima y sus familiares.”

43 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, op. cit., p. 7.44 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2005, op. cit., p. 5. 45 Ibid., p. 5.46 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, op. cit., p. 8.47 Ibid., p. 9.48 Ibid., p. 9.49 Ibid., p. 10. 50 Ibid., p. 10. “La Casa de Reposo Guararapes atendía una región de casi un millón de habitantes,

pero dicho hospital tenía solamente ciento diez camas de internación. La asistencia ambulatoria era

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precaria. La atención de salud mental cambió mucho después de que la Casa de Reposo Guararapes fue cerrada en julio de 2001. Dicha fecha marca el proceso de transición de un modelo de asistencia enfocado en la atención médico-hospitalaria y de manicomios, para un abordaje descentralizado, re-gionalizado, con nuevos equipos y proponiendo la rehabilitación y reinserción social de las personas con enfermedades mentales.”

51 Ibid., p. 10-11.52 Ibid., p. 11-12.53 Ibid., p. 13.54 Ibid., p. 13. “En el caso del señor Ximenes Lopes no hay evidencias de que él representara un peligro

inminente para sí mismo o terceros. No se ha comprobado que se intentara utilizar un método menos agresivo para controlar un posible episodio de violencia de dicho señor. Por lo tanto, el uso de cualquier forma de fuerza física para ese caso fue ilegal. Una vez sujetado, con las manos amarradas hacia atrás, le correspondía al Estado el deber supremo de proteger al señor Damião Ximenes Lopes debido a su condición de extrema vulnerabilidad. [...] El uso injustificado y excesivo de la fuerza en el presente caso constituye una práctica inhumana y un tratamiento degradante. [...]La golpiza al señor Damião Ximenes Lopes -y su posterior muerte- podría haber sido evitadas si el Estado hubiese cumplido con su obligación de proporcionarle una institución con funcionarios capacitados para asistirle en su enfermedad mental.”

55 Ibid., p. 14.56 Ibid., p. 14-15.57 Ibid., p. 15. “La muerte del señor Damião Ximenes Lopes todavía continua impune en todas las

instancias. El proceso ha demorado mucho. [...] La madre de la testigo, así como toda la familia, rehúsa recibir la pensión vitalicia ofrecida por el Estado por considerar que se trata de una pensión que está por debajo de lo que podría reparar los daños causados. Consideran la propuesta del Estado humillante. Valora la designación del Centro de Atención Psicosocial (CAPS) con el nombre de su hermano, pero no considera que eso signifique justicia, ya que era lo mínimo que podían hacer.”

58 Ibid., p. 15-18. 59 Ibid., p. 32-51. 60 Ibid., p. 52-91. 61 Ibid., p. 90.62 Ibid., p. 91. “El Estado debe garantizar, en un plazo razonable, que el proceso interno tendiente a

investigar y sancionar a los responsables de los hechos de este caso surta sus debidos efectos [...] El Estado debe publicar, en el plazo de seis meses, en el Diario Oficial y en otro diario de amplia circu-lación nacional, por una sola vez, el Capítulo VII relativo a los Hechos Probados de esta Sentencia, sin las notas al pie de página correspondientes, así como la parte resolutiva de la presente Sentencia.”

63 VENTURA, Deisy; CETRA, Raíza Ortiz. In: CONECTAS. O Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos: de Maria da Penha à Belo Monte, 2012, p. 25. Conectas. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos-site/Ventura%20Cetra%20O%20Brasil%20e%20o%20SIDH%202012%20(2)(1).pdf>. Acesso: 29 set. 2013.

64 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 898.

65 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2006, op. cit., p. 91.66 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14 ed. São Paulo:

Saraiva, 2013, p. 365-366.67 ROSATO, Cássia Maria; CORREIA, Ludmila Cerqueira. In: SURJORNAL. Caso Damião Ximenes

Lopes: Mudanças e Desafios após a Primeira Condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2011, p. 103. Disponível em: <http://www.surjournal.org/conteudos/pdf/15/05.pdf>. Acesso: 28 abr. 2014.

68 Ibid., p. 103.69 CORREIA, Ludmila Cerqueira. In: PERIODICOS. Responsabilidade Internacional por Violação

de Direitos Humanos: o Brasil e o Caso Damião Ximenes, 2005. Periódicos.UFPB. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/primafacie/article/view/4560/3431>. Acesso em: 28 abr. 2014, p. p. 91-92.

70 ROSATO; CORREIA, op. cit., p. 105.71 CORREIA; op. cit., p. 92.72 ROSATO, CORREIA, op. cit., p. 102.

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73 Ibid., p. 102.74 MAZZUOLI, op. cit., p. 901.

75 NOSCHANG, Patricia Grazziotin. Os Sistemas de Proteção aos Direitos Humanos e o Brasil: da par-ticipação no sistema global ao (des)cumprimento na esfera regional, 2013. Biancavalente. Disponível em: < file:///C:/Users/biancavalente/Downloads/368-3842-1-PB.pdf>. Acesso: 25 nov. 2013, p. 274.

76 ROSATO; CORREIA, op. cit., p. 103.77 MAZZUOLI, op. cit., p. 898.78 ROSATO; CORREIA, op. cit., p. 104.79 Ibid., p. 104. 80 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos pela

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81 VIEIRA, op. cit., p. 202.82 ROSATO; CORREIA, op. cit., p. 104.83 MAZZUOLI, op. cit., p. 899.84 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Resolução da Corte Interamericana de

Direitos Humanos. Supervisão de Cumprimento de Sentença. Caso Damião Ximenes Lopes versus Brasil. San José, 2009, Corte.IDH. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/ximenesp.pdf>. Acesso em 25 abr. 2014, p. 3-4.

85 Ibid., p. 3-4. 86 ROSATO; CORREIA, op. cit., p. 103. 87 Ibid., p. 104-105.88 Ibid., p. 104-105.89 Ibid., p. 103-104.90 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009op. cit., 2009, p. 5.91 Ibid., p. 5.92 Ibid., p. 6 e 7. 93 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Resolução da Corte Interamericana de

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94 ROSATO, CORREIA, op. cit., p. 105. 95 Ibid., p. 107. 96 Ibid., p. 108-109.97 Ibid., p. 105.98 Ibid., p. 105.

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BRAZIL UNDER TRIAL: DAMIÃO XIMENES LOPES’ CASE AND ITS CONSEQUENCES WITHIN THE COUNTRY

ABSTRACT

The Inter-American System for the Protection of Human Rights acts to respond against violations of human rights within the borders of the State-parties which ratified the American Convention on Human Rights. The Inter-American Court of Human Rights has subsidiary role, as result of inner state jurisdictional ineffectiveness. In this context, Damião Ximenes Lopes’ case was the first one that resulted the conviction of Brazil by Inter-American Court of Human Rights. This article relies on deductive method to point out the consequences of this case to Brazilian law.

Keywords: Human Rights on International Law. Inter-American System for the Protection of Human Rights. Damião Ximenes Lopes’ case.

Submetido: 19 jun. 2014Aprovado:18 ago. 2015

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fomentAnDo A legAliDADe e A estABiliDADe Do mercADo De ViDeogAmes no BrAsil: em BuscA DA nomenclAturA corretA, DA iguAlDADe triButáriA

e Do preço Justo

Albano Francisco Schmidt*

Oksandro Osdival Gonçalves**

1. O mercado de videogames no Brasil e seus problemas. 1.1. Os incentivos fiscais oferecidos pela Zona Franca de Manaus – ZFM. 2. A necessidade de delimitação da terminologia: videogames. 2.1. O que é afinal um videogame? 2.2. Aristóteles, NCMs e identidades variáveis. 3. A cadeia tributária dos games no país: por que tão mais caros que no exterior? 3.1. ISS – Imposto sobre serviços 3.2. Os impostos incidentes sobre a mídia física: ICMS – Imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços / II – Imposto de Importação. 3.3 PIS/PASEP-Importação e COFINS-Importação. 3.4 Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI. 3.5. Conclusões parciais da análise tributária realizada 3.6. Análise dos projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional e seus possíveis impactos no mercado. 3.6.1. PL 514/2011. 3.6.2. PL 899/2011. 3.6.3. PL 943/2011. 3.7. A nova situação tributária dos videogames no caso de implementação de todos os PLs estudados e na aceitação da Receita Federal da padronização da nomenclatura 4. Conside-rações finais para paradigmas mais abrangentes. Referências.

RESUMO

Este artigo analisa a questão da tributação dos jogos e consoles de videogame no Brasil, nos mais diversos aspectos: necessidade de padronização de nomenclaturas pelos Órgãos Públicos; cadeia de tributos incidentes sobre a importação/produção do software no território nacional; leis aplicáveis ao caso concreto, visando à diminuição da carga; à questão da produção de games na Zona Franca de Manaus; aos entraves tributários ainda existentes e às possibilidades de mudança na legislação ora vigente. Busca-se um viés mais pragmático, de como reduzir a elevada carga tri-butária hoje aplicável e fomentar o combate ao mercado cinza, proveniente de contrabando e descaminho. Por fim, aborda-se a questão do fomento a inclusão digital do cidadão brasileiro.

Palavras-Chave: Desenvolvimento. Tributação. Atividade eco-nômica. Análise Econômica do Direito. Videogames.

* Mestrando em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected]

** Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado/Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Doutor em Direito Comercial - Direito das Relações So-ciais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: [email protected]

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1 O MERCADO DE VIDEOGAMES NO BRASIL E SEUS PROBLEMAS

Os jogos de videogame, no Brasil, custam muito caro, quase o dobro dos valores praticados no exterior, fomentando, de maneira irrefreável, o mercado paralelo (advindo da entrada ilegal de produtos pelas porosas fronteiras nacionais) e sufocando todas as iniciativas de produção e desenvolvimento de softwares locais, de alto valor econômico e intelectual agregado. E isso advém de uma política fiscal e tributária deficiente, que trata o segmento como algo irrelevante, como uma simples parcela do mercado de informática (quando muito) ou pior, de brinquedos. Com esse descaso, o país está deixando de aproveitar a rápida expansão do mercado de games e a chegada de sua oitava geração de consoles, hoje mais potentes do que qualquer computador disponível no mercado. Este artigo vem para tentar colocar luz sobre essa situação retrógrada e fomentar uma brusca mudança de entendimento acerca do que sejam videogames, a começar pela discriminação das altas e reais cifras envolvidas.

O mercado de games (considerado como o composto pela venda de jogos eletrônicos mais o de consoles necessários ao seu processamento), no ano de 2012, faturou U$55 bilhões (de acordo com o relatório da NC Games, a maior importadora do segmento no país), valor aproximadamente 65% superior ao faturamento obtido com cinema. As projeções apontam para que, com a entra-da dos novos consoles em 2014 e suas vendas nos próximos anos, esse mercado seja o triplo do hollywoodiano em menos de 5 anos.1 Esse crescimento tem se mostrado robusto e consistente desde o final dos anos 80, com um incremento médio de 12% ao ano nos últimos 20 anos.2

Em 2005, o Brasil possuía um mercado formal de videogames da ordem de U$157 milhões, praticamente triplicado no período analisado, fechando o ano de 2014 com um faturamento superior a U$409 milhões – segundo dados da NC GAMES, 2012, e G1, 2015.3 No ano de 2010, antes, portanto, da entrada dos novos consoles e portáteis, já havia uma base instalada no país de mais de 20 milhões de consoles, ou seja, 1 console para cada 10 brasileiros, uma média bastante inferior aos países desenvolvidos, onde existem, em média, 1 console para cada 4 habitantes (no Japão, “berço” da Nintendo e da Sega, as pioneiras no mercado, a proporção é de quase 1-1).

Estes dados, apesar de expressivos, podem tornar-se irrelevantes nos próxi-mos anos, pois existem sérias iniciativas de grandes empresas do setor de permitir que jogos eletrônicos sejam usados (ou rodados) em qualquer televisor que tenha acesso à internet. Hoje, segundo dados do IBGE, (PNAD, 2008), 95% dos lares brasileiros têm ao menos um aparelho de televisão em casa e, pelo menos 25% destes, têm acesso à internet, com a banda larga se ampliando de maneira signi-ficativa nas regiões mais populosas. As cifras envolvidas tornam-se rapidamente imensuráveis, e os grandes players do mercado (essencialmente Sony, Microsoft e Nintendo) voltaram a centrar sua atenção nos mercados emergentes, com grandes expectativas de expansão, especialmente no Brasil e sua Zona Franca de Manaus (ZFM), panaceia para a produção em larga escala de games a preços competitivos.

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1.1. Os incentivos fiscais oferecidos pela Zona Franca de Manaus - ZFM

A ZFM foi instituída pela Lei n. 3.173/1957, sendo posteriormente re-gulamentada por diversos decretos (47.757/60, 51.114/61, 723/62, 288/67), até a sua efetiva constitucionalização em 1988 (por meio do art. 40 do ADCT). Especialmente importante é o Decreto Lei n. 288/67, que transmudou a ZFM do entreposto aduaneiro que era inicialmente em “área de livre comércio de impor-tação e exportação”, dotada de “incentivos fiscais especiais”, a fim de permitir o seu desenvolvimento e ocupação, apesar da distância que separava Manaus dos polos industriais brasileiros.

Referido decreto isenta, ainda hoje, o pagamento do IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados e II – Imposto de Importação, para:

Art 3º - A entrada de mercadorias estrangeiras na Zona Franca, destinadas a seu consumo interno, industrialização em qualquer grau, inclusive beneficiamento, agropecuária, pesca, instalação e operação de indústrias e serviços de qualquer natureza e a estocagem para reexportação, será isenta dos impostos de importação, e sôbre produtos industrializados.

Art. 9° - Estão isentas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) todas as mercadorias produzidas na Zona Franca de Manaus, quer se destinem ao seu consumo interno, quer à comercialização em qualquer ponto do Território Nacional.

O recebimento desses incentivos, contudo pressupõe que a empresa instalada na ZFM cumpra uma série de requisitos desenvolvimentistas como contraprestação da benesse governamental (incremento da oferta de emprego na região; concessão de benefícios aos trabalhadores; reinvestimento de lucros; entre outros), do contrário tratar-se-ia somente de uma “forma de concorrência desleal, com viés no abuso do poder econômico”.4

Aproveitando-se destes incentivos fiscais e condições, destaca-se a sua/ implementação no mercado de jogos desde a década de 90, quando a Sega e a Nintendo mantiveram unidades na ZFM, desativadas quando os consoles da dita “terceira geração” (de 32 bits, e.g PlayStation 1) foram lançados. Com a popula-rização do CD nesta época, cerca de 90% das vendas de consoles e jogos no país se davam no “mercado cinza” (fruto de descaminho e evasão fiscal). Problema que persistiu durante toda a década de 90 e anos 2000. As perdas com tributação e instalação de novos negócios no segmento são sentidas até hoje, haja vista a apenas recente retomada do mercado formal de jogos, com sua popularização nas maiores livrarias e até mesmo redes de supermercados.

Depois ocorreu a entrada do segmento de games e consoles da Sony na Zona Franca de Manaus, em setembro de 2008. Lá passou a produzir PlaySta-tions 2 e 3 e seus softwares e periféricos para a distribuição em toda a América do Sul.5 A Microsoft iniciou também a produção do Xbox 360 (sétima geração) no polo industrial de Manaus em 20116 e recentemente a produção de sua mais

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moderna linha, o Xbox One (oitava geração), 100% nacional. Com isto conseguiu, inclusive, um console R$1700 mais barato do que o da concorrência, devido aos incentivos fiscais obtidos.7 Isso demonstra de maneira clara que é possível reduzir em muito o valor dos videogames no Brasil e ainda fomentar o mercado nacional.

O mundo mudou, os mercados, também, o que permanece o mesmo são os entraves existentes no mercado brasileiro para aproveitar plenamente esta onda de crescimento sem precedentes. O Brasil já havia conseguido, na década de 90, com a política de fechamento de mercado e abrandamento ao controle da pirataria, “expulsar” os interessados em atuar no mercado brasileiro de games. Agora, com a retomada de sua existência formal e o “boom” na venda de jogos, parece ser o momento apropriado para revisitar antigos problemas e pavimentar o caminho da consolidação da indústria.

2 A NECESSIDADE DE DELIMITAÇÃO DA TERMINOLOGIA: VIDEOGAMES

Até o presente momento utilizou-se indistintamente as terminologias videogames, games ou jogos eletrônicos quando se referiu a estes softwares aco-plados ou não a uma mídia física, que rodam apenas em consoles específicos, tendo por fim não só o entretenimento, mas também o estudo, a cultura e outros tantos valores constitucionalmente assegurados. Entretanto, parte do problema enfrentado pelo mercado de videogames hoje é justamente a falta de consenso sobre o que, exatamente, eles sejam.

A primeira terminologia que se busca erradicar é a de “jogos eletrôni-cos”, pois o Superior Tribunal de Justiça a utiliza em pelo menos 35 acórdãos para designar os “jogos eletrônicos de azar”, os bingos e os caça-níqueis, hoje completamente proibidos no ordenamento jurídico brasileiro, incluindo-se seus usuários como contraventores penais, conforme o disposto no artigo 50 da Lei de Contravenções Penais. Exemplo de tratamento dado a “jogos eletrônicos” como exploração de jogos de azar advém do Ministro Relator Humberto Martins, em acórdão datado de 19/02/2013, onde consta que:

Administrativo e processual civil. Exploração da atividade de bingos. Ilicitude. Agravo conhecido para negar seguimento ao recurso especial. A Lei Complementar n. 116/2003 não legitima a prática de jogos de azar.

Por isso, apesar da consagração do termo na mídia não-especializada, não é o mais acertada a sua utilização, devido à forte conotação negativa e à confusão, inclusive, com ilícitos penais. A expressão tão pouco é consagrada no léxico alienígena.

Prefere-se aqui o emprego da expressão videogames (apesar do estrangei-rismo) para se referir ao mercado em geral; jogos de videogame para os softwares e consoles para o aparelho que transforma a sua linguagem de programação em

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algo visual. Tais termos estão isentos de qualquer preconceito e são condizentes com o utilizado em outros idiomas, além de serem os termos mais empregados pela mídia especializada e consumidores em geral (estes, é importante que se diga, estão na faixa de 25 a 40 anos – apenas 25% dos jogadores têm menos de 18 anos - devendo ser retirado também o estigma de videogames serem “coisa de criança”, dados da NC Games), além de constar em documentos da própria Receita Federal (Consulta 472 de 2009)

2.1. O que é afinal um videogame?

Esse problema aparentemente semântico vem causando sérios entraves também jurídicos aos videogames, foco principal deste artigo. O primeiro grande problema que surge dessa indefinição é se jogos de videogames devem ser vistos como softwares (relacionados aos programas de computador, como o Office ou Photoshop) ou como obras audiovisuais (aqui mais assemelhados a produções cinematográficas). O único ponto de consenso é que eles são protegidos pela Lei de Direitos Autorais (Lei n 9.610 de 1998, doravante LDA), pois a) se forem entendidos como filmes, estarão protegidos pelo artigo 5, inciso VIII, i, da referida lei; b) caso sejam vistos como softwares, a Lei 9.609 de 1998 (Lei do Software - LDS), em seu artigo 2º, assim dispõe:

O regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta Lei.

Por serem bens móveis por expressa definição legal (LDA - Art. 3º Os di-reitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis), tanto os softwares quantos os filmes/livros comportam seção, alienação, empréstimo e todos os ou-tros institutos civis não vedados em lei. Para além desses pontos de convergência, as aplicações práticas entre ser um bem móvel equiparado a software ou filme diferem-se de maneira considerável. Na Lei do Software, consta que:

Art. 1º Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da infor-mação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.

Já Lei de Direitos Autorais define obra audiovisual como:

Art. 5, inciso VIII, i: obra audiovisual: produto da fixação ou transmissão de imagens, com ou sem som, que tenha a finalidade de criar a impressão de movimento, independentemente dos processos de captação, do suporte utilizado inicial ou posterior-

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mente para fixá-las ou transmiti-las, ou dos meios utilizados para sua veiculação, reprodução, transmissão ou difusão;

Partem as leis de premissas completamente distintas. A LDA fala em transmissão de imagem, com ou sem som, que tenha a finalidade de se criar uma impressão de movimento, a fim de reproduzi-la e difundi-la. É a definição padrão de um filme, em que você simplesmente liga o aparelho televisor, e este é reproduzido, sem interferência do telespectador, por uma operadora (Sky e NET, e.g) por meio de um canal (Telecine, HBO, e.g). Não há aqui qualquer interferência humana no processo, além de apertar o botão de ligar o dispositivo.

Na outra visão, a LPI, de maneira mais técnica, apresenta o software como um conjunto de instruções codificadas, contidas em um suporte físico (hoje basicamente DVD e blu-ray), que faz uma máquina funcionar de modo e fim determinado. A passividade não se faz mais presente, pois, com um software (para o caso concreto, um jogo de videogame), diferente de um filme, a interação homem/máquina é constante.

O software altera completamente o funcionamento do hardware (console) em que ele está inserido. Um PlayStation 3 rodando Rayman pode ser apreciado por crianças de todas as idades, com cenários coloridos e música alegre. Já ao inserir no mesmo console Beyond Two Souls, vê-se uma frágil garota atormentada por um espírito enfurecido que destrói tudo a sua volta, com um visual bem mais escuro, pesado e adulto, de música melancólica. O aparelho ainda é o mesmo caixote preto ligado na televisão e na tomada, entretanto a interação que se tem e o que se vê é completamente distinto. O fim e o modo de funcionamento são completamente diversos.

Por esse motivo, parece ser mais correto o entendimento de que jogos de videogame sejam softwares, essa definição mais afeita a sua realidade de confecção e operacionalização. Um console nada mais do que um potente computador desenvolvido especialmente (ainda que não exclusivamente, como se denota das plataformas multimídia da Sony e Microsoft) para jogos. Essa simples mudança de perspectiva e enquadramento permitiria o fomento do mercado legalizado de videogames no país, como se verá adiante.

2.2. Aristóteles, NCMs e identidades variáveis

Seguindo-se esta linha de pensamento, de jogos de videogame como softwares, é despicienda a existência de duas Nomenclaturas Comuns do Mer-cosul (NCM) distintas para “programas de computador” (NCM n 8523.40.29) e “games para consoles” (NCM n 9504.10.99), uma vez que seus conceitos se confundem, por terem exatamente a mesma função prática (alterar o modo de funcionamento de um hardware).

Os três postulados básicos da lógica aristotélica são bastante elucidativos neste sentido: identidade, não-contradição e terceiro excluído. Zamudio8 explica

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que, para Aristóteles, tomando-se o mesmo ser (pessoa, objeto, fenômeno), no mesmo espaço de tempo, algo não pode ser e não ser simultaneamente (princípio da identidade): se um game é um game, ele não pode ser game e não-game simul-taneamente. Além disso, é impossível que um atributo pertença e não pertença a um mesmo ente (princípio da não-contradição): um game é um software, assim ele não pode ser também não-software. Por fim, se um game é um software e um game é diferente de um software, somente uma destas proposições pode ser verdadeira na mesma relação (de simultaneidade).

Isto nos leva à clássica construção de que todos os games são softwares. Mario Bros é um game. Logo, Mario Bros é um software. Por isso, se um jogo de videogame é um software, ele não pode ser, ao mesmo tempo, algo que não um software. Isto seria negar-lhe a sua própria identidade, um contrassenso lógico irremendável. Apesar da aparente clareza destes conceitos, a situação brasileira agrava-se por existirem diferentes Poderes da República regulando de maneira distinta a mesma matéria. Como já esposado acima, o Legislativo não pareceu encontrar uma forma coesa de delimitação do que seja um jogo de videogame, haja vista a plêiade de leis que o “protegem”.

No Judiciário, a situação não é diferente. O Superior Tribunal de Justiça possui dezenas de acórdãos que vinculam os “jogos eletrônicos” como “jogos de azar”, o que só faz confundir a mídia. No Supremo Tribunal Federal, como se verá, a discussão se dá basicamente na seara tributária do que seria ou não enquadrado como software e quais as suas prerrogativas legais.

O Executivo, por intermédio de sua Receita Federal, ao responder con-sulta formulada por contribuinte no ano de 2009, entendeu que que jogos de videogame, apesar de serem softwares, não merecem qualquer tratamento tributário diferenciado, sem oferecer maiores razões ou analisar sua identidade de maneira detida:

SOLUÇÃO DE CONSULTA Nº 472, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2009

As disposições do art. 81 do Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009, Regulamento Aduaneiro em vigor, não se aplicam para determinação do valor aduaneiro de CDs, DVDs ou outros dispo-sitivos (suportes), contendo jogos para videogame.

Vive-se hoje numa tentativa de alcançar o topo da Torre de Babel, com construtores falando línguas diversas, apesar de seu objetivo comum de alcançar Deus. Falta uma clareza de identidade, um posicionamento uníssono dos Pode-res da República, para se edificar a escadaria e chegar-se mais próximo de uma situação de erradicação do mercado paralelo e estabelecimento de um mercado verdadeiramente nacional. Esta clara identidade é de importância curial para a maturação do mercado de videogames no Brasil, pois o que existe hoje são diversas leis (LDA, LDS, resoluções e projetos de lei) e órgãos (STJ, STF, Recei-ta), com diferentes competências, falando coisas completamente distintas sobre

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uma mesma entidade, que precisa ser analisada em todas as suas vertentes, da mesma forma.

Apenas desse modo se poderá dar um tratamento uniforme e a necessária segurança jurídica para todos os envolvidos na cadeia produtiva, desde os desen-volvedores que hoje despontam em dezenas de start-ups pelo país, até as grandes corporações que pensam em instalar-se na Zona Franca de Manaus para iniciar a produção local e ajudar na consolidação de um mercado formal.

Esta caminhada certamente passará por uma necessária análise tributária dos custos envolvidos na produção/importação de jogos e consoles em território nacional. Não sendo os custos de transação nulos, seus impactos precisam ser analisados, e o viés tributário desponta como um dos mais significativos (depois, evidentemente, da confusão feita com a nomenclatura e forma de tratamento, que, como se verá, interfere também na seara tributária).

3 A CADEIA TRIBUTÁRIA DOS GAMES NO PAÍS: POR QUE TÃO MAIS CAROS QUE NO EXTERIOR?

Ao analisarmos a cadeia tributária incidente sobre um jogo de videogame com valor aproximado de R$150, desde a sua importação/fabricação até a venda ao consumidor final, veremos que incidem os seguintes impostos:

NCM Descrição I.I IPI ICMS PIS COFINS

9504.10.99 Games p/ consoles 20% 40% 18% 1,65% 7,6%

Bases de cálculo

Valor médio do custo do software: R$70,00

R$14,00 R$33,60 R$1,80 R$25,81 R$8,20

TOTAL R$153,18

Somando-se toda a tributação incidente hoje, da importação/produção até o consumidor final, foram pagos encargos no importe de 70%, ou seja, dos R$150,00 (em valores redondos, efetivamente cobrados do consumidor final na aquisição), apenas R$45,00 efetivamente remuneram a sua extensa cadeia pro-dutiva. Os outros R$105,00 são diretamente repassados ao Estado, nas formas de seus vários tributos incidentes.

Passa-se agora a analisar em espécie cada um dos tributos incidentes na cadeia produtiva e suas possíveis formas legais de redução/não-cumulação, ado-tando-se as medidas apresentadas no ponto 3 deste artigo e por fim realizando-se uma nova simulação, abarcando ainda os projetos de lei em trâmite na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara Federal, em Brasília, que visam a permitir significativas reduções na tributação de jogos e consoles de videogame.

3.1 ISS – Imposto sobre serviços

Um primeiro ponto que precisa ser esclarecido é o entendimento já conso-lidado jurisprudencialmente acerca da não-incidência do imposto municipal sobre

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serviços (ISS), previsto no art. 156, inciso III, da CRFB/88, sobre a produção de qualquer software de prateleira. Software de prateleira é todo aquele software produzido em série e posto à disposição do consumidor, de maneira indiscrimi-nada, funcionando de maneira perfeitamente idêntica onde quer que ele seja posto para rodar (é o exemplo dos sistemas operacionais e editores de texto).

Diferente é o caso de quando existe um software customizado, também chamado de por encomenda, “um programa desenvolvido exclusivamente para o usuário, de acordo com as suas necessidades, e que inclui os serviços de consulta e ajuste”.9

No caso dos jogos de videogame, a menos que se trate de algo muito pontual (como um jogo de treinamento de pilotagem desenhado para os caças da Forca Aérea Brasileira, por exemplo) e desenvolvido para um comprador específico, não há que se falar na incidência do ISS sobre sua produção ou aquisição, uma vez que se estará diante de um software desenvolvido para ser vendido de maneira indiscriminada. Aliás, o conceito de “software de prateleira” é perfeitamente visível para os compradores de games, pois a disposição interna de suas lojas, no mais das vezes, é composta apenas de prateleiras de vidro onde estes ficam expostos.

3.2 Os impostos incidentes sobre a mídia física: ICMS – Imposto sobre a cir-culação de mercadorias e serviços / II – Imposto de Importação

Optou-se por congregar a análise do ICMS e do II incidente sobre os jogos de videogame por uma questão fundamental acerca da atuação da União, sujeito ativo nos referidos tributos: esta tributa os jogos de videogame, tanto na sua entrada no país (II), quanto em sua circulação interna (ICMS), pelo valor total do bem (software + mídia física) e não pelo valor da mídia em que este se encontra gravado. Espera-se demonstrar que essa atuação não encontra respaldo legal e precisa ser revista, eis que trata de maneira distinta produtos de mesma natureza, qual seja, a de software.

A incidência do ICMS sobre softwares foi também amplamente debatida pelo STF, em clara oposição ao tratamento dispensado ao ISS. O ICMS é imposto estadual previsto no art. 155, inciso II, que incide sobre a circulação de mercadorias e determinados serviços que ocorrem dentro do país. Em relação a ele, o entendi-mento consolidado é o da sua efetiva incidência no comércio de softwares, como se depreende da análise esposada no STF no RE n 199464 / SP, de 02/03/1999:

EMENTA: TRIBUTÁRIO. ESTADO DE SÃO PAULO. ICMS. PROGRAMAS DE COMPUTADOR (SOFTWARE). COMER-CIALIZAÇÃO.

No julgamento do RE 176.626, Min. Sepúlveda Pertence, assentou a Primeira Turma do STF a distinção, para efeitos tributários, en-tre um exemplar standard de programa de computador, também chamado “de prateleira”, e o licenciamento ou cessão do direito

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de uso de software. A produção em massa para comercialização e a revenda de exemplares do corpus mechanicum da obra intelectual que nele se materializa não caracterizam licenciamento ou cessão de direitos de uso da obra, mas genuínas operações de circulação de mercadorias, sujeitas ao ICMS.

Esse entendimento, apesar de ser do final da década de 90, foi reiterado pelo STF nos anos subsequentes, sendo o mais recente julgado de 2008:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EX-TRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. ICMS. PRODUTOS DE INFORMÁTICA. PROGRAMAS [SOFTWARE]. CD-ROM. COMERCIALIZAÇÃO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

1. o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 176.626, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 11.12.98, fixou juris-prudência no sentido de que “[n]ão tendo por objeto uma mercado-ria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de ‘licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador’ - matéria exclusiva da lide -, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo - como a do chamado ‘software de prateleira’ (off the shelf) - os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio”.

Já o II consiste no imposto incidente sobre a importação de produtos estrangeiros, previsto no texto constitucional em seu artigo 155, inciso I, e com dispositivos pertinentes também no Código Tributário Nacional, em seus arts. 19 e seguintes. Considerando que a incidência da materialidade prevista no texto constitucional é patente, visto que a maioria dos jogos de videogame são importados e, portanto, tributados, o ponto nevrálgico se encontra em sua base de cálculo. Para os softwares de modo geral, os referidos impostos incidem sobre o valor da mídia em que aquele está sendo gravado. Assim, no caso de um software em CD (como é o caso de um antivírus), o ICMS e o II incidem sobre o valor desta mídia virgem, que hoje custa pouco mais de R$1,00.

Esta é a forma de tributação consagrada com o Decreto n 6.759/2009, que regula a administração da atividade aduaneira:

Art. 81. O valor aduaneiro de suporte físico que contenha dados ou instruções para equipamento de processamento de dados será determinado considerando unicamente o custo ou valor do suporte propriamente dito (Acordo de Valoração Aduaneira, Artigo 18, parágrafo 1, aprovado pelo Decreto Legislativo no 30, de 1994 (...)

§ 3º Os dados ou instruções referidos no caput não compreendem as gravações de som, de cinema ou de vídeo.

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Como se nota do próprio decreto, esta disposição não se aplica às gravações de som, cinema ou vídeo. Persistindo hoje o entendimento de que jogos de vide-ogame seriam equiparados a produções audiovisuais (como filmes ou músicas) e não como softwares, haveria a incidência tributária sobre base de cálculo diversa, que é a do valor do programa em si.

Seguindo o exemplo inicial, em um jogo de R$150,00, a base de cálculo utilizada fora de R$70,00 (valor médio do software, discriminado pelo seu pro-dutor, de acordo com as importações realizadas pela NC Games) e não aquela sobre a qual deveria incidir os tributos, qual seja, o valor da mídia em que ele está sendo gravado.

Este é um dos motivos pelos quais os jogos de computador custam, usu-almente, R$99,00 e não R$150,00 (uma diferença de aproximadamente 35%): há um “descuido” na fiscalização de sua incidência tributária, pois por estar escrito na embalagem “Para Windows e Mac”, a Receita subentende tratar-se de software de prateleira e não jogo, ainda que seu conteúdo seja idêntico nas versões de consoles.

3.3 PIS/PASEP-Importação e COFINS-Importação

Conforme pode-se observar no art. 3º, inciso I, da Lei 10.865/2004, fica instituído como fato gerador da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público incidente na Importação de Produtos Estrangeiros ou Serviços - PIS/PASEP-Importação e da Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social devida pelo Importador de Bens Estrangeiros ou Serviços do Exterior - COFINS-Importação, “a entrada de bens estrangeiros no território nacional”.

Assim, por adequar-se à materialidade do referido tributo, bem como aos demais contornos de sua regra-matriz previstos na legislação, a importação de jogos de videogame sofre a incidência do PIS/PASEP e COFINS quando de sua entrada em território nacional.

Conforme disposto na tabela presente no início deste capítulo, o PIS/COFINS representam 9,25% dos impostos incidentes sobre a importação de jogos de videogame no atual regime tributário nacional. Entretanto, no mesmo sentido do que aqui se defende – a necessidade de fomento de um mercado tão promissor também pelos mecanismos de extrafiscalidade, mormente pela isenção e alíquota zero – fora elaborado o Projeto de Lei n. 514 de 2011, visando a esten-der os incentivos estabelecidos pela Lei n. 8.248 de 1991 aos jogos eletrônicos de uso domiciliar.

3.4 Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI

O imposto sobre produtos industrializados, assim como todos os de-mais tributos previstos na legislação brasileira, encontra seu contorno inicial

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traçado na própria Constituição Federal, especialmente no art. 153, inciso IV. Dispõe o referido dispositivo que “compete à União instituir impostos sobre: IV – produtos industrializados”.

Entretanto, conforme largamente discutido na doutrina nacional, a hipóte-se de incidência tributária do IPI não consiste na industrialização de produto, em si, mas, antes disso, em duas hipóteses bem delimitadas: na importação, quando do desembaraço aduaneiro de produtos de procedência estrangeira, e nas opera-ções internas, quando da saída do produto industrializado de estabelecimento industrial, ou equiparado a industrial.10

Note-se que a base de cálculo do IPI nas operações de importação de jogos de videogame consiste, segundo informações do próprio site da Receita Federal, no “valor que servir ou que serviria de base para o cálculo dos tributos aduaneiros, por ocasião do despacho de importação, acrescido do montante desses tributos e dos encargos cambiais efetivamente pagos pelo importador ou deste exigíveis”. Ou seja, a tributação do IPI ocorre não somente sobre a base de cálculo dos tributos aduaneiros, mas também sobre o valor dos próprios tributos, tornando ainda mais onerosa a carga tributária sobre os jogos importados.

Se a redução desse montante tributável faz-se necessária para o fomento do mercado de games advindos do exterior, outro não é o cenário quando da perspectiva de criação de um mercado nacional competitivo, impondo-se a instalação das empresas em área de isenção como a Zona Franca de Manaus, apesar de sua considerável distância dos maiores centros consumidores de games (regiões Sul/Sudeste).

Essa área de livre comércio já mostrou como pode ser favorável ao merca-do de videogames quando, em 2008, mediante aprovação da Superintendência da Zona Franca de Manaus, teve início a fabricação do console Playstation 2 em território nacional, seguida pela fabricação de seus jogos respectivos, em 2009. A expectativa, à época, era de uma queda de até 25% nos preços dos jogos em razão de sua instalação na zona franca, tanto é que hoje o referido dispositivo custa pouco mais de R$300,00, quase 1/4 do valor do item importado na ocasião.

3.5 Conclusões parciais da análise tributária realizada

O primeiro ponto que precisa ser esclarecido é a vedação tributária exis-tente hoje no ordenamento jurídico brasileiro de se tributarem bens idênticos de maneira diferenciada, violando o princípio da igualdade tributária.

Igualdade é “a relação entre dois ou mais sujeitos, com base numa medi-da de comparação, aferida por meio de um elemento indicativo, que serve de instrumento para a realização de determinada finalidade”.11 Assim,

Para se afirmar que o legislador está respeitando o princípio da igualdade, é necessário verificar a existência de três fatores na lei tributária: a) razoabilidade da discriminação, baseada

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em diferenças reais entre as pessoas ou objetos tributados; b) existência de objetivo que justifique a discriminação; c) nexo lógico entre o objetivo perseguido e a discriminação que per-mitirá alcançá-lo12

Parece bastante claro que na questão dos games o princípio da igualdade tributária não está sendo respeitado, em nenhuma de suas vertentes teóricas. Não existe uma diferença real entre os objetos tributados (games vs softwares, ainda mais quando se tratar do mesmo jogo, um para computador e outro para console, com exatamente a mesma linguagem de programação); nem um obje-tivo que justifique essa discriminação (muito pelo contrário, a justificativa seria o fomento ao mercado nacional e erradicação do contrabando e descaminho, com o emparelhamento de alíquotas); tão pouco, pelo mesmo motivo, um nexo lógico entre a discriminação e o fomento, tanto da ZFM, quanto da já mencionada necessidade de erradicação do mercado paralelo.

Para além da igualdade tributária, é preciso ainda que os impostos de ca-ráter eminentemente extrafiscal (como II), ou seja, que não tem apenas função arrecadatória (essencial ao tributo), mas também regulatória de um determinado segmento, precisam respeitar ainda a neutralidade tributária, ou seja, “o tributo não pode se constituir em elemento importante da decisão do agente econômico nas suas escolhas de investimento”.13

No Brasil, o sistema tributário alicerçado para a exação de games ca-minha exatamente no sentido oposto: ele não apenas interfere na decisão, como restringe a possibilidade de sua aquisição pelo grande público, causando sérios desequilíbrios econômicos e concorrenciais. Na esteira de Gonçal-ves14, pode-se mesmo afirmar que o grande “desafio é justamente sopesar a extrafiscalidade e a neutralidade tributária, visando a um sistema tributário eficiente, justo e coerente”.

A tributação da cadeia dos videogames, da forma que vem sendo articula-da pelo Poder Público, não atinge esses preceitos de eficiência e justiça, eis que serve de elemento desequilibrador das relações entre iguais. Iguais são os games desenvolvidos para consoles ou para computadores, contudo são tratados de maneira completamente distinta, gerando distorções que até hoje inviabilizaram o desenvolvimento de um mercado formal e ativo de games.

Todavia, no Congresso Nacional, já existem três projetos de lei (PLs), data-dos de 2011, em avançado estágio de tramitação legislativa que visam a corrigir, em parte, repercussões negativas (verdadeiras externalidades, como propostas na definição de Coase15, de efeito produzido por um determinado agente eco-nômico que vai afetar de maneira positiva ou negativa um terceiro, que não tem nenhuma relação direta com o causador do efeito, mas é por ele beneficiado ou, na maioria das vezes, prejudicado).

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3.6. Análise dos projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional e seus possíveis impactos no mercado

3.6.1 PL 514/2011

O projeto de Lei 514 visa a estender os incentivos estabelecidos pela Lei no 8.248/2011 (que dispõe sobre a capacitação e a competitividade do setor de informática) aos jogos eletrônicos para uso domiciliar. Assim, aos parágrafos do artigo 16-A desta lei, que veda a concessão de seus benefícios para produções audiovisuais, seria acrescido um inciso III esclarecendo que ela também se aplica a todos os

[...] programas de computadores contendo jogos de vídeo para uso domiciliar, dos tipos utilizáveis com receptor de televisão ou como console portátil individual, que incorporem tecnologia di-gital, classificados na subposição NCM 9504.10 (NR), e respectiva documentação técnica associada.

Apesar de este PL ter perdido a oportunidade de padronizar a nomenclatu-ra dos jogos de videogame e seus respectiva NCM, ele é um avanço significativo, pois, de maneira clara explicita que games são programas (softwares) como os de computador, desvinculando a ideia de produção cinematográfica ou audiovisual, exatamente como defendido neste estudo.

3.6.2 PL 899/2011

O PL 899/2011 é bem mais técnico do que o anterior, já prevendo em sua exposição de motivos que

Os jogos eletrônicos, que são programas, são beneficiados pela referida Lei, na forma do inciso III do art. 16-A. Porém, os equi-pamentos onde os jogos são rodados estão fora do rol de equipa-mentos contemplados. Ao contrário, pela atual redação do § 1º do art. 16-A, os aparelhos destinados a lazer e entretenimento estão explicitamente fora da cobertura dos benefícios fiscais da Lei de Informática.

Por este projeto, entende-se, de pronto, que a Lei de Informática é sim aplicável ao comércio de jogos de videogame sem qualquer alteração legislativa, o que ele busca é, por meio de um inciso V, no mesmo artigo 16-A supramen-cionado, que os consoles onde estes jogos rodem, também sejam beneficiados pelos incentivos concedidos aos computadores (já que, como dito, videogames são computadores com finalidade específica):

V – consoles de jogos de vídeo para uso domiciliar, dos tipos utilizáveis com receptor de televisão, que incorporem tecnologia digital, classificados na subposição NCM 9504.10.

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Além disso, no projeto, denota-se ainda a preocupação com a erradicação do contrabando/descaminho, o que mostra a sensibilidade do Poder Legislativo no tocante aos problemas enfrentados nesta pesquisa:

A alteração proposta neste Projeto de Lei visa “pegar carona” no crescimento acelerado da indústria do entretenimento, para estimular a indústria nacional no segmento dos conso-les de jogos eletrônicos. Assim, além de combater o ingresso ilegal da mercadoria no Brasil, a política de informática pode estimular a chegada de investidores internacionais para mon-tar suas fábricas em nosso País, de olho no pujante mercado consumidor brasileiro.

Apesar de seu avanço, ele cai, contudo, no já estudado problema semântico dos “jogos eletrônicos”, ao dispor textualmente que: “esta proposta limita seu escopo, entanto, aos jogos de vídeo de uso doméstico, para evitar a extensão dos benefícios a outros tipos de jogos de uso ilícito, como as máquinas caça-níqueis”.

3.6.3 PL 943/2011

Por último, o PL 943/2011 visa a zerar as alíquotas das contribuições sociais incidentes sobre “jogos de computador”:

Art. 1º Ficam reduzidas à zero as alíquotas das Contribuições Sociais para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), incidentes sobre a importação de jogos para computador, de que trata a Lei no 10.865/2004, respectivamente, classificados na Nomenclatura Comum do Mer-cosul (NCM) sob os Códigos Tarifários 9504.10.10, 9504.10.91 e 9504.10.99

Apesar de o NCM de jogos de videogame estar corretamente inserido no projeto de lei, parece ser realmente imprescindível uma padronização também de nomenclatura, do contrário sempre se estará diante de inócuos debates sobre a diferença entre “jogos eletrônicos”, “jogos de computador” e “jogos de videogame” e quais seriam seus escopos de incentivo ou desincentivo tributário. O Legislador possui boas intenções para o fomento do mercado de games, entretanto, ainda parece um pouco perdido sobre a melhor forma de fazê-lo. No corpo deste PL, inclusive, consta a necessidade de criação de um mercado oficial de games no país:

A alta incidência tributária nos jogos para computadores produz uma elevação de mais de 100% nos títulos originais em relação ao preço praticado nos Estados Unidos da América (EUA). Essa situação inviabiliza completamente o comércio de jogos para computador originais no Brasil, prevalecendo o mercado paralelo. Nesse sentido, uma redução agressiva nos tributos aplicados a tais bens seria importante para reduzir a pirataria, e legalizar atividade de comércio de jogos para computador no Brasil.

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3.7 A nova situação tributária dos videogames no caso de implementação de todos os PLs estudados e na aceitação da Receita Federal da padronização da nomenclatura

NCM Descrição I.I IPI ICMS PIS COFINS

9504.10.99 Games p/ consoles

20% 0% 18% 0% 0%

Base s de cálculo

Valor médio do custo do softwa-re: R$70,00

Valor da mídia a ser gravada: R$10,00

R$2,00 R$0,00 R$1,80 R$0,00 R$0,00

TOTAL R$73,80

Na nova tabela construída, considerando-se um jogo produzido ou importado na ZFM (como já é o caso da Sony e Microsoft, as maiores players do mercado), mantendo-se padrão o custo do software gravado em R$70,00, mas isentando-se a cobrança do IPI, zerando-se as alíquotas de PIS/COFINS e tributando-se o valor da mídia física, o custo de um jogo de videogame cairia de R$150,00 para R$70,00 (custo, hoje, de um jogo usado recolado no mercado). Esta é uma redução da ordem de 53,33%, apenas com o enquadramento tribu-tário correto. Aplicada esta redução a toda a cadeia produtiva, teríamos hoje no mercado um console um pouco mais antigo (de sexta geração, como o PlaySta-tion 2), sendo vendido ao grande público por menos de R$200,00. Público este que poderia agora também usufruir de sua funcionalidade de leitor de DVD e também browser de internet.

Uma redução dessa ordem inviabilizaria por completo a pirataria e o mercado cinza, pois o preço do jogo original, devidamente tributado e remunerador de todo o link econômico, seria ainda inferior ao cobrado pelo produto ilegal. Sem mencionar o boom que isso causaria no mercado, dando-se um amplo acesso a grandes camadas da população a esse setor de lazer e entretenimento.

Perceba-se que esta mudança é conseguida apenas com uma readequa-ção na cobrança, para refletir a real identidade um jogo de videogame, uma vez que a isenção de PIS/COFINS prevista pelo PL 899/2011, reduz em apenas R$10,00 (ou aproximadamente 8%) a carga tributária total. A real mudança de paradigma é mesmo o entendimento de games como software, o que o colocaria, em um novo patamar de importância nas políticas públicas de fomento, a informática.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS PARA PARADIGMAS MAIS ABRANGENTES

Hoje poucos jogos de videogame são vendidos ao consumidor final a um valor inferior a R$150,00 (salvo, evidentemente, os mais antigos e de bai-xa procura). Este valor representa um quinto do salario mínimo ora vigente. Segundo os mais recentes dados do DIEESE,16 no binômio 2013/2014, 31% dos trabalhadores serão remunerados por este salário (de aproximadamente R$700,00). Dificilmente um assalariado assim poderia comprar um console (na casa das centenas de reais) ou jogo de videogame. A situação certamente seria diversa caso se praticassem preços mais competitivos. Nos Estados Unidos, onde o salário mínimo federal (os Estados podem ter pisos diferentes devido ao siste-ma federativo lá implantado) é da ordem de R$3000 (USDL, 2013), e um jogo custa aproximadamente R$110,00. Esse montante representa somente 3,5% do total do salario. No Brasil, a porcentagem é de 20%, quase 6 vezes mais do que no exterior, equiparados os poderes de compra. São realidades muito diversas, a toda a evidência. Todavia, demonstra a importância que o Governo americano atribui ao fomento deste mercado.

No Brasil, a situação é bastante caótica e sua tributação beira o confisco. Emblemático foi o caso da chegada do PlayStation 4, console de última geração da Sony, ao país. No mercado americano, o aparelho custava, no lançamento, U$399,00 (hoje já existem pacotes mais econômicos ou com outros benefícios), aproximadamente R$880,00 (no câmbio projetado para 2014, de 2.2 reais por dólar). O mesmo modelo no Brasil, sem qualquer benefício adicional, custa, ainda hoje, R$3.999,00, no mercado oficial (um modelo original, mas descaminhado, pode ser encontrado por R$2.000,00 nos camelos). Em termos estatísticos, isso representa 450% de diferença em relação ao mercado norte-americano, onde o salario mínimo é muito mais elevado e ainda assim o valor do console é con-siderado abusivo. Em termos de economia real, o PlayStation 4 brasileiro é o mais caro da história dos consoles, em todo o mundo. A própria Sony em uma atitude inédita divulgou aos seus consumidores suas reais margens de lucro no console,17 de 20% e dos varejistas (18%), desculpando-se pela carga tributária brasileira de 63% incidente sobr e seu console e seus jogos.

O entendimento vigente na Receita Federal de elevar ainda mais os tributos incidentes sobre os jogos ou de não permitir que estes recebam incentivos fiscais certamente não se coaduna com um dos objetivos fundamentais da República Federativa insculpido já no artigo 3, inciso II, da Constituição Federal:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federa-tiva do Brasil:

II - garantir o desenvolvimento nacional;

Entender que um produto de alto valor agregado e fomentador de novos mercados (como as desenvolvedoras BugWare e Interama Games do Norte/Nordeste do país, regiãos ainda hoje problemática em seus indicadores sociais, mas que já estão inseridas neste novo segmento, sendo até mesmo palco do jogo

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“Cangaço Wars” e outros de temática nordestina) seja tratado como uma mídia menos complexa, fazendo incidir sobre ele gravosa tributação, de forma nenhuma parece colaborar com a construção de um sólido mercado de tecnologia no país.

Completamente contrária a este preceito desenvolvimentista é ainda a dicção da Solução de Consulta n 472, feita a Receita Federal no ano de 2009. O entendimento deste autarquia é de que

Assunto: Imposto sobre a Importação - II

VALOR ADUANEIRO. JOGOS PARA VIDEOGAME

As disposições do art. 81 do Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009, Regulamento Aduaneiro em vigor, não se aplicam para determinação do valor aduaneiro de CDs, DVDs ou outros dispo-sitivos (suportes), contendo jogos para videogame.

Dispositivos Legais: Decreto nº 6.759, de 2009, art. 81; Decisão 4.1 do Comitê da Valoração Aduaneira, divulgada pela IN SRF nº 318, de 2003.

Com este posicionamento administrativo, a Receita Federal veda, de maneira peremptória, o tratamento de jogos de videogame como software, indo diretamente de encontro às tentativas de homogeneização no seu tratamento. Os fundamentos desta resolução, segundo Roque,18 são ainda mais deletérios, pois se baseariam na falsa premissa que os jogos teriam apenas o objetivo de diversão e entretenimento, não devendo, por isso, receber qualquer incentivo.

Ainda que sua função fosse apenas de diversão e entretenimento, lazer, portanto, tal preceito também é amparado pela Constituição Federal, primeiro em seu artigo 6 (Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Consti-tuição), depois em seu artigo 217, parágrafo 3, (§ 3º - O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social).

Todavia, cumpre frisar o importante papel de ensino que os jogos de videogame também desempenham. O uso de jogos educacionais em sala de aula é uma das grandes tendências apontadas pelo relatório americano Horizon Report,19 que trata apenas de novos mecanismos de ensino e aprendizagem. A gameficação foi considerada uma das tecnologias emergentes que deverão se po-pularizar até o final da década. O estudo assinala que, nos próximos três anos, o uso de jogos para estimular o aprendizado de maneira colaborativa e desafiadora será cada vez mais frequente.

Vive-se hoje num mundo virtual, fluído, líquido,20 de compressão de tempo e espaço em pequenos caixotes pretos, que atendem pelo nome de con-soles de videogame. Ali, junto de um roteador sem fio para o acesso a internet, pode-se dispor do mundo: notícias, filmes, músicas, diversão, entretenimento e até mesmo jogos. O foco do Governo Federal tem sido, nos últimos anos, de

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inclusão digital, de fomento ao desenvolvimento do mercado de informática e softwares nacionais, da criação de polos de tecnologia de ponta. Para Rezende21

O acesso às tecnologias da informação e da comunicação, que tam-bém são chamados de inclusão digital, está inteiramente relacionado, no mundo atual, aos direitos fundamentais à informação e à liberda-de de opinião e expressão. A exclusão digital é também considerada uma das muitas formas de manifestação da exclusão social

Os videogames, por mais lúdicos que sejam, tem um impacto signi-ficativo neste desenvolvimento, nesta perspectiva de incluir e socializar as pessoas (haja vista os impressionantes números de jogadores simultâneos nos jogos online, conversando e interagindo em tempo real, com todo o globo), com seu poder de atração de jovens empresas e ideias inovadoras. Note-se que as companhias desenvolvedoras de games são, na maior parte das vezes, micro e pequenas empresas do ramo da tecnologia, também conhecidas como start ups.

Diante desse quadro, é preciso superar preceitos arcaicos e inserir-se em um novo modelo de desenvolvimento digital. Para tanto, entender que a incidên-cia do ICMS e II se dará sobre o valor total do software e não apenas da mídia gravada, fere de maneira clara uma ampla gama de princípios constitucionais (de incentivo as empresas, de promoção do lazer, de integração social e erradicação da pobreza) e escolhas políticas feitas pelo Brasil em prol de seus cidadãos, devendo ser, por isso, completamente revista.

Entender que a cobrança do PIS/COFINS e IPI não pode ser zerada a fim de fomentar um mercado propulsionador da inclusão social e da erradi-cação de desigualdades, dificulta em muito os fins legítimos perseguidos pelo Estado brasileiro em seus dispositivos fundamentais.22 Enfim, entender que jogos de videogame não são a mesma coisa que software, é antes de tudo um erro de lógica aristotélica e, em maior medida, um atraso para o mercado de tecnologia do país.

No século XXI, na pós-modernidade, não basta apenas ser livre. Em um mundo líquido, veloz como um rio, a liberdade pela liberdade apenas leva as pessoas mais rapidamente a um afogamento prematuro. É preciso ir além, é pre-ciso capacitar o cidadão para que exerça as liberdades duramente conquistadas. Uma redução de 50% no preço dos jogos de videogame pode parecer, a primeira, uma “briga de criança”, com tantos outros direitos mais importantes ainda não devidamente garantidos no Brasil. Ousa-se discordar dessa assertiva, com um fundamento bastante simples: a redução da tributação de games é apenas um meio para um fim maior. O fim real pretendido pela medida é levar um pouco de paz, um pouco de lazer, de cultura, para quem tem muito pouco. Num país de praças escassas, de cidades cinzentas e perigosas, em que cada vez mais o eu é um ser solitário diante de uma tela, que apenas passa, é preciso revalorizar a sociabilidade, e esta capacidade os videogames tem de sobra. Eles são veículo de estudo, de recomposição e também de inserção social.

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1 SEBRAE. O panorama e a evolução do mercado de games no Brasil. Disponível em: < http://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae>. Acesso em: 24 fev. 2014.

2 NC GAMES. Mercado de videogame: oportunidades e desafios. Desenvolvimento.org. Disponível em: <www.desenvolvimento.gov.br/arquivos/dwnl_1312828282.pdf‎>. Acesso em: 24 fev. 2014.

3 Ibid. Ademais, vale ressaltar que se utiliza como referência neste artigo o valor da cotação média do dólar em 2014, de R$2,20.

4 GONÇALVES, Oksandro Osdival. Os incentivos tributários na Zona Franca de Manaus e o desequilíbrio concorrencial no setor de refrigerantes. EALR, v.3, n. 1, pp. 72-94, jan/jun, 2012.

5 SUFRAMA. Presidente da Sony confirma a produção do PS3 em Manaus em 2013. Disponível em: <http://www.suframa.gov.br/suf_pub_noticias.cfm?id=13556>. Acesso em: 24 fev. 2014.

6 SINDIRECEITA. Zona franca de Manaus: Xbox 360. Disponível em: <http://sindireceitaamazonas.blogspot.com.br/2011/09/zona-franca-de-manaus-xbox-360-da.html>. Acesso em: 24 fev. 2014.

7 ESTADÃO. Xbox One é lançado no Brasil por R$2.299. Disponível em: < http://blogs.estadao.com.br/link/xbox-one-e-lancado-no-brasil-por-r-2-299/>. Acesso em: 24 fev. 2014.

8 ZAMUDIO, Guillermo Bustamante. Los tres principios de la lógica aristotélica: ¿son del mundo o del hablar?. Disponível em: <http://www.scielo.org.co/pdf/folios/n27/n27a03.pdf>.

Acesso em: 25 fev. 2014.9 COSTA, J.M. Da incidência (ou não) do ISS e do ICMS sobre o software no regime tributário brasileiro.

Revista do Centro Acadêmico Afonso Pena. Disponível em: <www2.direito.ufmg.br/revistadocaap/index.php/revista/article/download/30/29>. Acesso em: 21 fev. 2014.

10 RECEITA FEDERAL. Conceito de IPI. Receita.fazenda.gov.br. Disponível em:<http://www.receita.fazenda.gov.br/pessoajuridica/ipi/conceito.htm>. Acesso em: 05 jun. 2014.

11 ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 192.12 SANTOS, Débora Couto Cançado. O princípio da igualdade tributária e o tratamento favorecido as

microempresas e empresas de pequeno porte. MCampos. Disponível em: < http://www.mcampos.br/

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13 CALIENDO, 2009, apud GONÇALVES, Oksandro Osdival. Os incentivos tributários na Zona Franca de Manaus e o desequilíbrio concorrencial no setor de refrigerantes. EALR, v.3, n. 1, pp. 72-94, jan/jun, 2012.

14 GONÇALVES, Oksandro Osdival. Os incentivos tributários na Zona Franca de Manaus e o desequilíbrio concorrencial no setor de refrigerantes. EALR, v.3, n. 1, pp. 72-94, jan/jun, 2012.

15 COASE, op. cit.16 DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Nota técnica sobre o

valor do salário mínimo em 2014. Disponível em: <http://www.dieese.org.br/notatecnica/2013/notaTec-132SalarioMinimo2014.pdf>. Acesso em: 26 fev. 2014.

17 PCMANIA. O custo do PS4 no Brasil. Disponível em: <http://www.pcmanias.com/o-custo-da-ps4-no--brasil-explicado-mas-muito-mal-explicado/>. Acesso em: 5 jun. 2014.

18 ROQUE, Eduardo B.M. Tributação de videogames na importação. Jornal Valor Econômico. Disponível em: <http://4mail.com.br/artigo/viewfenacon/010173000000000>. Acesso em: 3 jun. 2014.

19 HORIZON REPORT. Higher Education Edition. Austin: The New Media Consortium, 2013. Disponível em: <http://www.nmc.org/pdf/2013-horizon-report-HE.pdf>. Acesso em: 26 fev. 2014.

20 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 201321 REZENDE, Luciano Galdino de Melo. Inclusão digital: um desafio para o Brasil. INF.UFG. Disponível

em: <http://www.inf.ufg.br/espinfedu/sites/www.inf.ufg.br.espinfedu/files/uploads/trabalhos-finais/Artigo%20Luciano%20GaldinoF.pdf>. Acesso em: 26 fev. 2014.

22 SCHMIDT, Albano Francisco; REINERT, Thiago Luís. Os primeiros 30 anos do Fundo de Defesa de Direitos Difusos sob a luz da análise econômica do direito: “contribuintes”, projetos apoiados e novas perspectivas sociais. Revista Argumentum, v. 15, 2014. Disponível em: <http://ojs.unimar.br/index.php/revistaargumentum/article/view/89>. Acesso em: 19 mar. 2015, p. 207.

FOSTERING THE LEGALIT Y AND THE STABIBILITY ON BRAZILIAN VIDEOGAMES MARKET: QUEST FOR THE APPROPRIATE NOMENCLATURE , THE TAX EQUALITY AND THE FAIR PRICE

ABSTRACT

This article analizes the issue of taxation of games and video game consoles in Brazil, in many aspects: the need for nomenclature standardization by public agencies; chain of taxes levied on software import/production in national territory; laws applicable to the case in order to decrease the taxation, the issue of games production in the Manaus Free Trade Zone; the remaining tax obstacles and the possibilities for change in legislation now in force. It seeks a more pragmatic bias in how to reduce high tax applicable today and encourage the fight against gray Market, from smuggling and embezzlement. Finally, it approaches the issue of promoting the digital inclusion of the Brazilian citizens.

Keywords: Development. Taxation. Economic Activity. Economical Analysis of Law. Videogames.

Submetido: 19 mar. 2015Aprovado:14 ago. 2015

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DesconsiDerAção DA personAliDADe JuríDicA: histórico, nAturezA e Aspectos processuAis

Arthur Maximus Monteiro*

1. Desconsideração da personalidade jurídica. 1.1 Considerações preliminares e justificação temática. 1.2 Personalidade jurídica e limitação de responsabi-lidade. 1.3 O caso Salomon X Salomon Co. 1.4 Definição e natureza jurídica. 1.5 Histórico da desconsideração no Brasil. 1.6 Desconsideração no Novo Código Civil. 2. Aspectos processuais da desconsideração. 2.1 Efetividade x Devido Processo Legal. 2.2 Momento Processual para a Desconsideração. 2.3 O incidente de desconsideração no novo CPC: solução definitiva ou novos problemas? 3. Conclusão. Referências.

RESUMO

A desconsideração da personalidade jurídica é tema controverso na comunidade jurídica, desde sua concepção, na Inglaterra da common law. Trazida para o Brasil, sua aplicação a casos práti-cos tem despertado severas discussões acerca de como ela deve ser implementada em violar os direitos do devedor. Ausente no Código de Processo Civil de 1973, a desconsideração agora é tratada em capítulo específico na nova legislação processual. Não se sabe, contudo, se o novo incidente de desconsideração trará maiores soluções ou problemas.

Palavras-chave: Direito Civil. Processo Civil. Desconsideração da Personalidade Jurídica.

1 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

1.1 Considerações preliminares e justificação temática

Aaron Salomon, pacato cidadão do interior da Inglaterra, era um eminen-te sapateiro. Como quisesse desenvolver seu ofício, achou por bem criar uma sociedade. Deu-lhe o nome de Salomon Company.

O capital da Salomon Company foi integralizado da seguinte forma: 20.000 quotas foram entregues a Salomon, que as integralizou com a entrega de seu fundo de comércio, e 5 cotas foram repartidas entre sua mulher e seus quatro filhos.

Mas isso não era tudo. A Salomon Company, ao receber o fundo de comércio de Mr. Salomon, ainda ficou a lhe dever muitas libras, sobre as quais,

* Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas e mestre em Direitos Fundamentais pela Facul-dade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Direito Processual Civil pela UECE/FESAC. E-mail: [email protected]

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graciosamente, recaía garantia real. Salomon, portanto, tornou-se credor com garantia real da própria sociedade que criara.

Por algum tempo, a Salomon Co. prosperou, no entanto, os tempos difíceis chegaram, levando a sociedade à bancarrota. Decretada sua falência, apurou-se que, dentre os credores da companhia, todos eram quirografários, exceto um: Salomon, o sócio, o criador da companhia, cuja garantia real permanecia intacta desde a constituição da sociedade.

No interesse dos demais credores, o síndico explanou a situação ao juiz da falência. Atento à patente confusão patrimonial entre Salomon Co. e Salomon, o magistrado resolveu “desconsiderar a personalidade jurídica” da sociedade e permitir que os demais credores executassem Salomon, pessoa física, pelas dívidas da sociedade.

E assim nasceu a “Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica”.

Em nosso país, não se trata propriamente de um tema novo. Rubens Requião, eminente comercialista nacional, trouxe ao Brasil os novos ventos que já atravessavam a Europa há aproximadamente meio século. Os pretórios nacionais passaram a aplicar essa teoria com fervor, e, com tempo, também a doutrina abraçou a causa.

Restava, contudo, a positivação da matéria.

O Código de Defesa do Consumidor inovou em nosso ordenamento, tra-zendo, pela primeira vez, uma previsão legal expressa de desconsideração da perso-nalidade jurídica (art. 28). Trata-se, todavia, de um texto confuso, que, interpretado literalmente, permite a conclusão de que, em relações de consumo, simplesmente não existe separação entre o patrimônio de sócios e o da pessoa jurídica.

Tardaram 13 anos, e o Novo Código Civil consolidou definitivamente a questão, em seu artigo 50.

Todavia, nem o Código do Consumidor nem o Novo Código Civil cuida-ram da disciplinar a questão processual desse instituto. De que forma deve ser desconsiderada a personalidade jurídica? Qual o momento processual oportuno para aplicação do instituto?

Nada há na lei, e a doutrina pouco atentou para a questão.

O tema é atualíssimo. Vivendo uma reforma processual dirigida sob o signo da “Efetividade”, a comunidade jurídica vê a desconsideração da personalidade jurídica com igual júbilo e receio. De um lado, os que a veem como poderoso instrumento para garantir ao jurisdicionado a satisfação de seu direito; do outro, os que se entrincheiram nas barricadas de antigos dogmas jurídicos, apreensivos com os riscos do desvio desse imenso poder posto à disposição do juiz.

É verdade que a aplicação da disregard doctrine em casos práticos permitiu coibir os abusos que eram praticados sob o manto da pessoa jurídica, atingindo

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o patrimônio dos sócios que abusavam do direito de personalidade. Todavia, a questão é saber como compatibilizar contraditório e ampla defesa com a efeti-vidade do processo. Mais que isso. A questão não é o que fazer, mas como fazer.

Essas questões forem objeto de estudo pelo autor em três oportunidades: nos encontros Universitários da Universidade Federal do Ceará, em 2002; e na elaboração de trabalho monográfico como requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito pela mesma UFC, sob a orientação do Prof. Dr. João Luis Nogueira Matias. Neste último, que tratava especificamente sobre a nova Socie-dade por Quotas de Responsabilidade Limitada, o estudo da desconsideração da personalidade jurídica deveria constituir apêndice da monografia. Contudo, a escassez de tempo e a amplitude e riqueza do tema foram decisivos para aban-donar essa idéia. Posteriormente, aquilo que nascera como apêndice tornou-se objeto principal de estudo da monografia de pós-graduação em Direito Processual Civil oferecida pela Universidade Estadual do Ceará – UECE em convênio com a Fundação Escola Superior de Advocacia do Ceará – FESAC, sob orientação do Prof. Dr. Juvêncio Vasconcelos Viana.

Já nesta última oportunidade, defendíamos que a legislação processual então vigente tornava impossível a concretização da desconsideração da per-sonalidade jurídica sem colocar em xeque a sistemática idealizada por Alfredo Buzaid (Conhecimento – Cautelar – Execução) e também os direitos do devedor ao contraditório e à ampla defesa. Era necessária uma alteração legislativa que introduzisse um incidente processual destinado a contemplar, processualmente, a desconsideração da personalidade jurídica.

Atento a essa problemática, o legislador pátrio fez introduzir no anteprojeto do novo Código de Processo Civil um incidente processual específico para tratar da matéria. Sem embargo de constituir verdadeira inovação na nossa sistemática processual, o incidente – tal qual estruturado no anteprojeto do novo CPC – deixa ainda em aberto algumas questões fundamentais. Faz-se, necessário, portanto, examiná-lo acuradamente e tentar identificar onde o legislador avançou e onde poderia ter avançado mais.

1.2 Personalidade jurídica e limitação de responsabilidade

Em princípio, é verdade que a personificação é fenômeno que dota uma coletividade (ou uma vontade individual, no caso das fundações ou das socie-dades unipessoais) de personalidade. A pessoa jurídica, uma vez constituída, adquire personalidade própria, agindo na qualidade de sujeito de direitos, sendo autônoma em relação aos seus sócios e dotada de subjetivismo semelhante ao das pessoas físicas.

Os pilares fundamentais da Teoria da Pessoa Jurídica foram-nos legados pelos romanos. No entanto, a personificação, de per si, não trazia muitos bene-fícios: os sócios permaneciam responsáveis pelas dívidas da sociedade, ainda que subsidiariamente. Era necessário “purificar” o instituto, ou seja, fazer que

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efetivamente as dívidas da sociedade fossem exclusivamente da sociedade, e não pudessem ser repassadas aos seus sócios, mesmo em caso de quebras.

Foi nesse contexto que os bretões criaram as chamadas private companies, por volta de meado do século XIX. Por sua sistemática, uma vez integralizado o capital da companhia, não subsistiria aos seus sócios qualquer forma de respon-sabilidade pelas dívidas da pessoa jurídica, nem mesmo subsidiária. Posterior-mente, essa inovação foi positivada na Alemanha sob a alcunha de Gesselschaft mit bechränkter Haftung1.

Desde então, personalidade jurídica e limitação de responsabilidade caminharam juntas. Evidentemente, a prodigalidade da mente humana para subterfúgios cuidou de deturpar esse instituto. Não raro, pessoas jurídicas eram soerguidas somente para encobrir a responsabilidade de um comerciante indivi-dual, com o firme propósito de lesar o direito de crédito de terceiros de boa-fé.

Criou-se, portanto, um ponto de inflexão no sistema: a sociedade em geral não aceitava mais a realidade tal qual posta pela ordem jurídica. De que serve o ordenamento se se nega ao detentor de um crédito a satisfação de seu direito simplesmente por que o devedor constituiu regularmente uma sociedade?

E foi na nesse contexto, na Inglaterra revirada pela revolução industrial, que surgiu a chamada disregard doctrine.

1.3 O caso Salomon X Salomon Co.

Como seria de se esperar, somente em um país no qual vigorasse o siste-ma do common law seria possível avançar além das fronteiras da pessoa jurídica. Sabe-se que, nessa espécie de sistema jurídica, os juízes não exercem unicamente função jurisdicional, mas também uma função normativa, “legislando” a partir de casos concretos, os quais servirão de parâmetro para o julgamento de conflitos de interesses semelhantes.

No célebre caso Salomon x Salomon Co., verdadeiro leading case da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, Aaron Salomon, sapateiro, cons-tituíra uma private company cujo objeto coincidia com seu ofício. O capital dessa sociedade foi integralizado com o fundo de comércio de Aaron Salomon, que detinha 20.000 quotas da sociedade, e sua mulher e seus quatro filhos detinham, cada um, uma única quota.

Na sua constituição, a Salomon Co. contraiu perante Aaron Salomon uma “dívida”, sobre a qual recaía a garantia real de todo o patrimônio da sociedade. Ao quebrar, o síndico falimentar notou que todos os credores da Salomon Co. eram quirografários, exceto um: Aaron Salomon, gerente da sociedade, seu mentor, seu criador.

Sob a análise fria da lei, pouco se podia fazer: na par conditio creditorum, a ordem legal de preferências determina que o crédito com garantia real prefere ao

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quirografário. Portanto, Aaron Salomon, que criou, tocou e, ao final, quebrou a Salomon Co., seria o único credor a receber algum dinheiro da sociedade que falira.

Tanto o síndico como o juiz da falência viram-se diante de um dilema: aplicar a letra fria da lei e garantir ao comerciante de má-fé o sucesso em seu ardil; ou, indo além da letra da lei, impedir a consumação de uma injustiça, determinando que o patrimônio de Aaron Salomon respondesse pelas dívidas da sociedade2.

Sem pestanejar, o liquidante da Salomon Co. propôs demanda em face de Aaron Salomon, para que este respondesse pelas dívidas da sociedade. O fundamento dessa demanda, evidentemente, era a confusão patrimonial havida entre criador e criatura, pessoa física e pessoa jurídica.

Proposta a ação, seu pedido foi julgado procedente em primeira instância – High Court – e em segunda, pela Court of Appeal. Estava, então, estabelecido o precedente jurisprudencial da desconsideração. Entretanto, Salomon recorreu à Earls Court (Câmara dos Lordes, instância judiciária máxima da Grã-Bretanha). Em 1897, Salomon conseguiu reverter as decisões anteriores e livrar-se da exe-cução das dívidas societárias. Ao final, prevaleceu o dogma de que universitas distat a singulis.

Certamente foi um mal essa reforma. Como bem aponta FREITAS3, a reversão do julgamento de primeiro grau no caso Salomon x Salomon Co. re-percutiu de forma bastante negativa na utilização da disregard doctrine. Tínhamos, verdadeiramente, um precedente às avessas, pois a decisão que ao final prevalecera fora a de total respeito à separação patrimonial entre sócio e pessoa jurídica.

Doutrinariamente, as bases científicas para o estabelecimento da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica foram definidas pelo Prof. ROLF SERICK, da Universidade de Heilberg, Alemanha. Em seu trabalho Rechtsform und realität juristicher personen: Ein rechtsvergleichender bertray zur frage das durchgriffs aus die personen oder gegestande hinter der juristichen personen4, ROLF SERICK de-fendeu que, em certos casos, a estrutura jurídica da pessoa jurídica colocava-se como empecilho à efetivação de um direito subjetivo, sendo necessário ir além da forma pura e simples e alcançar o patrimônio de seus membros, que dela se valeram para alcançar fins escusos. O estudo de ROLF SERICK ganha relevo ainda maior quando se considera ter sido ele o primeiro a defender tal teoria em um país que adotasse o sistema do civil law.

Uma vez estabelecidos os fundamentos teóricos da desconsideração, era apenas questão de tempo para que essa teoria se espalhasse mundo afora.

1.4 Definição e natureza jurídica

Explicado o surgimento da desconsideração, necessário faz-se estabelecer sua natureza jurídica, para que melhor possamos entender o instituto.

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Atentando ao objeto de nosso estudo, procuraremos diferenciar a des-consideração de alguns institutos semelhantes, como a fraude contra credores e a fraude à execução, hipóteses a tangenciar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

Na fraude contra credores, há um ato de diposição patrimonial cujo objetivo é reduzir a solvência do devedor de modo a prejudicar os credores5. Pretende-se, com isso, reduzir as garantias que os credores teriam para execu-ção forçada de dívidas não pagas, garantias estas que são representadas pelo patrimônio do devedor6. Os casos mais comuns dessa prática equivalem a atos de transmissão gratuita de bens ou de remissão de dívidas e o pagamento antecipado de dívidas vincendas.

A fraude contra credores, portanto, constitui um expediente pelo qual o devedor dilapida seu próprio patrimônio a fim de salvaguardá-lo de futuras ações judiciais. Por meio de ação própria, denominada ação pauliana ou revocatória, é possível invalidar o ato praticado em prejuízo do credor, fazendo que o bem alienado volte a integrar o patrimônio do devedor.

Um exemplo formulado por Rubens Requião elucida bem a questão: imagine-se o caso de uma doação de bens feita pelos pais a uma determinada sociedade, do qual são sócios o pai e alguns de seus filhos, excluindo deliberada-mente parte de sua prole. Fá-lo o pai na evidente intenção de fraudar a legítima, pois está a transferir bens de sua propriedade para uma pessoa jurídica, de modo a que não fique caracterizado o adiantamento de herança7.

Nesse caso, constata-se que os prejudicados não possuem situação jurídi-ca de credores, embora tenham sido lesados por meio de fraude com o uso do expediente da autonomia patrimonial da pessoa jurídica.

Essa hipótese afasta por completo aplicação da doutrina da desconsideração.

Na mesma linha da fraude contra credores, costuma-se confundir descon-sideração da personalidade jurídica fraude à execução. Não há razão, contudo, para confundir um e outro instituto.

O grande traço distintitivo da fraude à execução em relação à fraude con-tra credores é que aquela “tem por pressuposto que, ao tempo da alienação, ou da oneração, se tenha iniciado o processo condenatório ou executório contra o devedor” 8. Assim, enquanto na fraude contra credores os atos dilapidatórios do patrimônio precedem uma ação judicial movida contra o devedor, na fraude à execução tais atos têm lugar com uma ação já em curso. Por isso mesmo, tem-se como presumida a intenção de fraude do devedor, e, desse modo, dispensa-se o credor da prova de tal intenção9.

Outro traço distintivo entre fraude contra credores e fraude à execução diz respeito aos efeitos que uma e outra operam em relação aos atos de disposição patrimonial praticados pelo devedor. Enquanto na primeira busca-se a invalidade (campo da validade) do ato de alienação, invalidade esta a depender de sentença

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judicial nesse sentido, na fraude à execução, o ato de alienação é simplesmente ineficaz (campo da eficácia), razão pela qual resolve-se no mesmo processo por decisão interlocutória.

Explicitadas as diferenças entre fraude contra credores e fraude à execução, fica evidente que a desconsideração da personalidade jurídica não se confunde com os referidos institutos. A sistemática de invalidação do ato praticado em fraude contra credores obriga que a atividade fraudulenta seja posterior à cons-tituição do débito, mas anterior à propositura da ação. A fraude à execução, por sua vez, limita-se aos casos em que a dilapidação do patrimônio dá-se depois de proposta a demanda, mas é inócua para atingir atos anteriores. Por seu turno, a teoria da desconsideração prescinde de quaisquer desses requisitos. Basta que o juiz, penetrando na pessoa jurídica, descubra que existem atos que, embora apa-rentemente legais, servem unicamente em benefício do controlador da sociedade, em prejuízo de seus credores. Nesse caso, afastam-se as regras de personalidade, e o controlador passará a responder pelas obrigações societárias.

Em oportunidades anteriores, sustentamos que a desconsideração seria uma declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum. Do confronto entre a autonomia patrimonial – com fundamento na individualização das penas (art. 5º, inc. XLV, da CF/88) – e o direito do credor – com fundamento na efetividade do processo (art. 5º, inc. XXXV, da Constituição) –, prevaleceria a efetividade do processo. Nessa linha, o juiz declararia incidentalmente a inconstitucionalidade das normas de personificação, afastando-as para determinar que o administrador escuso respondesse pelas dívidas da sociedade.

Todavia, como tudo no mundo jurídico, os conceitos variam no tempo e no espaço. A positivação da desconsideração no CDC e no Novo Código Civil enterram, no nosso sentir, a possibilidade de afirmarmos, com absoluta precisão, que a desconsideração é uma espécie de declaração de inconstitucionalidade incidental. O regramento em lei federal espanta essa possibilidade, fulminando, inclusive, a discussão de tal decisão em sede de recurso extraordinário – o que seria razoável, dada a análise de preceito jurídico à luz da Lei Maior.

Dessa forma, rendemo-nos à lição de JUSTEN FILHO, para quem a na-tureza jurídica da desconsideração é a de uma “declaração incidental e episódica de ineficácia das normas de personificação”10.

Mas o que se entende por “ineficácia”?

Sabemos que o mundo jurídico distingue os atos em três planos: existência, validade e eficácia. Essas três dimensões relacionam-se, mas não se confundem.

Em suma, podemos dizer que a existência deriva da materialização de um ato e da incidência de uma norma jurídica sobre ele. A validade situa-se em um plano seguinte. Deriva da compatibilidade entre esse ato (existente) e uma previsão normativa abstrata consagrada pelo ordenamento. Por último, a eficácia consiste na aptidão que o ato tem para produzir os efeitos que dele se espera11.

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Não há, sobremaneira, correlação intrínseca entre validade e eficácia. Em regra, esta depende daquela, e aquela traz esta consigo. Contudo, não é raro encontrar casos em que a eficácia se encontra completamente dissociada da validade. Tome-se, como exemplo, uma criança de 5 anos que compra uma revista na banca de jornal. O ato existe; a compra e venda se efetua, e sobre ela incidem as normas gerais desse tipo de contrato previstas no ordenamento. O ato é inválido, visto ser praticado por agente absolutamente incapaz. Entretanto, a compra e venda é totalmente eficaz: o dono da banca recebe o preço, e a criança leva a mercadoria, ou seja, toda a cadeia de efeitos esperada de um contrato de compra e venda é perfectibilizada, mesmo inquinada de nulidade absoluta.

Diante disso, não é esforço hercúleo concluirmos que a desconsideração não se situa no plano de validade dos atos que constituíram a sociedade. Estes foram e são perfeitos. A desconsideração não os atinge; apenas restringe a eficácia das normas de personificação, afastando-as em um determinado caso, sobre uma determinada obrigação. É, em resumo, uma declaração de ineficácia stricto sensu12.

Concluímos, assim como concluíra JUSTEN FILHO, que a natureza jurídica da desconsideração da personalidade jurídica é o afastamento, em casos concretos, dos efeitos da limitação da responsabilidade reconhecida a uma pessoa jurídica, de maneira a evitar-se resultado ilícito dessa limitação13.

1.5 Histórico da desconsideração no Brasil

Como dissemos anteriormente, uma vez lançadas suas bases científicas, a disregard doctrine correu o mundo. Primeiramente, nos países de common law. Depois, nos de civil law. Com algum atraso, esses novos ventos chegaram ao nosso país, e responsável por isso foi o Prof. Rubens Requião.

Em palestra realizada na Universidade Federal do Paraná, nos idos de 1950, REQUIÃO sintetizou os precedentes jurisprudenciais estrangeiros e a doutrina alienígena para defender a necessidade de adoção dessa Teoria no Brasil. Desde então, o tema passou a ser objeto de estudo por diversos doutrinadores14.

No entanto, restava a positivação da matéria. E ela veio com o Código de Defesa do Consumidor.

Apesar da resistência de alguns doutrinadores15 e juízes16 no país, a defender que o Código Tributário Nacional fora o precursor da disregard doctrine no país, foi no Código de Defesa do Consumidor que se positivou, pela primeira vez, a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica em nosso ordenamento.

Em verdade, normas contidas no Código Tributário Nacional não es-tabelecem nem tem qualquer relação com desconsideração da personalidade jurídica. Com efeito, as normas dispostas no CTN estabelecem responsabilidade solidária dos administradores; não cuidam, sobremaneira, de desconsideração da personalidade jurídica. Essa imputação de responsabilidade, embora extraor-dinária tal qual a desconsideração, decorre necessariamente de violação à lei ou

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ao contrato social. Mais que isso. Sendo norma instituidora de solidariedade, a pessoa jurídica permanece incólume. O único efeito dessa imputação reside da possibilidade de o fisco buscar seu crédito diretamente ao sócio ou à pessoa jurídica, à sua escolha17.

A prevalecer a idéia de que as normas instituidoras de responsabilidade tributária do CTN seriam sinônimo de desconsideração da personalidade jurí-dica, forçoso seria reconhecer que assim também o seriam as normas da Lei de Sociedades Anônimas18. Da mesma forma, também o seria a já revogada norma que cuidava do abuso do sócio-gerente da Limitada.19

Em verdade, conforme já salientamos alhures, a desconsideração pres-supõe uma fraude – digamos – intra legem, e não contra legem. O usurpador da função da pessoa jurídica vale-se precisamente das normas que a regulam para escapar a qualquer responsabilidade. Nela, não existem atos contra a lei ou contra o estatuto social, mas antes a lei lhe serve de escudo. Todos os atos praticados por si e pela sociedade são aparentemente legais. É em sua essência subjetiva que reside a ilegalidade. E é precisamente para ultrapassar os limites da lei que a desconsideração se mostra útil. Não há porque confundir, portanto, os dois institutos.

1.6 A Desconsideração no Novo Código Civil.

Como se sabe, o projeto do atual Código Civil foi elaborado por Miguel Reale, e tramitou no Congresso Nacional por bastantes anos até sua aprovação e sanção.

A despeito das críticas gerais que fizemos ao novo Codex em trabalho anterior20, a desconsideração mereceu dele especial esmero e apuro técnico. Ela vem tratada no artigo 50 do Novo Código Civil21.

Desde logo, é possível perceber a superioridade técnica dessa redação à do Código de Defesa do Consumidor. Ressurgem os preceitos técnicos da confusão patrimonial e do abuso de direito. E mais. A desconsideração permite apenas que “os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações” atinjam o patrimônio dos administradores ou dos sócios. Resguarda-se, portanto, o instituto da pessoa jurídica, caracterizando a desconsideração como medida excepcional.

Tanto apuro técnico não foi fruto do acaso. A redação inicialmente afirma-va que “a pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram a sua constituição para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos”. No entanto, segundo essa proposta, nesses casos, caberia “ao juiz, a requerimento do lesado, ou do Ministério Público, decretar-lhe a dissolução”22.

Essa proposta de normatização da teoria da desconsideração, como não poderia deixar de ser, foi alvo de várias e severas críticas por parte de nossos doutrinadores. A principal crítica que se lhe fazia dizia respeito à necessidade de dissolução da sociedade para efetuar-se a desconsideração, ignorando que

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esta nada mais é senão uma ineficácia temporária e episódica das normas de limitação da responsabilidade.

Inconformado com o rumo que estava sendo seguido por um tema que lhe era tão caro, Rubens Requião apresentou outra proposta de redação. Segundo essa proposta, “a pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram a sua constituição, para servir de instrumento ou cobertura à pratica de atos ilícitos ou abusivos de sócio”. Pela proposta de Rubens Requião, a desconsideração só se efetivaria “a pedido do credor do sócio”23.

Essa proposta de solução trazia consigo um problema: limitava a desconsi-deração aos casos de credores particulares dos sócios. Outras hipóteses igualmente relevantes, como o da própria sociedade contra o sócio, não seriam contempladas.

Coube ao senador Josaphat Marinho apresentar a redação ao artigo 50 do Projeto tal como hoje o conhecemos. O texto apresentado pelo falecido senador baiano restabeleceu os preceitos fundamentais da disregard doctrine. Primeiramente, a redação atual deixa evidente que a desconsideração é medida excepcional, a ser utilizada segundo o prudente juízo do magistrado. Além disso, situa-se a desconside-ração – corretamente – no plano da eficácia, seguindo o entendimento da melhor doutrina sobre a questão. Por fim, possibilita-se a atribuição de responsabilidade não só aos sócios, como também aos administradores, conforme for o caso.

Com a positivação da matéria no Código Civil, naturalmente de abran-gência ampla, a Teoria da Desconsideração pode ser utilizada nos mais diversos ramos do Direito. Embora o juiz pudesse anteriormente valer-se das normas constitucionais24, ou, ainda, de uma questionável analogia com a disposição legislativa do CDC, o novo Codex consagrou definitivamente a disregard doctrine em nosso ordenamento.

A questão, contudo, não é o que fazer, mas como fazer. A essa pergunta muitos continuam a buscar uma resposta. Quais são as hipóteses de solução? É algo a ser tratado no próximo capítulo.

2 ASPECTOS PROCESSUAIS DA DESCONSIDERAÇÃO

2.1 Efetividade x Devido Processo Legal

Estabelecidas as premissas lógicas de nosso trabalho, podemos passar ao estudo dos aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica.

Pelo visto no capítulo anterior, não é difícil concluir que a desconsideração é filha da efetividade do processo. Trata-se de instrumento posto à disposição do Poder Judiciário para, nos casos em que assim o reclamam, remover a personali-dade quando esta constitua óbice à efetivação do direito do credor.

A questão que se coloca hoje é saber como os princípios e as garantias constitucionais do processo civil podem garantir uma efetiva tutela jurisdicio-

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nal aos cidadãos, ou seja, não é o bastante apenas justificar esses princípios e garantias no campo doutrinário. O importante hoje é a realização dos direitos fundamentais e não o seu mero reconhecimento legislativo (positivo).

MOREIRA sintetiza a problemática da efetividade no fato de que “em toda a extensão da possibilidade prática, o resultado do processo há de ser tal que assegure à parte vitoriosa o gozo pleno da específica utilidade a que faz jus segundo o ordenamento”25.

Afinal, de que adiantaria ao credor possuir um título executivo – judicial ou extrajudicial – e não poder satisfazê-lo em virtude da autonomia existente entre pessoa jurídica e seus administradores ou sócios?

A desconsideração é a resposta para essa pergunta. Afastam-se as normas instituidoras da personificação para alcançar o patrimônio individual dos sócios e, assim, satisfazer o direito do jurisdicionado26.

Que a positivação da desconsideração da personalidade jurídica está umbi-licalmente ligada à efetividade do processo, não há qualquer dúvida. No entanto, como desconsiderar a personalidade jurídica sem violar o devido processo legal?

Esse princípio constitucional, baluarte do chamado “Estado Democrático de Direito”, dirige toda a atividade estatal no sentido de respeito absoluto aos direitos individuais. O cidadão não pode sofrer qualquer constrangimento em seu patrimônio jurídico – seja ela material ou imaterial – sem que antes exista um procedimento previsto em lei em que lhe sejam assegurados: a) ciência da demanda que lhe pode atingir; b) oportunidade de defender-se dessa pretensão.

O Constituinte de 1988 alçou essa garantia à condição de direito fun-damental27 do indivíduo justamente para impedir arbitrariedades e abusos tão rotineiramente praticados no período do autoritarismo militar. Visou-se, preci-puamente, a impedir que cidadãos comuns fossem transformados em indefesos Joseph’s K., submetidos (e condenados) em um processo sem que lhes fosse assegurado o direito a saber sequer de que eram acusados.

E não basta um simples processo formal. São corolários necessários e indispensáveis a esse devido processo legal o direito ao contraditório e à ampla defesa, a serem exercidos de modo efetivo e eficiente. Eis aquilo que a moderna doutrina convencionou chamar de devido processo legal substancial28.

Sem dúvida, o resultado é fundamental para termos um processo que atenda às demandas do jurisdicionado. No entanto, a dualidade de partes im-põe a paridade de armas. A efetividade do processo não pode, sobremaneira, ser vista unicamente sob a ótica do credor. Em sentido lato, efetividade não é sinônimo somente de resultado. Significa também que as normas processuais – inclusive as garantias da ampla defesa e do contraditório, de matriz constitu-cional – tenham lugar assegurado no procedimento, tornando efetivos aqueles preceitos constitucionais29.

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Eis, portanto, o principal dilema que aflige os estudiosos da desconside-ração. Deve-se atender ao direito do credor sem, no entanto, violar os direito fundamentais do devedor30. Como fazê-lo?

2.2 Momento Processual para a Desconsideração

Conforme dito anteriormente, a lei processual civil cala quando o assunto é o processamento da desconsideração da personalidade jurídica. Como operá--la atendendo à necessidade de efetividade movida pelo credor, sem, contudo, atropelar os direitos de ampla defesa e contraditório do devedor?

A resposta a essa questão reside, basicamente, no momento processual em que deve se pedir a desconsideração. Decidido o tempo, passa-se à escolha do meio adequado para efetivá-la.

Antes da reforma promovida pela Lei nº. 11.232/2005, havia fundamen-talmente três posicionamentos na doutrina.

A primeira corrente processualista da desconsideração sustentava que o credor, ao propor a ação, deveria chamar os sócios e/ou administradores da empresa para compor o polo passivo da demanda. Estes figurariam como litis-consortes facultativos31.

Esse posicionamento era inválido porque, em princípio, não responde – ou antes simplesmente afasta – a possibilidade de desconsideração da persona-lidade jurídica com fundamento em título executivo extrajudicial, limitando-se a descrevê-la como possível quando o título for judicial. Por ilação lógica, pen-samos que os que defendiam tal corrente sustentariam que a desconsideração da personalidade jurídica com fundamento em título executivo extrajudicial dependeria da propositura de outra demanda, de rito ordinário, pelo credor, a fim de possibilitar a incidência dos efeitos da execução sobre o patrimônio dos sócios e/ou administradores. Esse caminho processual, todavia, vai de encontro à efetividade inata à idéia da desconsideração, pois impõe uma verdadeira via crucis processual ao exequente.

Na verdade, não se poderia cogitar de litisconsórcio porque, segundo a melhor doutrina, este consiste no “fenômeno de pluralidade de pessoas, em um só ou em ambos os pólos conflitantes da relação jurídica processual”32. Existem diversas qualificações para esse instituto33. No momento, interessa-nos somente a distinção entre litisconsórcio necessário e facultativo.

Necessário é o litisconsórcio que demanda pluralidade de pessoas em um determinado polo da demanda, seja por disposição de lei, seja pela natureza da relação jurídica que as une. Seu fundamento é o art. 47 do Código de Processo Civil34. Exemplo recorrente de litisconsórcio necessário é o da usucapião. Não somente o proprietário deve figurar no polo passivo da demanda, mas também, necessariamente, todos os confinantes do imóvel. Embora a sentença não seja necessariamente uniforme para todos eles (litisconsórcio simples), a eficácia da

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decisão depende da regular formação processual com todos os litisconsortes. Sem isso, a sentença proferida será inuttiler data, ou seja, de nenhum valor, nem mesmo para o réu-proprietário devidamente citado.

Chama-se facultativo o litisconsórcio quando a lei não obriga, de forma alguma, a reunião de pessoas em um polo da relação processual. O fundamento legal é o art. 46 do CPC35; o axiológico, o princípio da economia processual.

Pela redação do citado art. 46 da Lei Processual Civil, verifica-se que, para a formação do litisconsórcio facultativo, é crucial a existência de um ponto comum de direito ou de fato entre as pessoas que figurarão como litisconsortes – seja ele hipótese de conexão, continência, ou simples identidade de causas de pedir ou de pedidos. No nosso sentir, nenhuma dessas hipóteses acode aos defensores da corrente que defende a desconsideração em sede de procedimento ordinário.

Com efeito, no ato de propositura da ação, a relação jurídica que une autor e réu somente subsiste entre o sedizente credor e a pessoa jurídica. Não há, em princípio, qualquer relação de direito entre o credor e os sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. Pensar o contrário seria negar o princípio basilar de autonomia dos atos da pessoa jurídica em face de seus sócios e/ou administradores.

Para melhor ilustrar o raciocínio, vejamos o seguinte exemplo: um con-sumidor compra um determinado produto farmacêutico e, em virtude de equí-vocos na elaboração de sua fórmula, o remédio provoca efeitos colaterais não previstos na bula. Nesse caso, é evidente que o consumidor do medicamento pode demandar em face da empresa farmacêutica. Todavia, onde se encontra a afinidade de fundamentos para, initio littis, o autor requerer a desconsideração da personalidade jurídica e atingir o patrimônio dos sócios e/ou administradores cumulada com a condenação da empresa farmacêutica?

Em lugar algum.

O consumidor tem direito a ser indenizado nas perdas e danos sofridos pela culpa da pessoa jurídica. A relação que legitima os interesses de parte a parte, nesse caso, restringe-se à pessoa física do destinatário final e a pessoa jurídica da indústria farmacêutica. Qual o elo jurídico entre o consumidor e o sócio ou o administrador da empresa?

Nenhum.

O fundamento – ou causa petendi – do pedido indenizatório são as normas de responsabilidade dispostas no Código de Defesa do Consumidor. A causa de pedir da desconsideração seria um suposto abuso de direito ou confusão patrimonial entre os sócios e/ou administradores e a pessoa jurídica. Onde está a afinidade entre ambas?

O pedido da demanda indenizatória é o de condenar a empresa farmacêu-tica em perdas e danos. Já o pedido da desconsideração (declaratório) consiste no

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afastamento das normas de limitação de responsabilidade, e a imputação da respon-sabilidade pelas obrigações aos sócios e/ou administradores. Há ligação entre eles?

Não.

Como se vê, as causas de pedir, os pedidos e a própria relação jurídica que embasa o pedido de condenação em perdas e danos e a desconsideração da personalidade jurídica são diversos entre si. Não há qualquer identidade a albergar a hipótese de litisconsórcio facultativo.

Além disso, a própria diversidade de situações deporia contra a economia processual, pressuposto elementar do litisconsórcio facultativo. Como supor que, em uma mesma demanda, discutíssemos responsabilidade civil e, simultaneamen-te, a existência de uma das hipóteses autorizadoras da desconsideração? Não é esforço hercúleo concluir que a discussão acerca da desconsideração, além de ser estranha à demanda indenizatória em si, atravancaria o andamento do processo.

E vamos além. Não somente não é possível estabelecer litisconsórcio facultativo entre pessoa jurídica como, se assim for feito, fatalmente o processo deverá ser extinto em relação aos sócios e/ou administradores por ilegitimidade passiva ad causam.

Tal condição da ação, segundo a melhor doutrina, implica o ônus para o au-tor de, a cada caso concreto, quando da propositura de sua ação, localizar sempre quem são aqueles que devem figurar nos polos ativo e passivo, respectivamente, da relação processual a se formar36. Em relação ao réu, sua legitimatio ad causam somente se manifestará quando ele “seja titular da obrigação correspondente”37.

Ora, se a “obrigação correspondente” à relação jurídica, no exemplo men-cionado, é unicamente entre consumidor e empresa farmacêutica, como supor legitimidade passiva ad causam de seus sócios e/ou administradores?

Na verdade, “a despersonalização da pessoa jurídica é efeito da ação contra ela proposta; o credor não pode, previamente, despersonalizá-la, endereçando a ação contra os sócios”38.

Entendemos, portanto, que não há identidade de partes, nem afinidade de causa de pedir ou de pedido, pressupostos específicos para entender possível a formação de litisconsórcio passivo facultativo inicial.

Outra hipótese então considerada seria a desconsideração no saneamento do processo39.

Assim como na hipótese anterior, os que defendiam essa posição não expli-cam satisfatoriamente como proceder à desconsideração quando seu fundamento for um título executivo extrajudicial. Além disso, diversas regras processuais basilares deveriam ser subvertidas para podermos dar guarida a essa tese.

Em princípio, teríamos que desconsiderar o princípio da estabilidade subjetiva da lide, estabelecido no art. 264 da Lei de Rito Civil40. Com efeito, uma

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vez realizada a citação, o autor não pode alterar o objeto da demanda (pedido) nem seu fundamento (causa de pedir), sem que com isso o réu assinta. É o que chamamos de estabilidade objetiva da lide. Todavia, mesmo nos casos em que o demandado concorde com a alteração do panorama objetivo da ação, é vedada a inclusão de novas pessoas no processo, salvo, obviamente, as exceções legais41.

E essa vedação não é destinada somente às partes. Ao juiz também é vedado incluir ex officio novas pessoas no feito, não só porque não o permite o art. 264 do CPC, mas como, agindo assim, estaria ele a atentar contra o princípio dispo-sitivo, verdadeiro baluarte do processo civil moderno. Ora, a desconsideração é pedido, e, como tal, depende de iniciativa da parte42. Não pode ser decretada de ofício pelo juiz. A parte interessada deve requerê-la e, conforme o caso, provar a existência dos requisitos autorizadores da medida. Ademais, ainda que isso fosse possível, entendemos que a alteração subjetiva da lide é matéria inteiramente estranha à fase de saneamento do processo (v.g., medidas ordinatórias e medidas instrutórias)43.

Ora, a desconsideração pode ser enquadrada como pressuposto processual? Como condição da ação? Como medida ordinatória? Como medida instrutória?

A resposta a todas essas perguntas é efetivamente não.

De fato, o saneamento é a fase processual adequada para resolução de todas essas questões. É nele que o juiz, caso não extinga o processo44, ou o jul-gue antecipadamente45, encerra a discussão sobre questões que prejudiquem ou impeçam o exame do mérito da demanda. Feito isso, o juiz define os pontos controvertidos já visando à instrução do processo, determinando as provas que serão produzidas e distribuindo o respectivo ônus de cada uma delas. A nosso sentir, a desconsideração não encontra espaço nessa fase procedimental.

Em verdade, a desconsideração é um pedido, de índole declaratória, que depende, como dito, de iniciativa da parte. E tal pedido não pode ser deduzido a posteriori da propositura da ação, sem que com isso se ofenda a boa técnica processual.

Ademais, a propositura desse pedido em sede de saneamento do processo implica violarmos o princípio da estabilidade da demanda, incluindo figura estranha às partes no decorrer do procedimento, além de tumultuar a marcha processual com a cumulação de pedidos (condenatório e declaratório) cuja discussão não possui qualquer pertinência entre um e outro.

Por tais razões é que não entendemos acertada a posição da corrente que defende a possibilidade de desconsideração quando do saneamento do processo.

Por último, tínhamos a corrente que defendia a desconsideração da per-sonalidade jurídica em sede de processo de execução46.

Dentre todas, essa era a única corrente que respondia satisfatoriamente à questão de como se desconsiderar a personalidade jurídica quando o crédito

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for representado por um título executivo extrajudicial. Uma vez constatado que a pessoa jurídica não dispõe de patrimônio para garantir a execução, o credor poderia requerer ao juiz que afaste, incidentalmente, os efeitos da personificação, para atingir o patrimônio dos sócios ou dos administradores, conforme o caso.

Chega a ser de meridiana clareza que o autor/exeqüente não necessita da desconsideração senão quando a pessoa jurídica não dispõe de patrimônio suficiente para honrar a dívida. Antes de constatada essa “insolvência”47, não há interesse processual para a desconsideração.

Sabe-se que o interesse processual consiste na reunião dos binômios necessidade-adequação do provimento jurisdicional invocado48.

A necessidade resume-se no interesse prático do autor no futuro provimen-to jurisdicional a ser proferido. Por seu turno, a adequação deriva da imposição ao autor de escolher o rito correto previsto em lei para requerer o seu direito49.

O fato é: convém ao aparato judiciário movimentar-se para afastar os efeitos da personificação jurídica e atingir o patrimônio dos sócios sem, antes, haver um título executivo a amparar o direito de crédito do autor? Não nos parece adequado.

E mais. Não só essa providência não nos parece adequada, como também pode ser considerado deveras temerário afastar-se – ou declarar de antemão inefica-zes – os efeitos da personificação sem uma base jurídica e concreta apta para tanto.

A nosso ver, a base jurídica deve ser, sempre, um título dotado in abstracto de certeza, liquidez e exigibilidade, ou seja, precedendo-se a desconsideração, deve existir um título executivo, seja de natureza judicial ou extrajudicial. Sem isso, a des-consideração ganha ares de açodamento, pois o direito de crédito do autor ainda se situa no campo do processo de conhecimento e, portanto, da dúvida. Concretamente, à desconsideração será imprescindível o estado de insolvência patrimonial da pessoa jurídica. E, como se percebe, para aferirmos se há ou não falta de patrimônio para honrar os débitos, somente a citação do processo de execução poderá dizer.

Dessa mercê, a “situação de fato objetivamente existente” somente tomará forma quando, citada na execução, a pessoa jurídica não dispuser de patrimônio suficiente para pagar o débito ou nomear bens à penhora50. Portanto, a necessidade da desconsideração somente surgirá após a citação no processo de execução, sendo irrelevante tratar-se de título executivo judicial ou extrajudicial. Antes disso, declarar--se ineficaz o ato de personificação será, se não atentado à boa técnica processual, açodamento inadequado e incompatível com os princípios basilares do processo civil.

Todavia, a despeito das inúmeras vantagens técnicas e jurídicas que cola-boram para adotarmos desconsideração em sede de execução, os defensores dessa corrente não explicavam como operá-la na via estreita do processo executivo.

No Código de Processo Civil, tal qual estruturado por Buzaid, o processo de execução destinava-se tão somente à concretização, à efetivação, à satisfação de um crédito espelhado por um título executivo. Nele não caberiam pontos e contra-

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pontos; argumentos e contra-argumentos de parte a parte. Não. Primeiramente, estaríamos abrindo perigoso precedente para desvirtuamento da via estreita da execução. Nela não se admitem maiores conjecturas sobre direito material, pois, como mui bem acentua o Prof. JUVÊNCIO VASCONCELOS VIANA, o processo de execução situa-se “em uma seara não mais de acertamento do direito do autor, mas sim de sua realização prática”51.

Tanto é que, na sistemática anterior, as discussões acerca da certeza, liqüidez e exigibilidade do título executivo eram remetidas a outro processo: os embargos à execução, processo de conhecimento no qual poderia haver ampla dilação probatória.

Em suma: entender que a desconsideração deva ser pedida inicialmente na ação de conhecimento, cumulada com o pedido condenatório, implica três problemas: primeiro, não há qualquer certeza de que o autor efetivamente possui o direito alegado (não há certeza, nem mesmo aparente, do direito); segundo, a relação que legitima os interesses de parte a parte deriva da relação entre a pessoa jurídica e o credor52 (não há legitimidade passiva dos sócios e/ou administra-dores); por último, não se sabe ainda se será necessária a desconsideração, pois isso somente poderá ser aferido depois da citação no processo executivo (não há interesse processual para a desconsideração).

A tese esposada por aqueles que defendem a desconsideração no saneamen-to do processo engloba, além dos inconvenientes da teoria acima mencionada, o enlace de como alterar os limites subjetivos da lide sem desvirtuar a cláusula da estabilidade da demanda e o princípio dispositivo.

Na verdade, não há como se cogitar de desconsideração senão no processo de execução. Como visto, somente quando presentes os requisitos de aparente certeza jurídica do crédito e necessidade concreta de executarmos o patrimônio individual dos sócios e/ou administradores é que os efeitos da declaração de ineficácia do ato de personificação se mostram adequados.

Portanto, se, para a realização prática do direito do autor, é necessário atingir o patrimônio individual dos sócios, desconsiderar-se a personalidade jurídica da devedora será a resposta. E a execução será o momento processual oportuno para tal medida.

Contudo, duas perguntas permanecem: como proceder à desconsideração na via estreita da execução? Como afastar os efeitos da personificação respeitando os princípios do contraditório e da ampla defesa dos devedores?

Como resposta a essas questões, propusemos, em sede de trabalho mo-nográfico, a necessidade de alteração da legislação processual civil a fim de ser contemplado um incidente processual específico para a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica.

Na linha que defendemos, instaurado o processo executivo – seja por título judicial ou extrajudicial – este seguiria o rito normal da execução até a citação

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da pessoa jurídica executada. Caso não fossem oferecidos bens à penhora ou a nomeação fosse tida como ineficaz53, devolver-se-ia ao credor o direito de indicar bens suficientes para garantir a execução. Constatando o exequente a inexistência destes, o feito executivo seria suspenso54. Nessa fase é que surgiria o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Fugindo das normas vazias da declaração de insolvência, ou mesmo do penoso processo falimentar, o credor poderia propor o incidente declaratório para afastar os efeitos da personificação. É evidente que o pressuposto para propositura deste incidente é a existência de indícios de abuso de direito de personalidade ou confusão patrimonial, a serem provados em sede de instrução.

Como autor do incidente, figuraria, obviamente, o exequente. Na con-dição de réus do procedimento, a pessoa jurídica executada e o(s) sócio(s) e/ou administrador(es) que tenha se valido da pessoa jurídica para prejudicar o direito de crédito de terceiros.

O recurso contra essa decisão seria o de agravo de instrumento, como em todos os incidentes processuais. Esse posicionamento traria consigo ainda a vantagem adicional de não haver efeito suspensivo ex lege no inconformismo. Resguarda-se, todavia, a faculdade de o relator atribuir-lhe esse efeito55, mas se trata de suspensividade ope judicis, facilitando, de certo modo, a efetividade da decisão de 1º grau.

Procedendo-se dessa forma, resguardaríamos:

1 – o princípio dispositivo;

2 – o direito à ampla defesa e ao contraditório, tanto da pessoa jurídica como dos seus sócios e/ou administradores;

3 – a própria lógica da desconsideração, que somente faz-se necessária quando inviável a expropriação do patrimônio da sociedade.

Ademais, garantiríamos a efetividade da medida, que é a razão mesma da desconsideração. A alternativa processual – a propositura de uma ação autônoma unicamente para discutir a desconsideração dos efeitos da personificação – parece--nos depor contra o direito de satisfação do crédito do exequente. Cuida-se de via crucis lenta e desnecessária.

Com efeito, a preservação do contraditório não afasta a possibilidade da decretação incidental da desconsideração. Além disso, preserva-se o credor de uma nova e estéril discussão sobre o direito sobre que se fundou o título executivo, nos casos em que este seja de natureza judicial.

Ademais, abrir, em sede de processo de execução, uma discussão lateral, a fim de saber se estão ou não presentes os requisitos autorizadores da descon-sideração, seria transmutar o processo de execução em verdadeiro processo de conhecimento, ignorando sua essência de pura realização do direito do autor.

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Com o advento da Lei nº. 11.232/2005, a necessidade do incidente foi mitigada. Na verdade, tornou-se desnecessário mesmo falar-se em um incidente de desconsideração da personalidade jurídica, ao menos quando fosse o caso de título executivo judicial. Isso porque, no âmbito da terceira onda de reforma do CPC, a “pureza processual” imaginada por Alfredo Buzaid foi sumariamente abandonada. Na nova sistemática, a execução por título executivo judicial deixou de ser um processo autônomo e passou a ser uma fase do processo. Tanto é assim que se tornou desnecessária a citação do réu; este será apenas intimado na pessoa do advogado para pagar ou nomear bens à penhora56.

Liberando-se a satisfação do crédito do autor das amarras do antigo processo de execução, nada obstaria que a desconsideração tivesse lugar nessa nova fase procedimental. Adotar-se-ia a técnica mandamental – inspiração do próprio modus operandi da nova execução – e o credor poderia provar, ali mesmo, a necessidade da desconsideração, sem prejuízo do respeito ao contraditório do devedor. O juiz lançaria mão de decisões interlocutórias, e os inconformismos, acaso existentes, resolver-se-iam por meio de agravo de instrumento.

Todavia, nem mesmo a última reforma do CPC foi capaz de solucionar a questão quanto à desconsideração nos casos de títulos executivos extrajudiciais. Para estes, pendia ainda a necessidade do incidente. Ficamos, pois, em uma zona de penumbra.

Mas tudo isso está destinado a fenecer com o novo Código de Processo Civil.

2.3 O incidente de desconsideração no novo CPC: solução definitiva ou novos problemas?

Como visto, a solução da desconsideração da personalidade jurídica é tarefa que atormenta os processualistas já há algum tempo. Talvez por isso mesmo o legislador tenha pensado em suprir essa lacuna contemplando o incidente de desconsideração da personalidade jurídica no novo Código de Processo Civil.

Previsto nos art. 62 a 65 do anteprojeto da nova lei processual civil, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica pretende solver toda a problemática processual existente acerca desse arredio conceito de direito material. Assim está disposto o incidente:

“CAPÍTULO II DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Art. 62 – Em caso de abuso da personalidade jurídica caracterizada, na forma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimen-to, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica.

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Art. 63 – A desconsideração da personalidade jurídica obedecerá ao procedimento previsto nessa seção.

Parágrafo único. O procedimento desta seção é aplicável também nos casos em que a desconsideração é requerida em virtude de abuso de direito por parte do sócio.

Art. 64 – Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão intimados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis.

Art. 65 – Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento”.

Todavia, a proposta apresentada peca, data maxima venia, em alguns aspectos.

Primeiramente, a proposta é um tanto avara quanto à procedimentalização mesma do incidente. Vejamos:

O artigo 62 é mera reprodução do disposto no art. 50 do Código Civil. Tratando-se de norma de direito material, a necessidade de sua reprodução na lei processual torna-se bastante discutível57. Já o artigo 63 é norma de pura ex-plicitação: aplicar-se-á à desconsideração as normas ali previstas, prevendo seu parágrafo único que o mesmo se aplicará aos casos de abuso de direito por parte do sócio (novamente, norma de direito material).

Ficamos, pois, com apenas dois artigos a tratar da questão processual do incidente.

No primeiro deles, o artigo 64 determina que, proposto o incidente, “o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão intimados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis”.

No segundo (artigo 65), já se parte para a definição do incidente – que terá lugar por meio de decisão interlocutória – e para a via recursal da parte inconformada – o agravo de instrumento.

É pouco. Muito pouco. Muitas perguntas continuam em aberto.

De partida, não há indicação na lei acerca do momentum da desconside-ração. Quando o autor pode requerê-la? Ou, mais especificamente, em que fase processual pode requerê-la? Definida a fase, em quanto tempo deverá fazê-lo? A partir de que momento se iniciará o prazo? Há preclusão para a parte que não proponha o incidente a tempo e modo?

São perguntas para as quais o anteprojeto do novo CPC não nos oferece qualquer resposta.

Pelo que foi exposto no tópico anterior, fica claro que a desconsideração só deve ter lugar na fase executória da demanda, e não antes58. A pré-existência de título execu-tivo líqüido, certo e exigível deve ser tido como pressuposto processual do incidente.

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De igual, não antes de frustrada a execução dos bens da pessoa jurídica pode-se pensar na propositura do incidente. (Isso, é claro, nos casos de créditos de terceiro, e não quando a própria pessoa jurídica venha a demandar contra o sócio e/ou administrador, como ocorreu no caso Salomon x Salomon Co.) Antes disso, é processualmente mais eficaz e mais econômico tentar excutir antes os bens da pessoa jurídica.

Quanto à preclusão, acreditamos que a propositura do incidente não deve ser sujeita à preclusão. Não raro, o abuso de direito e a confusão patrimonial praticadas pelo sócio e/ou administrador são mantidos em sigilo a todo custo. É deveras difícil para uma pessoa estranha à sociedade obter provas de tais atos. O mais sensato – do ponto de vista da efetividade do direito do credor – é estabele-cer a suspensão do processo59, uma vez não encontrados bens excutíveis da pessoa jurídica. Durante o prazo da suspensão, caso o credor reúna as provas necessárias ao pedido de desconsideração, poderá propor o incidente. Resguardar-se-ia, evidentemente, o prazo de prescrição do débito, caso a suspensão se protraia indefinidamente.

Pensamos, assim, que o legislador deveria ter estabelecido claramente que:

1 – a desconsideração só tem lugar quando houver título executivo, judicial ou extrajudicial;

2 – a desconsideração só poderia ser arguida após não serem encontrados bens penhoráveis da pessoa jurídica;

3 – não há preclusão para a arguição da matéria. Caso o credor não dis-ponha, no momento, de indícios suficientes de que estão presentes as hipóteses de desconsideração, poderia pedir a suspensão do processo. Se, posteriormente, viesse a ter provas do abuso de direito ou da confusão patrimonial, poderia requerê-la. Respeitar-se-ia, contudo, o prazo de prescrição do débito.

Ademais, renovando as vênias, há outras incongruências no anteprojeto do novo CPC.

De fato, é deveras discutível a remissão legislativa a “terceiro”, uma vez efetuada a desconsideração60. Não há terceiros nesse incidente; só partes. De um lado, o exequente – requerendo a desconsideração – figurando como autor; do outro, os sócios e/ou administradores e a própria pessoa jurídica como réus.

Verdadeiramente, como supor que os sócios e/ou administradores, depois de desconsiderada a personalidade jurídica, possam ser considerados terceiros no processo?61 Efetivamente não o são. Uma vez efetuada a desconsideração, os eventuais responsáveis pelo adimplemento da obrigação serão tidos, para todos os efeitos, como parte. É justamente nisso que consiste a desconsideração. Afastam--se os efeitos da personificação para entender que aqueles que se escondiam sob seu véu são a própria pessoa jurídica e, por isso mesmo, responsáveis por suas obrigações.

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Ademais, como evitar a fraude à execução62?

Se os sócio(s) e/ou administrador(es) da pessoa jurídica têm ciência da demanda proposta contra esta, ou de título executivo extrajudicial em posse do credor, nada obsta que venham a dilapidar seu próprio patrimônio durante o curso da demanda proposta contra a pessoa jurídica mas antes de efetivada a desconside-ração. Nesse caso, afastar-se-ia a possibilidade de decretar-se a fraude à execução, pois os sócios não se teriam reduzido à insolvência no curso da demanda.

No nosso trabalho monográfico, propúnhamos, ao lado da criação do incidente, a necessida de outra mudança legislativa. Ela poderia advir na forma da adição de um parágrafo ao art. 716 do novo Código de Processo Civil, nos seguintes termos:

§1º. Desconsiderados os efeitos da personalidade jurídica, o disposto no caput deste artigo aplicar-se-á aos atos de disposição patrimonial dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica, assim declarados responsáveis pelo adimplemento da obrigação expressa no título executivo.

Com isso, caso, durante o curso da demanda contra a pessoa jurídica, os sócios e/ou administradores venham a dilapidar seu patrimônio antes de efetiva a desconsideração, também esses atos de alienação serão tidos por ineficazes. Salvaguardar-se-ia, pois, a garantia do crédito do autor.

Outra hipótese não contemplada pelo anteprojeto do novo Código de Proces-so Civil diz respeito à efetivação da desconsideração quando o caso for de confusão patrimonial. Recordemos o caso de Salomon x Salomon Co. A sociedade criada por Salomon já nascera devedora de Salomon, credor com garantia real da companhia. Nesse caso, mesmo desconsiderando-se a personalidade jurídica, como impedir que o sócio recebesse o “crédito” que ele mesmo constituíra contra a sociedade?

Para isso, cogitamos uma hipótese: acrescer-se outro parágrafo ao mencio-nado art. 716 do anteprojeto do CPC, nestes termos:

§2º. Provada a confusão patrimonial, os efeitos da desconsideração retroagirão à data de constituição da pessoa jurídica.

Desse modo, encerraríamos praticamente todas as hipóteses possíveis para que inescrupulosos violassem o direito de crédito de terceiros escondendo--se sob o véu da pessoa jurídica. Daríamos ao credor e ao juiz armas suficientes para garantir a satisfação do direito do exeqüente, sem, com isso, violarmos os princípios basilares do contraditório e da ampla defesa.

3 CONCLUSÃO

A matéria, como se viu ao longo deste trabalho, é extremamente controver-sa e suscita discussões severas na doutrina e na jurisprudência. Não pretendemos aqui conferir qualquer tratamento dogmático à matéria, muito menos estabelecer

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posições ou palavras definitivas. Longe de encerrar o debate, o que se pretendeu na verdade foi o inverso: estimulá-lo e contribuir, ainda que modestamente, para o seu enriquecimento.

De fato, o novo incidente de desconsideração da personalidade jurídica aspira a encerrar a discussão processual da matéria e contribuir, decisivamente, para a satisfação do direito dos credores.

É certo, também, que a comissão de juristas comandada pelo agora Mi-nistro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux caminhou na direção correta ao positivar no anteprojeto do novo Código de Processo Civil tal incidente. Todavia, há falhas no projeto, e tais falhas podem converter a esperança de redenção em uma sementeira de decepções.

O Anteprojeto ainda tramita no Congresso Nacional. Exorta-se às casas legislativas, portanto, que cumpram o seu dever constitucional e o aperfeiçoem, de modo a contemplar dignamente na nossa lei processual esse formidável ins-tituto de direito material.

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WOLFF, Martin. On the nature of legal person. The Law Quartely Review. 216:512.

1 Sociedade com responsabilidade limitada.2 Rubens Requião, primeiro jurista nacional a cuidar do assunto, sintetizou a resposta a esse dilema em

irretocáveis palavras: “Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de se consagrar a fraude ou abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando no seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos” (OLIVEIRA, Lamartine Correia de. A Dupla Crise da Pessoa Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 556).

3 FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Análise à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2002, p. 116.

4 Aparência e Realidade nas Sociedades Comerciais: o abuso de direito por meio da pessoa jurídica.5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 12. ed. Rio de Janeiro:Forense, 1991, v. 1,

p. 367.6 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Parte Geral. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 228.

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7 Cf. Código Civil de 2002, artigo 544.8 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1997,

p. 251.9 Ibid., p. 251.10 JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da Personalidade Societária no Direito Brasileiro. São Paulo:

RT, 1987, p. 83-89.11 Segundo PONTES DE MIRANDA, “a ineficácia pode ser a) por inexistência, e aí é evidentemente inade-

quado falar-se do que não existe e o conceito de ineficácia, que é interior ao sistema lógico, fica de fora; b) por nulidade, e então se alude ao que ‘é, mas nulamente’; c) por exclusão ou ainda não aparição de efeitos, a despeito de ser e valer, ou ser a apenas poder ser anulado, rescindido, resolvido, etc. Ineficácia compreendendo b) e c) é ineficácia geral, ineficácia em sentido lato; a ineficácia c) é dita em sentido estrito” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Bookseller: Campinas, 2000, t. 7, p. 7). (grifos do autor)

12 Com efeito, o problema da desconsideração envolve “a capacidade e possibilidade de ditar uma disciplina apta a proibir ou prevenir desvios patológicos que se manifestam não já em sede de uma apriorística valo-ração formal do momento genético societário, fundado de resto sobre o reconhecimento da personalidade jurídica ou a autonomia patrimonial garantida pelo ordenamento aos centros de imputação societária, mas em sede de funcionamento da instituição societária, isto é, um momento sucessivo àquele em que a homologação do ordenamento exauriu sua tarefa” (LA VILLA, Gianlucca. Società Strunmentali e Profili di Responsabilità. Quaderni di Giurisprudenza Commerciale. Milão: Giuffrè, 1981, p. 23).

13 JUSTEN FILHO, op. cit., p. 155.14 Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 57.15 Elizabeth Freitas, por exemplo, afirma que “no direito positivo pátrio, uma das primeiras manifestações

normativas que evidenciaram a desconsideração da personalidade jurídica é a norma que está contida no art. 135 do Código Tributário Nacional” (FREITAS, op. cit., p. 73).

16 Cf., por todos, o Resp 436012/RS, Rel. Min. Eliana Calmon.17 Em verdade, “o que gera a responsabilidade, nos termos do art. 135, III, do CTN, é a condição de admi-

nistrador de bens alheios. Por isso a lei fala em administradores, gerentes ou representantes.[...]Também não basta ser diretor, ou gerente, ou representante. É preciso que o débito tributário em questão resulte de ato praticado com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos” (MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 139) .

18 Cf.. art. 158 da Lei 6.404/76.19 Cf. art. 10 do Decreto 3.708/19.20 Cf. MONTEIRO, Arthur Maximus. A Nova Sociedade Por Quotas de Responsabilidade Limitada. Mo-

nografia de graduação em Direito pela Universidade Federal do Ceará. [Inédito]: 2002.21 “Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela

confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

22 Para a redação anterior, cf. GRINOVER, op. cit., p. 205.23 Cf. GRINOVER, op. cit., p. 205.24 Com fundamento no princípio da proporcionalidade, conferir maior “peso” à efetividade do processo (art.

5º, inc. XXXV) frente ao princípio individualização das penas (art.5º, inc. XLV).25 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Notas sobre o Problema da Efetividade do Processo. In: Temas de Direito

Processual Civil. 3. série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 27-28. Cf., também, VIANA, Juvêncio Vasconcelos. A efetividade do processo em face da fazenda pública. Dialética: São Paulo, 2003, p. 19.

26 Importante salientar, contudo, que a desconsideração não surge como contraponto à pessoa jurídica. Na verdade, sua essência é justamente o inverso do que se imagina. A intenção dos defensores da disregard doctrine é preservar o instituto da pessoa jurídica – formidável criação jurídica – de seus usurpadores, a partir da definição de balizas para os operadores do Direito. Nesse sentido, Elizabeth Freitas aponta que “a Desconsideração da Personalidade Jurídica, ao contrário do que muitos acreditam, não é de forma alguma instrumento jurídico para acabar com a pessoa jurídica; é, na verdade, mecanismo jurídico para protegê-la contra fraudes e abusos, oferecendo critérios para tanto” (FREITAS, op. cit., p. 57).

27 Art. 5º, inc. LIV, da CF/88.28 José Afonso da Silva ensina que “garante-se o processo, e ‘quando se fala em processo, e não em simples

procedimento, alude-se, sem dúvida, a formas instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional,

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quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídica. E isso envolve a garantia do contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais”. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 433).

29 Vem de José Batista Lopes a advertência de que “É inquestionável a importância do resultado para se chegar ao conceito de efetividade, mas ele não é suficiente para fornecer o conceito e elastério desta última. Há que se examinar a efetividade a partir do devido processo legal, do modelo constitucional de processo, de modo que só se poderá considerar efetivo o processo em que forem observadas as garantias constitucionais”. Isso porque “Estará comprometida a efetividade se o processo vulnerar os princípios do contraditório, da ampla defesa, do juiz natural, da motivação das decisões, da proibição das provas ilícitas, etc., pouco importando o resultado alcançado”. (LOPES, José Batista. Função Social e Efetividade do Processo. Revista Dialética de Direito Processual, n. 13, p. 33).

30 O próprio Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, já decidiu que “a desconsideração da pessoa jurídica é medida excepcional que só pode ser decretada após o devido processo legal, o que torna a sua ocorrência em sede liminar, mesmo de forma implícita, passível de anulação”. (STJ – 1ª Turma. AGRESP 422583/PR. Relator Min. José Delgado, decisão de 20/06/2002, unânime).

31 Podemos enquadrar nessa corrente os que defendem a necessidade de uma ação autônoma, independente da ação de conhecimento ou execução, para aplicar a desconsideração da personalidade jurídica. No entanto, essa opção pode ser sumariamente descartada, visto impor ao credor uma dificuldade inominável para a realização de seu direito. Após conseguir um título executivo, este deveria propor uma ação autônoma, sujeita a todos os recursos legais, tão-somente para afastar os efeitos da personificação? Como entender, então, a desconsideração da personalidade jurídica como medida de efetividade do processo?

32 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 251.

33 A saber: quanto à necessidade de formação – obrigatório e facultativo; quanto ao momento de formação – inicial ou ulterior; quanto ao destino dos litisconsortes no plano do direito material – unitário ou simples; quanto ao pólo da demanda – ativo, passivo ou misto.

34 “Art. 47 – Há litisconsórcio necessário quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo.”

35 “Art. 46 – Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando:

I – entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide; II – os direitos ou as obrigações derivarem do mesmo fundamento de fato ou de direito; III – entre as causas houver conexão pelo objeto ou pela causa de pedir; IV – ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito”.36 ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 198.37 Ibid., p. 218.38 STJ – 3ª Turma. REsp. 282266/RJ. Relator Min. Ari Pargendler, decisão em 18/04/2002, unânime.39 COMPARATO, Fábio Konder. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 3. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 1983, p. 57.40 “Art. 264 – Feita a citação, é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento

do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas em lei”.(g.n)41 De regra, em especial, somente se permitirá a inovação subjetiva da lide quando se tratar de uma das

hipóteses de intervenção de terceiros (assistência, oposição, nomeação á autoria, denunciação da lide e chamamento ao processo), ou, ainda, a admissão de litisconsórcio necessário ulterior. Por último, existe a hipótese de sucessão de partes.

42 Nos termos do art. 2º do CPC (Nemo procedat iudex ex officio).43 Segundo Moacyr Amaral Santos, “O saneamento é a ocasião em que o juiz resolve as questões processuais

pendentes (pressupostos processuais e condições da ação) e determina as provas a serem produzidas, desig-nando audiência de instrução e julgamento, se necessário (Cód. Proc. Civil, art. 331, §2)º”.(SANTOS, op. cit., p. 272).

44 Cf. art. 329 do Código de Processo Civil.45 Cf. art. 330 da Lei Processual Civil.46 Boa parte da jurisprudência já se inclinava nesse sentido. Em vários acórdãos o STJ decidira que: “A apli-

cação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma

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para tal. Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o Juiz, incidentemente no próprio processo de execução (singular ou coletiva), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens particulares de seus sócios, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros” (STJ – 3ª Turma. ROMS 14168 / SP, Relatora Min. Nancy Andrighi, decisão em 30/04/2002, por unanimidade). No mesmo sentido e com o mesmo teor, vide REsp 332763 / SP.

47 Ressalvamos a menção ao termo para não confundirmos desconsideração com declaração de falência ou mesmo a insolvência civil, institutos jurídicos que não são objeto do presente trabalho.

48 “O interesse de agir é, pois, um interesse processual, secundário e instrumental que diz respeito ao interesse substancial primário, e é objeto do provimento que se demanda ao magistrado, como meio de se obter a satisfação desse interesse primário, que permanece ligado ao comportamento da outra parte, ou mais genericamente à situação de fato objetivamente existente” (LIEBMAN, Enrico Tulio. Manuale di diritto processuale civile. 3. ed. Milão: Giuffrè, 1973, p. 41). Cf. também ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no Direito Processual Brasileiro. São Paulo: RT, 1982, p. 58.

49 ARMELIN, op. cit., p. 230.50 O que acarretaria, em tese, uma execução frustrada.51 VIANA, Juvêncio Vasconcelos. A causa de pedir na execução. In: BEDAQUE, José Roberto dos Santos;

TUCCI, José Rogério Cruz e (Orgs). Causa de Pedir e Pedido no Processo Civil. São Paulo: RT, 2002, p. 105.

52 Convém destacar que a legitimidade ad causam, neste particular, está estritamente ligada à relação de direito material sobre que se funda a lide. Essa relação, por óbvio, não é atingida pela desconsideração. Nem sequer é objeto dela. Conforme já demonstrado, a desconsideração cinge-se a afastar os efeitos da limitação da responsabilidade patrimonial oriunda da personificação de determinados tipos societários, mas não implica a atribuição das relações de direito material da pessoa jurídica aos próprios sócios e/ou administradores.

53 Ou seja, especialmente nos casos dos incisos V e VI do art. 655 do Código de Processo Civil. Nos demais casos, a ineficácia da nomeação diz respeito à desobediência da ordem legal ou mesmo a dificuldade ope-racional para a fase expropriatória da execução.

54 Conforme determina o art. 791, inc. III, do CPC.55 Conforme permite o art. 527, inc. III, do CPC.56 Cf. art. 475-J e ss. do CPC.57 Embora tal fato não prejudique a validade da norma que tenha passado pelo processo legislativo regular.

Cf. art. 18 da Lei Complementar nº. 95/98.58 Sobre isso, é inquietante perceber que, do ponto de vista puramente topográfico, a perspectiva não é nada

animadora: a desconsideração vem na Parte Geral do novo CPC, e não na parte relativa ao Cumprimento da Sentença e outras medidas executórias.

59 Cf. Art. 842, inc. III, do anteprojeto do novo CPC.60 Confusão, a propósito, que já vem desde antes da reforma da Lei nº. 11.232/2005. FREITAS, por exemplo,

defendia que os sócios da pessoa jurídica desconsiderada deveriam defender-se por meio da oposição de embargos de terceiro, algo definitivamente insustentável. Cf. Op. Cit., p. 148.

61 Na verdade,“o ato de penetração (Durchgriff) é descrito de modo emocional e figurado – ‘the veil of corporate entity may be pierced’, ‘the sham of corporate may be brushed aside’. E, para justificar isso,a pessoa jurídica ‘des-considerada’ é descrita simplesmente como ‘adjunct, agent, instrumentality, dummy, alter ego, bussines conduit, corporate pocket, etc’, do sócio dominante ou único”. WOLFF, Martin. In On the nature of legal person. The Law Quartely Review. 216:512.

62 Cf. artigo 716 do anteprojeto do novo CPC.

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Desconsideração da personalidade jurídica: histórico, natureza e aspectos processuais

85R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 12, n. 16, p.58-85, jan./dez. 2014

LIFTING THE CORPORATE VEIL: HISTORY, NATURE AND PROCEDURE

ABSTRACT

Lifting the corporate veil is controversial in the legal community since its creation in common law England. Brought to Brazil, its application to practical cases has aroused harsh discussions about how it should be implemented without violating the rights of the debtor. Absent in the 1973 Civil Procedure Code, the disregard is now treated in a specific chapter in the new procedural legislation. It is unclear, however, if the incident will bring new solutions or larger problems.

Keywords: Civil Law. Civil Procedure. Lifting the corporate veil.

Submetido: 07 ago. 2015Aprovado: 15 ago. 2015

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86 R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 12, n. 16, p.86-111, jan./dez. 2014

o Direito A não sABer: noVos contornos Do Direito à intimiDADe

Camila Figueiredo Oliveira Gonçalves*

Dentro de mimeu me eremito.

(Manoel de Barros, O Livro de Bernardo)

Introdução. 1 O caso paradigma: Recurso Especial 1.195.995/SP. 1.1 Breve relato fático da demanda. 1.2 Entendimentos contrapostos na 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. 1.2.1 Ministra Nancy Andrigui: um olhar di-vergente e o reconhecimento do direito a não saber. 1.2.2 Ministro Massami Uyeda: inocorrência da violação do direito à intimidade ante a veracidade da informação e a preservação de interesses individual e público 2 Panorama histórico. 2.1 A importância da historicidade no conhecimento jurídico. 2.2 A gênese dos direitos fundamentais. 2.3 A evolução do direito fundamental à intimidade. 3 Lineamentos conceituais clássicos dos direitos fundamentais. 3.1 Classificação, conceitos e teorias: enquadramento teórico tradicional do direito fundamental à intimidade. 3.2 Dimensão subjetiva e objetiva do direito fundamental à intimidade. 3.2.1 Dimensão subjetiva. 3.2.1.1 A teoria do status de Jellinek e a intimidade como status negativus. 3.2.1.2 Critério funcional: direito à intimidade como direito de defesa. 3.2.2 Dimensão objetiva. 4 O impacto da tecnologia e do conhecimento científico na tutela da intimidade: os efeitos da sociedade de informação. 5 Análise crítica do julgamento do Recurso Especial 1.195.995/sp: as fronteiras atuais do direito fundamental à intimidade. 5.1 Âmbito de proteção dos direitos fundamentais e o necessário redimensionamento protetivo do direito fundamental à intimidade. 5.2 Caráter relativo dos direitos fundamentais e colisão de direitos: possibilidade de ponderação (e não anulação) da intimidade em face do interesse público. 5.3 Critério funcional do direito fundamental à intimidade na atualidade: para além de um direito de defesa, um direito prestacional. Considerações finais. Referências.

* Mestre em Direito Constitucional nas Relações Privadas pela Universidade de Fortaleza (Bolsis-ta Funcap e Capes/PROSUP). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará com distinção acadêmica - Magna Com Laude. Especialista em Direito Público. Membro do Grupo de Pesquisa Direito Privado na Constituição, na linha de pesquisa Autonomia Privada e Ordem Social, sob a liderança do Pesquisador Dr. Antônio Jorge Pereira Júnior, e do Grupo de Pesquisa Direito Constitucional nas Relações Privadas, na linha de pesquisa Obrigações, Direito dos Danos e Tutela da Pessoa, sob a liderança da Pesquisadora Dra. Joyceane Bezerra de Menezes (Grupos de pesquisa cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisas mantido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq). Atualmente é Coordenadora de Atividades Complementares e Professora de Direito Civil do Centro Universitário Christus - Unichristus. Editora-Assistente da Revista Opinião Jurídica (ISSN 1806-0420). Tem experiência na área de Direito Civil, atuando, principalmente, nos seguintes temas: Teoria Geral do Direito Privado, Biodireito, Direitos da Personalidade, Responsabilidade Civil, Direito de Família, Direito das Su-cessões e Direito das Coisas. E-mail: [email protected]

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RESUMO

Na sociedade contemporânea, nominada de sociedade da informação, os contornos clássicos do direito fundamental à intimidade não se afiguram mais capazes de proteger os dados pessoais de cada um. Se antes esse direito era concebido como um direito de proteção do indivíduo ante as interferências externas, presentemente, mesmo pelo progresso tecnológico e científico, mais parece que se deva tutelar o direito à autode-terminação informativa. Nesse contexto, o presente trabalho tem por objetivo analisar a decisão proferida pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.195.995/SP, que colocou em discussão a existência de direito a não saber de determinada informação médica correta e sigilosa, porém não requisitada pelo paciente, como corolário do direito à intimi-dade. Pretende-se com o estudo aponstar os novos contornos conceituais do direito fundamental à intimidade na atualidade. Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica e documental na doutrina, jurisprudência e legislação nacional e comparada.

Palavras-chaves: Direitos Fundamentais. Direito à Intimidade. Autodeterminação Informativa. Direito a não saber.

INTRODUÇÃO

O Direito é reiteradamente instado a se reformular para resolver questões que antes sequer existiam. O progresso tecnológico aliado às mudanças sociais põem em xeque os contornos clássicos dos direitos, sendo impactados nesse pro-cesso inclusive os direitos fundamentais. Nesse contexto, o direito fundamental à intimidade precisa ser revisto, não podendo manter sua formulação tradicional, sob pena de fracassar na proteção do bem jurídico que pretende tutelar: a vida plena do ser humano na sua dimensão individual.

Como todo direito, o direito fundamental à intimidade foi produto de uma determinada época. Arraigado com os valores do final do século XIX e do início do século XX, seu conteúdo foi balizado pela perspectiva liberal, como um verdadeiro direito de resistência à ingerência estatal. Fruto da própria natureza do Estado Liberal, tal direito consistia no direito a ficar só – the right to be let alone –, sendo um direito de defesa e proteção do indivíduo contra investidas externas.

No entanto, contemporaneamente, não mais se sustenta o direito à intimidade nos moldes clássicos. Se antes era possível o sujeito murar-se e preservar suas informações dentro de um espaço pretensamente intangível, na sociedade atual, a chamada de sociedade da informação ou de vigilância, os dados de cada um encontram-se espalhados e pulverizados devido à internet e aos databases.

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Portanto, parece mais coerente hoje, quando se fala em direito à intimi-dade, tratar de autodeterminação informativa, tese desenvolvida na Europa, como direito da manter domínio sobre as próprias informações. Isso porque não basta mais falar em direito à intimidade como um direito de exclusão ou de simples defesa, na perspectiva clássica, a partir do momento que as informações das pessoas não estão mais em seu poder.

Nessa linha de intelecção, não adianta mais “murar” a privacidade, a intimidade, uma vez que as informações já ultrapassaram os limites da fortaleza individual de cada um. A intimidade, portanto, deve ser encarada como a possi-bilidade de ter controle de circulação desses informes, bem como de ter escolha sobre a ciência dos dados que podem ser conhecidos por terceiros e publicizados ao público e/ou à própria pessoa.

Verifica-se, desse modo, que os impactos da pós-modernidade na constru-ção teórica do direito à intimidade são significativos. A defesa que se faz hoje é que os dados pessoais e as informações de um modo geral tornaram-se bens jurídicos importantes – talvez os mais importantes – e, por consequência, a sua proteção precisa ser resignificada, muito em decorrência do seu alto potencial lesivo. A título exemplificativo, lembre-se como é comum nos tempos atuais que uma pessoa sofra com as ações deletérias de hackers, no que se refere a dados ban-cários e cadastrais. Sem a anuência do titular, identidades são falseadas, compras podem ser feitas e contas de banco zeradas em um simples clic.

A problemática, todavia, não se esgota em questões estelionatárias com repercussões patrimoniais. Longe disso. Indo além na investigação das possibili-dades danosas da malversação dos dados e informações é que se percebe o quanto se precisa discutir sobre a temática. Especialmente quando se trata de dados sensíveis, como aqueles relacionados à origem étnica ou racional, às opiniões políticas, às preferências sexuais, ao patrimônio genético do indivíduo, às crenças religiosas, às opções políticas ou filosóficas e às questões relacionadas à saúde.

Em relação aos dados relativos à saúde, desponta interesse acadêmico e prag-mático a análise da posição adotada pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.195.995/SP. Discutiu-se, no caso, se há direito a não saber de doença potencialmente contagiosa quando não existe requisição específica do paciente. Entre os ministros, houve divergência, tendo os votos sentidos antagônicos: reconhecendo e afastando do direito a não saber e, por conseguinte, o direito a receber ou não indenização por danos morais e materiais. O segundo entendimento, que confronta a posição adotada neste trabalho, logrou-se vencedor.

A discussão do direito a não saber como corolário do direito fundamental à intimidade e suas implicações no redimensionamento do âmbito de proteção deste direito importa à teoria geral dos direitos fundamentais na medida em que toca em atributos essenciais à pessoa e, de modo indireto, na dignidade da pessoa humana, merecendo o devido debate teórico para a sustentação de uma tutela diferida que proteja a pessoa e seus dados mais caros.

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Partindo da hipótese de que a pessoa merece tutela integral, a análise do tema não pode se confinar nos estreitos limites conceituais propostos pela visão tradicional de intimidade. Ao revés, com o processo de evolução social, o direito deve se reformular, pensando em novas formas de tutelar os direitos fundamentais que merecem a devida guarida por serem positivados e protegidos em sede constitucional.

Cabe ao presente artigo, portanto, abordar a intimidade como um importan-te aspecto da dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual merece defesa especí-fica em determinadas questões. Sinaliza-se, de logo, que, apesar da importância da intimidade, quando relacionada aos dados sensíveis, a discussão ora proposta não se alinha a tese de que há situações absolutas. É o caso concreto que irá informar como o operador do Direito, de modo fundamentado, deve se posicionar.

Para a análise do problema posto em foco, adotou-se uma metodologia qualitativa lastreada em pesquisa bibliográfica e documental na doutrina, juris-prudência e legislação nacional e comparada.

O desenvolvimento do trabalho se consolida em cinco partes: a primeira apresenta o caso paradigmático a ser analisado, expondo brevemente os fatos da demanda e, empós, os entendimentos contrapostos na Terceira Turma do Supe-rior Tribunal de Justiça. Depois, considerando a importância da historicidade no conhecimento jurídico, é exposta a gênese dos direitos fundamentais e a evolução do direito à intimidade. Estabelecidas tais premissas, trata-se dos lineamentos conceituais relativos aos direitos fundamentais, com especial atenção às questões teóricas inerentes ao direito à intimidade. Temas como classificação, conceitos e teorias dos direitos fundamentais, dimensão subjetiva e objetiva dos referidos direitos são explorados. Em seguida, ilustrando mais uma vez a importância da historicidade na construção do direito, discute-se o impacto da tecnologia e do conhecimento científico na tutela da privacidade dentro do contexto da sociedade da informação. Na quinta e última parte, considerando o âmbito de proteção, o caráter relativo e o direito à intimidade como direito de prestação, analisa-se a posição do Ministro Massami Uyeda que se consagrou vencedora no julgamento do Recurso Especial 1.195.995/SP com o objetivo de demonstrar que tal decisão não foi bem na defesa dos dados sensíveis e não deve ser tomada como precedente para decisões de caso desse jaez.

1 O CASO PARADIGMA: RECURSO ESPECIAL 1.195.995/SP

1.1 Breve relato fático da demanda

Para fins de contextualização, apresenta-se, sumariamente, relato fático da demanda objeto de análise do presente trabalho.

No caso, o paciente, autor da ação, munido de prescrição médica, reali-zou exame de sangue que tinha como objetivo, dentre outros, averiguar acerca

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da existência de vírus da Hepatite C. Para tanto, foram solicitadas as seguintes análises clínicas: hemograma, creatinina, glicemia jejum, glicemia pós prandial, Hb glicosilada, Ácido Úrico, colesterol total e frações, triglicérides, gama GT, Glicoproteína Ácida, T4 livre, TSH, HBSAG e anti-HCV.

Todavia, quando da entrega pelo laboratório dos laudos contendo a análise do material com o respectivo resultado do exame de sangue requestado, constatou o paciente que o laboratório havia sido realizado exame a mais e diverso daqueles originalmente solicitados, tendo divulgado ao próprio paciente – informação que apenas foi revelada a ele –, o resultado positivo de exame anti-HIV. Na oportu-nidade, o autor foi cientificado, contra sua vontade, de que era soropositivo.

De posse de tal informação – correta, porém obtida de forma involuntária, destaca-se – o paciente ingressou com pedido de indenização por danos materiais, em decorrência da necessidade de tratamento psicológico, bem como por danos morais, em razão da quebra de sua intimidade – direito fundamental e da personalidade. Em seu pleito, o autor sustentou de modo específico a violação de seu direito à intimi-dade pela seguinte perspectiva: violação do direito a não saber da sua situação de saúde.

O caso em tela suscitou discussão no próprio tribunal, gerando posições díspares. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça determinou, no julgamento do Recurso Especial 1.195.995/SP, com voto vencido da Ministra Nancy Andrighi, que não há violação do direito à intimidade e, em consequência, não há direito à indenização por danos morais, quando há a divulgação correta e verdadeira de dados médicos não requisitados para o próprio paciente.

Por oportuno, passa-se à análise de uma e outra posição suscitada pelo tribunal superior quando do julgamento em colegiado.

Entendimentos contrapostos na 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça

1.2.1 Ministra Nancy Andrigui: um olhar divergente e o reconhecimento do direito a não saber

No caso em tela, coube à Ministra Nancy Andrigui realizar a relatoria. Apontou a julgadora que o autor não obteve êxito em seu pleito nem em primeira, nem em segunda instância, conforme se pode deduzir da ementa do acórdão proferido pelo juízo ad quem:

APELAÇÃO – RESPONSABILIDADE CIVIL – INDENIZA-ÇÃO – DANOS MATERIAIS E MORAIS – Demanda ajuizada em face de laboratório de análises clínicas – Exame realizado para pesquisa de anticorpos (HIV) – Resultado positivo – Solici-tação médica de exame de sangue anti HCV – Embora objetiva a responsabilidade do laboratório, não há como reconhecer sua culpa, pela ausência de nexo causal – Inexistência de comunicação de falsa doença – De rigor a improcedência da ação – Sentença mantida – Recurso desprovido.

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Irresignado com a decisão, o autor interpôs Recurso Especial, alegando a violação:

(i) do art. 535 do CPC e dissídio jurisprudencial, pois o TJ/SP, ao rejeitar os embargos declaratórios, não sanou omissões e contra-dições existentes no acórdão recorrido e (ii) dos arts. 14 do CDC, 927, parágrafo único, e 931 do CC/02 e dissídio jurisprudencial, visto que: a) não há que se perquirir a existência de nexo de causali-dade entre a conduta e o dano quando se adota a responsabilidade objetiva; b) a recorrida, ao realizar exame de HIV, não solicitado pelo recorrente, violou o direito de intimidade desse, passível de reparação por danos materiais e compensação por danos morais. (Grifos intencionais não constantes no original)

Das diversas questões vergastadas, importa ao presente estudo tão somen-te a discussão sobre a violação do direito à intimidade, passível de reparação. Vale salientar que a decisão proferida pelo juízo de 2º grau não reconheceu afronta ao direito em questão e o consequente cabimento de danos morais pelos seguintes argumentos:

(i) não houve falsa comunicação do exame de anti HIV; (ii) o resultado do exame não foi divulgada a terceiros; (iii) o prévio conhecimento da doença foi benéfica à saúde do recorrente; (iv) inexiste nexo causal entre a conduta e o dano, tendo em vista que a doença não foi contraída por ato do hospital.

Partindo da lição de Carlos Alberto Bittar1 e de Paulo José da Costa Júnior2, a relatora divergiu da fundamentação da decisão recorrida, aduzindo que “há dois modos de agressão à intimidade – a investigação abusiva da vida alheia e a divulgação de informações”. E foi além na defesa da tese de que há sim direito a não saber, sustentando o seguinte:

Neste processo, o direito à intimidade do recorrente foi violado quando da realização de exame não autorizado, o que causou inde-vida invasão na esfera privada do recorrente (investigação abusiva da vida alheia). É irrelevante, portanto, o fato de que o resultado do exame não foi divulgado a terceiros. Por mais que se possa adotar a presunção de que a constatação da doença pelo recorrido lhe propiciou melhores condições de tratamento, esse fato, por si só, não retira a ilicitude de sua conduta – negligente – de realizar exame não autorizado nem pedido em favor do recorrente. Acrescente-se que a intimidade abrange o livre arbítrio das pessoas em querer saber ou não algo afeto unicamente à sua esfera privada. Vale dizer: todos têm direito de esconder suas fraquezas, sobretudo quando não estão preparadas para encarar a realidade. (Grifo nosso)

Da análise dos argumentos carreados pela Ministra, é de se notar sua incli-nação pela defesa do direito a não saber, compreendendo-o como um verdadeiro consectário lógico do direito à intimidade.

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1.2.2 Ministro Massami Uyeda: inocorrência da violação do direito à intimidade ante a veracidade da informação e a preservação de interesses individual e público

Seguindo linha de intelecção diametralmente oposta, votou o Ministro Mas-sami Uyeda, sendo seu voto acompanhado pelos Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Vasco Della Giustina, desembargador convocado do TJ/RS.

Em seu voto, arguiu o Ministro que a conduta do laboratório não maculou a intimidade do autor. Valendo-se da lição de Gilberto Haddad Jabur,3 aduziu o julgador que o direito à intimidade “confere ao seu titular a possibilidade de viver de modo particular, próprio e inadmitir a ingerência ou intromissão alheia, representada pela curiosidade que busque adentrar o universo restrito e pouco compartilhável do indivíduo”, mas que tal direito não pode ser encarado como um direito absoluto.

Continua sua argumentação no sentido de que é sim possível admitir a tangibilidade do direito à intimidade em hipóteses em que a invasão se justifique pela necessidade de preservação de um direito maior, seja pela perspectiva do interesse privado, seja pela perspectiva do interesse público.

No que tange ao prisma individual, defende o julgador que o direito de o indivíduo não saber que é portador do vírus HIV sucumbe e é suplantado por um direito maior, qual seja, o direito à vida, o direito à vida com mais saúde, o direito à vida mais longeva e saudável.

Igualmente, cai por terra o direito a não saber sob o enfoque do interes-se público, uma vez que, segundo o Ministro, “o comportamento destinado a omitir-se sobre o conhecimento da doença, [...] em última análise, gera condutas igualmente omissivas quanto à prevenção e disseminação do vírus HIV, vai de encontro aos anseios sociais.”

Saliente-se que o magistrado em sua decisão fez constar que o exame da necessidade de vilipendiar o direito à intimidade não pode prescindir da análise do princípio da dignidade da pessoa humana, princípio base do Estado Democrático de Direito, e da razoabilidade, como critério axiológico.

Colocados os entendimentos contrários da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, far-se-á a seguir análise teórica dos direitos fundamentais para, depois, realizar exame crítico da decisão e seus fundamentos, quando se pretende demonstrar a incorreção da última posição, que se sagrou vencedora na resolução do conflito.

2 PANORAMA HISTÓRICO

2.1 A importância da historicidade no conhecimento jurídico

A pretensão de conhecer o momento presente não pode descurar da investigação do passado. Volver os olhos aos acontecimentos antecedentes é

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imprescindível para tentar compreender a atualidade. E mais: se o passado ajuda na compreensão do presente, não é menos verdade que é o presente que dá pistas do que está por vir no futuro.4 Servindo essa noção para o conhecimento de um modo geral, a abordagem histórica da fenomenologia importa sobremodo à Ciência do Direito.

Isso porque, enquanto ciência social, o Direito é – ou pelo menos deveria ser – sensível às mudanças da realidade. Bem por isso, para compreendê-lo nos moldes atuais ou mesmo para utilizá-lo como meio de transformação social, não é possível ignorar a produção jurídica dos tempos idos. Portanto, os documentos, os relatos, os livros e todas as demais formas de produção que se conservam forne-cem reflexões e materiais necessários ao conhecimento do fenômeno jurídico de modo mais completo. Paulo Bonavides5 é categórico ao afirmar que “não se pode compreender os rumos constitucionais contemporâneos, presentes à realidade brasileira, sobretudo depois da promulgação da Carta de 5 de outubro de 1988” sem refletir sobre as fases anteriores do constitucionalismo brasileiro e, por tudo, da teoria geral dos direitos fundamentais.

Valendo-se das palavras de Del Vecchio,6 a importância da história reside no fato de que ela oferece um “repositório de observações, de raciocínios, de distinções, que a um homem só, no decurso da vida, seria impossível ocorrer”. Desconsiderá-la, no entendimento do autor, seria “o mesmo que a qualquer ar-tífice actual que, agora, seria incapaz de ser o inventor de todos os instrumentos de sua arte”.

Assim, para os fins deste estudo, relembra-se, ainda que sumariamente, a gênese dos direitos fundamentais e a evolução do direito à intimidade, com especial destaque ao contexto histórico da época, às ideias que influenciaram sua elaboração e seu conteúdo, para depois ser possível tratar aspectos conceituais clássicos e contemporâneos.

2.2 A gênese dos direitos fundamentais

Algum dissenso teórico ainda há quanto à data precisa do surgimento dos direitos fundamentais. Todavia, parece mais coerente, conforme adverte Ana Maria D’Ávila Lopes,7 considerar que a teoria dos direitos fundamentais é contemporânea ao surgimento do Estado Constitucional no século XIX. Sem embargo, é evidente que há precedentes históricos que colaboraram para a criação de uma teoria geral dos direitos fundamentais.

É possível afirmar, com alguma segurança, que a força motriz para o desenvolvimento dos direitos fundamentais foi a vontade de se construir uma plataforma de direitos que pudesse proteger a dignidade da pessoa humana. Essa caminhada para a tutela da pessoa – em sentido ontológico e não jurídi-co – teve início no plano internacional quando se buscou defender os direitos do homem.

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Atribui-se à Europa moderna, com o movimento iluminista e a ebulição das revoluções tendentes a desmantelar o Ancien Régime, a estruturação dos direitos humanos8-9. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 trouxeram em seus textos as diretrizes que deveriam servir de guia a todas as nações para que o homem fosse efetivamente protegido.

Bobbio10 afirma que a importância dessas Declarações está no fato de que pela primeira vez ocorreu a “passagem da teoria à prática, do direito somente pensado para o direito realizado”. É nesse instante que ganha alguma concretude os direitos do homem.

Importante ressaltar que uma e outra categoria – direitos humanos e direitos fundamentais –, apesar de guardarem pontos de contato, não se con-fundem.11 Para Alexy12, os direitos humanos se caracterizam pela universalidade, fundamentalidade, abstratividade, moralidade e prioridade. Na medida em que se destinam igualmente a todos os homens, são considerados universais;13 a nota da fundamentalidade está no objeto de tais direitos, qual seja, a defesa de bens essenciais ao homem; a abstratividade está na forma ampla e genérica de sua disposição normativa; a moralidade resulta da aceitação, racionalmente justificada, desses direitos por cada pessoa e a prioridade, vinculada ao aspecto moral, representa a força cogente e soberana dessa categoria de direitos.

Contrapondo os direitos humanos aos fundamentais, Alexy14 alude a diferenças teóricas e práticas. Segundo ele, direitos humanos carecem de juridi-cidade, funcionando apenas como diretrizes morais. Somente a sua positivação pelos ordenamentos nacionais atribuir-lhes-ia a eficácia jurídica além da validade moral. Em termos literais, “direitos fundamentais são, portanto, direitos do homem transformados em direito constitucional positivo”.15 Essa distinção não destoa muito da proposta por Paulo Bonavides,16 no sentido de que os direitos humanos estão na órbita internacional, apresentando-se com baixo teor de juridicidade e os direitos fundamentais se acham na ordem constitucional, qua-lificados como normas de alto grau hierárquico, quiçá, amparados pelos efeitos das cláusulas pétreas.

Estabelecidas as diferenças entre as duas categorias de direitos, seguindo dos antecedentes às declarações, nas fases de evolução, há de se falar ainda nos processos de positivação, generalização, universalização e especificação.17

Em alusão ao pensamento de Peces-Barba, Ana Maria D’Ávila Lopes18 destaca que foi a falta de eficácia das declarações que impulsionou a incorporação dos direitos do homem no direito positivo. A reboque do processo de positivação, destaca a mesma autora as consequências do processo de constitucionalização dos direitos fundamentais:19

a) normas colocadas no grau superior da ordem jurídica;b) normas submetidas ao processo agravado de reforma;c) normas que limitam materialmente a própria reforma;

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d) normas dotadas de vinculatividade imediata dos poderes públicos, constituin-do parâmetros de escolhas, decisões, ações e controle de órgão legislativos, administrativos e jurisdicionais;

e) normas protegidas através de controle de constitucionalidade dos atos nor-mativos infraconstitucionais que pretendem regulá-las. Esta, sem dúvida, é consequência mais importante.

Na evolução dos direitos fundamentais, destaque merece ainda o processo de generalização, haja vista tentar superar a dicotomia entre o que era declarado nas normas supranacionais, e o que ocorria na realidade. Dois documentos tive-ram sobejada importância nesta fase: Manifesto Comunista de 1848 e Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de 1918. Por fim, a universalização de direitos, que guarda raízes em momentos anteriores, veio a se afirmar na De-claração Universal dos Direitos do Homem em 1948. Esse último fenômeno está vinculado “à internacionalização política e jurídica da matéria, já que os direitos do homem [tinham] deixado de ser um assunto que [atraia] a atenção apenas do ponto de vista histórico, filosófico ou doutrinário, transformando-se em tema que, política e juridicamente, [interessava] a toda comunidade internacional”.20

Nesse processo de construção teórica dos direitos fundamentais, alguns direitos, em um primeiro momento, apresentavam-se mais essenciais em vista do momento histórico em que a sociedade vivia. Conforme assevera Bobbio,21 deve-se afastar da discussão qualquer concepção jusnaturalista ou de estado da natureza por despicienda, pois era

A realidade de onde nasceram as exigências desses direitos era constituída pelas lutas e pelos movimentos que lhes deram vida e as alimentaram: lutas e movimentos cujas razões, se quisermos compreendê-las, devem ser buscadas não mais na hipótese de estado de natureza, mas na realidade social da época, nas suas contradições, nas mudanças que tais contradições foram produzindo em cada oportunidade concreta.

Sem dúvida, os direitos individuais são mais representativos inicialmente. Dentre eles, o direito fundamental à intimidade destaca-se.

2.3 A evolução do direito fundamental à intimidade

Apesar de ganhar contornos mais bem definidos somente no final do século XIX, o direito fundamental à intimidade já se apresentada timidamente antes. Segundo José Adércio Sampaio,22 data do século XVI, na Inglaterra, o princípio da inviolabilidade do domicílio – man’s house in his castle. Em meados do século XIX, é possível identificar, na Alemanha e na França, articulação da doutrina e da jurisprudência na defesa do direto à intimidade.

Todavia, é unívoco que o marco teórico sobre o tema foi o texto da lavra de Samuel Dennis Warren e Louis Demitz Bradeis publicado na Havard Law Review em 1890 titulado The right to privacy. Em análise cuidadosa dos precedentes da

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Suprema Corte dos Estados Unidos, os autores sustentaram que era preciso a defesa de um direito à privacidade, pois as leis precisavam ampliar sua proteção para proteger a vida do homem e o seu direito de ser deixado só para gozar a vida.

That the individual shall have full protection in person and in property is a principle as old as the common law; but it has been found necessary from time to time to define anew the exact nature and extent of such protection. Political, social, and economic changes entail the recognition of new rights, and the common law, in its eternal youth, grows to meet the new demands of society. Thus, in very early times, the law gave a remedy only for physical interference with life and property, for trespasses vi et armis. Then the “right to life” served only to protect the subject from battery in its various forms; liberty meant freedom from actual restraint; and the right to property secured to the individual his lands and his cattle. Later, there came a recognition of man’s spiritual nature, of his feelings and his intellect. Gradually the scope of these legal rights broadened; and now the right to life has come to mean the right to enjoy life, -- the right to be let alone; the right to liberty secures the exercise of extensive civil privileges; and the term “property” has grown to comprise every form of possession -- intangible, as well as tangible.

É a partir daí, portanto, que se reconhece o direito do indivíduo de estar só em seus sentimentos, emoções e pensamentos. O desenvolvimento doutrinário e o reconhecimento em sede jurisprudencial culminaram no reconhecimento normativo, inicialmente no plano internacional. Já na Declaração Universal de Direitos do Homem de 1948, consta artigo específico sobre a temática, quando o artigo XII prescreve que “ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.23

Contudo, apesar do reconhecimento de tal direito no plano internacional, sua proteção era mitigada pela carência de instrumentos de direito interno hábeis a tutelá-lo. Tal diagnóstico foi feito por David Flaherty:24

Historically, privacy has been largely a nonlegal concept in the sense that individuals have asserted both broad and narrow claims to individual privacy and could largely defend themselves against any challengers. At best, only marginal legal intervention to protect privacy interests occurred, as in common law prosecutions for eavesdropping. This has changed dramatically since the early phases of industrialization in the nineteenth century. Despite one’s best-intentioned efforts to maintain privacy, the operation of external laws and authorities has become essential for its preservation. Successive phases of mechanization and automation, from the telegraph and the telephone to computers and telecommunications devices, have challenged privacy in ways that few individuals can overcome alone.

Paulo José da Costa Júnior25 adverte que tal direito foi inicialmente de-fendido internamente na seara penal, destacando-se inicialmente a Alemanha

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e a Itália. Depois, outros países como Áustria, Suíça, Dinamarca e Portugal desenvolveram instrumentos para tutela desse direito na esfera penal. Somente depois da afirmação no âmbito internacional e penal é que tal temática viria a ser importada para a perspectiva constitucional e civil.26

Nota-se, portanto, que, em pouco tempo, a tutela da intimidade saiu da abstratividade e generalidade própria dos instrumentos internacionais para ganhar força normativa nos diplomas constitucionais, penais e civis de cada Estado. No Brasil, a intimidade é defendida por todas essas frentes, o que demonstra sua importância. Bem por isso, o debate teórico precisa ser oxigenado para oferecer novos artifícios que permitam a sua defesa.

3 LINEAMENTOS CONCEITUAIS CLÁSSICOS DOS DIREITOS FUN-DAMENTAIS

3.1 Classificação, conceitos e teorias: enquadramento teórico tradicional do direito fundamental à intimidade

Como dito, o tempo é informador do desenvolvimento do direito. Cada momento da histórica influencia diretamente a construção da ciência jurídica. Bem por isso, é possível sustentar que os direitos fundamentais foram emergindo pouco a pouco a depender dos interesses e necessidades de cada época.

Observa-se que inicialmente o desenvolvimento dos direitos fundamentais está associado ao ideal libertário com a defesa dos direitos da liberdade. Segundo Paulo Bonavides,27 a primeira geração de direitos fundamentais “tem por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzindo-se como faculdade ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”. Pretendia-se com eles frear a ingerência e poder Estatal na vida privada e pública, notadamente no mercado e na política, objetivando encerrar o despotismo.

Esses direitos de primeira geração, que surgem na primeira metade do século XVIII, “foram os primeiros direitos do homem a serem positivados e têm como fundamento a famosa hipótese do estado de natureza, que foi, na verda-de, apenas uma tentativa de justificar racionalmente, ou de racionalizar, novas exigências dos homens”.28

O direito fundamental à intimidade, portanto, insere-se dentro dessa categoria, uma vez que este direito garante o direito da pessoa de preservar-se, de viver sem ingerências externas. Isso porque, de início, conceitualmente a intimidade lastreava-se na ideia de ficar só.

Conforme bem ilustra Konder,29 historicamente o direito à intimidade30 guarda raízes no embate entre uma atriz famosa e um jornal de sua época. Relata o autor que

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Em 1890, Marian Manola, em uma cena da peça de teatro “Castles in the air”, na qual aparecia com roupas íntimas, viu-se surpreendida pelo espocar do flash da câmera de um fotógrafo do The New York Times (Myers), que se escondera entre os objetos cenográficos no palco. Transtornada ao compreender o que tinha ocorrido, Marian se cobriu com um cobertor e fugiu do palco no meio do espetáculo, vindo depois a dar origem ao processo “Manolavs. Myers” junto à Suprema Corte de Nova York [...]. Esse acontecimento fez com que os juristas Warren e Brandeis publicassem, no mesmo ano, na Harvard Law Review, um artigo em que divulgavam o direito à privacidade como um amplo right to bet let alone, concepção posteriormente adotada expressamente pela Suprema Corte americana.

Essa ideia sugerida por Samuel Dennis Warren e Louis Demitz Bradeis31 do direito à intimidade informa os moldes clássicos desse direito. Na dicção de Konder,32 “trata-se da versão original da concepção amplamente difundida entre nós do direito à privacidade como o ‘direito a ficar só’ ou o ‘direito a ser deixado só’; a proteção jurídica de espaços livres de vigilância para o desenvolvimento da personalidade; a defesa de uma existência pessoal única contra perturbações exteriores, como o assédio e a observação.”

Considerando apenas essa concepção clássica, verifica-se que a tutela da intimidade limitava-se à defesa física do sujeito, de seu domicílio e de suas comunicações. No século XIX, a par de dúvidas, portanto, o maior inimigo da intimidade era a imprensa. É nesse momento que a teoria proposta por Samuel Dennis Warren e Louis Demitz Bradeis33 ganha formas de refina-mento. Livros de direito constitucional mais clássicos desenvolvem a teoria dos círculos concêntricos. Atribui-se a construção teórica deste modelo a um debate entre Heinrich Henkel e Heinrich Hubmann. 34No Brasil, a teoria foi difunda por Paulo José da Costa Júnior35 e encontra análise crítica em Danilo Doneda36 e Bruno Lewicki.

Em linhas gerais, essa teoria sustenta que a “esfera mais ampla da priva-cidade sucedia a mais restrita da intimidade, acessível somente a pessoas muito próximas, e, enfim, a esfera do segredo, contendo aquilo a que somente seu titular tinha acesso”.37 Sem entrar no mérito da manutenção ou não da referida teoria, é certo que ainda hoje a doutrina se baseia no referido modelo para versar sobre o tema, apesar dos esforços de alguns estudiosos, parece que a teoria ainda se mantém.38

Do exposto, valendo-se ainda dos ensinamentos de Konder39, constata-se que tal teoria se afirma a partir da “concepção de um indivíduo isolado, ao qual o ordenamento permite a prerrogativa de ‘murar-se’ contra agressões alheias. O sucesso da proteção à privacidade pressupõe, sob esse ponto de vista, a ausência de interferências externas. Trata-se de uma garantia jurídica de isolamento.”

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3.2 Dimensão subjetiva e objetiva do direito fundamental à intimidade

O próprio desenvolvimento de uma teoria geral dos direitos fundamentais demandou algumas formulações teóricas para melhor compreensão do fenômeno. Segundo Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins,40 a partir da década de 1960, surgiram muitas teorias dos direitos fundamentais com o objetivo de redefinir e classificar essa categoria a partir de seus efeitos, funções e dimensões. Segundo os autores, “a tendência contemporânea é distinguir duas funções ou dimen-sões centrais dos direitos fundamentais que não devem ser confundidas com as categorias de direitos fundamentais [...]. Trata-se a função subjetiva (ou função clássica) e da função objetiva”.

Para Paulo Gustavo Gonet Branco,41 a dimensão subjetiva corresponde ao fato de esses direitos conferirem ao seu titular pretensão em face do Estado ou de particular, podendo exigir determinada conduta em seu benefício. Ao passo que a dimensão objetiva, revela-se em duplo sentido: ora como limite ao Estado, ora como vetor que deve guiar suas condutas do poder público para perseguir os objetivos constitucionais. A dimensão objetiva é (rectius, deve ser) condicionada à ordem de valores informada pelos princípios propulsores da unidade e adequação do sistema jurídico teleológico.42

3.2.1 Dimensão subjetiva

3.2.1.1 A teoria do status de Jellinek e a intimidade como status negativus

Coube a Georg Jellinek sistematizar a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais. Pela sua teoria do status, segundo Ana Maria D’Ávila Lopes, Jellinek reconheceu que todo indivíduo, para ter participação na esfera pública, precisa do reconhecimento estatal. Uma vez reconhecida sua per-sonalidade enquanto membro da comunidade, há um status, que qualifica a relação jurídica homem-Estado. Existem, em síntese, quatro os status da teoria de Jellinek:43

(i) status passivo ou subjetionis: situação passiva do indivíduo em relação ao Estado, não havendo direito à uma pretensão (direito subjetivo)

(ii) status libertatis ou negativus: ao reconhecer-se o espaço de autonomia do indivíduo, por consequência, são reconhecidos direitos de defesa em face do Estado

(iii) status civitatis ou positivus: permite ao cidadão demandar o Estado para que este promova determinados direitos básicos

(iv) status activus: importa na participação do individuo na vida política, na formação da vontade estatal

Dentre os quatro status da teoria de Jellinek, a intimidade enquadrar--se-ia, considerando sua perspectiva clássica, no status libertatis ou negativus (ii), haja vista que o particular pode exigir do Estado e dos particulares um dever geral de abstenção em desfavor de sua esfera privada. Verifica-se, portanto, que

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o enquadramento da intimidade no segundo status reafirmar o conceito clássico erigido para este modelo.

3.2.1.2 Critério funcional: direito à intimidade como direito de defesa

Tendo como gérmen a teoria dos quatro status de Jellinek, a doutrina contemporânea formulou outra teoria para enquadrar os direitos fundamentais. Tal teoria, segundo Ingo Sarlet,44 classifica os direitos fundamentais de acordo com seu critério funcional. Segundo o mesmo autor, em alusão ao pensamento de Alexy, os direitos fundamentais apresentar-se-iam ora como direitos de defesa e ora como direitos a prestação.

De modo direito, os direitos de defesa estariam para os direitos de primeira geração e para o status libertatis ou negativus, assim como os direitos a prestação estariam para os direitos de segunda geração e para o status civitatis ou positivus. Ou seja, enquanto os direitos de defesa se afinam com condutas absenteístas, os direitos a prestação exigem prestação positiva do Estado.

Colocadas tais premissas teóricas, é de se notar que a intimidade guarda estreita relação com o critério funcional de defesa. Não por menos, é possível identificar, na Constituição Federal, precisamente nos incisos X45 e XII46, um dever a distanciamento da vida privada e da intimidade. Contudo, não é menos verdade que, no atual estado da arte, tal direito também deva ser encarado como um direito de prestação, na medida em que demanda ações do Estado para garantir sua função de defesa, discussão essa que será melhor abordada ainda no presente escrito.

3.2.2 Dimensão objetiva

Além da dimensão subjetiva, os direitos fundamentais também apre-sentam uma dimensão objetiva. A dimensão objetiva dos direitos fundamen-tais é lastrada na teoria de valores,47 que defende os direitos fundamentais como valores convergentes para alcançar o objetivo de tutela da dignidade da pessoa humana.

A falência do Estado Liberal e a emergência do modelo de Estado Social colaboraram para a criação de uma ordem valorativa que irradiaria as intenções de novo momento, cheio de expectativas, que tem como eixo a defesa do homem em sua completude.

Nessa perspectiva, ganha força a doutrina de Canaris.48 O autor defen-de que há de existir uma orientação axiológica que reconheça os princípios constitucionais como valores últimos a servirem de norte para adequação e unidade do ordenamento jurídico. Esse raciocínio vem a justificar que o aplicador do Direito deve buscar a unidade e adequação do sistema, preferindo os valores genéricos que conduzam a justiça, a igualdade e a dignidade.

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Na mesma linha de argumentação, Daniel Sarmento49 aduz que a dimensão subjetiva significa que:

[...] os valores que dão lastro aos direito fundamentais penetram por todos os ramos do ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos e dire-trizes para o legislador, a administração e o judiciário. A eficácia irradiante, nesse sentido, enseja a ‘humanização’ da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento da aplica-ção, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade, da igualdade substantiva e da justiça constitucional impressas no tecido constitucional.

Em decorrência da força irradiante desses valores, Jorge Reis Novais50 reco-nhece alguns efeitos na conformação da tutela dos direitos fundamentais, a saber: proibição de atos normativos que afrontem o sistema, de valores; interpretação restritiva de leis que restrinjam os direitos fundamentais; vinculação do Poder Judiciário aos direitos fundamentais na resolução de casos concretos em que há lacunas; eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas; obrigação do Estado de oferecer condições mínimas de exercício dos direitos fundamentais mediante normatização e dever do Estado de proteger os particulares contra violação de seus direitos fundamentais frente entes públicos e privados.

Pelo exposto, é de se notar que se a dimensão subjetiva do direito funda-mental à intimidade preserva os traços tradicionais pela perspectiva da teoria do status de Jellinek e pelo critério funcional no sentido de direito de defesa, é possível sustentar, no contexto contemporâneo, que também caberia enquadrar essa modalidade de direito fundamental como um direito de prestação e ressignificá-lo a partir da ordem de valores hoje erigida.

4 O IMPACTO DA TECNOLOGIA E DO CONHECIMENTO CIENTÍFI-CO NA TUTELA DA INTIMIDADE: OS EFEITOS DA SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO

Como já foi dito, o ordenamento jurídico brasileiro protege a intimidade e a vida privada no artigo X da Constituição Federal de 1988. O direito à inti-midade refere-se à proteção da esfera privada ou íntima de uma pessoa, devendo ser esta protegida contra ingerências externas, alheias e não requisitadas.

Contudo, o conceito clássico de intimidade é anacrônico. Se, tradicio-nalmente, o direito à intimidade era sinônimo do direito a ser deixado só – construção proposta por Samuel Dennis Warren e Louis Demitz Bradeis51–, presentemente pode-se afirmar que a intimidade evoluiu. Está incluso em seu conteúdo a tutela de dados sensíveis,52 de seu controle pelo titular e de “respeito à liberdade das escolhas pessoais de caráter existencial”53

Na mesma ordem de ideias, prescreve Stefano Rodotà:54

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As discussões teóricas e as complexas experiências dos últimos anos demonstram que a privacidade se apresenta, enfim, como noção fortemente dinâmica e que se estabeleceu uma estreita e constante relação entre as mudanças determinadas pelas tecnolo-gias da informação (mas também pelas tecnologias da reprodução, pela engenharia genética) e as mudanças em seu conceito. Uma definição de privacidade como ‘direito a ser deixado só’ perdeu há muito tempo seu valor genérico, ainda que continue a abranger um aspecto essencial do problema e possa (deva) ser aplicada em situações específicas. Na sociedade da informação tendem a preva-lecer definições funcionais da privacidade que, de diversas formas, fazem referência à possibilidade de um sujeito conhecer, controlar, endereçar, interromper o fluxo das informações a ele relacionadas. Assim, a privacidade pode ser definida mais precisamente, em uma primeira aproximação, como direito de manter o controle sobre as próprias informações.

Para circunscrever a órbita da esfera privada, o autor afirma que esta seria “aquele conjunto de ações, comportamentos, opiniões, preferências, informações pessoais, sobre os quais o interessado pretende manter um controle exclusivo”, sendo, em consequência, sua tutela “as escolhas de vida contra toda forma de controle público ou de estigmatização social”.55

Se a interpretação do direito à intimidade antes era restrito, resumindo-se à ideia de que terceiros não poderiam infligir a esfera privada, hoje esse conceito deve ser ampliado. Essa ampliação conceitual deve se dar devido às novas formas de coleta e divulgação dos dados pessoais. Na sociedade da informação, não é fictício o mundo de George Orwell ou a ideia do panóptico de Jeremy Bentham. Ao revés, a literatura e a filosofia dos pensadores nunca se mostraram tão reais.

Com as novas tecnologias, especialmente com o desenvolvimento da biotecnologia, da biomedicina e da internet, o acesso a dados sensíveis e a sua divulgação foram facilitados de forma extrema, o que potencializa os danos que podem ser perpetrados. Como efeito, a tutela da privacidade passa a ser vista não só como o direito de não ser malferido mas também como o direito de ter controle sobre os dados pessoais, com o objetivo de se impedir a sua circulação indesejada.

Além das três visões possíveis sobre o direito à privacidade apresentadas, quais sejam, (i) o direito de ser deixado só, (ii) o direito de ter controle sobre a circulação dos dados pessoais, e (iii) o direito à liberdade das escolhas pessoais de caráter existencial, discute-se um novo entendimento, o de que a pessoa titular de determinado dado relacionado a sua condição existencial tem o direito de não o conhecer.

Essa seria a esfera de proteção mais estrita da privacidade, porquanto prote-ge o direito de uma pessoa de não saber como consequência da tutela ampliada de dados sensíveis “destinados para dentro”. Assim, é que também defende Rodotà56 que os fluxos de informações devem ser analisados também em relação àqueles

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dados “‘destinados para dentro’– sobre os quais a pessoa talvez queira exercer o ‘direito de não saber’ –, a privacidade deve ser considerada como ‘o direito de manter o controle sobre suas próprias informações e de determinar a maneira de construir sua esfera particular’”. Nesse sentido, em 1983, ao ser reivindicada a autonomia do indivíduo na sociedade de informação, a Corte Alemã, em uma decisão histórica, reconheceu o direito à “autodeterminação informativa”.57

O reconhecimento do direito de não saber, modifica substancialmente a forma de conceber o direito à intimidade. O poder de controlar as informações que dizem respeito à pessoa, que é a definição mais atualizado do right of privacy, que pode se manifestar como poder negativo, ou seja, como direito de excluir da própria esfera privada uma determinada categoria de informações não desejada. Daí porque ao se referir ao direito de não saber como consequência da proteção do direito à intimidade.

O debate realizado no julgado objeto do presente estudo reflete justamente o conflito entre adeptos de uma concepção ampliada do direito de intimidade (Ministra Nancy Andrighi) e adeptos de uma concepção clássica e restrita de privacidade (Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseve-rino e Vasco Della Giustina), que fizeram prevalecer o entendimento no caso de que uma pessoa tem o direito de ter resguardada a sua vida privada contra ingerências indevidas de terceiros, mas não contra o próprio conhecimento, em vista da veracidade, do sigilo e dos interesses público e privado relacionados.

Este entendimento, contudo, representa uma injustificada restrição ao exercício de uma condição existencial que, em última instância, viola a dignida-de da pessoa humana, base fundamental do Estado Democrático. Por isso, para demonstrar a incorreção da decisão tomada, analisar-se-á o âmbito de proteção do direito fundamental à intimidade na contemporaneidade; o caráter relativo dos direitos fundamentais, mas a impossibilidade de anulação do direito à intimidade ante o interesse público, para, por fim, rediscutir a dimensão subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais em casos envolvendo dados sensíveis.

5 ANÁLISE CRÍTICA DO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL 1.195.995/SP: AS FRONTEIRAS ATUAIS DO DIREITO FUNDAMEN-TAL À INTIMIDADE

Uma vez identificado onde se insere o direito fundamental à intimidade na teoria geral dos direitos fundamentais, é viável revisar alguns conceitos coloca-dos para demonstrar a plasticidade do direito ora analisado ao longo do tempo.

5.1 Âmbito de proteção dos direitos fundamentais e o necessário redimensiona-mento protetivo do direito fundamental à intimidade

Não é tarefa fácil identificar o âmbito de proteção de um direito funda-mental. Contudo, não se pode fugir desta tarefa para compreender corretamente

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a teoria geral dessa categoria de direitos. A dificuldade de entendimento reside nas contínuas alterações que esses direitos sofrem ao longo do tempo. Somente a partir de um estudo lastrado nas alterações de contexto histórico, como ora se faz, poder-se-á chegar a algum ponto que fuja a teorias bem feitas, dogmatica-mente perfeitas e herméticas, porém sem aplicabilidade e longe de conquistar a eficácia que se espera, para construir uma teoria que, apesar de complexa, possa atender às emergências sociais.

Por âmbito de proteção dos direitos fundamentais se deve entender como o alcance ou o espectro de exercício desses direitos. Canotilho58 chama de âmbi-to de proteção de um direito fundamental o “âmbito de vida” ou o “âmbito de realidade”, pelo que o âmbito de proteção seriam as realidades defendidas pelos dispositivos constitucionais.

Dentro da construção teórica do âmbito de proteção há uma dicotomia, havendo quem se afine à concepção de âmbito de proteção restrita e ao âmbito de proteção ampla. A diferença, em análise dos ensinamentos de Gilmar Mendes59 e de Canotilho,60 reside no fato de que o conceito restrito retira do âmbito de proteção, aprioristicamente, as restrições de ordem constitucional ou autorizadas pela constituição (reserva legal), enquanto a concepção ampla desconsidera as restrições impostas ao direito fundamental.

A concepção estrita, adotada por Gilmar Mendes, parece a mais coerente, haja vista que não há direitos fundamentais absolutos. Partindo dessa premissa, admite-se sim a possibilidade de restrição do direito fundamental à intimidade, desde que a limitação seja especificada e atenta à sociedade contemporânea.

Bem por isso, para descobrir o âmbito de proteção desse direito na atualidade, faz-se premente identificar o bem jurídico a ser defendido e depois confrontá-lo com outros valores previstos na ordem constitucional.

No caso do Recurso Especial 1.195.995/SP, não há norma, constitucional ou infraconstitucional, que restrinja ou retire do âmbito de proteção do direito fundamental à intimidade o direito a não saber. De modo contrário, considerando a ordem de valores e o princípio da dignidade humana, é possível sustentar que direito a não saber, como consectário lógico do direito à intimidade, está incluído no raio de proteção da intimidade.

5.2 Caráter relativo dos direitos fundamentais e colisão de direitos: possibilidade de ponderação (e não anulação) da intimidade em face do interesse público

O argumento balizar o Ministro Massami Uyeda para afastar o direito a não saber no caso em questão foi a preservação de um “direito maior”. Por oportuno, repise-se trecho do acórdão para posterior análise:

Na verdade, é de se admitir, excepcionalmente, a tangibilidade ao direito à intimidade, em hipóteses em que esta se revele necessária à preser-vação de um direito maior, seja sob o prisma individual, seja sob o enfoque

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do interesse público. Tal exame, é certo, não prescinde, em hipótese alguma, da adoção do princípio da dignidade da pessoa humana, como princípio basilar e norteador do Estado Democrático de Direito, e da razoabilidade, como critério axiológico. (Grifou-se)

Em sua argumentação, salvo melhor juízo, entende-se que o magistrado não utilizou devidamente a teoria geral dos direitos fundamentais pelas seguintes questões a seguir expostas.

De início, sustenta, sem a devida fundamentação – indicação pormenori-zada – em que medida há interesse individual e público que justifique afronta ao direito à intimidade. Ao longo do voto, de modo genérico, afirma que o autor da demanda, o paciente, poderia se cuidar melhor e preservar seu direito à vida, ao passo que o interesse público correlato seria a impossibilidade de infecção de terceiros. Depois, mais uma vez de forma genérica, como locus retórico, adota o princípio da dignidade da pessoa humana para justificar o afastamento do direito fundamental à intimidade. Por fim, vale-se da razoabilidade para resolver pretenso conflito do caso, taxando-o de critério axiológico.

Por tudo, não há lastro teórico na decisão. Pontualmente, explica-se.

Em relação aos interesses privado e público, não se consegue visualizar, de maneira clara, como e por que tais interesses poderiam suplantar o direito individual colocado em questão. Em relação ao interesse particular, deveria sim o magistrado ter pensado no efeito deletério que informação desse jaez pode ocasionar na vida pessoal e profissional de uma pessoa. Pode haver – como, em verdade, há – um processo de aniquilamento pessoal, com a estigmatização do sujeito. Suas relações afetivas e trabalhistas, sumariamente, podem ir por terra. O que deve ser considerado é o seguinte: o suposto direito à vida que se busca defender considera os efeitos danosos de uma notícia dessa ordem? De modo mais direto: será que a vida do paciente do caso será digna? Conseguirá ele viver bem (integridade psíquica) com notícia de doença desta ordem? Pela gravidade da informação, é que se sustenta que somente o sujeito envolvido pode demandar saber de tal dado sensível.

De igual modo, não merece subsistir o argumento de interesse público. Preo-cupa-se com a criação de um precedente dessa ordem. Analise-se: no caso, laboratório privado – prestador de serviço que tem responsabilidade civil objetiva nos moldes do Código de Defesa do Consumidor – tem seu dever de indenizar mitigado pelo interesse público envolvido, mesmo em caso de flagrante erro. Ora, lembre-se que o Estado também detém laboratórios. Não é absurdo pensar que num determinado momento, sob o pálio do discurso do interesse público, todo hospital público faça exames de doenças contagiosas, informe aos pacientes e não seja responsabilizado. Também nesses casos teríamos uma excludente de responsabilidade para o caso de responsabilidade civil do Estado, que, conforme previsão constitucional, é objetiva, nos termos do artigo 37, §6º?61 Não parece essa ser a melhor saída. Há que ser sim, Estado ou particular, responsabilizado pelos danos que venha a causar.

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Por fim, quisesse o magistrado resolver a colisão presente no caso, mais correto seria ter se valido do princípio da ponderação de bens e não da razo-abilidade, que tão somente considera o bom senso para resolução dos casos. Pergunta-se: qual a vinculação da razoabilidade e como tal método é critério valorativo? Neste ponto, a análise fica até prejudicada ante a falta de substrato lógico presente na decisão.

5.3 Critério funcional do direito fundamental à intimidade na atualidade: para além de um direito de defesa, um direito prestacional

Não há dúvida de que o status negativo e o enquadramento do direito à intimidade como direito de defesa persevera, haja vista que, em regra, a demanda para sua preservação repousa em um dever geral de abstenção. Entrementes, como se demonstrou, o direito fundamental à intimidade tem novos contornos.

Diante da sociedade de informação que vivemos, é talvez mais importante que o Estado ofereça políticas públicas, como acontece na Europa, para reprimir atentados à intimidade do que efetivamente macule de forma direta a privacidade de um sujeito.

Propor leis, instituir uma agência reguladora e punir de modo efetivo todos aqueles que malfiram, indevidamente, a intimidade, parecem ser saídas viáveis para manter vivo, em sua fundamentalidade, o direito à intimidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos argumentos trazidos, sustenta-se, em concordância com o entendimento da Ministra Nancy Andrighi, que “a intimidade abrange o livre arbítrio das pessoas em querer saber ou não algo afeto unicamente à sua esfera privada. Vale dizer: todos têm direito de esconder suas fraquezas, sobretudo quando não estão preparados para encarar a realidade”. A divulgação à pessoa de dado não requisitado configura violação ao seu direito de não saber e gera, incontestavelmente, o direito à indenização por danos morais, já que afronta o direito fundamental à intimidade.

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1 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2004, p. 114.

2 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 26.

3 JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de Pensamento e Direito à Vida Privada: conflitos entre direitos de personalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.261.

4 Em análise sobre a relação de passado, presente e futuro, Edgar Morin é contra uma concepção simplista que acredita no conhecimento pleno do passado e do presente e, por uma causalidade retilínea, acredita em um futuro previsível. Para ele, “a evolução não obedece nem às leis nem aos determinismos prepotentes. Não é mecânica nem linear. Nela não existe um fator dominante que permanentemente comanda a evolução. [...] A realidade social é multidimensional; ela comporta fatores geográficos, econômicos, técnicos, políticos, ideológicos... Num dado momento, alguns destes fatores podem ser dominantes, mas existe rotatividade no domínio. A dialética não caminha sobre os pés nem sobre a cabeça; ela gira, pois é antes de tudo jogo de inter-retro-ações, isto é, elo em perpétuo movimento. Deste fato, decorre que tudo aquilo que é evolutivo obedece a um princípio multicausal” (2010, p.15). Na mesma linha de intelecção, Daniel Bensaïd sobre a não linearidade da história: “Se trata de terminar con una representación de la historia lineal en su curso y homogénea en sus momentos, donde flujo temporal y significación no debería reducirse al relato encargado de ordenar el caos de los hechos.

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[...] El desarrollo desigual entre esferas sociales, jurídicas y culturales obliga, por el contrario, a pensar un progresso que no sea ni automático ni uniforme. La historia no es un largo río tranquilo.” MORIN, Edgar. In: MORÁS, Francisco (Trad.). Para onde vai o mundo? Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, p. 48/51.

5 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 361.6 DEL VECCHIO, Giorgio. In: BRANDÃO, Antônio José (Trad.). Lições de Filosofia do Direito. Coimbra:

Armênio Amado Editor Sucessor, 1979, p.31.7 LOPES, Ana Maria D´Ávila . Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar. Porto Alegre:

Sergio Antonio Fabris, 2001b, p. 46-47.8 Em relação aos aspectos terminológicos, neste trabalho, considera-se a expressão direitos humanos como categoria

que alude aos direitos do homem em nível supranacional, conforme LOPES, Ana Maria D´Ávila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001b, p. 42.

9 VILLEY, Michel. In: GALVÃO, Maria Ermantina de Almeida Prado (Trad.). O direito e os direitos humanos. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2007, p. 9.

10 BOBBIO, Norberto. In: COUTINHO, Carlos Nelson (Trad.). A era dos direitos. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier, 2004, p. 29.

11 Por tudo, adere-se ao entendimento de que “Direitos humanos e direitos fundamentais não se identificam, não são sinônimos, embora se admita que o ideal seria, precisamente, sua identificação, isto é, o ideal seria que fosse positivado todo esse sistema de interesses universalizáveis com um primeiro passo para sua realização” LOPES, Ana Maria D´Ávila. A gênese dos direitos fundamentais. In Democracia hoje: para uma leitura crítica dos direitos fundamentais. Passo Fundo: UPF, 2001a, p.38-39.

12 ALEXY, Robert. In: HECK, Luís Afonso (Ttrad.). Constitucionalismo discursivo. Porto Alegre, RS: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 94.

13 Uma crítica feita ao caráter universal dos direitos humanos pode ser encontrada em BIELEFELDT, Heiner. In: WEYNE, Bruno (Trad.). Os direitos humanos num mundo pluralista. Pensar, Fortaleza, v. 13, n. 2, p.166-174, jul./dez. 2008.

14 ALEXY, op. cit.15 Ibid., p. 96.16 BONAVIDES, Paulo. Direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 132.17 LOPES, 2001b, op.cit., p.46.18 Ibid., p.56.19 Ibid., p. 58.20 Ibid., p.58-60.21 BOBBIO, op. cit., p.68-69.22 SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e à vida privada: uma visão jurídica da sexualidade, da

família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 55.23 Outros diplomas reconheceram o direito à vida privada e à intimidade. A título exemplificativo, destacam-

-se: a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 1950, o Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966, a Conferência Nórdica sobre o Direito à Intimidade em 1967, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no Pacto de São José da Costa Rica, de 1969.

24 FLAHERTY, David H. On the utility of constitutional rights to privacy and data protection. Case Western Reserve Law Review, v. 41, Issue 3, p.831, june 1991.

25 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.81-82.

26 Ibid., p.84.27 BONAVIDES, op. cit., p. 564.28 LOPES, 2001b, op. cit., p. 63.29 KONDER, Carlos Nelson. Privacidade e corpo: convergências possíveis. Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 2, p.

352-398, mai./ago. 2013, p. 353.30 Para fins deste trabalho, apesar das teorias que diferenciam os termos intimidade e privacidade, adotar-se-á

uma e outra nomenclatura como sinônimas. 31 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D.. The right to privacy. Harvard Law Review, vol. iv, n.5,

december 15, 1890.32 KONDER, op. cit., p. 353-353.33 WARREN; BRADEIS, op. cit.34 LEWICKI, Bruno. A privacidade da pessoa humana no ambiente de trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 35 COSTA JÚNIOR, op. cit.

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36 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.37 KONDER, op. cit., p. 355.38 Sobre a teoria mosaico proposta por Fulgêncio Madrid Conessa, por todos, recomenda-se a leitura de

BESSA, Leonardo Roscoe. O consumidor e os limites dos bancos de dados de proteção ao crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 91. Para o autor, pouco importa a qual esfera a informação pertence, sendo mais importante verificar o uso que se fará dela para a devida defesa.

39 KONDER, op. cit., p. 355-357.40 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo Garcia. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo:

Atlas, 2012, p.110.41 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos da teoria geral dos direitos fundamentais. In MENDES, Gilmar

Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direito fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 152-153.

42 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1996, p. 23.

43 Apesar de criticado, o modelo de proposto por Jellinek tem sua importância, e sua relevância para a teoria geral dos direitos fundamentais subsiste. Para uma análise crítica, por todos, LOPES, Ana Maria D’Ávila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001b, p.40.

44 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 174, p.174.

45 X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

46 XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

47 SARMENTO, op. cit.48 CANARIS, op. cit. 49 SARMENTO, op. cit., p. 155.50 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela

Constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 81-82.51 WARREN; BRADEIS, op. cit.52 São considerados dados sensíveis, por versarem sobre os aspectos da personalidade da pessoa, aqueles

relacionados à origem étnica ou racional, às opiniões políticas, às preferências sexuais, ao patrimônio genético do indivíduo, às crenças religiosas, às opções políticas ou filosóficas e às questões relacionadas à saúde, conforme SANTOS, Antônio Jeová, op. cit., p. 194.

53 LEWICKI, op. cit., p. 9.54 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 92.55 Ibid., p. 92.56 Ibid., p.15.57 Ibid., p.15.58 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,

2003, p.448-449.59 Gilmar Mendes (2002, p.199)60 CANOTILHO, op. cit., p.448-449.61 § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos

responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

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O direito a não saber: novos contornos do direito à intimidade

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“NOT KNOWING” RIGHT: NEW BOUNDARIES ON THE RIGHT TO PRIVACY

ABSTRACT

On the contemporary society, named information society, the classic outlines of fundamental rights to intimacy are no more capable of protecting personal data from clandestine access. Beyond it previous understanding as a right to protect the individual against interference in his life for others, nowadays, as result of technological progress, it seems to be more appropriate to conceive it as the protection of the informational self-determination. In this context, this article aims to analyse the judicial decision of the third section of the Superior Tribunal de Justiça upon the appeal nº 1.195.995/SP, which has argued about the existence of a right to “not knowing” related to certain medical information, even it is correct and confidential, although not required by the patient, as corollary of the right to intimacy. The objective of this study is to point out the new outlines of the fundamental right to intimacy by means of bibliographic and doctrinal research, and analyses of court cases, on the light of national and international legislation.

Keywords: Fundamental Rights. Right to Intimacy. Informative Self-determination. “Not Knowing” Right.

Submetido: 22 jun. 2015Aprovado:18 ago. 2015

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legitimAção DecisóriA no noVo cóDigo De processo ciVil

Christiano Rodrigo Gomes de Freitas*

Cristiano Duro**

1 Introdução. 2 Relação Jurídica e a Socialização Processual: A Instrumentalida-de e o Insuperável Paradoxo de Büllow. 3. A Crise dos Escopos Metajurídicos. 4 Paradigma Democrático e Legitimação. 5 Processo Jurisdicional Democrático no Novo CPC. 6 Considerações Finais. Referências.

RESUMO

A proposta do presente artigo é uma reflexão sobre a visão de processo como instrumento da jurisdição, enfrentando, de forma crítico-científica, a concepção de processo e seus institutos, momento a partir do qual se tentará demonstrar as aporias teórico-metodológicas dessa concepção, descons-truindo sua aplicabilidade no paradigma democrático que desagua na necessária reflexão sobre elementos externos ao sistema jurídico. Por conseguinte, buscando uma estabilização interpretativa, tentaremos delinear a legitimação dentro do Estado Democrático de Direito, que tem como consequência lógica a tentativa de construir uma metodologia de legitimação democrática da decisão a partir do novo Código de Processo Civil e institutos trazidos pelo seu complexo normativo, sem em vista da concepção de processo constitucional e perpas-sando pelo contraditório, simétrica paridade e ampla defesa, como elementos estruturais garantidores do ideal democrático, aptos a permear o procedimento processual de participação na construção do ato jurisdicional por meio de um processo comparticipativo e policêntrico.

Palavras-Chaves: Processo Constitucional. Democracia. Legiti-midade. Participação. Novo CPC.

* Mestre em Direito Processual pela PUC-Minas. Juiz de Direito do TJSP. E-mail: [email protected].

** Mestrando em Direito Processual da PUC-Minas. Pós-graduado, nível especialização, em Direito Processual Civil pelo IDDE/Universidade de Coimbra (PT). Advogado. E-mail: [email protected].

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1 INTRODUÇÃO

A legitimidade da decisão judicial sempre esteve atrelada à pessoa do julgador e aos fins por ele realizados, incumbido que estava de realizar objetivos variados, em um protagonismo absoluto, sem qualquer preocupação com a in-clusão dos destinatários da decisão ou mesmo da submissão a qualquer tipo de controle endoprocessual ou extraprocessual.

O processo, enquanto instrumento da jurisdição para a realização de objeti-vos sociais, culturais, econômicos, dentre outros selecionados pelo decisor, esteve presente no ordenamento jurídico brasileiro desde o CPC de 1939, o que perdurou no CPC de 1973, agravada a situação com a concepção do instrumentalismo que reservou ao julgador o papel central do procedimento, tido como engenheiro social.

Nesse modelo, competia ao julgador definir e construir unilateralmente as bases e o conteúdo decisório, alheio à comparticipação dos destinatários do comando estatal, sem, portanto, qualquer legitimidade democrática, mas decor-rente exclusivamente da autoridade pessoal do julgador.

O novo Código de Processo Civil (Lei 13.105, de 16 de março de 2015) abre a possibilidade para um novo modelo, avesso à centralidade e voltado para a pluralidade, em observância estrita da concepção democrática de processo, consagrada no Brasil pela Constituição da República de 1988, primando pela comparticipação na elaboração da decisão estatal.

A compreensão dessa alteração exige um estudo crítico dos fundamentos estabelecidos por ideologias, construindo noções crítico-argumentativas de sus-tentação interpretativa capazes de eliminar o discurso de autoridade em favor da capacidade de cidadania1, em especial diante do proeminente papel do processo na construção do Estado de Direito Democrático.

No percurso a ser vencido, repassar-se-á pelo processo como relação ju-rídica, uma das bases teóricas do movimento de socialização processual e pilar teórico do Código Buzaid, trazendo como consectário lógico o próprio movi-mento de socialização e sua vertente brasileira, já com características neoliberais, oportunidade que prestará para demonstrar acomodações teóricas incapazes de serem solucionadas, bem como sua incapacidade de implementação dos direitos e garantias fundamentais.

Enfrentando a questão de legitimidade constitucional, será examinado o papel do processo contemporâneo, que, com o avanço da ciência processual, rompe por completo com as barreiras socializadoras, deixando de ser mero instrumento da jurisdição para se apresentar como verdadeiro instrumento da democracia.

Seguindo essa trilha e tomando o processo constitucional comparticipado e policêntrico como marco teórico, será apresentada proposta de noção do que vem a ser processo constitucional nessa quadra da história, diante do paradigma democrático instaurado pela Constituição vigente e suas influências diante do Código de Processo Civil aprovado.

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2 A RELAÇÃO JURÍDICA E A SOCIALIZAÇÃO PROCESSUAL: A INS-TRUMENTALIDADE E O INSUPERÁVEL PARADOXO DE BÜLLOW

Em contraposição à estruturação estatal liberal, sustentado por uma igual-dade formal dos cidadãos, pelo princípio dispositivo e pela escritura (liberalismo processual), em que direitos fundamentais liberais decorriam basilarmente do respeito de uma esfera de liberdade individual, Anton Menger desenvolveu a socialização processual com reforço do papel do juiz como um engenheiro social compensador de deficiências sociais,2 o que veio a ser concretizado legislativa-mente por Franz Klein, responsável pela ÖZO - Ordenança processual civil do império austro-húngaro, de 1895, primeira legislação tipicamente socializadora.3

Serviu como base doutrinária à socialização a teoria da relação jurídica de Oskar von Büllow, segundo a qual o “processo é uma relação jurídica que avança gradualmente e que se desenvolve passo a passo”, sendo estabelecida por “mútuo vínculo as partes e o Tribunal”.4 A perpetuação histórica da socialização processual é precisamente apontada por Lenio Streck.

Efetivamente, desde Oskar von Büllow - questão que também pode ser vista em Anton Menger e Franz Klein -, a relação publicística está lastreada na figura do juiz, ‘porta-voz avançado do sentimento jurídico do povo’, com poderes para criar direito mesmo contra legem, tese que viabilizou, na sequência, a Escola de Direito Livre. Essa aposta solipsista está lastreada no paradigma representacional, que atravessa dois séculos, podendo facilmente ser percebida em Chiovenda, para quem a vontade concreta da lei é aquilo que o juiz afirma ser a vontade concreta da lei; em Carnellutti, que sustenta que a jurisdição é ‘prover’, ‘fazer o que seja necessário’; também em Couture, que, a partir de sua visão intuitiva e subjetivista chega a dizer que ‘o problema da escolha do juiz é, em definitivo, o problema da justiça’; em Liebman, para quem o juiz, no exercício da jurisdição, é livre de vínculos enquanto intérprete qualificado da lei.5

A socialização está impregnada no ordenamento jurídico brasileiro desde o Código de Processo Civil de 1939 (Estado Novo), em sintonia com o modelo político totalitário e populista da época, concretizando uma intervenção ativa do Estado no processo, o que permaneceu arraigado no CPC de 1973, recebendo no curso histórico nova denominação (instrumentalidade do processo) e novos elementos utilitaristas (custo/benefício), consagrando o processo (relação jurídica) e colocando-o como mero instrumento a serviço da jurisdição, sem um fim em si mesmo e responsável por resultados socialmente satisfatórios pela consecução de escopos metajurídicos.

Reservando ao julgador o papel central do procedimento, a chamada escola instrumentalista conserva a função de engenheiro social do juiz, que deve julgar de acordo com os escopos jurídicos, políticos, éticos e sociais (escopos metajurídicos), já que “fixar os escopos do processo equivale, ainda, a revelar o grau de sua utilidade”.6

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Essa visão utilitarista do processo recebe elementos tecnológicos de celeri-dade e efetividade a serem obtidos a qualquer custo, olvidando que “a celeridade se liga ao cumprimento do princípio da legalidade e do respeito aos princípios da isonomia, da ampla defesa e do contraditório, sem quaisquer compressões ou supressões do exercício destes direitos”.7

É inquestionável que a instrumentalidade do processo, seguindo a trilha traçada pelo processo como relação jurídica, atribuiu ao julgador a autoridade de completar o ciclo de criação do direito com fundamento em seu sentimento jurídico pessoal, já que a atividade jurisdicional deveria desenvolver-se em função da sabedoria e da sensibilidade do julgador.

Entretanto, não foram capazes de explicar como se poderia controlar a atividade jurisdicional criadora de um direito que era, em última análise, emo-cional ou sentimental, derrubando o pilar de sustentação sobre a legitimidade da decisão fora do Estado Social.

Ao permear de forma valorativa a jurisdição, permitiu-se a cooptação do interesse público pelos atores que a representam no âmbito estatal, com verda-deira privatização do “interesse público segundo suas contingências privadas (pré-compreensões, interesses etc.)”.8

A discricionariedade, representativa do poder arbitrário (arbitrariedade) do juiz, permitiria ao julgador atuar em uma suposta “zona de penumbra” do modelo normativo9 para completude do modelo de normas, o que, no “neocons-titucionalismo”, tornou-se verdadeira razão de afastamento do debate crítico entre as partes, com imediato reflexo no alargamento do espaço de discricionariedade balizada em escopos metajurídicos do processo, em verdadeiro estado de exceção,10 em que a estrutura normativa vigente é afastada na decisão.

Büllow, no debate terminológico sobre exceções, paradoxalmente teoriza a necessidade de majoração do poder do Estado com verdadeiro escape ao formalis-mo,11 incorrendo em incontornável déficit de legitimidade da decisão, servindo como fundamento teórico do protagonismo judicial, como bem sintetiza Dierle Nunes:

As propostas de Büllow, na doutrina, e de Klein, na legislação, ao estruturarem o protagonismo judicial mediante o arquétipo do processo como relação jurídica (conjunto de vínculos de subor-dinação ao juiz) e instituição de bem-estar social, buscavam, por meio da atividade de criação judicial (escola de direito livre), a implementação da vontade desse agente “privilegiado” do Estado. O processo é reduzido a instrumento da jurisdição, e esta é vista como atividade solitária do juiz.12

Desagua, portanto, o paradoxo de Büllow em lacuna participativa do povo no exercício do poder, subsidiado por um conceito de jurisdição incompatível com o paradigma democrático estabelecido, que apenas oportuniza o protago-nismo judicial, fazendo que o processo como relação jurídica afronte o princípio democrático e a própria Constituição.

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3 A CRISE DOS ESCOPOS METAJURÍDICOS

Como vimos, o elemento potencializador do protagonismo judicial é revelado pelos escopos metajurídicos, cuja realização se exige uma postura arbitrária sob a falsa crença de que a jurisdição seria responsável pela incorpo-ração de “verdadeiros valores”, incapaz de propiciar a construção de um direito democraticamente produzido, sob o lume de uma Constituição normativa e da integridade da jurisdição13.

A noção de escopos metajurídicos de Klein foi defendida em terrae brasilis por Cândido Rangel Dinamarco14 de forma bem estruturada e em nome da jus-tiça social – razões apontadas por Aroldo Plinio Gonçalves como ensejadora do “fascínio difícil de vencer”15 -, com o desenvolvimento de uma nova mentalidade em torno da instrumentalidade do processo, considerados os fins sociais, políticos e econômicos, já que seria expressão do poder do Estado e, assim, permeável às mutações dos conceitos de bem comum, justiça e justiça social, abandonando fórmulas exclusivamente jurídicas para exercício da jurisdição.

Defende Dinamarco que, na determinação dos fins do Estado e consequen-temente dos escopos da jurisdição, é indispensável ter em vista as necessidades e as aspirações do povo, cabendo ao juiz buscar a paz social e a educação (escopos sociais), encontrando equilíbrio entre poder (autoridade) e liberdade, mediante atuação na vontade concreta da lei (escopos políticos).16

A partir de então, o neoliberalismo processual, por meio dos escopos metajurídicos, permitiu a “superação” da literalidade da norma por juízos axiológicos, respaldados pelo argumento de predominância do papel dos juízes e “sustentando que o processo serviria para legitimar seus entendimentos, que deveriam ser aceitos e obedecidos”, ideologia encharcada pela filosofia hegeliana, completamente incompatível com o princípio democrático.

Salienta André Leal que:

A atribuição de escopos metajurídicos à jurisdição coloca o juiz como sujeito privilegiado, na posição de líder inatacável do bando soberano, que cria uma fronteira móvel (kafkiana) de aplicação do direito em que o juiz está fora da legalidade para fixar os limites do ordenamento e sua direção, colocando o julgador (juiz-führer, como quer Couture) na borda legal que nega a própria normatividade do direito, ou seja, no ponto similar ao de decretação do estado de exceção schmittiano.17

Os escopos metajurídicos não resistem à crítica apresentada por Aroldo Plínio Gonçalves, segundo a qual a existência de três ordens normativas – jurídica, social e política – só tem lugar se entendidos como pré-jurídicos que preparam e antecedem uma nova ordem jurídica, representando valores a serem acolhidos pelo conteúdo normativo deste ordenamento, como pôde ser observado na Assembleia Constituinte de 1988.18

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Ultrapassada a fase pré-jurídica, com a instituição do ordenamento jurídico, não terá mais lugar a cisão do ordenamento da sociedade para coexistir, paralelas e autônomas, uma ordem jurídica, uma ordem social e uma ordem política, pois não se poderia explicar a soberania de uma nação, que não pode ser fragmentada. O ordenamento jurídico é soberano e suas as ordens social e política encontram no ordenamento jurídico seus fundamentos e suas regulamentações, pois são condutas e relações humanas valoradas como lícito e ilícito pelas normas a que se submetem.

No Estado de Direito atual, o poder, a estruturação de seus órgãos, a definição de competência e os direitos e as garantias que limitam seu exercício serão sempre objeto do Direito, pois estão dispostos na Constituição, lei fun-dante do Estado.

A construção de decisões por fundamentos fora da normatividade trans-muta o processo em meio de dominação, como alerta Rosemiro Pereira Leal:

A procura obsessiva de um direito assegurador de situações jurídi-cas de dominação que, a cada dia, migram de grupos dominantes para novos grupos dominantes, num duelo vertiginoso que se fez por sucessões ou anexação de patrimônios na sociedade capitalista do século XX, agravou a autocracia de um formalismo jurídico, tecido de modo voluntariamente confuso, difuso e assistemático, com vestimentas e máscaras uniformizadoras e pseudocientíficas (forma pela forma, rito pelo rito), com vistas a preservar, pela fe-tichização ético-moral dos ordenamentos jurídicos, os privilégios milenares dos grupos de comando econômico-social e pelo bloqueio do reconhecimento efetivo de direitos fundamentais dos povos.19

A outorga de escopos metajurídicos à concepção socializadora de jurisdi-ção (paradoxo de Büllow) não encontra guarida sob o manto da democracia, ao contrário, como lembra Rosemiro Pereira Leal, desde o Congresso de Gand “o provimento (sentença) já não é mais ato solitário do juiz, mas da jurisdição que se organiza pelo Poder Judiciário em grau de definitividade decisória, na órbita de toda a jurisdicionalidade estatal”.20

Valiosa também é a lição de Ronaldo Brêtas, segundo a qual a sujeição do julgador ao ordenamento jurídico respeita o princípio constitucionalizado da reserva legal, diretivo da jurisdição, com vinculação ao Estado de Direito Democrático, indicando que:

[...]os órgãos jurisdicionais devem irrestrita observância ao orde-namento jurídico, sem olvidarem a supremacia da Constituição como norma fundamental superior, razão pela qual não podem aplicar normas que a infrinjam. A legitimidade democrática das decisões jurisdicionais, comprometidas com o princípio do Estado Democrático de Direito, está assentada na exclusiva sujeição dos órgãos jurisdicionais às normas, emanadas da vontade do povo, porque discutidas, votadas e aprovadas pelos seus representantes, no Congresso Nacional.21

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Conclui-se que não se pode admitir escopos inerentes à jurisdição, pois, nas palavras de Lenio Streck, “não podemos admitir que, ainda nessa quadra da história, sejamos levados por argumentos que afastam o conteúdo de uma lei – democraticamente legitimada – com base em uma suposta ‘superação’ da lite-ralidade”,22 sob fundamento da existência de escopos na atividade jurisdicional.

4 PARADIGMA DEMOCRÁTICO E LEGITIMAÇÃO

O movimento de constitucionalização dos direitos Pós-Segunda Guerra deslocou a Constituição para assumir o papel central do ordenamento jurídico como fonte de direito e também como núcleo hermenêutico do intérprete, exi-gindo desenvolvimento de uma atividade interpretativa constitucionalizada do direito infraconstitucional, que deve guardar estreita relação com os princípios e as garantias fundamentais.

Conforme assinala Canotilho:

Se quisermos um Estado Constitucional assente em fundamentos não metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a da legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no sistema jurídico; (2) outra é a da ‘legi-timidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político’. O Estado ‘impolítico’ do Estado de direito não dá resposta a este último problema: de onde vem o poder. Só o princípio da soberania popular segundo o qual ‘todo poder vem do povo’ assegura e garante o direito de igual participação na formação democrática da vontade popular.23

A marcante exigência de participação como idealizador do princípio de-mocrático levou André Del Negri a apontar que:

As sociedades totalitárias são avessas ao debate. Silenciam o discurso dos atores sociais, tanto quanto. Em face dessa não possibilidade de manifestar opinião, o outro é anulado. Por isso, a importância de estudos que buscam a emancipação dos indivíduos num contexto que privilegie a pluralidade de vozes e de visões de mundo. Daí a importância da teoria da democracia, das soluções legítimas para os problemas sociais, da ‘inclusão do outro’, da contestação, da racionalidade, das ‘sociedades abertas’, de um razão dialogal, e não subjetiva, de decisões compartilhadas e não solitárias.24

Apenas por intermédio de elementos essenciais, como escolha dos seus representantes pelo voto direto, secreto e igual, a participação popular na so-lução de problemas e questões da nação, mas, especialmente, pela legitimação do exercício do poder pelo povo,25 com respeito às minorias, pode-se falar em democracia, já que, em sistemas sociais complexos, caracterizados por diversidade de interesses econômicos, políticos, religiosos e culturais, os interessados devem ser necessariamente considerados na construção do ato estatal.

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A legitimação do ato estatal somente pode ocorrer por meio da partici-pação do povo, pois, no Estado Democrático, o poder é mais que qualidade ou atributo do Estado, mas condição de existência, poder uno e indivisível emanando exclusivamente do povo – sujeito constitucional – e, em última análise, é o povo legitimador da existência do próprio Estado.

O direito processual contemporâneo não difere, tem em sua gênese o Estado de Direito Democrático e os princípios constitucionais “definidos nas garantias da ampla defesa, do contraditório e direito ao advogado e isonomia”26 reunidos pelo instituto do devido processo.

No Estado de Direito atual, o poder, a estruturação de seus órgãos, a definição de competência e os direitos e as garantias que limitam seu exercício, seja a atuação mais inflexível, seja a mais elástica ao definir o campo de decisão sobre a oportunidade e a forma de manifestação, serão sempre objeto do Direito, pois estão dispostos na Constituição, lei fundante do Estado.

Trata-se de garantia da própria sociedade como comunidade de jurisdi-cionados frente ao Estado, garantindo que não ocorra invasão do domínio dos direitos individuais e coletivos sem provocação, que não constituirá juízos de exceção, que a privação de bens da vida somente ocorrerá após o devido processo, mediante participação e controle dos destinatários na formação do provimento e da fundamentação das decisões com a devida explicação aos jurisdicionados das razões de interferência em seus direitos e liberdades.27

Dierle Nunes é preciso ao apontar que:

Uma verdadeira democracia processual será obtida mediante a assunção da co-responsabilidade social e política de todos os envol-vidos (juízes, partes, advogados, órgãos de execução do Ministério Público e serventuários da Justiça) segundo balizamentos técnicos e constitucionais adequados, de modo a se estruturar um procedi-mento que atenda às exigências tanto de legitimidade quanto de eficiência técnica.28

A técnica do processo, legislativo, administrativo ou jurisdicional, exige a melhor estrutura possível para a emanação do ato estatal, formado com a participação em contraditório, de forma que a instrumentalidade técnica do processo no Direito contemporâneo deve ser compreendida como técnica racionalizada que se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para formação da decisão jurisdi-cional, garantindo a participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos, não significando a técnica em si mesma.

Os direitos fundamentais processuais não permitem uma visão solipsista do procedimento, pois, como já advertia Dierle Nunes, o pluralismo e a possi-bilidade de ocorrência de um dissenso racional de valores é preceptor democrá-tico, não podendo ser atribuído “a qualquer guardião de uma única concepção e interpretação privilegiada de uma suposta ordem concreta de valores”, o que, aliás, permitiu o reforço da concepção estatal vigente na Alemanha Nazista.29

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Na sociedade democrática, a valoração da conduta é feita por ela pró-pria, por meio dos processos admitidos na lei fundante da ordem jurídica, não podendo ser declinada a um único e exclusivo indivíduo participante do procedimento, pois os sistemas democráticos se caracterizam pelo plura-lismo, representando verdadeira contradição lógica pressupor a inexistência dessa pluralidade.

Por isso a função jurisdicional não deve observar escopos sociais ou po-líticos, a sujeição do julgador é ao ordenamento jurídico e respeita o princípio constitucionalizado da reserva legal, diretivo da jurisdição, com vinculação ao Estado de Direito Democrático, ressaltando Ronaldo Brêtas que:

[...] os órgãos jurisdicionais devem irrestrita observância ao orde-namento jurídico, sem olvidarem a supremacia da Constituição como norma fundamental superior, razão pela qual não podem aplicar normas que a infrinjam. A legitimidade democrática das decisões jurisdicionais, comprometidas com o princípio do Estado Democrático de Direito, está assentada na exclusiva sujeição dos órgãos jurisdicionais às normas, emanadas da vontade do povo, porque discutidas, votadas e aprovadas pelos seus representantes, no Congresso Nacional.30

Também não pode o processo democrático se curvar a elementos utilita-ristas de custo/benefício ou mesmo à inatingível celeridade, que certamente não pode se sobrepor aos princípios processuais constitucionalizados, dentre os quais o direito fundamental à duração razoável do processo, que, evidentemente, não há de ser confundido com celeridade.31

Exige-se, no paradigma democrático, uma perspectiva procedimental ca-paz de manter claramente o delineamento entre o público e privado e afastado o discurso neoliberal que incute a crença de que o único aspecto importante do sistema processual é sua eficiência, sem uma adequada preocupação com a normatividade interna do sistema jurídico.

A legitimação da decisão (ato administrativo, judicial ou político) so-mente pode ser alcançada na democracia por intermédio da estruturação de procedimento baseado em um modelo democrático de processo, “perspectiva interpretativa que poderá, caso aplicada, garantir que todos os cidadãos possam participar ativamente de todas as esferas jurídicas em que possuam interesse, em dimensionamento espaço-temporal adequado”.32

Destarte, por meio das argumentações trazidas, é possível evidenciar que, na democracia, existe a processualização do poder, de forma a permitir ao cidadão promover sua autoinclusão, vendo-se como autor e destinatário das decisões, conferindo a estas a legitimidade necessária, não podendo mais admitir-se a privatização do interesse público em uma visão paternalista e de interesses individuais.

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5 PROCESSO JURISDICIONAL DEMOCRÁTICO NO NOVO CPC

Desvencilhando o processo do paradoxo de Büllow, torna-se necessária a apresentação de uma nova concepção da relação entre jurisdição e processo. No atual estágio da ciência processual, não há qualquer justificativa em uma jurisdição (judicação) sem processo, que não é meio ou método da jurisdição, mas instrumentador da legitimidade da decisão.33

Diante do processo democrático comparticipativo, pode-se dizer sobre uma jurisdição constitucional legítima. Deve ser claramente desvinculado o processo da jurisdição, não havendo que se falar em instrumento, mas, ao contrário, inexiste jurisdição sem processo, pois é o processo democrático que outorga legitimidade ao exercício da jurisdição (função do poder).

É a partir da nova visão de jurisdição que se afasta por completo o paradoxo de Büllow, a uma porque não há relação e, por consequência, subordinação, entre Estado e partes; em segundo porque o processo é que autoriza ao Estado o exercício da função jurisdicional, o que somente é permitido com participação dos titulares do poder, o povo, o que é transposto por meio do processo, dando legitimidade ao ato.

Em razão disso, esclarece Dierle Nunes que:

[...] o procedimento é constitutivo de todo o processo de decisão, de modo que a comparticipação e o policentrismo são instituti-vos de um processo normativamente disciplinado pelos direitos fundamentais, que garantirá uma formação adequada dos provi-mentos, sem que estes possuam conteúdos fixos predeterminados ao se aplicarem as normas (princípios e regras). Tal procedimento respeitará e formentará a participação e contribuição de todos os envolvidos nas esferas decisórias.34

Portanto, o processo se realiza como um procedimento em contraditório em razão da predisposição da estrutura normativa e exige a observância de suas formas, de modo a autorizar a contribuição dos sujeitos para formação do pro-vimento por seus destinatários, garantindo que o acatamento ou a rejeição do pedido se fará dentro da mais cristalina regra, não de modo arbitrário, mas de modo que seus atos sejam reciprocamente controlados, em sua oportunidade e subsistência.

A perspectiva democrática ultrapassa a dimensão técnica de eficiência e de mera estrutura formal da construção dos provimentos em simétrica paridade, para exigir também estrutura de legitimação e formação de provimentos balizada em princípios constitucionais dinâmicos, que permitem a fiscalidade formal e material da decisão pelo cidadão, mediante o fluxo discursivo de todos os parti-cipantes, sejam eles parciais ou imparciais.35

As aporias acima apontadas estão, como vimos, incrustadas no Código de Processo Civil de 1973 desde sua elaboração e suas subsequentes reformas,

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que buscavam, por meio do protagonismo judicial cada vez mais excludente das partes, emprestar celeridade à construção do provimento, produzido com inafastável déficit de legitimidade.

No sistema processual brasileiro, prevaleciam os interesses não cooperativos dos sujeitos processuais, com o julgador imerso na otimização numérica (custo/benefício) da prestação jurisdicional enquanto partes e advogados se preocupavam meramente em transmitir suas versões e teses (ação estratégica) sem o objetivo de produzir um entendimento ou convencimento (ação comunicativa).36

Nesse quadro, o exercício da jurisdição caminhava para o colapso, com grande aumento da litigiosidade, enorme número de procedimentos sem solu-ção e insuficiência de estrutura e planejamento que fossem capazes de acender a luz no fim do túnel, como mostrou o relatório Justiça em Números 2014 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A solução foi buscada por meio da elaboração e da aprovação de um novo Código de Processo Civil, que representa verdadeiro avanço normativo, mas exige a consideração da renovação do paradigma interpretativo em sua análise para impedir a cooptação por interpretações antidemocráticas.

O resgate da importância do espaço público processual, em que “todos os interessados possam participar do aprimoramento do sistema jurídico, pode representar a tentativa de redescoberta da importância dessa estrutura normativa contra a indiferença e a apatia (coletiva) política na qual os cidadãos (clientes não participantes) estão imersos”, subsidiados por discursos tecnólogos de máxima eficácia prática e de diminuta repercussão cidadã.37

As normas insculpidas no Código de Processo Civil de 2015 são capazes de, desde que interpretadas em consonância com o princípio democrático, esta-belecer um espaço discursivo de inclusão na estruturação de verdadeiro processo jurisdicional democrático.

É o que permite concluir a partir do art. 11 e do art. 486 do novo CPC que exigem fundamentação qualificada das decisões, espelhando garantia funda-mental constitucionalizada (CR, art. 93, IX) que resguarda a sociedade contra o arbítrio e autoritarismo, oportunizando o controle dos provimentos jurisdicionais, possíveis por meio do procedimento discursivo estruturado normativamente.

Em relação à garantia da fundamentação, Ronaldo Bretas expõe que:

Na atualidade, sempre enfatizado no âmbito do direito processual constitucional, referido princípio impõe aos órgãos jurisdicionais do Estado o dever jurídico da fundamentação de seus pronuncia-mentos decisórios, com o objetivo principal de afastar o arbítrio e as intromissões anômalas ou patológicas das ideologias, das subjetividades e das convicções pessoais dos agentes públicos jul-gadores (juízes) ao motivarem as decisões proferidas nos processos, quando decidem as questões neles discutidas, permitindo que as partes exerçam um controle de constitucionalidade da função

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jurisdicional e de qualidade sobre tais decisões, afastando-lhes os erros judiciários, por meio da interposição de recursos.38

O contraditório também recebe uma releitura, há muito necessária, devendo ser entendido como efetiva participação (influência) na construção da decisão e da garantia de não surpresa, em percepção da interdependência dos sujeitos processuais, garantindo a participação deles em um agir comunicativo, vocacionado ao entendimento.39

A exigência de que se enfrentem todos os argumentos deduzidos no pro-cesso capazes de infirmar a conclusão atingida sob pena de nulidade (CPC/2015, art. 486, IV), bem como a de que não se proferirá decisão contra o sujeito do processo sem que seja ele previamente ouvido (CPC/2015, art. 10) revigoram o contraditório e qualificam a fundamentação decisória.

Deixa o contraditório de ser apenas direito de informação e manifestação, passando a ser representado, então, pelo quadrinômio informação-reação-diálogo--influência, estabelecendo os dois últimos adjetivos espírito verdadeiramente democrático participativo à estrutura normativa do novo CPC, que agora, além da participação simétrica, deve ser feita diante do “efetivo contraditório” (CPC/2015, art. 7º).

É o contraditório o elemento normativo estruturador do policentrismo, pois “impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive de conhecimento oficioso” (não surpresa), garantindo a comparticipação das partes e “impedindo que em solitária onipotência aplique normas ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética”.40

É de se concluir que a procedimentalidade fiscalizadora e comparticipativa do CPC/2015 poderá, finalmente, “impedir que, sob o argumento ideológico de aplicação de valores compartilhados, imponha-se a vontade privatista dos manipuladores que, mascarados pelo papel de agente político, impõem seus próprios interesses”.41

Evita-se, ainda, a busca pelo justo com base nos escopos metajurídicos ou argumentos morais trazidos pelo julgador de forma contrária ao ordenamento jurídico, até porque, nas valiosas as lições de Calmom de Passos, a “efetivi-dade do injusto é, na verdade, a consagração da inefetividade do processo e da tutela jurídica”.42

Em virtude disso, deve ser entendido como provimento jurisdicional justo aquele com legitimidade, isto é, construído mediante a participação, em contradi-tório, em simétrica paridade das partes e em conformidade com o ordenamento jurídico vigente,43 único meio de se alcançar a efetividade.

A comparticipação e o policentrismo processuais estão entranhados na estrutura normativa do novo Código de Processo Civil, exigindo dos operadores do direito uma nova interpretação e modo de agir, cooperando entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva (CPC/2015,

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art. 6º), colocando o processo como instrumento da democracia para efetivação de direitos e garantias fundamentais, concretizando a cidadania, e não mais ins-trumento da jurisdição para atender escopos metajurídicos eleitos pelo julgador.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O novo Código de Processo Civil acena uma relevante mudança na relação entre os sujeitos do processo, consagrando o protagonismo do juiz e das partes interessadas enquanto destinatárias do comando estatal, todos conjuntamente artífices da decisão como condição legal de legitimidade do ato.

Nesse cenário democrático, não há mais espaço para a seleção privada de objetivos diversos daqueles consagrados no ordenamento jurídico, sob a firme orientação dos valores e das normas previstos constitucionalmente.

O processo, portanto, deixa de ser instrumento à disposição da jurisdi-ção para realizar os objetivos metajurídicos e se caracteriza como condição de legitimação do provimento final pela observância estrita da procedimentalização segundo as regras do devido processo legal.

Como vimos, os escopos metajurídicos antecedem a ordem jurídica e nela são acolhidos com conteúdo normativo, a partir de quando não mais orientam a atuação estatal no seu formato original de conteúdo pré-jurídico, o que não mais justifica a defesa do papel do juiz como engenheiro social que deve se orientar exclusivamente pelo ordenamento jurídico democraticamente instituído.

O novo Código de Processo Civil, ao exigir o que denominamos de fundamentação qualificada, nomenclatura apenas para ressaltar a mudança de perspectiva, estabelece um espaço discursivo que resguarda a sociedade contra o arbítrio e o autoritarismo e permite o necessário controle dos provimentos jurisdicionais, com o que se conferirá e assegurará a legitimidade da decisão.

Pode ser facilmente constatado que, na quadra histórica atual, vigente a Constituição dos Direitos Fundamentais, não pode mais o processo ser visto como relação jurídica, nem sequer como mero instrumento da jurisdição, uma vez que, delineado pela estrutura normativa constitucionalizada, é o processo jurisdicional instrumento da própria democracia, responsável pela legitimação do exercício do poder uno e indivisível emanado do povo pelo Estado. O pro-cesso é meio de efetivação dos direitos e garantias fundamentais, verdadeiro instrumento de cidadania.

Nesse cenário, apresenta-se o novo Código de Processo Civil com estrutura normativa procedimental que, desde que interpretado sob princípio da demo-cracia, inova dogmaticamente por meio do processo jurisdicional democrático, com bases na comparticipação e no policentrismo.

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1 Sobre autoridade e cidadania, ver: DAMASKA, Mirjan R. The Faces of Justice and State Authority: A comparative approach to the legal process. New Haven: Yale University Press, 1991.

2 Defende Menger: “Sólo un punto de vista ha dejado de sostenerse quizá en aquella amplia discusión, y eso que el grupo popular, a quien afecta, comprende por lo menos cuatro quintas partes de la nación entera: tal punto de vista es el que interesa a las clases pobres. No hay duda de que el socialismo dispone en Alemania de muy distinguidos escritores; pero no tienen éstos los conocimientos jurídicos adecuados, indispensables para hacer una crítica efi caz de una ley tan vasta. De otro lado, merced al infl ujo de Lasalle, Marx y Engels, la crítica del socialismo alemán se dirige casi exclusivamente al aspecto económico de nuestra condición, sin parar mientes en que la cuestión social es en realidad, ante todo y sobre todo, un problema de la ciencia del Estado y del Derecho. Perteneciendo yo a esa pequeña minoría de juristas alemanes, que sostienen en el campo de Derecho los intereses del proletariado, he estimado como un deber tomar en esta importante cuestión nacional la defensa de los desheredados” (MANGER, Anton. El Derecho Civil y los Pobres. Buenos Aires: Atalaya, 1947, p. 32)

3 NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2012, p. 79-81.4 BÜLLOW, Oskar von. Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais. Campinas: LZN, 2003, p. 6-7.5 STRECK, Hermenêutica. Constituição e Processo, ou de “como discricionariedade não combina com

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6 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 177-207.

7 TAVARES, Fernando Horta. Tempo e Processo. In: GALUPPO, Marcelo Campos (Org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2006, p. 219.

8 NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Processo e República: uma relação necessária. Revista Brasileira de Direito Processual: RBDPro, Belo Horizonte, a. 22, n. 88, out./dez. 2014, p. 275.

9 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 95-99.

10 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.11 LEAL, André Pereira. Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008, p.

56-68.12 NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2012, p. 177.13 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São

Paulo: Saraiva, 2011, p. 36-37.14 Explica Dierle Nunes que: “Parece errônea a afirmação do autor de um ‘recente surgimento da idéia de

um escopo metajurídico da jurisdição’ (DINAMARCO, 2001, op. cit., p.155) quando se verifica a obra de Klein (1901) e de outros socializadores desde o final do século XIX até os dias de hoje”. (NUNES, Dierle José Coelho, 2012, op. cit., p. 144).

15 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 158.

16 DINAMARCO, 2009, op. cit., p. 188-193/198-202.17 LEAL, 2008, op. cit., p. 98.18 GONÇALVES, op. cit., p. 159-160.19 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. Primeiros Estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2012, p. 11.20 Ibid., p.119. Em mesmo sentido: GONÇALVES, op. cit., p. 159.21 BRETAS, Ronaldo C. Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte:

Del Rey, 2011, p. 118-119.22 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São

Paulo: Saraiva, 2011, p. 35.23 CANOTILHO, op. cit., p. 96.24 DEL NEGRI, André. Processo Constitucional e Decisão Interna Corporis. Belo Horizonte: Fórum, 2011,

p. 41.25 Ronaldo Bretas, com base em Jorge Miranda, é preciso ao apontar: “Como povo, há de entender a comuni-

dade política do Estado, composta de pessoas livres, dotadas de direitos subjetivos umas em face de outras e perante o próprio Estado, fazendo parte do povo tanto os governados como os governantes, pois estes

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são provenientes do povo, sejam quais forem suas condições sociais, todos obedientes às mesmas normas jurídicas, sobretudo à Constituição, que é o estatuto maior do poder político” (BRETAS, Ronaldo C. Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 59).

26 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. Primeiros Estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 54.

27 GONÇALVES, op. cit.28 NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2012, p. 197.29 Ibid., p. 79-94.30 BRETAS, op. cit., p. 118-119.31 Efetivamente, é necessário que a sociedade, os legisladores e os operadores ou práticos do direito entendam,

de uma vez por todas, que a questão da morosidade da atividade jurisdicional e da demora da solução decisória pretendida nos processos não pode ser resolvida sob a concepção esdrúxula de uma cogitada jurisdição instantânea ou de uma jurisdição-relâmpago, o que é impossível existir em qualquer lugar do planeta, pois alguma demora na solução decisória sempre haverá nos processos, sobretudo naqueles de maior complexidade. É preciso que haja um tempo procedimental adequado, a fim de que possam ser efetivados os devidos acertamentos das relações de direito e de fato controvertidas ou conflituosas entre os envolvidos, sob a reconstrução cognitiva do caso concreto, por meio da moderna e inafastável estrutura normativa (devido processo legal) e dialética (em contraditório) do processo, não havendo outro modo substitutivo racional e democrático de fazê-lo. BRETAS, op. cit., p. 157-158.

32 NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2012, p. 176.33 LEAL, 2012, op. cit.34 NUNES, 2012, op. cit., p. 147.35 Ibid., p. 196.36 NUNES, Dierle José Coelho. Para Além do Novo Código de Processo Civil... e para sua leitura. In Revista

Eletrônica Justificando, 08/01/2015. Disponível em: <http://justificando.com/2015/01/08/para-alem--do-novo-codigo-de-processo-civil-e-para-sua-leitura/>. Acesso em: 12 fev. 2015

37 NUNES, 2012, op. cit., p. 251.38 BRETAS, op. cit., p. 147-161.39 NUNES, 2004, op. cit. NUNES, 2012, op. cit., p. 224-239.40 THEODORO JR., Humberto. NUNES, Dierle José Coelho. Uma dimensão que urge reconhecer ao

contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de apro-veitamento da atividade processual. In: Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, a. 34, n. 168, fev. 2009, p. 125.

41 NUNES, 2012, p. 251.42 PASSOS, J. J. Calmon de. Cidadania e efetividade do processo. Ensaios e Artigos. Salvador: Jus Podivm,

2014, v. 1, p. 393.43 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte: Man-

damentos, 2001, p. 219-221/153-154.

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Legitimação decisória no novo Código de Processo Civil

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LEGITIMATION OF DECISION UPON THE NEW CODE OF CIVIL PROCEDURE

ABSTRACT

The purpose of this article is to elaborate upon the vision of process as jurisdiction instrument, by means of criticism to the logic of the conception of process and its statutes. It will be endeavored to demonstrate the methodological and theoretical impasses upon this view, deconstructing its applicability in the democratic paradigm, which will necessarily lead to consider external elements onto legal system. Seeking for an interpretative stabilization, it will be tried to outline the legitimacy within the Democratic Rule of Law. Its logical consequence is the attempt of building a methodology upon democratic legitimation of decision, relying on the new Civil Procedural Codex, aiming to develop co-participative and polycentric procedure.

Palavras-Chaves: Constitutional Procedure. Democracy. Legitimacy. Participation. New Procedural Code.

Submetido: 31 mar. 2015Aprovado: 15 ago. 2015

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A JuDiciAlizAção DA sAúDe e seus DesAfios

Eduardo Carlos Pottumati*Jussara Maria Leal de Meirelles**

1 Introdução. 2 Direitos Sociais e Políticas Públicas. 3 A Constituição de 1988 e o direito à saúde. 4 Sistema Único de Saúde. 5 Fundamentos para o controle judicial de políticas públicas. 6 Limites ao controle judicial de políticas públicas de saúde. 7 Críticas à judicialização da saúde. 8 Desafios para a judicialização da saúde. 9 Conclusão. Referências

RESUMO

Este artigo tem por objetivo apresentar reflexões acerca do papel do controle judicial de políticas públicas na concretiza-ção do direito à saúde em nosso país. Para tanto, foi utilizada metodologia de pesquisa bibliográfica e método dedutivo de avaliação. Inicialmente é traçado um breve histórico acerca da atuação judicial na concessão de medicamentos. Na sequ-ência, é verificada a função do Sistema Único de Saúde na distribuição de medicamentos. Fundamentos e limites para a judicialização da saúde também são trazidos. As principais críticas ao controle judicial de políticas de saúde são apre-sentadas. Por fim, são expostos vários dos desafios trazidos pela judicialização da saúde.

Palavras-chave: Judicialização. Saúde. Políticas públicas. Direitos sociais.

1 INTRODUÇÃO

O movimento de judicialização da saúde teve início na década de 1990, com as reivindicações dos portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV), que postulavam junto ao Judiciário o fornecimento de antirretrovirais pelo Poder Público.

* Advogado. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pós-gra-duado em Direito Individual do Trabalho pelo Instituto dos Advogados do Paraná. Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected]

** Professora Titular de Direito Civil, integrante do Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico Socioambiental e do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Graduada em Direito, Mestra e Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Pós-Doutorado no Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra-Portugal. Procuradora Federal. E-mail: [email protected].

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Os pedidos eram fundamentados no direito constitucional à saúde, que inclui o dever estatal de prestar assistência à saúde individual, de forma integral, universal e gratuita, no Sistema Único de Saúde (SUS), sob a responsabilidade da União, dos Estados e dos Municípios.1

De maneira tímida e limitada ao fornecimento de antirretrovirais, a atuação judicial logo se estendeu para a concessão de medicamentos para o tratamento de outras moléstias. Além dos pedidos por novos medicamentos, as demandas judiciais passaram a versar sobre novos tratamentos e terapias.

O aumento exponencial desse tipo de demanda está provocando questio-namentos na comunidade jurídica e revolta dos gestores públicos, uma vez que o elevado número de ordens judiciais enseja grandes impactos financeiros no orçamento público, em prejuízo das políticas de saúde já previamente instituídas e planejadas.2

2 DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS

A Constituição brasileira de 1988 instituiu um modelo de Estado Social, com o objetivo de concretizar a dignidade da pessoa humana, tanto é verdade que destinou um capítulo aos Direito Sociais, inserido no título dos Direitos e Garantias Fundamentais.3

Na subdivisão dos direitos humanos proposta por Karel Vasak, a segunda dimensão dos direitos humanos refere-se aos direitos da igualdade, que são os direitos sociais, culturais e econômicos.

Os direitos humanos de segunda dimensão são fruto da transição do Estado liberal para o Estado social e revelam uma alteração do paradigma no fenômeno do direito, pois o Estado deixa de ter uma postura abstencionista e passa a ter uma postura prestacional4. José Afonso da Silva apresenta o seguinte conceito de direitos sociais:

Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enuncia-das em normas constitucionais, que possibilitem melhores con-dições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressuposto do gozo dos direitos individuais na medida em que criam con-dições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.5

Os direitos sociais têm como principais características o fato de serem positivos e prestacionais: para tanto, o Estado é obrigado a agir, seja por in-termédio das políticas públicas de conotação social, seja pela intervenção no domínio econômico.

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A função prestacional confere à pessoa o direito de “obter um benefício do Estado, impondo-se a este o dever de agir, para satisfazê-lo diretamente, ou criar as condições de satisfação de tais direitos.”6

A implantação dos direitos sociais previstos na Constituição vincula-se à realização de políticas públicas que dirijam a atuação do Estado para alcançar tais finalidades. Maria Dallari Bucci define políticas públicas como

[...] programas de ação destinados a realizar, sejam os direitos a pres-tações, diretamente, sejam a organização, normas e procedimentos necessários para tanto. As políticas públicas não são, portanto, categoria definida e instruída pelo direito, mas arranjos comple-xos, típicos da atividade política-administrativa, que a ciência do direito deve estar apta a descrever, compreender e analisar, de modo a integrar à atividade política os valores e métodos próprios do universo jurídico7

As políticas públicas têm o papel de concretizar os direitos sociais, pois pouco importa o mero reconhecimento formal de direitos se não existem ins-trumentos que os efetivem.8

3 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O DIREITO À SAÚDE

Os direitos sociais são garantias fundamentais constitucionais. A Cons-tituição de 1988 reconhece um rol desses direitos, sendo que o direito à saúde está expressamente previsto no art. 6º.

O art. 196 da Constituição prescreve que a saúde é direito de todos e dever do Estado, que é garantido por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Ao Estado é imposta uma dupla obrigação, pois deve abster-se de praticar atos que prejudiquem terceiros, bem como deve adotar políticas que visem à concretização do direito à saúde.

Logo, o direito à saúde está vinculado ao desenvolvimento de políticas públicas que objetivem a existência digna das pessoas, que é efetivada por meio de prestações positivas. O direito à saúde também pode ser classificado como direito de defesa, já que o Estado não pode causar danos à saúde dos indivíduos.9

4 SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

A Constituição atribuiu competência para legislar sobre proteção e defesa da saúde concorrentemente à União, aos Estados e aos Municípios, conforme previsto nos arts. 24, XII, e 30, II.

À União cabe o estabelecimento de normas gerais de acordo com o art. 24, § 1º, da Constituição. Aos Estados cabe a competência para suplementar

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a legislação federal, conforme previsto no § 2º do art. 24 da Constituição. Aos Municípios foi atribuída a competência para legislar sobre os assuntos de interesse local, podendo igualmente suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber (art. 30, I e II, da Constituição).

No que se refere aos aspectos administrativos, a Constituição atribui competência comum à União, aos Estados e aos Municípios (art. 23, inciso II). Dessa forma, os três entes que formam a federação brasileira podem formular e executar políticas relacionadas à saúde. Luís Roberto Barroso leciona que:

Como todas as esferas do governo são competentes, impõe-se que haja cooperação entre elas, tendo em vista o “equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional” (CF/88, art. 23, parágrafo único). A atribuição da competência comum não significa, porém, que o propósito da Constituição sobre a superposição entre a atuação dos entes federados, como se todos os detivessem competência irrestrita em relação a todas as questões. Isso, inevitavelmente, acarretaria a ineficiência na prestação dos serviços de saúde, com a mobilização de recursos federais, estaduais e municipais para realizar as mesmas tarefas.10

As ações e os serviços de saúde integram uma rede regionalizada e hierar-quizada que constituem o Sistema Único de Saúde (SUS), que atua na prevenção e no tratamento de problemas de saúde da população (art. 19811 da Constituição).

A Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) regula as ações e os ser-viços de saúde em todo o território nacional. A referida lei fixa a estrutura e o modelo operacional do SUS, bem como determina a sua organização e o seu funcionamento.

O SUS representa o “conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público” (caput do art. 4º da Lei nº 8.080/1990), sendo que a iniciativa privada poderá participar do SUS em caráter complementar (§ 2º do art. 4º da Lei 8.080/1990).

Dentre as atribuições do SUS, está a “a formulação da política de medi-camentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção” (art. 6º, VI, da Lei nº 8.080/1990).

A Lei nº 8.080/1990 também prevê os princípios que devem nortear a atuação do SUS, dentre eles, devem ser ressaltados o da universalidade, que assegura a todas as pessoas o acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência, e o da “subsidiariedade e da municipalização, que procura atribuir prioritariamente a responsabilidade aos Municípios na execução de políticas de saúde em geral, e de distribuição de medicamentos em particular (art. 7º, I e IX)”.12

No que tange à distribuição de medicamentos, a competência da União, dos Estados e dos Municípios, não está expressa nem na Consti-tuição nem na Lei, sendo que tal competência é apenas esboçada em atos

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administrativos federais, estaduais e municipais, sendo o principal deles a Portaria nº 3.916/98 do Ministério da Saúde, que estabelece a Política Nacional de Medicamentos.13

Assim, os diferentes níveis federativos elaboram listas de medicamentos que serão comprados e fornecidos à população. Ao gestor federal cabe a tarefa de formular a Política Nacional de Medicamentos, que envolve além do auxílio aos gestores municipais e estaduais, a elaboração da Relação Nacional de Medi-camentos (RENAME).14

Os Municípios têm a atribuição de determinar a relação municipal de medicamentos essenciais, com base na RENAME, que é a lista dos medicamentos que tratam das doenças mais recorrentes na população brasileira, e executar a assistência farmacêutica. A prioridade na atuação dos Municípios é garantir o suprimento de medicamentos reservados à atenção básica à saúde.15

A RENAME contém medicamentos até a segunda opção terapêutica das doenças mais recorrentes no Brasil e também fornece orientações para a elabo-ração de listas nos níveis estadual e municipal.16

Segundo informações extraídas do portal do Ministério da Saúde, para a aquisição dos medicamentos da atenção básica que constam na RENAME, o Ministério efetua mensalmente o repasse da verba necessária para os Estados e Municípios. Assim, tanto a compra quanto a distribuição dos medicamentos são de responsabilidade dos Estados e Municípios.17

Diante da formulação e execução de uma política de distribuição de medi-camentos, que evidentemente pode ter falhas, está claro que os Poderes Executivo e Legislativo não são omissos ou inertes, ao menos do ponto de vista normativo, no que se refere à distribuição de medicamentos à população.18

5 FUNDAMENTOS PARA O CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Como já asseverado, para a implementação dos direitos sociais, são neces-sárias atuações positivas por parte do Estado, que ocorrem por meio de políticas públicas de caráter social. Porém, para que ocorra o controle judicial de tais políticas, devem ser sopesados diversos aspectos.

Quando Montesquieu criou a teoria da separação dos poderes, afirmou que a reunião de poderes permitiria o surgimento de leis tirânicas, que seriam exequíveis também de maneira tirânica. A teoria elaborada por Montesquieu surgiu no momento histórico do liberalismo.19

O Estado liberal tinha como aspecto marcante a ideia do Estado mínimo, não intervencionista, que defendia a proteção à liberdade individual, sem se preocupar com questões de cunho social, assim, o abstencionismo foi marcante nesse momento histórico.

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Com a Revolução Industrial, a classe operária assumiu papel de grande relevância no contexto social, projetando-se como um porta-voz das suas recla-mações, por intermédio dos sindicatos.

A transição do Estado liberal para o Estado social ocorreu no século XX e foi nesse período que surgiram constituições inspiradas em ideais sociais (Me-xicana/1917 e Weimar/1919).

Essa transição promoveu alteração substancial no conceito de Estado e de suas finalidades. Assim, o Estado passou a cuidar do bem comum e, por consequência, satisfazer direitos fundamentais e assegurar a igualdade material entre as pessoas. Surgiu a segunda dimensão dos direitos humanos: o Estado deixou de ter uma postura abstencionista e passou a atuar de ma-neira positiva.20

Por muito tempo, os tribunais brasileiros entenderam que não era pos-sível adentrar o mérito do ato administrativo. Com o advento da Lei da Ação Popular foi aberta, ao Judiciário, a possibilidade de apreciação do mérito do ato administrativo, conforme previsto nos hipóteses do art. 4º, II, b e V, b, da Lei nº 4.717/1965, elevando a lesão à condição de nulidade do ato, sem necessidade do requisito de ilegalidade21.

Segundo Ada Pellegrini Grinover, a ação popular abriu o caminho do Poder Judiciário em relação ao controle do mérito do ato administrativo. Salienta ainda, que a Constituição de 1988 fez mais, quando fixou os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil no seu art. 3º.22

Para atingir os objetivos fundamentais estabelecidos no art. 3º da Cons-tituição, o Estado deve adotar uma postura positiva e prestacional, mediante a realização de políticas públicas para a consecução de tais objetivos.23

Apesar de uno, o poder do Estado é exercido segundo especialização de suas atividades as quais, de acordo com a estrutura normativa constitucional, apresentam três formas de expressão: legislativa, executiva e judiciária.24

As formas de expressão do poder estatal são instrumentos para a conse-cução dos fins do Estado, pelo que não podem ser consideradas isoladamente.

Os Poderes, além de independentes, “devem também ser harmônicos entre si. Logo, os três poderes devem harmonizar-se para que os objetivos fundamentais do Estado sejam alcançados”.25

Por tais razões, ao Poder Judiciário é atribuído o papel de investigar o fun-damento de todos os atos do Estado, tendo como alvo os objetivos fundamentais inseridos no art. 3º da Constituição.

Enquanto aos poderes legislativo e executivo cabem a atividades características pró-ativas, ao Poder Judiciário incumbe o exame de constitucionalidade e de legalidade dos atos praticados pelos demais poderes. Trata-se, portanto, de atividade jurisdicional corretiva, que

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não emite juízo de valor sobre a ação dos demais poderes, apenas de compatibilização com as normas constitucionais.

Como toda a atividade exercida pelo Poder Executivo e pelo Poder Judici-ário deve compatibilizar-se com a Constituição Federal, cabe ao Poder Judiciário analisar, em qualquer situação e desde que provocado (CF, art. 5º, XXXV), a constitucionalidade respectiva. Aquilo que se convencionou chamar de “ato de governo” ou questões políticas” deverá ser examinado polo Poder Judiciário sob o prisma do atendimento aos fins do Estado (CF, art. 3º).26

O controle de constitucionalidade das políticas públicas pelo Judiciário, não deve ser feito, tão somente, sob o aspecto da infringência frontal à Constitui-ção pelos atos da Administração Pública, mas também mediante a confrontação desses atos com a finalidade do Estado.27

6 LIMITES AO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE

O Poder Judiciário tem o papel de interpretar a Constituição e as Leis, bem como resguardar direitos e assegurar o respeito ao ordenamento jurídico.

Contudo, a atividade judicial deve respeitar o conjunto de opções legis-lativas e administrativas formuladas pelos órgãos competentes. Assim, onde houver omissão legislativa ou administrativa para implementar a Constituição, deve ocorrer a atuação do Poder Judiciário. Também deverá ocorrer a ação deste Poder, se houver lei ou ato administrativo, que não estejam sendo devidamente cumpridos.28

O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que o Estado tem o dever de fornecer, de maneira gratuita, medicamentos aos portadores do vírus HIV, sob o fundamento de que os poderes públicos devem praticar políticas sociais e econômicas que visem aos objetivos proclamados no art. 196 da Constituição29. O posicionamento de maior representatividade em favor do controle judicial de políticas públicas é oriundo do STF, mais precisamente na ADPF nº 45-9. Na decisão monocrática proferida pelo Ministro Celso de Mello, observa-se que, para o controle judicial de políticas públicas, são necessários alguns requisitos:

(1) o limite fixado pelo mínimo existencial a ser garantido ao cida-dão; (2) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e (3) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas reclamadas.30

O mínimo existencial consiste em um direito às condições mínimas da existência humana digna, que é exigido mediante prestações positivas do Estado:

O mínimo necessário à existência constitui um direito fundamen-tal, posto que sem ele cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dig-

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nidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados.31

É formado pelas condições básicas para a existência e corresponde à parte do princípio da dignidade da pessoa humana à qual se deve reconhecer eficácia jurídica e simétrica, podendo ser exigida judicialmente em caso de inobservância.32

O desrespeito ao mínimo existencial justifica o controle das políticas públi-cas pelo Judiciário, com a finalidade de corrigir seus rumos ou implementá-las.33 Para a melhor aferição do mínimo existencial, principalmente em casos de tensão ou conflitos, deve-se recorrer do princípio da proporcionalidade.

A utilização do princípio da proporcionalidade na intervenção do Judiciá-rio nas políticas públicas é de grande importância, pois é por meio desse princípio que o juiz poderá examinar o caso concreto e dirá se o administrador público realizou conduta pautada em interesses individuais ou coletivos, estabelecidos na Constituição e nas leis. Desta forma, pelo lado do autor, apreciará a razoabi-lidade do pedido deduzido contra a Administração Pública. Já com relação ao Poder Público, será analisada a escolha feita pelo agente público, ou seja, se ela foi arrazoada ou desarrazoada.34

Celso Antonio Bandeira de Mello assevera que a “censura judicial não implica invasão do mérito do ato”.35 Em síntese, o controle judicial de políticas públicas só deve acontecer em situações em que fique demonstrada a irrazoabi-lidade do ato discricionário praticado pela Administração Pública, sendo que, nesta hipótese, o juiz deve conduzir sua apreciação tendo como norte o princípio da proporcionalidade.36

Construção da doutrina alemã, a “reserva do possível” preceitua que a efetivação de direitos está subordinada à disponibilidade de recursos financeiros. Dessa maneira, a implementação de uma política pública depende de recursos financeiros, obtidos mediante o recolhimento de impostos, ou seja, são limitados.

Entretanto, a “reserva do possível” não pode ser alegada de maneira eva-siva pelo Poder Público, com o fim de eximir-se do cumprimento das obrigações previstas na Constituição. Ada Pellegrini Grinover afirma que “a justificativa mais usual da administração para a omissão reside exatamente no argumento de que inexistem verbas para implementá-la”.37

Desta forma, a reserva do possível não pode servir de escudo para justificar omissões do Estado na implantação de políticas públicas de caráter social.

7 CRÍTICAS À JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

Segundo estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em abril de 2011 tramitavam no Poder Judiciário brasileiro 240.980 processos judiciais na área de saúde, as denominadas demandas judiciais da saúde. Na

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maioria dessas ações judiciais, as pessoas reivindicam acesso a medicamentos e a procedimentos médicos pelo SUS e vagas em hospitais públicos, sendo que algumas dessas demandas foram movidas por usuários de seguros e planos pri-vados junto ao setor.38

O fenômeno da judicialização da saúde iniciou-se com as demandas judi-ciais por medicamentos, em razão do movimento deflagrado pelos portadores do vírus HIV, que pleiteavam o fornecimento de antirretrovirais pelo Poder Público. Tais medicamentos eram indispensáveis para a garantia de sobrevida destes pa-cientes, que, apesar de já liberados nos Estados Unidos da América, ainda não haviam sido disponibilizados nas unidades de saúde pública do Brasil.39

Inicialmente, as demandas judiciais por medicamentos se limitavam às hipóteses de fornecimento de antirretrovirais aos portadores de HIV (década de 1990), porém a atuação do Judiciário foi gradativamente aumentando, tendo-se estendido para a concessão de medicamentos para o tratamento de outras doenças.40

Além das demandas reivindicatórias de medicamentos, os pedidos judiciais passaram a postular tratamentos com a utilização de novas terapias e medicamentos, tais como: internação hospitalar a portador de “leucemia aguda”, fornecimento gratuito de medicamentos a pacientes portadores de esquizofrenia paranóide e doença maníaco-depressiva crônica, providências para a melhoria de atendimento hospitalar, custeio de tratamento médico no exterior com a finalidade de impedir a evolução de doença ocular progressiva, dentre outros.41

O crescente aumento das demandas judiciais da saúde tem suscitado questionamentos na comunidade jurídica, bem como tem gerado revoltas por parte dos administradores públicos, pois ao mesmo tempo em que o Judiciário tem sido fundamental para a efetividade do direito à saúde, o grande número de ordens judiciais vem causando grandes impactos financeiros à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

A efetivação dos direitos sociais está subordinada à existência de recursos financeiros, que são limitados, pois são obtidos por meio da cobrança de impos-tos. Essa talvez seja a justificativa mais usual da Administração Pública, pois os recursos públicos seriam insuficientes para atender todas as necessidades sociais, cabendo ao gestor público a árdua decisão acerca da alocação dos investimentos. Gisele Chaves Sampaio Alcântara assevera que:

Não se pode olvidar que, para assegurar a efetivação dos direitos fundamentais prestacionais o Estado precisa criar fontes de recei-tas, sendo a principal delas a arrecadação tributária. Com efeito, o financiamento dos direitos fundamentais por meio de receitas fiscais ajuda a se ver claramente que os direitos são bens públicos: contribuintes financiadores e governo de gestão dos serviços sociais destinados a melhorar o bem-estar coletivo e individual. (HOLMES; SUSTEIN, 2000, p. 94).

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Sendo tais recursos, por sua vez, limitados, depreende-se que as decisões alocativas para a efetivação do direito à saúde implicam escolhas disjuntivas de natureza financeira, ou, nas palavras de Guido Calabresi e Philip Bobbit, tragic choices. (CALABRESI; BOBIT, 1978). Elas são feitas por meio de trade-offs: para implementar uma determinada prestação de saúde, outras prestações da mesma natureza restarão comprometidas42.

Para os defensores da “reserva do possível”, as decisões judiciais relaciona-das à saúde provocariam a desorganização da Administração Pública. O excessivo número de ordens judiciais causaria um elevado impacto financeiro para o Poder Público, em prejuízo das políticas de saúde já previamente instituídas e planejadas com o objetivo de atender toda a coletividade.43

Ainda, considerando-se a análise econômica do Direito, é defendido que o benefício recebido pela população com a distribuição de medicamentos é menor do que aquele que seria obtido caso os mesmos recursos tivessem sido investidos em políticas de saúde pública, como nas políticas de saneamento bá-sico. Luís Roberto Barroso44 cita situação ocorrida no Estado do Rio de Janeiro no ano de 2007 em que, nos programas de Assistência Farmacêutica, foram gastos R$240.621.568,00, enquanto, nos investimentos com saneamento básico, foram gastos R$102.960,276,00. Os números demonstram certo paradoxo, pois os recursos absorvidos com investimentos em saneamento básico foram muito menores do que os utilizados na compra de medicamentos.

A jurisprudência das Cortes brasileiras tem se apoiado em uma visão individualista dos problemas sociais contudo uma “gestão eficiente dos recursos públicos deve ser concebida como política social, sempre orientada pela avalia-ção de custos e benefícios”45. Gisele Chaves Sampaio de Alcântara partilha da mesma opinião:

Com efeito, percebe-se que, malgrado tenha assumido o papel de concretizador dos direitos sociais, o Poder Judiciário ainda permanece atrelado a uma formação de viés individualista, pró-pria do Estado liberal. Tal formação impõe-lhe uma espécie de “miopia cognitiva”, que limita o raio de avaliação jurisdicional às balizas do caso concreto, à microjustiça da lide submetida a sua apreciação.46

Carlos Frederico Marés de Souza Filho afirma que todo o direito do Estado moderno está assentado na concepção dos direitos individuais e que a organização estatal foi criada para garantir, individualmente, o exercício de direitos.47 Além disso, assevera que o processo civil foi criado e desenvolvido dentro de um rígido formalismo para resolver conflitos intersubjetivos, que serviu e serve aos direitos individuais tradicionais.48

As políticas públicas são destinadas a reduzir as desigualdades sociais, entretanto, quando o Poder Judiciário se investe no papel de protagonista da implementação de tais políticas, pode cometer o pecado de privilegiar aqueles

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que têm mais chances de pleiteá-los, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem suportar os custos de uma demanda judicial.49

Uma das mais recorrentes críticas à jurisprudência relativa à judicialização da saúde fundamenta-se em que a norma constitucional respectiva está positivada na forma de norma programática. O art. 196 da Constituição prevê que o direito à saúde será assegurado por intermédio de políticas sociais e econômicas e não mediante decisões judiciais. Assim, segundo a referida norma constitucional, a tarefa de implementação de políticas públicas de saúde seria de incumbência dos seus órgãos executores e não do Judiciário.50

O controle judicial em matéria de saúde também é censurado no que se refere à questão da legitimidade democrática, pois haveria uma “improprie-dade de se retirar dos poderes legitimados pelo voto popular a prerrogativa de decidir de que modo os recursos públicos devem ser gastos”. 51 A forma como os recursos públicos deveriam ser investidos caberia ao povo, por intermédio de seus representantes eleitos, ou diretamente, nos casos e na forma em que a lei permitir.

Ainda, deve ser acrescentada a crítica técnica à judicialização da saúde, pois o Judiciário não detém o conhecimento específico para implementar políticas públicas de saúde.

O Judiciário não tem como avaliar se um medicamento é necessário para promover a saúde das pessoas, pois o juiz analisa, tão somente, os casos concretos, ao contrário do administrador público que deve ter uma visão mais ampla do gerenciamento de recursos públicos.52

8 DESAFIOS PARA A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

No Estado Democrático de Direito, a judicialização da saúde representa uma forma legítima de o cidadão reivindicar direitos expressos na legislação constitucional e infraconstitucional. E, apesar das críticas feitas ao controle judicial das políticas de saúde, este tem contribuído para a melhoria de acesso aos medicamentos no âmbito do SUS.53

Os avanços das políticas públicas de fornecimento de medicamentos aos portadores do vírus HIV parecem ter fomentado alguns movimentos sociais or-ganizados e a população, já que, nas últimas décadas, constatou-se que esse tipo de demanda passou a ser amplamente utilizada como mecanismo para assegurar direitos e ampliar as políticas públicas de saúde.54

Apesar do progresso das políticas e ações públicas de assistência farma-cêuticas, ainda existem dificuldades de acesso da população aos medicamentos necessários à assistência integral à saúde. No ano de 2000, estimou-se que apro-ximadamente 70 milhões de pessoas não tinham acesso a medicamentos, o que equivaleria a 41% da população brasileira.55

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A maioria das demandas está concentrada em processos individuais, nos quais o fornecimento de medicamentos vem postulado com base em apenas uma prescrição médica. Outra questão a ser considerada é que as prescrições médicas apresentadas pelos postulantes contêm tanto medicamentos incorporados quanto não incorporados pela assistência farmacêutica do SUS; alguns deles ou não são registrados no Brasil ou não possuem indicação terapêutica no registro sanitário.56

O crescimento exponencial das demandas relacionadas à saúde vem oca-sionando o aumento desordenado dos gastos do Poder Público, bem como tem gerado dificuldades de gestão da assistência farmacêutica para o cumprimento das ordens judiciais, já que simultaneamente necessita atender à demanda ordinária da saúde. Adiante, serão relacionados alguns dos efeitos negativos decorrentes da judicialização da saúde.

A grande maioria dos pedidos feitos em juízo é concedida liminarmente, o que implica a determinação de entrega imediata dos medicamentos pelo gestor público, provocando o aprofundamento das iniquidades de acesso no sistema público de saúde, pois tendem a favorecer os que têm maior possibilidade de acionar o Judiciário, além do que, por serem majoritariamente individuais, não beneficiam os demais portadores da mesma patologia.57

A concessão de tratamentos médicos e de medicamentos por meio de limi-nares contribui muito para dificultar a gestão da assistência farmacêutica, já que

[...] a ágil resposta às demandas judiciais, não previstas no planeja-mento dos serviços, faz com que alguns deles criem uma estrutura “paralela” para seu acompanhamento, se utilizem de procedimentos de compra não usuais na administração pública e tenha maior gasto na aquisição destes medicamentos.58

Como, neste tipo de demanda, por vezes, são concedidos novos medica-mentos em relação aos quais as evidências científicas não estão bem estabelecidas, a segurança do paciente pode estar fragilizada, em razão de possíveis prescrições médicas inadequadas. Além disso, o uso de “medicamentos sem registro sani-tário ou fora das indicações para as quais foram registrados (uso off label) pode significar riscos à saúde”.59

As demandas judiciais que objetivam o fornecimento de medicamentos ainda não registrados podem fazer parte da estratégia de pressão da indústria farmacêutica para a aprovação do seu produto pela autoridade brasileira com-petente.60 Dessa forma, a indústria farmacêutica consegue induzir a formulação de políticas públicas de saúde, numa clara demonstração de que os interesses privados se sobrepõem aos interesses da coletividade.

A judicialização da saúde também tem contribuído para o acesso a medi-camentos de última geração, como adiante exposto:

As ações judiciais têm sido um importante caminho para o acesso a medicamentos de última geração, sendo de importância verifi-

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car as evidências que baseiam sua prescrição e utilização. Análise da demanda judicial de medicamentos antineoplásticos contra a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, entre 2006 e 2007, contatou a concentração de prescrição em poucos profissionais. Em 2006, dois prescritores concentraram 17,8% das prescrições e, em 2007, os mesmos concentraram 12,1%. O referido estudo encontrou ainda demanda de medicamentos para indicação não aprovada no Brasil (uso off label).61

Como já relatado, a RENAME se trata da lista norteadora da Política Nacional de Medicamentos. Contudo, as ordens judiciais para o fornecimento de medicamentos não relacionados na RENAME, geralmente, desconsideram a importância dessa etapa, tanto para o paciente, como para o funcionamento do sistema de saúde, podendo interferir de duas maneiras, seja pela supressão da etapa de seleção, seja pela pressão que as ordens judiciais exercem no siste-ma de saúde, que obriga a selecionar determinado medicamento para a lista oficial pública.62

Por fim, é importante salientar que a aquisição de medicamentos pelo Po-der Público em razão de ordens judiciais, em alguns casos, tem sido caracterizada como emergência e feita sem licitação, o que pode favorecer fraudes.63

Os fatos referidos indicam algumas das situações problemáticas que estão sendo criadas ou agravadas pelo excesso da judicialização. Porém, como se trata de um tema muito delicado, a maior efetividade às políticas das políticas públicas de saúde deve ser amplamente discutida, pois, como os recursos necessários para o custeio dos medicamentos são obtidos por meio dos impostos, os contribuintes devem decidir como esses recursos serão investidos.

9 CONCLUSÃO

Inicialmente, a judicialização da saúde teve um papel relevante para romper a inércia do Estado, no que tange à concessão de novos medicamentos e tratamentos.

Contudo, aos poucos, essa participação do Judiciário foi se tornando tão frequente que, a continuar no mesmo ritmo, o controle judicial de políticas públicas de saúde pode vir a ocasionar um verdadeiro colapso do sistema de saúde, pois os recursos para políticas públicas de saúde são limitados, enquanto as necessidades dos usuários são infinitas.

Apesar do desenvolvimento econômico e social ocorrido nos últimos anos no Brasil, é incongruente gastar grandes somas do orçamento público com a compra de medicamentos para poucos, num país onde grande parcela da população não tem condições mínimas de saneamento básico.

É preciso lembrar, agora sob aspecto um tanto diverso, que o direito à saúde não é somente assegurado pelo Estado com a alocação de recursos públicos para a compra de quaisquer medicamentos; o referido direito também é

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garantido pelo Estado quando este assegura o distanciamento de medicamentos e tratamentos que possuem eficácia duvidosa e que ainda não foram aprovados pelas autoridades brasileiras.

Outro ponto a ser considerado é que a implementação de alguns direitos pode conduzir a que outros direitos sejam colocados à parte; assim, além da correta e eficiente alocação dos recursos públicos, também deve haver um planejamento eco-nômico público eficaz, no qual exista uma real e efetiva preocupação com o coletivo.

Portanto, a judicialização da saúde merece ser profundamente discutida por todos os envolvidos, pois, se não ocorrerem mudanças sensíveis e eficazes, possivelmente o sistema atual não terá condições de se manter e de funcionar. Para tanto, importa tomar como fundamentos basilares os fins para os quais o sistema de saúde foi estabelecido na Constituição, no sentido de assegurar o direito à saúde como direito de todos.

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1 VENTURA, Miriam; SIMAS, Luciana; PEPE, Vera Lúcia Edais; SCHRAMM, Fermin Roland. Judicia-lização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, n. 20, 2010, p. 78.

2 ALCÂNTARA, Gisele Chaves Sampaio Alcântara. Judicialização da saúde: uma reflexão à luz da teoria dos jogos. Revista CEJ, Brasília, ano XVI, n. 57, mai./ago. 2012, p. 89.

3 NASCIMENTO, Fernanda do Nascimento; DAL RI, Luciene. O controle judicial das políticas públicas de saúde e a influência do neoconstitucionalismo. Revista Eletrônica Direito e Política. v. 8, n.1, 1º quadrimestre de 2013, p. 176.

4 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari.

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de Políticas Públicas. Brasília, v. 1, n.1, jan./jun. 2011, p. 71.9 ALMEIDA, Renata Laís Künzler Alves de Almeida; ACIOLI, Catarine Gonçalves. A judicialização de

políticas públicas de saúde referentes ao fornecimento de medicamentos e a efetividade do princípio da supremacia do interesse público. Revista Eletrônica do Curso de Direito do CESMAC. v. 1, n. 1, 2012, p. 8.

10 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, forneci-mento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 31, n. 66, jul./dez. 2007, p. 99.

11 Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade.

12 BARROSO, op. cit., p. 99.13 Ibid., p. 100.14 Ibid., p. 101.15 Ibid., p. 101.16 PEPE, Vera Lúcia Edais; FIGUEIREDO, Tatiana de Aragão; SIMAS, Luciana; OSORIO-DE-CASTRO,

Claudia Garcia Serpa; VENTURA, Miriam. A judicialização da saúde e os novos desafios da gestão da assistência farmacêutica. Ciência & Saúde Coletiva. v. 15, n. 5, Rio de Janeiro. Ago. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csc/v15n5/v15n5a15.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2013. p. 2408

17 http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=32330&janela=1. Acesso em: 16 nov. 2013.

18 BARROSO, 2007, p. 102.19 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário. Revista do Curso

de Direito da Universidade Metodista de São Paulo. v. 7, n. 7, 2010. p. 10.20 Ibid., p. 11.21 Ibid., p. 11.22 Ibid., p. 12.23 Ibid., p. 12.24 Ibid., p. 13.25 Ibid., p. 13.26 CANELA JUNIOR, Osvaldo. A efetivação dos direitos fundamentais através do processo coletivo: o

âmbito de cognição das políticas públicas pelo Poder Judiciário. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, SP. Orientador: Kazuo Watanabe, 2009. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-03062011-114104/pt-br.php>. Acesso em: 22 nov. 2013. p. 70.

27 GRINOVER, op. cit., p. 14.28 BARROSO, op. cit., p.103-104.29 RE/STF 271.286 e AgRg/STF 271.286.30 GRINOVER, op. cit., p. 17.31 TORRES, Ricardo Lobo. O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais. Revista de Direito da

Procuradoria Geral: Estado do Rio de Janeiro, v. 41, 1990, p. 69.32 GRINOVER, op. cit., p. 18.33 Ibid., p. 18.34 Ibid., p. 23.35 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001,

p. 777. 36 GRINOVER, op. cit., p. 24.37 Ibid., p. 24.38 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Brasil tem mais de 240 mil processos na área de Saúde. www.

cnj.jus.br. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/14096-brasil-tem-mais-de-240-mil-

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-processos-na-area-de-saude>. Acesso em: 19 nov. 2013.39 ALCÂNTARA, op. cit., p. 89.40 Ibid., p. 89.41 Ibid., p. 89.42 Ibid., p. 92.43 Ibid., p. 89.44 BARROSO, op. cit., p. 107.45 Ibid., p. 107.46 ALCÂNTARA, op. cit., p. 91.47 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, Francisco; PAOLI,

Maria Célia. Os sentidos da democracia: políticas de dissenso e hegemonia global. São Paulo: Vozes/FAPESP, 2000, p. 309.

48 Ibid., p. 327.49 BARROSO, op. cit., p.107.50 Ibid., p.104.51 Ibid., p.105.52 Ibid., p.108.53 VENTURA; SIMAS; PEPE; SCHRAMM, op. cit., p. 77.54 Ibid., p. 78.55 Ibid., p. 79.56 PEPE; FIGUEIREDO; SIMAS; OSORIO-DE-CASTRO; VENTURA, op. cit., p. 2406.57 Ibid., p. 2406.58 Ibid., p. 2406.59 Ibid., p. 2407.60 Ibid., p. 2408.61 Ibid., p. 2410.62 Ibid., p. 2408.63 Ibid., p. 2408.

THE JUDICIALISATION OF HEALTH AND SOME OF ITS CONSEQUENCES

ABSTRACT

This article aims to analyze the role of judicial control of public policies related to the guarantee of right to health in Brazil. On this purpose, it was applied bibliographic research and the deductive evaluation method. Firstly, it was made a brief history on the court decisions granting the receipt of medicines, from the State, by patients. Next, the role of National Health System in the distribution of medicines is studied. In addition, the fundamentals and the limits of judicialisation of health are brought as well the main contrary views on the possibility of judicial control on health policies are presented. Finally, it is exposed many of the challenges brought by the judicialisation of health.

Keywords: Judicialisation. Health. Public policies. Social rights.

Submetido: 10 mar. 2015Aprovado:15 ago. 2015

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A AntecipAção De tutelA em fAce Do poDer púBlico nA internAção psiquiátricA compulsóriA:

o império DA JurisDição proVisóriA soBre A JurisDição DefinitiVA nos limites Do noVo CPC

Elaine Harzheim Macedo*

Fábio de Holanda Monteiro**

1. Introdução. 2. Fundamentação constitucional das tutelas provisórias. 3. As tutelas de urgência no CPC em vigor e as tutelas provisórias do novo CPC. 4. O direito à saúde mental na ordem jurídica brasileira.5. A internação psi-quiátrica compulsória. 6. A antecipação de tutela em face do poder público na internação psiquiátrica compulsória. 7. A guisa de conclusão. Referências.

RESUMO

O presente estudo traz algumas considerações acerca da utilização da tutela antecipada como medida de urgência em face do Poder Público na internação psiquiátrica compulsória dos portadores de transtornos mentais. Há de se reconhecer que, na seara da saúde mental, algumas medidas de urgência, como é o caso da antecipação de tutela, imprimem maior efetividade na concretização dos direitos fundamentais, tendo, como objetivo principal, o tratamento do portador de enfermidade mental e a preservação de sua cidadania. Desde a entrada em vigor da Lei da Reforma Psiquiátrica, foi instituído um novo modelo assistencial aos portadores de transtornos mentais, voltado para a inserção na família, no trabalho e na comunidade. Referida lei traz, dentre as pos-sibilidades terapêuticas, a internação psiquiátrica compulsória, a qual somente deve ser utilizada em situações extremadas e quando houver possibilidades de danos ao paciente, à família e a terceiros, tornando-se cabível a antecipação da tutela nos casos em que a demora na prestação jurisdicional possa vir a ocasionar sérios riscos ao paciente e a terceiros, sobrepondo-se a jurisdição provisória à jurisdição definitiva.

Palavras-Chave: Saúde Mental. Internação Psiquiátrica Compulsória. Poder Público. Antecipação de Tutela. Jurisdição Provisória.

* Doutora e Mestre em Direito. Especialista em direito processual civil, Professora na Graduação e no Programa de Pós-Graduação em Direito junto à PUCRS. Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Ex-Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul. Membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul. Advogada. E-mail: [email protected].

** Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Especialista em Processo Administrativo pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Especialista em Direito Tributário pela Universidade Estadual do Ceará - UECE. Professor Efetivo do Curso de Direito da Universidade Estadual do Piauí - UESPI. Procurador do Estado do Piauí. Advogado. E-mail: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO

Os crescentes casos de transtornos mentais - cujas consequências reca-em não somente sobre os por eles acometidos, mas também sobre a família, terceiros e a sociedade como um todo, demandam medidas concretizadoras não somente do Legislativo e do Executivo, mas, precipuamente, a depender do caso, do Judiciário.

O presente estudo busca trazer algumas considerações sobre a internação psiquiátrica compulsória, que, embora constitua restrição à liberdade, afigura-se como a medida terapêutica necessária quando houver possibilidade de sérios danos à saúde do portador de enfermidade mental, ou risco para si,e a todos os que o cercam.

A dificuldade de proteção e implementação dos direitos fundamentais, como é o caso do direito à saúde mental, exige não somente o uso de alternativas a serem extraídas das ordens jurídicas interna e internacional (esforços integrados dos Estados e dos povos), mas demanda também uma revisão e adaptação de mecanismos jurídicos tradicionais.

OEstado-Juiz deve buscar conferir a máxima efetividade, utilizando-se de instrumentos processuais para fazer valer o conteúdo dos direitos fundamentais colocados ao cidadão a partir do Texto Constitucional, sobremodo nas situações relacionadas com o direito à vida e à integridade da pessoa, como é o caso da saúde mental.

Dessa forma, o processo aparece como uma resposta à exigência da racio-nalidade, caracterizadora do Direito moderno, e como um importante meio na concretização dos direitos fundamentais, fornecendo os instrumentos necessários à sua realização, como se dá nos casos das tutelas de urgência, destacando-se, no atinente à saúde mental, a modalidade da antecipação de tutela nas situações que envolverem a internação psiquiátrica compulsória.

2 FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL DAS TUTELAS PROVISÓRIAS

Na pós-modernidade, o Estado tem sido cada vez mais exigido pela so-ciedade com vistas a conferir efetividade à Jurisdição, não somente para que a pretensão deduzida em juízo tenha uma duração razoável, mas para que também seja garantido o resultado útil do processo1. É uma sociedade que pede urgência, de tempo efêmero e cuja importância dos bens da vida requerem sua obtenção em curto prazo, não havendo espaço para atraso ou demora. Além do mais, o fato de a produção e das relações sociais serem massificadas traz a consequência de que a violação de um só ato de direito material pode surtir efeito sobre mi-lhares de pessoas2.

Depois de mais de dois séculos sacramentando, no âmbito do processo, a prestação jurisdicional definitiva, capaz de eliminar para sempre qualquer vestígio de conflito no caso julgado, cuja decisão final se louva no esgotamen-

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A antecipação de tutela em face do poder público na internação psiquiátrica compulsória:o império da jurisdição provisória sobre a jurisdição definitiva nos limites do novo cpc

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to das vias recursais e na indiscutibilidade da coisa julgada, os novos tempos exigem a construção de uma via alternativa, estabelecendo-se instrumentos para um processo efetivo e tempestivo, a alimentar-se de decisões provisórias, capazes de, por si, transformarem, desde logo, o mundo fenomênico, porque, de regra, voltam-se para compor conflitos nos quais a urgência se sobrepõe à segurança jurídica.

O novo Código Processual está ideologicamente comprometido com a jurisdição definitiva, quando cuida, em sua parte especial, do processo de conhe-cimento, do cumprimento da sentença, dos procedimentos especiais, do processo de execução e da jurisdição dos tribunais, mas, na parte geral, ao estabelecer, em livro distinto (Livro V), as tutelas provisórias, rendeu-se a esta via alternativa em vez da tradicional para atender demandas de direito material que reclamam urgência, cautela ou por estarem qualificadas pela evidência, merecendo receber tutela diferenciada e adequada.

Como salientado por Germano Schwartz e Ricardo Gloeckner, o Direito, com sua abstração, não pode arrolar numerusclausus todas as situações ocorridas na sociedade, haja vista, ser o mundo dos fatos dotado de grande dinamicidade. Com isto, advém a necessidade de imprimir celeridade na solução das questões jurídicas postas perante o Judiciário,3 em especial quando os fatos – e não o direito – clamam por pronunciamento imediato.

Destarte, torna-se cada vez mais preeminente que o juiz assuma responsa-bilidade pela aplicação e efetivação da função jurisdicional no sentido de garantir as respostas necessárias e adequadas dentro de um tempo razoável.4

Ao Judiciário cabe a função de garantidor da Constituição, não devendo restringir-se como mero aplicador da legalidade positivada, mas lhe cabendo adotar uma postura que busque concretizar os valores fundamentais inerentes à dignidade humana.5

Vale lembrar que a garantia fundamental ao processo reside nas dispo-sições constitucionais que impõem o seu desenvolvimento em conformidade com os direitos e as garantias processuais contidos na Lei Maior,6 agregando--se a devida adequação da composição do conflito às garantias materiais que consolidam a ordem jurídica e a concepção de um Estado democrático de Direito. Dizendo com outras palavras, deve-se buscar conferir não somente o acesso à justiça da forma mais ampla possível, mas também propiciar todos os meios necessários para que o direito pretendido pela parte seja entregue em tempo e forma adequados, sem demora que possa vir a lhe ocasionar danos ou perecimento do próprio direito.

Como medidas judiciais que objetivam “neutralizar o periculum in mora”, tem-se as tutelas que a doutrina tradicional vinha reconhecendo como tutelas de urgência, as quais visam a assegurar a utilidade do provimento final e evitar que a pretensão pereça em face da demora no deslinde do processo7. Tais tutelas, definidas como aquelas destinadas a compor conflitos que exijam pronunciamen-

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to imediato do Poder Judiciário, receberam do novo Código de Processo Civil uma nova concepção, identificando o legislador processual o gênero de tutelas provisórias e as espécies de tutelas de urgência e tutelas de evidência, o que será objeto de análise mais detalhada adiante.

De qualquer sorte, é possível desde logo estabelecer que as tutelas provisó-rias – independentemente de seu enquadramento – encontram seu fundamento diretamente na Constituição Federal de 1988, como decorrência inamovível do Estado democrático de Direito e dos princípios constitucionais relacionados com o acesso à Justiça, da eficiência, do devido processo legal, da duração razoável do processo e da proporcionalidade.8

No mesmo alinhamento de Fernanda Tomazoni, a concessão de medidas urgentes antecipadas de um provimento assecuratório, do mérito ou de parte do mérito de imediato, como é o caso das liminares, sem que até mesmo a outra parte tome conhecimento da esfera de direito atingida, constitui-se, induvido-samente, em uma das formas de acesso à justiça9, atendendo também o devido processo legal, pois não há ofensa nessas antecipações ao contraditório porque ele comparecerá no processo ainda que de forma diferida ou até eventual.

3 AS TUTELAS DE URGÊNCIA NO CPC EM VIGOR E AS TUTELAS PROVISÓRIAS DO NOVO CPC

Na doutrina e jurisprudência moldadas sob o Código de 1973, consolidou--se o entendimento de que a antecipação de tutela distingue-se do procedimento cautelar (fumus boni juris e periculum in mora) porque possuem escopos diferentes, a saber: a primeira visa a satisfazer uma relação ou situação jurídica acobertada pela verossimilhança, enquanto o segundo serve, exclusivamente, para evitar o perecimento do direito nos processos de cognição ou de execução. Em apertada síntese, é a distinção entre satisfatividade e cautelaridade como consequência dos respectivos pronunciamentos judiciais.

No CPC de 1973, a antecipação da tutela constitui-se em uma medida que pode ser concedida no bojo da ação, inclusive na fase recursal, com vistas a “adiantar total ou parcialmente o provimento final pleiteado”, sem que haja perda da característica de provisoriedade, visto que a confirmação somente dar--se-á quando do proferimento da sentença de mérito.10

A lei processual civil em vigor, no que concerne à antecipação da tutela propriamente dita, é taxativa ao exigir, em seu art. 273, caput, que o convencimen-to do juiz esteja fundado em prova inequívoca dos fatos alegados pela parte. Há ainda os requisitos dos incisos I e II do artigo retro apontado,11 ou seja, fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou que reste caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito de protelação do réu. Para alguns, a exigibilidade da prova inequívoca significa que não basta a existência da verossimilhança, fazendo-se necessário também o fumus boni juris exigido para o cabimento da medida,12 embora o tema não seja pacífico, havendo quem

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defenda que toda e qualquer antecipação de tutela só se justifica em razão da verossimilhança,13 sem embargo da verossimilhança ser sopesada pelo juiz, admi-tindo portanto graduação distinta conforme as peculiaridades do caso concreto.

Em relação à tutela antecipada no direito à saúde, Ricardo Gloeckner afirma que deve ser aplicado, necessariamente, o disposto no inciso I do art. 273 do CPC, o qual trata, de forma sincrética, do fumus boni júris ou “fumaça do bom direito”.14 Do autor divergimos para defender que a verossimilhança não se limita a uma fumaça do bom direito, erigindo-se em autêntico juízo de valor sobre os fatos que fundamentam a pretensão, mas com ele concordamos no enquadramento do dispositivo legal.

Na antecipação de tutela, o articulista mencionado vincula a verossi-milhança da alegação, em consonância com a formação da prova inequívoca, fazendo parte de um só componente.15Também aqui se aponta um contrapon-to, pois, na verdade, há uma incompatibilidade lógica entre verossimilhança e prova inequívoca. Sugere-se que a superação desta incompatibilidade apoie-se exatamente no juízo de valor e no convencimento de que os fatos alegados ganham probabilidade no mundo fenomênico, podendo, a partir deles, o juiz conceder a tutela pretendida.

Por isso mesmo, faz-se necessário mais que a simples demonstração do fumus boni juris e do periculum in mora para fins de concessão da antecipação da tutela, sob pena de clara afronta ao art. 273 do CPC. Nesse sentido, tem-se manifestado a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, exigindo também a presença da prova forte e convincente para o deferimento da medida.16

Essa realidade da tutela antecipada é que, certamente, levou o legisla-dor a cercar-se de cuidados quando de sua previsão, mas melhor seria se se valesse de outro qualificativo para a prova do que a expressão “inequívoca”. Aliás, bastaria o manejo da expressão “verossimilhança da alegação”, para imprimir a natureza e a força ou eficácia da decisão que se prestigia em sede de antecipação de tutela.

Assim, nas situações em que a mora na prestação jurisdicional possa vir ocasionar sérios danos ao portador de enfermidade mental, à sua família ou a terceiros, mostra-se perfeitamente cabível o uso da antecipação da tutela.

No novo Código de Processo Civil, Lei n. 13.105/2015, inaugura-se um novo capítulo para as tutelas de urgência (cautelares e antecipatórias), como espécies da tutela provisória, as quais, em que pese a distinção conceitual, en-contram-se sob uma mesma disciplina, sendo-lhes conferido tratamento jurídico idêntico, tanto quanto possível. Ainda no mesmo livro, o legislador processual prevê a tutela de evidência, definindo os casos de sua incidência, no que inova em relação à legislação processual anterior, que apenas previa incidentalmente tutela desta natureza, conforme art. 273, § 6º. Contudo, considerando os limites deste trabalho, a atenção se concentrará nas tutelas de urgência.

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Nesse sentido, o Livro V, cuidando das tutelas provisórias, estabelece, em seu art. 294, que a tutela provisória pode fundamentar-se em urgência ou evidência, para, em seu parágrafo único, dispor que a tutela provisória de urgência, cautelar ou antecipada, pode ser concedida em caráter antecedente o incidental. É nítida a proposta de manter uma unidade processual em relação às medidas de antecipação e às de natureza cautelar, superando uma doutrina que por décadas se preocupou mais em distingui-las do que aproximá-las.

Eduardo Talamini aponta, como os principais pontos de unificação dos institutos a função de garantir o resultado inerente à tutela definitiva; a cognição sumária; a função instrumental ao provimento posterior e a provisoriedade.17 Res-salta, contudo, o professor paranaense que a diferença entre as medidas cautelares e antecipatórias opera-se no plano quantitativo e não no qualitativo, e, mesmo que haja distinção entre elas, tal distinção leva em consideração, na maioria das vezes, o “conteúdo preponderante da medida (conservativo ou antecipador)”.18 As conclusões deduzidas, porém – e aqui se oferece um contraponto –, não levam em consideração que as tutelas de urgência antecipatórias, promovidas no âmbito do processo principal, podem se qualificar pela técnica da inversão do contraditório, conforme art. 304, que cria uma nova figura, qual seja, a da estabilidade da lide caso da decisão que concede a antecipação não haja recurso pela parte interessada. Trata-se, outrossim, de previsão expressa para as tutelas antecipadas, de inviável aplicação às cautelares, que qualitativamente dessas últimas se desgarram, sequer a hipótese podendo ser considerada como garantia do provimento definitivo.

Por outro lado, o novo Código marca a exclusão do processo cautelar, não lhe reservando nenhum título específico, mas sim trazendo uma parte geral sobre as medidas de urgência possíveis de serem concedidas pelos magistrados, dividindo, claramente, as eminentemente satisfativas das cautelares, quando em seu art. 301, estabelece que a tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrola-mento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito.19 A nova lei reconhece o fato de que a tutela antecipada fundada na demora e a tutela cautelar são espécies do gênero tutela de urgência.20

Em relação à tutela satisfativa, de natureza antecipatória, além de privilegiar a inversão do ônus do tempo, como de tradição, criou a antecipação antecedente (art. 303) e, na incidental, adotou a técnica de inversão do contraditório e a figura da estabilidade da lide (art. 304), divorciando-se significativamente do Código de 1973. A tutela antecipatória, antecedente ou incidental, e a estabilidade da decisão provisória são temas da maior importância para o enfrentamento de con-flitos que envolvam o direito à saúde mental e a eventual necessidade imediata de internação psiquiátrica, a seguir enfrentadas.

4 O DIREITO À SAÚDE MENTAL NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA

A Organização Mundial de Saúde (OMS), agência especializada em saúde subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU), contemplou, no preâm-

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bulo de sua Constituição, que “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou enfermidade.” Com este conceito, alargou-se o anterior, que restringia a saúde à seara curativa e preventiva, propondo-a não somente como a ausência de doenças, mas também como um perfeito bem-estar físico, mental e social.21

Seguindo as diretrizes internacionais de valoração dos direitos huma-nos, a ordem jurídico-constitucional brasileira estabelece que a saúde possui estreita correlação com a dignidade da pessoa humana e com o direito à vida, encontrando-se expressamente consagrada como direito fundamental social pelo art. 6º da Constituição Federal de 1988, sendo reconhecido como um direito público subjetivo a prestações, conferido a todos, indistintamente, como dever do Estado.22

A concepção de saúde abarcada pela Lei Fundamental Brasileira, tal como proposta pela OMS, vai além do caráter meramente curativo, compreendendo também as dimensões preventiva e promocional, formando, como um todo, “o objeto e a baliza de sua tutela jusfundamental”.23

Para Ingo W. Sarlet, o direito à saúde, além da vinculação com o direito à vida, encontra-se ligado não somente com a ideia de integridade corpórea como também com a de integridade psíquica do ser humano.24 Dessa forma, a saúde mental, inclui-se como um direito essencial ao ser humano, assentado no fundamento maior da dignidade da pessoa humana.

Convém notar que não se deve entender a saúde mental simplesmente como a ausência de perturbações mentais, mas abrangendo também o bem-estar subjetivo, a autoeficácia percebida, a autonomia, a competência e a autorrealização do potencial intelectual e emocional do indivíduo.25

Embora ainda não haja um conceito de saúde mental universalmente aceito, já que quase todas as definições apresentadas não têm contribuído para uma aplicação imediata no tratamento dos pacientes, deve-se levar em conta se determinada pessoa apresenta, ou não, um padrão comportamental que pode ser indicador de determinada patologia para a escolha da melhor alternativa de tratamento válido cientificamente.26

A Lei Maior da República abraçou um conceito de saúde que abrange tanto a ausência de doença, como também o de bem-estar, “enquanto derivado de políticas públicas que o tem por objetivo, seja apenas a política, seja sua im-plementação, traduzida na garantia de acesso – universal e igualitário – às ações e serviços com o mesmo objetivo (CF, art. 196)”.27

Conquanto sua previsão no art. 6º da Carta Constitucional, o direito à saúde encontra sua concretização de maneira mais efetiva nos art. 196 e seguintes, ao estabelecer-se a necessidade de uma regulamentação normativa infraconstitu-cional, assegurando que tal direito, além de pertencer a todos, impõe aos poderes públicos o dever de promoção de políticas sociais e econômicas que busque a

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diminuição do risco de doenças e de outros agravos, bem como a permissão de acesso universal e igualitário às ações e prestações que lhes digam respeito.28

Não há como negar que a Carta de 1988 afirma a saúde como um direito social fundamental do ser humano (art. 6º), entendido como uma autêntica liberdade positiva possuidora de aplicabilidade imediata, nos termos do seu art. 5º, § 1º. 29

A busca da conceituação de doença mental na seara jurídica só confirma a controvérsia que a envolve. Denominar como pessoas portadoras de transtornos mentais os indivíduos, seja de que sexo for, incluindo crianças, adolescentes, adultos ou idosos, pertencentes às diversas classes sociais, culturas, religiões, sem distinção de cor ou raça, possuidoras de transtornos mentais, congênitos ou adquiridos, crônicos ou agudos,30 só confirma o quão dificultoso é a concei-tuação, pois não se chega a uma conclusão do que realmente venha a ser doença ou transtorno mental.

Discussões conceituais à parte, há de destacar-se que a pessoa portadora de transtorno mental possui um arcabouço jurídico de proteção de seus direitos, cuja fundamentação encontra-se no princípio da dignidade humana, valor maior e norteador da Carta de 1988 (art. 1º, III).

No ordenamento jurídico pátrio, faz-se referência ao parágrafo único do art. 3º da Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90), o qual preconiza que as ações de saúde devem buscar garantir às pessoas e à coletividade não somente o bem-estar físico, mas também o mental e o social.31

Com relação aos portadores de transtornos mentais, o regime jurídico de proteção aos direitos fundamentais encontra-se previsto na Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, intitulada Lei da Reforma Psiquiátrica.32

5 A INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA COMPULSÓRIA

Uma das principais vertentes do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira foi o redirecionamento do modelo de assistência em saúde mental no Brasil – anteriormente centralizado no hospital psiquiátrico –, em conformidade com os movimentos internacionais de reformas psiquiátricas propagadas a partir dos anos 40, após as práticas contra as minorias no decorrer da II Guerra Mundial.33Nesse contexto, o modelo assistencial em saúde mental assume um importante papel no tratamento e na reinserção social das pessoas portadoras de transtornos mentais.

A Lei nº 10.216/2001 constituiu um verdadeiro marco na busca do respeito às pessoas afetadas por transtornos mentais, em sintonia com as diretrizes preconizadas pela Constituição, mostrando-se contrária a discrimi-nações e repudiando qualquer manifestação de intolerância e de desrespeito à dignidade da pessoa humana.34 Pobreza, nível de escolaridade, raça, opção sexual, credo, nada pode afastar a implementação dos direitos assegurados pelo referido diploma normativo.35

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Consoante o disposto no seu art. 4º, caput, a internação psiquiátrica, independente da modalidade, somente se mostrará cabível quando os recursos extra-hospitalares restarem insuficientes, podendo ocasionar risco à integralidade física, à saúde ou à vida dos portadores de transtorno mental ou a terceiros.36

A lei de regência disciplina que a situação de perigo concreto deve estar prevista em laudo médico circunstanciado, caso contrário, torna-se incabível a obrigatoriedade de internação do paciente. Havendo necessidade de interna-mento, este deverá buscar a cessação do estado de perigo, com consequente reinserção social.

No parágrafo único do art. 6º, encontram-se previstas, como modalida-des de internação, a voluntária, a involuntária e a compulsória. Na internação voluntária, há o consentimento do paciente, que deverá assinar uma declaração atestando sua escolha por este tipo de tratamento (art. 7º, caput). A internação involuntária dá-se sem a autorização do usuário e a pedido de terceiro, cujo tér-mino somente ocorrerá por solicitação escrita do familiar ou responsável legal, ou ainda quando houver manifestação do médico responsável pelo tratamento (art. 8, § 2º). Já a internação compulsória, nos termos do inciso III do parágrafo único do art. 6º, é decorrente de ordem judicial.

Consoante Carrasco Gómez, os internamentos compulsórios “son todos aquellos que se llevan a efecto por ladecisón de otras personas diferentes al inte-ressado, sinsu consentimento o icluso com suoposición, pasiva o incluso activa”.37 Mostram-se cabíveis somente quando os recursos extra-hospitalares restarem insuficientes, com risco à integridade física, à saúde ou à vida dos portadores de transtorno mental ou a terceiros.38

6 A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA EM FACE DO PODER PÚBLICO NA INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA COMPULSÓRIA

A Constituição Federal impõe aos entes estatais o dever de disponibilizar um tratamento de saúde adequado à população como um todo, que, segundo o disposto em seu art. 23, inciso II, é compartilhado por todos os entes federa-tivos, que são solidariamente responsáveis.39 Cabe, pois, a qualquer dos entes públicos elencados no caput do art. 23 a competência para prestar serviços de saúde, inclusive no tocante aos portadores de transtornos mentais em tratamento por internação forçosa.40 Por outro lado, o direito social à saúde, como garantia constitucional do art. 6º da Constituição, é dever de todos, atingindo o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário, guardadas suas funções precípuas.

Nos termos do art. 3º da Lei nº 10.216/2001,41 a responsabilidade pelo tratamento das pessoas portadoras de enfermidades mentais, no Brasil, incumbe ao Estado, às instituições especializadas, à família e à sociedade, cujo objetivo é o de possibilitar o retorno desses indivíduos o mais breve possível ao convívio social. Como se nota, torna-se inadmissível que o portador de transtorno mental

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e hipossuficiente fique sem o atendimento médico indicado, havendo a obriga-toriedade de o ente público tomar todas as medidas necessárias com fins de lhe garantir o acesso à saúde e a uma vida digna.

Dentre os tratamentos indicados, tem-se a internação psiquiátrica compul-sória como uma medida necessária para os casos mais graves. Tal modalidade de internamento tem cada vez mais demandado interferência do Poder Judiciário nas situações cuja demora possa vir a ocasionar sérios riscos ou danos ao portador da enfermidade mental, à família e a terceiros.

Havendo receio de ineficácia relacionada ao perigo da demora na prestação jurisdicional na situação que demandar internação obrigatória, a tutela de urgência na modalidade antecipada tem o objetivo de dar uma resposta rápida às situações de maior risco de danos, como nos casos que envolvem o uso e abuso de drogas, bastando, para tanto, a existência dos requisitos necessários, ou seja, a relevância do fundamento da demanda e o receio de ineficácia do provimento final.

Destarte, a depender da gravidade do estado de saúde do portador de enfermidade mental, acrescida de sua recusa em submeter-se ao tratamento mé-dico necessário, exigem-se providências imediatas como é o caso da internação forçosa. Diante de tais situações, mostra-se cabível a antecipação da tutela em face do poder público com vistas a determinar o internamento em instituição hospitalar da rede pública dotada de capacidade para tratar enfermos mentais.Nesse sentido, as seguintes jurisprudências pátrias:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - INTERNAÇÃO PARA TRATA-MENTO DE USUÁRIO DE DROGAS - PACIENTE PORTADOR DE TRANSTORNOS MENTAIS EM DECORRÊNCIA DO USO DE DROGAS - EXISTÊNCIA DE LAUDOS QUE ATESTAM A PATOLOGIA E A NECESSIDADE DE INTERNAÇÃO - VE-ROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES - CONFIGURAÇÃO - FUNDADO RECEIO DE DANO IRREPARÁVEL - EXISTÊN-CIA - DESCUMPRIMENTO DA LIMINAR - ARBITRAMENTO DE MULTA DIÁRIA - POSSIBILIDADE - RECURSO PROVI-DO. - O relatório médico que atesta que o agravado é portador de transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de drogas, com necessidade de internação, bem como os demais documentos carreados aos autos evidenciam a verossimilhança das alegações iniciais, bem como o perigo de dano irreparável à saúde do paciente interessado. - O arbitramento de multa diária se mostra cabível, conforme decisão do STJ. (V.V.) EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. CONSTITUCIONAL. DIRIEITO À SAÚDE. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. DEPENDENTE QUÍMICO. USUÁRIO DE CRACK. CLÍNICA PARTICULAR. RELATÓRIO MÉDICO SUSCINTO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 273, DO CPC. RECURSO NÃO PROVIDO. 1- Consoante estabele-ce o art. 273, caput, incisos I e II e § 2º, do Código de Processo Civil, devem concorrer os seguintes requisitos para a concessão

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da tutela antecipatória: a) prova inequívoca; b) verossimilhança da alegação; c) iminência de dano irreparável ou de difícil reparação; d) reversibilidade da medida; ou e) abuso de direito de defesa; ou f) manifesto propósito protelatório do réu. 2- O relatório médico sucinto, que sequer menciona a urgência da medida, não con-duz, por si só, à obrigatoriedade da Municipalidade de custear a internação de dependente químico usuário de “Crack” em estabelecimento privado, principalmente quando não evidencia os motivos pelos quais a internação foi preconizada ao paciente. 3- Indemonstrada a verossimilhança das alegações da recorrente, ante a ausência de prova inequívoca, impõe-se o indeferimento da tutela antecipada almejada. 4- Recurso a que se nega provimento. (TJ/MG, AI: 10431120048993001 MG , Relator: Sandra Fonseca, Data de Julgamento: 09/04/2013, Câmaras Cíveis / 6ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/05/2013).

DIREITO Á SAÚDE. INTERNAÇÃO HOSPITALAR PSIQUI-ÁTRICA COMPULSÓRIA. PESSOA MAIOR PORTADORA DE TRANSTORNO MENTAL E DOENÇA INFECTO-CONTA-GIOSA. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DO PODER PÚBLICO DE FORNECÊ-LA. CONDENAÇÃO DO MUNICÍPIO AO PAGA-MENTO DE HONORÁRIOS PARA DEFENSORIA PÚBLICA. DESCABIMENTO. 1. Ainda que os efeitos da tutela pretendida tenham sido antecipados, tal fato por si só não acarreta a perda do objeto. Inteligência do art. 273 do CPC. 2. Tratando-se de pessoa portadora de transtorno mental e doença infecto-contagiosa, que se recusa a submeter-se ao adequado tratamento, sendo agressiva e...(TJ-RS, AC: 70047401138 RS , Relator: Sérgio Fernando de Vascon-cellos Chaves, Data de Julgamento: 25/05/2012, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 31/05/2012).

A internação compulsória tem como principal objetivo o tratamento do portador de transtorno mental, buscando possibilitar as condições para sua rein-tegração social. É uma medida de caráter extremo que somente deve ser utilizada durante o período que se mostrar necessária e quando os demais recursos restarem ineficientes às necessidades terapêuticas do paciente. Deve haver observância de requisitos para sua efetivação, os quais se constituem em garantias conferidas aos portadores de transtornos mentais, com fins de evitar internações indevidas ou prolongamento desnecessário.42

É de salientar-se que o tratamento em regime de internação deve ser es-truturado de forma a oferecer um atendimento multidisciplinar aos pacientes, oferecendo-lhe assistência integral, incluindo serviços médicos, de assistência social, de psicólogos, de terapeutas ocupacionais, dentre outros (art. 4º, § 2º, da Lei nº 10.216/2001).

Em não havendo observância das imposições previstas no § 2º do art. 4º, será incabível o internamento, pois o § 3º do mesmo dispositivo legal veda sua ocorrência em instituições com características asilares que não assegurem aos por-

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tadores de transtorno mental os direitos previstos no parágrafo único do art. 2º. Contudo, deve-se ressaltar que a decisão judicial possui efeito condicional, o qual deve permanecer enquanto perdurarem os motivos que ocasionaram a interdição.

Em decisão por meio do HC 135.271/SP, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, fundamentando-se nas disposições da Lei nº 10.216/2001, manteve o entendi-mento acerca da admissibilidade da internação psiquiátrica compulsória de portador de enfermidade mental reconhecida por laudo médico devidamente motivado.43

Sérgio Deodato pondera que o internamento contra a vontade da pessoa portadora de deficiência mental somente deve ocorrer “quando esta se encontre num estado particularmente grave e corra sérios riscos, para si e para terceiros”.44

Nas duas primeiras situações – o próprio paciente se dispõe a ser internado ou seu parente ou representante, devidamente munido de laudo médico, busca o atendimento hospitalar –, estabelece-se uma relação exclusivamente entre o parti-cular e o ente público responsável pelo acolhimento em instituição destinada ao tratamento psiquiátrico. Havendo resistência da instituição pública em receber o paciente é que surge a intervenção judicial e, frente à gravidade do caso, via decisão provisória antecipatória. Nada impede, também, que a intervenção judicial se dê quando o próprio paciente resiste, contrariando conclusões médicas à internação.

Nesse sentido, a ordem judicial pode se dar tendo como destinatário o paciente resistente ou o nosocômio que se recusa a recebê-lo, essa sendo a mais comum, mas será sempre compulsória e terá por fundamento laudo médico e avaliação também do instituto de saúde e sua capacitação para bem receber e tratar do portador de transtorno mental.

Considerando que o novo CPC prevê expressamente a concessão de tutela antecipada requerida em caráter antecedente, conforme art. 303, não se antevê nenhuma incompatibilidade de a parte interessada promover, inicialmente, o pedido de internação em caráter antecedente para depois, mais aparelhada com todos os dados necessários ao convencimento judicial e ao bom prossegui-mento do processo, aditar a inicial para que o demandado venha a se defender, seguindo, após frustrada tentativa de conciliação, o processo o rito ordinário. A tutela antecipada requerida em caráter antecedente é representativa da urgência da pretensão deduzida, até porque pode o paciente estar submetido a uma crise aguda a exigir imediata intervenção médica e hospitalar.

O que nos afigura inadequado, porém, é a incidência da estabilidade da decisão que concede a antecipação de tutela liminarmente, requerida junto da petição inicial e em sede de processo definitivo, conforme dispõe o art. 304, caput, caso não haja recurso desta concessão pela parte contrária, que estaria, ainda, vin-culada a propor ação para reverter, reformar ou invalidar a ordem de internação.

A internação compulsória, a exemplo da voluntária e da involuntária, define-se sempre como internação provisória, sujeita a ser revista, modificada, até porque o paciente tem o direito fundamental de ser reinserido na sociedade.

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É forçoso concluir que a natureza antecipatória desta internação é, por definição, provisória, não podendo se perpetuar no tempo, razão pela qual não se coaduna com a proposta da estabilidade da decisão provisória e do encami-nhamento da parte adversa à técnica da inversão do contraditório, compelindo-a a propor ação para alterar o comando interdital.

É indispensável que a doutrina e a jurisprudência interpretem e apliquem a regra do art. 304 do novo CPC com muita ponderação e cautela quando a tutela provisória antecipatória for proferida à luz do direito de saúde dos portadores de transtornos mentais, referendando os respectivos direitos fundamentais tutelados pela Lei n.10.216/2001. É o direito material a sobrepor-se ao direito processual, o que vem ao encontro do devido processo legal e da prestação jurisdicional efetiva e tempestiva.

7 A GUISA DE CONCLUSÃO

O papel do Judiciário no Estado Democrático de Direito é diverso do que lhe foi atribuído na formulação clássica sobre suas relações com os demais poderes estatais.

Hodiernamente, torna-se inadmissível uma posição submissa do Judiciário em relação aos demais Poderes do Estado. Cabe ao juiz agir não adstrito apenas à lei, mas ao próprio direito, não consistindo numa mera aplicação do direito preexistente, devendo ser uma fonte criativa, produtora do direito.

A questão dos portadores de transtornos mentais continua a represen-tar um grande desafio para todos os que se interessam pela prevenção, pelo estudo e pelo tratamento, por existir uma conjuntura social, econômica e política, que não propicia a saúde do indivíduo do ponto de vista físico, psí-quico, social e econômico, reforçando, em decorrência disso, o adoecimento e a exclusão social.

Mostra-se incabível, perante a ordem jurídico-constitucional pátria, um tratamento anti-isonômico e discriminatório entre as pessoas acometidas por alguma patologia mental, visto que seus valores encontram-se assentados, sobre-maneira, no princípio da dignidade humana.

É assente que os portadores de transtornos mentais necessitam de um tratamento específico com base em técnicas médicas, farmacológicas e sociais próprias, representando a Lei da Reforma Psiquiátrica um grande avanço no tratamento e na convivência com as pessoas portadoras de patologia mental.

Contudo, em que pese todos os meios protetivos na busca de lhes conferir cidadania e dignidade, os portadores de transtornos mentais ainda continuam a serem marginalizados, hostilizados e estigmatizados, motivo de suspeitas e, de certa forma, de medo e temor social. A mudança terminológica45 não implicou, ainda, em maiores mudanças ideológicas.

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Hodiernamente, mesmo após a implantação da Reforma Psiquiátrica, o indivíduo que passa por tratamento relacionado a alguma enfermidade mental ainda encontra dificuldades em retornar à sociedade e viver normalmente como qualquer outro ser humano.

O estigma permanece, mostrando-se mais evidente em relação aos que são submetidos a uma ou mais internações psiquiátricas, cada vez mais utilizadas inclusive em decorrência das enfermidades mentais ocasionadas pelo elevado uso e consumo de drogas, com o Direito devendo assumir uma importante função para que lhes seja conferido tratamento digno, em igualdade de condições com os demais seres humanos.

Desse modo, é de suma importância que o direito dos acometidos por enfermidades mentais deva ser efetivado a partir da ótica dos direitos humanos e fundamentais, preservando sua dignidade e cidadania, para o que a lei processual e as tutelas provisórias devem contribuir, adequando-se o processo ao direito material incidente, inspiradas pelos valores constitucionais.

Nesse sentido, enquanto se vê um aporte positivo com a criação da tutela antecipatória antecedente pelo novo CPC, tem-se como impertinente a adoção da estabilidade da decisão provisória, que não pode eternizar-se no tempo.

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1 COSTA, Daniel Carnio. Tutelas de urgência (individuais e coletivas): Teoria Geral. Curitiba: Juruá, 2013, p. 37.

2 Ibid., p. 37.3 SCHWARTZ, Germano A.; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. A tutela antecipada no direito da saúde:

aplicabilidade sistêmica (de acordo com a Lei 10.442/02). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 128.

4 COSTA, op. cit., p. 38.5 MACEDO, Elaine Harzheim. Jurisdição e processo: crítica histórica e perspectiva para o terceiro milênio.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 150.6 SANTOS, Eduardo Rodrigues dos. Processo e constituição: o processo como garantia fundamental da

defesa do cidadão; os princípios processuais constitucionais e processo democrático. São Paulo: J. H. Mizuno, 2014,. p. 193.

7 COSTA, op. cit., p. 39.8 Ibid. p. 39.9 TOMAZONI, Fernanda Ruiz. Tutelas de urgência: (ir)reversibilidade. Curitiba: Juruá, 2007, p. 24. 10 TOMAZONI, Fernanda Ruiz. Op. cit., p. 44.11 Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela

pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:

I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. § 1o Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu conven-

cimento. § 2o Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.

12 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 145.

13 MACEDO, Elaine Harzheim. Juízo de verossimilhança versus tradição da ordinariedade do processo. In: Anais do XXI Encontro Nacional do CONPEDI, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. p. 12.435-12.459. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br>.

14 GLOECJNER, Ricardo Jacobsen. A antecipação de tutela no direito à saúde: aspectos relevantes. In: SCHWARTZ, Germano (Org.). A saúde sob os cuidados do direito. Passo Fundo: UFF, 2003, p. 170.

15 Ibid., p. 170-171.16 [...]. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. PROVA INEQUÍVOCA. VEROSSIMILHANÇA DA ALEGA-

ÇÃO. PRESSUPOSTOS NÃO CARACTERIZADOS. 1. Em sede de antecipação de tutela, hão de estar devidamente configurados, para o deferimento da medida, os pressupostos exigidos no art. 273 do Código de Processo Civil, em particular, aqueles atinentes à prova inequívoca e à verossimilhança da alegação, que não se confundem com a plausibilidade da ação cautelar. 2. O juízo estabelecido em prova inequívoca há de estar calcado no firme convencimento do julgador quanto à concretude do direito vindicado pela parte, não bastando, portanto, mera aparência ou “fumaça”. 3. Viola o art. 273 do CPC a decisão que defere pedido de antecipação de tutela apenas com fundamento na demonstração do “fumus boni iuris” e do “periculum in mora”. [...]. (REsp 532570/RS, 2. T., Rel. Min. João Otávio Noronha, DJ 13.12.2004 p. 292).

17 Ibidem, p. 17.18 Ibidem, p. 17.19 SAMPAIO JUNIOR, José Herval. Tutelas de urgência: sistematização das liminares. São Paulo: Atlas,

2011, p. 14.20 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2010, p. 106.21 SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria

do Advogado Editora, 2001, p. 35.22 PEREIRA, Faíse dos Santos; NELSON, Rocco Antonio Rangel Rosso. A constitucionalização do direito

à saúde e sua concretização via aplicação da norma constitucional. Maria Garcia (Coord.). vol. 81, out. – dez./2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 126.

23 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEREIDO, Mariana Filchtiner. O direito fundamental à proteção e pro-moção da saúde na ordem jurídico-constitucional: uma visão geral sobre o sistema (público e privado) da saúde no Brasil. In: PEREIRA, Hélio do Valle; ENZWEILER, Romano José (Coords.). Curso de direito médico. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 20.

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A antecipação de tutela em face do poder público na internação psiquiátrica compulsória:o império da jurisdição provisória sobre a jurisdição definitiva nos limites do novo cpc

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24 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito consti-tucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 589.

25 VENTURA, Carla A. Arena. Aspectos da interface entre o direito e a saúde mental. In: SOARES, Marcos Hirata; BUENO, SôniaMaria Vilela (Orgs.). Saúde mental: novas perspectivas. São Caetano do Sul – SP, 2011, p. 175.

26 MENDES, Karyna Rocha. Curso de direito da saúde. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 56.27 DALLARI, Sueli Gandolfi. Os Estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo: Hucitec, 1995. p. 30.28 SARLET; MARINONI; MITIDIERO, op. cit., p. 590.29 CIALIRNI, Alvaro de A. S. Direito à saúde: paradigmas procedimentais e substanciais da Constituição.

São Paulo: Saraiva, 2013,. p. 34.30 MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na visão da bioética

e do biodireito. Rio de Janeiro, 2010. p. 14.31 Art. 3o Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como

determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.

Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.

32 Art. 1o Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.

33 MAPELLI JR.,Reynaldo. Ministério Público: atuação na área da saúde pública. In: SABELLA, Walter Paulo; DAL POZZO, Antônio Araldo Ferraz; BURLE FILHO, José Emmanuel (Coords.). Ministério Público: vinte e cinco anos do novo perfil constitucional. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 475.

34 PINHEIRO, Gustavo Henrique de Aguiar. Comentários à lei da reforma psiquiátrica: uma leitura cons-titucional da lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Fortaleza: Tear da Memória, 2010, p. 18.

35 Ibid., p. 19.36 SANTORO FILHO, Antonio Carlos. Direito e saúde mental à luz da lei 10.216 de 06 de abril de 2001.

São Paulo: Verlu Editora, 2012.p. 36.37 CARRASCO GÓMEZ, Juan José. Responsbilidad médica y psiquiatria. 2. ed. Madrid: COLEX, 1998, p.

239.38 SANTORO FILHO, op. cit., p. 36.39 Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;40 Agravo. Obrigação de fazer. Antecipação da tutela. Decisão agravada que deferiu tutela antecipatória para

determinar ao Município e Estado a obrigação de providenciar o resgate e a internaçãocompulsória do esposo da agravada. Obrigação dos entes municipal e estadual decorrente do artigo 3º da Lei nº 10.216/2.001, expressamente prevê ser responsabilidade do Estado, além do desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais. Internação cabível. Multa cominatória corretamente fixada pelo descumprimento da antecipação da tutela, devendo ser mantida. Recurso não provido. (TJ/SP, AI 20531368720148260000, 9ª Câmara de Direito Público, Rel. Oswaldo Luiz Palu, Publicação 12.06.2014).

41 Art. 3o É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a pro-moção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.

42 SANTORO FILHO, op. cit., p. 35.43 HABEAS CORPUS. PROCESSO CIVIL DE INTERDIÇÃO. INTERNAÇÃO JUDICIAL.ENFERMIDA-

DE MENTAL. TRANSTORNO DE PERSONALIDADE ANTISSOCIAL (TPAS).LAUDO PERICIAL. INTERNAÇÃO RECOMENDADA.1.- É admitida, com fundamento na Lei 10.216/01, em processo deinterdição, da competência do Juízo Cível, a determinação judicialda internação psiquiátrica compul-sória do enfermo mental perigoso àconvivência social, assim reconhecido por laudo técnico pericial,que conclui pela necessidade da internação. Legalidade dainternação psiquiátrica compulsória. Observância da Lei Federal n.10.216/01 e do Decreto Estadual n. 53.427/0.8, relativo à aludidainternação em Unidade

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Experimental de Saúde. [...].5.- Legalidade da internação psiquiátrica compulsória. (STJ, HC135271/SP, 3ª T, Rel. Min. Sidnei

Beneti, DJe 04/02/2014). 44 DEODATO, Sérgio. Direito da saúde. Coimbra: Almedina, 2012. p. 107.45 Loucura, terminologia utilizada durante séculos, é tida hodiernamente como uma palavra estigmatizante.

Tramitou na Câmara Federal, aprovado em 17 de março de 2009, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 6013/01, do deputado Jutahy Junior (PSDB-BA), que conceituava transtorno mental, em substituição à expressão “alienação mental”, ou outra que lhe fosse equivalente. Contudo, não foi adiante, por a Câmara ter recebido o Ofício nº 2.218/12, do Senado Federal, comunicando o arquivamento da matéria.

CLAIM OF INJUNCTION AGAINST COMPULSORY PSYCHIATRIC HOSPITALIZATION BY THE STATE: THE PREVALENCE OF PROVISIONAL DECISION OVER FINAL DECISION IN LIGHT OF NEW PROCEDURAL CODE LIMITS

ABSTRACT

This study presents some considerations on the use of injunctive relief as an emergency measure in face of public power, concerning the compulsory psychiatric hospitalization of people with mental disorders. It is imperative to recognize that some emergency measures, such as the preliminary injunction, bring greater effectiveness in achieving the fundamental rights of people with mental illness, helping to preserve their citizenship, by granting their hospitalization and medical treatment. Since the entry into force of the Law on Psychiatric Reform, a new model of assistance was introduced, concerning patients with mental disorders, focusing on the inclusion in the family, workplace and community. This Law provides, among the therapeutic possibilities, the compulsory psychiatric hospitalization, which should only be used in extreme situations and when there is the possibility of harms to the patient, to the family, or to third ones, making it appropriate the injunction when the delay in adjudication might cause serious risks to the patient and to others.

Keywords: Mental Health. Compulsory Psychiatric Hospitalization. Public Power. Anticipation Trusteeship. Provisional Jurisdiction.

Submetido: 30 mar. 2015Aprovado: 14 ago. 2015

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los Derechos económicos, sociAles y culturAles como funDAmentos De lA DigniDAD e

iguAlDAD humAnAs

Francisco Ercilio Moura*

Presentación. 1 Los Principios Fundantes de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales. 2 Los Deberes Contenidos en el Pacto de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales. 3 La Posibilidad de Imponer Limitaciones y Restricciones a los Derechos Fundamentales: ¿Cuál es el Límite? 4 Conclusión. Referencias.

RESUMEN

En este artículo el autor reflexiona sobre los avances en la doctrina, en la academia, entre los actores estatales y organi-zaciones de la sociedad civil global respecto de los enfoques acerca de los derechos económicos, sociales y culturales (Desc), cuya importancia toma relieve a partir de la misma Declaración Universal de los Derechos Humanos (DUDH), al identificar un solo conjunto indivisible de derechos inalienables que se levan-tan sobre la base de los derechos civiles, políticos, económicos, sociales y culturales. En este sentido, la DUDH se constituye como el instrumento fundante que da cabida a los dos Tratados Internacionales de Derechos Humanos, así como los demás instrumentos regionales sobre la materia.

Palabras Clave: Derechos Económicos. Sociales y Culturales (Desc). Exigibilidad. Justiciabilidad. Integralidad. Universalidad. Progresividad e Indivisibilidad.

PRESENTACIÓN

Los derechos económicos, sociales y culturales (DESC), al igual que los de-rechos humanos en el ámbito civil y político, son parte indisoluble de los derechos humanos y del derecho internacional de los derechos humanos, tal como constan en la Declaración Universal, el Pacto Internacional de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales y su Protocolo Facultativo (PIDESC), la Declaración Americana de los Deberes y Derechos del Hombre, la Declaración sobre Garantías Sociales, la Conven-ción Americana sobre Derechos Humanos y el Protocolo Facultativo de San Salvador1.

* El autor es Abogado especializado en temas de DD.HH, Doctor en Ciencias Sociales por la Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Lima, Perú, con título reconocido por el Pro-grama de Pos graduación en Sociología de la Universidad Federal de Ceará, Brasil, y en la actualidad es profesor en la Pos Graduación de Derecho en la Universidad Unichristus. Mail: [email protected]

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Francisco Ercilio Moura

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Los DESC han sido reafirmados y desarrollados a través de un gran nú-mero de instrumentos internacionales adicionales, tales como la Convención de los derechos del Niño y de la Niña, la Convención contra todas las formas de Discriminación contra la Mujer, los Convenios de la Organización Inter-nacional del Trabajo relativos a los derechos fundamentales de la persona en el trabajo, el Convenio Nº 169 de la OIT sobre Pueblos Indígenas y Tribales, la Declaración de la Asamblea General de las Naciones Unidas sobre el Dere-cho al Desarrollo, y las declaraciones de Teherán, Viena, Copenhague, Río y Beijing, entre otras2.

Juntos con los derechos civiles y políticos, los derechos económicos, sociales y culturales (DESC) conforman los soportes básicos del sistema de de-rechos fundamentales. Por ello, la Primera Conferencia Mundial de Derechos Humanos (Teherán, 1968), proclamó la indivisibilidad e interdependencia de los derechos humanos, precisando “que la plena realización de los derechos civiles y políticos es imposible sin el goce de los derechos económicos, sociales y culturales.”3

Con el mismo temperamento, el artículo 5° de la Declaración y el Progra-ma de Acción de la Cumbre Mundial de Derechos Humanos de Viena (1993), reitero que

Todos los derechos humanos son universales, indivisibles e interdependientes y están relacionados entre sí. La comunidad internacional debe tratar los derechos de forma global y de manera justa y equitativa, en pie de igualdad y dándoles a todos un mismo peso. Debe tenerse en cuenta la importancia de las particularidades nacionales y regionales, así como los diversos patrimonios históricos, además los Estados tienen el deber, sean cuales fueren sus sistemas políticos, económicos y culturales, de promover y proteger todos los derechos humanos y las libertades fundamentales4. (Énfasis agregado)

El Preámbulo del Protocolo Adicional a la Convención Americana sobre Derechos Humanos en Materia de Derechos Económicos, Sociales y Culturales (“Protocolo De San Salvador”) lo ha expresado en los siguientes términos:

Considerando la estrecha relación que existe entre la vigencia de los derechos económicos, sociales y culturales y la de los derechos civiles y políticos, por cuanto las diferentes categorías de derechos constituyen un todo indisoluble que encuentra su base en el reconocimiento de la dignidad de la persona humana, por lo cual exigen una tutela y promoción perma-nente con el objeto de lograr su vigencia plena, sin que jamás pueda justificarse la violación de unos en aras de la realización de otros. (Énfasis agregado)

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Los derechos económicos, sociales y culturales como fundamentos de la dignidad e igualdad humanas

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1 LOS PRINCIPIOS FUNDANTES DE LOS DERECHOS ECONÓMICOS, SOCIALES Y CULTURALES

Los derechos económicos, sociales y culturales se rigen por los principios esenciales de universalidad, equidad, calidad y justiciabilidad; y su disfrute debe ser ejercido y garantizado sin discriminación de ninguna clase, de conformidad con la obligación estatal consignada en el artículo 2.2. del Pacto Internacional de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales, conforme al cual

los estados Partes en el presente pacto se comprometen a garantizar el ejercicio de los derechos que en él se enuncian, sin discrimina-ción alguna por motivos de raza, color, sexo, idioma, religión, origen nacional o social, posición económica, nacimiento o cualquier otra condición social. (Énfasis agregado)

El principio de universalidad de los DESC deriva de su conceptualización como derechos humanos, o derechos fundamentales, que deben ser asegurados a todas las personas. El de equidad, está relacionado con las posibilidades reales de realización plena de los DESC, y guarda relación con el principio según el cual el financiamiento de los servicios o prestaciones inherentes al disfrute de estos derechos debe provenir, esencialmente, de tributos y no del pago de sus titulares, salvo el supuesto de que éstos tengan capacidad económica suficiente para absorber su costo, con el objeto razonable de eliminar así toda arbitrariedad o discriminación en el acceso a las prestaciones correspondientes en razón de la condición o posición socioeconómica de las personas5.

El principio de calidad, inherente también a los DESC, no solo constituye una condición necesaria para la eficacia del sistema, sino que surge de la necesidad de igualación de oportunidades de vida que debe asegurar el Estado.

La justiciabilidad de los DESC proviene, finalmente, no solo de su condición de atributo inherente a todos los derechos fundamentales, sin excepción, sino del hecho de que cuando existe una adecuada delimitación de un derecho de carácter prestacional, han sido definidos los sujetos activos y pasivos del mismo, y han sido satisfechos, asimismo, los supuestos de hecho delimitados por la norma respectiva de modo tal que estos pueden ser exigidos en forma imperativa e inmediata.

En igual forma que los derechos civiles y políticos, también los DESC explici-tan las exigencias de los valores de la dignidad, la igualdad y la solidaridad humanas6, con el propósito de superar las desigualdades sociales y generar las condiciones materiales y subjetivas que posibiliten a todas las personas, sin discriminación, a ejercer su derecho a participar en los beneficios de la vida social, a través de dere-chos y prestaciones positivas brindadas, directa o indirectamente, por los poderes públicos, en la medida en que todos éstos resumen el fin de la actividad estatal.

Estas prestaciones, han sido aseguradas por normas constitucionales y el derecho internacional de los derechos humanos, con el deliberado objeto de posibilitar una mejor realización de la dignidad y la igualdad substancial de las personas7. La satisfacción de las mismas constituye, al mismo tiempo, el presu-

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puesto y complemento esencial del goce de los derechos civiles y políticos, puesto que la realización de los DESC habilita las condiciones materiales que permiten un mejor y más efectivo ejercicio de las libertades fundamentales reconocidas por estas mismas normas.

En su Observación General N° 3, acerca de la Índole de las obligaciones de los Estados Partes (párrafo 1 del artículo 2 del Pacto)8, el Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de las Naciones Unidas ha expresado que

(...) corresponde a cada Estado Parte una obligación mínima de asegurar la satisfacción de por lo menos niveles esenciales de cada uno de los derechos. Así, por ejemplo, un Estado Parte en el que un número importante de individuos está privado de alimentos esenciales, de atención primaria de salud esencial, de abrigo y vivienda básicos o de las formas más básicas de enseñanza, prima facie no está cumpliendo sus obligaciones en virtud del Pacto. Si el Pacto se ha de interpretar de tal manera que no establezca una obligación mínima, carecería en gran medida de su razón de ser. (Énfasis agregado)

Al respecto, la Corte Constitucional de Colombia (CCC) ha empleado una definición de núcleo esencial de los DESC que resulta relevante para el tra-tamiento de esta cuestión. Así, la CCC refiere que, en su condición de derechos prestacionales, el núcleo esencial de los mismos esta compuesto por un “mínimo vital” cuya existencia debe ser siempre asegurada, en cuanto el mismo constituye un componente esencial de la dignidad humana. En su sentencia SU – 111/97 9, la Corte Constitucional colombiana dijo:

(...) los derechos económicos, sociales y culturales tienen conexi-dad con pretensiones amparables a través de la acción de tutela. Ello se presenta cuando se comprueba un atentado grave contra la dignidad humana de personas pertenecientes a sectores vulne-rables de la población y el Estado, pudiéndolo hacer, ha dejado de concurrir a prestar el apoyo material mínimo sin el cual la persona indefensa sucumbe ante su propia impotencia. En estas situaciones, comprendidas bajo el concepto de mínimo vital, la abstención o negligencia del Estado se ha identificado como la causante de una lesión directa a los derechos fundamentales que amerita la puesta en acción de las garantías constitucionales (Cursivas y énfasis agregados)

La Declaración de Quito acerca de la Exigibilidad de los DESC10, por su parte, sostiene que

El goce de los derechos económicos, sociales y culturales es de-terminante para la posibilidad de un goce efectivo, igualitario y no discriminatorio de los derechos civiles y políticos. Asegurar el goce de derechos civiles y políticos sin considerar el pleno ejer-cicio de los derechos económicos, sociales y culturales conlleva discriminaciones intolerables que favorecen a los sectores bene-

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ficiados por la desigual distribución de la riqueza y reproducen las inequidades sociales.

Como indica la misma Declaración de Quito, “Los derechos económicos, sociales y culturales fijan los límites mínimos que debe cubrir el Estado en ma-teria económica y social para garantizar el funcionamiento de sociedades justas y para legitimar su propia existencia”. Y aunque para el logro de este orden económico-social mínimo los instrumentos internacionales que reconocen los derechos económicos, sociales y culturales como derechos fundamentales de todas las personas no impongan una fórmula uniforme, se requiere al menos “que el Estado arbitre los medios a su alcance para cubrir las necesidades mínimas de la población en las áreas involucradas y defina políticas de mejo-ramiento progresivo del nivel de vida de los habitantes mediante la ampliación del disfrute de estos derechos”.

2 LOS DEBERES CONTENIDOS EN EL PACTO DE LOS DERECHOS ECONÓMICOS, SOCIALES Y CULTURALES

El deber de progresividad en la esfera de protección de los derechos que derivan de las normas económicas y sociales y sobre educación, ciencia y cultura, contenidas en la Carta de la Organización de los Estados Americanos, reformada por el Protocolo de Buenos Aires.

Con arreglo a las consideraciones hasta aquí planteadas, y apreciada des-de una perspectiva general, podemos afirmar que la noción de progresividad es inherente a la conceptualización contemporánea de los derechos humanos. Esta dimensión ha sido definida por el ex Presidente de la Corte Interamericana de Derechos Humanos Pedro Nikken como:

(...) una tendencia manifiesta que se observa en la protección internacional de los derechos humanos hacia la expansión de su ámbito de modo continuado e irreversible, tanto en lo que se refiere al número y contenido de los derechos protegidos, como por lo que toca a la eficacia y el vigor de los procedimientos en virtud de los cuales los órganos de la comunidad internacional pueden afirmar y salvaguardar su vigencia.

(...)

La progresividad, por el contrario, a lo que apunta es al desarrollo y la vigorización de los recursos de que dispone la persona para hacer efectivo el respeto a ese deber jurídico a cargo de los Esta-dos. Precisamente, por tratarse de un deber cuyo cumplimiento es inmediatamente exigible, se han conjugado diversos factores para arbitrar medios cada vez más eficaces para reclamar su cumpli-miento. Esa ha sido una tendencia característica de la protección internacional de los derechos humanos, en parte porque ha sido concebida de modo que su alcance y su fuerza puedan ser aumentadas, pero no menoscabadas, y en parte porque así han

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venido funcionando, en su comportamiento real, las instituciones internacionales de protección.

Las bases de la progresividad están en la concepción misma de la protección internacional. Los distintos instrumentos sobre la materia contienen declaraciones de voluntad explícitas sobre la necesidad de nuevos desarrollos que amplíen y consoliden lo que en ellos se recoge. Asimismo, como antes he señalado, los tratados sobre derechos humanos han sido ideados como una suerte de garantía mínima, de un «piso» por debajo del cual no queda debidamente preservada la dignidad de la persona, pero de ningún modo excluyen que por otros medios, sean de Derecho interno o internacional, se ofrezca un régimen de mayor alcance, debiendo aplicarse en ese caso la disposición más favorable a la persona.11 (Énfasis agregado)

Refiriéndose a la naturaleza y el alcance de las obligaciones de los Estados Partes del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, los Principios de Limburgo12 establecen que

La obligación de alcanzar el logro progresivo de la completa aplicación de los derechos exige que los Estados partes actúan tan rápidamente como les sea posible en esa dirección. Bajo ningún motivo esto se deberá interpretar como un derecho de los Estados de diferir indefinidamente los esfuerzos desplegados para la completa reali-zación de los derechos.13

Los mismos principios señalan que “la obligación de alcanzar una realiza-ción progresiva es independiente del aumento de los recursos; dicha obligación exige que se haga un uso eficaz de los recursos disponibles”14.

Para salvaguardar esa naturaleza progresiva, inherente al contenido y pro-tección de los derechos fundamentales de la persona en el ámbito económico, social y cultural, el artículo 26 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, ha establecido que:

Los Estados Partes se comprometen a adoptar providencias, tanto a nivel interno como mediante la cooperación jurídica internacional, especialmente económica y técnica, para lograr progresivamente la plena efectividad de los derechos que se derivan de las normas econó-micas y sociales y sobre educación, ciencia y cultura, contenidas en la Carta de la Organización de los Estados Americanos, reformada por el Protocolo de Buenos Aires, en la medida de los recursos disponible, por vía legislativa u otros medios. (énfasis agregado)

El artículo 26 de la Convención consigna un deber convencional que obliga a los Estados a respetar, proteger y asegurar la progresiva realización de un conjunto determinado de derechos económicos y sociales consignados, a su vez, en la Carta de la Organización de Estados Americanos (OEA), reformada por el Protocolo de Buenos Aires. Derechos entre los que, es oportuno recordarlo, se encuentra comprendido el derecho humano a la seguridad social.

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Las reformas introducidas a la Carta fundacional de la OEA15 estuvieron inspiradas por el afán de

consolidar en este Continente, dentro del marco de las instituciones democráticas, un régimen de libertad individual y de justicia social, fundado en el respeto de los derechos esenciales del hombre16.

Como fuera expresado en el Preámbulo de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, estos principios

han sido consagrados en la Carta de la Organización de los Esta-dos Americanos, en la Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre y en la Declaración Universal de los Derechos Humanos que han sido reafirmados y desarrollados en otros instru-mentos internacionales, tanto de ámbito universal como regional.

Constituyen, por ende, fuente de interpretación del contenido de todos los derechos reconocidos por estas normas.

Con arreglo a este temperamento, el Protocolo de Buenos Aires incorporó a la Carta de la OEA, entre otras, las siguientes disposiciones:

Artículo 43

Los Estados Miembros, convencidos de que el hombre sólo puede alcanzar la plena realización de sus aspiraciones dentro de un or-den social justo, acompañado de desarrollo económico y verdadera paz, convienen en dedicar sus máximos esfuerzos a la aplicación de los siguientes principios y mecanismos:

Todos los seres humanos, sin distinción de raza, sexo, nacionalidad, credo o condición social, tienen derecho al bienestar material y a su desarrollo espiritual, en condiciones de libertad, dignidad, igualdad de oportunidades y seguridad económica;

El trabajo es un derecho y un deber social, otorga dignidad a quien lo realice y debe prestarse en condiciones que, incluyendo un régimen de salarios justos, aseguren la vida, la salud y un nivel económico decoroso para el trabajador y su familia, tanto en sus años de trabajo como en su vejez, o cuando cualquier circunstan-cia lo prive de la posibilidad de trabajar;

(…)

Desarrollo de una política eficiente de seguridad social

(…)

Artículo 44

Los Estados Miembros reconocen que, para facilitar el proceso de la integración regional latinoamericana, es necesario armonizar la legislación social de los países en desarrollo, especialmente en el cam-po laboral y de la seguridad social, a fin de que los derechos de los trabajadores sean igualmente protegidos, y convienen en

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realizar los máximos esfuerzos para alcanzar esta finalidad. (Énfasis agregado)

El artículo 43 del Protocolo de Buenos Aires, leído a la luz de las pres-cripciones del artículo 26 de la Convención, hace referencia a la obligación de los Estados Miembros de la OEA de adoptar un conjunto de providencias, así como “principios y mecanismos”, tanto a nivel interno como mediante la cooperación internacional, especialmente económica y técnica, a fin de lograr progresivamente la plena efectividad de los derechos que derivan de las normas económicas y sociales contenidas en la Carta de la OEA.

Estos preceptos normativos incluyen el derecho de todas las personas al bienestar material y a su desarrollo espiritual, en condiciones de libertad, dig-nidad, igualdad de oportunidades y de seguridad económica, (...) tanto para el trabajador como su familia, en sus años de trabajo como en su vejez, o cuando cualquier circunstancia las prive de la posibilidad de trabajar.

El criterio jurídico según el cual la progresividad constituye un aspecto esencial de la manera como los Estados deben asumir el cumplimiento de sus obligaciones relacionadas con los DESC, establecido por las normas que acabamos de citar, fue complementado en 1988 por el Protocolo Adicional a la Convención Americana sobre Derechos Humanos en Materia de Derechos Económicos Sociales y Culturales (Protocolo de San Salvador), cuyo artículo 1 expresó un compromiso análogo a favor de la plena realización de los DESC en los siguientes términos:

Los Estados partes en el presente Protocolo Adicional a la Con-vención Americana sobre Derechos Humanos se comprometen a adoptar las medidas necesarias tanto de orden interno como mediante cooperación entre los estados, especialmente económica y técnica, hasta el máximo de sus recursos disponibles y tomando en cuenta su grado de desarrollo, a fin de lograr progresivamente, y de conformidad con la legislación interna, la plena efectividad de los derechos que se reconocen en el protocolo. (Énfasis agregado)

La referencia a las normas internacionales sobre derechos humanos antes citadas es importante para delimitar el marco de las obligaciones internacionales que fueron asumidas por los Estados en la materia, de modo tal pueda apreciarse cuando una infracción, por acción u omisión de las mismas, debe interpretarse como generadora de responsabilidad internacional.

La proposición contenida en el artículo 26 de la Convención Americana anticipó lo que más tarde prescribiría, de forma similar, el artículo 2 del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales (PIDESC). Esta disposición impuso a los Estados Partes del PIDESC la obligación de adoptar medidas para el logro progresivo, y por todos los medios apropiados, de la plena efectividad de los derechos en el reconocidos.

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PIDESC, Artículo 2º

Párrafo 1. Cada uno de los Estados Partes en el presente Pacto se compromete a adoptar medidas, tanto por separado como mediante la asistencia y la cooperación internacionales, especial-mente económicas y técnicas, hasta el máximo de los recursos de que disponga, para lograr progresivamente, por todos los medios apropiados, inclusive en particular la adopción de medidas le-gislativas, la plena efectividad de los derechos aquí reconocidos. (énfasis agregado)

Como ha señalado el Comité de Derechos Económicos, Sociales y Cultu-rales (CDESC) en su Observación General N° 3, dichas obligaciones incluyen tanto obligaciones de comportamiento como obligaciones de resultado.

Como puede apreciarse del enunciado del artículo 2.1 del PIDESC, este exige de los Estados Parte, en primer lugar, y como principal obligación de comportamiento, la inmediata adopción de medidas destinadas a lograr el goce pleno de los DESC consagrados en el Pacto. Tales medidas podrán ser de carácter político, económico y financiero, administrativo, educacional, social, cultural, judicial o de cualquier otro tipo, incluidas, en particular, las de carácter LEGISLATIVO. Estas últimas encaminadas, esencialmente, a la adaptación de la legislación nacional a las obligaciones derivadas del PIDESC, sobre todo cuando las leyes existentes resulten manifiestamente incompatibles con las obligaciones contraídas en virtud del Pacto.

La obligación consignada en el artículo 2 del PIDESC debe concordarse, a su vez, con el contenido del artículo 2 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, según el cual:

Si en el ejercicio de los derechos y libertades mencionados en el artículo 1º no estuviere ya garantizado por disposiciones legislativas o de otro carácter, los Estados partes se comprometen a adoptar, con arreglo a sus procedimientos constitucionales y a las disposiciones de esta Convención, las medidas legislativas o de otro carácter que fueren necesarias para hacer efectivos tales derechos y libertades. (Énfasis agregado)

Este artículo recoge una regla básica del derecho internacional, según la cual todo Estado parte en un tratado tiene el deber jurídico de adoptar las medidas necesarias para cumplir con sus obligaciones conforme al tratado, sean dichas medidas legislativas o de otro orden17.

Esta obligación de respeto y garantía de los derechos y libertades consa-grados por la Convención, por parte de todos los órganos del Estado, ha sido subrayada por la Corte Interamericana de Derechos Humanos en los siguientes términos:

la segunda obligación de los Estados Partes es la de “garantizar” el libre y pleno ejercicio de los derechos reconocidos en la Convención

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a toda persona sujeta a su jurisdicción. Esta obligación implica el deber de los Estados Partes de organizar todo el aparato guberna-mental y, en general, todas las estructuras a través de los cuales se manifiesta el ejercicio del poder público, de manera tal que sean capaces de asegurar jurídicamente el libre y pleno ejercicio de los derechos humanos. Como consecuencia de esta obligación, los Estados deben prevenir, investigar y sancionar toda violación de los derechos reconocidos por la convención y procurar, además, el restablecimiento, si es posible, del derecho conculcado y, en su caso, la reparación de los daños producidos por la violación de los derechos humanos 18

De conformidad con lo prescrito en el artículo 2 del PIDESC, los Estados están obligados a adoptar las medidas necesarias para lograr el pleno goce de los derechos consagrados en el Pacto, hasta el máximo de los recursos que dis-pongan; vale decir, utilizando tanto los recursos existentes dentro su territorio, sin importar el nivel de desarrollo económico, como aquellos otros recursos disponibles que emanen de la cooperación y la asistencia internacional19.

Por ello, cuando un Estado Parte pretenda ampararse en una supuesta insuficiencia de recursos para justificar el incumplimiento de sus obligaciones mínimas en materia de salvaguarda de los DESC de la población sometida a su jurisdicción, (lo que implica satisfacer requisitos mínimos de subsistencia para todos, así como proporcionar los servicios esenciales previstos por el Pacto), esta obligado a demostrar que ha realizado todo esfuerzo para satisfacer, con carácter prioritario, esas obligaciones mínimas, así como haber recurrido a la ayuda internacional 20.

La carencia de recursos no puede, en ningún caso, justificar el hecho de que el Estado incumpla su obligación de vigilar la falta de aplicación de los derechos consagrados en el Pacto.

Como consecuencia de ello, de acuerdo con lo señalado por el artículo 2 del PIDESC, puede deducirse que la principal obligación de los Estados Parte, en cuanto refiere a los resultados esperados, es adoptar las medidas que sean necesarias para lograr progresivamente la plena efectividad de los derechos reconocidos en el PIDESC.

La orientación de tales medidas debe procurar un único fin: el logro de avances efectivos – es decir tangibles y mensurables - en el grado de pro-tección y disfrute de los derechos amparados por el Pacto, sin retrocesos. Y aunque la cláusula de efectividad progresividad de los DESC reconozca que su plena realización podría no lograrse en un breve periodo de tiempo, ello no significa, en modo alguno, que los Estados puedan aplazar de manera indefinida el cumplimiento de dicha obligación. Por el contrario, las obliga-ciones internacionales asumidas en virtud de la ratificación de los tratados antes mencionados exigen que el Estado actúe tan rápido como sea posible en la realización de estos derechos.

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Al exigirse que los Estados logren la plena realización de los DESC “por todos los medios adecuados”, como señala el Pacto, o a través de “las medidas (…) que fueren necesarias”, como establece la Convención Americana sobre Derechos Humanos, ambos instrumentos adoptan un enfoque amplio y permisible que coexiste, al mismo tiempo, con la obligación ineludible e imperativa de utilizar todos los medios y recursos a disposición del Estado Parte para procurar la plena efectividad de los derechos reconocidos por dichas normas.

Al precisar el contenido de la obligación de progresividad, el CDESC ha expresado que

A menudo se interpreta erróneamente que el elemento de “obligación progresiva” incluido en el Pacto significa que sólo una vez que un Estado haya alcanzado un determinado nivel de desarrollo económico deben hacerse efectivos los derechos proclamados en el Pacto. Esa no es la intención de la cláusula en cuestión. Al contrario, el deber en cuestión obliga a todos los Estados Partes, independientemente de cuál sea su nivel de riqueza nacional, a avanzar de inmediato y lo más rápida-mente posible hacia la efectividad de los derechos económicos, sociales y culturales. La interpretación de esta cláusula nunca debe conducir a pensar que permite a los Estados aplazar inde-finidamente sus esfuerzos para asegurar el goce de los derechos proclamados en el Pacto.

Mientras que determinados derechos, por su propia naturaleza, pueden prestarse más a hacerse efectivos en función de la “obligación progresiva”, está claro que muchas de las obligaciones contraídas en virtud del Pacto han de cumplirse inmediatamente. Esto se aplicaría en particular a las disposiciones no discriminatorias y a la obligación de los Estados Partes de abstenerse de violar activamente derechos económicos, sociales y culturales o de anular las medidas protectoras legales o de otro tipo relacionadas con esos derechos. 21 (Énfasis agregado)

Como consecuencia de ello, los Estados se encuentran impedidos de adoptar medidas que, por acción u omisión, conduzcan:

(a) a un trato discriminatorio,

(b) a la activa violación de los derechos consagrados por las normas jurídicas que les sirven de referencia, o

(c) a la degradación, cuando no anulación, de las medidas de protección legal o de otro tipo instituidas para la salvaguarda de tales derechos. (Énfasis agregado)

De manera específica, y respecto a las violaciones a los DESC que los Estados pueden cometer mediante actos de comisión, las Directrices de Maas-tricht sobre las Violaciones a los Derechos Económicos, Sociales y Culturales refieren que:

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Las acciones directas de los Estados o de otras entidades no regula-das adecuadamente por el Estado pueden resultar en violaciones a los derechos económicos, sociales y culturales. A continuación se mencionan algunos ejemplos de dichas violaciones:

(e) La adopción de cualquier medida que sea intencionalmente regresiva y que reduzca el nivel de protección de cualquiera de estos derechos;

(f) La obstaculización o interrupción intencional de la realización progresiva de un derecho previsto en el Pacto, salvo cuando el Es-tado actúa dentro de los parámetros de una limitación estipulada en el Pacto o debido a la falta de recursos disponibles o fuerza mayor; (...) (Énfasis agregado)22

No puede inferirse de lo dicho, sin embargo, que resulten inadmisibles, con carácter absoluto, la totalidad de tales actos. De hecho, al referirse a los aspectos relacionados con las medidas regresivas adoptadas por los Estados, con carácter deliberadamente retroactivo, el propio Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales ha señalado en su Observación General Nº 3, que éstas

(…) requerirán la consideración más cuidadosa y deberán justifi-carse plenamente por referencia a la totalidad de los derechos previstos en el Pacto, y en el contexto del aprovechamiento pleno del máximo de los recursos que se disponga. (énfasis agregado)

El CDESC ha señalado, asimismo, que

Para que cada Estado Parte pueda atribuir su falta de cumplimiento de las obligaciones mínimas a una falta de recursos disponibles, debe demostrar que ha realizado todo esfuerzo para utilizar todos los recursos que están a su disposición en un esfuerzo por satisfacer, con carácter prioritario, esas obligaciones mínimas.

Pero no solo las circunstancias conforme a las cuales los Estados pueden justificar su falta de cumplimiento de las obligaciones mínimas establecidas por el Pacto requieren una cuidadosa y fundada justificación. Lo mismo ocurre con las limitaciones y restricciones pasibles de afectar el grado de disfrute o protec-ción de un determinado derecho. Veremos a continuación cual es el alcance de estas limitaciones.

3 LA POSIBILIDAD DE IMPONER LIMITACIONES Y RESTRICCIONES A LOS DERECHOS FUNDAMENTALES: ¿CUÁL ES EL LÍMITE?

En referencia a las limitaciones y restricciones que pueden afectar el disfrute de los derechos humanos, el profesor Pedro Nikken ha señalado que

El derecho de los derechos humanos, tanto en el plano doméstico como en el internacional, autoriza limitaciones a los derechos protegidos en dos tipos de circunstancias distintas. En condiciones normales, cada derecho puede ser objeto de ciertas restricciones

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fundadas sobre distintos conceptos que pueden resumirse en la noción general de orden público. Por otra parte, en casos de emergencia, los gobiernos están autorizados para suspender las garantías23.

El profesor Nikken ha aclarado, sin embargo, que

Las limitaciones a los derechos humanos no pueden afectar el contenido esencial del derecho tutelado.24 (Énfasis agregado)

Del temperamento esbozado, el principio general que prohíbe toda res-tricción que implique vaciar de contenido o de esencia, suprimir o anular los derechos protegidos, así como la existencia de un interés o fin legítimo que justi-fique las medidas de restricción adoptadas, constituyen un conjunto de garantías que están fuera de toda discrecionalidad, dado que constituyen criterios que no pueden obviarse en la implementación de restricciones a un derecho humano o libertad fundamental.

Con arreglo a ello, los legisladores pueden imponer limitaciones y res-tricciones, legítimas y circunstanciales, al ejercicio de los derechos humanos, pero no pueden, en ningún caso, afectar a los derechos en su esencia, en tanto están obligados a respetar la naturaleza jurídica de derechos que preexisten al Estado y los intereses jurídicamente protegidos por las normas constitucionales e internacionales que reconocen y garantizan tales derechos.

El contenido esencial de un derecho esta constituido por la sustancia o propiedades básicas que se le atribuyen, representando sólo una parte del con-tenido de éste, que no es aplicable a las propiedades ocasionales o incidentales que lo conforman.

4 CONCLUSIÓN

A lo largo de nuestra reflexión acerca de los derechos que dimanan del Pacto Internacional de los derechos económicos, sociales y culturales, al dete-nernos en el análisis del tema de las obligaciones, las que tienen unas profundas consecuencias en los quehaceres del actor estatal, cobra especial relevancia las de asegurar los principios de la no discriminación y de la igualdad de todas las personas que habitan en el territorio del Estado parte en el Pacto en el disfrute de sus derechos.

En este sentido, la obligación de no discriminar en el goce de derechos como el derecho al trabajo, la salud, la educación, la vivienda, etc., constituye un compromiso vinculante que surge de los artículos 2.2 y 3 del PIDESC. Las leyes y prácticas nacionales que directa o indirectamente discriminan las minorías, las mujeres, los niños o demás grupos vulnerables de la sociedad se cuestionan diariamente en muchos de los tribunales nacionales. Es frecuente que esos casos tengan importantes consecuencias para la asignación de los recursos de los gobiernos, en cada caso concreto. Los tribunales y los órganos de derechos

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humanos deben asegurar que se tomen medidas positivas para que los grupos marginalizados y vulnerables tengan igual acceso que el resto de la población a los bienes y servicios básicos.

De otra parte, ocurre con frecuencia que a los individuos y demás colec-tivos sociales se les nieguen los derechos económicos, sociales y culturales. En esos casos, la obligación de respetar significa que los gobiernos deben asegurar que tales interferencias solamente ocurran cuando estén justificadas y de manera muy concreta, previendo compensaciones u otras medidas alternativas, cuando corresponda. Los tribunales u otros órganos de la jurisdicción nacional, pueden vigilar el cumplimiento de esta obligación decidiendo sobre los casos denunciados por las víctimas, sean esas presentadas por personas, colectivos sociales o sus organizaciones representativas.

En el campo de las obligaciones de protección tendremos que los actores privados, ya sean personas o empresas, muchas veces dificultan o niegan el acceso a los derechos económicos, sociales y culturales a las personas o sus organizaciones representativas. Los órganos de derechos humanos regionales han evaluado en muchas oportunidades si los Estados cumplen con su obligación de proteger a las personas de tales violaciones.

Por último, los tribunales nacionales pueden tener un papel activo vigilan-do que los Estados avancen en la efectividad de los derechos al recibir denuncias sobre omisiones en relación al deber de planificar en forma razonable, asignar los recursos necesarios disponibles, aplicar y vigilar las políticas públicas y programas apropiados para viabilizar la concreción de tales derechos. También pueden exigir que los Estados definan y logren hitos progresivos para el cumplimiento de los derechos económicos, sociales y culturales.

Cabe señalar que la objeción a la justiciabilidad de los DESC parte de la consideración simplista de que estos derechos, como son derechos que estable-cen exclusivamente obligaciones positivas, idea que, como vimos, dista de ser correcta, pues tanto los derechos civiles y políticos, como los DESC constituyen un complejo de obligaciones positivas y negativas.

En cuanto a las obligaciones negativas, se trata de las obligaciones de abstenerse de realizar ciertas actividades por parte del Estado. Así, no impedir la expresión o difusión de ideas, no violar la correspondencia, no detener arbi-trariamente, no impedir a una persona a afiliarse a un sindicato, no intervenir en caso de huelga, no empeorar el estado de salud de la población, no impedir a una persona el acceso a la educación.

En cuanto a las obligaciones positivas, conviene establecer algunas dis-tinciones, que nos darán la pauta del tipo de medidas que pueden exigirse del Estado. Con cierto automatismo, suelen vincularse directamente las obligaciones positivas del Estado con la obligación de disponer de recursos o fondos. No cabe duda de que se trata de una de las formas más características de cumplir con las obligaciones de hacer o de dar, en especial en campos tales como la salud,

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la educación o el acceso a la vivienda. Sin embargo, las obligaciones positivas no se agotan en obligaciones que consistan únicamente en disponer de reservas presupuestarias a efectos de ofrecer una prestación. Las obligaciones de proveer servicios pueden caracterizarse por el establecimiento de una relación directa entre el Estado y el beneficiario de la prestación. El Estado puede, sin embargo, asegurar el goce de un derecho a través de otros medios, en las que pueden tomar parte activa otros sujetos obligados.

Así, por un lado, ciertos derechos se caracterizan por la obligación del Esta-do de establecer algún tipo de regulación, sin la cual el ejercicio de un derecho no tiene sentido. En estos casos, la obligación del Estado no siempre está vinculada con la transferencia de fondos hacia el beneficiario de la prestación sino más bien con el establecimiento de normas o regulaciones que concedan relevancia a una situación determinada, o bien con la organización de una estructura que se encargue de poner en práctica una actividad determinada. En este sentido, por ejemplo, si se le quiere dar algún contenido operativo, el derecho a asociar-se libremente supone la obligación estatal de dar relevancia o reconocimiento jurídico a la asociación para el ejercicio de dicho derecho. Del mismo modo, el derecho a formar un sindicato o a afiliarse a uno, implica el derecho a reconocer consecuencias jurídicas relevantes a su actuación.

El derecho político al sufragio presupone la posibilidad de elegir entre distintos candidatos, lo que a su vez supone una regulación que asegure la posi-bilidad de que varios candidatos representen a partidos políticos y se presenten a elecciones. El derecho a la información implica al menos el establecimiento de una regulación estatal, tendiente a asegurar el acceso a información de origen diverso y la pluralidad de voces y opiniones. El derecho a casarse implica la existencia de una regulación jurídica que otorgue alguna virtualidad al hecho de contraer matrimonio. El derecho a la protección de la familia, supone la existencia de normas jurídicas que asignen a la existencia de un grupo familiar determinado, algún tipo de consideración diferencial con respecto a su inexistencia.

El goce de estos derechos supone un complejo de normas que establezcan consecuencias jurídicas relevantes que se desprendan de esa premisa original. Así, puede tratarse de nuevas normas permisivas (por ejemplo, la posibilidad de que la asociación celebre contratos, o la posibilidad de que el matrimonio inscriba su vivienda como bien de familia, protegiéndola de posibles ejecuciones, etc.), de prohibiciones para el Estado (por ejemplo, la imposibilidad de imponer restricciones arbitrarias o discriminatorias en el ejercicio de los derechos men-cionados, o bien la prohibición de discriminación entre hijos nacidos dentro y fuera del matrimonio), o incluso de mandatos para el Estado (la obligación de reconocimiento de los candidatos propuestos por los partidos políticos, o de los delegados y representantes sindicales).

En otros casos, la obligación exige que la regulación establecida por el Estado limite o restrinja las facultades de las personas privadas, o les imponga obligaciones de algún tipo. Gran parte de las regulaciones vinculadas con los

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derechos laborales y sindicales comparten esta característica, del mismo modo que la relativamente reciente normativa de defensa del consumidor y de pro-tección del medio ambiente. Así, el establecimiento de un salario mínimo, el principio que dispone la igualdad de remuneración ante igualdad de trabajo, la obligatoriedad de los descansos, de la jornada de trabajo limitada y de va-caciones pagas, la protección contra el despido arbitrario, las garantías de los delegados gremiales para el cumplimiento de su gestión, etc., tendrían poco sentido si fueran exigibles al Estado sólo cuando este actúa como empleador. Frente a economías de mercado, el contenido de estas obligaciones estatales es el de establecer una regulación que se extienda a los empleadores privados. Lo mismo cabe decir con respecto a las normas que regulan las relaciones de consumo y con las referidas al establecimiento de obligaciones en el campo de los derechos ambientales.

Finalmente, el Estado puede cumplir con su obligación proveyendo de servicios a la población, sea en forma exclusiva, o sea a través de modalidades de cobertura mixta que incluyan, además de un aporte estatal, regulaciones en las que ciertas personas privadas se vean afectadas por restricciones, limi-taciones u obligaciones. Las formas que pueden adoptar las medidas estatales de cumplimiento de las obligaciones positivas son múltiples: la organización de un servicio público (por ejemplo, el funcionamiento de los tribunales, que asegura el derecho a la jurisdicción; la previsión de cargos de defensor oficial, que asegura el derecho de defensa en juicio a quienes no pueden pagar un abogado particular; o la organización del sistema educativo público); la oferta de programas de desarrollo y capacitación; el establecimiento de formas escalo-nadas público/privadas de cobertura (por ejemplo, mediante la organización de formas privadas de aporte para el mantenimiento de obras sociales que cubran el derecho a la salud de las personas empleadas y sus familias, y el estableci-miento de un sistema público de salud que cubra el derecho de las personas no amparadas por la estructura de empleo); la gestión pública de créditos diferenciales (por ejemplo, los créditos hipotecarios destinados a vivienda); la entrega de subsidios; la realización de obras públicas; el otorgamiento de beneficios o exenciones impositivas.

Como puede verse, el complejo de obligaciones que llega a abarcar un derecho económico, social y cultural es sumamente variado. Los DESC se carac-terizan justamente por involucrar un espectro amplio de obligaciones estatales. Consecuentemente, es falso que las posibilidades de justiciabilidad de estos derechos sean escasas: cada tipo de obligación ofrece un abanico de acciones posibles, que van desde la denuncia de incumplimiento de obligaciones negati-vas, pasando por diversas formas de control del cumplimiento de obligaciones negativas, hasta llegar a la exigencia de cumplimiento de obligaciones positivas incumplidas.

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1 Declaración de Quito acerca de la exigibilidad de los DESC. Ver en http://www.pidhdd.org/quito.htm2 Ídem.3 Ver Cancado Trindade, Antonio. Protección Internacional de los derechos económicos, sociales y cultu-

rales. En Estudios Básicos de Derechos Humanos; I, San José, Costa Rica, Instituto Interamericano de Derechos Humanos, páginas 39 y siguientes.

4 SILVA, José Afonso da. 2002. Impacto de la Declaración Universal de Derechos Humanos en la Constitu-ción Brasilera. En Palomino Manchego, José y Remotti Carbonell, José Carlos (Coordinadores). Derechos Humanos y Constitución en Iberoamérica. Lima, Perú, Ed. Universidad Nacional Mayor de San Marcos – Instituto Iberoamericano de Derecho Constitucional (sección peruana). páginas 158-159.

5 CARBONELL, Miguel. La Constitución en serio. Multiculturalismo, igualdad y derechos sociales. México, Ed. Porrúa – Universidad Nacional Autónoma de México, 2011, p. 181.

6 “Hoy en día es indudable que los derechos humanos en su conjunto son indivisibles, interdependientes, interrelacionados y de igual importancia para la dignidad humana. En vista de lo anterior, los Estados tienen la misma responsabilidad en cuanto a las violaciones a los derechos económicos, sociales y culturales y las violaciones a los derechos civiles y políticos.” Directrices de Maastricht sobre Violaciones a los Derechos Económicos, Sociales y Culturales, (1997). Párr. 4.

7 Así, por ejemplo, la Corte Constitucional de Colombia en su Sentencia T-042 del 7 de febrero de 1996, señalo que “Cuando los derechos prestacionales, genéricamente consagrados, son asumidos por el Estado en forma directa, y se ha definido legal y reglamentariamente como destinatario de la prestación específica a un grupo de personas determinadas, tales derechos se truecan en subjetivos y, en consecuencia, pueden ser exigidos en forma inmediata por sus titulares, a través de la vía judicial prevista para el caso por el legislador”. En Herrera Vergara, Hernando. 2000. Acción de Tutela y derechos prestacionales. En Jurisdicción Constitucional en Colombia. Santafé de Bogotá, Colombia, Ed. Corte Constitucional y otros, página 293.

8 “Aplicación del Pacto Internacional de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales”, CDESC, Obser-vación General 3, La índole de las obligaciones de los Estados Partes (párrafo 1 del artículo 2 del Pacto), (Quinto período de sesiones, 1990), U.N. Doc. E/1991/23.

9 Citada por Sifuentes Muñoz, Eduardo, en La acción de Tutela en Colombia. En Ius et Praxis, Universidad de Talca. Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales, Año 3 N° 1, Talca, Chile, 1997. Ver en http://derecho.utalca.cl/pgs/investigacion/iusetpraxis/3-1-97/165_174_cifuentes.pdf

10 La “Declaración de Quito acerca de la Exigibilidad de los DESC” fue aprobada el 24 de Julio de 1998 por un conjunto de redes latinoamericanas integradas por organizaciones de defensa de los derechos humanos y de promoción del desarrollo, así como por organizaciones sindicales y de defensa de los derechos de la mujer, y fue adoptado como marco jurídico y político de referencia para la acción conjunta de dichas organizaciones a favor de la promoción de la vigencia de los derechos económicos, sociales y culturales en la región. Ver en http://www.pidhdd.org/quito.htm

11 NIKKEN, Pedro. Introducción a la Protección Internacional de los Derechos Humanos. XIX Curso Interdisciplinario en Derechos Humanos. IIDH, 19 al 28 de julio de 2001, San José, Costa Rica, Págs. 26-30.

12 Del 2 al 6 de junio de 1986, se reunió en Maastricht, Países Bajos, un grupo de distinguidos expertos en Derecho Internacional convocados por la Comisión Internacional de Juristas, la Facultad de Derecho de la Universidad de Limburgo (Maastricht) y el Instituto Urban Morgan para los Derechos Humanos de la Universidad de Cincinati (Ohio, EE.UU). El propósito de la reunión era el considerar la naturaleza y el alcance de las obligaciones de los Estados Partes del Pacto Internacional sobre los Derechos Económicos, Sociales y Culturales, así como la cooperación internacional según lo dispuesto en la Parte IV del Pacto.

13 Principios de Limburgo, párr. 21. 14 Íbid, párr. 23.15 La Carta de la OEA ha sido reformada varias veces. En primer lugar por el “Protocolo de Buenos Aires”,

suscrito el 27 de febrero de 1967, en la Tercera Conferencia Interamericana Extraordinaria; luego por

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“Protocolo de Cartagena de Indias”, aprobado el 5 de diciembre de 1985, en el decimocuarto período extraordinario de sesiones de la Asamblea General; más tarde por el “Protocolo de Washington”, aprobado el 14 de diciembre de 1992, en el decimosexto período extraordinario de sesiones de la Asamblea General, y por el “Protocolo de Managua”, adoptado el 10 de junio de 1993, durante el decimonoveno período extraordinario de sesiones de la Asamblea General.

16 Preámbulo de la Carta de la Organización de Estados Americanos (OEA).17 Corte I.D.H., Opinión Consultiva 7, OC7/86 del 29 de agosto de 1986, “Exigibilidad del derecho de

rectificación o respuesta”, (artículos 14.1, 1.1 y 2 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos), Serie A, num.7.

18 Corte I.D.H. Caso Godinez Cruz. Sentencia de fecha 20 de enero de 1989. Serie C, número 5, párrafo 175. Ver en http://www.corteidh.or.cr/seriec/seriec_05_esp.doc

19 En sus artículos 22 y 23, el PIDESC asigna una especial importancia a la determinación de las activi-dades de cooperación técnica y de otra índole encaminadas a prestar asistencia a los Estados Parte para promover la realización de los derechos económicos, sociales y culturales por el reconocidos. Así, según el artículo 22 del PIDESC, “el Consejo Económico y Social podrá señalar a la atención de otros órganos de las Naciones Unidas, sus órganos subsidiarios y los organismos especializados interesados que se ocupen de prestar asistencia técnica, toda cuestión surgida de los informes a que se refiere esta parte del Pacto que pueda servir para que dichas entidades se pronuncien, cada una dentro de su esfera de competencia, sobre la conveniencia de las medidas internacionales que puedan contribuir a la aplicación efectiva y progresiva del presente Pacto”. Conforme al artículo 23 del mismo Pacto, los Estados Partes en el PIDESC han conve-nido que las medidas de orden internacional destinadas a asegurar el respeto de los derechos reconocidos por el Pacto “comprenden procedimientos tales como la conclusión de convenciones, la aprobación de recomendaciones, la prestación de asistencia técnica y la celebración de reuniones regionales y técnicas, para efectuar consultas y realizar estudios, organizadas en cooperación con los gobiernos interesados”. Por su parte, el Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales ha expresado que, “de acuerdo con los Artículos 55 y 56 de la Carta de las Naciones Unidas, con principios bien establecidos del derecho internacional y con las disposiciones del propio Pacto, la cooperación internacional para el desarrollo y, por tanto, para la efectividad de los derechos económicos, sociales y culturales es una obligación de todos los Estados. Corresponde particularmente a los Estados que están en condiciones de ayudar a los demás a este respecto”. Observación General N° 3, Párr. 14.

20 Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Observación General sobre Aplicación del párrafo 1 del artículo 2 del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales: La Índole de las obligaciones de los Estado Partes. Observación General Nº 3, aprobada en su Quinto período de sesiones, 1990, (U.N. Doc. E/1991/23.). Ver en: <http://www1.umn.edu/humanrts/gencomm/Sepcomm3.htm>.

21 Folleto informativo No.16 (Rev. 1), Comité de Derechos Económicos, Sociales y Cultural. En http://www.unhchr.ch/spanish/html/menu6/2/fs16_sp.htm#activ

22 Directrices de Maastricht sobre Violaciones a los Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Párr. 1423 Nikken, Pedro. “El Concepto de Derechos Humanos”, en Instituto Interamericano de Derechos Humanos,

Serie Estudios Básicos de Derechos Humanos Tomo I, pág.33, San José, 1994. 24 Ídem.

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ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS AS BASIS FOR HUMAN DIGNITY AND EQUALITY

ABSTRACT

In this article the author analyses the developments in doctrine, in academia, and those made by state actors and organizations of global civil society on the approaches to the economic, social and cultural rights (ESCR), whose importance became relevant since the Universal Declaration of Human Rights (UDHR), by identifying one indivisible set of inalienable rights that arise on the basis of social, cultural, civil, political, and economic rights. In this sense, the UDHR is the founding instrument in which two International Treaties on Human Rights can be fitted, as well as the other regional instruments on the subject.

Key Words: Economics. Social and Cultural Rights. Exigibility. Justiciability. Integrality. Progressivity and Indivisible.

Submetido: 30 jul. 2014Aprovado:18 ago. 2015

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ensino JuríDico e A DisciplinA De históriA Do Direito no BrAsil: Discussões pArlAmentAres e

AlterAções curriculAres

Gabriela Natacha Bechara*Horácio Wanderlei Rodrigues**

1 Introdução. 2 Discussões Parlamentares. 3 Alterações nos currículos ju-rídicos. 4 História do Direito e previsão contemporânea. 4 Considerações Finais. Referências.

RESUMO

Como objeto de estudo do presente artigo, tem-se o ensino jurí-dico brasileiro, principalmente o que diz respeito à disciplina de História do Direito e a sua presença/ausência nos currículos dos cursos de Dno Brasil. O objetivo é o de contribuir, ainda que de forma não exaustiva, para uma melhor compreensão da temática, que, muitas vezes, resta nebulosa e carece de reflexões pátrias.

Palavras-chave: Faculdade de Direito. Educação. História do Direito.

1 INTRODUÇÃO

No Brasil Colônia1, que se caracterizava por uma economia agrária e ex-portadora, sem necessidade de formação profissional especializada, não houve a criação de cursos superiores no país. A situação se modificou em 1808, com a vinda da família real portuguesa ao país. Assim, o Brasil contou durante os séculos XVI, XVII e XVIII apenas com a existência de algumas corporações de ofício.

Diferentemente ocorreu com os países de colonização espanhola e in-glesa. A Coroa Espanhola preocupou-se desde o início da colonização de seu território com a cristianização e educação de seus habitantes, evangelizando

* Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conhecer Direito (NE-CODI). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

** Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com estágio de Pós-doutorado em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS. Pro-fessor Titular do Departamento de Direito da UFSC, lecionando no Curso de Graduação e no Programa de Pós-graduação (PPGD - Mestrado e Doutorado). Sócio fundador do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) e da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi). Membro do Instituto Iberomericano de Derecho Procesal (IIDP). Coordenador do Núcleo de Estudos Conhecer Direito (NECODI). Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected]

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e cristianizando os indígenas, bem como proporcionando educação geral à população de origem espanhola.2

Com efeito, as primeiras universidades do Continente Americano foram criadas nas colônias espanholas, logo quando de seus primeiros assentamentos, estabelecidas no decorrer do século XVI. Por sua vez, já no século XVII, surgem as primeiras instituições de ensino superior na américa de colonização inglesa. Portanto, diz-se que o Brasil configura exceção nas Américas, eis que seu ensino superior à época se encontrava limitado às universidades portuguesas de Coim-bra e Évora.3

Os cursos de ciências jurídicas só foram criados em 11 de agosto de 18274, após a declaração de Independência do Brasil, em 1822, por D. Pedro I. Esses primeiros cursos jurídicos foram criados nas cidades de São Paulo e Olinda, porém esse último foi transferido para Recife em 1857. Todavia, ainda que estabelecidos em 1827, a discussão acerca da criação dos cursos jurídicos ocorria desde os debates da Assembleia Constituinte de 1823, chamada após a Proclamação da Independência em 1822 para fundar a primeira Constituição brasileira.

Outrossim, após a outorga da Carta Magna de 1824, a discussão se desloca para a Assembleia Legislativa, instalada em 1826, que passa a se debruçar sobre o assunto em acalorados debates sobre a localização dos referidos cursos, currículo, amplitude dos estudos, entre outros.

Assim, tem-se como objeto de estudo do presente trabalho o ensino jurí-dico brasileiro, principalmente o tocante às especificidades inerentes à disciplina de História do Direito e a sua presença nos currículos dos cursos de direito no Brasil. O objetivo é o de contribuir, ainda que de forma não exaustiva, com uma melhor compreensão da temática que, muitas vezes, resta nebulosa e carece de reflexões pátrias.

Portanto, no intuito de atingir o objetivo proposto e entendendo-se a temática como primordial para o estudo do ensino jurídico e da disciplina de História do Direito, primeiramente, abordam-se as discussões parlamentares ocorridas na época, que deixam transparecer o espírito e as inquietações do período. Em seguida, verifica-se a ocorrência de inúmeras alterações curricula-res, que posteriormente inserem e excluem a disciplina de História do Direito dos currículos das faculdades jurídicas brasileiras. Por último, fazem-se algumas considerações acerca da situação contemporânea da disciplina de História do Direito para, finalmente, partir-se para as considerações finais.

2 DISCUSSÕES PARLAMENTARES

Atualmente, a disciplina de História do Direito faz parte do eixo de formação fundamental5 dos currículos dos cursos de graduação em Direito no Brasil. Apesar de sua relevância na construção do saber jurídico e na formação do bacharel, uma vez que evidencia a relação do Direito com o tempo e com o

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contexto social no qual se insere, a presença da disciplina História do Direito nos currículos é relativamente recente e inconstante.

Quando das primeiras discussões parlamentares acerca da criação das faculdades de Direito no país, os debates sobre a inclusão ou não de disciplinas, como Direito Romano e a disciplina de História da Legislação Nacional, já eram acirrados. Nesse sentido, importante o resgate feito por Aurélio Wander Bastos quando argumenta que:

No conjunto da documentação brasileira sobre o ensino jurídico, os debates parlamentares sobre a criação dos cursos jurídicos no Brasil (1823-1827) não só constituem um vasto repositório de teo-rias e métodos de ensino, como também representam as primeiras postulações sobre a educação no Brasil, permitindo extrair desses pronunciamentos parlamentares variáveis importantíssimas para a recuperação da sua história, da sua função educacional e política e do seu papel social.6

Debates entre os parlamentares acerca da necessidade ou não da inclusão desta ou daquela disciplina foram comuns, e as discussões acerca da inclusão do Direito Romano e História Eclesiástica fazem-se presentes. No que tange ao objeto de estudo do presente trabalho, o debate acerca da inclusão da disciplina de História do Direito nacional ou do Direito português também era acalorado. A título de exemplo, a fala do Sr. Almeida e Albuquerque na sessão legislativa de 26 de agosto de 1826, in verbis:

Sr. Presidente, eu me persuado que se não pode ensinar o que não existe. Onde está a História da Legislação Pátria? Será a História da Legislação Portuguesa? Eu já mostrei que a nossa legislação, posto que tivesse a origem da portuguesa, não pode contudo ser explicada pelos mesmos princípios daquele legislação, mas deve ser iluminada, e demonstrada pelos princípios da nossa Constituição, princípios, que a não professa.

Logo que serve entre nós o estudo da História da Legislação Portuguesa, salvo se for para refutar os erros, em que pela maior parte ela se funda? A História da nossa legislação principia agora, e só para o futuro é que poderá ser escrita e estudada.7

Outras manifestações sobre o assunto apareceram na fala de Sousa França:

Eu votei contra o estabelecimento de uma cadeira de História do Direito Português porém não pelas razões, que tenho ouvido. A História do Direito Brasileiro é o mesmo que a História do Direito Português. É um direito adotivo, mas é o nosso direito.

Não somos Nação sem lei, temos leis, que são as que nos regiam até agora com algumas modificações: por elas nos governamos, e nos havemos de governar por muitos anos. Votei contra porque julgo que não é necessária esta cadeira. (Apoiado)

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Quem não tem capacidade de na sua casa abrir um livro de História Portuguesa, não deve entrar na ordem dos homens literatos. É escu-sado portanto que se ensine a História do Direito Português, e que para isso se pague a um mestre. (Apoiado) Eis a razão do meu voto.8

Vasconcelos segue o voto de Sousa França, considerando a inclusão da disciplina História da Legislação inteiramente supérfluo, como segue:

Eu sigo o parecer do Sr. Albuquerque, e digo que isto de História de Legislação é mesmo uma história: não acho que produza utili-dade alguma. A legislatura portuguesa está para acabar entre nós: o nosso Código Nacional há de aparecer finalmente.

Demais, qual será o mestre, que deixará de explicar a legislação pelos fatos, que a ela deram lugar? Qual o estudante que não con-sultará a História da Legislação, que se lhe explicar? Portanto, julgo inteiramente supérflua uma cadeira destinada para este estudo.9

Em contrapartida, a manifestação de Custódio Dias:

Eu votei contra a cadeira de História, e votei com toda a reflexão. O nosso Direito Pátrio, Sr. Presidente, é todo contrário a essas pestíferas máximas do direito português. E será possível que va-mos imbuir a nossa mocidade nessas máximas de legitimidade, e escravidão nacional? No Brasil não é possível. Estamos em outra época e em outro mundo.

O mundo velho não tem trazido ao mundo novo, senão a escravi-dão, e com ela os males de todo o gênero. O nosso direito é todo constitucional, contra o qual se levantam as testas coroadas de Europa: é este direito que nos há de salvar das máximas do mundo velho. A Europa, da forma em que se acha, e a que a tem reduzido o célebre Congresso de Laibak, poderá oferecer ótimos princípios de Legislação à Ásia, ou à África; porém à América, não. A nossa legislação nós é que havemos de fazer: por consequência, a História desta legislação está ainda nos possíveis.

Contudo, eu votarei pela cadeira de História, só com a condição de servir unicamente para ensinar à mocidade brasileira a detestar e a ter em horror essas máximas e esses tempos de execranda memória.10

Em outro momento, na mesma sessão legislativa, o parlamentar argu-menta que:

[...]

Não, senhores, não temos direito algum, senão constitucional. Havemos de reconhecer o princípio absurdo e ímpio, de que o poder dos reis vem imediatamente de Deus? Nunca: isto é o que faltava! O único rei, que na minha opinião, recebeu o poder ime-diatamente de Deus, é Belzebu.

Não me consta que nenhum outro tenha o poder, senão dos povos, mediante a graça divina, porque nada se faz sem a sua permissão. [...]

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Não me consta que houvesse outro, que tivesse esta prerrogativa; e se há, apontem-no. Isto tem sido uma armadilha, com que se trouxeram os povos enganados por muito tempo, porém hoje já ninguém crê em bruxas. (Risos no salão)

Os monarcas recebem o poder imediatamente dos povos e rece-bem aquele poder, que se lhes declara e professa esse princípio. (Apoiado, apoiado) Há um artigo expresso em que se declara que todos os poderes políticos são delegações da Nação. (Apoiado, apoiado) Portanto, nada, nada de legitimidades do velho mundo. (Apoiado, apoiado).11

Das palavras do parlamentar, observa-se o surgimento de um pensamento inovador, capaz de refletir acerca da ordem política do qual faz parte, bem como do papel do Direito Constitucional e da História para a legitimação ou não de determinadas práticas.

Não obstante, a inclusão da disciplina não obteve os votos necessários para se fazer presente no currículo da Faculdade de Direito:

No Império, antes da criação dos cursos jurídicos no Brasil, mo-tivada pelo projeto de lei da autoria dos deputados Januário da Cunha Barbosa e José Cardoso Pereira de Melo, de 5 de julho de 1826, a Câmara dos Deputados discutia a inclusão de história da Legislação Nacional no currículo dos cursos jurídicos brasileiros. Os debates em torno da história do direito dividiram-se [...]. A corrente contrária à história legislativa, vitoriosa no debate parlamentar, impôs a primeira derrota da história do direito, excluindo, assim, a disciplina histórica dos currículos dos cursos de direito que viriam a ser criados em Olinda e em São Paulo, conforme o estatuto legal de 11 de agosto de 1827. (grifou-se)12

Nesse interim, vale salientar que subjacente às discussões sobre o currículo dos cursos de Direito a serem criados no país, as preocupações com a construção de uma ideologia de sustentação política do Império.

Segundo o magistério de Joaquim Falcão,13 era uma época de reavaliação e reestruturação, de escolher novos caminhos, novos ideais e novas hegemonias. Era um período em que o Estado se modernizava, em que a “criação dos Cursos Jurídicos confunde-se com a formação do Estado nacional”, projetado pela elite dirigente da época.

Surge o principal intelectual da sociedade brasileira do século XIX, o bacharel, advindo do “imperativo político de se constituir quadros para o apare-lho governamental e de exercer pertinaz controle sobre o processo de formação ideológica dos intelectuais a serem recrutados pela burocracia estatal.”14

O currículo criado então era composto pelas seguintes disciplinas:

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Quadro 1 - Primeiro currículo dos cursos de graduação

Ano Cadeira Disciplina

1° ano 1ª cadeira Direito Natural, Público, Análise da Constituição do Império, Direito das Gentes e Diplomacia

2° ano1ª cadeira Continuação das matérias do ano antecedente

2ª cadeira Direito Público Eclesiástico

3° ano1ª cadeira Direito Pátrio Civil

2ª cadeira Direito Pátrio Criminal, com a teoria do processo criminal

4° ano1ª cadeira Continuação do Direito Pátrio Civil

2ª cadeira Direito Mercantil e Marítimo

5° ano1ª cadeira Economia Política

2ª cadeira Teoria e Prática do Processo Adotado pelas Leis do Império

Fonte: Lei de 11 de agosto de 1827.

Doravante, substituindo os Estatutos do Visconde da Cachoeira, o Decreto de 7 de novembro de 183115 é instituído provisoriamente um novo Regulamento dos cursos jurídicos, que procura conciliar a lei de criação dos cursos jurídicos de 1827 com os estatutos, criados em 1825.

Quase duas décadas depois da alteração dos estatutos, o Decreto nº 608, de 16 de agosto de 185116, dispõe sobre novos estatutos e prevê nova alteração curricular, criando mais duas disciplinas, a de Direito Administrativo e a de Direito Romano.

3 ALTERAÇÕES NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

Não obstante as contínuas discussões acerca da inclusão de disciplinas, houve apenas uma alteração curricular no período Imperial, quando foram acrescentadas somente as supracitadas cadeiras de Direito Romano e Direito Administrativo. Como razões principais dessa inclusão estariam o fato de o Direito Romano constituir base para os estudos do Direito Civil. Já a inclusão do Direito Administrativo se devia à necessidade que esse saber se fazia sentir na formação dos jovens que administrariam o país.

O Decreto nº 1.134, de 30 de março de 185317, confere novos estatutos aos cursos jurídicos do Império. O curso continua a ter cinco anos, e o currículo passa a ser o seguinte:

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Quadro 2 - Segundo currículo dos cursos de graduação

1° ano1ª cadeira Direito Natural e Direito Público Universal

2ª cadeira Instituições de Direito Romano

2° ano1ª cadeira

Continuação das matérias da 1ª cadeira do 1º ano. Direito das Gentes; Diplomacia e explicação dos tratados em vigor entre o Brasil e outras nações

2ª cadeira Continuação do ensino da 2ª cadeira do 1º ano; Direito público eclesiástico e Direito Eclesiástico Pátrio

3° ano1ª cadeira Direito civil pátrio com a análise e comparação do Direito

romano

2ª cadeira Direito criminal, incluído o militar, e o Processo criminal pátrio

4° ano1ª cadeira Continuação das matérias da 1ª cadeira do 3º ano

2ª cadeira Direito Comercial e Marítimo Pátrio

5° ano

1ª cadeira Hermenêutica Jurídica com Aplicação às Leis; Análise da Constituição; Processo Cível e Prática Forense

2ª cadeira Direito Administrativo Pátrio.

3ª cadeira Economia PolíticaFonte: Decreto nº 1.134, de 30 de março de 1853

A modificação curricular suprimiu a disciplina Análise da Constituição do Império, acrescentando a disciplina de Hermenêutica Jurídica e outra disciplina de cunho religioso, com a introdução do Direito Eclesiástico Pátrio, demonstran-do de forma inequívoca, os laços que o Império mantinha com a Igreja Católica.

O Decreto nº 1.386 de 28 de abril de 185418, realiza mais algumas pequenas modificações curriculares, conforme segue:

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Quadro 3 - Alteração curricular de 1854

1° ano1ª cadeira Direito Natural, Direito Público Universal e Análise

da Constituição do Império

2ª cadeira Institutos do Direito Romano

2° ano1ª cadeira Continuação das matérias da 1ª cadeira do 1º ano.

Direito das Gentes e Diplomacia

2ª cadeira Direito eclesiástico

3° ano1ª cadeira Direito Civil Pátrio com a análise e comparação do

Direito Romano

2ª cadeira Direito Criminal, incluído o Militar

4° ano1ª cadeira Continuação das matérias da 1ª cadeira do 3º ano

2ª cadeira Direito Marítimo e Direito Comercial

5° ano

1ª cadeira Hermenêutica Jurídica, Processo Civil e Criminal, incluído o Militar e Prática Forense

2ª cadeira Economia Política

3ª cadeira Direito AdministrativoFonte: Decreto nº 1.134, de 30 de março de 1853.

Na década seguinte, o polêmico Decreto nº 3.454, de 26 de abril de 186519, previa um currículo que não chegou a ser implantado, estabelecendo, entre outros, a faculdade do ensino da disciplina de Direito Eclesiástico, a divisão das disciplinas entre os cursos de Ciências Sociais, com duração de três anos e Ciências Jurídicas, alterando a duração do Curso de Direito para quatro anos.

O Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 187920, de Carlos Leôncio de Carva-lho, “reforma o ensino primário e secundário no município da Corte e o superior em todo o Império”. Entre outros, o Decreto estabelecia, em seu primeiro artigo, a completa liberdade do ensino primário e secundário no município da Corte e o superior em todo o Império e a divisão entre Ciências Jurídicas e Ciências Sociais, vindo a ser conhecido como a Reforma do Ensino Livre. No currículo previsto pelo Decreto nº 7.247, permanecia a ausência da disciplina de História do Direito.

Alguns anos depois, já no caminhar do fim do Império, na sessão legis-lativa de treze de abril de 1882, foi apresentado pela Comissão de Instrução Pública, composta por Rui Barbosa (relator), Thomaz do Bomfim Spindola e Ulysses Machado Pereira Vianna, parecer e projeto sobre a Reforma do En-sino Secundário e Superior no Brasil21 que, entre outros relevantes assuntos, sustentava que

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Parece-nos, outrosim, inevitável uma cadeira de História do Direi-to Nacional, matéria de primeira ordem, que contém, por assim dizer, a história das origens, dos monumentos, da evolução das instituições do país. É curso que encontramos estabelecido em quase todas as faculdades do Direito bem organizadas.22

O Projeto estabelecia a liberdade do ensino superior e em seu art. 39, inciso III, previa ainda como constantes do currículo dos cursos jurídicos as seguintes disciplinas: Sociologia, Direito Constitucional Brasileiro e Constituições Compa-radas, Direito Romano, Direito Civil, Direito criminal, Medicina Legal, Direito Comercial, Teoria do Processo Criminal, Civil e Comercial, Prática do Processo Criminal, Civil e Comercial, História do Direito Nacional e Economia Política.

Conforme a lição de Aurélio Wander Bastos,

Rui Barbosa, corajosamente, é o primeiro dos pensadores e políticos brasileiros modernos a desnudar o sentido de cada disciplina e o seu destino e importância formativa, especialmente na absorção e discussão crítica da proposta educativa do Estado. Neste parecer não se propunha apenas ao bacharel que dominasse o conhecimento jurídico positivo, mas principalmente que tivesse conhecimento, que viabilizasse a absorção do conhecimento científico como forma especial de se questionar e provocar uma adaptação constante do Estado à ciência.23

Todavia, o parecer da Comissão de Instrução Pública, encabeçado por Rui Barbosa, considerado minucioso e de caráter inovador, ao ser apresentado, sofreu inúmeras críticas, vindo a ser rejeitado. Sobre a discussão levantada na época, Aurélio Wander Bastos24 afirma que:

Todavia, na prática, a discussão trazia, ao nível do ensino jurídico, a grande questão nacional que se avizinhava: a separação entre o Estado e a Igreja, que influenciou as grandes linhas dos debates parlamentares até a promulgação da República.

O emérito estudioso lembra que, apesar das sucessivas reformas levadas a cabo pelo legislativo e de seus sucessivos insucessos, não se viu diminuída “[...] a crença de que a produção de leis resolveria a questão do ensino jurídico no Brasil.”25

Ao analisar os documentos parlamentares da época, Bastos conclui que:

Na verdade, o contexto geral desses debates sobre o ensino livre mostra não apenas que a situação do ensino, ao fim do Império, era de verdadeiro tumulto na ausência de perspectivas, mas também, ou pelo menos este foi o efeito prático, que era imprescindível ao Império, na emergência da questão religiosa, da questão eleitoral e da questão da escravatura, somadas à questão militar, que, sucessiva-mente, contribuíram para a desagregação do Estado Imperial, por um lado, viabilizar alternativas para a Igreja que vinha sendo deslocada dos assuntos de Estado (o Estado circa sacra estava por desarticular-

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-se, inclusive no que se refere à interferência oficial nos assuntos educacionais), e, por outro lado, desmobilizar a população estudantil que vinha crescentemente se envolvendo nos assuntos políticos.26

De tal sorte, dando prosseguimento às alterações curriculares via decretos, tem-se nova modificação alguns anos depois. É nessa reforma que a disciplina História do Direito, passa a figurar no rol das disciplinas jurídicas. Assim, ainda que utilizada de forma interdisciplinar em disciplinas, como Direito Romano, a História do Direito, só foi incluída nos currículos dos cursos jurídicos em 17 de janeiro de 1885, pelo Decreto nº 9.36027. O Decreto dava novos Estatutos às Faculdades de Direito, mantendo a divisão em dois cursos em cada faculdade: Ciências Jurídicas e Ciências Sociais.

Segundo o art. 3º do Decreto nº 9.360, as disciplinas presentes no currí-culo de Ciências Jurídicas são Direito Natural, Direito Constitucional, Direito eclesiástico, Direito Romano, Direito Criminal, incluindo o Direito Militar, Direito Civil, Direito Comercial, incluindo o Direito Marítimo, Medicina Legal, Processo Criminal, Prática do mesmo processo e hermenêutica jurídica, Processo Civil, Processo Comercial e Prática dos mesmos processos. Por fim, foi incluída a disciplina de Historia do Direito Nacional.

Já sob os auspícios da Primeira República, o Decreto 1.232-H, de 02 de janeiro de 189128 - implanta a Reforma Benjamin Constant29, desdobrando as Faculdades de Direito em três cursos: Ciências Jurídicas, Ciências Sociais e Nota-riado, retirando a disciplina de Direito Natural e incluindo a disciplina Filosofia e História do Direito, Direito Público e Constitucional, Direito Romano, Direito Criminal, incluindo o Direito Militar, Direito Civil, Direito Comercial, incluin-do o Direito Marítimo, Medicina Legal, Processo Criminal, Civil e Comercial, Prática Forense, História do Direito Nacional e Noções de Economia Política e Direito Administrativo. Também desaparece a disciplina de Direito Eclesiástico do currículo dos cursos jurídicos no país, o que parece evidenciar novos tempos, com o desejo por uma ruptura entre a Igreja e a nova República que se instaurava.

Sobre a junção de Filosofia e História do direito em uma mesma cadeira nos cursos jurídicos, Waldemar Martins Ferreira assim se manifesta:

[...] não se ajustava bem o ensino concomitante ou mesmo sucessivo da filosofia e da história do direito na mesma cadeira. Prejudicaria o desenvolvimento expositivo de uma ao da outra matéria, a me-nos que se dividisse o ensinamento por semestres, em equânime partilha.30

Outrossim, no mesmo ano, surgem novos cursos de Direito: um curso na Bahia e dois no Rio de Janeiro, seguidos por um curso em Minas Gerais (1892).

Poucos anos depois, em reforma que novamente reorganiza o ensino das Faculdades de Direito, a Lei nº 314, de 30 de outubro de 189531, veio a fixar o novo currículo dos cursos jurídicos no Brasil. A supracitada reforma elimina o consórcio das disciplinas de Filosofia do Direito e História do Direito em uma

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cadeira, incluindo o estudo da História do Direito com a da História do Direito Nacional. O currículo passou a ter a seguinte estrutura:

Quadro 4 - Currículo alterado em 1895

1° ano

1ª cadeira Filosofia do Direito

2ª cadeira Direito Romano

3ª cadeira Direito Público Constitucional

2° ano

1ª cadeira Direito Civil

2ª cadeira Direito Criminal

3ª cadeira Direito Internacional Público e Diplomacia

4ª cadeira Economia Política

3° ano

1ª cadeira Direito Civil

2ª cadeira Direito Criminal, especialmente Direito Militar e Regi-me Penitenciário

3ª cadeira Ciências das Finanças e Contabilidade do Estado

4ª cadeira Direito Comercial

4° ano

1ª cadeira Direito Civil

2ª cadeira Direito Comercial (especialmente Direito Marítimo, Falência e Liquidação Judiciária)

3ª cadeira Teoria do Processo Civil, Comercial e Criminal

4ª cadeira Medicina Pública

5° ano

1ª cadeira Prática Forense

2ª cadeira Ciência da Administração e Direito Administrativo

3ª cadeira História do Direito e especialmente do Direito Nacional

4ª cadeira Legislação Comparada sobre Direito PrivadoFonte: Lei nº 314, de 1895.

A disciplina prevista na terceira cadeira do quinto ano dava especial ênfase à História do Direito Nacional e foi instituída em franca oposição ao Direito Natural e Eclesiástico, não mais pertencentes ao currículo dos cursos jurídicos. Conforme o ensinamento de Horácio Wanderlei Rodrigues, o objetivo, além de questionar o Direito Natural, era o de mostrar o Direito como fenômeno histórico.32

Aureliano Coutinho33, em seu discurso de abertura da disciplina História do Direito na Faculdade de São Paulo, inclusive se antecipa a possíveis críticas quanto à criação da disciplina História do Direito separada da disciplina Filo-sofia do Direito e ministrada em conjunto com a História do Direito Nacional.

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O lente expõe aos presentes seu entender de que o estudo do curso pelo qual é responsável possui aplicação prática e imediata no cotidiano, lembrando ainda que saber é poder e a história é a mestra da vida.

Em vários momentos,34 o ilustre professor convoca a todos, mestres e discípu-los, para empreender os mais perseverantes esforços para que a reforma educacional que vivem “[...] possa erguer o ensino do Direito à altura das necessidades de nossa querida pátria.” Em seguida, o autor lembra aos presentes que ocuparam esses bancos os “timoneiros que têm regido os destinos de nossa patria” e que em pouco tempo:

[...] nas azas do merecimento, podereis ter ascendido ás camadas sociaes e ás tremendas responsabilidades que ellas soem acarretar. Nesses postos de responsabilidade a ignorância do direito será mais do que um desastre e um vexame, será um crime de leso-patriotismo, cujas conseqüências têm uma força de irradiação incalculável.35

Em sua fala, Aureliano Coutinho expressa o sentimento de patriotismo que pairava sobre o Brasil da época, revelando uma forte ligação entre os cursos jurídicos e os bacharéis com a formação da elite administrativa do país.

Dando continuidade, o autor deixa transparecer a percepção evolu-tiva que possuía da disciplina, que, ao seu ver, seria caracterizada por uma marcha evolutiva:

Em particular, a historia do direito nos desvenda á ação benéfica e incessante desse poderoso fator da civilisação, que acompanha o homem na sua marcha progressiva para o ideal da perfectibili-dade. É a luz de um pharol que se projecta do alto e de longe para aclarar os caminhos e, não raro, para salvar a náu açoitada pelas borrascas, quando ella vai caminho de perdição de encontro ás syrtes temerosas do oceano.36 (grifou-se)

Nesse sentido, o conceito trabalhado pelo catedrático perpassa a ideia aperfeiçoada e progressivamente trabalhada do justo,

[...] reflectida pelo espirito humano e por este progressivamente actuada no tempo e no espaço: eis o que é a Historia do Direito. A successão do tempo e o ideal de perfectibilidade produziram o modo cada vez mais aperfeiçoado por que a humanidade concebeu e actuouaquelle ideal do justo, assim como a variedade do espaço, isto é, as influencias mesologicas, importaram a variedade dos mo-dos por que os differentes povos conceberam, e traduziram, pelos costumes e pelas leis, o sobredito ideal; engendrando-se assim o direito particular de cada sociedade.37

Doravante, o Decreto nº 3.903, de 12 de janeiro de 190138, retira a obri-gatoriedade da disciplina. Assim,

Foram pouco mais de 15 anos de existência, precisamente nos últimos anos do século XIX (e nos inícios do século XX). No Recife, onde foi mais cultivada no período, a história do direito apareceu fortemente marcada pelo evolucionis-

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mo/naturalismo spenceriano, que, como se sabe, estavam bem de acordo com os ventos cientificistas que sopravam (sobretudo em Pernambuco) no ensino jurídico brasileiro. O fruto dessa fase pode ser bem representado principalmente pelo conhecido livro de Isidoro Martins Junior, que permanecerá por muito tempo como uma referência para os poucos que, a partir do início dos anos mil e novecentos, sentiam curiosidade pela história do direito.39

O currículo dos cursos jurídicos passa a ser composto pelas seguintes disciplinas:

Quadro 5 - Currículo de 1901 que retira a História do Direito

1° ano1ª cadeira Filosofia do Direito

2ª cadeira Direito Romano

2° ano

1ª cadeira Direito Público e Constitucional

2ª cadeira Direito Internacional Público e Privado e Diplomacia

3ª cadeira Direito Civil (1ª parte)

3° ano

1ª cadeira Direito Civil (2ª parte)

2ª cadeira Direito Criminal Direito Civil (1ª parte)

3ª cadeira Direito Comercial

4° ano

1ª cadeira Direito Civil (3ª parte)

2ª cadeira Direito Comercial, especialmente Direito Marítimo, Fa-lência e Liquidação Judicial

3ª cadeira Direito Criminal, especialmente Direito Militar e Regime Penitenciário (2ª parte)

4ª cadeira Economia Política, Ciência das Finanças e Contabilidade do Estado

5° ano

1ª cadeira Teoria e Prática do Processo Civil, Comercial e Criminal

2ª cadeira Ciência da Administração e Direito Administrativo

3ª cadeira Medicina Pública

4ª cadeira Legislação Comparada do Direito Privado

Fonte: Decreto nº 3.903, de 1901.

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Por sua vez, com base no Decreto nº 3.903, a decisão nº 09, de 04 de março de 190140, declara que não pode fazer parte do programa de ensino, considerada como matéria obrigatória, a cadeira de História do Direito.

Nesse período da Primeira República (1889 – 1930), surgem outras faculdades de Direito: Rio Grande do Sul (1900), Pará (1902), Ceará (1903), Amazonas (1909), outra no Rio de Janeiro (1910), Paraná (1912) e Maranhão (1918).41

Com relação aos cursos jurídicos, outras reformas ocorreram, caben-do aqui apenas mencionar a existência da Reforma Rivadávia Corrêa42, de 1911, que aprova a Lei Orgânica do Ensino Superior e do Fundamental na República e a Reforma Carlos Maximiliano43 em 1915, que reorganiza o en-sino secundário e o superior na República. Por último, a Reforma Francisco Campos44, de 1931, que dispõe sobre a reorganização do ensino secundário em todo o país.

4 HISTÓRIA DO DIREITO E PREVISÃO CONTEMPORÂNEA

Em 1962, por meio do Parecer nº 215, houve, pela primeira vez na história dos cursos jurídicos, a implantação de um currículo mínimo45, em contrapartida aos impostos currículos plenos de até então, que, todavia, não trouxe maiores efeitos na prática dos cursos. O curso continuou com a du-ração de cinco anos, devendo conter minimamente as seguintes disciplinas: Economia Política, Medicina Legal, Introdução à Ciência do Direito, Direito Civil, Direito Comercial, Direito Constitucional (incluindo Teoria Geral do Estado), Direito Administrativo, Direito Financeiro e Finanças, Direito Penal, Direito do Trabalho, Direito Internacional Privado, Direito Internacional Público, Direito Judiciário Civil (com Prática Forense), Direito Judiciário Penal (com Prática Forense).

Como se pode perceber, a reforma realizada em 1962 pelo Conselho Federal de Educação também não previu a disciplina de História do Direito nos cursos jurídicos. Comentando a reforma de 1962, Horácio Wanderlei Rodrigues assevera:

A implantação deste novo currículo para os cursos jurídicos bra-sileiros não alterou muito a estrutura vigente. Continuamos a ter um curso com rigidez curricular e com duração uniforme de cinco anos. Novamente a enumeração das disciplinas mostra claramente a tendência de transformar os cursos jurídicos em formadores de práticos do Direito, pois há uma quase exclusividade de cadeiras estritamente dogmáticas. Neste currículo, a única cadeira desti-nada a uma análise mais ampla do fenômeno jurídico era a de Introdução à Ciência do Direito. O que se vê nesta proposta que passou a vigorar em 1963, segundo os seus comentadores, é um total desvinculamento com a realidade político-econômica, social e cultural do país. Foi mais um passo no sentido de despolitização da cultura jurídica.46

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Segundo Rodrigues,47 além da supracitada resolução, pouco mudou entre os anos de 1930 a 1972, ano em que o Conselho Federal de Educação - CFE lança a Resolução CFE nº 3/72, tendo sido o primeiro grande passo para a flexibilização dos currículos jurídicos. A referida resolução é a responsável pela introdução de um novo currículo nos cursos de Direito, currículo este que vigorou até o final do ano de 1994, mas que não previa grandes mudanças. O currículo

Combina uma razoável flexibilidade, visando à sua adaptação ao mercado de trabalho e às realidades locais e regionais. Essa reforma curricular não trouxe, no entanto, os resultados práticos esperados, muito pouco mudando o ensino do Direito brasileiro, que continuou desvinculado da realidade social.48

No entanto, apesar dos objetivos da iniciativa, o que acabou por ocorrer, por parte das instituições de ensino, foi uma interpretação inadequada do espírito da reforma. A maioria delas adotou o currículo mínimo como currículo pleno, deixando de acrescentar-lhe outras matérias e atividades que permitissem, em cada caso concreto, a adequação dos cursos às realidades regionais.49

Após 1972, frente à proliferação das faculdades de Direito, alguns problemas começaram a surgir o que levou a que algumas iniciativas des-pontassem no tocante à criação de comissões que apresentassem propostas para um novo currículo. Em 1980, o Ministério da Educação (MEC), criou a Comissão de Especialistas em Ensino de Direito, que apresentou proposta que nunca foi implantada.

Outrossim, estudiosos de renome, como Joaquim Falcão, Horácio Wan-derlei Rodrigues, Edmundo Lima de Arruda Junior, José Eduardo Faria, Paulo Lôbo, Eliane Botelho Junqueira, José Geraldo de Sousa Júnior, começaram a tornar público o debate referente à crise do direito brasileiro, já denunciada na década de 1950 em discurso proferido por San Tiago Dantas em aula inaugural da Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro.

Conforme observa Eliane Botelho Junqueira,

Os anos noventa caracterizam-se por um repensar do ensino do direito no Brasil. A deficiência do currículo regido pela Resolução nº 3/72 há muito vinha sendo denunciada como responsável por um ensino tecnicista e dogmático. Era necessário transformar o curso de direito, recuperar uma visão humanista, introduzir uma dimensão crítica.50

Dessa forma, em 1990, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) criou a Comissão de Ensino Jurídico (CEJ/OAB). Posteriormente, nova Comissão de Especialistas convocada pelo MEC, que apresentou proposta, aprovando suas diretrizes por meio da Portaria MEC nº 1.886, de 199451, fixan-do as diretrizes curriculares dos cursos de Direito e seus conteúdos mínimos. A Portaria prevê, em seu art. 6º, as disciplinas que compõem os cursos jurídicos:

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Art. 6º O conteúdo mínimo do curso jurídico, além do estágio, compreenderá as seguintes matérias, que podem estar contidas em uma ou mais disciplinas do currículo pleno de cada curso.

I – Fundamentais: Introdução ao Direito, Filosofia geral e jurídica, ética geral e profissional, Sociologia (geral e jurídica), Economia e Ciência Política (com Teoria do Estado),

II – Profissionalizante: Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Administrativo Direito Tributário. Direito Penal. Direito Processual Civil. Direito Eco cestos! Penal. Direito do Trabalho, Direito Comercial e Direito Interacional.

Parágrafo único. As demais matérias e novos direitos serão incluí-dos nas disciplinas em que se desdobrar o currículo pleno de cada curso, de acordo com suas peculiaridades e com observância de interdisciplinaridade.

Essa situação só é revertida quando da Resolução nº 952 do Conselho Nacional de Educação (CNE), de setembro de 2004, que prevê o seguinte:

Art. 5º O curso de graduação em Direito deverá contemplar, em seu Projeto Pedagógico e em sua Organização Curricular, conteúdos e atividades que atendam aos seguintes eixos inter-ligados deformação:

I - Eixo de Formação Fundamental, tem por objetivo integrar o estudante no campo, estabelecendo as relações do Direito com outras áreas do saber, abrangendo dentre outros, estudos que en-volvam conteúdos essenciais sobre Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia.

II - Eixo de Formação Profissional, abrangendo, além do en-foque dogmático, o conhecimento e a aplicação, observadas as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natureza, estudados sistematicamente e contextualizados se-gundo a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações internacionais, incluindo-se necessariamente, dentre outros condizentes com o projeto pedagógico, conteúdos essenciais sobre Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Em-presarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional e Direito Processual; grifou-se

Por oportuno, convém assinar a distinção existente entre matéria e dis-ciplina, pois uma não deve ser confundida com a outra, cabendo ressaltar o ensinamento de Paulo Lôbo:

Esclareça-se que matéria não se confunde com disciplina. Esta é conti-nente e aquela conteúdo. A disciplina pode conter integralmente a matéria, por exemplo, a disciplina Direito Tributário, quando única, pode absorver toda a

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matéria correspondente, mas não se confundem. A matéria Direito Ambiental pode estar dispersa em várias disciplinas, sem essa denominação, ou agrupada em uma única disciplina; a matéria Direito Civil pode estar desdobrada em várias disciplinas, com essa denominação, acrescida de signos distintivos como algarismos romanos.53

Por conseguinte, não há previsão da obrigatoriedade da disciplina His-tória do Direito nos currículos jurídicos. O que é previsto pela resolução é a obrigatoriedade do conteúdo, cabendo-se frisar novamente, e não da disciplina na formação do bacharel. O currículo do Curso de Direito de uma determinada faculdade deve prever, assim, a abordagem do conteúdo de História do Direito em uma ou mais disciplinas de sua matriz curricular, podendo o conteúdo estar inserido em mais de uma disciplina, facultativamente em uma disciplina autôno-ma de História do Direito ou em conjunto com outra(s). A legislação também é silente quanto à determinação de qual conteúdo deve ser abordado na formação do discente, auferindo liberdade e flexibilidade na montagem do currículo de graduação em Direito.

Conforme complementa Rodrigues:54

[...] as novas diretrizes curriculares não impõem que esses conteúdos sejam trabalhados em disciplinas ou módulos específicos. O que se exige é que seus conteúdos essenciais sejam estudados, com a finalidade de estabelecer as relações do Direito com as outras áreas do saber. Nesse sentido, é o projeto pedagógico de cada curso que deve demonstrar de que forma eles serão estudados e como será estabelecida a sua relação com o Direito.

Por último, faz-se mister salientar que a inclusão da História do Direito não estava inicialmente prevista, sendo posteriormente inserida na Resolução, em virtude de atuação da ABEDI, que encaminhou pedido de reconsideração do Parecer CNE/CES n. 55/2004.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho procurou contribuir com o estudo da temática do ensino jurídico, mais especificamente com o relacionado à disciplina de História do Direito. Dessa forma, procurou-se inicialmente evidenciar, por meio de algumas das discussões parlamentares que foram trazidas, a preocu-pação e importância que se dava à criação dos cursos jurídicos no Brasil, pois entende-se que essas discussões parlamentares se revelam não só historica-mente interessantes, mas fundamentais quando do estudo da temática, uma vez deixam transparecer que, na época, o país passava por um momento de reestruturação, com a adoção de novos modelos e conceitos, dando ensejo a um período de formação nacional.

Conforme pode-se observar, quando da criação do primeiro currículo das faculdades de Direito, a disciplina de História do Direito não havia sido

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Ensino jurídico e a disciplina de História do Direito no Brasil:discussões parlamentares e alterações curriculares

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prevista. Sem embargo, o currículo previa disciplinas, como Direito Natural e Direito Público Eclesiástico.

Com efeito, apesar das inúmeras discussões e modificações parlamentares que ocorreram posteriormente, a História do Direito, ainda que utilizada de forma interdisciplinar em disciplinas, como Direito Romano, só foi prevista nos currículos jurídicos a partir de 17 de janeiro de 1885, pelo Decreto nº 9.360. Entretanto, a previsão da disciplina foi alterada com o Decreto 1.232-H, de 2 de janeiro de 1891, que une as disciplinas de História e Filosofia do Direito. O consórcio existente entre as disciplinas só foi alterado com a Lei nº 314, de 30 de outubro de 1895, que elimina a junção, incluindo o estudo da História do Direito com a da História do Direito Nacional.

Por sua vez, com a edição do Decreto nº 3.903, de 12 de janeiro de 1901, retira-se a obrigatoriedade da disciplina. Em seguida, com base no Decreto nº 3.903, tem-se a Decisão nº 09, de 4, de março de 1901, que declara que não pode fazer parte do programa de ensino, considerada como matéria obrigatória, a cadeira de História do Direito.

Muitas décadas depois, algumas alterações ocorreram, porém, pela primeira vez na história dos cursos jurídicos, houve a previsão de um currículo mínimo para o Curso de Direito, com posterior flexibilização e previsão de conteúdos. Foi só com a edição da Resolução nº 9 do Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2004, que a História do Direito volta a ser prevista nos currículos jurídicos, não como disciplina, mas como conteúdo pertencente ao eixo de formação fundamental.

Evidenciando-se o caminho conturbado percorrido pela História do Direito, como disciplina e/ou conteúdo, espera-se contribuir para futuras reflexões acerca da ausência desse conhecimento na formação de várias gerações de juristas brasilei-ros e possíveis consequências quando do resgate posterior do estudo da temática.

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1 Período que vai de 1500 a 1815, do descobrimento ao ano em que o país é elevado da categoria de Colônia para a de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve.

2 LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação e da pedagogia. 18. ed. São Paulo: Nacional, 1990, p. 133.3 TEIXEIRA, Anísio. Educação no Brasil. São Paulo: Nacional, 1976, p. 244)4 A lei que cria os primeiros cursos jurídicos no Brasil se encontra disponível em: <http://www.planalto.

gov.br/ccivil_03/revista/Rev_63/Lei_1827.htm>. Acesso em 20 nov. 2014.5 Disciplinas que dizem respeito ao conteúdo mínimo, introdutório de um determinado saber, dando

ensejo a uma formação mais crítica e reflexiva, permitindo que se visualize a conexão do direito com outras áreas do conhecimento. No currículo de graduação em Direito, fazem parte do eixo de formação fundamental as disciplinas de Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Sociologia e Psicologia. (RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Pensando o ensino do direito no século XXI: diretrizes curriculares, projeto pedagógico e outras questões pertinentes. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 204-212.)

6 BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris Ltda., 1998, p. 2.

7 Centro de Documentação e Informação. Criação dos cursos jurídicos no Brasil. Brasília, DF: Centro de Documentação; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1977, p. 452.

8 Ibid., p. 454.9 Ibid., p. 455.10 Ibid., p. 455.11 Ibid., p. 456-457.12 MACIEL, José Fabio Rodrigues; AGUIAR, Renan. História do direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013,

p. 51-52.13 FALCÃO, Joaquim de Arruda. Os advogados: ensino jurídico e mercado de trabalho. Recife: Editora

Massangana, 1984, p. 15-16.14 ADORNO, Sergio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro:

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de abril de 1879) apresentado em sessão de 13 de abril de 1882. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242371>. Acesso em: 22 nov. 2014, p. 28.

23 BASTOS, op. cit., p. 97.24 Ibid., p. 104.25 Ibid., p. 108.26 Ibid., p. 108.27 Disponível em:<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-9360-17-janeiro-1885-

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13-14.

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31 Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-314-30-outubro-1895-540752-pu-blicacaooriginal-41651-pl.html.> Acesso em: 20 nov. 2014.

32 RODRIGUES, op. cit., p. 210.33 COUTINHO, Aureliano de S. E O. Discurso inaugural do curso de História do Direito Nacional. Revista

da Faculdade de Direito de São Paulo. v. 4. 1996. pp. 35-49. Disponível em: <http://www.obrasraras.usp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/3134/Revista_FD_vol4_1896.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 nov. 2014, p. 37.

34 Ibid., p. 36.35 Ibid.36 Ibid., p. 37.37 Ibid., p. 41.38 Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=3903&tipo_norma=

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40 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/infdoc/novoconteudo/legislacao/republica/leisoce-rizadas/leis1901decisoes.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2014.

41 RODRIGUES, op. cit., p. 21.42 Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-8659-5-abril-1911-

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cacaooriginal-141245-pe.html>. Acesso em: 20 nov. 2014.45 Os currículos mínimos permitiam “[…] a construção de currículos plenos parcialmente diferenciados nas diversas

instituições de ensino e sua adaptação às necessidades e realidade regionais -, alteração essa que passou a vigorar em 1963.” (RODRIGUES, op. cit., p. 64.)

46 Ibid., p. 29.47 Ibid., p. 28-29/65.48 Ibid., p. 29.49 Ibid., p. 68-69.50 JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Geléia geral: a Sociologia Jurídica nas Faculdades de Direito. In: JUNQUEIRA,

Eliane Botelho; OLIVEIRA, Luciano. Ou isto ou aquilo: a Sociologia Jurídica nas Faculdades de Direito. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2002, p. 27.

51 Disponível em: <http://www.ufpb.br/sods/consepe/resolu/1997/Portaria1886-MEC.htm>. Acesso em: 25 nov. 2014.

52 A Resolução pode ser visualizada no seguinte endereço: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/ces092004direito.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2014.

53 LÔBO, Paulo Luiz Netto. O novo conteúdo mínimo dos cursos jurídicos. In: OAB: ensino jurídico: novas diretrizes curriculares. Brasília: Conselho Federal, 1996, p. 10.

54 RODRIGUES, op. cit., p. 205.

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LEGAL EDUCATION AND THE LEGAL HISTORY SUBJECT IN BRAZIL: PARLIAMENTARY DISCUSSIONS AND CURRICULUM CHANGES

ABSTRACT

The object of study of this article is the brazilian legal education, especially legal history and its presence / absence in the law schools in Brazil. The aim is to contribute, albeit not exhaustively, for a better understanding of the subject, which often remains nebulous and lacks indigenous reflections.

Keywords: Law School. Education. Legal History.

Submetido: 18 ago. 2015Artigo convidado

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A teoriA Do Direito nAturAl De tomás De Aquino nA filosofiA Do Direito contemporâneo

Júlio Aguiar de Oliveira*Bárbara Alencar Ferreira Lessa**

1 Introdução. 2 A crítica à filosofia moral moderna e o retorno à ética clássica: G. E. M. Anscombe e Alasdair Macintyre. 3 A Teoria de Tomás de Aquino e a filosofia do direito contemporânea: Maritain e o realismo jurídico clássico. 3.1 O humanismo de Jacques Maritain. 3.2 O realismo jurídico clássico: Michel Villey e Javier Hervada. 4 O direito natural de Tomás de Aquino: releituras contemporâneas. 4.1 Lei natural e prudência: Pamela Hall. 4.2 Lei natural e natureza humana: Anthony Lisska. 4.3 Lei natural sem natureza: John Finnis. 5 Conclusão. Referências.

RESUMO

A ética das virtudes, na perspectiva clássica, tem sido resgatada por filósofos morais e filósofos do direito, por meio de reinterpre-tações das teorias de Aristóteles e Tomás de Aquino. A filosofia moral moderna, polarizada, basicamente, por deontologistas e utilitaristas, invoca conceitos como obrigação e dever moral, mas ignoram reflexões mais profundas sobre virtude, educação moral, amizade. A partir dessa afirmação, filósofos contemporâneos têm se voltado para as teorias de Aristóteles e Tomás de Aquino, que fornecem descrições consistentes sobre a natureza humana, o direito, a justiça e outras virtudes. Nesse contexto, o objetivo do trabalho é apresentar o contexto geral da redescoberta contempo-rânea da filosofia do direito de Aristóteles e Tomás de Aquino, em especial da teoria do direito natural tomista. Em primeiro lugar, será analisada, em linhas gerais, a reabilitação da teoria aristotélica das virtudes no campo da filosofia moral. Em seguida, serão apresentados aspectos da redescoberta da teoria do direito natural de Tomás de Aquino por filósofos contemporâneos, por meio de reinterpretações da teoria tomista, incluindo as teses propostas por Jacques Maritain e John Finnis. Pretende-se, assim, mostrar a posição de destaque ocupada pela teoria de Tomás de Aquino nas discussões contemporâneas em filosofia do direito. Nesse sentido, a teoria tomista não pode mais ser negligenciada no contexto dos debates atuais sobre direito e justiça, podendo,

* Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected].

** Mestra e doutoranda em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bolsista da CAPES. Auditora interna na Controladoria-Geral do Estado de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

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assim, fornecer respostas para problemas de nosso tempo, como a fundamentação dos direitos humanos.

Palavras chave: Direito natural. Lei natural. Tomás de Aquino. Ética das virtudes.

1 INTRODUÇÃO

A ética das virtudes na perspectiva clássica tem sido resgatada por filósofos morais e filósofos do direito, através de reinterpretações das teorias de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino. Rosalind Hursthouse,1 diante de possíveis indagações sobre o porquê desta redescoberta, enumera temas que a filosofia moral moderna, polarizada por deontologistas (inspirados em Kant) e utilitaristas (derivados do pensamento de Bentham e J. S. Mill), ignorou ou colocou em segundo plano:

[...]motivos e caráter moral; [...] educação moral, sabedoria moral ou discernimento, amizade e relações de família, um conceito profundo de felicidade, o papel das emoções na nossa vida moral, e questões sobre que tipo de pessoa devo ser e como devo viver minha vida. E onde estes temas são discutidos? Pasmem, em Platão e Aristóteles.2

A partir dessa afirmação, filósofos contemporâneos têm se voltado para as teorias de Aristóteles e Tomás de Aquino, que fornecem descrições consistentes sobre a natureza humana, o direito, a justiça e outras virtudes morais. Isto posto, o objetivo do trabalho é apresentar o contexto geral da redescoberta contemporânea da filosofia do direito de Aristóteles e Tomás de Aquino, em especial, da teoria do direito natural tomista. Em primeiro lugar, será analisada, em linhas gerais, a reabilitação da teoria aristotélica das virtudes, promovida por autores como G. E. M. Anscombe e Alasdair MacIntyre. Em seguida, será abordada a reinserção da teoria do direito de Tomás de Aquino na filosofia jurídica contemporânea, por meio da obra de Jacques Maritain. Por fim, será apresentado o contexto da redescoberta da teoria do direito natural de Tomás de Aquino por filósofos contemporâneos que realizam novas e diferentes leituras da lei natural tomista. Pretende-se, assim, mostrar a posição de destaque ocupada pela teoria de Tomás de Aquino nas discussões contemporâneas em filosofia do direito.

2 A CRÍTICA À FILOSOFIA MORAL MODERNA E O RETORNO À ÉTICA CLÁSSICA: G. E. M. ANSCOMBE E ALASDAIR MACINTYRE

O renascimento da filosofia moral e jurídica de Tomás de Aquino iniciou--se no final do século XIX, na Europa, como veremos no capítulo a seguir. Porém, a redescoberta da teoria do direito natural de Aquino consolida-se quando filósofos morais e filósofos do direito, principalmente os de língua inglesa, procuram dar novos sentidos às teorias de Aristóteles e Aquino, em busca de respostas a problemas contemporâneos. Assim, a partir de meados do século XX, foi dado um novo impulso ao desenvolvimento da filosofia clássica,

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com a publicação de inúmeros estudos sobre os pensamentos de Aristóteles e de Tomás de Aquino.

Um marco definitivo do retorno à teoria de Aristóteles é o artigo de Ans-combe Anscombe (1919 – 2001), Modern Moral Philosophy, publicado em 1958, na revista Philosophy (volume 33). MacIntyre, que, em seguida, será um dos principais filósofos a defender a necessidade do resgate da ética aristotélico-tomista, admite a influência das ideias de Anscombe para a elaboração de sua tese.3

O texto de Anscombe impulsionou o desenvolvimento de uma teoria ética alternativa às concepções modernas dominantes - utilitaristas, kantianas e contratualistas. A autora faz uma crítica à filosofia moral moderna argumentando que os conceitos de obrigação e dever moral foram despojados do conteúdo que possuíam no contexto da ética aristotélica:

Não podemos, então, olhar para Aristóteles para qualquer elu-cidação do modo moderno de falar sobre a bondade “moral”, obrigação etc. E todos os escritores mais conhecidos sobre a ética nos tempos modernos, de Butler a Mill, parecem ter falhas como pensadores sobre o assunto, o que torna impossível esperar por qualquer esclarecimento sobre isso a partir deles .4

Anscombe revela que os sentidos dados para os termos como “dever”, “pre-cisar” ou “obrigação” nas teorias morais modernas – de Butler a Mill, passando por Hume, Kant e Bentham - equivalem a expressões como “estar obrigado a” ou “estar compelido a”. Isso significa que, segundo a Anscombe,5 a obrigação ou dever moral implica, no contexto das teorias modernas, no fato de alguém estar “obrigado” ou “compelido” pela lei ou por algo que é exigido por lei.

Nesse sentido, nas teorias modernas, o dever moral deriva, necessaria-mente, de uma autoridade legislativa que cria e impõe seu conteúdo. Anscombe6 afirma que houve uma distorção do conceito aristotélico de dever. No início desse processo, nos sistemas éticos cristãos, o papel de legislador cabia a Deus. A partir daí, nas teorias morais mais recentes, que se rejeitam a ideia de um le-gislador divino, a autoridade recai em outros elementos. Anscombe observa que, apesar dos esforços de filósofos, como Butler, Hume, Kant, Bentham e Mill, em fundamentar a obrigação moral, os conceitos de “dever” e “obrigação” presentes em suas teorias não possuem nenhum conteúdo, já que estão fora do contexto que os tornavam inteligíveis - a concepção legal de ética, derivada da crença na lei divina como fonte legislativa:

Ter uma concepção legal de ética é sustentar que o que é preciso para a conformidade com a falha das virtudes que é a marca de ser mau qua homem (e não meramente, digamos, qua artesão ou lógico) – que o que é preciso para isso, é exigido pela lei divina. Naturalmente não é possível ter tal concepção a menos que você acredite em Deus como um legislador; como judeus, estoicos e cristãos. Mas se tal concepção é dominante por tantos séculos, e depois é abandonada, é um resultado natural que os conceitos de

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‘obrigação’, de ser compelido ou exigido por uma lei, deve perma-necer apesar de ter perdido sua raiz. 7

Assim, Anscombe defende que os conceitos de obrigação e dever moral “deveriam ser descartados, se isso for psicologicamente possível, pois eles são sobreviventes ou derivados de sobreviventes de uma concepção de ética que já não existe, e são apenas prejudiciais sem ela”.8 Os conceitos de obrigação moral e dever moral não fazem sentido fora de uma concepção ética ligada a uma autori-dade legislativa. Por isso, segundo Anscombe,9 as teorias morais modernas são incoerentes internamente e não se diferem consideravelmente umas das outras.

Nesse sentido, há uma ruptura entre os conceitos utilizados pelos teóricos modernos e aqueles presentes na ética aristotélica. Para Aristóteles, o sentido de moral tinha relação com o que é justo ou injusto no caso concreto, em termos de virtudes e vícios, isto é, de caráter. Nas teorias modernas, o que é injusto se torna “errado moralmente” ou “ilícito”, vinculando-se a uma prescrição legal. Esse abismo entre as duas perspectivas, segundo Anscombe10, só poderia ser preenchido por uma descrição da ação humana que determinasse que tipo de característica consiste a virtude e, principalmente, por uma descrição da felicidade humana (eudaimonia). É por isso que, para Anscombe,11 filósofos da cultura pós-cristã que se propõe a elaborar uma ética secular devem reconsiderar Aristóteles e Platão.

MacIntyre (1929 -), partindo da ideia de Anscombe no ensaio de 1958, apresenta em Depois da Virtude (primeira edição de 1981; edição brasileira de 2003) a tese de que a linguagem da moralidade encontra-se fragmentada, destruída por uma verdadeira catástrofe, que levou à perda dos contextos que justificavam os conceitos utilizados no discurso moral moderno. Assim, MacIntyre aponta para a necessidade de “identificar e definir a moralidade perdida no passado”,12 ou seja, a ética aristotélica. Sobre a filosofia moral moderna, MacIntyre afirma:

Temos, na verdade, simulacros da moralidade, continuamos a usar muitas de suas expressões principais. Mas perdemos – em grande parte, se não totalmente – nossa compreensão, tanto teórica, quanto prática da moralidade (MACINTYRE, A fragmentação do discurso moral se manifesta, segundo MacIntyre, nas discordâncias intermináveis dos debates morais contemporâneos. Debates sobre a questão do aborto, a possibilidade da guerra justa e do conceito de justiça representam, segundo MacIntyre, a situação de desa-cordo moral incontornável no qual a filosofia moral se encontra. MacIntyre sustenta que os argumentos rivais apresentados nos debates, apesar de perfeitamente válidos, se baseiam em premissas incomensuráveis: “parece que não existe meio racional de garantir acordo moral em nossa cultura”13

Portanto, uma das características do discurso moral contemporâneo é a “incomensurabilidade conceitual dos argumentos adversários”14 Os argumentos invocados por cada posição rival são plenamente válidos. Porém, as premissas

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das quais derivam não possuem um ponto em comum, pois partem de conceitos completamente diversos uns dos outros. Isso impossibilita mensurar os argumen-tos para chegar a uma legitimação racional do debate.

No debate sobre a guerra justa, por exemplo, o argumento pacifista defende que nenhuma guerra pode ser justa, pois não há, especialmente no âmbito das guerras modernas, uma maneira confiável de distinguir entre combatentes e não combatentes; outro argumento afirma que só é possível alcançar a paz refrean-do possíveis agressores e, por isso, deve-se estar preparado para a guerra se não quiser sair derrotado; por fim, um terceiro tipo de argumentação defende que guerra justa é aquela que busca libertar os oprimidos.15 MacIntyre, analisando os argumentos apresentados no debate, afirma que, embora os argumentos sejam perfeitamente válidos, quando analisados isoladamente, suas premissas estão em permanente conflito: “as premissas que invocam justiça e inocência se opõem às premissas que invocam o êxito e a sobrevivência”.16

Dessa forma, MacIntyre sustenta que a única forma de tornar coerente o discurso moral é recuperar os conceitos da ética aristotélica, como virtude, vida boa, educação moral e racionalidade prática. Em seus textos mais recentes, MacIntyre recorre à teoria de Tomás de Aquino a fim de identificar as falhas do debate moral contemporâneo.

No ensaio Intractable Moral Disagreements,17 MacIntyre sustenta que somente será possível investigar, no contexto de uma comunidade ampliada de investi-gadores, os princípios morais válidos para toda a humanidade, se houver, de saída, uma vinculação das partes em desacordo teorético radical a um conjunto de regras de racionalidade prática. Para MacIntyre, essas regras morais, que são condição para a existência do debate, são idênticas aos preceitos da lei natural descritos por Tomás de Aquino.

MacIntyre, nas obras Justiça de Quem? Qual Racionalidade? e Dependent Ra-tional Animals: Why Human Beings Need the Virtues (1999), reforça a tese de que é necessário recuperar a ética aristotélico-tomista. Em Dependent Rational Animals, MacIntyre afirma que os seres humanos precisam das virtudes, enfatizando a vulnerabilidade e a incapacidade da vida humana. MacIntyre18 reconhece a vinculação entre o que ele chama de “biologia metafísica” de Aristóteles e sua descrição da ética. Dessa forma, MacIntyre19 pretende, observando a depen-dência do homem em relação aos outros, sustentar a necessidade das virtudes como o caminho do estado de dependência e vulnerabilidade para um estado de responsabilidade.

Outros autores têm abordado a ética das virtudes na perspectiva aristo-télica no contexto das discussões contemporâneas em filosofia moral. Filósofos como Martha Nussbaum (1947 -), Bernard Williams (1929 – 2003), Philippa Foot (1920 - 2010), Rosalind Hursthouse (1943 -) e Iris Murdoch (1919 – 1999) compõem o cenário da redescoberta da ética das virtudes aristotélica, e, em alguns casos, tomista.

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A reabilitação da ética aristotélica na filosofia moral contemporânea possi-bilitou o resgate da teoria ética e jurídica de Tomás de Aquino, em especial, sua concepção do direito e da lei natural. A partir do trabalho desses autores, surgiram novas reinterpretações das teorias de Aristóteles e Aquino. Portanto, a teoria do direito natural tomista tem recebido atenção de diversos estudiosos na busca de respostas para problemas morais contemporâneos, como os direitos humanos.

3 A TEORIA DE TOMÁS DE AQUINO E A FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA: MARITAIN E O REALISMO JURÍDICO CLÁSSICO

Teorias baseadas na tradição aristotélico-tomista têm ocupado um lugar de destaque nas discussões contemporâneas sobre direito, política e moral. A recente redescoberta de Tomás de Aquino começou a ocorrer a partir do final do século XIX entre pensadores católicos e teóricos seculares. O movimento começou na Europa, após a publicação da encíclica de Leão XIII, Aeterni Patris, em 1879, que incentivava uma nova leitura dos ensinamentos filosóficos e teológicos de Tomás de Aquino. A partir daí, houve o desenvolvimento de diversos estudos na teoria moral tomista. A princípio, essa tendência foi seguida pelos “neo-escolásticos”, “um movimento que honrava Aquino, mas estava ciente da pouca diferença entre ele e uma variedade de pensadores na ‘tradição escolástica’”.20 Assim, esse movimento inicial de redescoberta de Aquino, ocorrido na Europa, ainda não havia fornecido recursos suficientes para enfrentar as questões mais importantes discutidas pela filosofia contemporânea.

Clifford Kossel21 descreve o contexto do ressurgimento da filosofia moral de Tomás de Aquino entre o final do século XIX e o início do século XX. Kossel observa que, no primeiro momento de recuperação do pensamento tomista, destacavam-se os “restauradores” (retrievers), “pesquisadores que investigavam o texto, a linguagem, as fontes e o desenvolvimento dos escritos de Aquino para descobrir, o mais claro possível, seu pensamento genuíno”.22 Esses estudiosos foram importantes para um resgate do autêntico pensamento tomista, uma vez que possibilitaram uma melhor compreensão de seu contexto e de suas fontes.

Por outro lado, havia os “fomentadores” (developers) da teoria moral to-mista. Eles eram os

[...] pensadores criativos, cientes do trabalho dos restauradores e de sua fidelidade aos princípios e temas de Aquino, estavam preparados para explorar e desenvolver temas antigos de novas maneiras. [...] Seus escritos são particularmente valiosos hoje, pois eles anteciparam muitas questões atuais. ‘Ética das virtudes’, a prioridade da prudência, determinismo psicológico, novas visões da lei natural, a natureza da sociedade civil e suas relações com a Igreja, o status de um filósofo cristão.23

Dentre os estudiosos que desenvolveram a teoria de Tomás de Aquino, alguns tiveram um papel importante para o renascimento da filosofia moral to-

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mista nos círculos acadêmicos cristãos e seculares dos Estados Unidos, de acordo com Kossel:24 Jacques Maritain, Josef Pieper, Yves Simon e Dom Odon Lottin. Além destes, é importante citar Étienne Gilson, que contribuiu para inserir a teoria de Aquino no pensamento filosófico da época. Porém, seus estudos se concentraram nas áreas da ontologia e da epistemologia, tendo escrito pouco sobre moral e política. Sua análise comparativa entre o método epistemológico tomista e o método cartesiano tem importância para o esclarecimento do que seria o método realista de Tomás de Aquino.

A esses autores, pode-se acrescentar os trabalhos de Michel Villey e Javier Hervada, que têm contribuído para a consolidação do movimento que se tem chamado de “realismo jurídico clássico”. Nesse contexto, abordaremos, em primeiro lugar, o pensamento de Jacques Maritain representando o início do ressurgimento da teoria tomista na filosofia do direito contemporânea. Em seguida, será analisada a perspectiva do realismo jurídico clássico defendida por Michel Villey e Javier Hervada.

3.1 O humanismo de Jacques Maritain

Sobre a importância de Maritain para o resgate do pensamento de Aquino, Brian Shanley25 afirma que “o que distinguiu Maritain de outros tomistas e fez dele um dos gigantes da redescoberta tomista foi como ele demonstrou que um tomismo revitalizado poderia unificar e integrar a cultura contemporânea”.26 Maritain escreveu sobre metafísica, epistemologia, estética, política e moral, sempre buscando articular a filosofia de Tomás de Aquino com a cultura de seu tempo. Kossel observa que “Maritain levou Aquino para fora do mosteiro para o espaço público acadêmico, onde o próprio Tomás tinha estado na Universidade de Paris”.27 A popularidade de Maritain não se restringe à Europa e aos Estados Unidos. Seu pensamento é difundido também na América do Sul, em especial, na Argentina e no Brasil.

Jacques Maritain reabilitou o humanismo de inspiração tomista, elaborando o que ele chamou de “humanismo integral”.28 O livro Humanismo Integral, publicado na França em 1936, é uma obra de filosofia política e moral. O humanismo proposto por Maritain preocupa-se com a justiça social, ao mesmo tempo em que defende uma concepção de pessoa aberta aos problemas da sociedade contemporânea.29 A referência é o homem, porém, o humanismo transcende a pessoa humana:

A pessoa humana é um ser consciente, racional e livre e, por isso mesmo, é também um ser social, que só em companhia de seus se-melhantes encontra as condições necessárias para desenvolvimento de sua consciência, racionalidade e liberdade, características que o distinguem dos outros animais.30

Na doutrina de Maritain, o ser humano age no mundo, transformando--o. Porém, o ser humano não é apenas material. A personalidade é a integração de todas as características humanas, sejam materiais sejam espirituais. Sobre o humanismo, Maritain afirma:

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O humanismo tende essencialmente a tornar o homem mais verdadeiramente humano e a manifestar sua grandeza fazendo-o participar de tudo o que pode enriquecer na natureza e na história (...); ele exige ao mesmo tempo que o homem desenvolva as vir-tualidades nele contidas, suas forças criadoras e a vida da razão, e trabalhe por fazer das forças do mundo físico instrumento de sua liberdade.31

Pozzoli,32 em seu estudo sobre a teoria do direito de Maritain, enumera os princípios da sociedade política que resultaria da aplicação do humanismo integral:

• Bem comum, revertido sobre as pessoas;• Autoridade política dirigida aos seres humanos livres, em direção

do bem comum;• Reconhecimento de uma moralidade intrínseca do bem comum;• Inspiração personalista, comunitária e pluralista da organização

pessoal;• Ligação orgânica da sociedade civil com a religião, sem admitir-

-se, contudo, a opressão religiosa e o clericalismo;• Reconhecimento do direito de justiça da amizade cívica e da

igualdade, que tal organização social estivesse a comportar, assim como dos princípios essenciais da estrutura, da vida e da paz da sociedade;

• Reconhecimento da obra comum a realizar, obra esta que encon-traria inspiração no ideal de liberdade e fraternidade, à medida que tendesse a instaurar, no tempo do mundo, a concretização de uma cidade fraterna, em que o homem apareceria como libertado da escravidão e da miséria.33

Sua preocupação com os valores culturais de seu tempo reflete no seu método de escrever. Maritain, como observa Kossel,34 consciente da complexi-dade de linguagem e da diversidade de culturas e situações sociais, repete ideias em termos diferentes e com vários exemplos contemporâneos e históricos. Ele incorpora em suas propostas o reconhecimento de um pluralismo, que envolve tanto uma diversidade de autoridades e autonomias, como a variedade de tradi-ções, religiões e culturas.35

Nesse sentido, Maritain defende uma democracia pluralista e “persona-lista”.36 Essa democracia renovada, ao mesmo tempo em que reconhece que os homens vivem nos mais diferentes contextos filosóficos e religiosos, deve traba-lhar para a busca do bem comum. Isso implica em um “acordo fundamental de mentes e vontades”37 sobre os princípios básicos da vida em comum de uma sociedade de homens livres.

Maritain deriva a ideia de direitos da descrição tomista de natureza hu-mana. No livro O homem e o Estado (1951; edição brasileira de 1952), Maritain reinterpreta os escritos de Aquino, em especial sua descrição do direito natural, para encontrar fundamentos para uma elaboração teórica dos direitos humanos. Partindo da ideia de natureza humana, que é a mesma em todos os seres huma-

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nos, Maritain38 defende que o homem possui determinados fins exigidos por sua natureza. A lei natural, nesse sentido, nada mais é do que aquilo que realiza os fins necessários e essenciais da natureza humana. Para Maritain, portanto, os direitos humanos derivam diretamente da lei natural: “O direito do homem de existência, de liberdade individual e de busca da perfeição da vida moral, pertence, rigorosamente falando, à lei natural”.39

Seu envolvimento com os direitos humanos não aconteceu apenas no plano teórico em obras como Humanismo integral (1945), Os direitos do homem (1942; edição brasileira de 1967) e O homem e o Estado (1952). Maritain se envol-veu diretamente na elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela ONU.

Filósofos como Maritain abriram caminho para a redescoberta da filosofia moral e do direito de Tomás de Aquino, na Europa e, depois, nas Américas. A partir de meados do século XX, surgem inúmeros estudos na filosofia moral e do direito de Tomás de Aquino. O realismo jurídico clássico surge nesse contexto, por meio do pensamento de Villey e, mais recentemente, de Hervada, como será estudado a seguir.

3.2 O realismo jurídico clássico: Michel Villey e Javier Hervada

O realismo jurídico clássico é um movimento recente na história do pensamento do direito, inspirado nas teorias da justiça de Aristóteles e Tomás de Aquino. Não se confunde com o realismo jurídico de autores como Alf Ross e Oliver Holmes. A chamada “escola realista” do direito40 vincula-se, em sua essência, ao positivismo jurídico. Essa perspectiva afirma, em linhas gerais, que o direito “é uma realidade social, uma realidade de fato, e sua função é ser aplicado: logo, uma norma que não seja aplicada, isto é, que não seja eficaz, não é, consequentemente, direito”.41 O direito, assim, define-se por sua forma e sem qualquer referência a valores como a justiça: é um conjunto de regras que são efetivamente seguidas numa determinada sociedade.42 Trata-se, portanto, de uma corrente de pensamento oposta àquela proposta por Villey e Hervada, de influência aristotélico-tomista.

O termo “realismo”, na filosofia, é uma forma de compreender a realidade que se opõe ao “nominalismo” e ao “idealismo”. O problema essencial é saber se existe, fora da mente, entidades de um tipo diferente dos indivíduos que encontramos na nossa existência cotidiana.43 A disputa entre as duas visões é um problema recorrente na história da filosofia, sendo a causa da discordância entre Platão e Aristóteles em relação à existência das Ideias ou Formas.44 Na filosofia medieval, ensina Anthony Kenny,45 realistas e nominalistas discutiam se a categoria dos universais são realidades ou meros símbolos.

Aristóteles e Tomás de Aquino defendiam que não existem ideias ou for-mas imateriais, como pensava Platão. Para eles, existem, sim, ideias universais ou essências. Porém, essa forma ou essência não está separada da matéria. A essência

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existe individualizada em cada coisa, no mundo real. O universal é, portanto, encontrado objetivamente na realidade.

Assim, o conhecimento se dá a partir dos dados apurados pelos sentidos, abstraídos pelo intelecto humano. Segundo o realismo aristotélico-tomista, a essência está nas coisas e não fora delas. Nesse sentido, o realismo jurídico compreende o direito como uma realidade existente nas coisas e não uma mera criação do homem.

Villey, filósofo francês e historiador do direito, foi um dos principais defensores do realismo jurídico clássico. Em obras como A formação do pensa-mento jurídico moderno (2009), A filosofia do direito (2008) e O direito e os direitos do homem (2007), Villey percorre a história do pensamento jurídico para explicitar os erros da filosofia do direito moderna. Sua análise histórica do direito tem como referência constante o pensamento de Tomás de Aquino. Segundo Villey, o conceito de direito, ao longo da história, sofreu um processo de transformação principalmente a partir da filosofia nominalista de Guilherme de Ockham. O direito, que na filosofia clássica significava o justo em cada caso, uma relação objetiva de justiça, reduz-se, na filosofia moderna, ao direito subjetivo, um poder individual. Nesse contexto, os direitos humanos são frutos dessa visão distorcida do direito.46

Sua tese é, portanto, uma reação ao individualismo exacerbado das so-ciedades contemporâneas que se revela no pensamento jurídico moderno. O direito, na modernidade, é essencialmente direito subjetivo, reduzindo-se a um poder individual. Segundo Villey, a teoria moderna do direito consolida-se com o pensamento de Hobbes, para quem o direito são regras, leis ordenadas exclusi-vamente pelo Estado.47 Sobre a distorção do conceito de direito promovido pela doutrina positivista, Villey afirma:

Nunca terei dito o suficiente sobre todos os defeitos dessa teoria, todos os pontos em que ela contradiz a realidade jurídica (que, de novo, a filosofia nos ensina a preferir às representações enganosas dos sistemas idealistas): o monopólio por ela instituído do direito estatal, embora possa haver direito sem legislação estatal; o arbítrio que concede ao soberano, acalentando a ilusão de que este agirá racionalmente; a análise simplista da atividade judiciária que ela comporta; o esquecimento, o sacrifício total de toda justiça distri-butiva etc.48

Villey defende que o sentido autêntico do direito é aquele existente no pensamento clássico. Isso implica um resgate da concepção de direito aristotélico--tomista e da jurisprudência romana. O direito, no sentido clássico, significa a coisa justa (res justa) e tem seu fundamento na natureza. Dessa forma, o direito encontra-se nas coisas, na realidade externa ao homem. É o objeto da justiça, sendo esta, a justiça, a virtude que consiste em dar a cada um o que lhe é devido. O direito tem um sentido objetivo, pois “é a ordem, a harmonia, à qual tende a atividade do homem ‘justo’.”.49 Trata-se, portanto, de uma relação de justiça:

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“é a relação mais bem ordenada, na qual se reconhece o valor da ordem em que estão dispostas as coisas repartidas entre as pessoas.50

Sobre a necessidade de retornar à concepção clássica de direito, a fim de escapar das distorções do pensamento jurídico moderno, Villey afirma, no fechamento de A formação do pensamento jurídico moderno:

Não vejo, para nós juristas, outro remédio senão remontar na his-tória até o século em que se deu essa revolução, nessa encruzilhada em que os modernos, a nosso ver, perderam o rumo. E retomar a estrada que equivocadamente eles abandonaram: a do realismo clássico.51

Mário Bigotte Chorão,52 ao analisar o legado de Michel Villey, afirma que o verdadeiro realismo jurídico deve ser “integral (não sacrifica qualquer parcela ou faceta do direito), ultramoderno (e não apenas ‘antimoderno’) e personalista (está a serviço da pessoa humana, mas sem se confundir com qualquer idealismo, subjectivismo ou individualismo de cariz mais ou menos antropocêntrica)”.53

Em relação a Jacques Maritain, que, em certo sentido, também poderia ser chamado de realista jurídico clássico, Villey diverge em alguns pontos. Maritain acolhe as dimensões normativista (como conjunto de normas) e subjetiva (como poder ou faculdade do homem) do direito, enquanto Villey defende que o sen-tido verdadeiro do direito é seu sentido objetivo.54 Mas a principal divergência de Villey em relação a Maritain é a defesa deste dos direitos do homem. Villey não reconhece a existência dos direitos humanos, pois, para ele, são produtos artificiais de construções teóricas modernas como consequência da transformação do conceito de direito em um poder individual.

Outro autor que defende o realismo jurídico clássico como forma de superar o positivismo jurídico é Hervada, filósofo espanhol. Seus livros mais importantes são Introdução crítica ao direito natural (1981), Lições propedêuticas de filosofia do direito (1992; edição brasileira de 2008) e O que é o direito? A moderna resposta do realismo jurídico (2002).

Hervada é um crítico do positivismo jurídico e das teorias ditas pós--positivistas. No prólogo do livro Lições propedêuticas de filosofia do direito (2008), Hervada sustenta:

O autor entende que o positivismo normativista – em suas variantes formalistas e sociologistas – é uma etapa mórbida da ciência jurídica em fase de superação; e é insensível às ciladas do pós-positivismo, que em sua opinião mais agrava do que cura a doença. Pelo contrário, o autor está convencido da necessidade de voltar ao pensamento jurídico clássico, a Aristóteles, aos juristas romanos e a Tomás de Aquino. E, é claro, à metafísica. Justamente ao pensamento pelo qual a modernidade mostrou um profundo e visceral desdém, acompanhado – é preciso dizer tudo – de uma não menos profunda ignorância sobre ele.55

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Ao direcionar parte de seus escritos aos estudantes de direito, sua principal contribuição é difundir a teoria jurídica clássica explicitando os conceitos básicos da doutrina aristotélico-tomista. Hervada afirma que o livro Lições propedêuticas de filosofia do direito foi escrito “com o propósito de divulgar e repristinar em sua pureza o realismo jurídico clássico, defrontando-o com os problemas atuais e em diálogo – sempre que possível – com outras correntes”.56

Hervada, na mesma linha de Villey, defende um conceito de direito vin-culado à natureza das coisas e à natureza humana. Assim, a prática do direito refere-se a coisas concretas:

Quando falamos da justiça e do justo, não estamos fazendo referên-cia a ideias mais ou menos vagas ou não-concretas. (...) O justo é o cumprimento preciso das leis, o pagamento exato pelo devedor, a pena aplicada ao delito de acordo com as leis penais, o pagamento do salário ajustado etc. O justo é, por sua natureza, uma coisa con-creta e determinada. E, se algumas vezes se apresenta como obscura ou difícil, a coisa é determinável mediante o processo judicial.57

Esta definição de direito implica a vinculação da arte jurídica a duas vir-tudes: a justiça e a prudência. A virtude moral da justiça, segundo Santo Tomás de Aquino, “é o habitus, pelo qual, com vontade constante e perpétua, se dá a cada um o seu direito”. (Suma Teológica, IIa IIae, q. 58, a. 1). A prudência, por sua vez, é uma virtude intelectual, que consiste na reta razão, encarnada na figura do homem prudente, que orienta o agir humano. A prudência, como define Hervada, é “a virtude do correto agir moral”, que “dá a regra da ação e é a que guia a força da vontade”.58

Nessa perspectiva, a arte jurídica é a arte própria do homem justo e pruden-te, que quer e sabe dar a cada um o que lhe é devido. De acordo com Hervada:

Se a ação jurídica ou ação justa consiste em dar a cada um o seu, seu direito, o qual é obra da justiça – baseada na vontade -, o saber agir corretamente – saber dar a cada um o seu no momento e prazo adequados – é próprio da prudência jurídica ou jurisprudência.59

Hervada desenvolve o conceito de direito natural, na perspectiva do realis-mo jurídico clássico. Para ele, o direito natural não deve ser entendido como um sistema paralelo ao direito positivo, como defende o jusnaturalismo moderno. Compreendido dessa forma, o direito natural reduziu-se a um sistema moral.60 Porém, segundo o realismo jurídico clássico, o direito natural é direito vigente, assim como o direito positivo e ambos formam uma unidade complexa e com elementos diversos.61 Hervada define o direito natural como “o núcleo de juri-dicidade natural que está na base e no fundamento de todo sistema jurídico”62

Nesse sentido, apesar de algumas diferenças, Villey e Hervada possuem o mesmo comprometimento com as principais premissas do pensamento jurídico clássico, em especial, da teoria de Tomás de Aquino. Ambos contribuem para o resgate da filosofia do direito tomista. A seguir, serão analisados estudos recentes

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que buscam reinterpretar especificamente a teoria do direito natural de Aquino, principalmente sua elaboração da lei natural (lex naturalis).

4 O DIREITO NATURAL DE TOMÁS DE AQUINO: RELEITURAS CON-TEMPORÂNEAS

A ideia de direito natural é, como afirma Michael Crowe,63 talvez tão antiga quanto a própria filosofia. Porém, a história do direito natural, como elaboração teórica, é marcada por momentos que oscilam entre o prestígio e o esquecimento. No século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, filósofos morais e filósofos do direito passaram a discutir sobre a fundamentação de conceitos morais, na busca de critérios consistentes para ambiguidades e discordâncias morais. Assim, ressurge um interesse na teoria do direito natural no final do século passado, entre filósofos do direito. Robert P. George, que, na década de 1990, editou o livro Natural Law Theory: Contemporary Essays, resume o cenário desse renovado interesse na teoria do direito natural:

Encontra-se uma variedade notável de teorias do direito natural disponíveis no mercado de ideias atual. Há teorias do direito natural “liberais” e “conser-vadoras”, assim como “procedimentais” e “substantivas”. Algumas se adequem perfeitamente dentro da tradição de Aristóteles e Aquino, outras se relacionam com essa tradição apenas remotamente, se existe alguma relação. Alguns teóri-cos do direito natural propõem identificar princípios básicos da racionalidade prática e moralidade e derivar desses princípios normas para orientar as decisões de legisladores e, em alguns casos, juízes. Outros procuram guiar interpretação, racionalidade e julgamento legais na base de uma supostamente necessária co-nexão entre direito (ou legalidade) e moralidade.64

No contexto das recentes discussões sobre o direito natural dentro da filosofia do direito contemporânea, a teoria de Tomás de Aquino vem sendo reinterpretada sob diferentes perspectivas. Os principais autores envolvidos nestes debates são John Finnis, Germain Grisez, MacIntyre, Jean Porter e Ralph McIner-ny. Além destes, outros autores têm acrescentado novas formas de compreender o direito natural tomista, como Pamela Hall, Anthony Lisska, Henry Veatch.

Neste trabalho, serão apresentadas algumas das principais discussões em torna da teoria do direito natural de Tomás de Aquino. Pretende-se apresentar algumas linhas de interpretação da teoria, para apresentar o contexto da redes-coberta da teoria tomista e apresentar as principais discussões que envolvem a descrição de Aquino do direito natural e da lei natural.

Portanto, o trabalho se concentra em três releituras diferentes do direito natural tomista. A primeira será a proposta de Hall, que sustenta a necessidade de interpretar a lei natural dentro de todo o contexto do esquema da Suma Teológica. A principal implicação dessa afirmação é reconhecer o vínculo neces-sário entre lei natural e a virtude da prudência. Outra possível interpretação da teoria do direito natural de Aquino, desenvolvida por Lisska, é fundamentar sua

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elaboração da lei natural em uma descrição metafísica da realidade e dos seres humanos. Lisska afirma que a lei natural tomista baseia-se em uma ética natu-ralista, pressupondo a teleologia aristotélica e uma compreensão metafísica da natureza humana. Em seguida, será analisada a teoria de Finnis, que, ao lado de Grisez, elaborou uma nova teoria de direito natural, partindo da reconstrução da filosofia clássica de Aristóteles e Tomás de Aquino. Sua tese marcou a discussão em torno da redescoberta do direito natural e da filosofia clássica

4.1 Lei natural e prudência: Pamela Hall

Fergus Kerr, em After Aquinas: Versions of Thomism (2002), destaca a pro-posta de Hall como “uma das discussões recentes mais interessantes” ao abordar as releituras contemporâneas da lei natural de Tomás de Aquino.65 Hall, em Narrative and the Natural Law: An Interpretation of Thomistic Ethics (1994), defende uma interpretação narrativa da lei natural de Aquino, reflete sobre os recentes estudos na ética de Tomás de Aquino e constata que duas posições opostas pre-dominam: de um lado, o Tratado da Lei, no qual se encontra a descrição da lei natural, é estudado isoladamente, sem referência ao restante da Suma Teológica; por outro lado, as doutrinas teológicas da graça e das virtudes supernaturais são abordadas fora do contexto da elaboração da lei natural de Aquino.66 Hall pretende reinterpretar a ética de Tomás, conectando a lei natural e as demais virtudes – naturais e teológicas.

A vinculação proposta por Hall entre a lei natural, situada no Tratado da Lei (Suma Teolológica Ia-IIae) e as virtudes (Suma Teológica IIa-IIae), traz algumas consequências. A principal delas é a conexão necessária entre a lei natural e a virtude da prudência. Hall responde a autores como Nussbaum, Leo Strauss e Daniel Mark Nelson, que consideram a lei natural tomista um padrão de moralidade inferior à prudência.

Tomás de Aquino, na Suma Teológica, apresenta dois padrões de mo-ralidade: a racionalidade inerente à lei natural (lex naturalis), apresentada no Tratado da Lei (Suma Teológica, Ia IIae q. 90 ss.) e a racionalidade inerente ao direito natural (ius naturale) e às virtudes (Suma Teológica, IIa IIae). A lei natural constitui um conjunto de preceitos morais que orientam a ação humana para o bem. É, nas palavras de Aquino, a participação da lei eterna na criatura racional. (Suma Teológica, Ia IIae, q. 91, a. 3). A lei natural é, portanto, o modo como o ser humano participa da ordenação divina do mundo.

O direito natural (ius naturale) é apresentado na Suma Teológica no con-texto do estudo sobre as virtudes morais. Ao descrever a virtude da justiça, Tomás de Aquino define o que é direito (ius). Nesse sentido, a justiça é “o habitus, pelo qual, com vontade constante e perpétua, se dá a cada um o seu direito” (Suma Teológica, IIa IIae, q. 58, a. 1). O direito é, portanto, objeto da justiça: “o nome de justo, que caracteriza a retidão que convém à justiça, dá-se àquilo que a ação justa realiza”. (Suma Teológica, IIa IIae, q. 57, a. 1).

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A prudência (Suma Teológica IIa-IIae, q. 47 ss) é uma das virtudes cardeais. A prudentia de Tomás de Aquino, assim como a phronesis aristotélica, pertence à razão prática. Assim, não atua na vontade, ou na razão intelectual: é o conhe-cimento sobre o agir em direção a um fim. Seu objeto, portanto, são as coisas singulares, às quais o prudente aplica os princípios universais.

Os autores citados por Hall consideram a prudência um padrão ético superior à lei natural, ao afirmarem que a lei natural constitui um conjunto in-flexível de preceitos. A prudência, segundo estes autores, permitiria uma maior adequação da norma às circunstâncias particulares. Nussbaum, por exemplo, conforme observado por Hall,

[...] parece sugerir que, por qualquer aderência inflexível e irrealista a regras, os seguidores de regras, por sua desatenção aos dados particulares de uma situação, podem produzir eventos ou relações que trazem danos a eles mesmos e a outros67

Em resposta a essas críticas, Hall afirma que prudência e lei natural não são padrões éticos rivais. Ambos estão necessariamente vinculados. A prudência é a virtude que possibilita a aplicação dos preceitos gerais prescritos pela lei natural. É por meio dela que será possível a aplicação da lei natural às contingências do caso particular. Por outro lado, a prudência precisa das inclinações naturais que são a base da lei natural de Aquino:

As inclinationes fornecem direção e guia para as deliberações da prudência; elas fornecem a base para nosso conhecimento do bem natural. Mesmo que, para ter certeza, não podemos adequadamen-te saber qual é nosso bem, independentemente da prudência, a prudência não opera sozinha. [...] A lei natural, como a forma de Tomás descrever a teleologia de nossas naturezas em direção ao nosso bem natural, fornece um fundamento para as virtudes e parte do objeto sobre a qual a prudência delibera.68

Dessa forma, a lei natural fornece os critérios para a ação humana em conexão com a prudência, que possibilita a aplicação de seus preceitos. A pru-dência, por sua vez, depende da teleologia inerente à lei natural e às inclinações naturais, pois age orientada pelos fins humanos exigidos pela natureza humana. Assim, para Hall, ao contrário de serem padrões incompatíveis, a prudência e a lei natural são interdependentes no esquema ético de Tomás de Aquino.

4.2 Lei natural e natureza humana: Anthony Lisska

Algumas releituras da teoria do direito natural de Tomás de Aquino ca-minham em direção à afirmação de um naturalismo ético, segundo a qual a lei natural de Aquino pode ser compreendida desvinculada de sua teologia cristã.69 Um dos autores que representa essa linha de interpretação é Anthony Lisska, em Aquinas’s Theory of Natural Law: An Analytic Reconstruction (1996). Lisska endossa parte das afirmações de Henry Veatch, em For an Ontology of Morals (1971) e Hu-

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man Rights: Fact or Fancy? (1985), para afirmar a necessidade de reconhecer uma ontologia moral em Tomás de Aquino. Neste trabalho, será abordada a tese de Anthony Lisska como forma de apresentar uma das releituras possíveis da teoria do direito natural tomista.

Lisska sustenta que a lei natural é um conceito filosófico que oferece uma resposta para a questão: o que é necessário teoricamente a fim de tornar a lei possível? Não é algo situado dentro do coração humano ou na mente de Deus.70 Para Lisska, Tomás de Aquino responde, retornando a Aristóteles: “a possibili-dade do ato de legislar é fundamentado em uma teoria da natureza humana”.71

Lisska72 afirma que um dos pressupostos para se compreender a teoria do direito natural de Tomás de Aquino é admitir a possibilidade de uma metafísica realista, consistente em uma verdadeira antropologia filosófica derivada de Aris-tóteles. Assim, Lisska se apoia em uma “metafísica da finalidade”, característico da teleologia aristotélica:

A metafísica da finalidade sugere que os fins apropriados à natureza humana são incorporados na própria natureza ou essência que determina a pessoa humana. O fim não é um ‘bem não-moral’ a ser alcançado, comum a muitas teorias teleológicas como o utili-tarismo clássico.73

Por outro lado, reconhecer uma “metafísica da moral” não quer dizer que os conceitos são construídos racionalmente, a partir do nada. As categorias metafísicas, na teoria de Aquino, pertencem à realidade. Assim, a teoria do direito natural de Tomás de Aquino parte do reconhecimento da existência de propriedades essenciais encontradas nas naturezas de indivíduos particulares.74 Uma essência, segundo Lisska, determina a natureza de um indivíduo particular que pertence a uma espécie natural.75 Essas propriedades essenciais são “disposicionais”. Isso quer dizer que as qualidades inerentes ao ser humano são potencialidades, pois se dirigem a um determinado fim. Portanto, Aquino elabora sua ontologia com base na teleologia aristotélica.

Para Lisska,76 Tomás concebe a natureza humana de forma dinâmica, isto é, como um conjunto de propriedades “disposicionais”. A essência humana se movimenta em direção ao telos ou fim específico do homem. O fim é, essencial-mente, um bem e existem tantos bens quantos forem os fins.77 Este é o funda-mento realista da ética naturalista de Tomás de Aquino.

Assim, segundo Lisska,78 na teoria tomista, a moralidade tem seu fun-damento, não na vontade de Deus, mas na natureza humana. Uma ação é moralmente incorreta, não porque Deus ordenou como tal, mas porque essa ação impede, de alguma forma, a realização das propriedades que constituem o conteúdo da natureza humana. Dessa maneira, a lei natural tomista pode ser compreendida conceitualmente e estruturalmente sem uma vinculação necessária com a lei eterna. Aquino concebe a lei eterna como a ordenação divina do mun-do. Lisska79 afirma que “a descrição de Aquino da lei natural pode ser elucidada

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consistentemente sem ser ‘fundamentalmente baseada e justificada por meio da existência de um ser supremo benevolente’”.80 Portanto, a lei natural de Tomás de Aquino se fundamenta na natureza humana e na razão prática humana, não sendo necessário recorrer a pressupostos teológicos.

4.3 Lei natural sem natureza: John Finnis

John Finnis em Natural Law and Natural Rights81 busca dar sua própria res-posta aos problemas envolvidos nas inúmeras teorizações a respeito da lei natural e dos direitos naturais. Finnis contribuiu para reintroduzir a teoria tomista nas discussões contemporâneas de filosofia do direito. Sua teoria, desenvolvida com Germain Grisez, é comumente chamada de “nova teoria do direito natural”. Fin-nis admite a influência da tradição clássica, especialmente de Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino para elaborar sua própria teoria do direito natural. Porém, é consenso entre os estudiosos que sua teoria deriva essencialmente da teoria do direito natural de Aquino.82

A repercussão de seu trabalho suscitou críticas dos próprios defensores da teoria tomista, que o acusam de afastar dos princípios fundamentais sustentados por Tomás de Aquino. Neste trabalho, portanto, pretende-se apresentar as linhas gerais da teoria de Finnis na obra Lei Natural e Direitos Naturais.

Finnis afirma que o escopo de sua teoria é fornecer critérios para a reflexão prática daqueles envolvidos no agir humano.83 Dessa forma, elabora uma teoria que pretende orientar a reflexão que precede as práticas humanas em direção às decisões moralmente boas, afastando o homem das ações imorais. Os critérios fundamentais para esta reflexão prática são os princípios de direito natural, deter-minados pelos bens humanos básicos e pelas exigências da razoabilidade prática.

A estrutura de sua teoria pauta-se nos conceitos de “bem humano básico” e “razoabilidade prática”. Os bens ou valores humanos básicos são aspectos primá-rios do bem estar individual, apreendidos pelo raciocínio prático. Esses valores constituem o critério fundamental para o agir humano e serão realizados por meio da razoabilidade prática. Finnis enumera sete bens humanos básicos que, segundo ele, compõem uma lista taxativa e não possuem, a princípio, qualquer hierarquia entre si. São eles: a vida, o conhecimento, o jogo, a experiência estética, a sociabilidade, a razoabilidade prática e a religião. Os demais bens humanos importantes para a reflexão prática sobre a conduta humana são derivações ou combinações dos valores por ele enumerados.

A razoabilidade prática é, em si mesma, um bem humano básico. Porém, é um valor humano especial, já que constitui o meio pelo qual o homem conhece e aplica, em sua conduta concreta, os princípios derivados do conhecimento dos demais bens humanos. Nas palavras de Finnis, “a pessoa participa precisamente dando forma à própria participação nos outros bens básicos, direcionando com-promissos, a seleção de projetos e o que ela faz ao levá-los a cabo”.84 Nesse sentido, os requisitos de razoabilidade prática “expressam o ‘método da lei natural’ de

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elaborar a ‘lei natural’ (moral) a partir dos primeiros (pré-morais) ‘princípios da lei natural’”.85 Em suma, a razoabilidade prática é o bem que nos permite avaliar se uma decisão é ou não correta moralmente no contexto de sua aplicação concreta.

Os bens humanos básicos são, para Finnis, autoevidentes e não deriváveis. Seu conhecimento dispensa qualquer premissa: os “princípios de razoabilidade teórica não são demonstráveis, pois são pressupostos ou empregados em tudo o que consideraríamos como demonstração”.86 Segundo a teoria de Finnis, os bens humanos básicos e os princípios de direito natural que deles se originam, não derivam de qualquer formulação factual sobre a natureza humana. O processo de determinação das normas morais inicia-se com a elucidação dos bens humanos básicos e não com uma descrição fática da essência humana e das inclinações que a constituem. O conhecimento teórico acerca da natureza humana, nesse sentido, é apenas o produto final desta operação. A determinação dos bens humanos é, assim, objetiva, pois não se relaciona a qualquer “convenção ou a propósitos individuais de ninguém”.87 Ao analisar um dos bens humanos básicos, Finnis exemplifica que “não se pode inferir validamente o valor do conhecimento a partir de um fato (se for fato) de que ‘todos os homens desejam conhecer’”.88

Para ele, incluir uma análise da realidade nesse processo seria incorrer na chamada falácia naturalística. Finnis acredita ser correta a tradicional crítica con-tra as teorias do direito natural segundo a qual não se pode derivar uma norma a partir de um fato. Com seu método de determinação dos princípios de direito natural, Finnis escapa da inferência ilícita de fatos para normas:

Simplesmente não é verdade que ‘qualquer forma de teoria da moral baseada no direito natural acarreta a crença de que as pro-posições a respeito dos deveres e obrigações do homem podem ser inferidas de proposições a respeito de sua natureza.89

Para Finnis, a teoria do direito natural de Tomás de Aquino também não incorre na chamada falácia naturalista. A teoria tomista, segundo ele, reforça sua tese, já que os princípios primeiros do direito natural, segundo Santo Tomás, são per se nota – evidentes em si mesmos – e indemonstráveis. (Suma Teológica, Ia IIae, q. 94, a. 2). Além disso, o critério de conformidade ou oposição à natureza humana é a razoabilidade: “o bem é estar de acordo com a razão, e o mal é estar fora da ordem da razoabilidade”. (Suma Teológica, Ia IIae, q.94). Dessa forma, Finnis sustenta que os princípios primeiros do direito natural, de acordo com a teoria tomista, não podem ser demonstrados por meio de nenhuma referência à natureza humana, precisamente porque não são derivados e, sim, autoevidentes.

A teoria ética sustentada por Finnis não é, portanto, derivada da metafísica ou da antropologia. Ele afirma que:

[...] na “ordem ontológica”, sem dúvida, “a essência da alma fun-damenta as potências, as potências fundamentam os atos, e os atos fundamentam o conhecimento de objetos”. Mas se você perguntar como conhecemos a essência ou natureza humana, a ordem será

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afirmada pelo próprio Aristóteles: é preciso, primeiramente, conhe-cer os objetos, e então pode-se adequadamente conhecer os atos humanos característicos, e ENTÃO as potencialidades humanas, e ENTÃO a essência ou natureza humana. E o(s) objetivo(s) dos atos humanos são os bens inteligíveis que fazem sentido para alguém ao escolher o que fazer.90

Em outras palavras, a natureza humana é conhecida por meio da estipu-lação dos bens a serem perseguidos na ação humana e não o contrário. Finnis, assim, rejeita o reducionismo empreendido, segundo ele, pelas teorias de direito natural que, nessa perspectiva, teriam reduzido os valores humanos a fatos sobre a natureza humana. Lisska (1996, p. 147) afirma que, dessa forma, Finnis, além de remover a principal objeção ao jusnaturalismo de sua tese - a falácia naturalística -, retira a carga metafísica da análise do direito natural que a tornou inaceitável para o pensamento do século XX.

5 CONCLUSÃO

Um interesse renovado pelas teorias morais de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, a partir do final do século XX, trouxe um novo ânimo às discussões filosóficas e jurídicas. A redescoberta da ética clássica tem ganhado cada vez mais destaque na literatura especializada, mormente em publicações em língua inglesa. Autores como Anscombe e MacIntyre, reconhecendo as limitações das teorias éticas modernas, voltaram-se para a filosofia clássica em busca da elucidação de conceitos não explicados pelas teorias iluministas e pós-iluministas.

Nesse contexto, o trabalho pretendeu apresentar os principais aspectos das novas releituras da teoria do direito natural de Tomás de Aquino. Em primeiro lugar, foi abordado o retorno à ética clássica, como o contexto que possibilitou a consolidação do ressurgimento da teoria moral tomista. Em seguida, foi analisado o processo de resgate da teoria de Tomás de Aquino no campo da filosofia do direito. Enfim, foram apresentadas reinterpretações contemporâneas da teoria do direito natural de Tomás de Aquino, como forma de explicitar as principais discussões atuais envolvendo o tema.

Dessa forma, foi possível mostrar que filósofos contemporâneos têm re-corrido à teoria tomista para enfrentar questões morais de nosso tempo, como os direitos humanos. Autores como Maritain, Finnis e MacIntyre inseriram a teoria tomista nos debates sobre ética e direito, buscando, na filosofia clássica, a determinação de valores morais comuns a toda a humanidade. Nesse sentido, a teoria tomista não pode mais ser negligenciada no contexto dos debates atuais sobre direito e justiça, podendo, assim, fornecer respostas para problemas de nosso tempo, como a fundamentação dos direitos humanos.

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1 HURSTHOUSE, Rosalind. On virtue ethics. Oxford: Oxford University Press, 1999.2 Motives and moral character; (…) moral education, moral wisdom or discernment, friendship and family

relationships, a deep concept of happiness, the role of emotions in our moral life, and the questions of what sort of person I should be, and how I should live. And where do we find the topics discussed? Lo and behold, in Plato and Aristotle. (HURSTHOUSE, op. cit., p. 3, tradução nossa)

3 MACINTYRE, Alasdair C. In: SIMÕES, Jussara (Trad.). After virtue: a study on moral theory. 2. ed. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2003, p. 101.

4 We cannot then, look to Aristotle for any elucidation of the modern way of talking about “moral” good-ness, obligation, etc. And all the best-known writers on ethics in modern times, from Butler to Mill, appear to me to have faults as thinkers on the subject which make it impossible to hope for any direct light on it from them. (ANSCOMBE, Gertude E. M. Modern Moral Philosophy. Philosophy 33, n. 124, jan. 1958, p. 1-19, p. 2, tradução nossa)

5 Ibid.6 Ibid.7 To have a law conception of ethics is to hold that what is needed for conformity with the virtues failure

in which is the mark of being bad qua man (and not merely, say, qua craftsman or logician)--that what is needed for this, is required by divine law. Naturally it is not possible to have such a conception unless you believe in God as a lawgiver; like Jews, Stoics, and Christians. But if such a conception is dominant for many centuries, and then is given up, it is a natural result that the concepts of “obligation,” of being bound or required as by a law, should remain though they had lost their root; (…).(ANSCOMBE, op. cit., p. 6, tradução nossa)

8 (…) the concepts of obligation, and duty-moral obligation and moral duty, that is to say-and of what is morally right and wrong, and of the moral sense of “ought,” ought to be jettisoned if this is psychologically possible; because they are survivals, or derivatives from survivals, from an earlier conception of ethics which no longer generally survives, and are only harmful without it. (ANSCOMBE, op. cit., p. 1, tradução nossa)

9 Ibid.10 Ibid.11 Ibid.12 MACINTYRE, Alasdair C. In: SIMÕES, Jussara (Trad.).After virtue: a study on moral theory. 2. ed. Notre

Dame: University of Notre Dame Press, 2003, p. 48.13 Ibid., p. 21.

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14 Ibid., p. 24.15 Ibid., p. 21-22.16 Ibid., p. 2417 MACINTYRE, 2009, op. cit.18 MACINTYRE, 1999, op. cit.19 Ibid.20 […] a movement that honored Aquinas but was aware of little difference between him and host thinkers

in the ‘scholastic tradition’. (KOSSEL, Clifford G. Thomistic Moral Philosophy in the Twentieth Century. In: POPE, Stephen (Ed.). The Ethics of Aquinas. Washington: Georgetown University Press, 2002, p. 385, tradução nossa.)

21 Ibid.22 […] researchers who investigate the text, language, sources, and development of Aquinas’s writings to dis-

cover as clearly as possible his genuine though, ever an ongoing task. (KOSSEL, op. cit., p. 385, tradução nossa)

23 Creative thinkers, aware of the retrivers’ work and faithful to the principles and themes of Aquinas, are then prepared to explore and develop older themes in new ways. […] Their writings are particularly valu-able today, as they anticipated many current issues. ‘Virtue ethics’, the priority of prudence, psychological determinism, new views of natural law, the nature of civil society and its relations to the church, the status of a Christian philosopher. (KOSSEL, op. cit., p. 385, tradução nossa)

24 Ibid.25 SHANLEY, op. cit.26 What distinguished Maritain from other Thomists, and so made him one of the giants of the Thomistic

revival, was the way he demonstrated how a revitalized Thomism could unify and integrate contemporary culture […](SHANLEY, op. cit., p. 6, tradução nossa)

27 […] Maritain brought Aquinas out of the monastery into the academic public square, where Thomas himself had been at the University of Paris. (KOSSEL, op. cit. p. 388, tradução nossa)

28 MARITAIN, Jacques. Man and the State. Chicago: Chicago University Press, 1998.29 POZZOLI, op. cit., p. 65.30 Ibid., p. 69.31 MARITAIN, op. cit., p. 4.32 POZZOLI, op. cit.33 Ibid., p. 66-67.34 KOSSEL, op. cit., p. 389.35 Ibidem, nota 46.36 MARITAIN, op. cit., p. 109.37 Ibid., p. 109.38 Ibid., p. 85-86.39 Man’s right to existence, to personal freedom, and to pursuit of the perfection of moral life, belongs,

strictly speaking, to natural law. (MARITAIN, op. cit., p. 100, tradução nossa)40 BOBBIO, op. cit.41 Ibid., p. 142.42 Ibid., p. 142.43 KENNY, op. cit., p. 178.44 Ibid., p. 178.45 Ibid., p. 17846 VILLEY, Michel. In: BERLINER, Cláudia. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo:

Martins Fontes, 2005.47 Ibid., p. 726-727.48 Ibid., p. 753.49 Ibid., p. 40.50 Ibid., p. 45.51 Ibid., p. 755.52 CHORÃO, op. cit.53 Ibid., p. 32-33.54 Ibid.55 HERVADA, Javier. Lições Propedêuticas de Filosofia. Belo Horizonte: Martins Fontes, 2008, p. 23.

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56 Ibid., p. 24.57 Ibid., p. 143.58 Ibid., p. 58.59 Ibid., p. 58.60 Ibid., p. 353.61 Ibid., p. 354.62 Ibid., p. 354.63 CROWE, Michael Bertram. The Changing Profile of Natural Law. The Hague: Nijhoff, 1977, p. 246.64 There are ‘liberal’ and ‘conservative’ as well as ‘procedural’ and ‘substantive’ theories of natural law. Some

theories fit comfortably into the tradition of Aristotle and Aquinas, others are related to that tradition remotely, if at all. Some natural law theorists propose to identify basic principles of practical reasoning and morality and to derive from these principles norms to guide the decisions of legislators and judges. Others seek to guide legal interpretation, reasoning, and adjudication on the basis of a putatively necessary con-nection between law (or legality) and morality. (GEORGE, Robert P. Natural Law Theory: Contemporary Essays. Oxford: Oxford University Press, 1994, p. 5, tradução nossa)

65 KERR, Fergus. After Aquinas: versions of thomism. Oxford: Blackwell Publishing, 2002, p. 104.66 HALL, Pamela M. Narrative and the natural law: an interpretation of Thomistic ethics. Notre Dame:

University of Notre Dame Press, 1994, p. 1.67 Nussbaum seems to suggest that by any unyielding and unrealistic adherence to rules, rule followers, by

their inattention to the existing particulars of a situation, may produce event or realtions that issue in injury to themselves and others. (HALL, op. cit., p. 6, tradução nossa)

68 HALL, op. cit., p. 21, tradução nossa69 KERR, op. cit., p. 109.70 Ibid., p. 109.71 […] the possibility of lawmaking is grounded in a theory of human nature. (KERR, op. cit., p. 109, tradução

nossa)72 LISSKA, Anthony. Aquina’s theory of natural law: An analytic reconstruction. Oxford: Oxford University

Press, 1996.73 The metaphysic of finality suggests that the ends appropriate to human nature are built into the very nature

or essence which determines a human person. The end is not a ‘non-moral good’ to be attained which is commom to many teleological theories such as classical utilitarianism. (LISSKA, op. cit., p. 87, tradução nossa)

74 LISSKA, op. cit., p. 86.75 Ibid., p. 86.76 Ibid. 77 Ibid., p. 103.78 Ibid., p. 104.79 Ibid., p. 120.80 […] Aquinas’s account of natural law can be elucidated consistently without being ‘ultimately based on

and justified through the existence of a supreme benevolent being’.81 FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007.82 ZUCKERT, Michael. The Fullness of Being: Thomas Aquinas and the Modern Critique of Natural Law. In:

The Review Politics 69. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2007, p. 29.83 FINNIS, op. cit., p. 31.84 Ibid., p. 105.85 Ibid., p. 108.86 Ibid., p. 76.87 Ibid., p. 76.88 Ibid., p. 72.89 Ibid., p. 44.90 Ibid., p. 21, tradução nossa.

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THE INFLUENCE OF ST. THOMAS AQUINAS’ THEORY ON NATURAL LAW UPON THE CONTEMPORARY PHILOSOPHY OF LAW

ABSTRACT

The ethics of virtues in the classical perspective has been revived by moral philosophers and philosophers of law, by reinterpretations of the Aristotle’s and Aquinas’ theories. The modern moral philosophy, polarized primarily by deontologists and utilitarians, invokes concepts like obligation and moral duty, but ignore deeper reflections on virtue, moral education and friendship. In this context, contemporary philosophers have appealed to the theories of Aristotle and Aquinas, which provide consistent descriptions about human nature, law, justice and other virtues. In this context, the aim of this paper is to present the general context of the rediscovery of legal philosophy of Aristotle and Aquinas, especially the Thomistic natural law theory. Firstly, we will analyze, in general, the rehabilitation of the Aristotelian theory of virtue in the field of moral philosophy. Then, the aspects of the rediscovery of Aquinas’s natural law theory by contemporary philosophers will be presented, by reinterpretations of Thomistic theory, including the theory proposed by Jacques Maritain and John Finnis. This aims to show the prominent position occupied by the theory of Thomas Aquinas in contemporary discussions in philosophy of law. Thus the Thomistic theory can no longer be neglected in discussions about law and justice, and thus provide answers to problems of our time, such as the foundation of human rights.

Keywords: Natural Law. Natural right. Thomas Aquinas. Virtue ethics.

Submetido: 29 mar. 2015Aprovado: 16 ago. 2015

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influênciAs mAteriAis e estruturAis soBre A JurisDição constitucionAl BrAsileirA

Juraci Mourão Lopes Filho*

Introdução. 1 Formas de Estruturação do Judiciário. 1.1. O modelo hierárquico de organização do Judiciário. 1.2. O modelo paritário de organização do Ju-diciário. 2 Implicações Jurisdicionais da Forma de Organização do Judiciário. 2.1. Jurisdição e processo no modelo hierárquico. 2.2. Jurisdição e processo no modelo paritário. 3 O Advento do Estado de Direito e suas Formas. 3.1. O Estado Legislativo e sua Jurisdição. 3.2. O Estado Constitucional e sua jurisdição. 4 Jurisdição no Brasil: entre a hierarquização do Judiciário e a constitucionalização do Estado e do Direito. 5. Conclusão. Referências.

RESUMO

A jurisdição constitucional brasileira é moldada pela estrutura-ção hierarquizada e piramidal do Judiciário (aspecto estrutural/formal) e pelas concepções teóricas que fizeram emergir o Estado Constitucional (aspecto material). Essas influências rompem o modelo tradicional, pois a estruturação judiciária hierarquizada foi concebida para o funcionamento de uma jurisdição típica de um Estado legislativo. O presente artigo busca trazer à tona esses elementos de influência e expor suas consequências e tensões sobre a atividade jurisdicional brasileira.

Palavras-chave: Jurisdição constitucional. Judiciário hierarqui-zado. Estado Constitucional.

INTRODUÇÃO

Toda atividade humana sofre influências do contexto cultural em que está inserida, das instituições e dos indivíduos que a exercem, bem como do referencial teórico que a fundamenta e orienta. Com a jurisdição não acontece diferente.

Conquanto se possa formular um conceito ideal de atividade jurisdicional, sua efetiva realização é condicionada por fatores reais verificados no local e no período em que é exercida. Cada Estado, desde as disposições constitucionais, traz características institucionais e jurídicas que são singulares e próprias que moldam a respectiva atividade jurisdicional. A estrutura do Judiciário, o modo de recrutamento dos juízes e a relação que estes mantêm com sua instituição são fatores especialmente determinantes.

* Doutor (UNIFOR) e Mestre (UFC) em Direito Constitucional. Pós-graduado lato sensu em Direito Processual Civil (UFC). Professor de Direito da Unichristus. Procurador do Municí-pio de Fortaleza. Advogado.E-mail: [email protected]

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Influências materiais e estruturais sobre a jurisdição constitucional brasileira

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Mas não só as prescrições de direito positivo têm essa capacidade. Por ser uma atividade estatal de relevância constitucional incomensurável, sofre influências da postura teórica e mesmo ideológica que se tem sobre Estado de Direito de um modo geral. Assim, as mudanças do constitucionalismo, enten-dido como o movimento político, e o aporte teórico em torno das constituições atuam diretamente sobre o que se deve entender por jurisdição, qual seu papel na interpretação/aplicação do direito e o modo como os juízes decidem. A mudança da teoria constitucional impõe, necessariamente, uma mudança da jurisdição.

Em resumo, tem-se que a jurisdição é influenciada pela estrutura judici-ária que a exerce (influência formal) e pela concepção teórica acerca do Estado (influência material).

O presente trabalho tem por objetivo expor as principais características das estruturas judiciárias que existem no direito comparado e averiguar a escolha feita pelo constituinte brasileiro, de modo a identificar os efeitos que exercem sobre a atividade jurisdicional. No mesmo âmbito, busca-se apresentar os contornos fundamentais do Estado Legislativo (de ampla difusão no século XIX) e do Estado Constitucional (concepção majoritária após a segunda metade do século XX) e o papel da jurisdição em cada um deles, com a finalidade de bem identificar o parâmetro que atualmente orienta a jurisdição constitucional brasileira, indicando seus pontos de tensão e reformulação.

Esperar-se, com resultado, trazer à tona aspectos e elementos que silencio-samente moldam tão relevante atividade.

1 FORMAS DE ESTRUTURAÇÃO DO JUDICIÁRIO

A maneira de uma determinada ordem jurídica estruturar o órgão responsá-vel pela atividade jurisdicional leva em consideração, como regra, três elementos: a) profissionalização ou não de seus membros; b) forma de relação entre esses membros; e, por último, c) modo pelo qual eles tomam as decisões. Nesse sentido, Mirjan Damaška apresenta obra em que investiga a atividade jurisdicional nas mais variadas localidades, considerando justamente esses três elementos e suas interrelações. Os estudos do autor guiarão a demarcação realizada nesta parte do estudo. Escreve:

Gli elementi concettuali que ocorrono per questo quadro di riferimento corrispondono a tre quesiti che spesso se pongono quando si esamina un’organizzazione di potere; il primo riguarda le attribuzioni dei funzio-nari, il secondo i loro rapporti, e il terzo il modo in cuale essi prendono decisioni. Cosí distinti, questi tre aspetti del poetere hanno dato tempo l’impressione di influenzare la forma del processo, ed io li utilizzerò come parametri per definire le nostre categorie. Per quando riguarda il primo parametro di solito l’interesse viene rivolto alla distinzione tra i funzionari di professione, con incarico permanente, e quelli non specializzati e con incarico temporaneo. Quanto ao secondo parametro, due configurazioni ulteriori esignono una particolare attenzione: nella

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prima i funzionari sono chiusi in una stretta rete di sovraordinazione e subordinazione; nella seconda sono in una posizione più o meno paritaria, organizzati in un singolo livello di potere. Per il terzo parametro, infine, la distinzione decisiva è tra un metodo decionale che si avvale di criteri specialie o “tecnici”, ed un metodo informato a regole indifferenziate o generali della comunite1.

É certo que, como cada um desses elementos não está ligado por um liame de necessidade, há a possibilidade de combiná-los das mais variadas maneiras. No entanto, normalmente, uma magistratura profissionalizada está organizada hierarquicamente, e suas decisões são eminentemente técnicas. Por outro lado, a não profissionalização traz consigo, comumente, uma disposição paritária e temporária dos julgadores, sendo suas decisões pautadas não em critérios especiais da teoria do Direito, mas em parâmetros vigentes na sociedade.

Em alguma medida, o sistema do civil law organiza seu Judiciário com membros profissionais – exigindo-se inclusive a formação educacional no nível de bacharelado – dispostos em uma estrutura piramidal, com critérios de ascen-são burocratizados, sendo as decisões tomadas segundo critérios estritamente técnicos. Já no sistema do common law, é comum que as decisões sejam tomadas por leigos, normalmente um júri, sem maiores rigores técnicos, relegando-se aos magistrados de carreira uma atuação complementar, os quais são dispostos, com poucas ressalvas, em uma hierarquia arrefecida.

A despeito das críticas que lhe são normalmente formuladas, o modelo hierarquizado, de origem napoleônica, com seu tecnicismo, burocratização e relacionamento escalonado, é que vem angariando novos espaços nos ordena-mentos da atualidade, mesmo os países tradicionalmente do common law vêm adotando esse modelo. É certo, portanto, que, na realidade, tenham-se híbridos, mas com determinante inspiração no modelo ideal, o que não desnatura sua classificação com tal.

Diante disso, a exposição dos dois modelos ideais que inspira a prática deve se dar mediante a abordagem de cada um desses três elementos: profissio-nalização ou não dos membros; forma de relação entre eles; e o modo pelo qual tomam as decisões.

1.1. O modelo hierárquico de organização do Judiciário

Já no início da abordagem desse modelo, destaca-se a profissionalização dos magistrados. Como dito, somente alguns poucos membros da sociedade que possuírem específica formação educacional estão habilitados a candidatar-se a uma vaga no órgão judicante. Ademais, a seleção desses habilitados – com poucas ressalvas relacionadas aos tribunais superiores – é feita mediante uma avaliação dos conhecimentos técnicos angariados nos bancos universitários e na leitura de bibliografia própria ou mediante escolha por órgãos específico, mas sempre tomando em consideração o conhecimento técnico.

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Uma vez ingresso nos quadros do Judiciário, o indivíduo passa a fazer parte de um corpo coeso e fechado, o qual permite uma distinção entre os “internos” desse corpo e os “externos” a eles. A participação dos “externos” é pontual, limitada e excepcional, considerada quase que uma intrusão danosa ao desempenho da atividade técnica.

O passar do tempo na corporação, somado ao sem-número de repetições da mesma tarefa, faz surgir uma padronização de comportamento, importando uma perda na constatação de circunstâncias específicas e únicas que demandam uma justiça individualizada. Entre os muitos modos de solução da controvérsia posta perante o magistrado, há a tendência por preferir se tomar aquele que é habitual ao magistrado, ao órgão de que faz parte ou a outros pares, mas em especial, a seus superiores. A observância de precedentes se dá mediante uma deferência acrítica a julgados de cortes mais elevadas.

Essa repetição que ocasiona a padronização dos julgados, fruto da profis-sionalização dos membros, incrementa a divisão entre “internos” e “externos” do corpo judiciário, possibilitando um isolamento do seio social e da comunhão de valores e aspirações.

Ademais, a repetição de padrões, com o sentimento de corporação fechada, faz que, no âmago dos membros de carreira, seja incentivada uma cisão entre o juiz e o cidadão, especialmente caracterizada pelo despren-dimento emotivo segundo o qual se deve conduzir aquele. O magistrado, como parte do órgão, é incentivado a ter o comportamento típico de uma entidade impessoal.

Por outro lado, a relevância dessa padronização está na criação de uma memória institucional sobre os casos padrões de maneira genérica, permitindo uma previsão do julgado, o que pressionará a atividade futura, sem, contudo, pôr-lhe amarras para análise da realidade e especificidades dos casos futuros. Em função disso, assevera Damaška2:

Questa sciossione fra l’organo e il suo titolare favorisce un modo di ragionare istituzionalistico: gli impulsi a scalvare gli interessi istituzio-nali ed a consultare la propria conscienza sono troppo “protestanti” per essere tollerati. Le sentenze divengono pronunce di un’entità impersonale (un organo) anche quando un singolo individuo è incaricato della loro emanazione. E siccome l’istituzione deve esse univoca, per non essere equivoca la pronuncia di una decisione presa da diversi funzionari elimina precedenti disseni interni: coloro che non sono d’acordo devono reprimere i loro sentimenti.

A profissionalização e a institucionalização do comportamento dos mem-bros da magistratura estimulam uma padronização do labor judicial, que se torna menos atenta à riqueza de detalhes do caso específico que estão a apontar na direção de uma decisão apropriada e adequada às circunstâncias com notas de individualidade.

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Nesse contexto, o juiz é levado a equiparar, até mesmo forçosamente, casos minimamente parecidos para poder alinhar sua decisão a um julgamento anteriormente proferido, sobretudo se for o de uma corte superior. Os contor-nos próprios a caracterizar um caso único são apagados no intuito de fazê-los caber em padrões batidos pelos julgamentos reiterados que moldam uma linha jurisprudencial, os precedentes que formam a jurisprudência são aplicados, são elevados a uma grau máximo de abstração e aplicado mediante um silogismo, em que ocupa a posição de premissa maior. Há uma tendência à tipificação das matérias de ordem fática e jurídica. Existem, também, um forte sentimento de ordem e um marcante desiderato de uniformidade.

Corroborando isso, tem-se uma organização hierarquizada em forma pira-midal do Judiciário. Nela, o poder, tanto administrativo quanto jurisdicional, vem descendo pelos vários níveis, oportunizando, indevidamente, uma desigualdade entre os membros, muitas vezes, não prevista e, até mesmo, combatida pelas Constituições. O juiz de uma corte superior teria uma ascensão qualificada sobre os situados em escalões inferiores.

Nessa estrutura, todo grau imediatamente superior importa maior poder e prestígio. Os que estão no mesmo grau permanecem em posição de igualdade, o que, porém, não autoriza, em casos de desentendimento, poderem chegar a uma autocomposição ou a um mútuo compromisso, pois, necessariamente, entre eles, interferirá um superior, que jamais poderá ter seu poder e influência, de qualquer, modo reduzidos. Por isso, a legislação processual nos países que adotam essa estrutura judiciária conspira em prol de uma fácil ascensão das causas aos graus superiores. É ínsito, portanto, a Judiciários hierarquizados a existência de muitos recursos.

Essa estrutura piramidal e rigidamente hierarquizada, na qual a prepon-derância do exercício do poder cabe ao ápice, traz um problema intrínseco: se todos os processos da base subirem ao topo, como viabiliza a grande quantidade de recursos, haverá inexorável inviabilização dessas instâncias mais elevadas. Para esse estrangulamento não ocorrer, deve haver uma rígida seleção do que poderá subir. A grande quantidade de recursos deverá ser equilibrado com critérios qualitativos para seu manejo apenas com isso se força a escolha por assuntos mais facilmente verificáveis por um órgão distante dos fatos e das partes, ou seja, que somente conhecerão aquela pequena fração da realidade que – com a defasagem natural e inevitável – for reduzido a termo e colacionada aos autos.

O problema intrínseco da organização hierarquizada e piramidal impõe uma necessária divisão de tarefa: aos superiores caberia uma análise universal e mais ampla avaliação das questões, permitindo um esquema ordenatório da atividade jurisdicional, enquanto aos inferiores, a análise das minudências dos casos. A impossibilidade de aferir as individualidades do caso concreto de que padece o grau superior é compensada pela possibilidade de ordenação genérica da atividade jurisdicional, remanescendo, porém, a maior adequação dos graus inferiores de considerarem as nuances de cada situação.

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A tensão entre a análise das peculiaridades e a padronização com o topo, assim, é amenizada: somente no pertinente a questões abstratas deve haver um alinhamento com os graus superiores, dada a miopia (necessária para a própria viabilização de seu labor) quanto a pormenores, especialmente de ordem fática.

No modelo em análise, no qual os membros do Judiciário são profissionais de apurada técnica que se organizam de maneira rígida e hierarquizada, suas decisões devem, por necessidade de uma maior adequação lógica, ser igualmente técnicas, pautadas não em critérios de senso comum. A abertura que esse sistema confere a outros critérios se dá de maneira pontual e particular, corresponden-do à situação residual, e sempre sob os auspícios da juridicidade, a qual nunca poderá contrariar.

Em suma, o modelo hierárquico de organização do Judiciário tem uma estrutura piramidal, na qual o ápice tem grande ingerência sobre os níveis infe-riores, permitida pela facilidade de ascensão das causas, mediante uma atuação ordenatória que relega a plano secundário as nuances de cada caso, preferindo-se, por consequência, uma versão lógica do legalismo tecnicista.

1.2. O modelo paritário de organização do Judiciário

O modelo paritário possui marcante distinção para o modelo hierárquico em todos os níveis. Tem preponderantemente como tomadores de decisões pes-soas leigas relacionando-se entre si de maneira horizontal (sem hierarquia) que utilizam, como não poderia ser diferente, critérios não técnicos para embasar seus veredictos.

Com efeito, os quadros de uma justiça paritária normalmente são formados por funcionários selecionados sem a exigência de uma formação educacional especializada. São escolhidos para exercerem a função apenas temporariamente, o que impede a repetição padronizadora típica do modelo anteriormente apre-sentado. Há amplo espaço para a espontaneidade e improvisação. Dificilmente as questões jurídicas são tomadas sem considerar as pessoas e seus dramas envolvidos.

As atuações pessoal e institucional do julgador não são claramente dis-tinguidas, até porque não existe tempo hábil para especialização do trabalho, porquanto, somente quando o encargo é por tempo maior, a instauração e o incremento de método são possíveis. Essa preponderância dos leigos na adminis-tração da justiça enseja críticas, as quais são muito bem colocadas por Damaška3:

Uma grossa difficoltà che incontra questa organizzazione di funzionari temporanei sta nella sviluppo di una memoria attendibile: come trattare problemi complessi e funzionare con continuità piuttosto che a tratti. Tali difficoltà formano il terreno favorevole all’emersione di una casta de profis-sionisti che dai rapporti con i funzionari laici traggono i loro affari. Questi profissionisti assistono l’inesperto organo decisionale, fornendogli informazioni e mantenendo in tenue rapporto di continuità con l’apparato di potere. La specializzazione, benché assente nell’apparato di potere, può trovarsi nelle

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sue pirghe. In sostanza, viene così a crearsi una relazione di simbiosi tra una casta di professionisti di potere e i dillettanti in posizione di potere.

Nesse contexto, obviamente, as decisões que forem tomadas não serão segundo critérios técnicos, até mesmo pela falta de obrigação para tanto. Assim, aquela cisão que é fomentada nos magistrados no sistema hierárquico (decidir como profissional, ainda que de maneira distinta de como decidiria como ci-dadão) aqui não há. Dificilmente uma decisão será tomada de forma apartada das regras éticas, políticas ou religiosas dominantes no ambiente social de onde veio a pessoa do julgador.

Esse conjunto de parâmetros de julgamento lançado pelos agentes leigos é abarcado pela rubrica de “justiça substancial”, o qual sempre invoca termos vagos, como “razoável” e “correto”, os quais podem ser perfeitamente aferíveis e determinados, dependendo da inserção social, assim como acontece com termos, como “obsceno” ou “moral pública”. A transparência deles depende da clareza do consenso na comunidade ou do grupo de que fazem partes os julgadores. Não há aqui, própria e claramente, a divisão entre externos e internos da instituição jurisdicional.

Por outro lado, os funcionários laicos se relacionam horizontalmente, não sendo possível se identificar, com clareza, um superior entre eles. A distribuição do poder, dessa forma, é horizontal, consistindo em absoluta exceção à super-posição rígida de uns sobre os outros.

Intrinsecamente ligada a esse modelo de distribuição horizontal, há uma força de dispersão que enfraquece qualquer tentativa de centralização de poder, fazendo surgir uma séria ameaça à coerência interna dos órgãos decisórios. Combatendo essa força desagregadora, ínsita ao modelo ora em estudo, existe a consciência de todos aqueles que tomam as decisões de que, se agirem de ma-neira contraditória e desgarrada, estarão ensejando a inviabilização do próprio aparato jurisdicional.

Como regra, o modelo paritário liga-se aos países da tradição anglo-saxã, especialmente por influência de fatores históricos.

2 IMPLICAÇÕES JURISDICIONAIS DA FORMA DE ORGANIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO

2.1. Jurisdição e processo no modelo hierárquico

As principais implicações processuais do modelo hierárquico de or-ganização podem ser sumariadas pelas seguintes características, segundo as lições de Damaska: a) estruturação do processo em uma sucessão ordenada de fases; b) marcado controle superior; c) documentação de toda atividade processual; d) fragmentação do processo; e) exclusividade da atuação oficial; f) legalismo lógico.

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A estruturação em fases é decorrência da especialização do trabalho que é exigida dos juízes. Cada fase em que se dividir o processo importa a concen-tração de todos os esforços para um único desiderato, seja, por exemplo, para instruir o feito com as diversas modalidades de provas, seja para receber das partes suas postulações ou, ainda, apenas e tão-só julgar. Em cada uma delas, há uma orientação própria de como devem comportar-se os sujeitos do processo, segundo regras próprias e ajustadas. A atuação especializada aqui se mostra em cores vivas. Especialmente os atos praticados pelo magistrado serão voltados para um objetivo específico e adequado, consequentemente, terão contornos também específicos e adequados ao objetivo perseguido, relegando-se para o momento próprio atos voltados para outras finalidades.

Por sua vez, a disposição vertical da instituição demanda um regular controle dos atos dos inferiores por aqueles que estão nos níveis mais elevados. Pouquíssimas matérias tratadas pelos magistrados iniciais estão imunes à ascensão e reavaliação. Sejam os fatos, seja o Direito ou ainda a lógica utilizada; tudo pode ser, a priori, reavaliado pelo grau imediatamente superior, sendo as restrições comuns somente em níveis especiais de jurisdição.

É normal que a decisão final do feito não seja aquela proferida pelo primeiro grau. Ao contrário, a larga revisão hierárquica dos atos faz que as decisões iniciais sejam quase que meramente provisórias.

A amplitude de revisão pela instância superior exige que toda a atividade dos graus inferiores seja documentada para poder ser conhecida alhures, daí se falar em um poder-dever de documentação do magistrado, cujo fruto são os autos do processo. Os únicos elementos da causa que o magistrado superior conhecerá serão aqueles que forem reduzidos a termo.

É também a abrangência da reavaliação superior que responde pela necessidade de o processo no modelo hierárquico ser fragmentado em par-tes, com características e princípios próprios, fazendo surgir uma dilação no tempo de todos os atos, pelo que diverge diametralmente do tipo de processo que prevê o chamado day in court, quando ocorre uma concentração dos atos processuais em uma única sessão, que poderá, quando muito, ser suspensa, mas jamais fragmentada.

Convém destacar a incongruência do day in court com o regular reexame superior. Por nele haver grande relevância e impressões momentâneas impossíveis de serem documentadas, cria-se um empecilho para que a instância superior co-nheça plenamente a causa julgada. Não é que a fragmentação das fases possibilite uma perfeita transferência de todas as nuances da controvérsia, no entanto ela permite uma defasagem um pouco menor.

Por fim, a última marcante característica do processo hierárquico é a concepção de submissão do juiz à lei. Nessa linha de idéias, a discriciona-riedade decisória com considerações concernentes ao estabelecimento de linhas-guias são tomadas como recursos a serem lançados somente em último

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caso, quando não se puder atuar satisfatoriamente com a regulamentação rígida e conformadora.

2.2. Jurisdição e processo no modelo paritário

Assim como no anterior, o modelo paritário demanda, de acordo com Damaska, processo a ele adequado, cujos pontos essenciais são: a) concentração do processo na instância inicial; b) preponderância de um único nível decisório; c) confiança na oralidade e no testemunho tomado diretamente em audiência; d) day in court; e) legitimidade da atividade judiciária privada; f) julgamento segundo a justiça substancial por juízes leigos.

Todos esses elementos possuem entre si uma mútua interação, muitas vezes, um tem como consequência o outro. O conjunto enseja um processo fortemente centrado no primeiro grau de jurisdição – pressuposto como o único – no qual as instâncias recursais são pouco abrangentes, até mesmo porque os principais atos do processo – especialmente aqueles de julgamento, postulação e avaliação de provas – são praticados no chamado day in court, de maneira oral, sem maior dever de documentação de toda os meandros que os compõem, talvez pela cons-ciência de isso ser materialmente impossível.

Ademais, a investigação privada de provas e outras atividades jurisdicionais são deferidas às partes. Por fim, o veredicto da causa será proferido por leigos, dos quais, obviamente, não é exigido apuro técnico, facultando o uso da já mencionada “justiça substancial”.

Como se vê, a primeira e evidente característica do processo paritário é a maior relevância que se dá à instância inicial. Toda a atividade jurisdicional tem, como centro, o julgamento perante o primeiro juiz, que, como dito, se pressupõe que será o único. O trial (materialização do day in court), que não se resume no julgamento do processo do modelo hierárquico, mas sintetiza vários momentos que, no processo paritário, estão espalhados, é a sinédoque de todo o processo.

A fase recursal não só é débil – porquanto não possui sequer minima-mente a amplitude e a regularidade do modelo de sistema hierárquico – como também o primeiro nível de julgamento não tem aquela aparência de processo meramente preliminar. Há uma mútua conformação entre a centralização do processo no grau primário de julgamento e a preponderância de um único grau de julgamento. Todos os atos importantes são realizados em primeira instância. Isso, porém, não tem, como consectário lógico, a vedação da revisão dos julgados nem a imediata possibilidade de execução deles.

Ainda que mais restrita do que no modelo hierárquico, é lícito àquele inconformado com a decisão inicial buscar em magistrados superiores a reforma da decisão ou a determinação de um novo julgamento inferior. O reexame pela instância superior é permitido quase somente em casos nos quais se cometeu um erro evidente e claro, que faz a sentença ter uma aparência de irracional. É,

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assim, uma limitação da instância recursal aos erros mais aparentes. Ademais, basta, para impedir o reexame, uma fundamentação fragmentária e sintética. Nesse contexto, o direito ao recurso não é considerado como fundamental para caracterização de um processo justo.

Precisamente por ser o controle superior excepcional, desnecessária é a extrema necessidade de formação de autos, cuja principal função – como visto – é justamente possibilitar ao nível hierarquicamente superior o amplo conhecimento dos atos do processo. A oralidade, por consequência, impera, o que é fomentado pelo fato de os responsáveis pelo julgamento serem leigos temporários, dado naturalmente incompatível com a formação de uma me-mória institucional (a qual pode ser apontada como outro motivo a exigir a formação de autos).

É a natureza leiga dos julgados do processo paritário que também importa a maior aceitação nesse modelo de os particulares desenvolverem atividades tipicamente jurisdicionais, pois aqueles que compõem o Judiciário não formam um corpo autônomo, com origem universitária específica. Os membros da advocacia são naturais candidatos ao recebimento de uma parcela da atividade jurisdicional. Muitas funções ordinatórias, que seriam de exclusiva competência dos burocratas de nível inferior nos modelos hierárquicos, podem ser transferidas ao advogado. Por exemplo, os procuradores americanos podem expedir ordens de comparecimento, tomarem depoimentos e, até mesmo, serem encarregados de redigirem decisões que o juiz posteriormente somente assinará.

Portanto, tem-se, de um modo geral, um processo menos burocratizado e com menos possibilidades recursais. Entretanto, há julgamentos sem maiores compromissos técnicos e embasados em critérios não técnicos.

3 O ADVENTO DO ESTADO DE DIREITO E SUAS FORMAS

Postos os parâmetros de influência oriunda da estruturação da máquina judiciária, deve-se lançar luz sobre a influência de ordem material, originada da concepção teórica que se tem de Estado.

Na linha do que leciona Zaagrebelsky,4 o Estado de Direito, por suas di-ferentes formas, possui elemento característico que o opõe ao Estado da Força (manifestação típica do século XVII) e ao Estado de Polícia (comum ao longo do século XVIII). Propõe-se a ser um Estado fundado na razão humana e não em fatores exógenos como a vontade divida ou a natureza das coisas, que costumam pôr as pessoas em uma posição de sujeição ao Estado.

A busca pelos fundamentos do próprio Estado e da obrigatoriedade do cumprimento da ordem jurídico encontrou sob a égide do Estado de Direito elemento propriamente humano: a razão. Isso depois de uma evolução, não ne-cessariamente linear e ininterrupta, que remonta à Grécia Clássica, perpassando por vários momentos cruciais.

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Sempre foi objeto de inquietações e estudos a questão da fundamentação das normas vigentes em uma determinada sociedade e da própria existência do Estado. Inicialmente, foram apresentados fundamentos cosmológicos. Os gregos, bem fiéis à sua noção de cosmo harmônico e integrado, compreendiam que a conduta humana deveria adequar-se a essa harmonia mediante sua reprodução na polis, expressão do que tinham por Estado.

Posteriormente, em uma perspectiva eminentemente teológica, as leis deveriam ser cumpridas por serem decorrência de uma emanação divina, por estarem de acordo com a Lei de Deus. Concebia-se, então, um Direito Natural teocêntrico, no qual deveria o Direito posto colher seu fundamento de validade, sob pena de perder a obrigatoriedade. Ainda que a ideia de justiça fosse encarada como uma justiça humana, não era no indivíduo, no homem, que deveria ser procurada, mas em Deus. Nessa perspectiva, o Estado se submetia somente ao divino e não a qualquer prescrição humana.

É, sobretudo, com base nessas concepções teológicas que se funda o assim chamado Estado de Força bem comum até o século XVI. Não havia, propriamen-te, uma subordinação do Estado ao Direito, pois, na condição de escolhido por Deus, o monarca concentrava toda a emanação jurídica, sendo o único centro livre e desimpedido de criação jurídica que a todos subordinava e a ninguém era subordinado.

Entretanto, a esse naturalismo teocêntrico sucedeu a antropocentraliza-ção do Direito Natural. Houve uma “desnaturalização” do Direito Natural no sentido de não mais ser fundado em algo exógeno, na natureza das coisas que defluiriam de Deus ou do Cosmo harmônico. Centrou-se no ser humano e em suas características tidas como primordiais: a vontade e a razão. Consequente-mente, as normas deveriam colher fundamento nessas mesmas características, daí porque surgiram os contratualismos de Hobbes e de Rousseau, os quais, a despeito da diversidade de premissas, apontavam na mesma direção: a ordem jurídica seria vinculante porque embasada em um contrato levado a efeito por todos os indivíduos no livre exercício de suas vontades e discernimentos.

Neste período, buscaram-se fórmulas simplificadoras da essência humana a que se deveria vincular o Direito posto, tais como a vontade geral de Rousseau, o que, em verdade, nada mais era do que aspirações. Como bem escreve Giorgio Del Vecchio:

Todos estes escritores jusnaturalistas (entre os quais Pufendorf) oscilam entre os dois diversos significados, e isto torna suas dou-trinas defeituosas e facilmente refutáveis, não obstante a parcela de liberdade que em si abrigam. Os jusnaturalistas seguem um método ambíguo e, por conseguinte, imperfeito: dão forma de narrativa histórica a postulados de natureza ideal e não ousam afirmar estes sem procurar confirmação histórica. Comportam-se assim como semi-idealistas e, também, podemos acrescentar, como pseudo-historiadores.5

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No século XVIII, alguns monarcas, já vislumbrando as mudanças capazes de ocorrer por causa dessas ideias iluministas, resolveram arrefecer a arbitrariedade estatal frente ao Direito, inaugurando o que se chamou de Estado Absolutista Tardio ou Estado de Polícia. Nele, não mais se concedia uma liberdade plena ao monarca que, ainda que existente, limitava-se à atividade entendida como propriamente de Estado. É exemplo dessa parcial submissão ao Direito a teoria do fisco, de origem alemã, segundo a qual o patrimônio público não mais pertenceria ao príncipe ou ao Estado, mas ao fisco, que teria personalidade jurídica de direito privado, submetendo, então, às disposições desse ramo do direito e ao julgamento dos tribunais. As atividades de Estado regiam-se pelas normas editadas pelo príncipe, fora, portanto, da avaliação dos tribunais.

Entretanto, essas concessões operadas ao longo do século XVIII não foram suficientes para conter a onda revolucionária embasada nas concepções ilumi-nistas. Como produto das revoluções burguesas na América Inglesa e na França, surgiu o Estado de Direito, o Estado da Razão e da Lei Racional imposta por um legislador igualmente racional, representativo da vontade geral. O embasamento teórico para essa perspectiva é a constatação de que a lei escrita e posta seria o único elemento objetivo do Direito, único passível de uma compreensão racional neutra. A ela, portanto, deveria se submeter o Estado. Eis o ponto fulcral para compreensão do Estado de Direito.

Historicamente, essa compreensão encontra guarida no fortalecimento dos Estados-Nações e no incremento do ideal de soberania. Compreender o Direito como um produto do Estado nacional evidenciava sua relevância para o indivíduo e para a própria sociedade.

O Estado de Direito nasce, portanto, como um Estado Legislativo, mas evolui até o Estado Constitucional, cujas características de cada uma passamos a expor mais detidamente com a demonstração da jurisdição que lhe é típica.

3.1. O Estado Legislativo e sua Jurisdição

O Estado Legislativo teve seu apogeu no século XIX. Sua característica mais marcante é, como a terminologia revela, a proeminência do Legislativo e de seu produto, a lei. A constituição seria documento eminentemente político, responsável pelo ato de fundação do Estado. Por sua vez, o Legislador racional, representante da vontade popular reunido em assembléia, seria o responsável pela criação do Direito, traduzido, em última medida, como juízo deôntico formal de uma regra, com descritor e prescrito ligados por um liame lógico de dever-ser.

A lei (entendida como a própria norma escrita), portanto, é exaltada. Nada mais lógico, pois, como dito, é tomada como produto da própria racionalidade humana (característica redentora responsável pela “iluminação” dos indivíduos que deixaram as “trevas medievais”) para o Direito. O princípio da legalidade é

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a expressão máxima do direito fundamental de que dispunham os indivíduos perante o Estado. Sobre ele, muito bem escreve Gustavo Zagrebelsky:6

Il principio de la legalità, in generale, espreme l’idea della legge come atto regolativo supremo e irresistibile al aquele, in linea massima, non è oppo-nibile alcun diritto piú forte, aquele che ne sia la forma e il fondamento: né il potere de eccezione del Re e della sua ammistratzione, in nome di una superior ragion di Stato; né la disapplicazione da parte dei giudici o la resistenza dei singoli in nome di un dirito piú alto (il dirito naturale o il dirito tradizionale) o di diritti particolari (i privilegi locali o sociali.

Cumpre destacar, conforme o faz o mesmo autor, que o princípio da legalidade tem contornos próprios fornecidos pela cultura continental europeia na qual surgiu, que o distingue de seu congênere inglês (Rule of Law).

O Rule of Law tem seu perfil definido pela tradição inglesa de luta dos senhores feudais contra o rei realizada ao longo dos anos numa dialética pro-cessual perante os tribunais do Common Law e, posteriormente, nas cortes de Equity. Conforme nos narra Patrícia Perrone Campos Melo7, por existir na Inglaterra uma miríade de normas costumeiras, cabia aos magistrados a função de ordenação do Direito. Como, inicialmente, as corte eram locais, o rei criou um sistema formal e rígido de vinculação desses tribunais aos precedentes de sua corte central. Assim, na tradição anglo-saxã, o Direito não é fruto de um juízo racional, abstrato e universal, que busca se desprender da realidade e do mundo para atingir formulações puras e genericamente válidas. Seu desenvolvimento decorre de um longo e contínuo processo histórico realizado ao longo de séculos, sendo suas prescrições sempre abertas a novas influências. Dada sua origem em disputas judiciais concretas, tem um direito muito mais atento à ideia de uma justiça particular e adequada, ao invés de uma generalizante.

Já o princípio da legalidade tem a mencionada característica de centraliza-ção da produção jurídica no Parlamento dada a influência histórica da anterior centralização na figura do monarca. Verifica-se, portanto, uma substituição quanto ao sujeito (do monarca pelo parlamento), mas mantendo-se a concepção centra-lizada de produção de direito. Dado seu fundamento remonto na concepção de racionalidade humana invariável, a legalidade, nessa perspectiva, aspira à criação de um direito universal e atemporal, justamente porque uma análise objetiva, neutra e imparcial do direito possibilitaria as criações de prescrições igualmente precisas e imutáveis. Por via de consequência, tem-se um sistema jurídico geral e abstrato que se alheava das particularidades e especificidades de cada situação, de cada povo, de cada momento histórico. A força da razão reta e universal a tudo isso se imporia, o mesmo acontecendo com o direito legislativo racional.

Essa perspectiva, conforme adverte Zagrebelsky, aliava-se ao positivismo jurídico e ao liberalismo.

Não se desconheciam os valores e a moral, apenas os consideravam elemen-tos estranhos ao Direito, fora de uma abordagem daquilo que seria puramente

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Direito: as normas postas pelo Estado. A axiologia possuía importância para o Direito, mas isso não significava que ela fizesse parte dele. No Direito Constitu-cional, concebia-se uma ordem constitucional restrita à Carta de Poderes e de organização de um Estado, cujo conteúdo seria aquilo e estritamente aquilo que nela estivesse escrito.

Segundo essa perspectiva, a Constituição, como dito, representava a chave fundamental que respondia pela autorreferência do sistema normativo, vez que tomada como a decisão política primordial de um Estado. Conquanto, situada no topo da cadeia hierárquica, ela era tida como um documento de cunho mais eminentemente político do que jurídico. Representava o ato de poder inaugu-ral de um Estado, a partir do qual as leis (estas sim dotadas de máxima carga jurídica vinculante) derivavam. Perceba-se que, nessa noção de Constituição, ela é tomada quase que uma mera proclamação de intenções dos fundadores de uma república, documento final de anunciação da vitória revolucionária, ou seja, um ato eminentemente político, cuja observância cabia ao Legislativo e ao Executivo, responsáveis pela transformação dessas intenções em mandamentos propriamente jurídicos, plenos de força normativa.

Essa compreensão da Constituição evidenciava, em verdade, uma perspecti-va de neutralidade axiológica, porquanto, se tomada como um ato político, como uma proclamação final de uma revolução, poderia assim ser qualquer espécie de ato meramente político ou de qualquer revolução.

Essas concepções teóricas do positivismo tiveram forte impacto sobre o modo de se compreender a jurisdição, sobretudo porque se somavam a razões históricas. José de Albuquerque Rocha8 ensina que, sobre os tribunais do antigo regime europeu, os revolucionários de 1789 despendiam grande desconfiança, pois seus membros haviam sido escolhidos pelos antigos governantes e suas de-cisões refletiam posicionamentos reacionários e corporativistas. Pelo isolamento corporativo, os juízes das cortes foram de tal forma surdos às exigências sociais a ponto de se tornarem alvos da mais exacerbadas manifestações de explosão popular revolucionária.

A atribuição do Judiciário se resumia a fazer valer exclusivamente a esco-lha do Legislativo inserida no texto legal. A subsunção é tida, nessa perspectiva, como o método judicial válido. Segundo ele, o juiz realizaria uma operação lógica de subsunção do fato (premissa menor) à norma jurídica (premissa maior) para atribuir a esse caso posto sob sua apreciação a consequência jurídica prevista pela norma.

A atividade do magistrado, nessa perspectiva, é unicamente lógico-dedu-tiva, pois sua conclusão (sentença) já estaria implícita em sua premissa (norma jurídica). O trabalho do juiz seria mera reconstrução do sentido do discurso do legislador inserido na norma no momento de sua criação. Para a doutrina clássica, nesse ponto, residiria a distinção entre Legislativo e Judiciário, pois o trabalho daquele – que tem como produto norma geral e abstrata – não seria

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uma dedução lógica de premissas impostas, mas sim uma opção, uma escolha, uma eleição fundada em valores, e não em premissas objetivamente traçadas. O ordenamento jurídico era um dado entregue de maneira perfeita e acabada ao juiz. Ele não poderia acrescentar muito.

Podemos, portanto, sumariar as características da jurisdição no Estado Legislativo da seguinte maneira: a) submissão à lei (juiz boca da lei); b) papel pouco relevante na separação dos poderes; c) neutralidade judicial; d) recurso a meios formalistas de integração, interpretação e aplicação do direito; e) processo inteiramente esquadrinhado em lei; f) preponderância da ideia de composição de lides individuais; g) garantia de uma justiça universal e abstrata; e h) restrita intervenção na administração: controle de legalidade.

Percebe-se uma fácil adaptação do Judiciário hierárquico ao Estado Legis-lativo, o que se justifica por razões histórica e ideológica, pois deitam raízes no mesmo período de formação do Estado de Direito Francês de Napoleão.

3.2. O Estado Constitucional e sua jurisdição

Foi a neutralidade axiológica e o descompromisso ético os principais mo-tivos que ocasionaram a derrocada do positivismo (ou, ao menos, a mitigação de sua aceitação universal para compreensão do fenômeno jurídico). Foi preci-samente a violação sistemática aos direitos humanos sem a ruptura do Estado de Direito que deixou marca indelével no constitucionalismo ocidental. Nesse tocante, a experiência do nacional socialismo alemão foi marcante. Luiz Roberto Barroso destaca:

O positivismo pretendeu ser uma teoria do Direito, na qual o estudioso assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízos de fato. Mas resultou sendo uma ideologia, movida por juízos de valor, por ter se tornado não apenas um modo de entender o Direito, como também de querer o Direito. O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes varia-dos. A ideia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem.9

A Filosofia do Direito, ou melhor, o reingresso da Filosofia no Direito for-neceu elementos para a superação do positivismo em sua formulação mais rígida, pois reinseriu a discussão moral no Direito, bem como ofereceu elementos para superação do legalismo, seja exegético, seja normativista. A concepção de que a norma jurídica seria capaz de condessar toda juridicidade, desligada da ética ou mesmo da política, não resistiu à evolução da sociedade e aos testes deônticos da história. E a simples constatação dessa insuficiência jurídica, mediante o reco-nhecimento da textura aberta por Hart ou a figuração do quadro hermenêutico por Kelsen, ambos a serem complementados por elementos não jurídicos, não foi suficiente para assegurar um Direito Justo. Foi necessário reinserir a moral no

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Direito, foi necessária a busca por uma dimensão axiológica que não se exaurisse na formulação do enunciado normativo.

Daí a necessidade de uma nova hermenêutica, e de uma nova compreensão do papel do intérprete. A hermenêutica deixou de ser metodológica (procedimen-to ou caminho para se chegar a algo pré-existente) para ser ontológica (técnica de construção de algo com elementos pré-estabelecidos, é certo, mas também, e, sobretudo, verificados no instante da aplicação).

A busca por uma ordem justa revigorou-se, inicialmente por mais uma fugaz retomada do jusnaturalismo. Contudo, não se quis abrir mão das conquistas positivistas que ensejaram a cientificidade do Direito e retornar a concepções abstratas, fluídas que não mais atendiam plenamente a exigência de racionalidade do conhecimento humano, do conhecimento jurídico. A superação do positi-vismo jurídico, entretanto, não impossibilitou se reconhecer o direito positivo como o modo de ser do Direito. Põe-se em evidência, então, a distinção entre Direito Positivo e Positivismo. Bem destaca Lenio Streck:

O positivismo traduz uma certa índole do pensamento jurídico, ou uma certa forma de considerar o Direito e a posição do jurista perante ele; enquanto que o Direito positivo tem a ver com o modo de existência do Direito, o qual nesse modo de existência pode ser ou não perspectivado positivisticamente. Por isso é que a aceitação ou não do positivismo jurídico é problema de gnosiologia e da metodologia jurídicas, e a consideração do Direito positivo é o problema jurídico da teoria do Direito, especialmente das fontes do Direito, ou é o problema jurídico da filosofia do Direito (o problema do ser do Direito.10

Durante esse período de intestinas modificações, a teoria constitucional não se manteve ilesa. Superou-se a noção de documento meramente político, que continha programas, recomendações para o legislador e para o administra-dor. Passou ao status de norma fundamental dotada de plena força normativa, independentemente de mediação legislativa. Não mais realizava simplesmente a divisão de poderes, a organização do aparato estatal e estabelecimento das liber-dades públicas, passou a ser responsável pela própria ordenação social, mediante estabelecimento de direitos sociais e de direitos de fundamentais de terceira geração. E o mais importante: sobretudo em função do trabalho dos tribunais constitucionais, passou a Constituição, especialmente no ponto que versa sobre os direitos fundamentais, a ser tida como uma ordem objetiva de valores, que permeia, fundamenta e confere unidade axiológica a todo o sistema normativo. A busca pela justiça encontra fim nessa nova compreensão de Constituição, nes-sa ordem de valores na busca de reinserção da moral no Direito. E a jurisdição passa a ter destaque no fenômeno hermenêutico, pois é capaz de fazer valer suas escolhas interpretativas em processo dialético em que se cotejam teses e antíteses.

No constitucionalismo contemporâneo, não se olvidam as conquistas de cientificidade angariadas pelo positivismo (toma o Direito positivo como a forma

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de manifestação do Direito), mas também não se reedita a neutralidade axiológica responsável por sua superação nem se aparta de maneira rígida Direito e moral. É reconhecida a importância da justiça e da moral dentro do próprio Direito, sem se recorrer às fórmulas metafísicas do Direito Natural. A ordem jurídica, conquanto ainda autorreferencial, admite agora uma abertura. O que era hermé-tico e fechado, agora ganha uma válvula bidirecional entre Estado e sociedade.

As normas constitucionais não são mais escalonadas seguindo graus de efe-tividade e aplicabilidade, e mais: os princípios, antes relegados à categoria de fonte subsidiária do Direito, ganha inegável juridicidade e incomensurável relevância no sistema. Atualmente, não se nega que as normas vigentes em um determinado Estado são vinculantes e obrigatórias porque, em harmonia com a Constituição, instrumento político-jurídico que, por sua estrutura aberta, permite um “diálogo” com os valores humanos, com o senso de justiça que permeia a sociedade.

Esse novo constitucionalismo forçou que o Estado de Direito deixasse de ser Legislativo para ser Constitucional, sobretudo no pertinente à ideia de força normativa da Constituição que, na Europa continental, teve a especial consequência de, pela primeira vez, criar parâmetro de subordinação para o Legislativo. Nesse sentido, escreve Zagrebelsky:

Ai grandi e gravi problemi di cui tale mutamento è conseguenza e, a sua vol-ta, causa, la risposta è ricchiusa nella formula dello “Stato costituzionale”. La novità che essa contiene è capitale e riguarda la posizione della legge. Questa, per la prima volta in epoca moderna, viene messa in rapporto di conformità e quindi subordinata a uno strato più alto de diritto, stabilito dalla Costituzione.11

A Constituição passa a ser o centro de gravitação do sistema jurídico, condicionando e subordinando todas as normas e todos os Poderes estatais, encarregando-se de realizar a unidade axiológica perdida em função da evolução social e da incapacidade do Legislativo de dá conta da regulação de todos os no-vos desafios sociais surgidos. O direito legislativo se pulverizara em uma grande quantidade de normas setoriais e, cada vez mais particulares. Ao grande número de leis, somou-se a heterogeneidade dos referenciais axiológicos. O gradual incre-mento participativo das mais variadas camadas sociais nos Parlamentos arrefeceu seu perfil de coesão ideológica em torno da burguesia. Ao invés de garantir uma estabilidade, essa normatização tornou-se fonte de instabilidade.

Como resposta, a Constituição apresenta normas principiológicas abertas com prescrição finalística que servirá de orientação para disciplinamento das mais diversas situações da vida. Ademais, condiciona o labor legislativo, evitando con-tradições decorrentes da heterogeneidade de intenções e pressões sociais momen-tâneas. No Estado Constitucional, os três Poderes estatais se equiparam, pois todos estão igualmente compromissados em fazer valer as disposições constitucionais.

A jurisdição no Estado Constitucional não mais pode ser encarada da mesma forma que era no Estado Legislativo, sobretudo por causa da superação

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da hermenêutica clássica, ocasionando o fim da certeza jurídica no modelo de previsibilidade deduzida de premissas gerais e abstratas postas. Em outras pala-vras, a hermenêutica ontológica infirma a compreensão do ordenamento jurídico como um dado perfeito e acabado que o juiz receberia do legislador. O objeto de interpretação passa a ser outro, modificando, por via de consequência, a noção mesma de ordenamento jurídico, conforme expõe Eros Grau:

[...]um aspecto importantíssimo deve ser explicado, atinente ao equívoco reiteradamente consumado pelos que supõe que inter-pretam normas.

O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da in-terpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo.

A interpretação é, portanto, atividade da interpretação, o or-denamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é um conjunto de normas.

O conjunto dos textos – disposições, enunciados – é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais [Zagrebelsky].

O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. Por isso dizemos que as disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; eles dizem o que os intérpretes dizem que eles dizem [Ruiz e Cárcova]. 12

Como o significado de um enunciado normativo (norma) se revela mais ricamente diante do caso concreto, o papel do juiz deixa de ser meramente passivo e passa a ser ativo e causa uma abertura do direito aos fatos concretos da vida social deduzida em juízo.

O bom juiz não é mais aquele que se isola do mundo ou se imagina em situações de distanciamento da realidade que o cerca para realizar um raciocínio jurídico puro, reto e abstrato a fim de alcançar a essência imutável e perene da prescrição jurídica. O bom juiz é aquele que entende o quadro geral de sua so-ciedade e como a específica lide se posiciona nele. É aquele que sabe identificar os valores constitucionais que concorrem no caso e como a sociedade os vivencia e pondera para, então, orientar a compreensão dos enunciados normativos que serão os critérios de sua decisão. Conforme expõe Zagrebelsky13, a jurisdição deve ser posta a serviço de dois padrões: a lei e a realidade. Somente por meio da mediação da tensão entre ambos, poderá o magistrado obter qualquer significado.

Segundo o mesmo autor, os casos concretos possuem uma exigência regu-lativa que pressionam o direito posto e a jurisdição:

Il diritto positivo pressupone, mas no può imporre una comprensione de senso. Che, per esempio, l’interruzione volontaria della gravidanza sua un omicionio o altra cosa è evidentemente l’antecedente de qualunque legisla-

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zione sull’aborto mas nessun legislatore può pensare che la sua assuzione di senso è mutata a livello profondo, la pressione del caso, diversamente categorizzato rispetto al passato, ha diffusamente imposto la trasforma-zione delle regole giuridiche, attraverso uno sforzo de adeguamento tanto della giurisprudenza che della legislazione che della scienza del diritto, in numerosi Stati. E oggi, che questa categorizzazione tendo nuovamente a modificarsi, nuove trasformazioni in vista.

Tatno vale per dire, ancora un volta e da particolare punto di vista, che il diritto nom ha la forza de distaccarsi dall’ambiente culturale in cui è collo-cato e di ergersi come sistema normativo independente e autosufficiente. È una parte, per quanto importanto, ma sempre una parte, mai il tutto.14

Este é um ponto importante: embora protagonista, o juiz do Estado Constitucional não pode ser voluntarista, não pode querer impor sua particular perspectiva deontológica e axiológica ao caso. Deve haver a compreensão de que ele se insere em um complexo social e jurídico em que ele deve, em verdade, ser um adequado tradutor para a lide em julgamento. Não pode romper todo esse tecido que interfere no círculo hermenêutico para impor uma concepção egocêntrica. O juiz não se não é mais a boca da lei, também não pode ser ator desprendido de todas as demais fontes de normatividade. O desafio imposto é bem realizar esse equilíbrio, daí o compromisso de integridade, no sentido de observância desses elementos, sem prejuízo de uma evolução.

Nesse contexto, o controle de constitucionalidade ganha nova feição. Poucos países do mundo, atualmente, desconhecem o poder de cortes ou juízes declararem inconstitucionalidade de leis e demais atos normativos. Houve não só uma expansão, mas um aperfeiçoamento tanto pelo incremento dos remédios processuais de controle quanto, principalmente, pela técnica de se averiguar e se declarar a constitucionalidade parcial ou total de um ato normativo. Além da incompatibilidade absoluta entre lei inferior e Constituição, o uso da nova hermenêutica permitiu uma recalibração do equilíbrio valorativo abstrato para, no caso concreto, sem infirmar a opção legislativa, a validade para futuros casos.

Assim, o juiz passou a ter, então, responsabilidades muito maiores, pois não poderá simplesmente se contentar com a solução prevista pelo direito legislativo, porquanto poderá, pela aplicação direta dos princípios constitucionais, construir a solução mais justa e adequada para o caso que julgada.

É possível sumariar as características da jurisdição no Estado Constitu-cional da seguinte forma: a) juiz compromissado com a realização dos preceitos constitucionais; b) controle amplo da constitucionalidade, com surgimento de instrumentos novos; c) papel ativo, mas não voluntarista, na criação do direito; d) utilização de novas técnicas hermenêuticas; e) dever de adequação do processo e procedimento para melhor garantir o resultado final; e f) realização de uma justiça concreta.

Naturalmente, essas mudanças profundas no constitucionalismo fizeram emergir o Estado Constitucional, que ocasionou uma crise, sobretudo quando

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exercida por Judiciário hierarquizado, cuja estrutura mais bem se adequada às demandas do Estado Legislativo, como visto.

No mesmo sentido, a formação dos juristas em geral e o modo de seleção dos juízes em particular não acompanharam essa nova compreensão do Direito e do Estado. Nos bancos universitários, os estudantes são treinados em conceitos jurídicos gerais e absolutos, com realização de avaliações que prestigiam a me-morização e não a problematização e a construção de respostas específicas com desenvolvimento de raciocínio adequado. Nas provas de seleção de magistrados, à repetição desse padrão da universidade, soma-se o caráter eliminatório das perguntas, forçando para a aprovação o isolamento do candidato por anos para se dedicar exclusivamente aos livros, mantendo-se alheio à sociedade. Mesmo o uso de precedentes jurisprudenciais é feito mediante a descontextualização dos mesmos e citação apenas de ementas com a mesma pretensão de universalidade das leis sob a concepção positivista.

Portanto, na medida em que impõe uma nova jurisdição, o Estado Cons-titucional causa uma crise desta dada a incompatibilidade estrutural do Judici-ário, ainda que não total, e a falta de uma formação adequada de seus atores. Houve a mudança do referencial teórico, mas o Judiciário e os juízes precisam acompanhar essa mudança.

A análise da jurisdição no Brasil, a partir das perspectivas aqui expostas, bem demonstra essa crise.

4 JURISDIÇÃO NO BRASIL: ENTRE A HIERARQUIZAÇÃO DO JUDICI-ÁRIO E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO

As observações gerais acima feitas em relação ao Judiciário hierarquizado são válidas para o Judiciário brasileiro que, indiscutivelmente, adotou essa forma de estruturação, como é facilmente perceptível pela leitura do Texto Constitucional.

Temos juízes profissionais e de carreira que decidem tecnicamente sob um rígido controle hierárquico facilitado pela grande quantidade de recursos que permitem a ascensão das causas. Essa formação profissional fez que, ao longo da história, o juiz brasileiro se afastasse da sociedade, sendo visto como um órgão fechado, corporativo e comprometido com os “Donos do Poder”, na feliz expres-são de Raymundo Faoro para designar o patronato brasileiro que historicamente domina o cenário político estatal do país.15

O modo de decidir é fortemente padronizado, tanto pelos fundamentos normativos quanto pelo referencial axiológico utilizado, mas, também, pelo expurgo de singularidades reais para fazer enquadrar a lide a prévio modelo legal ou jurisprudencial em pleno prejuízo para a realização da justiça concreta prestigiada pelo Estado Constitucional.

Há, porém, quem defenda, no Brasil, entendimento diferente. Para Cân-dido Rangel Dinamarco, a evolução e adequação da Constituição e da legislação

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inferior, ou seja, a interação e mútua interferência com a sociedade é permitida precisamente pelo repetido labor pretoriano em um mesmo sentido. Escreve o professor da Universidade de São Paulo:

As mutações constitucionais e legais decorrentes da repetição de julgados e da ‘força da jurisprudência’ constituem, na verdade, im-posições do próprio sentimento nacional e não do Estado mesmo, supostamente agindo através do juiz nessa função.16

Nossa discordância do posicionamento do renomado autor ocorre tam-bém por considerarmos que não é mediante a repetição e padronização de uma maneira de julgar que se irá conectar os enunciados normativos e a sociedade. Ao contrário, somente o juiz verificando as nuances de cada caso é que será possível se tomar o sentido pleno do enunciado a ser aplicado, abrindo espaço para considerações quanto ao ambiente social em que está inserido.

A facilitação de ascensão das causas também prejudica a realização de julgamento mais adequado à lide, pois, como visto, o que as instâncias superio-res conhecem é apenas aquilo que foi deduzido a termo nos autos. Ocorre que, nessa tarefa, há uma defasagem na retratação dos elementos tratados: nem todos os contornos dos atos e das realidades descritas podem ser proficuamente tradu-zidos em palavras escritas. Mesmo que isso não represente maiores perdas com relação à fase postulatória do feito em primeiro grau, a perda de informações no referente às provas tomadas em audiência é enorme. A postura da testemunha, a segurança em suas respostas, enfim, tudo aquilo que compõe uma comunicação não verbal que o magistrado presente pode captar não será remetido aos graus superiores, em razão da dificuldade de se reproduzir por escrito tais impressões.

A natural pressão que existe do ápice sobre a base em um Judiciário hie-rárquico é potencializado pelo modo de se aplicar os precedentes no Brasil e, sobretudo, pela criação da súmula vinculante, que é mais bem classificada como um ato normativo e não um precedente jurisprudencial, conforme defende José de Albuquerque Rocha.17

A vinculação ao precedente em um Judiciário paritário se justifica porque sua estruturação possibilita uma miríade de decisões e dificulta a formação de uma memória institucional, daí porque as poucas causas que ascenderem para os tribunais superiores devem ser observados por garantirem um mínimo de ordenação e coerência. Entretanto, quando essa vinculação é exigida em um Judiciário hierarquizado, a natural opressão do ápice sobre a base institucional se potencializa enormemente.

O mal uso do precedente no Brasil é denunciado por Mauricio Ramires18. Como muito bem destaca o autor, é cada vez mais comum encontrar decisões cujo único fundamento seja a citação de ementas plenamente desprendidas do contexto e mesmo do texto completo do decisium, muitas vezes, dando o mesmo tratamento a situações diametralmente opostas ou distintas. No mesmo sentido, decide-se arbitrariamente citando um precedente de tribunal superior, mesmo

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havendo outros da mesma corte em sentido oposto, sem qualquer justificativo do porquê da escolha de um em detrimento do outro.

Também é apontado como inadequado uso de precedente a mudança de orientação do juiz pelo simples fato de ter havido oscilação nos tribunais, sem que ele próprio faça uma reflexão ou mesmo um arrazoado dos motivos de sua própria mudança.

Afirma o mesmo autor haver a utilização de uma jurisprudência dos con-ceitos “à brasileira”, pois, em vez de permitir uma abertura do Direito aos fatos, ocasiona uma cisão entre eles:

O que mais das vezes ocorre é a pretensa “separação cirúrgica” entre o fato e o direito, com o esquecimento ou o encobrimento da realidade, quando se insiste em trabalhar apenas com os institutos Standards jurídicos como se fossem as categorias abstratas da ma-temática. Por isso, outra grande conseqüência da má compreensão da teoria dos precedentes no Brasil é a repristinação involuntária e inconsciente da jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz), escola de positivismo normativista fundada por Georg Fredrich Puchta nos anos 1830, que preconizava que a atividade judicial criasse conceitos gerais através do obscurecimento dos dados singulares de cada problema concreto até chegar, por abstração, a um conceito universal e apto a compreender todas as situações individuais que lhes deram origem.19

Mesmo em questões históricas e cruciais, os magistrados brasileiros se alheiam dos fatos e do contexto social acreditando que, assim, estão melhor exercendo sua função jurisdicional. É possível exemplificar essa postura com o voto do Ministro Paulo Brossard no julgamento da importante ADI n. 534/DF sobre o plano Collor ao expor:

Por entender que se trata de uma questão que não poderá deixar de ser mencionada na história deste STF, refleti serenamente sobre o caso, como se estivesse longe dos homens e fora do tempo, como se estivesse a contemplar o mar imenso, em eterno movimento, e as montanhas coroadas de neve eternas em sua imobilidade milenar, e conclui que entre o discurso econômico, de duvidosa correção, e o discurso jurídico claramente enunciado na Constituição, não havia o que hesitar.

Com se percebe, em vez de buscar compreender a realidade brasileira naquele instante de grande instabilidade econômica, os anseios e valores dos brasileiros em torno da questão posta pelo primeiro presidente eleito após o regime militar, preferiu o julgador pensar em montanhas, neves e no mar.

E mais.

José Albuquerque Rocha20 aponta outra característica da ordem brasileira que oprime o julgador de primeiro grau para fazê-lo amoldar-se aos entendimentos superiores: o controle que o mesmo tribunal faz tanto das decisões quanto da

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carreira do juiz, constrangendo aqueles magistrados que queiram ter mais inde-pendência em suas decisões por temerem retaliações na progressão profissional.

Como não poderia ser diferente, tem-se uma crise da jurisdição, sobretudo por está a passar por um momento de transição entre o Estado Legislativo e o Estado Constitucional, mas também por outros fatores.

José Renato Nalini21 aponta um rol de razões da crise do Judiciário que seriam estruturais (em razão da maneira de se administrarem os órgãos), conjunturais (falta de profundo planejamento institucional de longo prazo), processuais (prestígio a vários formalismos) e culturais (distanciamento entre juízes e população).

Entretanto, o Estado Constitucional e o constitucionalismo contemporâ-neo estão a se firmar no Brasil. Mesmo não tendo sido tarefa da jurisdição, como nos países europeus, a doutrina se encarregou de modificar o referencial teórico que deve considerar o juiz ao julgar. Paulatinamente, verifica-se na jurisdição a incorporação dessa nova pauta institucional

No Brasil, a Constituição de 1988 é a principal responsável pelas inovações no Direito Constitucional, já que permitiu, sob sua égide, o mais longo período democrático de nosso país, no qual o próprio estudo do Direito foi revigorado nas faculdades, com o aumento da concorrência por vagas nas universidades públicas e a proliferação de cursos jurídicos no âmbito privado. Com esses novos ares, o ambiente jurídico deixou de ser aquele reacionário e conservador reinante durante os vinte e quatro anos de regime militar, passando a ser o campo natural para surgi-mento de contestações sociais e resistências a atitudes tendentes ao autoritarismo.

O debate constitucional ganhou ampla repercussão e passou a ser assunto corriqueiro nos mais diversos âmbitos sociais. Mesmo em período em que teve seu texto mais intensamente alterado por inúmeras emendas, não foram poucos os defensores de sua base axiológica, sendo essa reação, sem dúvidas, a responsável por sua manutenção, arrefecendo a avidez daqueles que, vez por outra, pretendem a convocação de uma nova assembléia constituinte.

A doutrina nacional rompeu com os velhos paradigmas, avançando no aprofundamento de uma teoria da Constituição que a torna vinculante e efetiva. O reconhecimento de sua relevância passou a permear todos os ramos da ciência jurídica, sendo pouco comum encontrarmos algum expoente de uma área jurídica que não dê à sua matéria uma abordagem iniciada da Constituição, evidenciando a superação da velha dicotomia entre direito público e direito privado.

Não se pode olvidar, entretanto, um problema que acomete o Direito Constitucional do Brasil e dos outros países periféricos, sobretudo da América Latina, consistente do costume de simplesmente importar para sua realidade disposições e ideias de outras constituições, ignorando, na maioria das vezes, que foram formuladas e delineadas levando em consideração um particular contexto social e histórico e específicas características de cada país, de cada ordenamento.

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Será necessário o incremento de mecanismos para conformar as estru-turais resistências de um Judiciário hierarquizado às exigências jurisdicionais do Estado Constitucional. É exemplo disso a repercussão geral para conhe-cimento de Recurso Extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal, pois guarda coerência com a divisão de tarefa dentro da pirâmide judiciário (ao ápice o geral, à base o particular). Entretanto, será a mudança de postura das partes e, especialmente, do magistrado que permitirá essa convergência, tudo como decorrência de uma mudança no ensino jurídico e no modo de formar e selecionar os juízes.

5 CONCLUSÃO

A atividade jurisdicional é fortemente influenciada pelo modo de se estru-turar o órgão responsável por seu exercício e pelo novo Estado Constitucional. Há uma tensão entre ambas as influências quando se tem um Judiciário rigidamente hierarquizado em um Estado Constitucional, pois aquele é mais adaptado a uma jurisdição do Estado Legislativo.

Contudo, essa tensão não se traduz numa incompatibilidade absoluta, demandando, porém, alteração de postura e de conceitos, além de reformas em pontos que ocasionem uma pressão dos órgãos superiores sobre os inferiores e que forçam a desconsideração das peculiaridades do caso concreto para adequar a soluções abstratas prévias.

Os pontos para mudança seriam: a) combate à concentração no tribunal do controle da carreira e das decisões dos juízes inferiores; b) desenvolvimento de uma teoria do precedente adequada ao constitucionalismo contemporâneo e que não simplesmente mimetize os aportes do Common Law que possui razões e funções distintas; c) critérios mais rígidos para ascensão das causas aos tribunais superiores; d) formação dos bacharéis e, em especial, dos magistrados com maior atenção à análise de casos e desenvolvimento de soluções adequadas a suas pecu-liaridades, sem recursos a repetição de fórmulas generalizadoras.

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1 DAMAŠKA, Mirjan R. I volti della giustizia e del potere: Analisi comparatistica del processo. Società editrice il Mulino: Milano, 2000, p. 49.

2 Ibid., p. 53-54.3 Ibid., p. 62.4 ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1992.5 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 5. ed. Coimbra: Armênio Amador Editor, p. 98.6 ZAGREBELSKY, op. cit.., p.247 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito no constituciona-

lismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 13-20.8 ROCHA, José de Albuquerque Rocha. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995.

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Influências materiais e estruturais sobre a jurisdição constitucional brasileira

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9 BARROSO, Luiz Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 26.

10 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 29.

11 Op. cit., p. 39. 12 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros,

2002, p. 17.13 Op. cit., p. 181.14 Op. cit., p. 190.15 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo:

Globo, 2001. 16 DINAMARCO, Cândido. A instrumentalidade do processo. 11. ed.. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 48.17 ROCHA, José de Albuquerque. Súmula vinculante e democracia. São Paulo: Atlas, 2009.18 RAMIRES, Mauricio. Crítica a aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2010.19 Op. cit., p. 47.20 ROCHA, 1995, op. cit.21 NALINE, José Renato. A rebelião da toga. 2. ed. Campinas: Millennium, 2008, p. 10-20.

MATERIAL AND STRUCTURAL INFLUENCES OVER BRAZILIAN CONSTITUCIONAL JURISPRUDENCE

ABSTRACT

The Brazilian constitutional jurisdiction is shaped by hierarchi-cal and pyramidal structure of the judiciary (formal/structural aspect) and by the theoretical concepts that made emerge the Constitutional State (material aspect). These influences disrup-ted the traditional model, for the hierarchical judicial structure was designed according to the needs of operating the jurisdiction of a typical legislative State. This article seeks to bring out these elements of influence and exposes its consequences and tensions on Brazilian jurisdictional activity.

Keywords: Constitutional Jurisdiction. Judiciary hierarchical. Constitutional State.

Submetido: 03 abr. 2015Aprovado:15 ago. 2015

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A inclusão Do elemento “DemocrAciA” no conceito De estADo De Direito e seus efeitos

soBre o princípio DA soliDArieDADe no âmBito DAs contriBuições sociAis

Marlo Thurmann Gonçalves*Marciano Buffon**

1 Introdução. 2 Desenvolvimento. 2.1 O Estado Democrático de Direito e o Princípio da Solidariedade. 2.2 O Estado de Direito na visão normativista kelseniana. 2.3 Aproximação entre Estado de Direito e Rule of Law: inserção do elemento “democracia” no conceito de Estado de Direito. 2.4 Implicações da Inserção do Elemento Político “Democracia” no Conceito de Estado de Direito: O Estado Democrático de Direito. 2.5 A Solidariedade como Princípio Jurídico. 2.6 Aplicação do Princípio da Solidariedade sobre as Contribuições Sociais: graduação da imposição fiscal em consonância com a capacidade contributiva. 3 Conclusão. Referências.

RESUMO

A partir da problemática acerca da possibilidade jurídica de que o âmbito de incidência das contribuições sociais seja interpretado a partir do princípio da solidariedade, expõe-se como a inserção do elemento “democracia” no conceito de Estado de Direito acar-reta o dever do Estado de agir no sentido de promover condições para o exercício pleno da cidadania por todos. A atuação estatal, então, legitima-se a partir da busca da realização dos valores e princípios constitucionais. Dentre eles, ressalta-se o princípio da solidariedade, elevado pela Constituição à condição de objetivo fundamental da República. Tal princípio acarreta um dever em relação a parcela dos cidadãos de agir solidariamente em favor dos mais necessitados, conferindo-lhes condições materiais para que, superando um estado de vulnerabilidade econômica e social, possam exercer a cidadania em sua plenitude. Erigido

* Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Espe-cialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Espe-cialista em Direito Contratual pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Advogado. E-mail: [email protected]

** Doutor em Direito do Estado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, com Estágio de Pesquisa na Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em Direito Público. Especialista em Direito Empresarial. Professor de Direito Tributário na Graduação e no Programa de Pós-Graduação em Direito (stricto sensu) na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Coordenador do Grupo de Pesquisa Tributação e Dignidade Humana (CNPq). Advogado Tributarista. E-mail: [email protected]

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à condição de objetivo fundamental da República, o princípio da solidariedade perpassa as relações jurídico-tributárias, con-dicionando a interpretação das diferentes espécies tributárias, em consonância com as características essenciais de cada espécie de tributo. Aplica-se, em especial, sobre as contribuições sociais, as quais somente são validamente instituídas pelo ente estatal se observada a finalidade social expressa na Constituição. Da análise de tal subespécie tributária em consonância com o prin-cípio da solidariedade, conclui-se pela aplicação do princípio da capacidade contributiva sobre ela, o qual autorizará a tributação progressiva sempre que o contribuinte da contribuição social apresentar maior capacidade contributiva, sendo que, da mes-ma forma, não autorizará a incidência quando não apresentar capacidade contributiva (solidariedade inversa).

Palavras-Chaves: Tributação. Estado democrático de direito. Solidariedade. Princípio da capacidade contributiva. Contri-buições sociais.

1 INTRODUÇÃO

A partir da previsão constante do art. 1º da Constituição Federal, no sen-tido de que o Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito, busca-se, por meio do presente trabalho, analisar as implicações da inserção do elemento político “democracia” no conceito de Estado de Direito, bem como seus reflexos no âmbito da tributação por meio de contribuições sociais.

Conforme se demonstrará ao longo do trabalho, as expressões “Estado de Direito” e “Estado Democrático de Direito” encerram em si valores e concepções políticas, em seu sentido lato, muitas vezes díspares.

De uma forma geral, o Estado de Direito apregoa a limitação do poder pelo direito. Como meio de alcançar tal desiderato, estabelece diversas normas de contenção do poder estatal, garantindo-se aos cidadãos, em sede constitucional, direitos fundamentais de primeira dimensão.

Sem renegar as conquistas do Estado de Direito, o Estado Democrático de Direito adiciona a seu conceito o elemento democrático, o qual não se limita a garantir a alternância no poder e o direito dos cidadãos de participar do pro-cesso eleitoral (democracia instrumental), mas, analisado no sentido amplo de democracia, visa a garantir a todos o pleno exercício da cidadania. Admite-se, pois, com fundamento no elemento “democracia”, a intervenção do Estado na esfera privada, visando à redistribuição de riquezas e à justiça social.

O valor de solidariedade surge, nesse contexto, como decorrência da democracia, já que, por meio de seu exercício, é possível transferir-se parcela das riquezas de parte da população em favor daqueles que se encontrem em situação

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de vulnerabilidade social e econômica. Assume, outrossim, especial relevância na tributação, por meio da qual se permite ao Estado promover a realocação de recursos em favor daqueles que se encontrem em situação de vulnerabilidade social e econômica.

Dado que as contribuições sociais são tributos com destinação constitucio-nal específica voltada ao atendimento de objetivos sociais eleitos pelo legislador constitucional – em consonância, pois, com o conceito de democracia em seu sentido amplo -, tem-se por objetivo demonstrar quais os efeitos da aplicação do princípio da solidariedade sobre tal subespécie tributária, analisando-se, em especial, a aplicação do princípio da capacidade contributiva às contribuições especiais, a possibilidade de tributação progressiva no âmbito da referida subes-pécie tributária, bem como o cabimento da tributação nas hipóteses em que são ausentes indícios de capacidade contributiva.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 O Estado Democrático de Direito e o Princípio da Solidariedade

O art. 1º da Constituição Federal prescreve que a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito. Tal expressão, mais do que significar a submissão a um “governo de leis e não de homens”,1 votadas no âmbito de um Parlamento formado por representantes das várias camadas da sociedade (concepção restrita de democracia), é dotada de um conteúdo axiológico que extrapola esses limites estritos, trazendo ínsita a ideia de transformação da sociedade, de redução das disparidades econômicas, de respeito à dignidade da pessoa humana, de solidariedade.

O termo democracia não se limita, pois, a garantir a participação popular na escolha de seus governantes (conceituação em sentido restrito de democracia), tendo por efeito a assunção de diversos princípios que guiarão a sociedade no sentido de dar condições de exercício da cidadania a todos.

A fim de que se dê a correta amplitude axiológica do conceito de demo-cracia, é mister que se analise, mesmo que de forma breve, as razões pelas quais tal elemento passou a constar do termo “Estado de Direito”.

2.2 O Estado de Direito na visão normativista kelseniana.

Na primeira metade do século XX, a concepção formal de Estado de Direi-to, levada a cabo inicialmente na Alemanha da segunda metade do século XIX, foi elevada a seu extremo por obra do jurista austríaco Hans Kelsen. Visando a atribuir um caráter científico autônomo à Ciência do Direito, pretendeu afastar dela quaisquer elementos externos ao direito, tais como os políticos ou morais, “purificando-a” de tais fatores supostamente estranhos.

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Subsumindo o conceito de legitimidade no de legalidade, a norma jurídica apresentar-se-ia válida sempre que satisfizesse, por suas condições de emissão e/ou por seu conteúdo, as determinações contidas em normas de superior hierar-quia. O Direito, assim, regularia sua própria criação, sendo que o Estado nada mais seria que a própria eficácia da ordem jurídica. Recusando a visão dualista Estado-Direito, Kelsen reconduz o Estado à ordem jurídica, fazendo-o mera personificação dessa ordem e produto de suas determinações.2

O problema do Estado de Direito - expressão que, na visão de Kelsen, constituiria uma tautologia, já que o Estado somente existe a partir de uma ordem jurídica e a ordem jurídica somente pode ser válida e eficaz quando posta por um Estado – poderia, pois, ser enfocado do ponto de vista positi-vista, excluindo todo julgamento de valor implícito e toda preocupação de legitimação subjacente.

Ao negar a dualidade entre Estado e Direito, negando, por consequência, a superioridade do Direito em relação ao Estado, a teoria normativista kelseniana exclui toda real limitação do poder estatal pelo Direito.

Da mesma forma, ao evitar toda análise de conteúdo das regras jurídicas, subsumindo o conceito de legitimidade no de legalidade, faz desaparecer o ideal de justiça intrínseco ao Direito, o qual passa a admitir qualquer ideal político, desde que respeitada a forma hierarquicamente escalonada de produção do Direito prevista em seu ordenamento jurídico.

A ausência de atenção ao caráter substancial das normas jurídicas na teoria kelseniana, prestigiando-se seu modo de produção (aspecto formal), culminou por legitimar Estados totalitários seja de direita, tais como o nazismo e o fascismo, seja de esquerda, tal como o comunismo dos países integrantes do bloco sovié-tico, os quais passaram a deter o poder de impor ideologicamente sua doutrina sobre seus súditos, dada sua legitimação como verdadeiros Estados de Direito, decorrentes da prática de atos fundados em normas legalmente inseridas em seus respectivos ordenamentos jurídicos.

As atitudes claramente contrárias a direitos humanos minimamente considerados, tomadas por potências bélicas amparadas juridicamente por uma concepção formal de Estado de Direito, desprovido de qualquer substrato axio-lógico, levaram a que, após duas Grandes Guerras Mundiais e um período de quase meio século de guerra fria, fizesse-se imperiosa a revisão do conceito de Estado de Direito, cuja concepção formal implicava na inabilidade da lei para conter o poder do Estado.

Chancelado pelo Poder Legislativo, o Direito caracterizava-se pela impo-sitividade de suas ordens, mesmo que contrárias às pretensões da sociedade, configurando uma coleção de ordens autoritárias revestidas de legalidade formal, sem raiz legitimatória na sociedade civil, o que levou à crescente perda de sua legitimação.

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2.3 Aproximação entre Estado de Direito e Rule of Law: inserção do elemento “democracia” no conceito de Estado de Direito.

Como solução para a crescente perda de legitimidade do modelo vigente, operou-se uma aproximação entre a fórmula do Estado de Direito com a tradição britânica do Rule of Law.

Diferenciando-se tais sistemas, pode-se afirmar que o Rule of Law britânico funda-se menos em uma reflexão teórica e em um arranjo conceitual, como ocorre com o Estado de Direito, alimentando-se, ao contrário, de uma longa tradição de constante reconstrução e sedimentação do direito por parte de uma classe jurídica não pertencente ou identificada com o Estado, tendendo os common lawyers, nas palavras de Danilo Zolo, “a interpretar a história política, os conflitos sociais, os costumes civis e o éthos normativo de um povo elaborando uma cultura jurídica socialmente difusa.”3

Baseia-se o Rule of Law britânico em três princípios-guia (guiding principles), quais sejam, a igualdade jurídica dos sujeitos, independentemente da classe social e das condições econômicas, a sinergia normativa entre o Parlamento e as Cortes judiciárias, que implica o reconhecimento da soberania do Parlamento para editar leis, mas, ao mesmo tempo, da vinculação das Cortes aos antecedentes, gerados pela autônoma tradição jurisprudencial, e, por fim, a tutela dos direitos subjetivos.

A aproximação conceitual do Estado de Direito com o sistema do Rule of Law britânico levou a uma crescente difusão do poder, limitando-se os poderes do Estado para dilatar o âmbito das liberdades individuais. O ordenamento jurídico passou, então, a limitar o exercício do poder político, ao definir esfe-ras de não interferência estatal como direitos fundamentais dos cidadãos. Os poderes que até então se encontravam concentrados nas mãos do Estado, com o reconhecimento dos direitos subjetivos oponíveis a ele, foram deslocados em favor da sociedade civil.

O Direito passa a ser visto não mais sob o prisma estrito do positivismo, reduzido à legalidade, já que é tida como um conceito juridicamente incompleto e injusto. À evolução conceitual de Estado de Direito correspondeu a incorpo-ração ao ordenamento jurídico de valores prezados pela sociedade. À legalidade somou-se, pois, a legitimidade.

Ciente de que o poder não se apresenta estático, mas visivelmente dinâ-mico, pretendeu-se sedimentar essa nova visão do Estado e do Direito por meio da inserção de postulados axiológicos nas Constituições, seja pela positivação de direitos fundamentais dos cidadãos, de primeira, segunda e terceira dimensões, seja por meio da previsão expressa de valores que constituem os objetivos da república e dos quais não pode o Estado afastar-se na criação e aplicação das leis.

Ao Estado, pois, em sua função legiferante, administrativa ou judicial, passou-se a impor que balizasse sua conduta em conformidade com as nor-mas constitucionais, em especial aquelas dotadas de forte caráter axiológico.

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Operou-se, com isso, não apenas a contenção do poder do Estado, mas sua legitimação.4

A constitucionalização de valores relativamente com os quais há clara identificação da sociedade, tais como justiça social, dignidade da pessoa hu-mana, vedação do arbítrio, atingiu não apenas o Estado-administração, como também o Estado-legislador, relativamente os quais perduraram a idílica noção de constituírem-se em representantes da sociedade, responsáveis únicos por expor sua vontade e pretensões.

Sendo irreais conceitos como autogoverno do povo e governo em função do bem comum5, havendo por parte da classe política, sempre que possível, a busca por posições de poder, sedimentam-se, na Constituição, valores tidos por cláusulas pétreas, os quais devem ser diuturnamente observados pelo poder estatal, sob pena de perda de legitimidade.

Essa realocação do poder, transferindo-se em parte do Estado para a socie-dade, leva a uma nova concepção de Estado e de Administração não mais como tutores da sociedade, mas como seu instrumento para atingir os fins desejados pela sociedade e tipificados na Constituição.

Conforme refere a doutrina, entretanto, o conceito de Estado de Direito, ao tutelar os direitos civis e políticos, apresenta-se como uma ordem política mínima, limitada à garantia de tais direitos fundamentais.6

A fim de que ao ordenamento jurídico fosse atribuída legitimidade para servir como instrumento de transformação da sociedade, reduzindo-se as desi-gualdades sociais e econômicas, fez-se mister que ao termo jurídico “Estado de Direito” fosse adicionado o elemento político “democracia”, com toda a carga axiológica inerente a ele.

2.4 Implicações da Inserção do Elemento Político “Democracia” no Conceito de Estado de Direito: O Estado Democrático de Direito

A consolidação dos princípios liberais no cenário político, com a consagra-ção do Estado de Direito, constitui um requisito necessário ao estabelecimento da democracia, uma vez que somente há que se falar nela quando são respeitados os direitos civis e políticos de liberdade consagrados pelo liberalismo, tais como o direito de livre pensamento e manifestação, de escolha dos representantes do povo perante os parlamentos, dentre outros.

Ocorre que, ao mesmo tempo em que estabelece os requisitos mínimos à adoção do modelo democrático, o Estado de Direito, em sua inspiração liberal, ao defender o princípio da igualdade em sua acepção unicamente formal (liberdade de todos perante a lei), paradoxalmente admite a existência de desigualdades materiais que são tidas como pressupostos legítimos de tratamento diferenciado, não cabendo ao Estado atenuá-los ou removê-los.7

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Opera, assim, em franca contradição com a teoria democrática, que pres-supõe a redução de disparidades econômicas entre os cidadãos como condição não apenas de possibilitar a prática do exercício da cidadania, mas também como meio de se obter a união de propósitos dos cidadãos, independentemente de sua classe social.8

A evolução do pensamento liberal, com a consequente pregação da impossibilidade de qualquer intervenção do Estado na regulação do mercado, levou à ausência de desenvolvimento da democracia enquanto instituição, sendo hoje vista unicamente sob a ótica instrumental, de garantia de livre escolha dos representantes, em detrimento da ótica material, de busca de justiça social.

Como consequência da evolução da economia de mercado e das flagrantes desigualdades daí advindas, parte da doutrina passou a defender que, a despeito de o Estado de Direito, em sua inspiração liberal, fornecer os elementos mínimos necessários ao estabelecimento da democracia, no estágio atual, liberalismo e democracia não são mais compatíveis entre si.9

Com efeito, as flagrantes disparidades sociais e econômicas advindas da concepção liberal do Estado de Direito tornaram imperioso, como forma de se garantir a própria manutenção da sociedade, de sua unidade, que ao conceito em questão fosse incluído o elemento “democracia”.

Consolidou-se, assim, a tendência de aproximação do conceito de Estado de Direito, em sua versão europeia continental, com a tradição inglesa do Rule of Law, de nítida vocação democrática, advindo a expressão “Estado Democrático de Direito”, de viés social, passando a autorizar a atuação do Estado na busca da concretização da justiça social.

A fim de que o termo “Estado Democrático de Direito” seja compreendido em sua plenitude axiológica, entretanto, é mister que primeiramente se desenvolva o conceito de democracia.

A democracia caracteriza-se essencialmente por seu caráter instrumental, apresentando como definição mínima, a existência de regras prévias de procedi-mento para a formação de decisões coletivas, tomadas por intermédio da partici-pação popular, que se dá por meio do voto, em um ambiente político composto por mais de um partido político independentes, em concorrência entre si.

Mantendo a definição em torno de seu caráter instrumental, Amartya Sen estabelece, como pontos centrais para a compreensão da democracia, “a participação política, o diálogo e a interação pública.”10

Apesar de sua definição encontrar-se centrada em regras procedimentais voltadas a garantir a participação popular na vida pública e a restrição dos pode-res estatais, gerando a resolução de contendas por meio do diálogo, o conceito de democracia traz ínsito à sua definição efeitos de nítido caráter axiológico, tais como o de legitimidade, de observância dos direitos sociais e de redução de desigualdades econômicas e sociais.

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Quanto ao primeiro dos efeitos, a legitimidade, a tentativa de “purificação” do Direito por meio de sua total separação das outras ciências, intentada de modo mais efetivo por Hans Kelsen, em sua obra “Teoria Pura do Direito” (Reine Rechtslehre), culminou por sacar do ordenamento o conceito de legitimidade, sendo substituído pelo de legalidade.

Como consequência, criou-se uma teoria vazia de ideologia, passível de legitimar qualquer forma de exercício de poder, desde governos democráticos, até aqueles claramente tirânicos, de direita ou esquerda, bastando que produzis-sem normas jurídicas em conformidade com o procedimento legal previamente estabelecido em seu ordenamento, para que se encontrasse legitimado o exercício de seu poder.

Com a inclusão do fator democrático ao termo Estado de Direito, assegura--se não apenas que a forma de governo seja a democrática, nomeando-se os go-vernantes por meio de um processo eleitoral legalmente estabelecido, garantida a existência de oposição e de publicidade aos atos governamentais, como também estabelecem-se valores sociais relevantes que deverão ser observados na elaboração e aplicação das normas jurídicas.

A aproximação do modelo europeu continental de Estado de Direito com a fórmula britânica do Rule of Law, de nítida orientação democrática, culmina, pois, por positivar valores caros à sociedade (princípios fundamentais), os quais não apenas implicam uma zona de não-interferência estatal, como também moldam a criação das normas jurídicas, que deverão respeitar seu conteúdo valorativo.

Legitima-se, assim, a criação de normas jurídicas tanto por meio do respeito às regras de competência (validade formal das normas) quanto, agora, por meio da observância de limites de fundo (conteúdo) das normas jurídicas.

Com a inclusão do elemento democrático, o Direito deixa de ser ordem, lex, para ser ordenamento, jus, ao encontrar-se estreitamente vinculado aos va-lores essenciais da sociedade, não podendo deles abdicar, sob pena de perda de legitimidade.11 Faz-se válido e imperativo por meio das regras jurídicas, mas obtém sua legitimidade por meio da observância dos valores inerentes à sociedade.

Ainda que sua produção permaneça a cargo do Estado, há, pois, a legiti-mação das normas jurídicas, uma vez respeitado um limite qualitativo no poder dos representantes dos cidadãos de produzir normas jurídicas, os quais deverão respeitar os valores expressos nas Constituições por meio de princípios jurídicos fundamentais.

Outro efeito de caráter axiológico do conceito de democracia é a necessi-dade de observância dos direitos sociais.

Conforme afirma Danilo Zolo, os direitos sociais são substancialmente estranhos à lógica funcional do Estado de Direito, no qual a titularidade dos direitos civis e políticos deveria permitir a cada cidadão empenhar-se por si só, livremente, na interação social.12

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De fato, o Estado de Direito, de feição liberal, nasce como reação ao poder absoluto do Estado, que invade os subsistemas econômico e social, retirando a liberdade dos cidadãos. Tem como características, pois, o pessimismo potestati-vo, vale dizer, a concepção de que o poder político tende a extrapolar seu raio de atuação, devendo, por isso, ser permanentemente contido, e o otimismo normativo, traduzido na pretensão de contrastar o poder político por meio do direito, que o confinará aos limites de não interferência estatal traçados pelos direitos subjetivos.

Resultando da reação ao poder estatal, o Estado liberal (e, por consequ-ência, o Estado de Direito) apresenta-se avesso aos direitos sociais, seja por con-ferirem a possibilidade de que o Estado amplie sua esfera de poder, ao assumir uma posição de protagonismo na concessão dos direitos, seja por assumirem a ideologia de caber a cada cidadão, em igualdade de condições perante a lei (igualdade formal), afirmarem-se socialmente, sem necessidade de recorrer à proteção paternalística do Estado.

A realidade, entretanto, passa a contrariar a teoria liberal no momento em que a concentração excessiva de riquezas (e, por consequência, de poder) nas mãos de um grupo econômico reduzido leva a que, em contrariedade à teoria liberal smithiana, ele passe a dominar o mercado. Afastando sua preten-dida autorregulação, o mercado passa a ser dominado por grupos econômicos, que passam a exercer influência sobre a política, o ensino, a remuneração média dos trabalhadores, dificultando o acesso aos instrumentos necessários à ascensão social.

Por consequência, opera-se a estratificação e a estagnação social, ainda que teoricamente todos disponham de igualdade de meios para alcançar sua realização.

Com o advento do elemento democrático ao conceito de Estado de Direito, o Estado passa a contar, dentre seus objetivos primordiais, com o de zelar pelo bem comum13, o que implica conferir direitos sociais aos cidadãos que, por mo-tivos diversos, muitas vezes alheios a sua vontade, não disponham de condições efetivas de gerir livremente seu destino ou, em outras palavras, não disponham de uma efetiva liberdade.

Da mesma forma, cumpre ao Estado zelar pela efetividade dos direitos sociais tipificados na Constituição Federal, evitando as constantes tentativas de sua supressão, geradoras de um aprofundamento da desigualdade social.

Funda-se na democracia, pois, o dever de conferir direitos sociais aos necessitados, que implica não apenas a garantia dos direitos individuais dos ci-dadãos, como também o reconhecimento de um caráter orgânico de sociedade, implicando a união de esforços dos cidadãos em prol do bem comum.14

Do conceito de democracia, irradia-se ainda um terceiro efeito, intima-mente ligado ao da necessidade de observância dos direitos sociais: o de redução das desigualdades econômicas e sociais.

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De fato, juntamente aos direitos negativos (direitos contra o Estado), a democracia demanda que sejam observados direitos positivos (direitos por meio do Estado), visando a conferir condições mínimas de liberdade a parcela significativa dos cidadãos.

Alguns direitos aquisitivos dos cidadãos, tais como liberdade de iniciativa econômica, liberdade de associação, autonomia de negociação, somente são acessíveis à parcela restrita da população, que dispõe dos instrumentos políticos, econômicos e organizativos para os exercerem. Por consequência de seu exercício em uma situação de poder (de se lembrar que o poder tem, dentre suas carac-terísticas intrínsecas, a de visar constantemente a sua expansão e a de excluir poderes concorrentes), seu exercício tende a restringir a liberdade de outros sujeitos, aprofundando as desigualdades sociais.

Cumpre ao Estado, pois, atuar como agente redutor das desigualdades, seja por meio da concessão de prestações positivas, seja pela regulação de deter-minadas atividades, visando a conter a exacerbação do poder.15

Somente por meio da redução das desigualdades, possibilita-se a recupera-ção do sentimento de bem comum e, por consequência, o exercício da cidadania, como afirma Alain Touraine:

Uma segunda condição da democracia é que os governados queiram escolher seus governantes, queiram participar da vida democrática, sintam-se cidadãos [...] se as desigualdades sociais são tão grandes que os habitantes não possuem o sentimento de um bem comum, falta fundamento à democracia.16

Trata-se o exercício da cidadania, nas palavras de Norberto Bobbio, de uma das promessas não cumpridas da modernidade.17 Consiste na concessão de condições materiais suficientes para que a totalidade das pessoas possa exercer com liberdade o direito de escolha e participação política, com vistas ao bem comum.

Com efeito, não pode ser exigido de uma pessoa que não possui acesso a uma educação formal de qualidade que saiba discernir entre propostas e visões políticas diversas, ou, ainda, que tenha condições de avaliar o grau de realismo de cada proposta; de forma ainda mais grave, não há como se exigir de alguém sem condições mínimas de subsistência que não troque seu voto por alguma vantagem imediata. O pensamento somente volta-se ao bem comum quando supridas as necessidades urgentes e inadiáveis das pessoas e quando reduzida a percepção geral de desigualdade social.

Por esse motivo, a redução das desigualdades apresenta-se como requisito para o exercício da cidadania, condição da democracia. Apresenta-se também, conforme afirmado acima, como um efeito da democracia.

De fato, com a extensão do sufrágio à universalidade das pessoas, estas passaram a ter seus interesses representados perante o parlamento. É lícito, pois, que não se limitem a postular a proteção das liberdades fundamen-

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tais, mas também que se assegure uma distribuição equânime da riqueza, atenuando-se (ou, em uma situação ideal, eliminando-se) as disparidades dos pontos de partida.

Em suma, por meio da redução das disparidades econômicas e sociais, a democracia atinge um de seus objetivos fundamentais, sintetizado pela genialidade do poeta gaúcho Mário Quintana: “A democracia é dar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, isso depende de cada um.”

Conclui-se que, por meio da redução das desigualdades, permite-se o livre exercício da cidadania; da mesma forma, em um círculo virtuoso, uma vez possível o efetivo exercício da cidadania, com a participação popular nas decisões políticas, a redução das desigualdades apresenta-se como consequência lógica desse processo.

Demonstrados os efeitos decorrentes da inclusão do elemento demo-crático no conceito de Estado de Direito, tem-se que o Estado Democrático de Direito reconhece os méritos da teoria liberal, mormente no aspecto de controle do poder estatal por meio da lei e do reconhecimento dos direitos fundamentais individuais.

Não olvida, entretanto, as deficiências de tal teoria para solucionar os problemas de justiça social, acrescendo a ela, então, o elemento democrático, com sua carga axiológica no sentido de conferir legitimidade às normas, trazer os direitos sociais à categoria de direitos fundamentais e de buscar a redução das desigualdades sociais, todos como modo de permitir o próprio exercício da cidadania.

Na definição de Alain Touraine, combina a ideologia liberal e de esquerda em busca de garantias aos cidadãos contra os poderes tanto do Estado quanto do mercado:

[...] sofremos por demais regimes autoritários e totalitários que apelavam à participação e ao povo para não sabermos hoje que a democracia repousa sobre a limitação do poder central, como ensina o pensamento liberal. De sorte que é preciso abandonar os debates entre pensamento liberal e pensamento de esquerda, porque não há democracia sem a combinação das idéias que um e outro defenderam, sem um poder limitado que supõe uma socie-dade aberta e sem uma consciência de cidadania.18

Constitui-se, pois, em um plus em relação ao Estado liberal, ao mesmo tempo em que não coincide com a ideia de Estado social, por não visar a garantir a felicidade dos indivíduos de forma paternalista, como se o Estado fosse um tutor dos cidadãos, equiparados a eternas crianças, incapazes de gerir seu próprio destino. O Estado Democrático de Direito assume, assim, um caráter transfor-mador da sociedade, agindo e regulando-se por meio dos valores presentes no seio da sociedade. Dentre esses valores, assume relevância o da solidariedade, já que se constitui em condição para a efetividade da democracia.

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Isso ocorre porque, conforme demonstrado, para que se possa falar em uma democracia real, há a necessidade de se propiciar o exercício da cidadania aos indivíduos, o que, em uma sociedade com imensas desigualdades sociais e econômicas, pressupõe a concessão de direitos sociais à parcela significativa da população, visando a colocar todos em uma situação de efetiva liberdade.

Advindas as condições materiais para a outorga de tais direitos princi-palmente da tributação daqueles dotados de maior capacidade contributiva, os quais a priori não se beneficiam diretamente do produto da arrecadação, somente podem ser legitimamente concedidos em uma sociedade em que prevaleça o valor social da solidariedade.

2.5 A Solidariedade como Princípio Jurídico

A partir da década de 1970, com o declínio do Estado de Bem-Estar Social no ocidente e do Estado Socialista nos países que compunham o bloco soviético, a doutrina ocidental volta seus olhos à moral, buscando reaproximá-la do Direi-to, no que se convencionou denominar de “virada kantiana” (kantische Wende).

Com efeito, tornou-se patente, desde o final da Segunda Guerra Mundial, que a teoria do positivismo, com sua ruptura entre o Direito e a moral, falhara ao possibilitar práticas abomináveis, tais como o extermínio de milhares de pessoas de etnias ou orientação religiosa diversas das de quem detinha o poder, atos estes que, a despeito de atrozes, foram praticados sob a chancela legal.

O Direito, então, passa a buscar sua fundamentação, sua legitimidade, em valores sociais, em normas morais aceitas pela sociedade. Valores como a liberdade e a justiça são concretizados nas Constituições ocidentais por meio de princípios jurídicos, legitimando as regras jurídicas e delimitando o espectro de sua interpretação.

Ocorre por meio dos princípios constitucionais, nas palavras de Lenio Streck, a institucionalização da moral no direito, diante das insuficiências do positivismo:

Expulsa pelo positivismo, ela retorna – agora como uma necessi-dade -, não mais como corretiva/autônoma, e, sim, traduzindo as insuficiências do direito que o positivismo pretendia que fossem dar “conta do mundo” a partir do “mundo de regras”. Efetivamente, é por ela que o direito se abre ao déficit social representado pelo superado modelo liberal-individualista de direito.19

Superando a prevalência das regras típica do positivismo, os princípios e as regras passam a compor a norma jurídica no constitucionalismo contemporâ-neo, não havendo mais que se falar em prevalência da regra (constitucional ou infraconstitucional) sobre o princípio ou em colisão entre regras e princípios, havendo, por detrás de cada regra, um princípio jurídico que delimita o campo de sua interpretação, antecipa o sentido possível da regra.

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Enquanto os princípios representam o resgate dos valores da sociedade, até então afastados pelo positivismo, as regras constituem mandados coativos que levam em conta, em sua interpretação, os valores constantes dos princípios. Conforme clássica lição de Ronald Dworkin, a diferença é de ordem lógica, distinguindo-se quanto à natureza da orientação que oferecem, aplicando-se as regras à maneira do tudo ou nada, vale dizer, incidindo ou não sobre os fatos por elas regulados, enquanto os princípios jurídicos condicionam a interpretação das regras, não se aplicando diretamente sobre fatos jurídicos, mas “conduz[indo] o argumento em uma certa direção”.20

As regras, portanto, seja constitucionais, seja infraconstitucionais, devem ser interpretadas em consonância com os princípios constitucionais, que, ao institucionalizarem a moral no direito, buscam realizar as promessas da moder-nidade, constituindo “o sentido da regra na situação hermenêutica gestada no Estado Democrático de Direito.”21

Dentre os princípios constitucionais, ressalta-se o da solidariedade, erigido à condição de objetivo fundamental da República no art. 3º, I, da Constituição Federal.

Ao estabelecer a solidariedade não apenas como princípio, mas como ob-jetivo da República, o movimento pendular afasta-se do individualismo liberal, reconhecendo o caráter fundamental da solidariedade para a coesão estatal e, por consequência, para a própria existência da sociedade.

Explicita-se não ser a solidariedade um elemento decorativo na sociedade, realizada conforme o nível de evolução moral de cada um e cuja efetividade é garantida apenas pelo sentimento de aprovação social; ao ser erigida a nível de objetivo da República, reconhece-se que uma sociedade na qual cada um aja unica-mente em vistas de seus próprios interesses está fadada à dissolução, à extinção.22

Alçada à categoria de princípio jurídico, sua consecução extrapola os limites unicamente morais das relações interpessoais, cuja realização é garantida apenas pelo sentimento de aprovação/reprovação social, gerando o direito/dever do Estado de buscar sua plena efetividade.

Cumpre ao Estado, assim, atuar no sentido de reduzir as disparidades sociais e econômicas, minimizando seus efeitos perniciosos à coesão social, agindo não apenas por ocasião da ocorrência de eventos contingentes, senão que permanentemente, por meio do estabelecimento de políticas públicas que visem a suprir as carências de determinada região ou camada da sociedade.

E o instrumento que permite ao Estado atingir de forma mais eficaz sua função redistributiva de recursos é a tributação.23 Por meio dela, não apenas se garante que não sejam atingidos pela exação aqueles que não dis-ponham de condições econômicas para fazer frente aos encargos tributários sem prejuízo de sua sobrevivência (ou, em outras palavras, que disponham tão somente do mínimo vital), como também se impõe uma incidência

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proporcionalmente mais elevada àqueles que possuam maior capacidade de arcar com o ônus tributário.

Por meio da instituição de tributos voltados a finalidades específicas, ou-trossim, permite-se ao ente público atuar em áreas em que haja maior necessidade da presença estatal em favor dos mais necessitados, tais como a previdência, a assistência social e a saúde.

Denota-se, assim, que o princípio da solidariedade, a par de gerar direitos a benefícios estatais em favor dos mais necessitados, apresenta-se como um dever jurídico em relação àqueles dotados de capacidade contributiva.

2.6 Aplicação do Princípio da Solidariedade sobre as Contribuições Sociais: graduação da imposição fiscal em consonância com a capacidade contributiva

Conforme afirmado, a Constituição Federal de 1988 prescreve a existência de um Estado Democrático de Direito, o qual se legitima por meio da busca da redução das desigualdades sociais, visando a possibilitar o pleno exercício da cidadania. Aos cidadãos, então, pertence o poder, não ao Estado, que, no âmbito tributário, apresenta-se detentor de uma função, legitimada pela consonância com os valores prescritos na Carta Maior, os quais visam à realização da pessoa humana, detentora do poder soberano. Tal mudança de paradigma é bem retra-tada por Marco Aurélio Greco:

Na CF/88, o Estado surge como criatura da sociedade civil para que atue na direção do atendimento às prioridades e objetivos por ela definidos no próprio texto constitucional. Vale dizer, o Estado é criado pela sociedade civil para servi-la.

Como tal, o Estado não está originariamente investido de poder; ao revés, a ele é originariamente atribuída uma função que se qua-lifica como atividade de busca de objetivos no interesse de outrem (a sociedade civil).24

Com efeito, dentre os diversos âmbitos possíveis de aplicação da soli-dariedade, o tributário apresenta-se como aquele ramo do direito em que este princípio dispõe de condições de maior efetividade. Isso ocorre porque, ao contrário da grande maioria dos princípios que encartam valores relativos a direitos dos cidadãos, o princípio da solidariedade relaciona-se a deveres destes para com a sociedade como um todo, tendo o Estado, por titular do direito, de exigir sua efetivação.25

É mister salientar que a aplicação do princípio da solidariedade na esfera tributária não acarreta uma ampliação do poder estatal de tributar, conclusão a que se chega apenas por meio de uma leitura da Constituição sob um viés liberal, não condizente com o texto constitucional vigente.

Não mais possuindo o Estado um poder tributário limitado pelas normas constitucionais, mas uma função legitimada pela observância dos princípios caros

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à sociedade, encartados na Constituição, o princípio da solidariedade atuará como meio de se interpretar a forma de atuação dos tributos sobre os fatos concretos, delimitando seu âmbito de incidência.

Aplicando-se o princípio da solidariedade sobre os tributos, cumpre analisar-se quais seus efeitos sobre as contribuições sociais, em especial no que tange à graduação da imposição fiscal em atendimento à capacidade econômica dos contribuintes, já que, segundo leitura do art. 145, § 1º, da Constituição, o princípio da capacidade contributiva teria sua aplicação limitada aos impostos.

Conceitua-se a capacidade contributiva como a possibilidade de se instituir tributação progressivamente mais gravosa sobre determinados fatos jurídicos, quando apresentarem sinais de riqueza do contribuinte superiores a de outros contribuintes.26

O princípio da capacidade contributiva encontrava-se já previsto na Constituição de 1946, aplicando-se, conforme prescrição expressa do art. 202, à totalidade dos tributos:

Art. 202. Os tributos terão caráter pessoal, sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte.

A Constituição de 1967 silenciou acerca do referido princípio, o que não impediu que fosse aplicado quando da instituição de tributos ou da interpretação das normas legais tributárias.27 Sobrevinda a Constituição Federal de 1988, o princípio da capacidade contributiva voltou a constar expressamente do texto constitucional, em seu art. 145, § 1º.

À ocasião da promulgação da Constituição de 1988, o Brasil recente-mente superava um período superior a vinte anos de ditadura militar, o qual apresentava, como uma de suas características marcantes, a prevalência do Poder Executivo sobre os demais poderes da República. Possivelmente em razão da intenção de frear os poderes do Executivo, optou-se, por ocasião da redação do art. 145, § 1º, por restringir o princípio da capacidade contributiva aos impostos, não o estendendo às demais espécies tributárias, como o fizera a Constituição de 1946.

Evitava-se, com isso, que, por meio de uma interpretação distorcida do sistema tributário, culminasse-se por estender o referido princípio a espécies tributárias que não se apresentam condizentes com sua aplicação, tais como as taxas e contribuições de melhoria, evitando que o Poder Executivo, com vistas ao incremento do Erário, culminasse por desnaturar tais tributos.

A partir da previsão constitucional de que os impostos sejam graduados segundo a capacidade econômica dos contribuintes, a doutrina tradicional passou a defender a aplicação do princípio da capacidade contributiva exclusivamente em relação a tal espécie tributária, não podendo alcançar outros tributos, por ausência de previsão constitucional.28

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Fundamentou sua aplicação, outrossim, no princípio da igualdade, ex-pressamente previsto no art. 150, II, da Constituição Federal, transformando-se em entendimento uníssono, a partir de então, que o princípio da isonomia au-torizaria a tributar de forma igual os contribuintes em situação igual e de forma desigual, mais gravosa, os contribuintes que se encontrassem em situação desigual, apresentando sinais objetivos de riqueza superiores aos demais.

Ainda que não se possa afastar a relação existente entre o princípio da igual-dade e o da capacidade contributiva, não há uma identidade completa, integral entre ambos. Pode-se dizer, com Luciano Amaro, que o princípio da capacidade contributiva “avizinha-se do princípio da igualdade”,29 mas não se constitui em sua expressão clara, como pretende a doutrina tradicional.

Isso se dá porque o princípio da igualdade, conforme previsto no art. 150, II da Constituição Federal (ou, de forma geral, no art. 5º, caput, da Constituição), limita-se a vedar o tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Trata, pois, de uma relação horizontal, existente entre contribuintes em situação semelhante, nada dispondo acerca da relação vertical, entre contribuintes com diferente capacidade econômica.

Com muito maior coerência argumentativa, pode-se ligar o postulado da capacidade contributiva ao princípio da solidariedade que, constituindo um objetivo fundamental da República, deve permear a interpretação da totalidade das normas constitucionais, inclusive as tributárias.

Fundado no princípio da solidariedade, portanto, permite-se concluir que aqueles que apresentem maior capacidade econômica devam contribuir em maior proporção a favor do Estado. A justificativa da tributação desigual assume maior clareza e coerência quando fundada na solidariedade, que per-mite exigir-se esforços maiores daqueles dotados de maiores condições, em prol do bem comum.

É importante repisar, outrossim, que o princípio da capacidade contri-butiva encontra fundamento não apenas na solidariedade enquanto objetivo fundamental da República, mas também no próprio Estado Democrático de Direito. Com efeito, conforme já referido anteriormente, o Estado Democrático de Direito extrapola a concepção liberal de Estado, não se limitando a impor a submissão do Estado à lei e a resguardar do poder estatal os direitos fundamentais. Sem abrir mão dessas conquistas, impõe, por meio do elemento “democracia”, uma atuação do Estado no sentido de propiciar o livre exercício da cidadania por todos, o que se dá por meio do oferecimento de condições materiais que permitam a todos viver com dignidade. Conforme sustenta Ernani Contipelli, o Estado supera a bipolarização existente entre os valores liberdade, defendido pelo Estado liberal, e igualdade, preconizado pelo Estado Social,30 para buscar conferir condições de exercício de cidadania a todos.

Legitimando-se o poder estatal por meio da busca da realização dos valores sociais, para cuja consecução impõe-se a atuação no sentido de reduzirem-se as

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desigualdades sociais, o princípio da solidariedade e, por consequência, o da capacidade contributiva, seu reflexo no campo tributário, acabam constituindo um desdobramento da própria adoção do modelo de Estado Democrático de Direito em solo brasileiro. Nesse sentido:

O princípio da capacidade contributiva, diferentemente do que sustentam muitos, não está fundamentado no § 1º do art. 145 da CF/88. Ele decorre do caráter do modelo de Estado constituído pela Carta brasileira de 1988 (Estado Democrático de Direito), o qual está alicerçado nos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade substancial e da solidariedade. Isto é, não há de se falar em Estado Democrático de Direito, se esse não tiver como objetivo a redução das desigualdades sociais, a construção de uma sociedade solidária, que esteja apta a assegurar igual dignidade a todos os seus membros.31

Com efeito, o modelo de Estado Democrático de Direito, adotado expres-samente no art. 1º, caput, da Constituição, demanda, para sua concretização, um agir estatal no sentido de reduzirem-se as desigualdades, com o fito de se propiciar o exercício da cidadania. Sendo os tributos o melhor instrumento de que dispõe o Estado para esse desiderato, justifica-se a adoção do princípio da solidariedade sobre a totalidade dos tributos que, por sua natureza, permitam sua aplicação, sendo ele concretizado por meio do princípio da capacidade contributiva, que se apresenta como seu reflexo no âmbito tributário.

Por ser o princípio da solidariedade uma decorrência do Estado Demo-crático de Direito e por impor este a atuação positiva do Estado no sentido de busca do bem comum, o qual pressupõe a redução das desigualdades so-ciais, sem a qual se compromete a própria continuidade da sociedade como corpo unido, a doutrina tem paulatinamente fundamentado a capacidade contributiva no referido princípio, como se observa da doutrina de Marciano Seabra de Godói:

No Direito Constitucional-tributário contemporâneo de diversos países, consolidou-se uma terceira justificação da capacidade econô-mica: exatamente a que fundamenta dito princípio na solidariedade social. Na Alemanha, na Espanha e na Itália, os juristas e as Cortes Constitucionais compreendem a capacidade econômica como o parâmetro preferencial (mas não o exclusivo) para fazer atuar no Direito Tributário o princípio da igualdade, o que é visto como uma ‘projeção do princípio da solidariedade social sobre a repartição das cargas públicas’. 32 (grifo do autor)

Encontrando o princípio da capacidade contributiva fundamento na so-lidariedade e no próprio Estado Democrático de Direito, aplicar-se-á, portanto, não apenas aos impostos, mas a todos os tributos que, por sua natureza, permitam a incidência de alíquotas progressivas, de acordo com a presença de critérios objetivos que permitam denotar a existência de maior riqueza do contribuinte.

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A solidariedade, pois, justifica a incidência de tributos de forma pro-gressiva, em razão da maior capacidade contributiva dos cidadãos, não apenas sobre os impostos, conforme expresso no art. 145, § 1º, da Constituição, mas sobre todos os tributos, observando-se se sua natureza apresenta-se condizente com a progressividade.

O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal manifestou-se nesse sentido, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 573675/SC, cujo objeto era a constitucionalidade da instituição de Contribuição de Iluminação Pública sobre o consumo de energia elétrica pelos contribuintes. Extrai-se do voto proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowski:

No mais, a despeito de o art. 145, par. 1º, da Constituição Federal, que alude à capacidade contributiva, fazer referência apenas aos impostos, não há como negar que ele consubstancia uma limitação ao poder de imposição fiscal que informa todo o sistema tributário.

É certo, contudo, que o princípio da capacidade contributiva não é aplicável, em sua inteireza, a todos os tributos. [...]

Como se sabe, existe certa dificuldade em aplicá-lo, por exemplo, às taxas, que pressupõem uma contraprestação direta em relação ao sujeito passivo da obrigação. Na hipótese das contribuições, todavia, o princípio em tela, como regra, encontra guarida, como ocorre no caso das contribuições sociais previstas no art. 195, I, b e c, devidas pelo empregador.33

Dentre os tributos, cumpre questionar-se se se aplica o princípio da ca-pacidade contributiva sobre as contribuições sociais. Sabidamente, conforme já sedimentado no âmbito jurisprudencial, as contribuições sociais caracterizam--se como espécie tributária autônoma, diversa dos impostos e das taxas. Ainda que não se confundam com os impostos (relativamente aos quais a aplicação do princípio da capacidade contributiva é inquestionável, por força do art. 145, § 1º, da Constituição), já que possuem destinação constitucional expressa, o que é vedado àqueles, por força do art. 167, IV, da Constituição, assemelham-se a eles, uma vez que o tributo incide sobre os elementos materiais expressamente referidos pelo legislador constitucional, independentemente da existência de uma contraprestação estatal diretamente voltada ao contribuinte.

Diferenciando-se dos impostos unicamente no que tange a sua destinação constitucional, não são vislumbrados óbices à aplicação do princípio da capaci-dade contributiva sobre as contribuições sociais.

Compulsando-se a legislação, denota-se que o próprio legislador reconhece a possibilidade de aplicação do princípio da solidariedade nas contribuições sociais. Com efeito, a Lei de Custeio da Seguridade Social (Lei n. 8.212/91) estabelece, em seu art. 20, alíquotas progressivas de contribuição previdenciária incidentes sobre os salários de contribuição dos empregados segurados da Pre-vidência Social, variando de 8% (oito décimos por cento) a 11% (onze décimos

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por cento), conforme o montante do salário de contribuição. Trata-se, a toda evidência, de desdobramento do princípio da capacidade contributiva no âmbito das contribuições.

Deve-se salientar, outrossim, que, em oposição ao entendimento doutriná-rio tradicional, no sentido de que o princípio da capacidade contributiva limitar--se-ia ao âmbito dos impostos, a própria Constituição Federal estabelece, em seu art. 195, § 9º, a possibilidade de instituição de alíquotas progressivas sobre as contribuições sociais previstas no inciso I do art. 195 do texto constitucional, a cargo do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei.

Ao outorgar competência ao legislador para instituir contribuições sociais com alíquotas progressivas34 ou bases de cálculo diferenciadas, resta evidenciado que a Constituição Federal admite a progressividade dos referidos tributos.

Faz-se mister, entretanto, analisar-se detidamente o art. 195, § 9º, da Constituição Federal, a fim de se verificar se se coaduna com o princípio da solidariedade. Tal artigo autoriza o legislador ordinário a instituir contribuições sociais com bases de cálculo ou alíquotas diferenciadas em atenção à atividade econômica exercida pelo contribuinte, à utilização intensiva de mão-de-obra, ao porte da empresa ou à condição estrutural do mercado de trabalho.

Ocorre que, em atenção ao princípio da solidariedade, somente há que se falar na instituição de tributação progressiva sobre determinadas atividades ou situações fáticas, quando denotarem objetivamente a presença de uma maior capacidade econômica dos respectivos contribuintes, sob pena de infração ao princípio da isonomia tributária, constante do art. 150, II, da Constituição Fe-deral, que veda a distinção de contribuintes em razão de elementos estranhos à sua capacidade econômica.

Impõe-se, pois, que o artigo constitucional em questão seja interpretado em conformidade com a Constituição Federal,35 admitindo a progressividade de alíquotas em razão da atividade do contribuinte tão somente na hipótese em que tais atividades denotem objetivamente uma maior capacidade econômica do contribuinte.

Compulsando-se a jurisprudência da Suprema Corte brasileira, não parece ser a mais adequada à Constituição, portanto, a decisão prolatada por sua 2ª Turma que, em julgamento ao Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 528.160/SP, decidiu pela inexistência de afronta ao princípio da isonomia tributária na instituição de alíquotas mais elevadas de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das instituições financeiras.

Em que pese referido acórdão tenha corretamente entendido que “a institui-ção de alíquotas diferenciadas da Contribuição sobre o Lucro Líquido não contraria o princípio constitucional da isonomia, desde que se observem os princípios da ra-zoabilidade e da capacidade contributiva”, entendeu que as instituições financeiras, pela simples razão da atividade por elas exercida, disporiam de maior capacidade

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contributiva, tendo, por consequência, decidido pela constitucionalidade do art. 2º da Lei n. 9.316/96, que instituiu alíquotas mais elevadas de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das instituições financeiras.36

Ora, é de conhecimento geral que as instituições financeiras, como regra, auferem altos rendimentos em sua atividade-fim. Instituiem-se alíquotas maiores sobre seus lucros, entretanto, com base apenas na atividade por elas exercida, implicará se igualar todas as instituições financeiras em operação no país, inde-pendentemente de seu porte e de sua capacidade contributiva.

Como consequência, algumas instituições financeiras de pequeno porte, cujos resultados econômicos são inferiores aos de grandes empresas de outros ramos em atividade no país, terão alíquotas de CSLL superiores às que incidem sobre o lucro de tais empresas.

Como desdobramento do princípio da solidariedade em matéria tributária, portanto, é imperioso que, quando da aplicação do art. 195, § 9º da Constituição, seja analisado se, com os critérios constantes do referido artigo constitucional, há uma necessária maior capacidade contributiva do sujeito passivo da exação.

Ainda em atenção à aplicação da capacidade contributiva no âmbito tri-butário, como reflexo do princípio da solidariedade, deve-se ressaltar que, nas hipóteses em que o contribuinte não demonstre capacidade econômica de arcar com o pagamento de tributos, não incidirá tributação sobre o fato jurídico por ele praticado.37

Trata-se, aqui, do que se poderia convencionar denominar de solidariedade inversa, e esta não fica a cargo do contribuinte, mas do restante da sociedade em relação àquele que não possa arcar com a tributação sem o comprometimento do mínimo necessário a sua subsistência digna.

Pode-se afirmar, pois, que, no âmbito da solidariedade, a capacidade contributiva encontra seu limite positivo na vedação ao confisco, não podendo atingir proporção tal que absorva a quase totalidade da riqueza produzida, e, no âmbito negativo, é limitada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, não podendo atingir valores ou bens necessários à mantença de uma condição de vida digna dos cidadãos.

A solidariedade inversa decorre do próprio modelo de Estado adotado pelo Brasil (Estado Democrático de Direito), em que o elemento democrá-tico implica a existência do Estado em função do homem, e não o inverso. Buscando sua razão de ser nos cidadãos, não se pode admitir que o Estado retire deles suas condições básicas de sobrevivência por meio da tributação. Nesse sentido:

Se o princípio da capacidade contributiva constitui o norte que alumia o sistema tributário e sua adequada compreensão implica o direito/dever de contribuir conforme a efetiva possibilidade, nada parece mais lógico, óbvio e natural do que não se admitir a

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exigência de tributos, nos casos em que capacidade contributiva não existe, preservando-se assim o mínimo existencial.38

É inadmissível, portanto, dentre outros exemplos na seara tributária, a incidên-cia de tributos sobre os bens componentes da cesta básica ou a incidência de Imposto de Renda sobre salários cujos valores apresentam-se suficientes tão somente (ou, em muitos casos, insuficientes) para fazerem frente às necessidades básicas dos cidadãos com saúde, educação e moradia, as quais são negadas pelo ente estatal.

No âmbito das contribuições sociais, igualmente, apresenta-se flagrante-mente inconstitucional, por atentar contra o princípio da dignidade humana (e o princípio da solidariedade, no âmbito inverso), a atribuição, constante do art. 20 da Lei de Custeio da Seguridade Social (Lei n. 8.212/91), da alíquota de 8% (oito por cento) incidente sobre salários de contribuição inferiores ao salário mínimo, que, por sua própria designação, pretende constituir o valor mínimo necessário para que seu destinatário supra suas necessidades vitais e de sua família.

Como afirma Marciano Buffon, “o mínimo existencial é direito protegido negativamente contra a intervenção do Estado e, ao mesmo tempo, garantido positivamente pelas prestações estatais”.39 Não apresentando o contribuinte condições econômicas mínimas de suportar a exação tributária, não apenas não deverá incidir a tributação sobre o fato jurídico por ele praticado, como também cumprirá ao Estado prestar-lhe a assistência material necessária a garantir sua sobrevivência digna.

3 CONCLUSÃO

A inserção do elemento político “democracia” no conceito de Estado de Direito, operado pelo art. 1º da Constituição Federal, tem implicações diretas no âmbito de relação do Estado com os cidadãos.

Tal elemento acarreta o dever do Estado de agir no sentido de promover condições para o exercício pleno da cidadania por todos os cidadãos. A atuação estatal, então, legitima-se a partir da busca da realização dos valores e princípios constitucionais.

Dentre esses princípios, ressalta-se o princípio da solidariedade, elevado pela Constituição à condição de objetivo fundamental da República. Tal princí-pio acarreta um dever em relação aos cidadãos de agir solidariamente em favor dos mais necessitados, conferindo-lhes condições materiais para que, superando um estado de vulnerabilidade econômica e social, possam exercer a cidadania em sua plenitude.

Como forma de dar efetividade ao princípio da solidariedade, assume especial relevo a tributação, por meio da qual o Estado obtém os recursos neces-sários a promover atos em função de uma melhor distribuição dos valores em prol dos mais necessitados.

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Consequência da aplicação do princípio da solidariedade e do próprio conceito de Estado Democrático de Direito sobre as contribuições sociais será, dentre outras, a possibilidade de aplicação do princípio da capacidade contribu-tiva sobre tal espécie tributária.

Como efeito, as contribuições sociais deverão ter alíquotas diferenciadas em razão da capacidade econômica do contribuinte, afastando-se a concepção tradicional de que referido princípio aplicar-se-ia unicamente aos impostos. O art. 195, § 9º, da Constituição Federal, que autoriza a tributação progressiva em relação às contribuições sociais, deverá, em atenção ao princípio da capacidade contributiva, ser interpretado com vistas a possibilitar tributação progressiva em razão dos elementos ali constantes (atividade econômica, utilização intensiva de mão de obra, porte da empresa ou condição estrutural do mercado de trabalho) somente quando ditos elementos denotem objetivamente a existência de uma maior capacidade econômica do contribuinte.

Também, como efeito da aplicação do princípio da solidariedade sobre as contribuições sociais, não poderão ser tributados aqueles contribuintes desprovidos de capacidade contributiva (hipótese que se convencionou denominar de solidarie-dade inversa), cujos rendimentos bastem a sua própria subsistência e de sua família.

Como consequência, atenta contra a solidariedade a tributação incidente sobre itens componentes da cesta básica, sobre salários cujos valores apresentem-se suficientes unicamente para fazerem frente às necessidades básicas dos cidadãos ou, ainda, especificamente no âmbito das contribuições sociais, a imposição do tributo sobre salário de contribuição inferior ao salário mínimo.

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1 Expressão cunhada por Aristóteles na obra “A Política”, em contraposição à ideia defendida por Platão de um governo regido por sábios, defendida na obra “A República”.

2 CHEVALLIER, Jacques. In: DAL POZZO, Antônio Araldo; DAL POZZO, Augusto Neves (Trad.). O estado de direito. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 40.

3 COSTA, Pietro, ZOLO, Danilo (Org.). In: DASTOLI, Carlos Alberto (Trad.). O estado de direito: história, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 27.

4 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 100.

5 BOBBIO, Norberto. In: PERINE, Marcelo (Trad.). Qual democracia?, São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 23.

6 COSTA; ZOLO, op. cit., p. 90.7 Ibid., p. 39.8 Jacques Chevallier expressa alusão à existência de uma comunidade política como pressuposto à democracia,

caracterizando-se pelo fato de os indivíduos integrantes da comunidade reconhecerem-se e identificarem-se a partir de valores comuns. (CHEVALLIER, Jacques. In: JUSTEN FILHO, Marçal (Trad.). O estado pós--moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 196).

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9 Nesse sentido, Noberto Bobbio afirma que, com o reconhecimento do sufrágio universal, a democracia converteu-se em uma democracia dos partidos de massa, cujo produto é o estado assistencial, a busca da redução das desigualdades, não sendo mais possível conter-se o Estado dentro dos limites pretendidos pela doutrina liberal, de garantia da ordem pública e aplicação da justiça. (BOBBIO, Norberto. In: NOGUEIRA, Marco Aurélio (Trad.). O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1986, p. 124).

10 SEN, Amartya. In: BOTTMAN, Denise; MENDES, Ricardo Doninelli (Trad.). A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 360.

11 GROSSI, Paolo In: DAL RI JÚNIOR, Arno (Trad.). O direito entre o poder e o ordenamento. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 119.

12 COSTA; ZOLO, op. cit., p. 42.13 A esta função do Estado de zelar pelo bem-comum por meio do estabelecimento de regras que protejam

certos interesses, visando a evitar a disparidade social e econômica e, por consequência, o rompimento da coesão estatal, Jacques Chevallier conceitua “Estado supervisor” (CHEVALLIER, 2009, op. cit., p. 69, grifo do autor).

14 Ressaltando a necessidade de à justiça comutativa ser acrescida a justiça distributiva, leciona Norberto Bobbio: “O princípio de justiça a que se vincula Mill é o do neminem laedere: ‘O único objetivo pelo qual se pode legitimamente exercer um poder sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de evitar danos aos outros’. Mas depois do neminem laedere vem, como sabem todos, o suum cuique tribuere. Comentando os praecepta iuris dos juristas romanos, já Leibniz (mas que coisa velha!) observava que o primeiro era suficiente para regular o ius proprietatis, mas que, para regular o ius societatis, era necessário também o segundo. Realmente, como pode uma sociedade manter-se unida sem um critério qualquer de justiça distributiva?” (BOBBIO, 1986, op. cit., p. 111).

15 Tal questão é corretamente abordada na exortação apostólica Evagnelii Gaudium pelo Papa Francisco: ‘Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum’. (IGREJA CATÓLICA. Papa (1936: Francisco). Evangelii gaudium: exortação apostólica sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. Roma, 24 nov. 2013. Agência Ecclesia. Disponível em: <http://www.agencia.ecclesia.pt/dlds/bo/EVANGELIIGAUDIUMPapaFrancisco2013CEP.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2014.).

16 TOURAINE, Alain. In: EDEL, Elia Ferreira (Trad.). Crítica da modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012, p. 348.

17 BOBBIO, 1986, op. cit., p. 31.18 TOURAINE, op. cit., p. 369.19 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São

Paulo: Saraiva, 2011, p. 229.20 DWORKIN, Ronald. In: BOEIRA, Nelson (Trad.). Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: WMF

Martins Fontes, 2011, p. 41.21 STRECK, op. cit., p. 305.22 Esta é a lição sucinta, porém clara, do rabino Abraham Skorka: “O fim dessa sociedade vai ser perecer,

não pode ter um futuro, vai se transformar em outra coisa; mas a sociedade que realmente não tem justiça social em seu seio – isso é o princípio básico da Torá – não tem futuro, não tem continuidade de vida, para ser mais preciso.” (BERGOGLIO, Jorge Mario. In: DOLINSKY, Sandra Martha (Trad.). A solidariedade: Jorge Mario, Abraham Skorka, Marcelo Figueroa. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 34).

23 Nesse sentido: CHULVI, Cristina Pauner. El deber constitucional de contribuir al sostenimiento de los gastos públicos. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 89.

24 GRECO, Marco Aurélio. In: FERRAZ, Roberto Catalano Botelho (Coord.). Do poder à função tributária. Princípios e limitações da tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2009, v. 2, p. 174.

25 No sentido de constituir o tributo um dever fundamental relacionado à solidariedade, vide TORRES, Ri-cardo Lobo. Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, v. 2, p. 181.

26 Conceituando o princípio da capacidade contributiva a partir de sua assimilação ao princípio da igualdade, vide CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 67.

27 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 136.

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28 A título ilustrativo do entendimento doutrinário, vide CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 65.

29 AMARO, op. cit., p. 138.30 CONTIPELLI, Ernani. Solidariedade social tributária. Coimbra: Almedina, 2010, p. 165.31 BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e deveres fundamentais. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 175.32 GODÓI, Marciano Seabra de. GODOI, Marciano Seabra de. (Org.) Solidariedade social e tributação. São

Paulo: Dialética, 2005. p. 141-167.33 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 573.675/SC. Recorrente: Ministério

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34 Embora a norma sob comento disponha sobre alíquotas “diferenciadas”, resta evidente que deve ser lida como “progressivas”, já que a instituição de alíquotas “regressivas”, tributando-se de forma proporcional-mente mais gravosa quem detém menor capacidade econômica, infringiria frontalmente o princípio da solidariedade e seu corolário no âmbito tributário, o princípio da capacidade contributiva.

35 José Joaquim Gomes Canotilho faz alusão ao “princípio da unidade da Constituição”, que impõe que esta seja sempre interpretada como um todo, devendo as normas ser vistas como preceitos integrados em um sistema unitário de regras e princípios, o que afasta as aparentes antinomias entre elas (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 226).

36 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 528.160/SP. Agra-vante: Banco Ficsa S.A. Agravada: União Federal. Relatora: Min. Carmen Lúcia. Brasília, 21 de maio de 2013. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3975822>. Acesso em: 10 abr. 2014.

37 Ressalva-se, nessa situação, aqueles tributos que não possuem uma relação direta com a capacidade econômica do contribuinte, decorrendo de fatos alheios a ela. A título exemplificativo, se determinado contribuinte, mesmo sendo pobre, receba, a título de herança, um luxuoso imóvel em zona nobre da cidade, deverá arcar com o tributo incidente sobre a propriedade do bem (IPTU – Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana), nem que, para fazer frente à tributação, precise desfazer-se do bem.

38 BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e deveres fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 184.

39 Ibid., p. 182.

T H E I N C L U S I O N O F T H E E L E M E N T “DEMOCRACY” IN THE CONCEPT OF STATE OF LAW AND ITS EFFECT UPON THE PRINCIPLE OF SOLIDARITY IN THE SCOPE OF SOCIAL TAXATION

ABSTRACT

From the issue about the legal possibility that the scope of application of social contributions contained in the Constitution be interpreted from the principle of solidarity, shows how the insertion of the element named “democracy” to the concept of Law Democratic State brings about to the State the duty of promoting conditions for the full practice of citizenship by all citizens. The action of the State legitimates itself in the achievement

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of constitutional values and principles. Among them stands out the principle of solidarity, raised up by the constitution as the fundamental aim of the Republic. Such principle imposes on part of the citizens the duty of acting with solidarity in behalf of the lesser ones to provide them material conditions that qualify them to become citizens in its full sense overcoming economic and social vulnerability. Elevated to the condition of fundamental principle of the Republic, the principle of solidarity perpasses the juridical tributary relations, conditioning the understanding of the different tributes in accordance to the essential characteristics of each kind of tribute. It applies essentialy to social taxation which has its validity based on being assured as a social constitutional aim. From the analysis of such tributary type in consonancy to the principle of solidarity, it results in the applicability of the principle of the ability to pay upon it, which authorizes the progressive taxation when the taxpayer of the social contribution have greater ability to pay, and, likewise, will not authorize the incidence when not present any ability to pay (reverse solidarity).

Keywords: Law democratic state. Solidarity. Capacity of paying. Social taxation.

Submetido: 30 mar. 2015Aprovado: 14 ago. 2015

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o proJeto geoestrAtégico multipolAr Dos BRICS, A noVA gloBAlizAção e As AssimetriAs

triButáriAs entre BrAsil e chinA

Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto*

1 Introdução. 2. Desenvolvimento. 2.1 Breve visão crítica sobre a nova glo-balização e breve análise sobre o papel integrativo multipolar dos BRICS. 2.2 o sistema internacional e nacional de defesa da concorrência comercial: a natureza jurídica e os procedimentos dos institutos relacionados às medidas antidumping e o seu papel na equalização do comércio exterior bilateral entre o Brasil e a China: o papel das assimetrias tributárias. 2.3 A aplicação de medidas antidumping em bens importados da China que não tenham produtos similares brasileiros - ao lume da comparação entre os respectivos sistemas tributários: legitimidade e conveniência mesmo sob o ponto de vista da concepção de uma novel globalização e da multipolaridade geostratégica do grupo dos BRICS. 3 Conclusão. Referências.

RESUMO

Análise da nova globalização “não hegemônica” e do papel de integração mundial multipolar dos BRICS e de sua relação com o uso da medida antidumping na equalização do co-mércio exterior bilateral, utilizando-se como critério aferidor da prática ilídima de dumping a análise das consequências das assimetrias tributárias existentes nos respectivos sistemas fiscais de Brasil e China na formação dos preços dos bens econômicos e na fixação do “preço normal” que servirá de referência para constatar a licitude do preço: constatação da legitimidade e conveniência do uso de medidas antidumping pelo governo brasileiro no âmbito das relações de comércio exterior sino-brasileiras, sem que tal uso signifique qualquer risco estratégico para a dinâmica própria da interação sino--brasileira, inclusive, no âmbito dos BRICS, motivo pelo qual se recomenda seu uso quando necessário para a preservação da economia nacional.

Palavras-chave: Globalização. BRICS. Comércio exterior. Assi-metrias tributárias. Antidumping.

* Advogado da União (CGU/AGU); Doutorando do Curso de Doutorado em Direito do Uni-ceub (DF). Mestre em Ordem Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC-2000); atualmente, é Professor de Direito Constitucional, Direito Administrativo e Econo-mia Política do Uniceub. E-mail: [email protected]

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Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto

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1 INTRODUÇÃO

O tema do presente artigo se direciona à análise crítica acerca da pos-sibilidade de adoção pelo Brasil - em face de bens importados originários da China - de medidas antidumpings (AD), tendo em vista a existência de assimetrias tributárias que possam desequilibrar significativamente o ambiente negocial de produção, comercialização e mobilidade de bens econômicos, impactando também a sustentabilidade do comércio-exterior e do desenvolvimento de ambos os países, integrantes do sistema BRICS, um acrônimo criado em 2001 por Jim O’Neil, do Banco Goldman Sachs1, que, rapidamente, nos estertores da primeira metade da segunda década do século XXI, transformou-se em uma nova modalidade de integração econômica e geopolítica, típica de um mundo que se encaminha para a multipolaridade, como veremos brevemente no desenvolvimento deste texto.

A proposta deste artigo é executar um breve estudo crítico a respeito do uso das peculiaridades tributárias ínsitas aos sistemas tributários respectivos de Brasil e China, de forma a visualizar e analisar se as assimetrias existentes entre ambos os sistemas normativos respectivos podem ser vistos como um parâmetro positivo ou negativo de autorização para a aplicação de direitos antidumping nas relações sino-brasileiras, tendo em vista que a interação comercial entre os dois países é cada vez maior, sendo, atualmente, a China a maior parceira negocial com o Brasil no comércio exterior, e, nesse sentido, urge encontrar um critério objetivo, racional e justo de aferir eventuais condições especiais que levem a compensar o “valor normal” de bens produzidos no Brasil, em sede de carga tributária, em regra maior, quando há comparação objetiva com o valor de bens chineses que, ao chegarem a solo brasileiro, com preços menores, possam desencadear uma concorrência desleal indesejável e desarmônica para a própria dinâmica da sustentabilidade da relação entre os dois países.

Nesse sentido, a legitimação do uso das assimetrias tributárias como critério justificador da aplicação de medidas antidumping representa importante instru-mento de incremento da política pública estatal de defesa da livre concorrência, a qual incumbe produzir êxito em manter equilibrado - e destituído de práticas contrárias à concorrência - o ambiente negocial brasileiro, mormente, em face do comércio exterior com a China, sendo relevante contextualizar tal situação no âmbito da dinâmica dos BRICS e da “globalização não hegemônica”, fenômeno que também poderia ser denominado de “nova globalização”.

No desenvolvimento epistemológico do presente artigo, na prospecção a respeito da relevância do processo de assimetria tributária como elemento objetivo de constatação de prática de dumping que mereça a intervenção estatal corretiva, é imprescindível tratar, mesmo que de forma sintética, os seguintes tópicos: 1) o processo de globalização e suas nuances, perfis e impacto atual de um movimento geopolítico por uma nova globalização, do qual o grupo dos BRICS é peça essen-cial; 2) o sistema internacional e nacional de defesa da concorrência comercial e a natureza e os procedimentos relacionados às medidas antidumping; 3) conceito

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O projeto geoestratégico multipolar dos BRICS, a nova globalizaçãoe as assimetrias tributárias entre Brasil e China

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e característica dos sistemas tributários brasileiro e chinês e contextualização da atual relação entre os dois países.

Explicitado o roteiro, escandiremos, a seguir, a referida pesquisa doutrinária.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Breve visão crítica sobre a nova globalização e breve análise sobre o papel integrativo multipolar dos BRICS

Para contextualizar minimamente a questão do uso das assimetrias tribu-tárias entre Brasil e China para justificar a aplicação de medidas antidumping, é necessário, preambularmente, repisar de forma crítica o intrigante e multidimen-sional fenômeno da “globalização”, a qual se insere como um veraz e complexo desafio epistemológico, uma vez que a descrição inicial deste pode comportar reducionismos e direcionamentos, intencionais ou não, que podem encapsular ou minimizar o fenômeno e suas consequências.

Nesse sentido, podemos reconhecer que, no usual, os autores do final da década de 90 do século XX e os autores do início do século XXI, basicamente, inclinaram-se a descrever o instituto da globalização com ênfase maior em sua vertente econômico-neoliberal, a representar “o advento da transnacionalização dos mercados de insumos, produção, capitais, finanças e consumo – que, em pouco mais de uma década, transformou radicalmente as estruturas de dominação política e de apropriação de recursos, subverteu as noções de tempo e de espaço, derrubou barreiras geográficas, reduziu as fronteiras burocráticas e jurídicas entre nações, revolucionou os sistemas de produção, modificou estruturalmente as re-lações trabalhistas, tornou os investimentos em ciência, tecnologia e informação em fatores privilegiados de produtividade e competividade, criou formas de poder e influência novas e autônomas e, por fim, multiplicou de modo exponencial e em escala planetária os fluxos de ideias, conhecimento, bens, serviços, valores culturais e problemas sociais”2.

Assim, a globalização foi descrita essencialmente como um movimento transnacional de cunho econômico que, de forma elogiosa, teria resultado em relevantes modificações nas relações internas e externas de países do mundo inteiro, inclusive, como se fosse uma fenômeno natural e unívoco, normalmente, sem menção à possível existência de prismas alternativos ao modal de transna-cionalização que se impôs, senão vejamos, in verbis:

Assiste-se, desde meados da década de 80 no Primeiro Mundo e a partir dos primeiros anos dos anos de 90 na América Latina, a um processo de quebras de barreiras e de liberalização geral do co-mércio exterior, não apenas no campo estritamente mercantil, mas igualmente no movimento de recursos financeiros, transferências de tecnologia, investimentos e outros. À medida que esta tendência se generaliza e passa a abarcar um grande número de nações, ela

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ganha o nome de globalização, para significar que os critérios de eficiência na produção, na comercialização, nos investimentos, em toda a economia, enfim, são fixados em nível mundial e não mais nacional ou local. As empresas se transnacionalizam, perdendo as amarras ou vínculos com o país de onde se originaram. Legislações tributárias ou ambientais muito rígidas em alguns países poderão levar à transferência para outros países de unidades fabris ou até de complexos industriais, exportando-se a poluição e a tributação. Passa a se instaurar uma nova forma de divisão internacional do trabalho, não mais baseada nos produtos finais, mas nos fatores ou processos de produção, os quais tendem a se distribuir pelo mundo, em função de fatores os mais diversos, inclusive, o suprimento de mão-de-obra e as legislações locais3.

Logo, embora se reconhecesse a força inequivocamente mudancista e am-pla do fenômeno, a dimensão econômica de desenvolvimento internacional de certas forças presentes na globalização parece que sempre foi a mais visualizada, exercida, enfocada e festejada, no sentido de ser o ponto de partida das análises de seus efeitos e suas tendências em geral, levando a uma situação paradoxal em que a globalização econômica era a mais divulgada e reconhecida e, ao mesmo tempo, a mais célere em conquistar espaços, corações e mentes, legando pouco espaço para a discussão e a ampliação de outras dimensões não econômicas e não neoliberais do mesmo fenômeno4.

Ademais, também é forçoso reconhecer que também, na última década do século XX, era corrente e absolutamente predominante a associação automática entre o fenômeno “unidimensional” da globalização e o resgate ideológico da corrente filosófica, política e econômica denominada de neoliberalismo5.

Obviamente, tal característica simbiótica entre “globalização” e “neolibera-lismo” não passou inteiramente despercebida por pensadores mais atentos, como o mestre alencarino Paulo Bonavides, que criticou acerbamente o aproveitamento da força “inercial” da globalização feito pelo neoliberalismo, o qual, de certa forma, apropriou-se e conduziu o processo de transnacionalização com ares de inexorabilidade e de exclusividade da dimensão neoliberal da globalização, como se integração global e neoliberalismo financeiro fossem fenômenos históricos não transitórios ou inéditos obrigatoriamente fusionados e como se não fossem possíveis outros modelos alternativos, ou mesmo, como se fosse obstada a visu-alização de dimensões diferentes da globalização “neoliberal”6.

Aliás, é relevante pontuar sobre a explicação histórica do advento do fenô-meno neoliberal na década de 90 do século passado que já tivemos a oportunidade de salientar que principalmente três fatores foram cruciais para sua predominância acachapante e quase sem oposição na transição entre os novos milênios da era contemporânea da humanidade, quais sejam: 1) o colapso do bloco de países socialistas do leste europeu, o que diminuiu a pressão “concorrencial” sobre os modelos capitalistas ocidentais; 2) a crise do “welfare state” (estado de bem-estar social), alternativa mais progressista dos modelos estatais ocidentais e 3) o advento

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da globalização neoliberal, que cuidou de disseminar no mundo as sementes das novas ideias e do novo modelo econômico que passou a ser praticamente tratado ideologicamente como algo inelutável historicamente7, situação que predominou principalmente até a eclosão da crise financeira de 2008.

Ainda, parte da doutrina crítica foi além dessa inicial análise descritiva da sibilina associação entre neoliberalismo e globalização, partindo para descrever o novo fenômeno da globalização neoliberal hegemônica como uma espécie de nova epifania expansionista do próprio capitalismo global, travestido de processo de hodiernização civilizatória, dotado, como bem observado por Boaventura de Souza Santos, de sutis e colonizadoras raízes axiológicas religiosas-ocidentais!8

Enfim, à medida que o tempo foi passando, inadvertidamente, a narrativa “hegemônica” de uma globalização (neoliberal) como um fenômeno único e de modelo insubstituível ou mesmo inevitável na história passou a ser objeto de constantes corroborações e findou por prevalecer, à margem de legítimas críticas a respeito de sua pretensa singularidade, até porque a relação “compulsória” entre o neoliberalismo e globalização era algo artificial, levando-se a concluir que, diferentemente da narrativa usual, “globalização e neoliberalismo não se confundem – muito embora se apresentem, em nossos dias, estreitamente in-terligados -, sendo teoricamente possível existir processo de globalização em um ambiente mundial infenso ao neoliberalismo9.

Ora, de fato, apesar de ser algo pouco mencionado, algo lamentável, a verdade é que a globalização “neoliberal” não é o primeiro processo histórico de integração entre culturas e países diferentes, pois, como nota Diogo de Figueire-do Moreira Neto, “a globalização, como fenômeno sociológico de expansão dos horizontes de interesses das sociedades humanas, não é um fenômeno novo na História. Ela tem aparecido em alguns períodos como resultado de difusão cultu-ral, ampliação de fronteiras políticas, desenvolvimento de atividades econômicas ou de propagação religiosa. A globalização já foi cultural, pelo poder do exemplo, como se deu no mundo helênico; foi política, pelo poder da espada, como no mundo romano; foi econômica, pelo poder das riquezas, como no mundo ibérico dos descobrimentos; e religiosa, pelo poder da fé, como no mundo cristão”10.

No entanto, embora se visualize que a “globalização financista e neoliberal” não seja um fato histórico inédito, é certo que o fenômeno contemporâneo foi muito mais profundo, profícuo e arrebatador do que suas versões pretéritas, uma vez que o componente tecnológico permitiu um grau de interligação que, sem dúvida, é inédito, embora tal aspecto não seja suficiente para se acreditar que o processo atual é infenso a críticas e aperfeiçoamentos, ou, mesmo insuscetível de ocaso historiográfico.

Logo, o componente tecnológico foi essencial para a proliferação da glo-balização “financista e neoliberal”, mas é evidente que o progresso tecnológico pode ser utilizado em um modelo diferente de globalização, de finalidades e valores não necessariamente neoliberais11, inclusive, padrões mais preocupados

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com a diminuição das disparidades econômicas e sociais por meio de outros modelos possíveis de globalização12

Alfim, seria um disparate antropológico, epistemológico e historiográfico entender que um fenômeno humano pudesse ser historicamente invencível ou não ultrapassável, algo virtualmente inexorável13; talvez, no máximo, devamos reconhecer que “a globalização”, em si, seja um progresso tecnológico de inte-ração irreversível da humanidade, mas tal não ocorre com sua faceta neoliberal, a qual pode ser revista e aperfeiçoada, sobretudo, em aspectos crucialmente negativos relacionados aos seus binômios inseparáveis “micro-eficiência/macro-insuficiência” e “acumulação de riquezas/distorções na produção”, gerando várias negatividades, sintetizadas na ideia chave de uma “globalização da pobreza ”, e não uma “globalização da prosperidade”, a gerar, na realidade, um processo camuflado de “genocídio econômico” e de “destruição das eco-nomias nacionais”14.

Logo, nesse sentido, de “resistência” a uma proposta de modelo único e incontrastável de globalização, agrilhoada intencionalmente em um modelo de feição neoliberal em difusão e multiplicação mundial inelutável, pretensamente inédito como ideia15, marcadamente influenciada pelo interesse do “mercado”, eis que exsurge uma nova concepção de globalização, mais humanizada e menos restrita aos interesses do grande capital financeiro mundializado16.

Nesse diapasão de resiliência acadêmica, destacam-se as ideias do pensador luso Boaventura Sousa Santos17, que condensou e sistematizou a problemática da apropriação neoliberal do fenômeno da globalização por meio da original idealização da dicotomia “globalização neoliberal” (hegemônica) e “globalização não hegemônica” (alternativa), partindo de tal diferenciação para chegar a um rico conjunto sistêmico de críticas e alternativas ao fenô-meno globalizante real que ocorreu no mundo, mormente desde a década de 90 do século XX até meados do início do século XXI, a sinalizar que, no mínimo, seria uma falácia ideológica despropositada afirmar a natureza inexorável e irrepreensível do tipo de movimento transnacional até então predominante no mundo, de forma a reconhecer e aproveitar os aspectos positivos da globalização em si, concomitantemente, propondo modelos distintos para o processo de transnacionalização.

Nesse diapasão, segundo Boaventura Santos, “existem duas formas de globalização: a globalização neoliberal e aquilo a que eu chamo uma globaliza-ção contra-hegemónica, que desde algum tempo, vem opondo-se à primeira”18. E prossegue o ilustre sociólogo português nas explicações mais específicas, assim descrevendo o conceito daquilo que denominou de “globalização contra--hegemônica”, in verbis:

Designo por globalização contra-hegemónica o conjunto vasto de redes, iniciativas, organizações e movimentos que lutam contra as consequências económicas, sociais e políticas da globalização hegemónica e que se opõem às concepções de desenvolvimento

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mundial a esta subjacentes, ao mesmo tempo que propõem con-cepções alternativas.

A globalização contra-hegemónica centra-se nas lutas contra a ex-clusão social. Atendendo a que a exclusão social é sempre produto de relações de poder desiguais, a globalização contra-hegemónica é animada por um ethos redistributivo no sentido mais amplo da expressão, o qual implica a redistribuição de recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos.19

Ora, há de se reconhecer que foi muito engenhosa a designação de “globalização contra-hegemônica” para todas as modalidades diferentes da globalização neoliberal, vigente e em expansão, pois tal conceito ofereceu uma relevante síntese das dimensões sempre silenciadas, olvidadas ou simplesmente rechaçadas pelo modelo já tradicional de transnacionalização20.

Aprofundando o tema, o sociólogo luso explicitou que sua ideia de “globalização não hegemônica” configuraria a existência de modelos teóricos principiológicos alternativos à estrutura jurídica e de poder existentes no mundo ocidental e neoliberalizado, que poderiam ser denominados, adjunto às lutas por sua concreção, como a “legalidade cosmopolita subalterna”, a qual agiria basicamente por meio de duas metodologias de resistência e confronto com a globalização hegemônica e neoliberal: uma rede global internacional de ligação entre elementos locais, regionais, nacionais e transnacionais de resistência e uma rede local, interna e nacional de resistência, a qual, mesmo sem ligações com a rede internacional não hegemônica, obteria sua disseminação pela força do exemplo em outros lugares21.

Em suma, seja por meio de movimentos supranacionais ou locais e isolados de contra-hegemonia neoliberal, a verdade é que não haveria mais espaço para afirmações de que o modelo de globalização vigente seria total ou parcialmente insubstituível e incontrastável, motivo pelo qual se deveria perlustrar as soluções cabíveis para a emancipação das dimensões diferenciadas de globalização não hegemônica, restando evidente que seria necessário, inclusive, apresentar soluções e propostas para ultrapassar o modelo hegemônico.

Obviamente, a ideia da existência de um ou vários modelos alternativos de globalização não hegemônica partiram de três premissas: a) haveria possibi-lidade de retrocesso no avanço do modelo globalizante neoliberal influenciado pelo mercado; b) seria imarcessível o reconhecimento de que foram identificados impactos negativos da globalização neoliberal, que levariam à sua ruína histórica por ausência de densidade, consistência, sustentabilidade diacrônica e sincrônica e de legitimidade; c) seria possível apresentar sugestões concretas de substituição para as ferramentas mundiais, regionais e locais utilizadas pela globalização he-gemônica neoliberal para se impor e prevalecer nos âmbitos político, econômico, social, cultural, jurídico, institucional et caterva22.

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Ora, justamente nesse contexto de movimento integrativo interna-cional e mundial diverso do atual, exsurge a ideia e a prática dos “BRICS”, cada vez mais uma realidade integracionista multipolar, cada vez menos um acrônimo inane.

Deveras, o acrônimo “BRIC” - se, de início, apenas revelava uma imaginosa associação de Jim O’Neil, em 2001, entre países “emergentes” tão distantes entre si, e tão díspares, quanto cultural e politicamente dis-tintos, quais sejam, Brasil, China, Índia e Rússia - evoluiu de tal forma nos últimos anos que, a partir de 2010, a África do Sul foi integrada ao grupo, na Conferência de Brasília transformando-se em “BRICS”, e passou a ser um ambiente de “legal network”, espaço no qual eram trocadas experiências e ideias23.

Tal álea de natural aproximação ocorreu, significativamente porquanto, embora distantes geograficamente, e dotados de culturas e regimes políticos e econômicos muito diferentes entre si, tais países tinham em comum os seguin-tes aspectos em suas respectivas estruturas internas de sistema econômico24: 1) baixo nível de endividamento, em comparação com os Estados Unidos da América e a Europa, mormente, após a crise de 2008, o que permitiu a todos eles criar políticas sociais de combate à pobreza e à desigualdade social em seus respectivos territórios, aumentando a coesão e integridade civilizatória como nação; 2) reservas cambiais elevadas à casa dos centenas de bilhões de dólares, propiciando um protagonismo global, financeiro ou não, caracte-rístico de lideranças persuasivas, não coercitivas/cooptantes e inspiradoras para outras nações em desenvolvimento, típicas de um “soft power”25 26; 3) ampla densidade demográfica, concentrando, juntos, 42% de toda a popu-lação do globo terrestre, e se constituindo em enorme mercado consumidor em potencial; 4) o uso disseminado da intervenção estatal na economia de mercado como instrumento de desenvolvimento econômico.

Logo, em face da existência de relevantes pontos e interesses em comum, notadamente, a ideia de liderarem o surgimento de uma nova ordem mundial, fundada no plexo ideológico da multipolaridade benigna e cooperativa27 e da diversidade de lideranças geopolíticas, eis que a integração à moda dos BRICS se acentua de forma contundente a partir da VI cúpula de Chefes de Estado e de Governo dos BRICS, ocorrida em julho de 2014, na aprazível Fortaleza, capital do Estado do Ceará, durante a qual foram assinados os do-cumentos oficiais que redundaram na criação de duas iniciativas alvissareiras e revolucionárias, quais sejam, o Arranjo Contingente de Reservas (CRA) e o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD)28, instituições multilaterais abertas a possível associação de outros países não integrantes dos BRICS e candidatas a, respectivamente, concorrerem com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e com o Banco Mundial, estas últimas, instituições concebidas no já vetusto e disfuncional acordo de Breton Woods, no estado de New Hampshire, no hotel “Mount Washington”, em julho de1944.

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A criação desses novos mecanismos de solidariedade financeira trans-nacional deu aos BRICS um poder de alinhamento entre si contra crises financeiras e econômicas e ataques cambiais ou não especulativos, sem precisar submeter-se aos modelos econômicos ortodoxos e, muitas vezes, recessivos e pouco eficazes exigidos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Inter-nacional para auxiliar países com dificuldades estruturais ou conjunturais que possam os fragilizar à vista do “mercado mundial”, atraindo, dessa forma, possíveis outros países em desenvolvimento.

O fato desses novos arranjos internacionais subscritos pelos países BRICS terem ocorrido justamente no mesmo mês em que se comemorou a efeméride dos 70 anos de assinatura dos acordos de Breton Woods, que criaram o FMI e o Banco Mundial, não nos parece uma mera coincidência, uma vez que tais instituições comumente são observadas como contemporaneamente distantes dos interesses de países em desenvolvimento29, o que sinaliza que a integração dos BRICS tem potencial para realmente realinhar a geopolítica e a economia mundial, e acabam por evidenciar que o tipo de integração que se intenta rea-lizar entre esses países é totalmente diferente de outras concepções tradicionais de integração “regional” que a doutrina costuma elencar, evidenciando um estudo mais específico que sequer é o objetivo do presente opúsculo, afinal, o “ concerto BRICS” não é passível de ser analisado como uma simples “área de livre comércio”, uma singela “união aduaneira” ou mesmo uma união “transnacional político-monetária” aos moldes da Comunidade de Nações da União Europeia, trata-se de uma tipologia tão diversificada de movimento integracionista “global”, com complexos espeques culturais, geopolíticos e econômicos (inclusive, no aspecto financeiro e cambial), ao ponto de ser im-possível enquadrar esse movimento de alinhamento pós-contemporâneo nas categorias doutrinárias ontológicas tradicionais já existentes30.

Enfim, nesse contexto, conclui-se que a globalização “neoliberal” dos anos 90, hoje, encontra-se em um quadro de profunda crise de propósitos e evolução, a evidenciar espaços e esforços interativos diferentes, permitindo concluir que a integração entre os países BRICS é mais do que um esforço ilimitado à álea do comércio internacional, resultando em um arranjo geo-estratégico de alcance ainda nebuloso e imprevisível, porém já concreto e em marcha de progresso.

Justamente nesse contexto, o tema da eventual aplicação de medidas antidumping pela existência de assimetrias tributárias na relação sino--brasileira se evidencia um problema complexo e desafiador, uma vez que a integração de maior alcance não soluciona problemas específicos que têm impactos relevantes entre parceiros de um jogo geopolítico e econômico mais amplo, o que nos leva a tratar, a seguir, do tema específico das dificuldades do comércio exterior específico entre o Brasil e a China, como um evento paralelo e complementar da elogiosa experiência colaboracionista entre os dois países no âmbito dos “BRICS”.

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2.2 o sistema internacional e nacional de defesa da concorrência comercial: a natureza jurídica e os procedimentos dos institutos relacionados às medidas antidumping e o seu papel na equalização do comércio exterior bilateral entre o Brasil e a China: o papel das assimetrias tributárias

O presente artigo pretende tratar, mesmo que de modo focal, o uso das assimetrias tributárias para justificar a aplicação de medidas antidumping equa-lizadoras do comércio exterior.

Nesse sentido, o que se pergunta é se tais diferenças de sistemas tributá-rios podem ser usadas para justificar a adoção dessa medida e se, mesmo sendo legítimo seu uso, seria politicamente conveniente fazer uso desse instrumento nas relações sino-brasileiras, até mesmo, tendo em vista o tipo de integração sino-brasileira que vai muito além de simples relações comerciais e econômicas, desvelando-se um projeto geoestratégico de longo prazo de criação de uma nova globalização mundial e uma nova ordem multipolar.

Enfim, a pergunta que se quer responder neste artigo é: a assimetria tributária pode ser considerada como um critério legítimo, conveniente e não discriminatório, para justificar a adoção de “medidas antidumpings” no âmbito das relações sino-brasileiras?

Para respondermos a tal indagação, empreenderemos, a seguir, o exame sintético de institutos necessários à compreensão do tema, quais sejam, os con-ceitos de multilateralidade no comércio exterior, de medida antidumping e o tratamento jurídico dado a esta última no ordenamento jurídico internacional e no brasileiro.

Nesse sentido, é lícito repisar que a globalização31, máxime, a partir dos anos 90 do século XX, acarretou o derredor do mundo uma maior interação em termos de comércio exterior, interações culturais, econômicas, sociais, políticas, tecnológicas, linguísticas e comunicacionais.

Esse gigantesco e complexo processo relacional, se, por um lado, cooperou na proliferação de novas tecnologias e permitiu um intercâmbio de conhecimen-tos plurais inédito, na proporção e no método, na história da humanidade, por outro prisma, criou um ambiente comercial exterior bastante competitivo, motivo pelo qual regras internacionais foram criadas, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC)32, justamente para tentar regular as inevitáveis contendas negociais que adviriam desse aumento do fluxo de negócios, implantando-se de forma colaboracionista e acordada uma agenda “multilateral”, na qual as con-tendas econômicas poderiam ser solucionadas por uma entidade internacional reconhecida pela expertise e pela legitimidade internacional da comunidade internacional.

Uma das contendas mais comuns que se verificou seria o concernente à diferença de preços de mercadorias similares entre os países integrantes do comércio exterior.

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Nesse sentido, as regras da Organização Mundial do Comércio autorizaram que se adotassem medidas não discriminatórias que garantissem a equiparação entre os preços de mercadorias importadas do exterior e de mercadorias originá-rias dos mercados internos, tal a diversidade de situações e conjunturas negociais em decorrência de condições de produção, de comercialização, de mobilidade e de estruturas autóctones à origem da mercadoria importada, reconhecendo-se, enfim, a existência de diferenças cambiais, econômicas, financeiras, ambientais, sociais, tecnológicas, tributárias, et caterva a influenciar na composição de custos da produção de uma mesma mercadoria ou similar entre países diferentes.

Portanto, a legislação internacional, por meio dos acordos internacio-nais no âmbito da Organização Mundial do Comércio, que sucedeu ao antigo GATT33, preocupou-se em afiançar a existência de um padrão reativo às even-tuais diferenças entre os preços nacional e internacional de produtos similares, permitindo entrever que seria lícito aos países adotar medidas de “equiparação” ou de “equivalência”/”equipolência”, não com o propósito de proteger pura e simplesmente a produção interna, mas para harmonizar minimamente a prática econômica em um ambiente verdadeiramente concorrencial.

A legislação nacional, por sua vez, no âmbito de políticas públicas de defesa concorrencial, também estipulou mecanismo de combates a esses desequilíbrios comerciais e econômicos, ao normatizar - de forma inédita na ordem jurídica pátria, por meio da Lei Ordinária Federal nº 9.019, de 30 de março de 1995, a res-peito dos institutos dos “direitos antidumping” e dos “direitos compensatórios”, provisórios ou definitivos, sendo regulamentada pelos Decretos nº 8.058, de 26 de julho de 2013 (regulamenta as normas materiais e procedimentais de direito econômico que regulam a aplicação de medidas antidumping34) e nº 1.751, de 19 de dezembro de 1995 (regulamenta as normas materiais e procedimentais de direito econômico que disciplinam os procedimentos administrativos relativos à aplicação de medidas compensatórias).

Segundo as normas em epígrafe, medidas antidumping e medidas com-pensatórias são não cumuláveis entre si35, sendo certo que, hoje, ambas são as medidas mais apropriadas para serem adotadas em mundo globalizado e com ampla integração comercial, substituindo eficazmente, até pela legitimidade decorrente da multilateralidade das normas da OMC, substituindo as vetustas medidas nacionais protecionistas tipicamente influenciadas pelo pensamento de Friedrich List36 ou até de viés mercantilistas, como as barreiras alfandegárias, as medidas fitossanitárias, as cotas máximas de quantidade e a tributação adua-neira adicional no papel de equilibrar as relações negociais de bens econômicos similares, mas de origem diversas, medidas que, inclusive, não são compatíveis com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC)37.

Logo, é legítimo e recomendável, para proteger a economia interna e a sustentabilidade do comércio exterior, o uso dessas duas medidas, antidumping ou compensatórias, de forma não cumulativa.

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Outro dado relevante é o de que ambos os institutos não são detentores de natureza tributária38, não se caracterizam como tributos, inclusive, não se enquadram no conceito do artigo 3º do Código Tributário Nacional, motivo pelo qual a eles não se aplica o conceito no âmbito da Organização Mundial de Comércio que veda “discriminação” fiscal entre os bens econômicos, conclusão a que chegou o próprio Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 1170249/RJ, ao asseverar que “os direitos antidumping e compensatórios não têm natureza tributária, mas, sim, de receitas originárias, a teor do art. 3º, parágra-fo único, da Lei n. 4 320/64 e dos arts. 1º, parágrafo único, e 10, caput e parágrafo único, da Lei n. 9.019/95. Não se lhes aplicam, portanto, os arts. 97 e 98 do Código Tributário Nacional”39.

Tal natureza não tributária permite que ambas as medidas sejam adotadas sem necessidade de lei casuística, permitindo à autoridade administrativa maior flexibilidade e eficiência na decisão de sua utilização e posterior cessação, sendo ampla a discricionariedade administrativa no tocante a esse assunto, reconhecida, inclusive, pela jurisprudência constitucional brasileira40.

Ademais, é relevante frisar que as medidas compensatórias são cabíveis ape-nas quando disserem respeito a subsídios fiscais concedidos ao bem importado, o que resvala na comprovação de que algum ganho foi concedido diretamente ao exportador, por seu país de origem41, e, diferentemente, por seu turno, a me-dida antidumping será aplicada quando requerido pelo concorrente no mercado interessado, bastando a este último comprovar que a importação, originária de país estrangeiro, gera um desequilíbrio na concorrência econômica que necessite ser corrigido pelo país importador, sendo evidente que o procedimento para aplicar medida antidumping é mais singelo do que aquele necessário para aplicar medida compensatória, o que se dessume pela simples leitura das respectivas normas regulamentares.

Nesse sentido, a autoridade brasileira costuma utilizar do requisito do “valor mínimo”, abaixo do qual o preço da mercadoria estrangeira passaria a ser “presumidamente” considerado como prejudicial e desarmonioso para a concor-rência, motivo pelo qual se poderiam aplicar medidas antidumping que teriam por escopo obter uma espécie de “equipolência” entre as mercadorias similares, ou seja, há uma espécie de “inversão do ônus da prova” no procedimento da medida antidumping, uma vez que esta poderá ser aplicada desde que o valor da mercadoria importada esteja abaixo de certo patamar considerado “normal”, o que acarretaria o reconhecimento da prática de “dumping”, considerada pela legislação brasileira como o ato de “introdução de um produto no mercado doméstico brasileiro, inclusive sob as modalidades de drawback, a um preço de exportação inferior ao seu valor normal” 42.

Logo, é patente a legitimidade da autoridade administrativa brasileira competente para aplicar medidas antidumping43 e medidas compensatórias44, provisórias ou definitivas, bem como é evidente a legitimidade justamente da Secretaria de Comércio Exterior (SECEX), do Ministério do Desenvolvimento,

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Indústria e Comércio (a “autoridade administrativa brasileira competente), para apurar e quantificar matematicamente o valor do dumping e do subsídio que serão objeto da medida “equiparatória”, nos termos dos artigos 5º e 6º da Lei Ordinária Federal nº 9.019/95.

No entanto, especificamente sobre a sobretarifa conseguinte à aplicação da medida antidumping, que é o objeto focal do presente trabalho, seria neces-sário, no átimo de declarar um preço como não equilibrado, que a autoridade administrativa pudesse justificar o “preço mínimo” usado como parâmetro para aplicar a medida antidumping, uma vez que o enquadramento de pagamento de subsídio encontra descrição mais objetiva na legislação45, quando comparado com a aplicação da medida antidumping.

Realmente, o Decreto nº 8.058/2013 afirma, em seu artigo 1º, que “Art. 1º Poderão ser aplicadas medidas antidumping quando a importação de pro-dutos objeto de dumping causar dano à indústria doméstica.” Ora, esse dano é direcionado à situação em que se comprove o fato do “valor normal” aplicado no país de origem da exportação ser menor do que aquele praticado no Brasil com a importação46.

Dessa forma, o uso da medida antidumping seria lícita desde que compro-vado que o bem similar47 já produzido no Brasil tem custo de produção e preço final ao consumidor significativamente menor do que o preço da mercadoria importada, gerando uma concorrência desleal entre o bem alienígena e seu bem sucedâneo direito ou indireto no mercado nacional.

No entanto, essa situação de fácil verificação da prática do dumping “presumido”, ao comparar o preço do bem estrangeiro ao seu similar-sucedâneo não é aplicável na hipótese diversa e possível de “inexistência” de bem similar ao estrangeiro produzido no Brasil.

Ora, é evidente que a inexistência de bem similar ao estrangeiro no Brasil poderia ser uma circunstância mercadológica indesejável se o preço do bem es-trangeiro fosse tão barato que simplesmente tornasse inviável ou desestimulante qualquer iniciativa empresarial brasileira inédita para passar a produzir bem concorrente sucedâneo, ou seja, a prática do “dumping” do bem estrangeiro, a legitimar o uso da sobretarifa da medida antidumping, estaria inibindo investi-mentos brasileiros no mesmo nicho mercadológico, criando-se uma espécie de “monopólio importado”, francamente indesejável economicamente.

Nesse sentido, para essa situação específica e mais complexa, a qual guarda maior pertinência com o objeto deste trabalho, o artigo 14 do Decreto nº 8.058/2013 assegura um procedimento especial para se ter parâmetros obje-tivos para detectar e combater o dumping internacional “monopolístico”, qual seja, quando não for possível um uso comparativo adequado entre o preço no mercado interno do país exportador e o preço no mercado interno brasileiro (por inexistência de bem similar brasileiro)48, em face de “condições especiais” do mercado do produto exportado, o cálculo do chamado valor “normal” será

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computado tendo em conta o valor da mercadoria importada adicionada, dentre outras coisas dos seguintes parâmetros: “a) despesas gerais; b) despesas administrativas; c) despesas de comercialização; d) despesas financeiras; e e) lucro”.

Ora, obviamente, a questão tributária, da diferença da carga fiscal entre os bens produzidos no mercados nacional e no estrangeiro, apresenta-se como importante problemática a ser solucionada por intermédio da aplicação das medidas antidumping, uma vez que tal diferença, se existir de forma acentuada, provocará uma diferença na planilha de custo da produção, induzindo vantagens nas formações do preço, notadamente, no que tange “às despesas gerais”, às “despesas financeiras”, às “despesas administrativas” e ao “lucro”, parâmetros objetivos que usa o artigo 14 do Decreto nº 8.058/2013 para a aferição do de-nominado “valor normal fictício”, que servirá de padrão para a aplicação das medidas antidumping quando o bem importado não tiver similar brasileiro e estiver ameaçando criar um “monopólio internacional”.

De fato, é evidente que, se os tributos no país estrangeiro forem bem menores do que os que incidiriam no fictício similar brasileiro, resta claro que seriam menores as “despesas gerais”, as “despesas administrativas”, as “despesas financeiras” (por pagarem menos tributos) e, por conseguinte, seriam maiores os lucros (que, inclusive, podem sofrer menos oneração exacional também), evidenciando vantagem competitiva que poderia ser realmente tão relevante que inibiria os investimentos brasileiros para criar um bem similar ou sucedâneo ao bem estrangeiro importado, acarretando não uma circunstância temporal, mas uma autêntica situação de “monopólio importado” no mercado nacional, algo indesejável por vários motivos.

Logo, não bastaria ir buscar o “valor normal” do bem, seja no mercado bra-sileiro, seja no chinês, uma vez que as assimetrias tributárias poderiam influenciar de forma decisiva o hiato entre preços efetiva ou potencialmente concorrentes.

Logo, resta óbvio que o estudo das assimetrias tributárias é crucial para se verificar o dumping internacional na situação específica de inexistirem bens brasileiros similares ou sucedâneos dos concorrentes internacional, legitimando-se a aplicação da medida antidumping na forma aferida de acordo com o artigo 14 do Decreto nº 8.058/2013, bem como, também, serve de motivação adicional quando existir bem similar nacional.

Com certeza, existindo diferentes estruturas e dinâmicas tributárias, que se reflitam nos preços das mercadorias exportadas, esse aspecto deverá ser consi-derado crucial para verificar a ocorrência de um preço “não normal” que mereça ser objeto de medidas antidumping que reequilibrem as relações negociais de concorrência.

Acresça-se, ademais, como argumento de corroboração, que a hipótese de inexistência de similar brasileiro ao produto estrangeiro importado, situação na qual seria usado o procedimento do artigo 14 do Decreto nº 8.058/2013, revela--se potencialmente mais danosa à economia nacional pelo fato de que tal lacuna

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de produção apenas pode advir de algum produto tecnologicamente sofisticado – normalmente, manufaturas de alto valor agregado - ou um bem econômico inteiramente novo, com espaço para agradar o mercado consumidor e avançar livremente sem nenhuma competição interna, que, sem a aplicação da medida antidumping, tornar-se-ia, muitas vezes, inviável.

Logo, parece-nos patentemente problemático não se combater de for-ma eficaz a prática do dumping internacional quando inexistente produção de bem similar ou sucedâneo da mercadoria importada, inclusive, por meio da verificação das assimetrias tributárias que atropelem a viabilidade da concorrência de bem nacional ou que gerem vantagens competitivas de tal modo contundentes que inibam o potencial surgimento de bens brasileiros concorrentes, legitimando-se a aplicação de medidas antidumping pela au-toridade administrativa brasileira.

Nesse sentido, uma vez demonstrada a viabilidade da técnica de aferição e o uso de assimetrias tributárias para, em tese, legitimar a aplicação de medidas antidumping “preventivas” e corretivas de um monopólio de importação inter-nacional, urge, adiante, analisar de maneira mais específica o impacto jurídico e metajurídico desse instrumento nas específicas relações sino-brasileiras.

2.3 A aplicação de medidas antidumping em bens importados da China que não tenham produtos similares brasileiros - ao lume da comparação entre os respec-tivos sistemas tributários: legitimidade e conveniência mesmo sob o ponto de vista da concepção de uma novel globalização e da multipolaridade geostratégica do grupo dos BRICS

Como vimos nos itens anteriores, no atual mundo globalizado, integrado comercialmente em níveis que poucos acreditariam há pouco tempo, a resolução de problemas relacionados a desavenças econômicas entre parceiros comerciais é ponto primordial e sensível para a sustentabilidade e manutenção de “partner-ships” (parcerias) em comércio exterior.

Por curial, no contemporâneo mundo interligado e informado da segun-da década do século XXI, não há mais espaço para comportamentos que possam ser associados a flagelos do passado, como o colonialismo, o imperialismo e a submissão de povos, tribos e clãs ao horror empresarial e humanístico do tráfico humano, como, infelizmente, já ocorreu em um passado que não se intenta rivalizar49.

Logo, a realidade atual impõe a existência de relações empresariais e ju-rídicas respeitosas entre os países e seus respectivos empresários, de modo que não ocorra o sobrepujar de uma nação em relação à outra, o que poderia tornar, a longo e médio prazo, insustentável a manutenção do bom ambiente negocial necessário para que as atividades econômicas não sofram interrupções decorrentes de medidas arbitrárias, inopinadas ou precipitadas.

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Nesse sentido, é relevante explicitar porque se escolheu a relação comercial sino-brasileira para ilustrar a aplicação da tese de que é legítimo o uso das assi-metrias tributárias e suas consequências positivas ou negativas para a estrutura de custos de produção de um bem – para justificar a aplicação de legítimas e oportunas medidas corretoras de antidumping, com pagamento adicional de sobretarifas dos bens importados em situação de vantagem econômica exagerada.

Nesse diapasão, explana-se que a escolha das relações Brasil-China para verificar as assimetrias fiscais e identificar a existência de possíveis condições especiais que possam levar à justificação objetiva de uso de medidas antidumping se deveu, basicamente, a quatro aspectos basilares:

1) na atualidade, a República Popular da China é a maior parceira comer-cial do Brasil, tendo ultrapassado os Estados Unidos da América, que, durante décadas, foi o principal parceiro comercial brasileiro50, e o perfil atual dos bens que importamos da China tende a ser de produtos manufaturados51, o que se adiciona ao fato de o incremento econômico chinês ser impressionante, e se espera que, nos anos vindouros, ela passe a ser a maior economia do planeta52, acentuando, cada vez mais, um processo de comércio exterior sino-brasileiro com clara assimetria qualitativa vantajosa para os orientais;

2) a China, apesar de integrar a Organização Mundial do Comércio, tem uma caracterização polêmica como um país de típica “economia de mercado”53, algo que, inclusive, poderá aumentar a quantidade processos antidumping contra seus produtos a partir de 201654, o que dificulta claramente o uso dos preços internos na China como parâmetro para verificar o “valor normal” do bem eco-nômico em análise de possível medida antidumping, legitimando ainda mais o uso da comparação fiscal para legitimar a aplicação de medidas antidumping, em face de sua precária condição de economia de mercado normal55; o próprio Superior Tribunal de Justiça já reconheceu expressamente que “o Protocolo de Acessão da República Popular da China à Organização Mundial de Comércio” (integrado ao direito brasileiro pelo Decreto 5.544/2005) não conferiu a esse país, desde logo, a condição de país predominantemente de economia de mer-cado. Segundo decorre de seus termos, a acessão da China ao Acordo da OMC foi aprovada para ocorrer de forma gradual e mediante condições. Justamente por isso, o art. 15 do Protocolo reservou aos demais membros da OMC, duran-te quinze anos, a faculdade de utilizar, nos casos de investigação de prática de dumping que envolvam produtos chineses, a metodologia aplicável a países que não sejam predominantemente de economia de mercado”56;

3) A China já tem um comportamento empresarial agressivo e já ocorreram vários casos de medidas antidumping determinadas pela autoridade competente brasileira que, inclusive, foram confirmadas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, conforme veremos na sequência.

4) A China é detentora de norma interna que a permite aplicar medidas compensatórias de relações no comércio exterior se as mercadorias chinesas sofreram

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mundo afora algum tipo de tratamento considerado “discriminatório”57, motivo pelo qual é cabível o uso das assimetrias tributárias para afastar qualquer tipo de alegação de que a medida antidumping seria injusta, ilegítima ou discriminatória. 58

Ora, com efeito, tal instrumento (aplicação de medidas antidumping - AD) deve ser considerado como legítimo, justo e adequado, afinal, as diferenças tributárias entre países parceiros comerciais são uma evidente motivação para a diversidade na formação de custos dos respectivos preços de bens inseridos na balança comercial dual, não sendo aceitável obrigar o empresário que produz no Brasil a arcar com o custo decorrente da concorrência econômica oriunda das enormes diferenças entre os sistemas tributários brasileiros e chinês.

A não solução desse problema poderá contribuir para a perda de com-petitividade dos bens produzidos no Brasil, provocando a desindustrialização e o desemprego em potencial no ambiente negocial brasileiro, o qual não estará inserido em uma seara de autêntica livre concorrência e livre iniciativa, mormente, quanto a produtos que não tenham similares ou sucedâneos brasileiros, atrasan-do a criação de produção autóctone e propiciando um verdadeiro monopólio internacional importado.

Ademais, é de se reconhecer que, com o advento do processo de maior interseção entre os países que compõem o acrônimo “BRICS” e, em especial, com o incremento nas relações entre Brasil e China, episódios de dumping ou subsídios já foram detectados e punidos por ambos os países e muitos outros poderão vir à tona, gerando descontentamentos em importadores chineses e brasileiros, produtores brasileiros e estrangeiros com matriz produtiva no Brasil ou na China, e as autoridades de ambos os países.

Logo, seria necessário, no átimo de enquadrar um preço como não equili-brado, que a autoridade administrativa pudesse justificar o “preço mínimo” usado como parâmetro para aplicar a medida antidumping, uma vez que o enquadra-mento de pagamento de subsídio encontra descrição mais objetiva na legislação59, quando comparado com a aplicação da medida antidumping, máxime, na hipótese de inexistência de bens similares ou sucedâneos, hipótese em que a medida anti-dumping seria uma autêntica “prevenção de monopólio importado”.

Nesse sentido, não custa salientar que o Decreto nº 8.058/2013 preconiza, em seu artigo 1º, que “poderão ser aplicadas medidas antidumping quando a importação de produtos objeto de dumping causar dano à indústria doméstica.”, restando curial que o “dano à economia doméstica” é direcionado a duas situações:

a) primeira situação: quando existir similar brasileiro e se comprove o fato de o “valor normal” aplicado no país de origem da exportação ser menor do que aquele praticado no Brasil com a importação60, hipótese na qual a me-dida antidumping tem papel corretivo e tendente a garantir a concorrência real entre o produto estrangeiro e o nacional e circunstância na qual as assimetrias tributárias podem ser usadas para justificar de forma complementar a aplicação da medida antidumping;

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b) segunda situação: quando inexistir bem similar no Brasil, hipótese em que a aplicação da medida antidumping tem o papel preventivo de equalizar custos e estimular (ou, pelo menos, evitar desestímulos) que se passe a produzir bens similares ou sucedâneos em território nacional, criando a concorrência e evitando um monopólio indesejado, hipótese na qual as assimetrias tributárias poderão ser usadas para verificar o equilíbrio do preço normal no mercado chinês a partir da composição dos custos de produção, que poderão ser comparados aos custos de produção teóricos no Brasil, acrescentando a carga tributária específica na China e no Brasil no modelo econométrico.

Logo, a relevância que se apresenta nesse ponto para as assimetrias tribu-tárias é apreensível de modo induvidoso, seja para justificar objetivamente o uso de medidas antidumping na hipótese de inexistência de produto similar brasi-leiro, seja como justificativa adicional e complementar para aplicar sobretarifa antidumping quando existir produto brasileiro e o preço do produto estrangeiro for menor do que o considerado “normal”, levando em conta para aferir a “nor-malidade” as diferenças entre os sistemas tributários.

Nesse sentido, Ives Gandra da Silva Martins já explicitava e diagnostica-va em trabalho expedido no já longínquo ano de 199461, de forma profética, a respeito das evidentes condições especiais que deveriam ser enfrentadas pelas autoridades brasileiras em face das diferenças de formação dos preços de merca-dorias nacionais quando comparadas a mercadorias alienígenas62, notadamente, quanto às diferenças de custos tributários.

Enfim, Ives Gandra da Silva Martins, além de criticar a carga tributária, monetária e financeira brasileira, que, por ser diferente, levaria à criação de vantagens para os bens originários de países estrangeiros, com mercadorias des-vestidas dos mesmos ônus brasileiro, finda por concluir que nessa indesejável e lamentável “competição fiscal estatal-privado”63, haveria evidente “abuso de poder econômico” provocado em certo grau pelo próprio Estado Brasileiro, que estaria a promover a vulneração de normas constitucionais relativas à livre iniciativa, à livre concorrência, à necessidade de busca do pleno emprego e da isonomia geral e tributária64, sendo certo, no entanto, que a solução sugerida por Ives Gandra Martins, naquela oportunidade, não é aceita pelo sistema da Organização Mun-dial do Comércio: o aumento proposital e sistêmico de tributos aduaneiros para equalizar as diferenças de preços e as vantagens do produto estrangeiro sobre o brasileiro, motivo pelo qual a aplicação das medidas antidumping findam por serem a mais adequada de todas as ferramentas hoje disponíveis.

Ademais, deve-se mencionar, no presente átimo, que a possibilidade de aplicação de medidas antidumping tem sido um fato rotineiro na relação sino-bra-sileira, uma vez que, analisados os anos situados entre 1995 e 2010, revela-se um percentual expressivo de 56% de concessão provisória ou definitiva dos pedidos de aplicação de medida antidumping, analisados pela autoridade administrativa brasileira, que decidiu por aplicar as sobretarifas decorrentes como ferramenta antidumping com frequência que, inclusive, é bem menor do o percentual de

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concessões de medidas antidumping pelas autoridades chinesas (76%), sendo certo, ainda, que o percentual de negativas de dumping pela China é muito bai-xo, entre 0% e 2%, enquanto, no Brasil, as negativas foram na faixa de 16%, o que parece revelar que a autoridade brasileira é mais criteriosa e cuidadosa, algo que se infere do fato de que, no Brasil, a decisão sobre a medida é feita por um órgão “técnico”, e, na China, é feita por órgão central e político65.

Portanto, de tais dados, infere-se que a aplicação de medidas antidumping ocorre com frequência na relação comercial dos países, não sendo algo que pudesse ser considerado como politicamente grave ou ameaçador, ao ponto de fazer o Governo brasileiro recuar da aplicação de tais medidas específicas e táticas para evitar retaliações ou estremecimentos na parceria estratégica e sistêmica revelada pela parceria no âmbito dos BRICS que, inclusive, revela-se um mecanismo de concepção de uma possível nova ordem mundial multipolar e um novo tipo de globalização, mais completa e multidimensional daquela que atualmente é “hegemônica”.

Sobremais, além de ser a medida antidumping medida rotineira, tem sido assente e remansoso em nossos tribunais que se confirme e se legitime a aplicação das medidas antidumping66, interpretadas pelo Superior Tribunal de Justiça como uma medida válida para proteger o mercado interno e de compe-tência discricionária da autoridade administrativa, como se destaca a seguir da transcrição de decisão da sua Primeira Seção, in verbis:

MS. DIREITO ANTIDUMPING PROVISÓRIO. GARANTIA ADMINISTRATIVA.

A aplicação do direito antidumping provisório destina-se a proteger o mercado interno de danos causados por práticas comerciais, tal como no caso, de importação de mercadorias em valor inferior ao exigido no mercado interno do país exportador, prática que potencializa dificuldades de concorrência enfrentadas pelo produto de origem nacional. É certo que o Poder Judiciário pode exercer controle de legalidade ao perquirir o preenchimento dos requisitos formais e substanciais para a utilização desse instrumento de defesa do mercado, contudo inexiste direito líquido e certo à suspensão da exigibilidade desse direito provisório mediante garantia adminis-trativa (depósito em dinheiro ou fiança bancária), porque se cuida de ato discricionário da Câmara de Comércio Exterior (Camex), conforme determina o art. 3º da Lei n. 9.019/1995. A prestação da garantia, por si só, não implica a referida suspensão da exigibili-dade. Precedentes citados: MS 14.670-DF, DJe 18/12/2009, e MS 14.691-DF, DJe 18/12/2009. MS 14.857-DF, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 12/5/201067.

Logo, parece-nos patentemente verificado na legislação, na jurisprudência, e na doutrina a relevância de se combater de forma eficaz a prática do dumping, inclusive, por meio da verificação das assimetrias tributárias, as quais podem real-mente acarretar a existência de um ambiente econômico especial, sendo legítima

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justificativa para aplicar medidas antidumping preventivas de “monopólio por importação” (quando inexistente bem similar ou sucedâneo brasileiro68) ou por correção de preço abaixo do “normal” da mercadoria similar brasileira.

Destarte, nesse ponto, é válido fazer rápida avaliação comparativa entre os sistemas tributários chinês e brasileiro, iniciando-se pelo sistema mandarim, o qual, por motivos óbvios, é menos conhecido por nossa doutrina.

Sobre o sistema tributário chinês, de uma forma sintética, é possível asserir alguns pontos mais importantes, em uma primeira análise.

De início, é de se reconhecer que “existe” um sistema tributário chinês, ou seja, na ordem jurídica mandarim, é possível verificar que há um conjunto de normas que disciplinam o fenômeno tributário. Além disso, é de se reconhecer que o sistema tributário chinês é utilizado pelo Governo chinês de uma forma muito intensa e flexível na economia da República Popular da China, como bem anota Zhu Weiqun, emérito professor da Universidade de Economia e Finanças de Shanghai – SUFE69.

Nessa perspectiva, é relevante frisar que o sistema tributário chinês ape-nas tem três artigos na Constituição chinesa: um remetendo o dever de pagar tributos à lei, outro afirmando que os direitos humanos devem ser preservados na tributação e outro afirmando o não confisco, uma vez que o Estado deve proteger as rendas e os bens obtidos licitamente, ou seja, podemos falar que o sistema tributário chinês é o conjunto de apenas três princípios constitucionais exacionais: 1) a cobrança do tributo é um dever a ser adimplido na forma da lei (princípio da legalidade tributária); 2) a tributação deve respeitar os direitos humanos (princípio da proteção do contribuinte à luz dos direitos humanos adotados pelo sistema chinês); 3) o tributo não pode ser cobrado de forma exa-gerada, constituindo o princípio da vedação do caráter confiscatório do tributo70.

Por evidente, o fato de a Constituição chinesa não ter um sistema tributário racional, coerente e pormenorizado, permite grande mobilidade ao legislador tributário chinês, propiciando que se dê maior ênfase à eficiência e à celeridade da arrecadação do que à preservação de um ambiente fiscal-negocial estável, além de tal quadro permitir constante modificações das autoridades chinesas competentes para exercer a tributação, em prejuízo da segurança jurídica, dos direitos dos contribuintes, da desejável construção de um sistema racionalizado, da não-desejável liberdade do Governo chinês para criar ou extinguir tributos e espécies por lei, a qualquer momento, caracterizando evidentes desvantagens dessumidas da descrição de tal sistema de normas71.

Ainda, é de se sublinhar que, malgrado a inexistência de um sistema tri-butário constitucional, sequer existe um código tributário nacional na China, a permitir a uniformização de procedimentos, et caterva. Nesse sentido, o eminente professor chinês advoga que os acadêmicos e os administradores de seu país criem uma norma geral que permitiria “padronizar” a legislação, os procedimentos administrativos e a jurisdição tributárias72.

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Por outro prisma, apesar de inexistir um número maior de normas cons-titucionais a respeito da tributação, bem como, apesar de inexistir uma norma padrão tributária, à semelhança de nosso código tributário nacional, há direitos dos contribuintes na legislação infraconstitucional chinesa, em uma norma que poderia ser considerada uma espécie de “código de procedimentos de arrecada-ção”, ressentindo-se o sistema fiscal chinês como um todo de maior padronização e segurança jurídica, segundo o escólio do mesmo autor73.

Ainda, sobre o sistema tributário chinês, o mesmo autor nos remete a informação de que, em 1994, foi feita uma reforma tributária que simplificou a existência de gravames, aumentando as competências exacionais do Governo central chinês e praticamente simplificando o sistema à existência de três tipos de impostos: os impostos “centrais”, os impostos “locais” e os impostos partilhados entre Governo central e os governos locais, conforme rol exauriente a seguir mencionados pelo mesmo doutrinador acerca dos únicos impostos existentes na China, in literris:

Vista como a reforma de maior escala, a mais ampla e a mais profunda desde a fundação da Nova China, ela dividiu todos os impostos em impostos centrais, impostos locais e impostos partilhados central-local entre o Governo central e os governos locais (incluindo províncias, regiões autônomas, municípios e cidades do plano único). Após a reforma, o declínio “das duas proporções” parou; conse-quentemente, a capacidade de macrocontrole do Governo central foi fortalecida. Atualmente, a divisão de todos os tipos de impostos na China é a que segue:

1) Impostos Centrais • Taxas de Consumo; • Imposto de Aquisição de Veículo; • Tarifas; • Navios de carga de taxas impostas pelas autoridades aduaneiras e • Imposto sobre Valor Agregado cobrado pelas autoridades aduaneiras.

2) Impostos Locais • Manutenção da Cidade e Imposto sobre Construções; • Imposto de Recursos; • Imposto de Selo; • Imposto sobre Imóveis; • Imposto de Uso Territorial e Urbano; • Imposto sobre Valor Agregado de Terras; • Imposto sobre Veículos e Embarcações; • Ações Fiscais; • Impostos sobre a Ocupação de Terras Agrícolas e • Imposto sobre Tabaco em Folha.

3) Impostos Partilhados74

Finalmente, o mesmo emérito professor Zhu Wein descreve que seu Estado, por simples alterações nas leis tributárias, normas infraconstitucionais, conseguiu ganhos formidáveis na própria preparação da China para adentrar

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na Organização Mundial de Comércio, tendo aumentado de zero para noventa o número de tratados internacionais vedadores de bitributação e tendo logrado enorme êxito no escopo de atrair investimentos internos, uma vez que, mesmo considerando o peso de contribuições sociais, a carga tributária na China, em 2008, não passaria de 23% do Produto Interno Bruto75.

Logo, é de se concluir que, a par da simplicidade e aparente fragilidade jurídica de seu sistema tributário, a China tem uma carga tributária bem menor do que a brasileira, tem menor número de impostos, menor número de contribuições sociais e, portanto, uma competitividade fiscal que fica evidente, impactando, com certeza, no valor final dos bens econômicos produzidos em seu território.

Apenas para permitir uma comparação mínima, arrolamos, a seguir (sem usar nominar individualmente todas as exações existentes), a impres-sionante quantidade de tipologias diferentes de espécies tributárias do complexo e exauriente sistema tributário brasileiro, que gera arrecadação que se situa em patamar que oscila próximo aos 35% do Produto Interno Bruto (bem maior do que o patamar chinês mais próximo dos 20% do seu PIB)76, senão vejamos:

1) Impostos federais, estaduais, distritais e municipais (arts. 147, 153, 154, 155 e 156 da Carta Magna de 1988);

2) Taxas federais, estaduais, municipais e distritais, dependendo a compe-tência tributária para cobrar taxas da competência administrativa para exercer o regular poder de polícia ou para prestar serviços públicos específicos e divisíveis (arts. 145, inciso II, e 147 da Carta Magna de 1988);

3) Contribuição de Melhoria a ser cobrada por todos os entes federativos, segundo sua competência para executar obras públicas (art. 145, inciso III, da Constituição de 1988);

4) Empréstimos Compulsórios, que adquirem natureza tributária após a Constituição de 1988, somente podendo ser instituídos e cobrados mediante lei complementar da União (art. 148 da Carta Magna de 1988)77;

5) Contribuições especiais ou parafiscais, com as seguintes sub-espécies78:

5.1) contribuições sociais.

5.1.1) contribuições sociais gerais: destinadas a qualquer dos direitos sociais do artigo 6º da Constituição, como a contribuição social do salário-educação e as contribuições para o sistema dos serviços sociais autônomos (arts. 149, 212, § 5º; e 240 da Constituição de 1988);

5.1.2) contribuições sociais de seguridade social: destinadas à saúde, à assistência social e à previdência social, tais como as contribuições mencionadas nos artigos 195, incisos I, II, III e IV, 239 e 7º, inciso XXVIII, da Constituição de 1988;

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5.1.3) contribuições previdenciárias, que somente podem ser destinadas a despesas com a previdência social (arts. 40, 149, § 1º, 167, inciso XI, e 195, inciso I, alínea “a” e II, da Constituição de 1988);

5.2) contribuições corporativas profissionais e econômicas, cobradas no interesse de categorias profissionais ou no interesse de categorias econômicas (art 8º, inciso IV e 149, caput, da Constituição de 1988);

5.3) contribuições interventivas no domínio econômico (art. 149, caput e 177, § 4º, da Constituição de 1988);

5.4) contribuições sui generis79, nova espécie de contribuição, criada pela Emenda Constitucional nº 39/2002, que incide sobre o serviço municipal de iluminação pública, que não pode ser taxado por ser atividade ut universi do Estado (artigo 149-A da Constituição de 1988).

De fato, considerando as características do sistema tributário brasileiro e do sistema tributário chinês, tais peculiaridades sugerem que, realmente, é possível considerar a hipótese de, no âmbito da política pública de defesa da concorrência, aplicação de medidas antidumping a produtos chineses que con-corram com produtos brasileiros, no mercado brasílico, uma vez que a gritante diferença de carga tributária talvez seja suficiente para justificar a autoridade brasileira a considerar o valor normal do produto importado da China como submetido a uma situação especial, possivelmente justificando, assim, a adoção de medidas antidumping, o que, no entanto, somente poder-se-á afirmar com toda certeza aprofundando ainda mais o exame casuístico da carga tributária em cada mercado relevante de bens importados, fazendo comparações exacionais gerais e específicas, levando em conta exações específicas que tributem renda, lucro, faturamento, propriedade e outros dados econômicos tributários, permitindo conclusões precisas, técnicas e racionais.

Deveras, resta claro que o peculiar sistema tributário brasileiro80, além de ser muito diferente do sistema chinês, apresenta oneração tributária global e potencialmente específica muito maior do que a chinesa, sendo certo que, além da comparação global, a verificação comparativa casuística de alíquotas e bases de cálculos dos tributos brasileiros e chineses tende a favorecer as mercadorias chinesas com um custo direto e indireto muito menor, algo que representa uma vantagem adicional no caso de inexistência de produto similar brasileiro ao bem chinês importado, desestimulando investimentos negociais brasílicos e potencialmente prejudicando a economia nacional em face da não criação de empregos, da não realização de investimentos, não arrecadação de tributos e da interrupção parcial de ciclo econômico, motivos que mais do que justificam a aplicação de medida antidumping81, uma vez que o custo tributário diferente impacta nas despesas gerais, administrativas e financeiras e na margem de lucro, nos termos do artigo 14 do Decreto nº 8.058/2013, em benefício de vantagem desleal para a concorrência do produto chinês em detrimento do potencial produto brasileiro.

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Alfim, tal instrumento, como vimos, a aplicação de medidas antidumping – AD, deve ser considerado como legítimo, justo e adequado, afinal, as diferenças tributárias entre os dois países é fato econômico constatado e verificado, uma evidente motivação para a diversidade na formação dos respectivos preços, não sendo aceitável obrigar o empresário que produz no Brasil a arcar com o custo de-corrente das enormes diferenças entre os sistemas tributários brasileiros e chinês.

Ademais, o fato de o Brasil e a China serem grandes parceiros comerciais não impede que tenham eventuais discordâncias pontuais em certos setores mercadológicos, nos quais a aplicação de medidas antidumping podem ser rele-vantes, salientando-se que, em comparação com outros países, como os Estados Unidos da América, ainda é muito incipiente o uso desse instrumento permi-tido pela Organização Mundial do Comércio82, havendo grande espaço para o incremento, que se torna estrategicamente relevante no caso da China porque o comércio exterior sino-brasileiro continua a aumentar e tende a se tornar cada vez mais diversificado e complexo – gerando, inclusive, lides judiciais em evolução crescente83, mormente, no que toca às importações de produtos chineses que o Brasil não fabrica e que podem gerar um indesejável “monopólio internacional importado”, sendo necessário haver espaço jurídico, político e econômico para a defesa legítima do interesse econômico nacional, notadamente, por meio da verificação das assimetrias tributárias como critério justificador de medidas anti-dumping, frisando-se, por fim, que tais medidas não geram problema no âmbito da parceria dos BRICS, uma vez que a nova globalização multipolar intentada por esse elogiável acordo é plenamente compatível e adaptável a instrumentos típicos de resolução multilateral de questões comerciais no âmbito da Organização Mundial do Comércio, como ocorre com as medidas antidumping, inexistindo motivos para visualizar que seu uso seja inconveniente ou ameace a relação co-mercial e geoestratégia sino-brasileira.

Enfim, resta claro que é legítimo e conveniente o uso das assimetrias tri-butárias como critério de aferição e de justificação para a aplicação de medidas antidumping pelo Brasil a mercadorias importadas na China, máxime, se estas não tiverem similar brasileiro, o que é válido para evitar ou combater a indese-jável ocorrência de um “monopólio internacional importado”, propiciando a defesa da livre iniciativa e do direito ao desenvolvimento na economia nacional.

3 CONCLUSÃO

De tudo quanto exposto, é relevante repisar e corroborar algumas premissas fundamentais deste artigo:

a) Há, mormente, após a crise financeira e econômica mundial de 2008, um evidente desgaste da reputação da globalização “hegemônica, financista e neoliberal”, propiciando a existência de um espaço para a propagação de ou-tros modelos de internacionalização, mormente, mais enfocados nos aspectos sociais, culturais, ambientais, humanísticos e outros; nesse plano, a integração

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entre os países BRICS vai além do esforço de incremento na álea do comércio internacional, resultando em uma busca de rearranjo geoestratégico multipolar de alcance e consequências ainda imprevisíveis em sua totalidade, embora já se visualize parte de seu potencial na criação de um Banco de Desenvolvimento e um Fundo de Contingência específico dos BRICS e aberto a outros países e no estreitamento inédito das relações entre tais países, inclusive, com possível intercâmbio comercial sem o uso da moeda internacional de reserva – o dólar estadunidense;

b) Nesse contexto de ampla integração entre os países BRICS, o tema da eventual aplicação de medidas antidumping, pela existência de assimetrias tributárias na relação sino-brasileira, evidencia-se um problema complexo e desafiador uma vez que a integração de maior alcance não impede, não previne nem soluciona problemas específicos que têm impactos relevantes entre os dois países, parceiros de um jogo que vai além das relações comerciais;

c) Restou óbvio de nosso estudo que o impacto das assimetrias tributárias é crucial para se verificar o dumping internacional na situação específica de ine-xistirem bens brasileiros similares ou sucedâneos dos concorrentes internacional, legitimando-se a aplicação da medida antidumping na forma aferida de acordo com o artigo 14 do Decreto nº 8.058/2013, o qual trata de importações de bens que não tenham bens similares sendo produzidos no Brasil, uma vez que esse tipo de dumping pode impedir que se façam investimentos nacionais na mesma álea, devendo ser combatido em nome dos interesses da economia nacional; adicional-mente, também serve de motivação adicional quando existir bem similar nacional, porquanto o conceito de “preço normal”, utilizado para aferir a prática de dumping, permite a verificação das diferenças tributárias e seu uso como parâmetro comple-mentar de justificação da aplicação das medidas pró-concorrência;

d) Nesse sentido, observou-se que, existindo diferentes estruturas e dinâ-micas tributárias, que se reflitam nos preços das mercadorias, esse aspecto deverá ser considerado crucial para verificar a ocorrência de um preço “não-normal” que mereça ser objeto de medidas antidumping que reequilibrem as relações negociais de concorrência no comércio exterior;

e) Acresça-se, ademais, como argumento de corroboração das conclusões acima, que a hipótese de inexistência de similar brasileiro ao produto estrangeiro importado, situação na qual seria usado o procedimento do artigo 14 do Decre-to nº 8.058/2013, revela-se potencialmente mais danosa à economia nacional pelo fato de que tal lacuna de produção apenas pode advir de algum produto tecnologicamente sofisticado – normalmente, manufaturas de alto valor agregado - ou um bem econômico inteiramente novo, com espaço para agradar o mercado consumidor e avançar livremente sem nenhuma competição interna, que, sem a aplicação da medida antidumping, tornar-se-ia, muitas vezes, inviável, impedindo a criação de empregos, a produção nacional concorrente e obstando investimentos autóctones e a positiva circulação econômica, com reflexos também nas receitas estatais que deixam de ser arrecadadas;

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f) Logo, parece-nos patentemente problemático não se combater de forma eficaz a prática do dumping internacional quando inexistente produção de bem similar ou sucedâneo da mercadoria importada, inclusive, por meio da verifica-ção das assimetrias tributárias que atropelem a viabilidade da concorrência de bem nacional ou que gerem vantagens competitivas de tal modo contundentes e hipertrofiadas que inibam o potencial surgimento de bens brasileiros con-correntes, legitimando-se a aplicação de medidas antidumping pela autoridade administrativa brasileira;

g) Nesse sentido, restou demonstrada a viabilidade técnico-jurídica de aferição e o uso de assimetrias tributárias para, em tese, legitimar a aplicação de medidas antidumping “preventivas” e corretivas de um monopólio de importa-ção internacional, bem como para reforçar a aplicação de medidas antidumping quando existentes bens nacionais similares aos importados, uma vez que a carga tributária geral e específica menor acarreta vantagem econômica relevante;

h) Após o estudo comparativo entre os sistemas tributários sino-brasileiros, concluiu-se que, a par da simplicidade e aparente fragilidade jurídica de seu siste-ma tributário, a China tem uma carga tributária bem menor do que a brasileira, tem menor número de impostos, menor número de contribuições sociais e, por-tanto, uma competitividade fiscal que fica evidente, impactando positivamente no valor final dos bens econômicos produzidos em seu território;

i) restou claro, ainda, que o peculiar sistema tributário brasileiro, além de ser muito diferente do sistema chinês, apresenta oneração tributária global e potencialmente específica muito maior do que a chinesa, sendo certo que, além da comparação global, a verificação comparativa casuística de alíquotas e bases de cálculos dos tributos brasileiros e chineses tende a favorecer as mercadorias chinesas com um custo direto e indireto muito menor, algo que representa uma vantagem adicional no caso de inexistência de produto similar brasileiro ao bem chinês importado, desestimulando investimentos negociais brasílicos e potencialmente prejudicando a economia nacional em face da não criação de empregos, da não realização de investimentos, não arrecadação de tributos e da interrupção parcial de ciclo econômico, motivos que mais do que justificam a aplicação de medida antidumping, uma vez que o custo tributário diferente impacta nas despesas gerais, administrativas e financeiras e na margem de lucro, nos termos do artigo 14 do Decreto nº 8.058/2013, em benefício de vantagem desleal para a concorrência do produto chinês em detrimento do potencial produto brasileiro;

j) Alfim, tal instrumento, como vimos, a aplicação de medidas antidum-ping – AD, deve ser considerado como legítimo, justo e adequado, afinal, as diferenças tributárias entre os dois países é fato econômico constatado e verifi-cado, uma evidente motivação para a diversidade na formação dos respectivos preços, não sendo aceitável obrigar o empresário que produz no Brasil a arcar com o custo decorrente das enormes diferenças entre os sistemas tributários bra-sileiros e chinês, salientando-se, por fim, que o combate ao dumping é também

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uma forma de proteção ao consumidor brasileiro, que sempre ganha quando a economia permite um ambiente concorrencial;

k) restou claro, outrossim, que o uso das assimetrias tributárias como critério objetivo justificador da aplicação de medidas antidumping é adequado e lídimo, impedindo que a China retalie produtos brasileiros alegando que seus bens sofreram prática “discriminatória” ou “arbitrária” na importação para o Brasil;

l) Sobremais, concluiu-se que o fato de o Brasil e a China serem grandes parceiros comerciais não impede que tenham eventuais discordâncias pontuais em certos setores mercadológicos, nos quais a aplicação de medidas antidumping podem ser relevantes, salientando-se que, em comparação com outros países, como os Estados Unidos da América, ainda é muito incipiente o uso desse ins-trumento permitido pela Organização Mundial do Comércio, havendo grande espaço para o seu incremento e uso mais frequente;

m) O uso das medidas antidumping se torna estrategicamente relevante no caso da China porque o comércio exterior sino-brasileiro continua a aumentar e tende a se tornar cada vez mais diversificado e complexo – gerando, inclusive, lides judiciais em evolução crescente, mormente, no que toca às importações de produtos chineses que o Brasil não fabrica e que podem gerar um indesejável “monopólio internacional importado”, sendo necessário haver espaço jurídico, político e econômico para a defesa legítima do interesse econômico nacional, notadamente, por meio da verificação das assimetrias tributárias como critério justificador de medidas antidumping;

n) As medidas antidumping não geram problema no âmbito da parceria dos BRICS, uma vez que a nova globalização multipolar intentada por esse elogiável acordo é plenamente compatível e adaptável a instrumentos típicos de resolução multilateral de questões comerciais no âmbito da Organização Mundial do Comércio, como ocorre com as medidas antidumping, inexistindo motivos para visualizar que seu uso seja inconveniente ou ameace a relação comercial e geoestratégia sino-brasileira;

o) Enfim, resta claro que é legítimo e conveniente o uso das assimetrias tributárias como critério de aferição e de justificação para a aplicação de medidas antidumping pelo Brasil a mercadorias importadas na China, máxime, se estas não tiverem similar brasileiro, o que é válido para evitar ou combater a indesejável ocorrência de um “monopólio internacional importado”, propiciando a defesa da livre iniciativa, da proteção ao consumidor e do direito ao desenvolvimento na economia nacional.

Alfim, conclui-se que é legítimo, conveniente, não discriminatório e até recomendável que se utilize a autoridade administrativa brasileira competente do critério da verificação das assimetrias tributárias, comparando as cargas tributárias global e específicas de bens importados da China ou de seus similares nacionais, reais ou teóricos/potenciais, justificando-se, dessa forma, a aplicação de medidas antidumping pelo Brasil, sem que tal mister possa ser visto como impeditivo,

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perigoso ou nocivo para a normalidade, continuidade e sustentabilidade das relações sino-brasileiras de intercâmbio comercial, político, econômico, cultural e humanístico, inclusive, no âmbito do concerto-BRICS, que se desvela como detentor de soluções geopolíticas multipolares e multilaterais alvissareiras para a ordem e a globalização mundiais; ao contrário, tais medidas antidumping podem ser utilizadas para o aperfeiçoamento e a manutenção duradoura da própria rela-ção entre China e Brasil, afinal, assim se expressa um popular provérbio chinês: “após uma longa distância, você aprende sobre o vigor de seu cavalo; após um longo período de tempo, você aprende sobre o caráter de seu amigo”.

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1 A origem do acrônimo BRICS é comumente atribuída a um estudo de Jim O’Neil para intitulado “Goldman Sachs Global Economic Paper, n. 66, 2001”; vide CARDUCCI, Michele. A realidade dos países BRICS e o papel do direito constitucional comparado. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, a. 12, n. 50, p. 205-217, out./dez. 2012. Sobre os BRICS, vide ainda: PINHO, Mariangela Mendes Lomba; REI, Fernando. Indicadores de desempenho ambiental nos BRICS: uma análise do índice EPI. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 12, n. 47, p. 203-223, jul./set. 2014.

2 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 13.3 NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao Direito Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1997, p. 376-377.4 Nesse sentido reducionista ou unidimensional, George Soros afirma que “globalização é um termo que

tem sido usado em demasia e que apresenta ampla variedade de significados. Para os propósitos da presente análise, o utilizarei na acepção de desenvolvimento dos mercados financeiros globais, de crescimento das empresas transnacionais e do crescente domínio destas sobre as economias nacionais. (...) Também seria possível discutir a globalização da informação e da cultura; a difusão da televisão, da Internet e de outras

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formas de comunicação, e o aumento da mobilidade e da comercialização das ideias, mas acho que isso nos levaria longe demais. Ao estreitar a discussão dessa maneira, espero ser capaz de mantê-la dentro de limites controláveis e produzir algumas propostas práticas para melhorias institucionais” (SOROS, George. Globalização. 2. ed. Rio de Janeiro, 2003, p. 43).

5 Sobre o fenômeno mundial do neoliberalismo, suas características originadas no denominado “consenso de Washington” e sobre as específicas peculiaridades no âmbito das economias de países emergentes ou em desenvolvimento, recomendamos a leitura da doutrina de José Carlos Valenzuela Feijóo (FEIJÓO, José Carlos Valenzuela, In: LAURELL, Asa Cristina (Org.). O Estado Neoliberal e o caso Mexicano. Estado e Políticas Sociais no Neoliberalismo. São Paulo: Editora Cortez, 1995). Aliás, sobre as específicas peculiaridades assumidas pelo neoliberalismo nos países não-desenvolvidos, já tivemos a oportunidade de escrever os seguintes assertos: “Ainda, urge frisar que as características neoliberais apresentam algumas pequenas modificações nos países do capitalismo periférico: muito embora não estejamos acedendo à vergastada “teoria da dependência”, a verdade é que as conjunturas diversas entre países ricos e pobres sempre desvelam sutilezas desta natureza. Assim, podemos elencar como características teóricas e práticas da filosofia neoliberal nos países emergentes, muitas vezes até impostas pelos Organismos Internacionais, como FMI e OMC: a) redução das despesas (no campo dos serviços públicos) e do déficit público primário(que não inclui o pagamento de juros do serviço da dívida pública; b) congelamento de salários nominais e queda do salário real; c) liberalização dos preços de bens e serviços; d) restrições no crédito ao consumidor e aumento das taxas de juros; e) eventual desvalorização da moeda e abertura do comércio exterior; f) abertura - aos bens importados - brutal, imediata, sem planejamento estratégico ou de seletividade; g) estímulo ao consumo de bens supérfluos, suntuários ou o consumo do “luxo”; i) aumento da dívida pública com a proliferação indiscriminada do crédito público, com sufocamento financeiro do país no pagamento do serviço da dívida, normalmente, contratada com um período de maturação bastante curto e em condições especialmente desvantajosas para o devedor; j) recessão provocada pelo aumento da taxa de juros e conseqüente fortalecimento do capital financeiro em detrimento do industrial, com destruição do parque; k) retorno gradual ao modelo primário ou secundário exportador; l) patente intervenção federal no campo monetário e cambial; m) indiscriminado e não-estratégico processo de desestatização, com venda de segmentos que não oneravam o campo da despesa pública, ou mesmo, opostamente, incrementavam as receitas estatais patrimoniais com o seu superávit” (PEIXOTO, Maurício Muriack de Fernandes. Aspectos financeiros e tributários do Estado Neoliberal. Revista Direito em Ação-UCB, Brasília, v. 01, a.2000, p. 89-100).

6 “Tocante à globalização do neoliberalismo, cabe assinalar judiciosamente que se trata de uma impostura deste final de século(...). Nunca deixou de haver globalização, antes e depois da era cristã. (...). A globalização em curso no mundo contemporâneo se compreende melhor como espécie, e não como gênero. Posta em termos de rigidez que exclui alternativas e inculca determinismo e fatalidade, privando a sociedade da esfera onde ela exercita a autodeterminação, o livre arbítrio e a soberania, a globalização é absolutamente falsa(...). É tão somente expressão do tempo. E como tal é fugaz: traz em si mesma o germe da transitoriedade, ínsita a todas as coisas e situações que o elemento histórico processa, qualifica e faz perecível(...). A conclusão básica que fazemos é, portanto, a seguinte: a globalização em si ninguém pode remover. Mas o seu modelo sim; basta afastá-lo e instituir outro” (BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de estado institucional. São Paulo: Editora Malheiros, 1999, p. 15-16, grifos nossos).

7 Vide: PEIXOTO, 2000, op. cit., p. 89.8 “A globalização hegemónica, sendo a fase mais recente de um projecto capitalista global, é também a nova

metamorfose de um projecto expansionista de modernidade ocidental e cristã. Depois da missão civilizatória, do progresso, do desenvolvimento e da modernização, a globalização neoliberal prossegue um projecto civilizatório global, assente em princípios caracteristicamente ocidentais e cristãos: separação entre imanên-cia e transcendência e uma concepção especular das relações entre ambas; a autonomia dos indivíduos; o individualismo na economia e na política (o interesse comum assente na prossecução do interesse próprio); a secularização (a separação entre igreja e Estado e a transferência para o Estado da ideia de omnipotência divina); separação entre natureza e sociedade e a concepção da primeira como um recurso infinitamente disponível da segunda; o progresso como versão secular da redenção; a distinção entre o espaço público e o espaço privado, pertencendo à religião este último; privilégio absoluto a uma forma de conhecimento, a ciência moderna; a concepção do tempo, como sendo linear, com sentido e direcção únicos; formas de classificação social concebidas como consequências das superioridades e inferioridades naturais; gosto por princípios universais válidos independentes de contextos, ainda que sempre favoráveis aos contextos em

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que pode florescer o projecto moderno capitalista, ocidental e cristão.” (SANTOS, Boaventura de Souza. Os direitos humanos na zona de contato entre globalizações rivais. Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos, Editora Revista dos Tribunais, v. 1. ago. /2011).

9 Sobre a ilegítima apropriação da globalização pelos modelos e pelas ideologias neoliberais, já tivemos a oportunidade de escrever as seguintes criticas acadêmicas, in verbis:

“Quanto à globalização, em relação à filosofia política e econômica neoliberal, entendemos que a mesma se trata de um fenômeno complexo, a incluir seus tentáculos tanto no campo da gênese causal como no plano dos efeitos; ao mesmo passo em que a globalização foi propiciando o desencadear da ampla aceita-ção do modelo neoliberal do Estado Mínimo em vários países, na medida em que estes últimos aderiam ao novo modelo proposto, de modo relativo ou absoluto – sempre em tendência crescente –, o nível de transnacionalização foi aumentando. Não é à toa que o fenômeno da globalização está sempre associado às idéias neoliberais: parecem, sob o inflexo de uma olhadela superficial, se manifestar em uma relação de autodependência para a manutenção das atuais características. De uma certa forma, ideologicamente, para os neoliberais, ressoa interessante que ocorra essa confusão conceitual, porquanto dá a impressão de que o neoliberalismo, no plano filosófico, também é um dado histórico não eventual.

No entanto, globalização e neoliberalismo não se confundem – muito embora se apresentem, em nossos dias, estreitamente interligados -, sendo teoricamente possível existir processo de globalização em um am-biente mundial infenso ao neoliberalismo. Este último, entretanto, apoderou-se do atual fenômeno – com ênfase no seu aspecto de tecnologia -, instigando-o como ferramenta de sua própria produção ideológica. Em outras palavras, inexorável era tão-somente a globalização, em face do desenvolvimento dos meios de comunicação entre povos e nações, ocorrendo nítido mutualismo com a filosofia neoliberal” (PEIXOTO, 2000, op. cit., p. 93).

10 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. In: Globalização, Regionalização, Reforma do Estado e da Cons-tituição. Revista de Direito Administrativo, n. 211, jan./mar. 1998, Editora Renovar, grifos inexistentes no original.

11 “Outros movimentos globalizantes apresentaram combinações desses interesses, como o da expansão do Islã e do Imperialismo, sendo que este último se desdobrou em manifestações específicas, como o inglês, o norte-americano e o soviético. A globalização que se experimenta neste fim de século e de milênio ul-trapassa, porém, todas estas experiências, pois ela não é só mais ampla e mais diversificada: é, sobretudo, mais profunda, pois é um produto da revolução das comunicações e, por isto, veio para permanecer. É necessário, portanto, que se tenha bem compreendido que o mundo se vai encolhendo e os indivíduos, os grupos, as sociedades os Estados, cada vez mais próximos e interagentes porque o desenvolvimento científico e tecnológico, notadamente nos últimos cem anos disseminou ecumenicamente a informação, possibilitando a eclosão de uma nova etapa civilizatória: a era do conhecimento” (MOREIRA NETO, op. cit., grifos inexistentes no original).

12 “Enquanto o neoliberalismo tende a promover a desigualdade, louvando os chamados ‘incentivos’ e depre-ciando as instituições de solidariedade e redistribuição de renda, o individualismo de direitos global possui uma dinâmica igualitária, embora diferente da dinâmica anterior do nacionalismo, populismo e socialismo. (...) Globalização não significa necessariamente integração global. Pode também significar polarização global. (...) Globalização não são somente mercados anônimos e cultura de massa pré-empacotada e transmitida via satélite. Ela não é o mesmo que um embate sem fim pela Lebensraum Globalization; inclui também a ação social no mundo todo e o interesse mundial e a comunicação direta. O que estamos encarando é uma globalização de opções, não de forma alguma a opção por mais ou menos desigualdade de recursos e direitos” (THERBON, Göran. Dimensões da globalização e a dinâmica das desigualdades. In: GENTILI, Pablo (Org.). Globalização excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. 3. ed. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 1999, p. 91-92).

13 “Uma das máximas mais proferidas, especialmente pelos defensores da globalização como um fenômeno unicamente ou preponderantemente positivo é o de que a globalização é inevitável e que lutar contra isso é querer lutar contra o curso da história, o que, em última análise, significaria perda de tempo, energia e exercício involuntário de obtusidade intelectiva. Este tipo de defesa de idéias ou, antes ainda, a adoção dessa premissa, é bastante comum entre economistas, mormente os de feição liberal, hoje já alinhados com o chamado neoliberalismo, termo que tem estreita ligação com a globalização. (...)

Se nos atermos aos fatos históricos como tais, sejam eles quais forem, veremos que nada pode ser visto como inexorável ou ocorrente de forma inevitável por si só, como algo solto no espaço que simplesmente se materializou por obra e graça de uma força extra e/ou sobre-humana.(...)

Assim, dizer que a globalização é inevitável, ao lado de ser pensamento que busca de forma desabrida a

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estreiteza e a não-reflexão, mostra também, junto com outras características, que pode ser uma espécie de estratégia deliberada justamente para se alcançar o quanto comentamos no tópico anterior acerca da adoção do ideário único trazido pela globalização, intencionando, ainda, que tal processo se dê da forma menos traumática possível, entendendo-se nessa expressão, a minoração ou ausência de resistência aos valores cuja unificação e planificação é buscada” (MINHOTO, Antônio Celso Baeta. Globalização e direito: o impacto da ordem mundial global sobre o direito. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004, p. 23-25).

14 Vide: CHOSSUDOVSKY, Michel. The Globalization of poverty and the new world order. 2 ed. Global Outlook: Ontário (Canadá), 2003, p. 17-20.

15 Friedrich List, em 1827, após visitar o recém-independente Estados Unidos da América, já reconhecia que o ideal seria um mundo global onde inexistissem guerras, imperialismos e reinassem a paz e o livre-comércio, e profetizava um futuro de integração mundial real, senão vejamos, in verbis: “Se todo o globo terrestre estivesse ligado por uma união semelhante aos 24 Estados da América do Norte, o livre comércio seria realmente bastante natural e benéfico como é atualmente nos Estados Unidos. Não haveria razão para separar o interesse de um certo espaço de terra e um certo número de seres humanos do interesse de todo o globo e de toda a raça. Não haveria interesse nacional nem lei nacional contrários à liberdade de toda a raça, nem restrição, nem guerra. Tudo fluiria em seu curso natural. O capital e as habilidades inglesas, se superabundantes naquela ilha, transbordariam para as margens do Sena e do Elba, do Reno e do Tejo; teriam fertilizado as florestas da Boêmia e da Polônia muito antes de fluir para as margens do Ganges e do St. Lawrence, e por toda parte levariam consigo liberdade e lei. Um inglês emigraria para a Galícia ou a Hungria tão rapidamente quanto hoje um homem de Nova Jersey emigra para o Missouri e o Arkansas. Nenhuma nação precisaria temer por sua independência, poder e riqueza por causa das ações de outras nações. Este estado de coisas pode ser muito desejável – pode ser caro ao coração de um filósofo desejá-lo – pode até fazer parte do grande plano da Providência realizá-lo em futuras eras. Mas, senhor, não é o estado do mundo real” (LIST, Friedrich. In Carta 1 - O equívoco fundamental na Teoria do Livre Comércio. Revista “OIKOS” de economia heterodoxa, n. 8, a. VI, 2007. Disponível em: <http://www.revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/article/viewFile/14/10>. Acesso em: 5 ago. 2015.

16 “A globalização, isto é, o processo de mundialização atual do capitalismo, apresenta várias faces: a financeira, a comercial, a produtiva, a institucional e a da política econômica (Baumann). Todas estas faces correspon-dem a etapas da competição entre um número cada vez mais reduzido de grandes empresas transnacionais, cerca de 300 mega empresas, segundo Chesnay. Tais 300 empresas constituem o ‘mercado’, entidade nada abstrata e que tem tentado se impor frente ao Estado, enquanto atores estruturados da ordem econômica mundial” (SANTOS, Ângela Moulin Penalva. Globalização econômica e financeira na América Latina. Inserção das economias latino-americanas na nova ordem econômica. In: Globalização Na América Latina: integração solidária. Seminário Internacional no Rio de Janeiro, 28-29 de nov. 1996. Editora Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG): Brasília, 1997, p. 57).

17 SANTOS, Boaventura Sousa. A crítica da governação neoliberal: O Fórum Social Mundial como política e legalidade cosmopolita subalterna. Revista Crítica de Ciências Sociais, 72, out. 2005, pp. 7-44. Disponível em: <http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/governacao_neoliberal_RCCS72.PDF>. Acesso em: 23 mar. 2014.

18 Ibid., p. 7.19 Ibid., p. 7.20 Ver Op. Cit. pg. 7.21 Ver Op. Cit., pg. 8.22 SANTOS, op. cit., p. 9 e ss.23 CARDUCCI, Michele. A realidade dos países BRICS e o papel do direito constitucional comparado.

A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, a. 12, n. 50, pp. 205-217, out./dez. 2012, p. 206.

24 Ibid., p. 206.25 Vide AMORIM, Celso. Brasil não pode desperdiçar seu soft power. Entrevista para a BBC Brasil, em

10 de mar. 2015. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/03/150310_entrevis-ta_celso_amorim_jc_rb>. Acesso em: 5 ago. 2015.

26 Ainda, sobre o conceito de “soft power”, vide obra seminal de Joseph Nye S. Jr.: “Soft Power: The Means To Success In World Politics Paperback – april 26, 2005, in verbis: “What is soft power? It is ability to get what you want through attraction rather than coercion or payments. It arises from attractiveness of a country’s culture, political ideals, and policies”(NYE Jr, Joseph S. Soft Power: The Means To Success In World Politics Paperback. PublicAffairs: New York (USA), April 26, 2005, precafe. Disponível em: <http://www.amazon.com/Soft-Power-Means-Success-Politics/dp/1586483064>. Acesso em: 5 ago. 2015).

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27 A multipolaridade “se trata de uma estrutura de poder oposta, por definição, à unipolaridade – que é a hegemonia de um pólo de poder sobre o sistema internacional, e à bipolaridade - competição entre dois pólos de poder hegemônicos no sistema internacional. Esta estrutura de poder compreende diversos (três ou mais) pólos no sistema internacional e pode ser de caráter competitivo ou cooperativo, como busca caracterizar o novo paradigma de política externa brasileira” (in “As Mudanças na Política Externa do Governo Dilma e a “Multipolaridade Benigna”. Relatório oficial do “BRICS monitor”. Núcleo de Análises de Economia e Política dos Países BRICS do Instituto de Relações Internacionais. PUC-Rio e Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, de maio de 2011. Disponível em: <http://bricspolicycenter.org/homolog/uploads/trabalhos/132/doc/556584881.pdf>. Acesso em: 05 ago. 2015.

28 Vide: notícia oficial do governo brasileiro sobre o encontro entre os BRICS em Fortaleza, disponível em: <http://brics.itamaraty.gov.br/pt_br/>. Acesso em: 5 ago. 2015.

29 Vide: CARVALHO, Fernando J. Jardim. Bretton Woods aos 60 anos. Disponível em: <http://www.ie.ufrj.br/moeda/pdfs/bretton_woods_aos_60_anos.pdf.> Acesso em: 05 ago. 2015.

30 “A crise econômica – profunda e prolongada – no centro do capitalismo já apontava para um mundo eco-nomicamente multipolar, porque em outras circunstâncias o conjunto da economia mundial teria entrado igualmente em recessão. Ainda que sofram as pressões recessivas da crise, os países do Sul do mundo – ou pelo menos uma parte deles, que reagem ao neoliberalismo – continuaram crescendo e diminuindo as desigualda-des. O surgimento dos Brics aponta mais concretamente, para um bloco de países que desenham um mundo multipolar. Depois de seu espetacular lançamento, criou-se um clima na mídia conservadora internacional, de que os Brics teriam se esgotado, seja pela diminuição do seu ritmo de crescimento, seja por diferenças internas entre eles, seja ainda pela falta de novas iniciativas. A reunião dos Brics em Fortaleza desmentiu essas versões e, ao contrário, representou um relançamento espetacular do grupo de países emergentes. Ainda que não o afirmem, representa uma arquitetura alternativa à que foi constituída em Bretton Woods e que comandou, por sete décadas, o sistema econômico internacional, tendo o FMI e o Banco Mundial como seus pilares.” (SADER, Emir. In: Brics: a hegemonia alternativa. Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/Brics-a-hegemonia-alternativa/2/31410>. Acesso em: 5 ago. 2015.

31 Sobre a origem e o alcance da Globalização, vide os seguintes autores: GODOY, Arnaldo Sampaio de Godoy. Globalização, Neoliberalismo e Direito no Brasil. Londrina: Edições Humanidades, 2004, p. 177 e ss.; IANNI Octávio. Teorias da Globalização. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003, p. 13 e ss.; IANNI, Octávio. A era do Globalismo. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002, p. 11 e ss.; IANNI, Octávio. A sociedade Global. 10. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002, p. 127 e ss.

Sobre a crítica que se faz ao conceito tradicional ou “neoliberal-hegemônico” de globalização, ver item anterior deste artigo.

32 Sobre a estrutura e o funcionamento da Organização Mundial do Comércio, vide os seguintes autores: VARELLA, Marcelo D. Direito Internacional Público. Editora Saraiva: São Paulo, 2009, p. 292-300; HERZ, Mônica; HO-FFMAMM, Andréa Ribeiro. Organizações Internacionais: história e prática. Rio de Janeiro: Elsevier Editora ltda, 2004, p. 151 e ss.; AMARAL, Alberto do Júnior. A solução de controvérsias na OMC. São Paulo: Editora Atlas, 2007, p. 127-207; BRUM, Argemiro Luís; HECK, Cláudia Regina. Economia Internacional: uma síntese da análise teórica. Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p. 244 e ss.; MAGALHÂES, José Carlos. Direito Econômico Internacional: tendências e perspectivas. Curitiba: Editora Juruá, 2005, p. 68 e ss.

33 Decretos que promulgaram tratados internacionais sobre o assunto: nº 93.941, de 16 de janeiro de 1987, e nº 93.962, de 22 de janeiro de 1987, bem como o Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994.

34 Revogou o Decreto Presidencial nº 1.602, de 23 de agosto de 1995, que, até então, regulamentava o instituto das medidas antidumping.

35 Vide artigo 1º, § 2º, do Decreto nº 8.058/2013.36 Sobre uma visão crítica a respeito do pensamento de Friedrich List sobre o uso de medidas nacionalistas

de proteção da economia interna, recomendamos a leitura do papper de Werner Karl Baingo, intitulado “Escola Histórica Alemã e o pensamento listiano protecionista do século XIX: ambiguidade ao laissez--faire inglês ou virtudes nacionais de EUA e Alemanha?”. Disponível em: http://www.apec.unesc.net/IV_EEC/sessoes_tematicas/Hist%F3ria%20econ%F4mica/Escola%20Hist%F3rica%20Alem%E3%20e%20o%20pensamento%20listiano%20protecionista%20do%20s%E9culo%20XIX%20.pdf. Acesso em 5 ago. de 2015.

Sobre a evolução da história do pensamento econômico, sugerimos a leitura da obra paradigmática de Robert Heilbroner: “a história do pensamento econômico”. Editora Nova Cultural: São Paulo, 1996, 6ª edição.

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37 Sobre a origem e as vantagens da criação da Organização Mundial do Comércio, vide: MARQUES, Maria de Fátima Rodrigues. A OMC e as Medidas Antidumping no Brasil. Revista Eletrônica do Curso de Direito das Faculdades OPET. Curitiba, a. IV, n. 10, jun./dez. 2013. ISSN 2175-7119.

38 Sobre a dissenção doutrinária nacional e internacional a respeito da natureza jurídica das medidas anti-dumping, vide: MARQUES, op. cit.

39 “ADMINISTRATIVO E ECONÔMICO. IMPORTAÇÃO DE ALHOS FRESCOS DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA. SISTEMA BRASILEIRO DE COMÉRCIO EXTERIOR E DEFESA COMERCIAL. NATUREZA DO DIREITO ANTIDUMPING: NÃO-TRIBUTÁRIA. NÃO COMPROVAÇÃO DO DISSÍDIO JURISPRU-DENCIAL. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.

1. Na origem, tratou-se de ação em que a parte ora recorrente pretendeu afastar o recolhimento de US$ 0,48/kg (quarenta e oito cents de dólar norte-americano por quilograma), referente a direito antidumping, previsto na Resolução Camex n. 41/2001, na importação de alhos frescos da República Popular da China, por entender que estaria desobrigado de pagar a medida protetiva, já que o procedimento administrativo teria descumprido os princípios da ampla defesa, do contraditório e da legalidade.

2. Os direitos antidumping e compensatórios não têm natureza tributária, mas, sim, de receitas originárias, a teor do art. 3º, parágrafo único, da Lei nº 4 320/64 e dos arts. 1º, parágrafo único, e 10, caput e parágrafo único, da Lei nº 9.019/95. Não se lhes aplicam, portanto, os arts. 97 e 98 do Código Tributário Nacional. (...)

4. Recurso especial não provido. (REsp 1170249/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em

17/5/2011, DJe 30/5/2011). Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=medida+e+antidumping+e+natureza+e+tribut%E1ria&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO>. Acesso em: 5 ago. 2015.

40 O próprio Supremo Tribunal Federal tem entendido que o poder judiciário deve evitar adentrar no mérito de decisões da autoridade administrativa a respeito de medidas antidumping ou compensatórias, alegando que “Não cabe ao Poder Judiciário adentrar no exame da oportunidade e da conveniência de ato do Po-der Executivo (sobretarifa antidumping) no exercício de sua discricionariedade, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, mormente quando não demonstrada ausência de razoabilidade ou de proporcionalidade da medida, como ocorreu no caso dos autos”(RE 475954 AgR/RS - RIO GRANDE DO SUL). Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 ago. 2015.

41 Vide artigo 1º do Decreto Presidencial nº 1.751/95: “Art. 1º Poderão ser aplicados direitos compensatórios com o objetivo de compensar subsídio concedido, direta ou indiretamente, no país exportador, à fabricação, à produção, à exportação ou ao transporte de qualquer produto, cuja exportação ao Brasil cause dano à indústria doméstica”.

42 Vide artigo 7º do Decreto nº 8.058, de 26 de julho de 2013.43 Vide artigo 2º do Decreto nº 8.058, de 26 de julho de 2013, in verbis: “Art. 2º Compete ao Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior - CAMEX, com base nas

recomendações contidas em parecer do Departamento de Defesa Comercial da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior - DECOM, a decisão de: I - aplicar ou prorrogar direitos antidumping provisórios ou definitivos; II - homologar ou prorrogar compromissos de preços; III - determinar a cobrança retroativa de direitos antidumping definitivos; IV - determinar a extensão de direi-tos antidumping definitivos; V - estabelecer a forma de aplicação de direitos antidumping, e de sua eventual alteração; VI - suspender a investigação para produtores ou exportadores para os quais tenha sido homologado compromisso de preços, nos termos do art. 67; VII - suspender a exigibilidade de direito antidumping definitivo aplicado, mediante a exigência de depósito em dinheiro ou fiança bancária na hipótese da Subseção I da Seção III do Capítulo VIII, assim como determinar a retomada da cobrança do direito e a conversão das garantias prestadas; e VIII - suspender a aplicação do direito antidumping na hipótese do art. 109”.

44 Vide artigo 2º do Decreto nº 1.751, de 19 de dezembro de 1995, in verbis: “Art. 2º Compete aos Ministros de Estado da Indústria, do Comércio e do Turismo e da Fazenda a decisão de aplicar, mediante ato conjunto, medidas compensatórias provisórias ou direitos definitivos e homologar compromissos, com base em parecer da Secretaria de Comércio Exterior - SECEX, do Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo, que comprove a existência de subsídio e de dano dele decorrente”.

45 Vide artigos 4º, 5º, 6º e 7º do Decreto nº 1.751/95.46 Vide artigo 8º do Decreto nº 8.058/2013: “Considera-se “valor normal” o preço do produto similar, em

operações comerciais normais, destinado ao consumo no mercado interno do país exportador”.47 Sobre os parâmetros objetivos para caracterizar um bem nacional como “similar” ao bem estrangeiro

importado, vide artigo 9º do Decreto nº 8.058/2013.

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48 Vide artigo 14 do Decreto nº 8.058/2013, in literris: “ Art. 14. Caso não existam vendas do produto similar em operações comerciais normais no mercado interno do país

exportador ou quando, em razão de condições especiais de mercado ou de baixo volume de vendas do produto similar no mercado interno do país exportador, não for possível comparação adequada com o preço de exportação, o valor normal será apurado com base no: I - preço de exportação do produto similar para terceiro país apropriado, desde que esse preço seja representativo; ou II - valor construído, que consistirá no custo de produção no país de origem declarado, acrescido de razoável montante a título de: a) despesas gerais; b) despesas administrativas; c) despesas de comercialização; d) despesas financeiras; e e) lucro.”

49 Sobre as dificuldades de criar um ambiente global de “paz universal”, o filósofo alemão Immanuel Kant se pronunciou no sentido de que seria uma “quimera” no final do século XVIII, e a única solução adequada seria estabelecer um “direito das gentes”, internacional, para persuadir os povos a se respeitarem, senão vejamos, in verbis: “Em nenhum lugar a natureza humana aparece menos digna de ser amada do que nas relações mútuas entre povos inteiros. Nenhum Estado, em relação a outro, se encontra um só instante seguro quanto à sua independência ou propriedade. A vontade de se subjugarem uns aos outros ou de empequenecerem o que é seu está aí sempre presente e o armamento para a defesa, que muitas vezes torna a paz ainda mais opressiva e mais prejudicial para a prosperidade interna do que a própria guerra, jamais pode afrouxar. Ora, para tal situação nenhum outro remédio é possível a não ser (por analogia com o direito civil ou político dos homens singulares) o direito das gentes, fundado em leis públicas apoiadas no poder, às quais cada Estado se deveria submeter; pois uma paz universal duradoira, graças ao assim chamado equilíbrio das potências na Europa, é como a casa de Swift, que fora construída por um arquitecto de um modo tão perfeito, segundo todas as leis do equilíbrio, que imediatamente ruiu quando um pardal em cima dela pousou: é uma pura quimera”(KANT, Immanuel. In: MORÃO, Artur (Trad.). Ensaio ‘SOBRE A EXPRESSÃO CORRENTE: Isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática (1793)’. Portugal: Editora Lusosofia, 2001, p. 46). Disponível em: <www.lusosofia.net>. Acesso em: 5 ago. 2015.

50 “Em 2012, a China se consolidou como o maior parceiro comercial do Brasil, ultrapassando os Estados Unidos pela primeira vez. No ano passado, o gigante asiático liderou as vendas e as compras do Brasil: o País exportou um total de US$ 41,2 bilhões em produtos e serviços para a China, e importou US$ 34,2 bilhões em bens chineses.” Extraído do site: <http://economia.terra.com.br/brasil-tem-pior-saldo-no--comercio-externo-em-dez-anos,828869aef6790410VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 5 ago. 2015.

Esses dados acima mencionados são corroborados nos indícios informativos extraídos de documento oficial do Governo Brasileiro, qual seja, o Ministério das Relações Exteriores – MRE, por meio do Departamen-to de Promoção Comercial e Investimentos – DPR e de sua Divisão de Inteligência Comercial – DIC, documento extraível do site <http://www.brasilglobalnet.gov.br/ARQUIVOS/IndicadoresEconomicos/ComExtBrasileiroABR2012.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2015.

51 Vide: SOARES, Eduardo Coelho Maxnuck; CASTILHO, Marta dos Reis. O impacto das importações chinesas na indústria brasileira nos anos 2000. ANPEC. Disponível em:

<http://www.anpec.org.br/encontro/2014/submissao/files_I/i9acc8b9f95790afc4c7a1bd05c2df05a0.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2015.

52 ABI-SAD. Sérgio Caldas Mercador. Os anjos rebeldes da paz celestial: minorias no Tibete, Xinjiang e Mongólia Interior. 1. ed. Curitiba: Juruá editora, 2013, p. 09.

53 MS 13.413/DF, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, primeira seção, julgado em 24/09/2008, DJe 6/10/2008.Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 5 ago. 2015.

54 Vide: THORSTENSEN, Vera; RAMOS, Daniel; MÜLLER, Carolina. In: O reconhecimento da China como economia de mercado: o dilema de 2016. FGV. Disponível em: <http://ccgi.fgv.br/sites/ccgi.fgv.br/files/file/O%20reconhecimento%20da%20china%20como%20economia%20de%20mercado%20-%20o%20dilema%20de%202016.pdf.> Acesso em: 5 ago. 2015.

55 Nesse sentido, acórdão do Superior Tribunal de Justiça validou decisão da Secex que visualizou prática de dumping em produto chinês e desconsiderou o “preço normal” do mesmo no mercado chinês sob a alegação de que “A China não seria uma economia de mercado” – vide: “ Ementa: DEFESA COMERCIAL - DUM-PING - DECRETO Nº 1.602/95 - COMPETÊNCIA DA SECEX - EXAME DE DADOS ESPECÍFICOS, CÁLCULOS E PROJEÇÕES ECONOMÉTRICAS - REVISÃO PELO JUDICIÁRIO - COMPARAÇÃO ENTRE MÉDIAS PONDERADAS E PREÇOS ISOLADOS - EXCEPCIONALIDADE - DETERMINA-ÇÃO DO VALOR NORMAL - AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC.5. Hipótese em que o valor normal só foi determinado com base em projeções e modelos econométricos, considerando-se não ter a República Popular da China economia de mercado. 6. O Poder Judiciário não pode substituir-se

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à SECEX, órgão administrativo especializado nas investigações relativas a dumping, cabendo-lhe apenas o controle da aplicação das normas procedimentais estabelecidas.7. Exorbitância do Tribunal a quo, ao comparar médias ponderadas de valor normal com preços individuais de produtos importados em operações isoladas, fungindo da sua esfera de atuação. (...) 9. Recurso especial parcialmente provido. (REsp 1105993/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 4/02/2010, DJe 18/02/2010). Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 5 de agosto de 2015.

56 Vide: MS 13.413/DF, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/9/2008, DJe 06/10/2008. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em 5 de agosto de 2015.

57 “A legislação chinesa prevê também que o governo pode adotar medidas de retaliação contra países que usem medidas AD contra a China de maneira discriminatória, provavelmente para desencorajar o grande número de investigações contra o país.”(CASTELAN, Daniel Ricardo. O uso de medidas antidumping no Brasil, na Índia e na China: características de regulação e de participação do setor privado. In: Texto para discussão/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília/Rio de Janeiro: Ipea, jul. 2012, p. 12).

58 Sobre a estrutura constitucional dos poderes, a história sintética da República Popular da China, sua realpolitk e singularidades, bem como seus desafios atuais, vide: CHEN, JIANFU. Chinese law: context and transformation. Martinus Nijhoff Publishers: Leiden, Boston, 2008, p. 29-144; KISSINGER, Henry. In: Leite, Cássio de Arantes (Trad.). Sobre a China. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2011, p. 25-39; ABI-SAD. Sérgio Caldas Mercador. In: Os anjos rebeldes da paz celestial: minorias no Tibete, Xinjiang e Mongólia Interior. Curitiba: Juruá editora, 2013, p. 10-87; ABI-SAD. Sérgio Caldas Mercado. In: A muralha e o mito: Deng Xiaoping e as reformas revolucionárias na China. Curitiba: Juruá editora, 2013, p. 13-167.

59 Vide artigos 4º, 5º, 6º e 7º do Decreto nº 1.751/95.60 Vide artigo 8º do Decreto nº 8.058/2013: “Considera-se “valor normal” o preço do produto similar, em

operações comerciais normais, destinado ao consumo no mercado interno do país exportador”.61 MARTINS, Ives Gandra da Silva. “O princípio da igualdade de tributação no comércio internacional

(o sistema brasileiro e o protecionismo às avessas praticado pelas autoridades – inconstitucionalidade da menor oneração tributária do similar estrangeiro em relação ao produzido no país)”. Revista Tributária e de Finanças Públicas, Editora Revista dos Tribunais, v. 6, p. 173, jan. 1994, p. 172.

62 Saliente-se que, no referido documento doutrinário, Ives Gandra da Silva Martins, a par do diagnóstico fulminantemente verdadeiro, ao ponto de até à presente data ser um diagnóstico estrutural e conjuntural com logicidade, o referido autor sugeriu o aumento do imposto de importação como forma de compensar as assimetrias tributárias entre produtos brasileiros e produtos estrangeiros. No entanto, o uso da legislação tributária para proteger o mercado interno passou a ser vedado com o sistema da Organização Mundial de Comércio, como anota Marcos Aurélio Pereira Valadão (VALADÃO, op. cit., p. 31.).

63 Saliente-se que a competição pode, muitas vezes, chegar ao ponto da guerra fiscal entre os estados, para atrair investimentos, impactando o sistema tributário dos países, como anota a doutrina brasileira – ver: MARTINS, Alexandre Marques da Silva. Subsídios tributários e Organização Mundial do Comércio: uma relação difícil. Revista Fórum de Direito Tributário RFDT. Belo Horizonte, a. 9, n. 53, set./out. 2011, p. 9.

64 “Ora, a livre iniciativa é evidentemente violentada na medida em que os produtos produzidos no Brasil sofrem carga tributária superior à dos estrangeiros. Deve-se lembrar que é princípio de comércio internacional o de que os países exportam “produtos” e não “tributos”, razão pela qual os produtos estrangeiros chegam ao Brasil desonerados, em sua origem, de grande parte da carga tributária interna. Não têm o efeito “cascata”, nem o efeito “inflação” no Brasil e não têm a oneração tributária na origem.

Ora, a livre iniciativa pressupõe garantir a todos os nacionais e residentes igualdade de condições concorrenciais. O princípio da “livre iniciativa” é acompanhado pelo da “livre concorrência”, o que também pressupõe igualdade de con-dições de competição. Não pode o Estado inibir a produção nacional e favorecer a estrangeira, mesmo que tal decorra de conjuntura que não consegue dominar, por teimar em manter estrutura administrativa superior à capacidade da sociedade em suportá-la.

No momento em que a produção nacional cai e parte de seu mercado é preenchido pela produção importada, à nitidez, cai o nível de emprego, posto que, no produto importado, apenas o ciclo final do comércio gera empregos, enquanto que a produção nacional gera empregos em toda a cadeia produtiva. Ferido fica, em decorrência, o inc. VIII do art. 170.

Em face de tal favorecimento conjuntural, começam a ocorrer as hipóteses de abuso do poder econômico, plasmadas no art. 173, § 4º, o qual não permite que a dominação de mercados e eliminação de concorrência floresçam em regimes de livre concorrência. Ora, no favorecimento à produção estrangeira decorrencial de um sistema tributário mais penoso para as empresas brasileiras e nos efeitos caóticos da inflação em todo o ciclo produtivo, que termina gerando uma

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Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto

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fantástica carga financeira sobre as empresas, o abuso do poder econômico é dirigido, coordenado e apoiado pelo Estado!!! (MARTINS, Ives Gandra da Silva. Op. Cit. p. 173).

65 Vide: CASTELAN, op. cit., p. 9/32-34.66 Vide, et ali, os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça que corroboram a legitimidade das medidas

administrativas adotadas pelo governo brasileiro: REsp 1.048.470-PR; REsp 1.105.993-PR; MS 20.481/DF; MS 21.168/DF; MS 14691/DF; MS 15.400/DF; MS 15.142/DF e Rcl 1887/ES. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 5 ago. 2015.

67 MS 14.857-DF, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 12/5/2010, noticiado no Informativo do Superior Tribunal de Justiça nº 434, referente ao período de 10 a 14 de maio de 2010.Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 5 ago. 2015.

68 Mencione-se, em acréscimo, que o perfil dos casos de antidumping atuais aplicados pelo Brasil não costuma alcançar bens manufaturados e nem bem em regime de monopólio por falta de similar no Brasil(vide: CASTELAN, op. cit.,p. 32-34).

69 WEIGUN, ZHU. O Sistema Tributário Chinês e seus Efeitos no Desenvolvimento e nas Relações Comerciais Internacionais da China: Enfoque Jurídico e Econômico. In: VALADÂO, Marcos Pereira (Org.). Brasil, Rússia, Índia e China (BRIC): Estruturas dos Sistemas Tributários. Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial. Brasília: Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, 2011, p.224 e ss.

70 Nesse sentido, as lições de ZHU WEIQUN, op. cit., p. 225.71 Ibid., 225.72 Ibid., 225-226.73 Ibid., 226.74 Ibid., 228.75 Ibid., 301.76 Ver Relatório do Tribunal de Contas da União denominado de “Versão Simplificada das Contas do Governo

da República - Exercício de 2009”), o qual detecta uma diferença percentual sobre o respectivo PIB de quase 15% de diferença entre a carga tributária total do Brasil em comparação com a China. Disponível em: <http://portal3.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/comunidades/contas/contas_governo/contas_09/Textos/Ficha%203%20-%20Carga%20Tributaria.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2015.

77 Ver julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Agravo de Instrumento nº 435914 AgR/MG. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 ago 2015.

78 Ver julgamento do Recurso Extraordinário nº 396266/SC. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 ago. 2015.

79 Ver julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário nº 573675/SC. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 ago. 2015.

80 Acerca da complexidade, das vantagens e das desvantagens globais do sistema tributário brasileiro, remete-mos a estudo que publicamos sobre o assunto, no qual sugerimos que o sistema tributário brasileiro é uma verdadeira jabuticaba, único e obstativo econômico e até social do desenvolvimento empresarial e nacional - vide: PEIXOTO, Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto. Sistema Tributário Brasileiro: Histórico, Perspectivas e Análise Crítica. In: VALADÂO, Marcos Pereira (Org). Brasil, Rússia, Índia e China (BRIC): Estruturas dos Sistemas Tributários. Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial. Brasília: Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, 2011, p. 38-98.

81 Tal circunstância, a carga tributária brasileira maior, também pode servir de motivação adicional para a aplicação de medida antidumping quando o “preço normal” do similar brasileiro for muito maior do que o seu concorrente importado da China.

82 Vide: CASTELAN, op. cit., p. 33-34.83 É importante mencionar que várias das situações de aplicação de medidas antidumping que já ocorreram no

Brasil, nos últimos anos, foram pertinentes a produtos chineses, refletindo-se no amplo número de acórdãos judiciais que analisaram a legalidade das “AD” em relação a produtos chineses considerados ameaças à economia nacional – vide, apenas na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, os seguintes julgados: MS 21.168/DF, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 8/04/2015, DJe 16/4/2015; MS 20.481/DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 11/6/2014, DJe 20/6/2014; REsp 946.945/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/05/2011, DJe 30/5/2011; REsp 1170249/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/5/2011, DJe 30/5/2011; REsp 1119934/RS, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/11/2010, DJe 10/12/2010; AgRg no MS 15.406/DF, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/10/2010, DJe

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O projeto geoestratégico multipolar dos BRICS, a nova globalizaçãoe as assimetrias tributárias entre Brasil e China

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26/11/2010; REsp 1105993/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 4/2/2010, DJe 18/2/2010; MS 14691/DF, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 9/12/2009, DJe 18/12/2009; MS 13.474/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRI-MEIRA SEÇÃO, julgado em 14/10/2009, DJe 22/10/2009; MS 13.413/DF, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/9/2008, DJe 6/10/2008, et alli. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 5 ago. 2015.

BRICS’ MULTICENTERED GEOSTRATEGIC PROJECT, THE NEW GLOBALIZATION AND TAX ASYMMETRIES BETWEEN BRAZIL AND CHINA

ABSTRACT

The objective of this article is to analyse the new “counter-hegemonic” globalization and the multipolar integration role of BRICS and its relation with the use of anti-dumping measure in balancing bilateral trade. The criteria to check the dumping practice will be the analysis of the consequences on existing tax disparities between Brazilian and Chinese tax systems, respectively, including its influence on the formation of prices of economic goods or on setting “normal price” that will work as reference to establish the legal price. Its was verified that exists legitimacy and convenience in the use of anti-dumping measures by the Brazilian government on Sino-Brazilian trade. This resource means no strategic risk to the very dynamics of the interaction between these two countries, including in the framework of BRICS. As result of this analysis, it is recommended the use of these measures, when necessary to protect national economy.

Keywords: Globalization. BRICS. Foreign trade. Tax asymmetries. Antidumping.

Submetido: 06 ago. 2015Aprovado: 17 ago. 2015

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A AplicAção DA prescrição nos processos pArA ApurAção De Atos infrAcionAis

Rafaela Beltrami Moreira*

Ana Cláudia Vinholes Siqueira Lucas**

1 Introdução. 2 Medidas Socioeducativas – MSE. 3 Prescrição da pena pri-vativa de liberdade – PPL. 3.1 Prescrição da pretensão punitiva – PPP. 3.2 Prescrição da pretensão executória – PPE. 4 Aplicabilidade da prescrição nos processos para apuração de ato infracional. 4.1 Admissibilidade da prescrição das pretensões punitiva e executória do Estado. 4.2 Forma de aplicação da prescrição da pretensão punitiva nos processos de competência do Juizado da Infância e Juventude. 4.3 Forma de aplicação da prescrição da pretensão executória nos processos de competência do Juizado da Infância e Juventude. 5 Conclusão. Referências.

RESUMO

O Estatuto da Criança e do Adolescente não menciona o instituto da prescrição. Apesar disso, esse instituto, oriundo da legislação penal, tem sido aplicada, pelos juízos, aos processos para apuração de ato infracional. A inexistência de legislação sobre o assunto tem provocado a uma aplicação de procedimentos sem uniformidade. Em face disso, objetivou-se analisar as maneiras como a prescrição vem sendo aplicada, de modo a identificar qual seria a mais adequada. Inicialmente, identificaram-se os pontos do Estatuto da Criança e do Adolescente relacionados ao tema. Em seguida relacionaram-se as espécies de prescrição existentes, correlacionando-as ao tema desse es-tudo. Por fim, apresentou-se a discussão a respeito da admissibilidade da prescrição nos processos de competência do Juizado da Infância e Juventude, bem como foram descritas as diferentes maneiras de aplicação do tema nos processos a partir de análise da jurisprudência pátria. Visou-se a estabelecer os critérios adequados para a incidência da prescrição. Concluiu-se pela necessidade de criação de dispositivos legais a respeito do assunto, no intuito de pacificar a jurisprudência e uniformizar o mecanismo de aplicação da prescrição. Propôs-se o modelo que se revela o mais coerente com o ordenamento jurídico e com os preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Palavras-chave: Prescrição. Ato infracional. Estatuto da Crian-ça e do Adolescente. Medida Socioeducativa.

* Graduada em Direito pela UFPel. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Fa-culdade de Direito Professor Damásio de Jesus. Advogada. Conciliadora Criminal (Juizado Especial Criminal da Comarca de Pelotas/RS). E-mail: [email protected]

** Graduada em Direito pela UFPel. Mestrado em Ciências Criminais pela PUC-RS. Doutoran-da em Política Social pela UCPel. Professora de Direito Penal na UFPel e na UCPel.

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A aplicação da prescrição nos processos para apuração de atos infracionais

1 INTRODUÇÃO

A tutela estatal alcança os incapazes, sendo preocupação constante do Estado o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes. Ao longo da história do nosso país, a perspectiva da proteção aos jovens foi sendo alterada; pode-se dizer que evoluiu gradativamente. Alcançou-se o reconhecimento dos jovens como sujeitos de direitos e como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

Ocorre que, apesar da obtenção de avanços na proteção das crianças e dos adolescentes, houve paralelamente aumento da delinquência juvenil. Isso enseja a necessidade de intervenção estatal como forma de prevenir a criminalidade e de reeducar os jovens que incorreram em ato infracional. Reascendeu-se, a partir disso, a discussão acerca da efetividade das medidas trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e a busca por alternativas que se revelem mais eficazes para a contenção dessa criminalidade.

O estudo acerca da prescrição nos processos para apuração de ato infracio-nal se mostra relevante, tendo em vista a ausência de previsão legislativa a respeito e a crescente ocorrência da prática de atos infracionais. Essa causa extintiva da punibilidade provoca diversos efeitos processuais e, como consequência, práticos, merecendo análise. Diante da omissão legislativa, fica ao encargo do aplicador do direito definir os mecanismos para viabilizar a sua aplicabilidade.

Contudo, a carência de previsão legislativa implica falta de isonomia nos processos, em face da possibilidade de existência de decisões diversas, com resultados diferentes e eventual prejuízo a alguns adolescentes. Dessa forma, objetiva-se apresentar a necessidade de uniformização da aplicação da prescrição nos processos em trâmite no Juizado da Infância e Juventude.

2 MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS: MSE

Ao adolescente que incorrer na prática de ato infracional1, obser-vado o devido processo legal e as demais garantias processuais, poderá ser determinado pelo Juiz da Infância e Juventude o cumprimento de medida socioeducativa, nos termos do art. 112, incisos I a VII, do ECA. É de suma relevância a observação de princípios como o da legalidade, disposto no art. 5º, XXXIX, da CF, os quais são aplicados extensivamente ao ECA. Isso se justifica pelo fato de que, ainda que não se trate o ato infracional de crime propriamente dito, é certo que as medidas socioeducativas possuem caráter sancionatório. Ao tratar desse tema, João Batista Costa Saraiva2 preceitua que “a medida socioeducativa tem natureza sancionatória, retributiva, sendo que o programa de execução, através do qual a medida vem a ser efetivada, deve perseguir a finalidade pedagógica almejada”.

Nesse corolário, de acordo com a doutrina, a natureza jurídica da medida socioeducativa é de sanção penal, ainda que não se possa chamar de pena pro-priamente dita. Isso acontece porque decorre da prática de uma infração penal,

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Rafaela Beltrami Moreira | Ana Cláudia Vinholes Siqueira Lucas

isto é, de um fato que a lei define como crime ou contravenção. Não se deixa de observar o objetivo pedagógico da medida, com fins de socioeducação, mas também não se pode negar o seu caráter eminentemente sancionatório.

Em 2012, por meio da Lei n.º 12.594, foi criado o Sistema Nacional Socioe-ducativo (SINASE), entendido como o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescentes em conflito com a lei (art. 1º, §1º). Esse sistema foi criado para regulamentar a execução das medidas socioeducativas e prevê divisão de competências entre União, Estados e Municípios.

O parágrafo segundo do artigo 1º da Lei do SINASE prevê as metas visadas com a imposição de medida socioeducativa ao adolescente. Nos termos desse dispositivo, os objetivos são a responsabilização do adolescente quanto às conse-quências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua repa-ração, a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento, e a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei. Isso evidencia o caráter sancionatório da medida, sem deixar de considerar o seu condão pedagógico.

O juiz, ao impor o cumprimento de medida socioeducativa, deverá le-var em conta a capacidade do adolescente de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração. São requisitos mínimos para a imposição das medidas socioeducativas dos incisos II a VI do artigo 112 do ECA a existência de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração, nos termos do artigo 114 do diploma juvenil. Destarte,

[...] somente quando o conjunto probatório trazido aos autos es-tiver a demonstrar de forma inequívoca a prática da infração por parte do adolescente é que, diante de tal certeza, resta permitida a imposição das multicitadas medidas3.

O dispositivo em tela, contudo, faz ressalva à concessão da remissão, quando se evitará o processo ou, se já iniciado, este se extinguirá, conforme o art. 127 do ECA. A ressalva é feita em função da possibilidade de cominação de medida socioeducativa diversa da colocação em regime de semiliberdade ou de internação com a remissão.

Além disso, quanto à medida de advertência (art. 112, I, ECA), o artigo 114 prevê como suficientes para sua aplicação a simples presença de prova da materialidade e de indícios mínimos da autoria. Tal previsão decorre da simpli-cidade da medida, que consiste basicamente em admoestação verbal.

As medidas socioeducativas podem ser divididas em dois grandes grupos: medidas socioeducativas em meio aberto e em meio fechado. Essas medidas consistem na internação (medida mais gravosa) e na semiliberdade, tendo como

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A aplicação da prescrição nos processos para apuração de atos infracionais

característica a segregação do adolescente; aquelas se caracterizam por serem mais brandas e não há a privação da liberdade, sendo advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida.

3 PRESCRIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE – PPL

A prescrição divide-se em duas grandes espécies, em face da existência, para o Estado, das pretensões de punir e de executar a punição imposta. Nesse passo, há respectivamente a prescrição da pretensão punitiva (PPP) e a prescrição da pretensão executória (PPE).

O artigo 109 do Código Penal fixa nos seus incisos os parâmetros para determinação do prazo prescricional aplicável, com base na pena in abstracto ou in concreto, conforme o caso. Depreende-se do artigo 109 do CP que o prazo pres-cricional mais extenso previsto pela legislação brasileira é de 20 anos. Saliente-se que, até a entrada em vigor da Lei nº 12.234/2010, o prazo disposto no inciso VI do artigo em baila era de 2 anos. Em se tratando de norma de direito material e por se revelar verdadeira lex gravior, somente se aplica aos casos ocorridos após a sua entrada em vigor.

3.1 Prescrição da pretensão punitiva – PPP

A prescrição da pretensão punitiva pode ser declarada a qualquer momento, de ofício ou mediante provocação de qualquer das partes. As regras de aplicação desse tipo de prescrição estão dispostas nos artigos 109, 110, §1º, 111, 115, 116 e 117 do CP. Essa espécie se divide em outras quatro modalidades: PPP propriamente dita, PPP retroativa, PPP intercorrente e PPP projetada.

Os efeitos da prescrição da pretensão punitiva, conforme leciona Fernando Capez4, são impedir o início (trancamento do inquérito policial) ou interromper a ação penal, afastar todos os efeitos da condenação (penais e extrapenais, principais e secundários) e eventual condenação não pode constar da folha de antecedentes criminais, salvo se requisitada por juiz competente. Em decorrência disso, não haverá, em favor da vítima, título executivo judicial para execução no juízo cível. Assim, a apuração de eventual responsabilidade civil do agente ficará sujeita a processo de conhecimento a ser ajuizado no âmbito civil, nos termos do artigo 67, II, CPP5. Superada a questão da prescrição da pretensão punitiva do Estado, passa-se à análise da prescrição da pretensão executória.

3.2 Prescrição da pretensão executória – PPE

A PPE, ao contrário da PPP, somente se verifica após o trânsito em julgado da decisão, para ambas as partes. Com isso, “[...] o ius puniendi concreto trans-forma-se em ius punitionis, isto é, a pretensão punitiva se converte em pretensão

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executória”6. Nessa senda, não se confunde com nenhuma das modalidades de PPP, nem mesmo com a prescrição superveniente, eis que, nesse caso, não há ainda o trânsito em julgado para a defesa, e o início da contagem ocorre com a publicação da sentença condenatória recorrível. Outrossim, por ser o tempo que tem o Estado para dar início à execução penal, a prescrição da pretensão executória é observada entre o trânsito em julgado final da condenação e o dia de começo efetivo do cumprimento da pena.

Outra diferença marcante da PPE diz com os efeitos que provoca. Re-conhecendo-se a prescrição da pretensão executória, os efeitos secundários da condenação, penais e extrapenais, persistem intocados. O que ocorre é apenas a extinção da pena principal. Logo, deve-se dar preferência ao reconhecimento da PPP, visto que seus efeitos são mais favoráveis ao réu.

4 APLICABILIDADE DA PRESCRIÇÃO NOS PROCESSOS PARA APU-RAÇÃO DE ATO INFRACIONAL

4.1 Admissibilidade da prescrição das pretensões punitiva e executória do Estado

O Estatuto da Criança e do Adolescente não abordou a temática da ex-tinção da punibilidade, havendo previsão tão somente a respeito das causas de extinção da medida socioeducativa, incorporadas ao ordenamento pela Lei do SINASE por meio do seu artigo 46. Não obstante a omissão legislativa, a doutrina dominante e a jurisprudência preceituam que as causas extintivas da punibilidade arroladas na legislação penal devem ser estendidas à legislação juvenil.

Levantou-se acentuada discussão sobre o cabimento do instituto da prescrição quando da apuração de ato infracional. Parcela da doutrina apre-senta resistência em admitir a incidência da prescrição em virtude do caráter essencialmente pedagógico e educacional das medidas socioeducativas, vendo a sua imposição como um dever do Estado. Outra corrente, contudo, vislumbra a possibilidade de sua aplicação em razão da existência de teor sancionatório da MSE, repressivo da conduta infracional. Ao tratar do tema, João Batista da Costa Saraiva7 expõe que,

[...] se os adolescentes respondem por atos infracionais, submeten-do-se às sanções que podem sujeitá-los à privação de liberdade, faz-se evidente que têm direito subjetivo à prescrição assim como os im-putáveis, estendendo-lhes analogicamente a regra do Código Penal.

Em defesa da inaplicabilidade da prescrição, Bianca Mota de Moraes e Helane Vieira Ramos8 sustentam que o ECA estipulou como limite temporal a extinguir o processo socioeducativo apenas a regra do art. 121, §5º (liberação compulsória aos 21 anos), cabendo ao aplicador do direito a adoção de todos os instrumentos criados pela lei para alcançar a reintegração do jovem à sociedade, respeitando-se a sua capacidade em cumpri-los. Aduzem, ainda, que não teria como se ultrapassar esse limite legal criando uma forma de contagem a partir das

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A aplicação da prescrição nos processos para apuração de atos infracionais

regras de direito penal, as quais são estranhas à espécie, e que esse tratamento não é mais gravoso do que o dado aos adultos, haja vista que, aos 21 anos, o Estado perde o poder de punir o jovem.

No entanto, filiando-se à segunda corrente e, portanto, reconhecendo a aplicabilidade da prescrição aos processos para apuração de ato infracional, o STJ editou a Súmula nº 338, segundo a qual “a prescrição penal é aplicável nas medidas socioeducativas”. Entretanto, a questão está longe de ser pacificada, havendo dissidência de entendimento entre os próprios Ministros da Corte. É o caso do Ministro Gilson Dipp que, apesar de acatar o posicionamento majo-ritário, é contrário à aplicação da prescrição. Na oportunidade do julgamento do REsp 564353/MG9, em 26 de abril de 2005, o citado Ministro relatou que tem entendido

[...] pela inaplicabilidade das regras prescricionais, tais como previstas pelo Código Penal, aos casos regulados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente em razão das diferen-ças estruturais entre o instituto da pena – pressuposto lógico da prescrição – e da medida sócio-educativa, aplicada aos menores infratores, com o intuito preponderante de sua reeducação e reinserção na sociedade.

Destaque-se, ao lado das diversidades entre os institutos, que as medidas sócio-educativas previstas no ECA apresentam outras peculiaridades que, a meu ver, tornam incompatível a aplicação do instituto da prescrição tal como regulado na parte geral do Código Penal:

1) as medidas sócio-educativas não comportam tempo determinado e a prescrição se baseia justamente na quantidade da pena cominada abstrata ou concretamente;

2) verifica-se, no corpo do Estatuto da Criança e do Adolescente, que a única oportunidade em que se remete à aplicação das nor-mas da parte geral do Código Penal, é no art. 226, nas disposições gerais, do Capítulo I do Título VII do Estatuto, no qual se definem os crimes e as infrações administrativas relativas aos direitos da criança e do adolescente.

Desta forma, entendo que, também diante da ausência de previsão específica do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, e em função do princípio da especialidade, é inviável a aplicação da prescrição em se tratando de medidas sócio-educativas.

Por outro lado, ressalto que, nas oportunidades em que me pronun-ciei sobre o tema, sempre observei que a medida sócio-educativa também é revestida de caráter aflitivo, considerando, apenas, que o objetivo educador deve prevalecer sobre o punitivo, em respeito à sistemática e objetivos do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.

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Rafaela Beltrami Moreira | Ana Cláudia Vinholes Siqueira Lucas

Mais adiante, aduziu que

O entendimento que tem preponderado nesta Turma é [...] o de que a prescrição – da forma como prevista no Código Penal – se aplica às medidas sócio-educativas, justamente em virtude desta característica punitiva, e com considerações sobre a ineficácia de sua manutenção, nos casos em que já se ultrapassou a barreira da menoridade e naqueles em que o decurso de tempo foi tamanho, que retirou, da medida, sua função reeducativa.

Ainda que não se possa desconsiderar os argumentos expostos pelo Mi-nistro Gilson Dipp, as crianças e os adolescentes não podem ser tratados com maior rigor que os adultos, penalmente imputáveis. Dessarte, e também por lhes ser favorável, a prescrição, como causa de extinção da punibilidade prevista no inciso IV do artigo 107 do CP, deve ter a sua aplicação estendida aos acusados da prática de ato infracional, nos termos dos artigos 109 a 118 do Diploma Penal.

O raciocínio que se faz, afora as já mencionadas características sancio-natória e aflitiva da medida socioeducativa, é de que a aplicação da prescrição se mostra viável a partir de interpretação da legislação juvenil. O artigo 152 do ECA permite a aplicação subsidiária das regras do Código de Processo Penal. Tal disposição conduz à observância do artigo 61 do Codex, segundo o qual o juiz, de ofício, extinguirá o processo quando concluir pela presença de causa extintiva da punibilidade. Nesse corolário, terá cabimento o reconhecimento da prescrição.

Ressalte-se que a aplicação da prescrição se dá no plano da pretensão socioeducativa e também no plano da pretensão executória. Não se apõe qualquer restrição nesse sentido, atendendo-se às regras de interrupção e de suspensão dos prazos, bem como à regra do art. 115 do CP (redução do prazo à metade em se tratando de agente menor de 21 anos). É inegável, ainda, que a prescrição da pretensão punitiva se dá em todas as suas formas (abstrata, retroativa e intercorrente).

4.2 Forma de aplicação da prescrição da pretensão punitiva nos processos de competência do Juizado da Infância e Juventude

Superado o entrave da aplicabilidade da prescrição às ações socioeducativas, resta definir o mecanismo de contagem dos prazos prescricionais, visto que o ECA não cuidou do assunto. Esse é outro problema que se apresenta ao aplicador do direito, incumbindo à jurisprudência criar a forma mais adequada de cálculo.

No que tange à prescrição da pretensão punitiva, há forte divergência de entendimento entre a jurisprudência, não se tendo atingido um posicionamento uniforme até o momento. Três diferentes formas de contagem se destacam, as quais são analisadas a seguir.

Primeiramente, uma corrente mais antiga utiliza como padrão pura e simplesmente as regras do Código Penal. Por essa corrente, observa-se a conduta

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infracional e adota-se como fundamento para o cálculo o crime ou contravenção ao qual se amolda. Depois disso, aplicam-se as regras dos artigos 109 e 115 do CP, ou seja, adota-se o prazo penal, conforme a tabela do art. 109 do CP (com base na pena prevista in abstrato para o tipo penal), reduzindo-se esse prazo à metade pela menoridade. Assim, se o ato infracional fosse, por exemplo, de roubo, cuja pena máxima é de 10 anos (art. 157, caput, CP), a prescrição ocorreria em 8 anos. Isso acontece porque, pela regra do art. 109, prescreveria o fato em 16 anos (inciso II); reduzindo-se o tempo pela metade, chega-se ao prazo de 8 anos. Dita teoria tem sido adotada pela Quinta Turma do STJ, como se nota no seguinte julgado: HC 185908/RJ10. A Ministra Laurita Vaz asseverou, naquela oportunidade, que

Segundo interpretação jurisprudencial do art. 226 da Lei 8.069/90, aplicam-se as regras pertinentes à punibilidade da Parte Geral do Código Penal, tanto para definição do que seja ato infracional (art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente), quanto em relação aos crimes praticados contra criança e adolescente.

Em sendo assim, para aferir a prescrição das medidas socioedu-cativas, deve-se utilizar os mesmos cálculos necessários para a declaração da prescrição da pretensão punitiva estatal, equivalendo o recebimento da representação ao recebimento da denúncia ou queixa, e a sentença menorista ao decreto condenatório.

No mesmo sentido, também já se manifestou o STF, a exemplo do HC 107200/RS, do HC 96520/RS e do HC 88788/SP11. Nesse último julgamento citado, realizado pela Segunda Turma em 24 de abril de 2008, o Ministro Joa-quim Barbosa apontou que

[...] a maneira mais adequada de resolver a questão, sem criar um tertium genus e sem violar o princípio da reserva legal, que incide na espécie, é justamente aquela solução que o Superior Tribunal de Justiça adotou: considerar a pena máxima cominada ao crime pela norma incriminadora pertinente, combinada com a redução à metade do prazo prescricional prevista no art. 115 (quando o agente, à época do fato, era menor de vinte e um anos).

Embora, em um primeiro momento, cause estranheza a utiliza-ção desse parâmetro, já que o adolescente não será submetido a referida pena, esta é a solução que melhor se harmoniza com nosso ordenamento, pois leva em consideração a gravidade do fato praticado, tal qual definida pelo legislador através da pena cominada ao tipo penal.

Em segundo lugar, há uma corrente que surgiu posteriormente e que começou a ser aceita pelos Tribunais, mostrando-se em tese mais benéfica ao adolescente. Argumenta que, como a sanção máxima imputável ao jovem é de 3 anos (tempo máximo de internação, consoante art. 121, §3º, ECA), esse deve ser o tempo a ser usado como parâmetro para a prescrição. Alcançado esse marco, lança-se o tempo no art. 109 do CP, obtendo-se um prazo prescricional de 4 anos, independentemente do ato praticado. Isso decorre do fato de que, sendo

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de 3 anos a sanção máxima em abstrato, amolda-se o tempo ao inciso IV do art. 109 do CP, ou seja, de 8 anos. Sobre esse prazo, deve-se aplicar a redutora, culminando no lapso de 4 anos. Traz-se a lume a decisão proferida pelo STJ no HC 236349/SP12.

Uma terceira corrente, mais recente, mostra-se intermediária e mescla as duas anteriores. Segundo ela, quando o ato infracional análogo ao crime ou à contravenção tiver pena máxima abstratamente prevista superior a 3 anos, deve--se desprezar o excesso e utilizar o prazo prescricional de 4 anos, cujo cálculo para obtenção já foi mencionado (segunda corrente). Todavia, se a pena for inferior a 3 anos, deve-se atentar para a pena prevista no tipo penal análogo ao ato infracional, aplicando-se as regras do art. 109 e do art. 115, ambos do CP. Por exemplo, se o ato infracional for de homicídio (art. 121, caput, CP), cuja pena máxima é de 20 anos, o prazo prescricional será de 4 anos. De outro lado, se cometer injúria (art. 140, caput, CP), cujo máximo da pena é de 6 meses, a prescrição ocorrerá em 1 ano e meio (art. 109, VI, c/c art. 115, ambos do CP). Esse posicionamento tem sido adotado recentemente pela Sexta Turma do STJ, como se pode extrair do seguinte julgado: HC 192312/SP13. A Quinta Turma também já se manifestou nesse sentido, a exemplo do HC 157262/SP14. Ao proferir voto no julgamento desse Habeas Corpus, o Ministro Arnaldo Esteves Lima aduziu que,

[...] se a legislação penal estabelece pena máxima inferior ao prazo estipulado para a aplicação da medida socioeducativa de inter-nação (3 anos), não se pode admitir que se utilize tal parâmetro para o cálculo da prescrição. Pensar o contrário leva a situações de flagrante desproporcionalidade e injustiça, porquanto se dará tratamento mais rigoroso a adolescente do que a um adulto, em situações análogas.

Analisando-se as formas de aplicação que se apresentam na jurisprudên-cia, nota-se a prevalência, no Supremo Tribunal Federal, da primeira corrente, que aplica pura e simplesmente as regras do Código Penal. Pode-se examinar o crescimento do acolhimento da terceira vertente, principalmente no Superior Tribunal de Justiça.

Infere-se dos diferentes modelos de interpretação que o resultado obtido com o cômputo será diferente quando adotada uma ou outra posição. Por ocasião da primeira vertente, os prazos prescricionais dos atos infracionais serão mais variados e terão proporção em relação aos crimes e contravenções aos quais se amoldam. Como explicitado, poderemos ter tempo de prescrição acima dos 4 anos que se verificam quando o tempo máximo de internação é usado como parâmetro, a exemplo do crime de roubo, ou lapsos inferiores, em caso de atos infracionais menos graves, como é o caso da rixa.

Se for adotada a segunda corrente, o prazo de prescrição da pretensão socioeducativa será sempre o mesmo. O tempo será de 4 anos para todas as modalidades de atos infracionais, dos mais brandos aos mais graves. Há

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uma padronização pelo acolhimento de um tempo de sancionamento único em abstrato.

Por sua vez, operado o cálculo pelo terceiro posicionamento, permite-se adotar em parte as regras do Código Penal (quando mais benéfico ao adolescente) e em parte as regras do ECA (quando o prazo prescricional de 4 anos se mostrar mais favorável em relação ao que seria aplicável se usadas as regras do CP). Os prazos são variáveis, mas jamais excedem ao teto de 4 anos estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Da falta de padronização, ocasionada pela omissão de regulamentação nor-mativa a respeito do tema, resultam decisões diferentes para casos semelhantes. Isso implica prejuízo em certos casos quando comparados os processos. Não se pode deixar o destino dos adolescentes ao encargo da sorte, isto é, à mercê do órgão que será responsável pela decisão. O assunto requer, com urgência, intervenção legislativa, no intuito de se estabelecerem regras objetivas e claras de aplicação do instituto da prescrição aos processos ajuizados para apuração de atos infracionais.

A fim de pacificar o tema, conferindo maior segurança jurídica aos ado-lescentes, é recomendável a criação de norma a respeito da prescrição. Com isso, evitar-se-ia dissidência de entendimento e decisões contraditórias, as quais resultam em formas de aplicação diferentes e, como consequência, em prejuízo para alguns jovens.

Comparando-se as três vertentes existentes, vislumbra-se como a mais adequada a primeira, ainda que se permita prazo prescricional aquém de 4 anos. A proporcionalidade é um direito/dever que se aplica a todos os casos, sem exceção. Apesar de haver processos em que a adoção da primeira corrente possa parecer prejudicial ao adolescente, garante-se a isonomia processual, visto que, em todas as situações, o critério de aplicação será o mesmo: a pena prevista em abstrato para o tipo penal análogo ao ato infracional praticado.

Assim, estar-se-á tratando de forma proporcional e igualitária todos os atos cometidos, permitindo-se ao adolescente que reconheça a verdadeira gravidade da infração perpetrada. O teto prescricional de 4 anos ficaria restrito à pretensão da pretensão executória, uma vez que somente após a determinação de uma sanção concreta ao adolescente é que se pode afirmar o tempo máximo pelo qual será cumprida a medida socioeducativa. O ECA não traz, abstratamente, nenhuma sanção específica para o tipo de ato infracional praticado, motivo pelo qual não se pode estipular um teto ou um prazo único. Atribuir um único prazo para todos os atos infracionais (segunda vertente) ou estipular um teto temporal e permitir prazos menores em algumas situações (terceira vertente) não se mostra razoável.

Certo é que todas as correntes apresentam ponto favorável e ponto des-favorável ao adolescente. Porém, anuir com formas divergentes de aplicação do instituto é ainda mais grave. Além de se verificarem decisões prejudiciais em certos fatos, estabelece-se insegurança jurídica, com o que não se coaduna o ordenamento pátrio.

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Por não se confundirem os atos infracionais com os delitos e as contraven-ções – em que pese a inegável semelhança entre ambos –, principalmente diante da diferença quanto às sanções aplicáveis, reafirma-se a necessidade de criação de regulamentação própria no que toca ao tema da prescrição. A partir da aná-lise feita a respeito do assunto, sugere-se a inserção de dispositivos no ECA que direcionem o aplicador do direito a uma única forma de cálculo da prescrição. Essa conduta positiva do legislador evita, ainda, a combinação de leis (chamada de lex tertia), vedada pelo ordenamento jurídico pátrio.

Quanto à prescrição da pretensão punitiva, a norma deveria prever cla-ramente que a contagem será feita com base na pena prevista em abstrato para o tipo penal análogo, nos termos dos artigos 109, 110, §1º, e 115 do Código Penal. Isso atenderia aos preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente à doutrina da proteção integral e à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

4.3 Forma de aplicação da prescrição da pretensão executória nos processos de competência do Juizado da Infância e Juventude

A par de tamanha discussão no que toca à prescrição da pretensão punitiva dos atos infracionais, são pacíficas a jurisprudência e a doutrina quando se trata de prescrição da pretensão executória. Acordam os aplicadores do direito quanto à forma de contagem do prazo prescricional.

As Cortes Superiores assentaram o entendimento de que, não havendo prazo máximo de cumprimento da medida fixado em sentença, o lapso temporal de sanção a ser considerado é o de 3 anos (tempo máximo de internação). Dessa forma, a prescrição ocorrerá em 4 anos, conforme art. 109, IV, c/c art. 115, ambos do CP. Entende-se que essa forma de contagem se aplica à liberdade assistida, à semiliberdade e à internação, pois geralmente são essas MSE que são impostas sem a fixação de prazo de cumprimento. É o caso do HC 172357/RJ, do REsp 1187090/RS e do HC 111060/MG15, todos da Quinta Turma do STJ.

Exceção a esse lapso prescricional de 3 anos diz com a internação sanção. A forma de cômputo do tempo é o mesmo, mas o efetivo prazo de prescrição é diferente. Nessa hipótese, por haver previsão de prazo não superior a 3 meses de duração, a prescrição deverá ocorrer em 1 ano e meio (considerando-se a atual redação do inciso VI do artigo 109 do Código Penal).

Insta referir posicionamento quase isolado acerca do cálculo de prescrição das medidas socioeducativas ora tratadas. Entende essa posição que, por não haver um prazo máximo preestabelecido na sentença, a prescrição da pretensão executória deve ser ajustada com base no prazo limite previsto na lei para a efeti-vação da reavaliação. O mencionado prazo é de 6 meses, nos termos do parágrafo 2º do artigo 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nessa senda, o prazo prescricional seria sempre de 1 ano e meio.

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A aplicação da prescrição nos processos para apuração de atos infracionais

De outra parte, se o juiz determinar qual será o prazo de cumprimento da medida socioeducativa, o que é mais comum, por exemplo, nos casos de prestação de serviços à comunidade, o período imposto é que servirá de parâmetro para o cálculo da prescrição. Assim, caso seja determinado o cumprimento de PSC por 4 meses – considerando-se o fato ocorrido após a entrada em vigor da Lei nº 12.234/2010 –, a prescrição ocorrerá em 1 ano e meio. Isso acontece porque se aplica o prazo de 3 anos do inciso VI do art. 109 do CP, o qual, reduzido à metade pela menoridade do agente (art. 115, CP), resulta em 1 ano e meio. Para os fatos anteriores à vigência da mencionada lei, a prescrição ocorrerá em 1 ano. Nesse sentido já se manifestou o STJ, a exemplo do HC 150380/SP e do HC 133133/SP16.

Insta trazer à baila aspecto de interessante reflexão. As medidas socioedu-cativas de advertência e de reparação do dano não se prolongam no tempo, não havendo lapso temporal de cumprimento aplicável a elas. Em que pese a medida de advertência se esgote no exato momento da sua imposição pelo magistrado ou pelo representante do Ministério Público (em sede de remissão), o tema merece enfretamento. É indiscutível que, em se tratando de medidas socioeducativas, essas modalidades estão sujeitas à prescrição. Contudo, em face dessa característica apre-sentada por essas modalidades de MSE, questiona-se como calcular a prescrição.

O Superior Tribunal de Justiça enfrentou o tema no julgamento do REsp 1122262/RS17, em 17 de novembro de 2009. Concluiu-se que, em virtude das medidas de advertência e reparação de danos não admitirem parâmetro temporal nem cercearem a liberdade de locomoção do adolescente e em obediência aos princípios da isonomia e proporcionalidade, deve-se usar como critério o menor lapso prescricional previsto pela legislação penal, ou seja, o do inciso VI do art. 109 do CP. Logo, o prazo é de 18 meses, excetuando-se os fatos anteriores a 6 de maio de 2010, em relação aos quais se aplica o prazo de 12 meses.

Há, no entanto, aqueles que entendem que, pelo fato de que “a obrigação de reparar o dano tem cunho eminentemente patrimonial (embora nem sempre se traduza por compensação econômica)”18, se assemelha à multa penal. Em razão disso, quando aplicada de forma isolada, a ela se aplicariam as regras de prescrição previstas no Código Penal para a execução da pena de multa, reduzido o prazo de metade.

Infere-se que a opção adotada pela jurisprudência para o cálculo da prescri-ção da pretensão executória é a mais adequada, aplicando-se integralmente e sem exceção as regras do Código Penal. Ainda assim, sugere-se a criação de dispositivo legal a ser inserido no Estatuto da Criança e do Adolescente também naquilo que se refere à PPE, prevendo-se especificamente que se aplicarão as regras dos artigos 110, caput, e 115 do CP. Com isso, permite-se a variação de prazo prescri-cional em função da medida socioeducativa aplicada e do seu tempo de duração (preestabelecido ou variável, mas nunca superior a 3 anos), o que corresponde à proporcionalidade e à razoabilidade, além de instituir a individualização pena, direito fundamental garantido no art. 5º, XLVI, da CF.

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5 CONCLUSÃO

O Estatuto da Criança e do Adolescente inaugurou uma nova ordem jurídica no cenário nacional quando o assunto é a tutela da criança e do ado-lescente. Adotou-se a teoria da proteção integral, em detrimento da doutrina da situação irregular. Com isso, passou-se a reconhecê-los como verdadeiros sujeitos de direitos e como pessoas em peculiar condição de desenvolvimento. O ECA é orientado por essa nova doutrina, o que alterou o tratamento dado aos jovens brasileiros. A postura agora é de total proteção, de reeducação e de reinserção social desses jovens.

Esse novo mecanismo de tratamento trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro inovadoras formas de sancionamento para as infrações penais praticadas pelas crianças e pelos adolescentes, conhecidas como ato infracional. As chamadas medidas de proteção e medidas socioeducativas têm por objetivo primordial reeducar e ressocializar o jovem, denotando cunho eminentemente pedagógico. Para a sua aplicação, formulou-se um sistema processual específico, com regras taxativas e restrição da atuação judicial. Garantiu-se a extensão de princípios e de garantias penais e processuais aos jovens em conflito com a lei, em face do teor sancionatório que se apresenta paralelamente nas medidas socioeducativas.

Em decorrência disso, apesar da carência de previsão legal a respeito, a doutrina e a jurisprudência – decorrida forte discussão sobre o tema – têm ad-mitido a aplicação do instituto da prescrição penal nos processos para apuração de ato infracional. A prescrição é causa extintiva da punibilidade prevista na Parte Geral do Código Penal, sendo aplicável em relação à pretensão punitiva e à pretensão executória do Estado.

Assim, por meio deste trabalho, objetivou-se colocar em pauta a discussão a respeito do tema da prescrição nos processos de competência do Juizado da Infância e da Juventude, no intuito de se refletir sobre o tema e de se estabe-lecerem os critérios adequados para a aplicação da prescrição. Buscou-se, com isso, demonstrar a necessidade de sistematização do instituto, sob a perspectiva de uma análise principiológica. Adotada tal conduta, poder-se-á conferir maior isonomia aos processos de competência do referido Juizado, garantindo-se justiça e paridade na prestação jurisdicional.

Conclui-se pela imprescindibilidade de movimentação legislativa para suprir a omissão do Estatuto da Criança e do Adolescente no que tange ao tema da prescrição. Essa importante causa de extinção da punibilidade, até então, se estende aos adolescentes por construção doutrinária e jurisprudencial, devendo ser garantida no texto legal.

A ausência de padronização na aplicação da prescrição, decorrente da falta de previsão legislativa, implica, como se pôde observar pelos julgamentos analisados, resultados diversos quanto ao tempo de prescrição. Em consequência, verificou-se prejuízo para alguns adolescentes quando comparados os processos.

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A aplicação da prescrição nos processos para apuração de atos infracionais

A isonomia na prestação jurisdicional deve ser buscada pelos operadores do direito, a fim de garantir segurança jurídica aos interessados.

Inferiu-se, por meio do estudo realizado, que a melhor solução – entendi-da como aquela que melhor se adapta aos preceitos do ECA e ao ordenamento jurídico em sua totalidade – é a criação de dispositivos legais que versem tanto sobre a prescrição da pretensão punitiva quanto sobre a prescrição da pretensão executória do Estado. O conteúdo desses dispositivos deve fazer alusão à contagem da prescrição com base na pena prevista em abstrato para o tipo penal análogo, nos termos dos artigos 109, 110, §1º, e 115 do Código Penal quando se referir à pretensão punitiva e dos artigos 110, caput, e 115 do CP no tocante à pretensão executória. Assim, verificou-se que a corrente a ser seguida é a que foi analisada por primeiro, mais antiga e aplicada pelo STF, não obstante se tenha constatado o crescimento do acolhimento da terceira corrente, principalmente pelo STJ.

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, v. 1.

BLASI NETTO, Frederico. Prescrição penal: manual prático para entendê-la e calculá-la. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, v. 1.

CURY, Munir. et. al. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 11. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.

MORAES, Bianca Mota de; RAMOS, Helane Vieira. A prática de ato infracional. In: Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 795-890.

SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: Adoles-cente e Ato Infracional. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

1 O ECA traz, no art. 103, o seguinte conceito: considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.

2 SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: Adolescente e Ato Infracional. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 52.

3 CURY, Munir. et. al. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 11. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 551.

4 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 1, p. 625.5 BLASI NETTO, Frederico. Prescrição penal: manual prático para entendê-la e calculá-la. 4. ed. Belo

Horizonte: Del Rey, 2013, p. 107.6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

v. 1. p. 885.7 SARAIVA, op. cit., p. 216.8 MORAES, Bianca Mota de; RAMOS, Helane Vieira. A prática de ato infracional. In: Curso de Direito

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da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 795-890, p. 885.

9 STJ. Disponível em: <www.stj.jus.br>, acesso em 10 mar. 2014.10 Ibid.11 Ibid.12 Ibid.13 Ibid.14 Ibid.15 Ibid.16 Ibid.17 Ibid.18 CURY, op. cit., p. 543.

THE APPLICATION OF LIMITATION PERIODS IN THE PENAL PROCEDURES BEFORE YOUTH COURTS

ABSTRACT

Children and Adolescents Brazilian Law do not mention the statute of limitation period. Despite this fact, youth courts on lawsuits have applied this criminal law resource. The inexistence of a law on this subject has led to a variety of proceedings. Considering this, the objective of this article is to analyze current practices concerning the application of limitation periods in the context of the Act for Protection of Children and Adolescents, with the purpose of establishing which is the most appropriate. Initially, the aspects of Children and Adolescents Law related to the theme were pointed out. Next, the species of limitation periods were analyzed on the light of the subject of this study. Finally, the debate on the admissibility of limitation periods by youth courts, and the different manners of its application upon this subject, pursued to national jurisprudence was presented. The conclusion is that is necessary to create legal provisions on the subject in order to pacify and unify the mechanism of limitation periods. Furthermore, a model considered the most consistent with the Children and Adolescents’ law and its principles is proposed.

Keywords: Prescription. Offense. Act for Protection of Children and Adolescents. Educational measures.

Submetido: 30 mar. 2015Aprovado: 13 ago. 2015

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o Direito é ciênciA e A terrA é plAnA: inVestigAção soBre A nAturezA Do conhecimento

JuríDico, implicAções e DesDoBrAmentos

Ricardo Henrique Silva de Sá Cavalcanti*Fayga Silveira Bedê**

1Introdução (primeira parte). 2 Introdução (segunda parte). 3 Retroceder para avançar. 4 Objeto mais método não é igual à ciência. 5 O que importa é a lógica, ou não. 6 Da lógica à natureza do conhecimento jurídico. 7 Três autoridades juntas geram um grande autoritarismo. 8 Conclusão. Referências.

RESUMO

Essa pesquisa teve o propósito de analisar a natureza do conhecimen-to jurídico quanto ao tipo de raciocínio que o caracteriza – assim como a natureza do conhecimento científico a fim de confrontá-los, de modo a verificar o grau de comunhão entre ambos. Em decorrên-cia de nossa pesquisa e análise, avaliamos que a fundamentação da ideia de que o conhecimento jurídico seja mera espécie de conheci-mento científico mostra-se superficial e débil. O raciocínio jurídico antecede historicamente a ciência e é diretamente influenciado por instâncias da vida humana muito mais diversas e complexas do que o raciocínio especificamente científico. Percebemos tam-bém que a manutenção dessa visão cientificista sobre o raciocínio jurídico contribui para a disseminação de uma prática doutrinária e jurisdicional cuja autoridade é ilegítima, por servir como esteio para a imposição de teses jurídicas erigidas somente por meio da retórica, mas que simulam terem sido comprovadas como corretas por meio de um método assentado na verificação de seus méritos. A consequência desse estado de coisas é a desconformidade entre a jurisdição e seus fundamentos sociogenéticos e naturais, com prejuízos para o Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Teoria do Direito. Dogma. Ciência. Raciocínio Jurídico. Natureza do Conhecimento.

* Pesquisador-bolsista do Programa de Iniciação Científica. Graduando pelo Curso de Direito da Unichristus. Graduado em Ciências Navais pela Escola Naval, com habilitação em Siste-mas. Especialista em Sistemas de Armas pelo Centro de Instrução Almirante Wandenkolk, da Marinha do Brasil. Especialista em Guerra de Superfície pelo Centro de Instrução Almi-rante Marques de Leão, da Marinha do Brasil. Email: [email protected]

** Doutora em Sociologia pela UFC. Mestre em Direito pela UFPR. Graduada em Direito pela UFC. Professora universitária em graduação e pós-graduações. Editora-Responsável pela Revista Opinião Jurídica. Consultora ad hoc da Capes. Autora de artigos e livros. Email: [email protected]

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Ricardo Henrique Silva de Sá Cavalcanti | Fayga Silveira Bedê

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1 INTRODUÇÃO (PRIMEIRA PARTE): POR QUE RETOMAR A DISCUS-SÃO SOBRE A NATUREZA DO CONHECIMENTO JURÍDICO NÃO É CHOVER NO MOLHADO?

Durante a faculdade, especialmente por meio das disciplinas introdutórias, os alunos são apresentados ao conceito de Direito como “ciência-dogmática”. Ora bem, esse conceito é linguisticamente contraditório, pois ciência é a atividade que busca desvendar o mundo por meio da articulação entre racionalidade e observação, a fim de construir conhecimento verificável, tido como verdadeiro, ainda que temporariamente; em contrapartida dogma é uma crença que prescinde de verificação e fundamenta-se na fé (sentimento de natureza religiosa, fonte de transcendência para o ser humano). Busca-se explicar essa contradição preliminar, de ordem linguística, por meio da concepção de que o Direito seria o ramo da atividade humana dedicado a organizar a sociedade a partir de institutos pré--estabelecidos, de observância obrigatória, e que fundamentariam a busca racional de soluções para os conflitos interindividuais e sociais. Nesse arranjo teórico, o dogma seria consubstanciado pelos referidos institutos prédeterminados, e a ciência, paradoxalmente, tanto serviria de método racional para a composição desses dogmas, como seria o sistema racional utilizado para se produzir as solu-ções prescritas pelo dogma.

A ciência, corolário do culto à razão como mediadora da relação entre o homem e o universo, no âmbito jurídico, seria, ao mesmo tempo, fonte e ins-trumento da fé – espécie de crença que, por definição, prescinde da razão. Ou seja, do ponto de vista linguístico, a denominada ciência-dogmática do Direito é algo racional e irracional ao mesmo tempo. Em princípio, seria de se esperar que uma denominação intrinsecamente contraditória como essa fosse imediatamente rechaçada. No entanto, a expectativa quanto à impossibilidade de aglutinar esses dois termos foi notoriamente contrariada. Surpreendentemente, a simbologia individual dos termos “ciência” e “dogmática” mostrou-se forte o suficiente para induzir uma sinergia que fortalece o paradoxo na concepção de Direito que será assimilada por aqueles que irão se tornar seus operadores. Devemos, portanto, perguntarmo-nos quais são as causas e as consequências disso tanto no que se refere ao desenvolvimento do conhecimento jurídico quanto no seu emprego na solução de conflitos e na organização da sociedade.

2 INTRODUÇÃO (SEGUNDA PARTE): UM QUADRADO NÃO É UM CÍRCULO, APESAR DE AMBOS SEREM FIGURAS GEOMÉTRICAS. POR QUE ALGUÉM INSISTIRIA NISSO?

Tanto ciência quanto dogma são termos intrinsecamente abstratos que adquirem certo grau de concretude de acordo com a familiaridade que vai se formando em decorrência de seu emprego em relação a determinado âmbito da vida. Constitui-se, desse modo, aquilo que Leoni chama de termo técnico.1 Por outro lado, a transposição dos termos ciência e dogma para o âmbito do conhecimento jurídico – cujo ambiente é distinto daquele que lhes é original -

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torna-os não técnicos ou semitécnicos. Eventualmente, o emprego de palavras dessa forma “[...] é uma fonte contínua não só de mal-entendidos, mas também de disputas verbais, ou algo pior.”2 No que diz respeito ao conhecimento jurídi-co, as consequências do voluntarismo positivista em sua pretensão de explicar o Direito como uma ciência-dogmática resultou em confusão que cria ambiente propício para algo pior.

É verdade que os defensores da ideia de que a natureza do conhecimento jurídico é de cunho científico reconhecem distinções entre ele e as ciências naturais, mas apenas como técnica retórica para, em seguida, afirmarem ser essencialmente a mesma coisa. Descuram de característica essencial, suficiente, em si mesma, para demonstrar a incompatibilidade entre ambos:

As pesquisas científicas e técnicas precisavam e ainda precisam de iniciativa individual e de liberdade individual que permitam que as conclusões e resultados alcançados por indivíduos, possivelmente em choque com a autoridade contrária, prevaleçam. Por outro lado a legislação é o ponto terminal do processo no qual a autoridade sempre prevalece, possivelmente contra a iniciativa e a liberdade individuais.3

Assim, criou-se o ambiente perfeito para a propagação de um conceito não técnico construído sobre a reputação de uma palavra técnica: dificultam-se as críticas com base técnica e ao mesmo tempo o conhecimento jurídico beneficia--se da reputação da própria acepção técnica. A consequência foi a formação de uma improvável sinergia linguística entre os conceitos de dogma e ciência, cujo simbolismo contribui para o compreensão do Direito como um campo do co-nhecimento no qual a autoridade assume relevância potencialmente inibidora de posições divergentes das correntes doutrinárias que alcançam predomínio. Isso se dá pelo fato de que o conhecimento (no sentido de: aquilo em que se crê como verdade) concernente ao dogma e à ciência, em uma sociedade complexa, é desvendado para o leigo por intermediação de uma autoridade familiarizada com os “mistérios” do universo. Dogma e ciência emanam autoridades de na-tureza diferente, como também é distinta a natureza do conhecimento jurídico. Na ciência, a autoridade é prática; na dogmática religiosa, a autoridade é moral, enquanto no Direito, a autoridade é institucional. Quando se aglutinam todas essas autoridades em uma única expressão: Ciência-Dogmática do Direito, a tendência é fazer que opiniões institucionais (doutrinárias e jurisprudenciais) passem por verdades fundadas em uma superioridade moral supostamente veri-ficada como sendo benéfica à vida prática.

Essa construção teórica, que tenta amalgamar Ciência, Dogma e Direito em uma única entidade, frequentemente é utilizada de modo bastante imprudente e instrumental. Enfatiza-se sua face de ciência quando há pretensão de desafiar as posições predominantes e destaca-se a perspectiva de dogma ao se alcançar uma certa amplitude de acolhimento da nova opinião diante da postura anterior. Isso se reflete diretamente tanto no ambiente acadêmico quanto na prática forense,

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tendo como consequência o fortalecimento de uma cultura de autoridade, que se propaga pelo uso de um raciocínio “científico”, que se caracteriza pela emissão de juízos fundamentados em valores supostamente universais, mas que comportam inúmeros vieses quando considerados concretamente. Seus emissores regularmente usufruem da aparência de consenso sobre o significado de um valor, para lhe atribuir o viés que lhes apraz, desconsiderando a sua heterogeneidade intrínseca subjacente e desenvolvendo uma perspectiva particular como se fosse decorrência de uma constatação universal que dá origem ao absoluto. Ignoram as divergências conceituais e a partir de uma pré-compreensão emitem opiniões, como se comprovadas fossem, por meio da mera justaposição de juízos favorá-veis ao próprio ponto de vista, sem efetivamente analisarem as inconsistências introduzidas no sistema jurídico pelas proposições defendidas. Essas opiniões transformam-se em alicerce da disseminação das mesmas ideias replicadas em outros trabalhos de opinião, emprestando-lhes uma autoridade que não possuem.

No ambiente forense, essa prática cria uma falsa sensação de decantação do entendimento acerca das questões levadas à apreciação da Justiça. O dogma fica patente quando precedentes judiciais, cujas ementas são irrefletidamente citadas, são aplicados a novos casos de modo subsuntivo, sem apreciação adequada acerca da similaridade entre circunstâncias atuais e referenciais. Quanto mais uma posição corresponde à opinião predominante no âmbito do Judiciário, mais apta está a se reafirmar e a se tornar o novo paradigma do qual se deve partir, mesmo que não esteja socialmente pacificada.

Em nossa concepção, portanto, o conhecimento jurídico apresenta uma estrutura paradoxalmente autorreferenciada. Ao mesmo tempo em que está sub-metida a injunções externas (filtradas de modo idiossincrático), é condicionada por fatores de poder, particularmente, a autoridade. Consideramos, assim, que o conhecimento jurídico está submetido a um nível de subjetividade incompatível com as noções modernas de ciência, as quais demandam um referencial objetivo capaz de prover a possibilidade de verificação, enquanto os referenciais do Direito são predominantemente egoicos. Ademais, vislumbramos a hipótese de que a sua caracterização como ciência-dogmática inibe o ambiente necessário ao livre pensamento e ao exercício sistemático da discussão acerca das dimensões fática, valorativa e normativa.

Por conseguinte, nossos objetivos, por meio deste artigo, serão analisar a natureza do conhecimento jurídico e avaliar os efeitos da disseminação da ideolo-gia da Ciência-Dogmática do Direito sobre o desenvolvimento do conhecimento jurídico. Como consequência necessária, buscaremos verificar que outro con-ceito acerca da natureza do conhecimento jurídico seria mais apropriado ao seu desenvolvimento. Formulação que, necessariamente, há de conter mecanismos de concatenação entre anseios sociais, tradição jurídica e ambiente cultural, de modo a se poder avaliar as hipóteses e as teorias que pretendem guiar o conhe-cimento jurídico.

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3 RETROCEDER A FIM DE AVANÇAR

Refletir sobre a natureza do conhecimento jurídico, a partir do referencial teórico amplamente difundido no Brasil, leva-nos irremediavelmente a pensar sobre a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen.4 Nosso ponto de partida, porém, não será a defesa que Kelsen faz sobre a cientificidade do conhecimento jurídico, e sim a noção da existência de uma norma fundamental pressuposta:

[...] visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja auto-ridade teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão.5

Para explicar seu conceito de norma hipotética fundamental, Kelsen recor-re ao exemplo da obediência cristã aos Dez Mandamentos. Segundo o autor, o que impeliria os cristãos à obediência dos Dez Mandamentos não seria a origem divina dessas normas, mas sim uma outra norma, segundo a qual se deve obede-cer aos mandamentos de Deus. Visto que a autoridade divina teria de se fundar nessa norma mais elevada, e não o contrário, sua origem, portanto, não poderia ser o próprio Deus. Kelsen exige-nos, de fato, uma profissão de fé: a crença no dogma de uma norma inquestionável, apesar de indefinida na origem, e no seu próprio conteúdo, já que uma pressuposição axiomática dessa espécie deve sua efetividade apenas aos elementos de poder que a sustentam. A fé em Kelsen, por conseguinte, haveria de ser mais forte do que em Deus, pois afirmar que os cristãos devem acreditar em Deus porque há uma norma pressuposta inquestionável que os manda acreditar em Deus implicaria, por definição, negar a fé no Criador.

Evidenciar essa extrapolação do pensamento kelseniano não implica, to-davia, a pretensão de refutar a necessidade de se alicerçar as normas postas em uma dimensão superior à norma de nível mais elevado. Cremos que retroagir em direção ao que fundamenta a autoridade da norma é o caminho adequado a uma aproximação da natureza do Direito e do conhecimento que lhe consubstancia. Concordamos, portanto, que a fonte de validade da Constituição jurídica do Estado há de ser um fator superior à própria Constituição. Apenas divergimos de que ele seja uma norma, mas sim um fator de outra ordem, apto como uma norma a induzir comportamentos que corroborem o conteúdo formal e inspirem à construção de seu conteúdo material.

A pesquisa sobre a natureza desse fator levou-nos a considerar o pensa-mento de Amartya Sen,6 expresso em sua obra “A Ideia de Justiça”:

No coração do problema específico de uma solução imparcial única para a escolha da sociedade perfeitamente justa, está a possível sustentabilidade de razões de justiça plurais e concorrentes, todas com pretensão de imparcialidade, ainda que diferentes – e rivais – umas das outras.7

Amartya Sen, a fim de ilustrar o problema, apresenta-nos a parábola da escolha de uma, dentre três crianças, à qual se deve destinar uma flauta em litígio:

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Anne reivindica a flauta porque ela é a única que sabe tocá-la (os outros não negam esse fato) e porque seria bastante injusto negar a flauta à única pessoa que realmente sabe tocá-la. Se isso fosse tudo o que você soubesse, teria uma forte razão para dar a flauta à primeira criança.

Em um cenário alternativo, é Bob quem se manifesta e defende que a flauta seja dele porque, entre os três, é o único tão pobre que não possui brinquedo algum. A flauta lhe permitiria brincar (os outros dois admitem que são mais ricos e dispõem de uma boa quantidade de atrativas comodidades). Se você tivesse escutado apenas Bob, teria uma forte razão para dar a ele a flauta.

Em outro cenário alternativo, é Carla quem observa que ela, usando as próprias mãos, trabalhou zelosamente durante mui-tos meses para fazer a flauta (os outros confirmam esse fato) e só quando terminou o trabalho, “só então”, ela reclama, “esses expropriadores surgiram para tentar me tirar a flauta”. Se você só tivesse escutado a declaração de Carla, estaria inclinado a dar a ela a flauta em reconhecimento a sua compreensível pretensão a algo que ela mesma fez.8

Ouvidas as três crianças, como será que juízes conscienciosos, que pre-tendessem harmonizar os princípios da cidadania, da dignidade humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa9, deveriam decidir essa questão? A depender do nível de identificação de cada juiz com alguma dentre as distintas correntes filosóficas – utilitarista, igualitarista econômica ou libertária pragmática – é possível que a escolha parecesse evidente. “Contudo, é quase certo de que cada um veria uma solução totalmente diferente como a obviamente correta.”10 E cada solução, como se pode constatar, sofreria enorme influência dos valores cultivados por cada um deles, pois as noções do que é absurdo ou evidente são definidas de acordo com o quadro epistêmico de referência.

Ideias, conceitos e temas são aceitos ou negados em determinado momento histórico de acordo com os valores assimilados pela comunidade.11 Verificamos, desse modo, que o valor que se atribui aos fatos apresenta-se como candidato ao posto de fator de validação da norma de nível mais elevado. Faz-se necessário, assim, aprofundarmo-nos no estudo dos valores com relação ao Direito e, con-sequentemente, no que concerne ao conhecimento jurídico.

Nesse quadrante, convém recorrermos à Teoria Tridimensional do Direi-to.12 O autor aponta que o questionamento sobre a validade do Direito leva-nos a três perguntas:

[...] em primeiro lugar, uma pergunta quanto à obrigatoriedade da norma jurídica para todos, em geral, e para determinada pessoa em particular, o que se desdobra em uma série de outras perguntas sobre a competência do órgão que elaborou o modelo jurídico, a sua estrutura e o seu alcance. Além desse plano de caráter formal, surge um outro grupo de questões, quanto à conversão efetiva da

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regra de direito em momento de vida social, isto é, no tocante às condições de real cumprimento dos preceitos por parte dos conso-ciados; e, finalmente, há uma terceira ordem de dificuldades, que consiste na indagação dos títulos éticos dos imperativos jurídicos, na justiça ou injustiça do comportamento exigido, ou seja, de sua legitimidade.13

Dessas questões, decorre a constatação da existência de três planos correlacionados à transformação de um comando qualquer em um comando jurídico, os quais são: o formal, o fático e o axiológico. Tais planos, em linhas gerais, referem-se, respectivamente, ao como, ao o quê e ao por quê de um tema tornar-se objeto de uma regulação de ordem jurídica. Verificamos, assim, que o objeto da pesquisa jurídica tem uma estrutura complexa que requer um raciocínio multifacetado, cuja fundamentação, em última instância, decorre do fator axiológico, pois é da própria natureza de uma justificativa que se responda ao porquê de adotá-la. Fica claro, portanto, que são os valores que, em especial, norteiam os estudiosos do universo jurídico, ainda que não tenham consciência disso, cabendo às dimensões fática e normativa conectarem a dimensão axioló-gica ao mundo prático. Só assim o conhecimento jurídico contribuirá para que o Direito cumpra suas funções de organizar a sociedade e solucionar conflitos.

4 OBJETO MAIS MÉTODO NÃO É IGUAL À CIÊNCIA

Havendo definido o quadro epistêmico do conhecimento jurídico, cabe--nos agora analisar se ele corresponde ao quadro epistêmico do conhecimento científico. Ciência vem do latim scientia, que significa conhecimento. Com efeito, ela nasce “da desconfiança dos sentidos.”14, ou seja, a ciência tem origem na percepção de que é necessário desenvolver algum método racional adequado a reduzir os erros provocados pelos sentidos no processo de assimilação da reali-dade, de modo que se possa conhecer a verdade sobre o que de fato é ou existe.

O objeto da ciência, portanto, não é qualquer conhecimento, mas o co-nhecimento da realidade. Para Kelsen, a realidade é: “[...] não apenas a realidade natural como objeto da ciência da natureza, mas todo o objeto do conhecimento e, assim, também o objeto da ciência jurídica [...]”. Mas, se algo fosse objeto da ciência apenas por ser objeto do conhecimento humano, seríamos forçados a concluir que religião, filosofia e artes também são objeto da ciência, o que não é o caso. Com efeito, apesar de termos de reconhecer que religiosos, filósofos e artistas podem ir além dos conhecimentos práticos, investigando suas áreas de conhecimento de modo sistemático, podendo, inclusive, vir a desenvolver atividade acadêmica, a sociedade nãos os reconhece como cientistas. Mas o que, então, diferencia a ciência dos outros campos do conhecimento humano?

O que historicamente tem representado esse fator de diferenciação entre o que é e o que não é científico tem sido o método aplicado à construção e ao desenvolvimento das teorias sobre a realidade. A função do método seria favorecer e aperfeiçoar a razão, a fim de alcançar a possibilidade de determinar o caminho

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para as descobertas que permitam eliminar qualquer distinção entre a verdade – aquilo que se tem como real – e o que propriamente é a realidade, a ponto de se alcançar a correspondência total entre teoria e mundo real. Vários foram os métodos propostos que se sucederam durante os últimos séculos. O ceticismo de Descartes, o empirismo de Bacon, o positivismo lógico de Auguste Comte (que, por meio da descrição e da classificação, construiu o paradigma que teve sucesso em atribuir uma aura cientificista às disciplinas sociais) são exemplos de propostas metodológicas que visavam a determinar o caminho da descoberta científica.

Todavia, muitas descobertas tidas como científicas não obedeceram a qualquer método previamente aceito. Os trabalhos de Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Karl Popper são profícuos em demonstrar o que Piaget e Garcia resumiram muito bem ao afirmarem que:

[...] o aporte fundamental daqueles que conduziram [as revoluções científicas] não foi em nível de um aprimoramento metodológico nem de um progresso considerável nos instrumentos de observa-ção, mas sobretudo de uma reformulação dos problemas que eram objeto de um estudo científico. [...]

É nessa perspectiva que caracterizamos a revolução científica como uma mudança do ‘quadro epistêmico’.15

E muito bem complementaram por meio do exemplo de que:

A mecânica de Newton só foi aceita na França após trinta anos. Não lhe foi censurado qualquer erro de cálculo e não foram apresentadas quaisquer provas em apoio de algum resultado experimental que tivesse contradito as suas afirmações. Simplesmente, a sua teoria não era aceita como “física”, a pretexto de não fornecer explicações físicas acerca dos fenômenos. Era o próprio conceito de explicação física que era questionado. Não é de se admirar que tenha sido o filósofo Voltaire a desempenhar o papel principal na introdução das ideias newtonianas no continente Algumas décadas mais tarde, as explicações “a Newton” eram não só universalmente aceitas, como tinham se tornado o próprio modelo da explicação científica.16

O que, de fato, propicia a descoberta científica é um processo que Piaget e Garcia vieram a denominar de desenvolvimento sociogenético (relativo à evolução das ideias, das conceitualizações e das teorias):

Durante esse processo de assimilação, o sujeito seleciona, transforma, adapta e incorpora referidos elementos [ideias, conceitualizações e teorias] às suas próprias estruturas cognitivas e, para tanto, ele deve também construir, adaptar, reconstruir, transformar essas estruturas.17

Tal processo é de natureza lógica e não metodológica. Dessa forma, con-cluímos a individualização do conhecimento científico diante dos outros ramos do conhecimento humano não se alicerça em uma metodologia, mas em uma lógica, que representa a transubstanciação desse processo em um discurso.

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5 O QUE IMPORTA É A LÓGICA, OU NÃO

Qual seria a lógica do conhecimento científico, ou seja, qual o fundamento do discurso de individualização desse ramo do conhecimento? Como afirmam Piaget e Garcia: “O mais importante é, sem dúvida, a procura das ‘razões’ que justificam as abstrações e generalizações”,18 e o único meio de poder determinar se essas razões podem justificar as teorias, ou seja, se estão aptas a solucionarem problemas de incompatibilidade entre teoria e fato, é sujeitá-las à crítica. Con-forme Karl Popper, “As soluções [científicas] são propostas e criticadas. Se uma solução não está aberta a uma crítica pertinente, então é excluída como não científica, embora, talvez apenas temporariamente.”19

A questão da verificabilidade de uma hipótese (correlação entre teoria e mundo real) é essencial ao desenvolvimento dos quadros epistêmicos relacio-nados ao conhecimento científico. Da mesma forma, a convergência entre o mundo das normas e o mundo real é de grande importância para a validação do conhecimento jurídico, pois como afirmou Ferdinand Lassalle: “Os fatores reais de poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são.”20 Verifica-se, assim, que, para Lasalle, os referenciais de avaliação da validade da norma tinham um caráter utilitário. Konrad Hesse, porém, argumenta sobre a importância de elementos de viés moral como o “caráter nacional” e “a vontade de Constituição.”21

Contudo, os estudiosos que se dedicaram a defender a ideologia cien-tificista de conhecimento jurídico negaram os fatores externos à norma como referenciais para a sua validade. John Austin, que foi o primeiro a classificar o conhecimento jurídico como científico, afirmou que: “A ciência da jurisprudência (ou, de modo simples e resumido, jurisprudência) diz respeito às leis positivas, ou às leis em sentido estrito, sem considerar qualquer juízo quanto a serem boas ou más”22 , enquanto paradoxalmente reconhecia haver níveis superiores de validação da norma: “O princípio da utilidade geral é o indicador de muitos desses deveres; mas o prin-cípio da utilidade geral não é nem fonte nem fundamento deles”23. Para Austin, essa fonte e esse fundamento provêm das leis de Deus, cuja natureza é moral, de cunho dogmático-religiosa.

Diante dessa circunstância de referenciais de validação externos de ordem axiológica, em última instância, como definir um quadro epistêmico que atribuísse cientificidade ao conhecimento jurídico? A resposta foi enfocar as “relações lógico--formais dos fenômenos jurídicos, deixando de lado o seu conteúdo empírico e axiológico”24, o que acabou por conduzir à “norma fundamental pressuposta” de Kelsen e à autopoiese de Luhmann,25 assim como insistir no modelo meto-dológico. Tércio Sampaio Ferraz Júnior afirma que:

Quanto ao caráter científico da Ciência do Direito, encontra-mos, comumente, a afirmação de que se trata de conhecimentos “sistemáticos”, isto é, metodicamente obtidos e comprovados. A “sistematicidade” é, portanto, argumento para a cientificidade.

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Entende-se, com isto, uma atividade ordenada segundo princípios próprios e regras peculiares [...]26

Por seu turno, Agostinho Ramalho Marques Neto afirma que: “Ciência é discurso, teoria que se constrói em função de um objeto de conhecimento e de um método, por sua vez também construídos”27, dando-nos um exemplo dessas posições.

Já fomos capazes, contudo, de demonstrar que a ideia de que um método qualquer possa atribuir cientificidade a um ramo do conhecimento humano não encontra mais respaldo, nem mesmo no âmbito das ciências naturais. O que importa é a lógica associada a esse conhecimento, e já apontamos que, se a lógica científica caracteriza-se pela possibilidade de verificação da compatibilidade entre verdade e realidade, suas teorias podem ser criticadas em qualquer nível de fundamentação. A essa altura, convém questionarmos: será que a lógica jurídica apresenta essa mesma possibilidade? Nossa resposta é, claramente, não. O próprio Kelsen diferencia a lógica do conhecimento científico, fundada na causalidade, da lógica do conhecimento jurídico, baseada no princípio da imputação.

Chaïm Perelman afirma que a lógica jurídica “[...] é orientada pela ideo-logia que guia a atividade dos juízes, pela forma como eles concebem seu papel e sua missão, pela concepção deles do direito e pela suas relações com o Poder Legislativo”28, aduzindo ainda que:

Os raciocínios jurídicos são acompanhados por incessantes con-trovérsias, e isto tanto entre os mais eminentes juristas quanto entre os juízes que atuam nos mais prestigiosos tribunais. Tais desacordos, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, obrigam, o mais das vezes, depois de eliminadas as soluções desproposi-tadas, a impor uma solução mediante autoridade, trate-se da autoridade da maioria ou daquela das instituições superiores, as quais, aliás, na maior parte dos casos coincidem. É nisto que o raciocínio jurídico se distingue do raciocínio que caracteriza as ciências, especialmente as ciências dedutivas – nas quais é mais fácil chegar a um acordo sobre as técnicas de cálculo e de medição – e daquele que encontramos em filosofia e nas ciências humanas, nas quais, na falta de um acordo e na ausência de um juiz capaz de encerrar os debates com sua sentença, cada um permanece em suas posições.29

O objeto da lógica jurídica é criar aceitação subjetiva para suas soluções, estando permeada pelos conceitos de equitativo, razoável ou justo, em detrimento do real. Tanto a doutrina como a atividade jurisdicional têm como meta construir uma subjetividade favorável à aceitação de determinadas soluções, utilizando-se da objetividade apenas como meio para transformar a subjetividade. As questões morais permeiam a própria letra da lei, objeto que Kelsen, e outros defensores do conhecimento jurídico como ciência pretenderam elevar a referencial de objetividade. Vejamos um exemplo na letra da lei:

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Art. 121. Matar alguém:

Pena – reclusão, de seis a vinte anos.

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.30

Como podemos constatar, o recurso positivista de separar a dimensão lógico-formal da lei do seu conteúdo empírico e axiológico é racionalmente ab-surdo. Um só artigo de lei traz dois juízos de valor distinto acerca do mesmo fato objetivo: matar. Ademais, como se pode afirmar que a atividade interpretativa de dispositivo que alude a “relevante valor moral ou social” e à “injusta provocação” estaria isenta de valores? Nem a Escola da Exegese seria capaz de promover uma subsunção totalmente objetiva desse dispositivo.

Como vimos, portanto, a lógica jurídica não é referenciada apenas nos fatos, como a lógica científica, mas sim na correlação dos fatos com os valores. Isso implica dizer que não é a ocorrência de um fato que serve de referência para os raciocínios jurídicos, mas sim o significado desses fatos à luz dos va-lores. Perelman31 chegou a se questionar se haveria uma lógica específica dos valores, contudo, após se dedicar a estudos acerca desse tema, por quase dois anos, chegou a uma conclusão contrária a essa hipótese. A prevalência da sub-jetividade impede a contradição direta dos fatos. Em vista disso, o resultado das críticas ao conhecimento jurídico depende mais da efetividade da argu-mentação do que puramente da lógica, pois, conforme anteriormente citado e bem definido por Kelsen, o raciocínio não busca afirmar-se na causalidade, mas na imputabilidade.

6 DA LÓGICA À NATUREZA DO CONHECIMENTO JURÍDICO

A retórica, portanto, assume importância no desenvolvimento do raciocínio jurídico que prevalecerá sobre outro e tornar-se-á majoritário, em consequência das adesões que obterá. Conforme Perelman: “Enquanto nos raciocínios demonstrativos, as inferências formais são corretas ou incorretas, os argumentos, as razões fornecidas pró ou contra uma tese têm maior ou menor força e fazem variar a intensidade de adesão de um auditório”32. E quanto mais adesões determinada argumentação obtém, mais poderosa ela se torna, pois: quando a linguagem se torna o meio de comunicação dominante, aquilo que poderíamos chamar de experiência direta dos objetos começa a ser subordinada, em determinadas situações, ao sistema de significados que lhe confere o meio social”.33

Como disse Wittgenstein: “Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo.”34 Se determinada perspectiva (valor) torna-se meu mundo, podemos dizer que o conhecimento jurídico pode ser dogmático, mas não científico. Objetivamente, porém, o conhecimento jurídico não poderá

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ser dogmático, a fim de adequar a estrutura social aos valores prevalecentes em cada momento histórico, e tampouco científico, pois a adesão a esses valores é decorrente de um processo de assimilação35 de alto grau de subjetividade, que decorre conjuntamente de fatores sociais, genéticos e neurológicos.36 Verifica--se, portanto, que insistir na permanência da concepção dogmático-científica do conhecimento jurídico é favorecer uma situação de dissonância cognitiva37, em que o mundo da crença, de ordem linguística, não se coaduna com o mundo das ações, de ordem fática.

Cabe-nos, então, perguntarmos qual seria a natureza do conhecimento jurídico. E a única resposta que vislumbramos, em decorrência de todos os argumentos aqui apresentados, é que a natureza do conhecimento jurídico é axiológica-argumentativa. E qual o significado de se ter uma natureza dessa espécie? Ao contrário do que muitos possam imaginar, admitir tal espécie de natureza para o conhecimento jurídico não implica desprezar a objetividade, mas sim considerar a influência dos valores de modo objetivo de forma adequada. O que parece ser um paradoxo – perceber os valores de forma objetiva – torna-se menos inquietante a partir do ponto de vista funcionalista.

A Teoria Funcionalista dos Valores Humanos considera-os como um crité-rio que orienta as pessoas em suas atitudes e comportamentos.38 Essa concepção, que se consolidou Psicologia, a partir de 1973, aponta a existência de um “coro permanente de valores, apesar de seu arranjo em detrimento de características pessoais e/ou contextos sociais.”39 Sua fonte são as necessidades humanas, dis-tribuídas pelas funções de: experimentação, realização, existência, suprapessoal, interativa e normativa.

Há, portanto, uma base objetiva para os valores (as necessidades huma-nas), influenciada pela subjetividade, que determina o arranjo em que essas funções coexistirão. Assim se constitui a componente axiológica da natureza do conhecimento jurídico, cabendo à sua componente argumentativa a tarefa de tentar conformar os arranjos valorativos individuais e sociais entre si. Por essa perspectiva, o conhecimento jurídico pode ser compreendido como campo volta-do para o desenvolvimento das instituições e institutos adequados à organização de uma sociedade apta a atender as complexas necessidades humanas, capaz de harmonizar indivíduo e grupo; biologia e construção social. Desse modo, caberia ao conhecimento jurídico o desafio de compreender o mais possível as necessidades humanas e os seus condicionantes sociais.

7 TRÊS AUTORIDADES JUNTAS GERAM UM GRANDE AUTORITARISMO

Após apresentadas as questões de ordem epistemológica, já se pode per-ceber a série de dificuldades que a concepção científico-dogmática impõe ao desenvolvimento do conhecimento jurídico. A contradição linguística inicial e a indefinição de um referencial apropriado à verificação do argumento que valida a norma são exemplos dos limites desse projeto. Mas há ainda um outro fator,

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de ordem democrática, que referenda a necessidade de superar a perspectiva científico-dogmática prevalecente no Brasil. Lênio Luis Streck, em obra profícua, aponta como a subjetividade humana (conformada por uma convicção dogmática) aplicada a um caso concreto, por meio de uma lógica pretensamente científica, pode levar a conclusões extravagantes.

Casos pitorescos à parte, os relatos de Lênio Luis Streck demonstram que essa combinação tem resultado na difusão do ativismo judicial que tem provo-cado uma sensação de insegurança jurídica no Brasil. É verdade que o ativismo judicial não é a origem do autoritarismo judicial, constitui apenas uma outra forma de sua manifestação. Como muito bem aponta Juraci Mourão Lopes Filho, no Brasil, deturpa-se o primado da decisão do juiz conforme sua convicção, em mero subterfúgio para se fazer calar:

No primeiro momento, parece louvável o juiz se submeter à sua consciência, pois dá a impressão de que, dessa maneira, deixaria de se submeter a outros caprichos da personalidade humana que seriam menos louváveis. Contudo, denota, na verdade, a ideia de que o tribunal considera que suas decisões, todas, fazem tábula rasa da questão posta em juízo, como se a cognição do magistrado se reiniciasse sempre sem qualquer deferência ao que já fora colo-cado a respeito, como que desprendido de tudo e de todos, como se não inserida em uma história jurídica que indica o ponto de desenvolvimento de determinado assunto, ou mesmo que não está integrada em uma tradição determinada pela cultura no momento do julgamento.40

E continua o autor a descrever o quadro completo de discricionariedade que domina a atividade jurisdicional no país, paradoxalmente, oriunda do meca-nismo que, em tese, serviria para mitigá-la: o reconhecimento da força normativa da Constituição. Constitucionalismo mal decantado, contudo, que embaralha os âmbitos de aplicação de regras e princípios, associado a um controle difuso de constitucionalidade que garante poderes de controle constitucional das leis tanto ao “juiz recém-empossado na mais longínqua comarca de um Estado-membro [... quanto a...] um ministro do Supremo Tribunal Federal”.41 Tal circunstância serviu como justificativa para a adoção de instrumentos de controle rígido das camadas superiores do Judiciário sobre as instâncias inferiores, como a súmula vinculante que – embora devesse ser meio de afirmação de uma decisão justa e socialmente respaldada – acaba se tornando mero expediente de autoridade do estamento hierárquico judicial superior e esterilização do questionamento crítico necessário ao desenvolvimento do conhecimento jurídico, pois:

É inegável, nos dias atuais, a incomensurável influência que os jul-gamentos dos tribunais mais elevados, especialmente do Supremo Tribunal Federal, exercem sobre toda a comunidade jurídica e na configuração e delineamento de um direito ou obrigação.

Mesmo o estudo do Direito passa por esse prisma. Gradativamente, o ensino jurídico, com seus manuais didáticos, recorre com maior

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ênfase às manifestações jurisdicionais para delinear o conceito e alcance dos institutos jurídicos, tomando-as por dados de definitiva relevância. Na mesma medida, a doutrina deixa de adotar um viés crítico possível de ser realizado desde uma prévia elaboração de referencial teórico ao qual se submetam os diferentes precedentes, súmulas e jurisprudências.42

8 CONCLUSÃO

Conforme o exposto, consideramos que a concepção dogmático-científica do conhecimento jurídico é teoricamente inconsistente e equivocada quanto à sua adequação a uma sociedade democrática de direito. A concatenação de dois conceitos paradoxais (dogma/ciência) estimula a formação de um ambiente ideologicamente autoritário, pois alicerça a ideia de que as opiniões dos doutri-nadores e magistrados, especialmente aqueles das mais altas cortes, por suposto (dogmaticamente), seriam resultado de uma consciência metafísica superior e que, ao se manifestarem em concreto (cientificamente), representariam a solução incontestável para um dado caso.

Percebe-se, portanto, que a insistência no conceito de ciência-dogmática acabou perpetuando o processo de decisão positivista a que o pós-positivismo nacional pretendeu se opor. A única diferença é que a injustiça decorrente do formalismo virou injustiça decorrente do solipsismo. O autoritarismo continua a ocorrer, porém agora de forma menos perceptível. O problema é que não há um acordo sobre qual é o arranjo axiológico que serve de referência para a inter-pretação dos princípios constitucionais e direitos fundamentais. Desse modo, as decisões ocorrem de forma casuística, a depender do nível de ativismo de cada magistrado, o que provoca insegurança jurídica.

Após havermos verificado as inconsistências e as consequências da per-manência da concepção dogmático-científica do conhecimento jurídico, cabe--nos perguntar se o seu abandono implicaria algum dano aos estudos jurídicos. Considerando que o conhecimento jurídico moderno é oriundo de uma tradi-ção muito mais antiga do que a da ciência moderna (diversos são os institutos, que ainda compõem esse conhecimento, que foram talhados ainda na Roma Antiga), percebe-se que a perspectiva cientificista não é essencial à vitalidade do conhecimento jurídico. Em contrapartida, o iluminismo já nos deu argumen-tos suficientes para ultrapassarmos a supremacia do dogma, em benefício do atendimento dos justos anseios do homem. Desse modo, não vemos porque a superação desse paradigma pudesse prejudicar o desenvolvimento do conheci-mento jurídico, a menos que a alternativa proposta provocasse o abandono de qualquer possibilidade de uma referência objetiva, pois isso implicaria recurso à força, em detrimento da civilidade.

A proposta axiológico-argumentativa, contudo, propicia a construção de um quadro epistêmico que inclui um referencial objetivo, ao mesmo tempo em que considera as influências da subjetividade. Esse quadro epistêmico tanto

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fornece uma base como abre caminho para a evolução. A chave para isso é a concepção funcionalista dos valores, que os compreende como critério de mobilização para o atendimento das necessidades humanas. Cria-se, dessa for-ma, uma estrutura estável, porém adaptável aos diversos contextos ambientais e sociais, por meio de um instrumento de ajuste calcado na argumentação. Aqui, a crítica torna-se essencial, de modo a desenvolver as instituições e institutos adequados a compatibilizar indivíduo e sociedade, livre-arbítrio e condicionantes naturais.

Por fim, confiamos que o quadro epistêmico proposto provoque um movimento no sentido de aumentar a representatividade do conhecimento jurídico e tornar o exercício da jurisdição mais democrático. Isso decorreria da consciência de que o objeto do conhecimento jurídico seria, em última instân-cia, propiciar o estabelecimento dos padrões sociais aceitáveis ao atendimento das necessidades humanas. Tal percepção seria mais socialmente inclusiva, pois permitiria aos cidadãos avaliarem se as normas aplicadas ao seu cotidiano são adequadas às necessidades da sua vida, ampliando a transparência das decisões e aumentando a responsabilização de todos os operadores do Direito perante as pessoas comuns.

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1 LEONI, 2010.2 Ibid.3 Ibid., p. 21.4 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. 5 Ibid., p. 217.6 SEN, Amartya. A ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.7 Ibid., p. 43.8 Ibid., p. 43.9 Art. 1˚ , II, III, IV, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.10 SEN, op. cit., p. 43.11 PIAGET, Jean; GARCIA, Rolando. Psicogênese e História das Ciências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.12 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito: preliminares históricas e sistemáticas. 3. ed. rev. at.

São Paulo: Saraiva, 1980.13 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito: preliminares históricas e sistemáticas. 3. ed. rev. at.

São Paulo: Saraiva, 1980, p. 15.14 ALVES, Rubens. O que é Científico? 3. ed. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas, 2011, p. 39.15 PIAGET; GARCIA, op. cit., p. 335.16 Ibid., p. 339.17 Ibid., p. 333.18 Ibid., p. 365.19 POPPER, Karl R. Lógica das ciências sociais. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, p. 16.20 LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 16.21 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991,

p. 17-19.

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22 Em tradução livre ao texto original, in verbis: “The science of jurisprudence (or, simply and briefly, jurisprudence) is concerned with positive laws, or with laws strictly so called, as considered without regard to their goodness and bad-ness”. cf. AUSTIN, John. The Province of Jurisprudence Determined. New York: Cambridge University Press, 1995, p. 45.

23 Em tradução livre ao texto original, in verbis: “The principle of general utility is the index to many of these duties; but the principle of general utility is not their fountain or source”. cf. AUSTIN, op. cit., p. 45.

24 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 13.25 SEVERO ROCHA, Leonel; KING, Michael; SCHWARTZ, Germano. A verdade sobre a autopoiese no

direito. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.26 FERRAZ JR., op. cit., p. 13.27 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A Ciência do Direito: conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de

Janeiro: Renovar, 2001, p. 185.28 PERELMAN, Chaïm. A Lógica Jurídica: nova retórica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 29.29 Ibid., p. 29.30 Código Penal. Decreto-lei n˚ 2. 848, de 7 de dezembro de 1940.31 PERELMAN, op. cit., p. 138.32 Ibid., p. 138.33 PIAGET; GARCIA, op. cit., p. 334.34 Tradução apresentada em edição bilíngue, in verbis: “Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner

Welt.”, cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. 3. ed. São Paulo: Editora Univer-sidade de São Paulo, 2010. p. 245.

35 A assimilação opõe-se à mera associação que é: [...] concebida como uma simples relação de semelhança ou de contiguidade entre os objetos conhecidos ou a serem conhecidos, como se as atividades do sujeito não interviessem no conhecimento e como se este consistisse apenas num aglomerado de observáveis classificados como os conteúdos de uma caixa ou de um armário. Cf. em: PIAGET; GARCIA, op. cit., p. 361.

36 GOUVEIA.37 Dissonância cognitiva significa uma situação psicológica de flagrante incoerência entre as crenças e as

ações de um indivíduo.38 Ibid., p. 21.39 Ibid., p. 23.40 LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os Precedentes Judiciais no Constitucionalismo Brasileiro Contempo-

râneo. 1. ed. Salvador/BA: Editora Jus Podium, 2014, p. 83.41 Ibid., p. 79.42 Ibid., p. 22.

LAW IS SCIENCE AND THE EARTH IS FLAT: INQUIRE INTO THE NATURE OF JURIDICAL K N O W L E D G E , I M P L I C A T I O N S A N D RAMIFICATIONS

ABSTRACT

This essay aims to analyse the nature of juridical knowledge, in its essence: its characteristic way of thinking – and the nature of scientific thought as well, with the objective of comparing one to the other to check its similarities. As a result of our research and analysis, we found out that the idea of juridical knowledge merely as a kind of scientific thought is superficial and fragile. The thought on Law is older end directly influenced by aspects of human life more diverse and complex than the

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strict scientific way of thinking. We also realised that the maintenance of this scientific perspective on the way of thinking on Law contributes to spread of an illegitimate authority of doctrinal and juridical practices, which would support theses founded on rhetoric as if they had been established over merits. Therefore, the consequence of keeping this status quo is the lack of compliance between jurisdiction and its sociogenetic foundation, jeopardizing the Democratic State of Law.

Keywords: Law Theory. Dogma. Science. Juridical Knowledge. Nature of Knowledge.

Submetido: 12 jul. 2015Aprovado:22 ago. 2015

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contrAto ADministrAtiVo concertADo, cAusA e BoA-fé: mAior eficiênciA e eficáciA à luz DAs teoriAs Dos Atos sepAráVeis e DA incorporAção

Roberto Correia da Silva Gomes Caldas*

Introdução. 1. Teorias dos atos destacáveis (ou separáveis) e do “todo indivisí-vel” (ou da incorporação): instrumentos de análise contratual administrativa concertada 2. Competência político-administrativa. 3. Processo de positivação e a teoria da causa. 4. Conexidade processual, causalidade e relação jurídicas. 5. Causa e boa-fé como vetores interpretativos nos contratos administrativos. 6. Conclusões. Referências.

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar o contrato administra-tivo a partir das teorias dos atos destacáveis (ou separáveis) e “todo indivisível” (ou da incorporação), sob ópticas microscópica e macroscópica, estática e dinâmica da teoria geral da relação jurídica, amparada na concepção pactual concertada, fixando os pressupostos para uma eficiente, efetiva e eficaz relação administrativa ancorada na participação popular e controle social (concertação), como corolário do exercício democrático que deve permear toda e qualquer manifestação jurídica. Nesse sentido, buscar-se-á investigar a interconexão instrumental entre competência político-administrativa, causa e boa-fé objetiva como fundamento para compreender a noção de procedimento administrativo e para também debruçar-se sobre a interrelação entre contrato, relação e processo no âmbito adminis-trativo. A observância e descrição do “processo de positivação” se faz fundamental para revisitar as políticas públicas em seus distintos graus de abstração e concreção, inclusive sob uma perspectiva pactual, entendidas, assim, consoante um caráter dinâmico que deve permear todo e qualquer ato emanado da Administração pública, intrinseca-mente vinculado ao Estado Democrático de Direito, principalmente se voltado para uma relação jurídica específica. A definição e a

* Possui Doutorado em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008), Mestrado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e Bacharelado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1993). Atualmente é professor no Curso de Mestrado em Direito da UNINOVE - Univer-sidade Nove de Julho, tendo lecionado, no bacharelado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a matéria de Direito Administrativo. Tem experiência na área de advocacia consultiva e contenciosa no Brasil e em Portugal, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente com os seguintes temas: regulação, licitações públicas, contratos administra-tivos, concessões administrativas, parcerias público-privadas e tributação em geral. E-mail: [email protected]

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relação entre causa e boa-fé com os contratos administrativos per-mitem estabelecê-las como seus vetores interpretativos concertados. Conclui-se que causa e boa-fé, nessa nova direção interpretativa da relação pactual pública, adotam natureza colaborativa, cooperativa e diretamente vinculada aos preceitos da participação popular e controle social, imbricando-se com seus elementos, os quais são, mo-tivação, conteúdo e forma, para estabelecer seus aspectos concertados funcionais (socioeconômicos) e estruturais, inclusive em expressão mais concreta de moralidade administrativa.

Palavras-chave: Relação jurídica pactual pública. Eficiência e eficácia. Políticas públicas. Contrato administrativo. Concertação. Participação e controle social.

INTRODUÇÃO

O estudo que ora vem a lume gira em torno de ópticas microscópica e macroscópica, estática e dinâmica da teoria geral da relação jurídica, utilizadas como instrumento de análise dos contratos administrativos, para lhes propiciar, segundo uma interpretação concertada (dita de cunho consensual), maior efi-ciência e eficácia em sua execução, principalmente ao se enfocar institutos a si implicados, como competência político-administrativa, causa e boa-fé.

E tais ópticas, em si, são permitidas mediante o emprego das teorias dos atos destacáveis (ou separáveis) e “todo indivisível” (ou da incorporação), devidamente adaptadas para a realidade brasileira com a finalidade de dis-secação do contrato administrativo (quer visto como ato administrativo lato sensu, quer como relação jurídica complexa), de sorte a se contemplar uma melhor exposição de seus requisitos (elementos e pressupostos) e eventuais vícios a eles atribuídos, ante a identificação de atos-componentes e suas interrelações, como também das suas cláusulas explícitas e implícitas, com suas respectivas correlações.

Essa preocupação analítico contratual pública ao se versar o tema da com-petência político administrativa, a seu turno, impõe observância e descrição do dito “processo de positivação”, o qual vai estabelecer as características pactuais administrativas tanto estáticas quanto dinâmicas, segundo a sua inerente causali-dade jurídica para galgar maior consensualidade e, de conseguinte, legitimidade e eficácia.

Dentro dessas visões distintas, em subsequência, é que se estabelece o elo entre causa e boa-fé com os elementos do contrato administrativo – visto, repita-se, ou como norma individual e concreta ( entendida enquanto ato administrativo lato sensu), ou como relação jurídica complexa –, quais sejam, motivação, con-teúdo e forma, extraindo-se, daí, as suas diretrizes interpretativas segundo um espírito de concertação.

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1 TEORIAS DOS ATOS DESTACÁVEIS (OU SEPARÁVEIS) E DO “TODO INDIVISÍVEL” (OU DA INCORPORAÇÃO): INSTRUMENTOS DE ANÁLISE CONTRATUAL ADMINISTRATIVA CONCERTADA

Trata-se, pois, de instrumentos de análise que não dispensam o viés pro-cedimental contratual público, quer visto como sequência de atos concatenados logicamente entre si (aspecto dinâmico), quer como conjunto de formalidades a compor o ato administrativo lato sensu (aspecto estático), dentro de um contexto de participação popular e controle social.

Assim, tem-se que a aplicação da chamada teoria dos atos destacáveis ou separáveis (segundo a visão enquanto relação jurídica complexa), de cons-trução pretoriana por parte do Conselho de Estado francês a partir de 1905 com o Acórdão “Martin”, e a verificação da teoria do “todo indivisível” ou da incorporação (consoante a visão de ato administrativo em sentido lato), con-forme noticiada por Alexandra Leitão1, malgrado no Direito Administrativo pátrio a função de ambas não seja a definição de competência contenciosa, mas apenas a constituição dos distintos contextos pactuais públicos, facilita, sobremaneira, a identificação e classificação dos seus elementos, eventuais vícios e respectivas consequências.

As invalidades do contrato administrativo e de seus respectivos efeitos jurídicos, considerando-se este enquanto ou uma relação jurídica complexa, ou um corpo uno, estanque e estático, vale ressaltar que devem ser analisados a partir dos atos administrativos que o antecedem (fase pré-negocial), compõem e surgem ao longo de sua execução até o exaurimento e depois (fases de desenvolvimento e pós-negocial), pois os vícios de tais precedentes, componentes e executórios, irradiam consequências para o todo (e sua relação jurídica complexa subjacente), no mais das vezes, de maneira distinta da que se verificados, se considerados isoladamente, ou seja, com foco isolador das cláusulas explícitas e implícitas em que buscam supedâneo, fora de um contexto sistêmico-conformador.

Assim, é para o emprego de tal método crítico microscópico e macroscópico das avenças públicas e seus respectivos vícios, que se lança mão, respectivamente, das teorias dos atos destacáveis2 e da incorporação, enquanto instrumental hauri-do do Direito europeu, com as necessárias adaptações e contemporizações para o Direito pátrio, seguindo-se uma função não mais de identificação de competência jurisdicional, mas de identificação de atos-componentes e suas interrelações nos ajustes públicos, como também das cláusulas contratuais públicas explícitas e implícitas, com suas respectivas correlações.

Com efeito, a teoria dos atos separáveis foi criada com o fito de estabelecer critérios, objetivos para a fixação da competência jurisdicional na solução de questões relacionadas com as avenças em que o Estado fosse parte, quando de impugnações contenciosas autônomas3.

Alexandra Leitão explica que existem quatro principais questões impli-cadas com a teoria dos atos destacáveis, quais sejam, a noção que se deve ter

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deles, sua identificação nas fases de formação e execução dos ajustes com a Administração Pública, suas causas de invalidade e as suas respectivas conse-quências sobre tais avenças4, sendo todas aplicáveis ao Direito pátrio com as ressalvas acima referidas.

Essa autora ensina também que existem dois tipos de atos destacáveis, quais sejam, os praticados no âmago do procedimento pré-contratual e aqueles realizados no seio da execução do contrato, porém esses últimos podem assumir a configuração de “atos administrativos de segundo grau ou secundários” (na denominação dada por Rogério Soares), isto é, quando se referirem ao próprio contrato, alterando alguma das suas cláusulas5.

Postas tais lições que se encampam no presente estudo, tem-se que tal teoria dos atos destacáveis é uma valiosa ferramenta de estudo dos contratos administrativos pátrios, segundo a sua óptica microscópica na relação jurídica, fruto de uma operação complexa, segundo a acepção de Charles Hubert6.

Em contrapartida, quando a visão que se for empregar do contrato ad-ministrativo for a macroscópica de um ato administrativo em sentido amplo, estático e fora da sua dinâmica processual, ou seja, enquanto seu mero produto, uma totalidade unidimensional, a teoria a se aplicar para a observação de suas cláusulas terá de ser a da incorporação.

O emprego de tal teoria permite, assim, que o contrato administrativo seja havido e tratado em um grau maior de abstração, como uma totalidade, com a correlata macroidentificação dos vícios próprios desse âmbito, adquirindo, por isso, o regime jurídico de ato administrativo segundo o arquétipo de elementos e pressupostos, quer de validade, quer de existência7.

Nesse perfil estático do pactuar estatal advindo da utilização desta teoria do “todo indivisível”, a análise das suas invalidades tidas, assim, no âmbito do organismo constituído, ganha extrema facilitação e precisão, maxime com o vín-culo sendo visto como expressão da ideia de cooperação, de parceria, ou seja, de Administração concertada8 à luz do primado da boa-fé objetiva.

Nessa esteira, a teoria da incorporação serve para realçar a autonomia do cunho cooperativo havido no vínculo contratual público, delimitando seu sen-tido próprio e hodierno, mediante o princípio da boa-fé objetiva administrativa, enquanto macropressuposto de sua validade na sobranceira relação jurídico--administrativa9, com função independente da sorte dos atos-componentes, ou seja, independentemente da função processual específica de cada um deles10.

Dessa forma, postas as ponderações supra, têm-se tais teorias enquanto valiosos instrumentais de racionalização do estudo do contrato administrativo em seu contexto concertado, ou seja, pressupondo uma efetiva participação popular e controle social, inclusive para a perscrutação das suas competências político-administrativas, causa e boa-fé sob suas distintas concepções, consoante, a seguir, verifica-se.

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Contrato Administrativo Concertado, Causa e Boa-Fé: maior eficiênciae eficácia à luz das teorias dos atos separáveis e da incorporação

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2 COMPETÊNCIA POLÍTICO-ADMINISTRATIVA

A doutrina de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho dá conta de que o processo de formação da chamada “vontade administrativa” se inicia como político e, nas cartas constitucionais, delas haurindo-se não apenas uma plani-ficação, programação e projeção fundamental de ação quanto aos direitos que encartam nas estruturas e sistemas que dispõem (o que se tem consubstanciado nas políticas públicas), mas as verdadeiras realidades organizacionais e os insti-tutos jurídico-funcionais positivados, cuja dinamicidade permite movimentos que correspondem aos tipos de atividade administrativa11.

A Constituição, entendida como carta política por excelência, é onde se estabelecem as políticas do País para a ação estatal hodierna, concertada12, ou seja, é onde as mais variadas forças políticas se compõem para estabelecer o vetor diretivo da nação.

Os “fatores reais do poder” é que regem a nação, na dicção de Ferdinand Lassale, e cujo somatório, ao adquirir a expressão escrita de uma Constituição jurídica, além de consubstanciarem a sua essência, ganham foros de verdadeiras instituições jurídicas13. É nesse contexto que as competências político-adminis-trativas se traduzem nos planos, programas e projetos sociais hauridos na, ou a partir da Constituição.

Ao falar-se em competência político-administrativa, fale-se de autonomia que, a seu turno, pressupõe receitas para sua implementação. Em outras palavras, só é autônomo quem tem dinheiro para fazer o que quer ou, melhor dizendo, é autônomo o ente político que possuir receitas para desempenho de sua atividade financeira em atendimento e implantação das políticas públicas juridicamente a si postas como de observância obrigatória.

E, para tanto, é preciso se ter um planejamento político, mas de conteúdo financeiro, dos recursos materiais da Administração direta e indireta, o qual se traduz, na lição de Eduardo Marcial Ferreira Jardim, no Orçamento Público14.

3 PROCESSO DE POSITIVAÇÃO E A TEORIA DA CAUSA

Ante essa realidade em que se inserem as competências político-admi-nistrativas, em seu processo de positivação15, que parte do grau mais genérico das políticas públicas encartadas respectivamente no PPA - Plano Plurianual (quadrienal), na LDO - Lei de Diretrizes Orçamentárias e na LOA - Lei Orça-mentária Anual (ânuas), passando pelos Planos Diretores e Planos de Metas em âmbitos Municipais, e chegando ao seu maior grau de concreção por meio dos atos e contratos administrativos (estes, há de se guardar na retentiva, havidos também enquanto atos administrativos lato sensu), a teoria da causa tem sua aplicação como sendo de suma relevância a interligar todas essas fases pelas quais caminham (as competências político-administrativas) obrigatoriamente, dando nitidez ao seu fio condutor interpretativo16. Cumpre verificar, assim, que

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as políticas públicas devem ser examinadas, sob o ponto de vista jurídico, no processo, na dinâmica dos planejamentos sociais estratégicos de governo, os quais, devidamente formalizados (v. g., na Lei quadrienal que institui o Plano Pluria-nual), englobam os programas sociais (havidos, e. g., na Lei anual de Diretrizes Orçamentárias) em que se inserem os projetos de ação estatal concertada, cujas parcerias público-privadas se encontram como um bom exemplo (com previsão na Lei de Orçamento Anual). Isso significa dizer que, ao se falar de projetos de parcerias público-privadas, deve-se manter na retentiva também sua conceituação de forma interligada com os conceitos de programas e planos sociais17, à luz do conceito de causa aplicado ao Direito Administrativo.

E sobre a dinâmica desse processo de positivação haurido a partir das políticas públicas, sua observação, partindo do maior grau de abstração até o maior de concretização nos atos e contratos administrativos, somente é pos-sível com o exercício das correspectivas competências político-administrativas próprias de cada fase processual, em uma contínua relação de causalidade (também dita de imputação), identificando-as e interligando-as no fluxograma do iter percorrido.

Imperioso é observar que, apesar de todo esse complexo processo de posi-tivação em busca da eficiência e da eficácia social, ou seja, da verificação prática e efetiva dos fins colimados na norma jurídica, isso, em si, sempre se mostra uma possibilidade, uma potencialidade, que somente interessa ao campo da zetética jurídica empírica pura, especificamente, a Sociologia Jurídica18.

4 CONEXIDADE PROCESSUAL, CAUSALIDADE E RELAÇÃO JURÍDICAS

A essa altura, afigura-se interessante, sob o prisma microscópico e estático da teoria geral da relação jurídica19, enfatizar-se e explicitar-se a importância do ingresso da relação de direito substantivo no interior da relação adjetiva e do seu papel jurídico-dogmático, bem como da relação propriamente lógico-formal entre ambas (conexidade instrumental de cunho processual).

Com efeito, é de máxima importância observar que o tom jurídico dado normativamente à relação entre os sujeitos de direito (entes físicos ou coletivos suscetíveis de direitos subjetivos e deveres jurídicos), não é devido graças ao operador deôntico que a modaliza, permitindo, obrigando ou proibindo a conduta prescritiva, mas pelo “functor-de-functor”, na terminologia de Georges Kalinowshi20, que se abate sobre a relação de implicação da hipótese com a tese, juridicizando-a de sorte que seus termos sejam valorativamente válidos.

A imputação kelseniana, então, é a causalidade jurídica, relação de causa/efeito estabelecida pelo pressuposto e a consequência, ligado um ao outro por nexo lógico de implicação, projetado no mundo social dos fatos21. Importante é salientar que essa causalidade é formal e nunca cronológica; esta qualidade lhe é estranha.

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Assim, a fenomenologia da incidência se verifica no instante em que a sub-sunção acontecer, ou seja, o fato se adequar totalmente à norma22. Explicitando, no âmbito tributário, diz-se, com empréstimo das palavras precisas de Paulo de Barros Carvalho, que dada a subsunção, quando o fato jurídico tributário guar-dar absoluta identidade com o conceito desenhado normativamente na hipótese tributária, o nexo implicacional deôntico instala, automática e infalivelmente, inclusive como também leciona Alfredo Augusto Becker23, ...o laço abstrato pelo qual o sujeito ativo torna-se titular do direito subjetivo público de exigir a prestação, ao passo que o sujeito passivo ficará na contingência de cumpri-la24.

Tal laço abstrato, por si só, não constitui a consequência tributária com a necessária concretude de suporte físico, pois esta é apenas galgada sob um prisma dinâmico, com uma maior especificação e intensidade obtidas ao longo do fluxo de causalidade, denominado por Paulo de Barros Carvalho e Eurico Marcos Diniz de Santi como o acima versado processo de positivação25, ou processo de concreção do crédito tributário no dizer de Ricardo Lobo Torres26.

Seu contraplano, porém, no mundo fático, é o que se denomina de relação jurídica. Relação jurídica, então, é a projeção no mundo social dos fatos desse vínculo abstrato entre os sujeitos de direito que acima se descreveu27.

Assim, no fluxograma do iter percorrido pela causalidade jurídica em direção da concreção das relações jurídicas por si estabelecidas, é que se veri-fica instalada a relação de conexidade instrumental do processo em que essa circunstância se desenvolve.

5 CAUSA E BOA-FÉ COMO VETORES INTERPRETATIVOS NOS CON-TRATOS ADMINISTRATIVOS

Por isso, a teoria da causa, dentro dessa perspectiva do processo de posi-tivação das políticas públicas por meio do exercício das competências político--administrativas atribuídas aos diversos atores sociais que as detêm, sob um prisma macroscópico, introduz um vetor, uma diretriz interpretativa concertada, de cooperação e colaboração ao contrato administrativo, enquanto negócio jurídi-co, pelo viés funcional do seu porquê (motivação), segundo sua óptica dinâmica, ativa, ao longo de todo o processo e em suas diferentes fases, diferençando-se, desse modo, da teoria da boa-fé objetiva administrativa que, embora tenha sua dinâmica processual de aplicação vetorial-interpretativa em torno da mesma ideia geral e macroscópica de cooperação e colaboração, verifica-se vocacionada às próprias ações estruturais, aos próprios atos de concretização que culminam no contrato administrativo em si, pois relacionada aos seus outros elementos, aos seus quê (conteúdo) e como (forma)28.

Nesse sentido, a causa (dita, ainda, razão por Emílio Betti) do contrato administrativo, também comportando uma visão estática, orgânica, corpó-rea (de ato administrativo lato sensu), é igualmente vista como o seu porquê (motivação), embora aí identificada com seu núcleo funcional, traduzido na

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síntese dos efeitos jurídicos concretizadores de políticas públicas (as quais encartam os interesses públicos de um determinado setor da vida pública), ou seja, com sua função socioeconômica29, a consubstanciar-se em vetor hermenêutico incrementado pela coincidência do princípio da eficiência (faceta do primado da boa administração pública30), previsto no art. 37 “caput”, Constituição Federal de 1988, e no art. 41 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, também dita de Nice 31, a nortear toda a sua interpretação em torno da ideia de parceria, cooperação, de consenso, de colaboração entre os contraentes, igualmente afirmada pela boa-fé objetiva administrativa, enquanto outro vetor interpretativo dos ajustes públicos, que sob esse prisma orgânico, estático, ligar-se-á aos seus outros elementos, quais sejam, a sua forma e o seu conteúdo32, em expressão da moralidade administrativa em maior grau de concreção33.

Com isso, o estudo da “vontade” administrativa nos chamados contratos administrativos ou de direito público34, inclusive quanto ao seu grau de discricio-nariedade à luz do primado da eficiência35 (inserto que é no da boa administração pública), deve ser atrelado às modernas concepções de causa36(enquanto função socioeconômica negocial) e processo, permitindo uma crítica desde as políticas públicas que lhe antecedem até depois do exaurimento da avença, prosseguindo, e. g., com os deveres secundários de fidelidade, sigilo (confidencialidade) ou au-xílio instituídos em decorrência da boa-fé objetiva que lhe envolve, implicando perscrutação de acordo com as competências político-administrativas vigentes e seu respectivo grau de vinculação à avença pública enfocada, de sorte a, com isso, também se ter as formas mais consentâneas de controle institucional e social, à luz da cooperação, do consenso que hoje permeia as ações estatais nas relações com os particulares37.

6 CONCLUSÕES

A teoria dos atos destacáveis é uma valiosa ferramenta de estudo dos contratos administrativos pátrios, segundo a sua óptica microscópica na relação jurídica, fruto de uma operação complexa, a permitir a verificação interna dos seus atos-componentes; a sua vez, a teoria da incorporação serve para realçar a autonomia do cunho cooperativo havido no vínculo contratual público, delimitando seu sentido próprio e hodierno ao tratá-lo em um grau maior de abstração, como uma totalidade, adquirindo, por isso, o regime jurídico de ato administrativo (em sentido amplo).

Tais teorias, assim, revelam-se enquanto valiosos instrumentais de racio-nalização do estudo do contrato administrativo em seu contexto concertado, ou seja, pressupondo uma efetiva e eficiente participação popular e controle social, inclusive para a perscrutação das suas competência político-administrativas, causa e boa-fé (objetiva administrativa) sob suas distintas concepções.

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Quanto às competências político-administrativas, estas se traduzem em políticas públicas, vistas como metas de governo devidamente positivadas, fruto de um planejamento participativo (concertado) por excelência encontrado, em grau de maior abstração do Direito pátrio, no PPA - Plano Plurianual (quadrienal), na LDO - Lei de Diretrizes Orçamentárias e na LOA - Lei Orçamentária Anual (ânuas), sendo neles circumpostas em planos, programas e projetos sociais de origem, por óbvio, constitucional.

A necessária concreção, de forma eficiente e eficaz, em contratos admi-nistrativos dessas competências político-administrativas, expressadas em políticas públicas governamentais, dá-se por intermédio do dito processo de positivação, em uma conexidade instrumental com a contínua relação de causalidade (também dita de imputação), em fluxo cujo contraplano fático-social corresponde ao das relações jurídicas, in casu, administrativas.

Causa e boa-fé, nesse cenário dos ajustes públicos sob prismas microscópico e macroscópico, estático e dinâmico, despontam como seus vetores interpretati-vos concertados, não apenas no sentido participativo da intrínseca cooperação e colaboração entre as partes envolvidas, mas também imbricados com seus elementos, os quais são, motivação, conteúdo e forma, buscando estabelecer os aspectos pactuais públicos funcionais (socioeconômicos) e estruturais, inclusive em expressão mais concreta de moralidade administrativa.

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1 LEITÃO, Alexandra. A proteção judicial dos terceiros nos contratos da Administração Pública. Coimbra: Almedina, 2002, p. 253-254.

2 Na Espanha, tal teoria recebe o nome de “atos separáveis”.3 Alexandra Leitão, com a proficiência que lhe é peculiar, assenta, ao comentar sobre a evolução da proce-

dimentalização da atuação administrativa contratual que, em última etapa, ...consagrou-se a destacabilidade dos actos praticados quer na fase da formação, quer na fase da execução dos contratos para efeitos da sua impugnação contenciosa autónoma (teoria dos actos destacáveis) (LEITÃO, op. cit., p. 243).

4 Ibidem, p. 253.5 Ibidem, p. 257.6 KALINOWSKI, Georges. Études de logique déontique – I. Paris: Librairie générale de droit et de jurispru-

dence, 1972, p. 65 e ss.7 Nessa mesma trilha são os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, ao estabelecer a aplicabili-

dade plena da teoria da invalidação dos atos administrativos aos contratos administrativos, por si havidos como ato bilateral, ou seja, em sentido lato. Com efeito, ao elencar como uma das hipóteses de extinção destas avenças públicas, a da invalidade de sua constituição, assevera que, ...Neste caso, o princípio da legalidade imporá sua invalidação (anulação ou constituição de nulidade), se não couber convalidação – analogamente ao que ocorreria com os casos de convalidação de ato unilateral... A invalidação do ato, é bem de ver – e tal como sucederia com os atos unilaterais –, terá que ser precedida de processo regular e ampla defesa... De resto, menos não se admitiria, pois, como visto, a rescisão unilateral demanda motivação e ampla defesa (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, item “33”, p. 635-636).

8 Diogo Freitas do Amaral, por ocasião da análise do contrato administrativo como dentre um dos modos de exercício do poder administrativo, explica que, nessa hipótese, ...a Administração não faz normas gerais e abstrac-tas, nem toma decisões concretas de modo unilateral: actua em colaboração com os particulares, na base de um contrato (AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de direito administrativo. Coimbra: Almedina, 2008, v. II, p. 148-149). E, enaltecendo esse entendimento, há muito, o saudoso Clóvis V. do Couto e Silva já ensinava que A inovação, que permitiu tratar a relação jurídica como uma totalidade, realmente orgânica, veio do conceito do vínculo como uma ordem de cooperação, formadora de uma unidade que não se esgota na soma dos elementos que a compõem. Dentro dessa ordem de cooperação, credor e devedor não ocupam mais posições antagônicas, dialéticas e polêmicas. Transformando o status em que se encontravam, tradicionalmente, devedor e credor, abriu-se espaço ao tratamento da relação obrigacional como um todo SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 19).

9 Em outra oportunidade já se assentou sobre esse cunho cooperativo da relação jurídica contratual ad-ministrativa, segundo a qual, De conformidade a essa realidade social mundial dos dias de hoje, a forma clássica de mera contratação dos particulares para a realização de obras e prestação de serviços públicos, dá lugar, gradativa-mente, às já conhecidas concessões e privatizações, bem como às mais diversas formas flexíveis, entendidas enquanto fórmulas jurídicas mais hodiernas de cooperação na operacionalização do atuar estatal, de colaboração financeira e administrativa, a serem levadas a efeito por parte do setor privado, a população, mediante os chamados instrumentos setoriais de planejamento participativo e de controle social, ao auxiliar a escolha, programação, avaliação, execução e fiscalização institucionais das políticas públicas envolvidas, pois, se de um lado o Poder Público não dá mais conta de tanta demanda em proporção superior aos seus recursos, por outro, a iniciativa privada vê a possibilidade de uma maior participação na “produção” da cidade, com uma consequente maior lucratividade (CALDAS, Roberto Correia da Silva Gomes. Parcerias público-privadas e suas garantias inovadoras nos contratos administrativos e concessões de serviços públicos. Belo Horizonte : Ed. Fórum, 2011, p. 61-64).

10 A respeito, têm-se as seguintes lições também de Clóvis V. do Couto e Silva aplicáveis aos contratos administrativos: Sob o ângulo da totalidade, o vínculo passa a ter o sentido próprio, diverso do que assumiria se se tratasse de pura soma de suas partes, de um compósito de direitos, deveres e pretensões, obrigações, ações e exceções. Se o conjunto não fosse algo de “orgânico”, diverso dos elementos ou das partes que o formam, o desaparecimento de um desses direitos ou deveres, embora pudesse não modificar o sentido do vínculo, de algum modo alteraria a sua estrutura. Importa, no entanto, contrastar que, mesmo adimplido o dever principal, ainda assim pode a relação jurídica perdurar como fundamento da aquisição (dever de garantia), ou em razão de outro dever secundário independente (SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 20).

11 O processo de formação da vontade começa como político e nas cartas constitucionais. Recolhe-se das Constituições, não apenas uma programática fundamental quanto a direitos nela consagrados, nas realidades de estrutura ou de sistemas, mas verdades de organização e mecanismos funcionais. Por força da nação, as Cartas não se fazem estáticas, sim dinâmicas, permitindo movimentos que correspondem aos tipos de atividade administrativa. A administração, compreendida como a atividade total do Estado, atividade que deve corresponder à satisfação dos fins estatais, numa autêntica noção que é positiva, determina-se pelo fato-função que leva ao entendimento do que seja poder, órgãos e

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pessoas. Evidente, no entanto, que as Constituições não precisam vir escritas, para que haja poderes, órgãos e pessoas, tornando real a vida do Estado, em virtude da existência da nação (FRANCO SOBRINHO, Manoel de Olivei-ra. Da competência administrativa: origens constitucionais e fundamentos jurídicos. São Paulo: Editora Resenha Universitária, 1977, p. 89).

12 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, n. 231, jan./mar. 2003, p. 146.

13 LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 17-18.14 JARDIM, Eduardo Marcial Ferreira. Manual de direito financeiro e tributário. 6. ed. São Paulo: Saraiva,

2003, p. 64.15 Segundo o qual as normas jurídicas, já devidamente unidas ao ordenamento com grande grau de gene-

ralização e abstração, impõem a verificação de regras intercalares que conduzem as normas individuais e concretas em que se inserem os fatos (jurídicos, isto é, tal qual previstos no Direito legislado), dos quais, ao seu turno, decorrem as relações jurídicas em função da eficácia (jurídica) existente.

16 Maria Paula Dallari Bucci, em sua conceituação de política pública, introduz a ideia de processo, ao conceituá-la como ...o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e poli-ticamente determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar à realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, à reserva de meios necessários à sua consecução e ao intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados [“BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). O conceito de política pública em direito”. In: GONÇALVES, Alcindo et alii. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). São Paulo : Saraiva, 2006, p. 39].

17 No estudo em tela, tomam-se como conceitos de “plano”, “programa” e “projeto” os externados nas lições de Ernesto Cohen e Rolando Franco, quando versando a respeito de política social global (COHEN, Ernesto; FRANCO, Rolando. Avaliação de projetos sociais. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 85-86).

18 FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 1994, p. 46.19 Lourival Vilanova, estabelecendo que a relação jurídica é um conceito fundamental e, de conseguinte, o que

se faz diante dele é apenas a sua descrição, ensina que Descreve-se a relação jurídica, indicando seus termos – os sujeitos-de-direito ativo e passivo – e o fator relacionante (relator “ter a pretensão de” e o seu simétrico, “ter o dever de”). Demais, a relação jurídica contém um dado-de-fato, sobre o qual tem incidência norma de direito. E, ainda, aqueles relatores (termos com função de relacionar), reciprocamente simétricos, que correlatam condutas e fatos relevantes para a conduta: enchem-se de objeto. Seria restringir o conceito de relação jurídica só tomar as posições dos sujeitos-de-direito como titulares de direitos subjetivos e de deveres jurídicos. O que não falta numa relação jurídica em sentido amplo, ou em sentido estrito, é de um lado um portador de pretensão (substantiva/processual); no outro pólo da relação, o portador do dever de prestar. Pretensão e prestação, em sentido amplo, são termos correlatos (correlatos: em recíproca relação): faculdade de exigir, dever genérico ou específico de atender (VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 2. ed. Saraiva: São Paulo, 1989, p. 159).

20 Segundo o autor, o “functor-de-functor”, ou no original em francês, “foncteur fonctoriel”, seria ...a expressão que, unida a um functor proposicional – seu argumento – cria um functor proposicional composto (KALINOWSKI, op. cit., p. 27).

21 Como explica o mestre Lourival Vilanova, o fato torna-se fato jurídico, e dele provêm os efeitos. Nascer é fato biológico. Como corresponde ao esquema delineado pela hipótese fática, em nível da norma, faz-se fato jurídico. O mero nexo causal natural reescreve-se: “(se “A”, então “B”) assim é”; o nexo normativo reescreve-se: “(se “A”, então “B”) assim deve ser”. Num e noutro caso, temos relações-de-implicação. A diferença reside: ali, a implicação é; aqui a implicação deve ser (VILANOVA, op. cit., p. 83).

22 Paulo de Barros Carvalho, reconsiderando seu entendimento de que a subsunção somente se operaria entre iguais, hodiernamente sustenta que, como operação lógica que é, não se verifica apenas entre iguais, mas entre linguagens de níveis diferentes... o certo é falarmos em subsunção do fato à norma, pois ambos configuram linguagens. E toda vez que isso acontece, com a consequente efusão de efeitos jurídicos típicos, estamos diante da própria essência da fenomenologia do direito (CARVALHO, op. cit., p. 245). Explica, outrossim, que a chamada “incidência jurídica” se reduz, pelo prisma lógico, a duas operações formais: a primeira, de subsunção ou de inclusão de classes, em que se reconhece que uma ocorrência concreta, localizada num determinado ponto do espaço social e numa específica unidade de tempo, inclui-se na classe dos fatos previstos no suposto da norma geral e abstrata; outra, a segunda, de implicação, porquanto a fórmula normativa prescreve que o antecedente implica a tese, vale dizer,

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o fato concreto, ocorrido hic et nunc, faz surgir uma relação jurídica também determinada, entre dois ou mais sujeitos de direito (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 9).

23 BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Campinas: Servanda Editora, 2008, p. 309-311/ 349.24 CARVALHO, 2004, p. 246.25 Para uma melhor e mais aprofundada compreensão doutrinária do pensamento ora exposto, leem-se as

lições deste estudo em tópico específico (Capítulo III, item “3”), como também as de Paulo de Barros Carvalho (CARVALHO, 1998, p. 54-57, 80-96; CARVALHO, 2000, p. 34/93) e de Eurico Marcos Diniz de Santi (SANTI, op. cit., p. 211-213).

26 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 233.

27 Nos dizeres de Paulo de Barros Carvalho, Aproveita ao bom entendimento desta matéria utilizar o esquema das proporções aritméticas.

Ht Ct(1) ___ = ___ Fjt Rjt

Enunciando: a hipótese tributária está para o fato jurídico tributário assim como a consequência tributária está para a relação jurídica tributária. Os antecedentes da proporção figuram no mesmo plano - o plano normativo; por outro lado, os consequentes da proporção aritmética - fato jurídico e relação jurídica tributária também se acham no mesmo plano - o plano do mundo material dos objetos físicos e dos seres humanos (CARVALHO, 2004, p. 247-248).

28 Emilio Betti, ao versar o negócio jurídico do qual o contrato administrativo é uma espécie, explica que Na análise dos elementos que o constituem, melhor dizendo, na análise dos aspectos sob os quais é considerado segundo esta definição, o negócio dá lugar a três perguntas distintas: a) como é (forma); b) o que é (conteúdo); c) por que é (causa). As primeiras duas perguntas referem-se à estrutura (que é forma e conteúdo); a terceira à função (BETTI, op. cit., p. 88). Em complemento, Clóvis V. do Couto e Silva afirma que O princípio da boa-fé contribui para determinar o que e o como da prestação e, ao relacionar ambos os figurantes do vínculo, fixa, também, os limites da prestação (SILVA, op. cit., p. 34), e Ana Rita de Figueiredo Nery assevera que ...pode-se afirmar que a causa constitui um elemento valorativo funcional... Quando se abre espaço à priorização da vertente funcional do contrato, a causa passa a ser elemento chave, tanto para munir outros institutos de um paradigma interpretativo... (...) A vocação constitucional da atividade administrativa exige essa vinculação entre todos os momentos contratuais, ou seja, entre a causa do contrato e sua execução (NERY, Ana Rita de Figueiredo. A causa do contrato administrativo: análise do conteúdo contratual como parâmetro de aplicação do princípio da eficiência. Rio de Janeiro: Lumen Júris Editora, 2011, p. 34/61).

29 Emílio Betti é claro ao identificar a causa do negócio jurídico como função. Em suas palavras, ao definir negócio jurídico como ...o ato pelo qual o indivíduo regula, por si, os seus interesses, nas relações com outros (ato de autonomia privada)..., estabelece que a esse ato ...o direito liga os efeitos mais conformes à função econômico-social e lhe caracteriza o tipo (típica neste sentido)... Mais à frente, reitera que ...qualquer tipo de negócio serve uma função econômico-social característica dele (típica, neste sentido) a qual, ao mesmo tempo que é, normalmente, tida em conta por quem o realiza (e desse modo constitui a sua intenção prática típica), é tomada em consideração pelo direito, qualquer que seja a razão justificativa da garantia e a sanção jurídica, e seja qual for o critério diretivo para configuração de efeitos ordenativos conforme ela. Dessa função ou razão que se qualifica como causa do negócio jurídico, trataremos... (BETTI, op. cit., p. 88-91). A corroborar esses ensinamentos, tem-se que ...Grosso modo “a causa do contrato” é expressão atribuída a um núcleo funcional existente em toda e qualquer avença, seja esse núcleo denominado síntese dos efeitos jurídicos ou função econômico-social. Ela se faz presente com todo o seu conteúdo dogmático, podendo ser percebida com inteireza em qualquer negócio jurídico, de natureza pública ou privada (NERY, op. cit., p. 34).

30 A respeito, vide: MELLO, 2011, op. cit., item “26”, p. 122-123.31 Com efeito, sua redação, proclamada em 7 (sete) de dezembro de 2000, restou assim vazada em seus itens

“1” a “4”: “1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e pelos órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável. 2. Esse direito compreende, nomeadamente: . o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravel-mente, . o direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito dos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial, . a obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões. 3. Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da Comunidade, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respectivas funções, de acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados-Membros. 4. Todas as pessoas têm a possibilidade de se dirigir às instituições da União numa das línguas oficiais dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua” (sic).

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Roberto Correia da Silva Gomes Caldas

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32 Calha frisar que, por se falar em causa, para Aristóteles, existem quatro causas implicadas à existência de algo: a causa material (aquilo do qual é feita alguma coisa: a argila, e. g.); a causa formal (a coisa em si: como um vaso feito de argila); a causa eficiente (aquilo que dá origem ao processo em que a coisa surge: como as mãos de quem trabalha, molda a argila); e a causa final (aquilo para o qual a coisa é feita, sua finalida-de ou destinação: mencione-se o vaso de argila destinar-se a portar arranjos para enfeitar um ambiente) (ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. Liv. I, p. 2-67). Assim, dentro dessa significação aristotélica aplicada aos contratos administrativos, a causa, tal qual ora acima versada, corresponderia às causas eficiente e final, enquanto a boa-fé, à luz do que acima também se expôs, diria respeito às causas material e formal.

33 Nesse sentido, inclusive, já se pronuncia a jurisprudência pátria, consoante se extrai do seguinte excerto de seu paradigma: ...a Administração Pública não pode se apartar de seu sério compromisso com a ‘’moralidade administrativa”, que é padrão constitucional de sentido ético, que não pede, mas impõe, a adoção de critérios pauta-dos na mais séria lealdade e probidade. Entre as razões recursais, foi invocado o princípio da “boa-fé objetiva”, que é instrumento do Direito Civil, mas que guarda grande simetria com o princípio da moralidade, marco orientador do Direito Público. A extrema proximidade entre os institutos do Direito favorece a compreensão e o entendimento, na medida em que são ordens vetorizadas ou impulsionadas por um conteúdo que ultrapassa o mero sentido formal da LEI, atingindo um compromisso com o sentido de justiça, que ingressa no campo jurídico, não só como padrão, que confere o melhor sentido às leis, mas como exigência que direciona a gestão pública (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relator: Venício Salles. Voto n. 5.394, Apelação Cível com Revisão nº 0109997-40.2008.8.26.0000 (815.421-5/7-00), São Paulo; 12ª Câmara Direito Público; v. u.; j. 15/10/2008; DOE: 30/10/08; Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao =3312445&cdForo=0; Acesso em : 17/7/2014). E na doutrina, extrai-se de Celso Antônio Bandeira de Mello que A Administração Pública está sujeita a um dever de probidade – no que se inclui a lealdade perante os administrados. O dever de probidade administrativa não é apenas imposto pela Ética, mas está consagrado pelo texto constitucional, nos arts. 37 e 82, VI. Bem por isso, a Administração está jungida a se comportar de modo leal com os administrados. Em quaisquer de seus atos, o Estado – tanto mais porque cumpre a função de ordenador da vida social – tem de emergir como interlocutor sério, veraz, responsável, leal e obrigado aos ditames da boa-fé. De seu turno, os administrados podem agir fiados na seriedade, responsabilidade, lealdade e boa-fé do Poder Público, maiormente porque a situação dos particulares é, em larguíssima medida, condicionada por decisões estatais, ora genéricas, ora provenientes de atos administrativos concretos (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A estabilidade dos atos administrativos. Revista trimestral de direito público. São Paulo: Malheiros Editores, n. 48, out./dez. de 2004, pp. 77-83, p. 81).

34 Havidos, v. g., como de prestação de serviços e concessões de serviços públicos, precedidas ou não de obras públicas, inclusive sob a roupagem das parcerias público-privadas.

35 Segundo o qual, dentre as várias opções legais possíveis, deve-se sempre escolher a melhor delas.36 ...A causa traduz a essência do conteúdo contratual; é a manifestação de vontade e, consequentemente, o conteúdo

que vinculará as partes umas às outras, e todas elas ao ordenamento jurídico (NERY, op. cit., p. 39). 37 A vontade livre, aquela que significa exercício da liberdade, tem um canal de expressão básico: o indivíduo. A vontade

funcional é canalizada em um processo, no qual o agente é apenas um dos elementos. Não houvesse processo para a formação da vontade funcional e ela seria idêntica à da vontade livre: centrada no agente (SUNDFELD, Carlos Ari. A importância do procedimento administrativo. Revista de direito público. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 84, out./dez. 1987, p. 67).

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Contrato Administrativo Concertado, Causa e Boa-Fé: maior eficiênciae eficácia à luz das teorias dos atos separáveis e da incorporação

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CONCERTED ADMINISTRATIVE CONTRACT, CAUSE AND GOOD WILL: MORE EFFICIENCY AND EFFECTIVENESS WITHIN THE THEORY OF DETACHABLE ACTS AND OF ITS WHOLE INDIVISIBILITY

ABSTRACT

This article aims to analyze the administrative contract from the theories of “atos destacáveis” (or “separáveis”) and “todo indivisível” (or “da incorporação”), under microscopic and macroscopic, estatic and dinamic views of the general theory of legal relationships supported by contract concertation design to set the conditions for a efficient, effective and operative administrative relationship anchored on social control and participation, as a result of the democratic exercise that should permeate any legal expression. In this sense, it seeks to investigate the instrumental interconnection between political and administrative competence, cause and good faith in objective sense as the foundation for understanding the notion of administrative procedure and also to lean up on the interrelationship between contract, relationship and process at the administrative level. The observance and description of the “processo de positivação” to make fundamental to revisit the public policies in their different degrees of abstraction and concreteness under a covenant perspective, understood as the dynamic character that should permeate each and every act emanating from intrinsically linked to public administration democratic state right, on a specific legal relationship. The definition and the relationship between cause and good faith with administrative contracts allows establishes them as their interpretative concerted vectors. It concludes that cause and good faith in this new interpretative direction of the covenantal relationship management adopt a collaborative nature, cooperative and directly linked to the social control and participation, overlapped with the administrative contracts elements such are, motion, content and form to establish its functional (socio-economic) and structural concerted aspects, including a more concrete expression of administrative morality.

Keywords: Covenantal relationship management. Efficient and effective. Public policies. Concertation, administrative contract. Social control and participation.

Submetido: 08 ago. 2015Aprovado: 20 ago. 2015

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gloBAl enVironmentAl constitutionAlism

Klaus Bosselmann*

1 The Rise of Global Constitutionalism. 2 The Constitutional Character of International Environmental Law. 3 Constitutionalizing Environmental Rights. 4 Sustainability as a Constitutional Principle. 5 Towards A Global Environmental Constitution? 6 Conclusion. References.

ABSTRACT

This article supports the perspective that environmental cons-titutionalism is a global and foundational subject. Considering the novelty and thin base of this only emerging field of inquiry, it aims for making some suggestions for formulating the purpose and scope of environmental constitutionalism in a global range. Moreover, considering that the very nature of environmental rights is more fundamental than classic human rights, the mind-set and methodology applied to the studies of constitutionalism all over the world must change its basis from anthropocentrism to an ecocentrism, by incorporating sustainability as a consti-tutional principle. In this way, the first steps towards a global environmental constitutionalism are being taken in the last few years. But the subject is still challenging.

Keywords: Global Environmental constitutionalism. Principle of sustainability. Ecocentrism.

1 THE RISE OF GLOBAL CONSTITUTIONALISM

Over the last decade there has been an outburst of literature on global cons-titutionalism. Written mostly by international lawyers (but less so environmental lawyers), this literature suggests a degree of harmonious development among the world’s national constitutions that could facilitate a constitutionalisation of inter-national law and governance.1 Broadly speaking, the thesis is that the increasing interdependence of nation states has created a certain “constitutionalisation of international organisations”2 and a degree of uniform constitutionalist principles such as human rights, state responsibility, and ius cogens or erga omnes norms. This implies a transnational way to think about institutional arrangements that traditionally have been conceived in a strictly national manner. Examples include the ‘rule of law’ and ‘separation of powers’, but also ‘civil society’ and possibly ‘democracy’ and ‘constitution’.

* Professor of Law, University of Auckland; Director, New Zealand Center for Environmental Law. E-mail: [email protected]

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Global Environmental Constitutionalism

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To this end, global constitutionalism can be described as a new way of thinking or ‘mindset’3 around international law and governance. Instead of viewing states as sole creators of international law and governance, the focus is on normative principles and institutional arrangements that are both, national and transnational in character. This makes it possible to see the relationship between international law and domestic law in less dichotomic and more correlated terms4 and develop new areas of study as, for example, international constitutional law5. Effectively, the conversation about constitutional ideas and principles shifts from the national to the comparative and from the international to the global. This kind of constitutional conversation is commonly, but not always6, referred to as global constitutionalism.

“Constitutionalism”7 itself is associated with the study of fundamental nor-ms and institutional arrangements through which political and legal decisions are made. Typically, they involve basic ideas related to the rule of law, justice, human rights and democracy and do not have an exclusive national identity. Although they are more institutionalized at national than at international level, they are in no way confined to states. Essentially, they are of global or transnational nature.8 This is the main reason why constitutionalism has a global dimension to it. It is the study of constitutional norms, policies and practices in and beyond the state.

We can, therefore, conceive global constitutionalism as the study and advocacy of constitutional ideas that present themselves at international and national levels. In other words, public international law is one area of research, domestic law another, and ideally international and comparative legal research inform each other.

An example of this approach is the study of human rights. They first appe-ared in national jurisdictions, particularly in the United States and France. Their origins, however, are in the intellectual culture of the 18th century Age of the Enlightenment which spread throughout Europe and the world and eventually led to the Universal Declaration of Human Rights, a document of international law. It would be conceptually flawed to study human rights in either a national or international context. Their very nature as unalienable fundamental rights (to which a person is inherently entitled simply because she or he is a human being) constitutes their universal character.

In the same vein, we can think of the environment as a universal concern. Arguably, the environment is even more fundamental than human rights as it represents the natural conditions of all life including human beings.

Both, the protection of human rights and the protection of the environ-ment are constitutionally relevant precisely because of their fundamental impor-tance. Environmental protection has constitutional status in most, although not all9, states. If we accept that the 21st century will be defined by its success or failure of protecting human rights and the environment10, then global environmental constitutionalism11, like global constitutionalism in general, becomes a matter

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of great urgency.

The remainder of this article identifies some of the building-blocks for defining purpose and scope of global environmental constitutionalism. These building blocks include the constitutional character of international environ-mental law (II.), environmental rights (III.), sustainability (IV.) and global environmental governance (V.).

2 THE CONSTITUTIONAL CHARACTER OF INTERNATIONAL ENVI-RONMENTAL LAW

Current international environmental law includes a plethora of global treaties, covenants and documents. From the creation of the United Nations in 1945 under the United Nations Charter to the UN Declaration on the Rights of Indigenous Peoples in 2007 or a new Climate Agreement expec-ted to be adopted in December 2015, numerous documents and associated institutions of governance have been developed in response to what today is perceived as the global ecological crisis. So does the system of international environmental law amount to what could be called an “international envi-ronmental constitution”12?

In his contribution to a book entitled Towards World Constitutionalism13, Alexandre Kiss explored the constitutional character of international environmen-tal law and concluded that an “environmental constitution” in the “usual sense of the term” cannot be deduced.14 There is neither a global instrument nor an independent global institution overarching the whole area and “even environ-mental protection is integrated into a vast complex: sustainable development”.15 He pointed out that a major issue in constitutionalising environmental law is the constantly changing degree of scientific knowledge requiring international environmental law to be sufficiently flexible and adaptable.16 Kiss considered the lack of a defined overall objective as the ultimate reason for the constititutional weakness and fragility of international environmental law.

Daniel Bodansky uses the differention between “thin” and “thick” to ex-plain that international environmental agreements and their asociated systems of governance can be seen as thin or weak forms of environmental constitutions.17 They may be constitutions in the thin sense because they establish ongoing (global) governance to address specific issues via the creation of institutions, the specification of rules that guide and constrain the institutions and the entrench-ment of those rules through amendment procedures. Constitutions in the thick sense would require institutions that function independently from states with a decision-making and norm-setting capacity. Typically, what happens is that a treaty will contain the required governance arrangement, describe the basic institutions and decision making procedures of the regime, but then the majority of norms and regulations created by that governing body will be captured in protocols, annexes or schedules, attached to the treaty which are easier to amend.18 In this

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way international environmental agreements do not constrain the institutional entities they create.

Bodansky rules out multilateral environmental agreements possessing global constitutional nature, describing them as “still very much state-driven”19 (such as those addressing climate change, ozone depletion, hazardous chemi-cals, or endangered species). Furthermore, states generally retain the right of exit, meaning they can withdraw from a treaty. The dominance of states is only rudimentally challenged by non-State actors with their limited role in standard setting and the compliance process.20

Nor does Bodansky consider that international environmental law as a whole constitutes a global constitution. While noting a number of characteristic features which distinguish it from classical international law, such as widespread use of the framework convention and protocol approach, rapid amendment procedures, a distinctive system of treaty bodies and non-compliance procedures, Bodansky asserts that these distinctive features of international environmental law “do not amount to a constitution in any meaningful sense of the term”.21 They do not establish secondary rules about how international environmental law is developed and enforced. To the contrary, the concept of a constitution is undermined by some prominent features of international environmental law, such as the use of politically-oriented non-compliance procedures. Instead of creating a cohesive system of unified law, “the distinctive mechanisms of international environmental law represent a toolbox that states can use when addressing a variety of new problems”.22

If treaties can, at best, be seen as constitutive elements, perhaps a more promising candidate to fill the role of an international environmental cons-titution is the body of general principles of international environmental law. To this end, Bodansky considers the duty to prevent transboundary harm, the polluter pays principle, the precautionary principle, the principle of common but differentiated responsibility, and the principle of sustainable development to conclude that these general principles do not represent a core value system for the international community, or if they do it is a weak and vague system. The reason is that there are too many meanings and uses of the principles for them to form a coherent and distinct concept. Associated with this is the lacking coherence of global environmental governance. There are, at present, no insti-tutions independent enough to function with their own mandate, for example, a mandate of guardianship or trusteeship, or in an elevated norm-defining role.

Both, Bodansky and Kiss see the absence of a coherent concept or suffi-ciently defined overarching goal as the main reason for the lacking constitutional quality of international environmental law. Positively speaking, the possibility of a global environmental constitution depends on normative coherence and institutional strength to guide and coordinate states behaviour.

If this is a fair summary, then the search for coherence and strength defines

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the goal of global environmental constitutionalism. A mere collection of important ideas and principles would not meet such a goal. Nor would constitutional elements such as procedural environmental rights and access to judicial review23 in themselves say very much about actual constitutionalization. While they may be indicative, the overall purpose of global environmental constitutionalism goes further. It can be described as an analysis and advocacy of environmental values, principles and rights that are sufficiently coherent and enduring to form a constitution24. As mentioned earlier, such a purpose is best served through researching both, international and national developments of environmental law and governance.

3 CONSTITUTIONALIZING ENVIRONMENTAL RIGHTS

A constitution is a value-laden concept, usually encapsulating the idea of democracy, the separation of powers, the protection of human rights, and cer-tain social security guarantees.25 Human rights, in particular, define the core of how a political community should function. For the prospects of environmental constitutionalism human rights and their relationship to the environment are, therefore, of great importance.

Many international environmental agreements highlight the linkages be-tween human rights and the environment. They are visible, for example, in the Stockholm Declaration, the World Conservation Strategy, UN World Charter for Nature, Caring for the Earth, United Nations Framework Convention of Climate Change (UNFCCC), 1992 Rio Declaration, Agenda 21, UN Millennium Declaration, Johannesburg Declaration or the Rio+20 outcome document “The Future We Want”.

At the time of the 1972 Stockholm Declaration, only a handful of national constitutions addressed environmental issues.26 Today, some 125 constitutions incorporate environmental norms, 107 are in developing countries compared to 18 in developed countries.27 About 92 constitutions explicitly recognise the right to a healthy or decent environment.28 No other human right has achieved such a broad level of constitutional recognition in such a short period of time.29

However, a human right to a healthy environment is only one form towards constitutionalizing the environment. Some 97 constitutions contain obligations for the national government to prevent harm from the environment and 56 constitutions recognize a responsibility of citizens or residents to protect the environment.30

Clearly, there is a world-wide trend towards constitutionalizing environ-mental rights and responsibilities with respect to the environment. But will it make a real difference? This is not easy to answer and there is not only the issue of enforcement. In general terms, the omnipresence of free market ideology has certainly undermined efficiency and enforceabilty of environmental rights, but there are also genuine law enforcement issues. For example, the legal cultures in Latin America are markedly different from European legal culture with its

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emphasis on actual enforceability of constitutional rights. Therefore, Mother Earth rights (as in Bolivia and Ecuador) are not per se superior to human rights and state obligations (as in Germany) if they lack enforceability. Fundamentally, we need to consider how constitutional rights – as a socio-legal construct – reflect ecological requirements. This raises the issue of anthopocentrism vs. ecocentrism.

Environmental rights typically refer to access to, and use of, the envi-ronment, but can also be understood to imply ecocentrism. Alan Boyle rightly observes that “environmental rights do not fit neatly into any category of human rights”31 to then ask: “Has the time come to talk directly about environmental rights – in other words a right to have the environment itself protected? Should we transcend the anthropocentric in favour of the ecocentric?”32 Like most com-mentators, Boyle uses the term environmental rights generically to capture the environmental dimension of human rights.33

Trying to conceptualize this dimension should be an urgent pursuit of environmental constitutionalism. After all, anthropocentric reductionism has been one of the main reasons for the ongoing failure of environmental law and governance to respond to the ecological crisis.34 How could the anthropocentricity of Western human rights and constitutions be transformed to ecologically sound legal principles and rights? I have always argued that such a transformation is needed35 and while ecocentrism, rights of nature and Earth law are still largely confined to jurisprudential theory, there is a growing perception, even among go-vernments, that law and governance need to be grounded in non-anthropocentric environmental ethics. Promoting this shift and working towards such a constitu-tional moment could be an ambition of global environmental constitutionalism.

According to Bruce Ackerman, a constitutional moment can occur when there are unusually high levels of sustained popular attention to questions of constitutional significance.36 Such a situation arose during the 1980’s in West Germany when the Green movement began to articulate the legal implications of ecocentrism. This culminated in a Government-driven constitutional review (1985-89) to consider a shift from traditional anthropocentrism to an ecocentric value system underlying the German Basic Law (Grundgesetz). At its core was the question whether ecological realities require a redefinition of human rights to accept “ecological limitations” and a special obligation of the state to protect the environment “for its own sake” as well as for future generations. The newly established Institute für Umweltrecht (Institute for Environmental Law) and Verein für Umweltrecht (Association for Environmental Law) proposed to redefine human rights such as the right of liberty, freedom of research and right to property to include ecological limitations. In essence, the use of natural resources would no longer be protected, but only their sustainable use, effectively reversing the bur-den of proof rule. Remarkably, these proposals were supported by the Bundesrat, the Upper House of the Länder/states and triggered a full review by the Joint Bundetag-Bundesrat Constitutional Commission.37 In the end, the Commission did not resolve these issues, but called for a wider public dialogue precisely because

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they are so important: “The question of either an anthropocentric or ecocentric approach to the constitution is of such fundamental importance, that the Com-mission did not see itself as mandated to answer it. Instead the Commission calls for a wide expert and public dialogue before considering such a change.”38

One step in this direction was the draft constitution of 199139 which defined a “socio-ecological market system” and included ecological limitations of human rights and property rights as well as a state obligation to protect the environment for its own sake. While this draft was rejected by the Government, the 1994 and 2002 amendments to the Grundgesetz reflected a notable move away from anthro-pocentrism. Article 20a, for example, established a new state obligation: “Mindful also of its responsibility toward future generations, the State shall protect the natural bases of life (…).” – not just “human” life following engaged parliamentary debate on anthropocentrism vs. ecocentrism.40 In 2004, a further amendment added “and the animals” to follow the notion of “natural bases of life” in response to uncertainties surrounding the constitutional status of animals41.

Like Germany, many other countries had constitutional debates around the question whether environmental protection and ecological sustainability ought to be a fundamental concern and objective. The results of these debates are do-cumented in the works of David Boyd42, James May and Erin Daly43, and others. However, the international comparison also shows that the process of ‘greening’ of national constitutions and international law is slow, incomplete, sketchy and not following an overarching objective. There is, as yet, no global consensus on the importance of sustainability similarly to constitutionalized values such as human rights, democracy or peace. Likewise, policy objectives tend to focus on economic prosperity and largely ignore its dependence on sustainability.

Promoting an overarching sustainability objective should be at the heart of global environmental constitutionalism. At constitutional level, the question is whether there is a constitutive principle of this nature, either in existing law or in statu nascendi.

4 SUSTAINABILITY AS A CONSTITUTIONAL PRINCIPLE

Sustainability is generally understood as fundamental to provide for the future. The idea of sustainability has deep roots in all cultures of the world.44 The modern concept of sustainable development emerged from the 1972 Report to the Club of Rome “Limits to Growth”45. The Report described “sustainable use”, “sustainable yield” and a “sustainable state of global equilibrium” as the means to avoid “overshoot” and “collapse” of the “carrying capacity of the planet”.46 The term sustainability has been in use since the early 18th Europe when Saxon economist Carl von Carlowitz based the system of forest management on the notion of nachhaltig (sustainable) and Nachhaltigkeit (sustainability).47 Ever since, the core meaning of sustainability has been the preservation of natural systems supporting human life.48

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Understood in this way it also informed the UN Commission on Environ-ment and Development in its 1987 Report “Our Common Future”.49 Acccording to the Commission, the unity of environment and development should not bee seen as a trade-off between economic growth, environmental protection and social justice, but as an aspiration based on the carrying capacity of the planet.50 The forgotten message of the Brundtland Report is to organize socio-economic development within the limits of natural resources or “planetary boundaries”, as we would say today. States, the UN and corporate organisations have always favoured the convenience of vagueness (“development that meets the needs of the present without compromising the ability of future generations to meet their own needs.”51) over clarity which would have meant to address the growth paradigm.

As a consequence, tensions between growth and sustainability remained unresolved until today. For environmental law scholars it should be alarming that so little attention has been given to resolving this tension and to focus on the meaning of sustainability. One of the pioneers of environmental law, Staffan Westerlund, went so far as to say that the academic discipline of environmental law over the last thirty years has largely failed: “The core problem lies in achie-ving and maintaining ecological sustainability as the necessary foundation for sustainable development”.52 Douglas Fisher, another pioneer of environmental law, recently made a similar observation showing that politicians, administrators and judges operate without a specific “point of commencement”53. Rather, they readily employ the general criteria of human well-being, economic prosperity etc. to seek some compromise between the environment and development. According to Fisher, the environment appears as an unknown entity, too abstract and not nearly as well defined as human rights or property rights. As a consequence, soft environmental interests loose against hard economic interests. Fisher concludes with a plea for “processes of legal reasoning which reflect the fundamental grundnorms of the system – the rule of law in general and sustainability in the context of environmental governance”.54

As mentioned, sustainability has its core in preserving the integrity of ecological systems. In this meaning it has been incorporated in many domestic conservation laws55 and international environmental law where it first appeared in the 1974 Great Lakes Water Quality Agreement between Canada and the United States56. Since then some 23 international environmental treaties and agreements refer to ecological integrity as a general objective as, for example, the preamble57 and Article 7 of the 1992 Rio Declaration on Environment and Development (“Sta-tes shall cooperate in a spirit of global partnership to conserve, protect and restore the health and integrity of the Earth’s ecosystem”) or Aricle 40 of the Rio+20 outcome document The Future We Want (“We call for holistic and integrated approaches to sustainable development that will guide humanity to live in harmony with nature and lead to efforts to restore health and integrity of the Earth’s ecosystem”). The 2000 Earth Charter is in its entirety designed around the concept of ecological integrity. For example, principle 5 urges “all individuals, organizations, businesses, governments, and transnational institution” to “[p]rotect and restore the integrity of Earth’s ecological

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systems, with special concern for biological diversity and the natural processes that sustain life”. Similarly, Article 2 of the 2010 IUCN Draft International Covenant on Environment and Development states: “Nature as a whole and all life forms warrant respect and are to be safeguarded. The integrity of the Earth’s ecological systems shall be maintained and where necessary restored.” This inclusion is significant because the Draft Covenant is a codification of existing environmental law and intended to be a blueprint for an international framework convention.

Applying the usual standards for the recognition of concepts as internatio-nal law, it would be possible to say that the repeated and consistent references to ecological integrity amount to an emerging fundamental objective or grundnorm of international environmental law.58

In short, the argument for sustainability as a constitutional principle in national and international law is strong and deserves further investigation. It should be of central importance to global environmental constitutionalism.

5 TOWARDS A GLOBAL ENVIRONMENTAL CONSTITUTION?

The prospect of a global environmental constitution may not be realistic for many years to come. Nor may it be self-evident considering that real action mostly takes place at the local level, i.e. in communities and cities. On the other hand, the health of the entire planet is at stake. This requires global awareness wherever people live and act (“think globally, act locally”). It is worth pondering, therefore, whether global values can be identified and written into some form of a world constitution. It is certainly within the realm of global environmental constitutionalism to take an interest in the possibility of a universal environmental code or constitution.

In the aftermath of the second World War, international law was elevated to a new level.

The United Nations Charter and the Universal Declaration of Human Rights created a unifying framework for the international community built on dignity and equality of all people. In addition to its purpose of settling conflicts, international law now gained a purpose of promoting and reaffirming common values. In this pursuit, the Westphalian state system created the seeds of global civic identity. Somewhere between 1945 and today humanity entered the “pla-netary phase of civilization”.59 While the notion of a planetary civilization still lacks global polity60 that could legitimize a global constitution or government, it is possible to identify, at least, some constitutionally relevant values and principles.

An early example of such an attempt was the 1948 Preliminary Draft of a World Constitution61 which was translated into 40 languages. Known also as the “Chicago World Constitution”62 its first chapter is structured as a “de-claration of duties and rights” – not just rights – and contains the following sub-chapter c:

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The four elements of life - earth, water, air, energy - are common proper-ty of the human race. The management and use of such portions thereof are vested in or assigned to particular ownership, private or corporate or national or regional, of definite or indefinite tenure, of individualist or collectivist economy, shall be subordinated in each and all cases to the inherent interest of the common good.

The concern behind this draft was that international social justice and peace cannot be achieved without giving priority to the common good, in par-ticular the global commons, over private property. Elisabeth Mann Borgese, an early pioneer of international environmental governance, 63 asserts that the Draft World Constitution has significantly influenced theory and concepts of in-ternational environmental law.64 Today, we can clearly appreciate the urgency of protecting the global commons (oceans, atmosphere, biosphere) that all people in all nations so fundamentally depend on.65

Arguably, no other document has articulated this concern more strongly and more inclusively than the Earth Charter. It had its origins in the global ethics movement that started with the UN Charter, the founding of UNESCO (1946) and IUCN (1948), and the Universal Declaration of Human Rights.66 With its history and “contributions of literally millions of minds around the world”67 the Earth Charter is the most inclusive international document to-date to define globally shared values and principles. According to Nicholas Robinson, “the binding principles embodied in the Earth Charter can be and are being applied in courts and are found in virtually all national environmental laws”.68 Considering further its endorsements by thousands of national and international organisations, including UNESCO and IUCN, and a number of states, and also its general recognition in international law, 69 the Earth Charter meets many of the hallmarks of a model global constitution.70

So, quite independently of any prospects towards a global environmental constitution, we do have benchmark documents71 against which we can measure the progress of global environmental constitutionalism.

6 CONCLUSION

This article did not aim for defining or reviewing global environmental constitutionalism. That would be impossible given the novelity and thin base of this only emerging field of inquiry. Rather the article made some suggestions for formulating its purpose and scope.

Like global constititutionalism in general, global environmental constitu-tionalism requires a certain methodology or mindset, i.e. a transnational approach to constitutional research. More so than ‘classic’ constitutional subjects such as human rights the very nature of its subject makes environmental constitutionalism truly global and foundational. Its subject is nothing less than the preservation of the ecological conditions that all life, including human existence, depends

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on. This subject description points to ecocentrism and may not be shared by everyone; some may insist that anthropocentric law is inevitable.

Global environmental constitutionalism must, in any case, address its ethical foundations. After all, Pachamama constitutions in Latin America, eco--constitutional discourses in Europe and the growing Earth jurisprudence mo-vement72 fundamentally question Western anthropocentrism. Similarly, a truly global perspective should be critical of Eurocentric notions of constitutionalism which still shapes mainstream comparative constitutional studies73.

Above all, global environmental constitutionalism should aim for shifting the environment from the periphery to the centre of constitutions - a shift that could be termed “eco-constitutionalism”.74

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2 Anne Peters, The Constitutionalization of International Organisations in: Neil Walker, Jo Shaw and Stephen Tierney (eds.) EUROPE’S CONSTUTIONAL MOSAIC (Hart, Oxford, 2011) 253-285.

3 Martti Koskenniemi, Constitutionalism as Mindset: Reflections on Kantian Themes about International Law and Globalization, 8 THEORETICAL INQUIRIES IN LAW (2007) 9-38.

4 Gunther Teubner, Societal Constitutionalism: Alternatives to State-Centred Constitutional Theory? in TRANSNA-TIONAL GOVERNANCE AND CONSTITUTIONALISM, supra note 1, 3-28; Ernst-Ulrich Petersmann, How to Constitutionalise International Law and Foreign Policy for the Benefit of Civil Society?, 20 MICH. J. INT’L. (1998) 1; Jan Klabbers, Constitutionalism Lite 1 Int’l Org. L. Rev. (2004) 31.

5 Christian Walter, Constitutionalising (Inter)national Governance – Possibilities for and Limits to the Development of an International Constitutional Law, 44 GERMAN Y.B. INT’l L. (2001) 192.

6 Other notions include “international constitutionalism” (e.g. Aoife O’Donoghue, International Constitutional-ism and the State 11 INTERNATIONAL JOURNAL OF CONSTITUTIONAL LAW 4 (2013), 1021-1045), “transnational constitutionalism” (e.g. Nicholas Tsagourias (ed), Transnational Constitutionalism: International and European Perspectives (CUP, Cambridge, 2007) or “world constitutionalism” (e.g. TOWARDS WORLD CONSTITUTIONALISM, ed by Ronald St John Macdonald and Douglas M Johnston (Brill-Nijhoff, 2005).

7 For a critique see Jeremy Waldron, Constitutionalism: A skeptical view, NYU SCHOOL OF LAW, PUBLIC LAW RESEARCH PAPER NO.10-87 (2012).

8 No state would want to be seen in disconnect with them, in fact, they are constitutive for its legality and legitimacy.

9 Notable exceptions are the constitutions of the United States, United Kingdom, Australia and New Zealand.10 Michael Anderson, Human Rights Approaches to Environmental Protection: An overview in Alan Boyle and

Michael Anderson (eds.), HUMAN RIGHTS APPROACHES TO ENVIRONMENTAL PROTECTION (Oxford University Press, New York, 1996) 1; Engobo Emesh, Human Rights Dimensions of Contemporary Environmental Protection in Marcelo Odello and Sofia Canvandoli (eds), EMERGING AREAS OF HU-MAN RIGHTS IN THE 21ST CENTURY (Routledge, New York, 2011) 66-86.

11 Douglas Kysar, Global Environmental Constitutionalism: Getting there from here, 1 TRANSNATIONAL ENVI-RONMENTAL LAW 1 (2012) 83-94; Louis Kotzé, Arguing Global Environmental Constitutionalism, 1 TRANS-NATIONAL ENVIRONMENTAL LAW 1 (2012) 199-233; id., Environmental Constitutionalism: In Search of Normativity (in this volume); James May and Erin Daly, GLOBAL ENVIRONMENTAL CONSTITUTIONAL-ISM (CUP, Cambridge, 2015); see also Klaus Bosselmann, WHEN TWO WORLDS COLLIDE: SOCIETY AND ECOLOGY (RSVP, Auckland, 1995) 222-290 and id., THE PRINCIPLE OF SUSTAINABILITY: TRANSFORMING LAW AND GOVERNANCE (Ashgate, Aldershot, 2008) 111-174.

12 Daniel Bodansky, Is there an International Environmental Constitution? (2009) 16 IND.J. GLOBAL LEGAL STUD. (2009) 565-584

13 Alexandre Kiss, The Legal Ordering of Environmental Protection in Tsagourias (ed), TOWARDS WORLD CONSTITUTIONALISM, supra note 6, 567-584.

14 Id., at 574.15 Id.16 Id..17 Supra note 12. 18 Bodansky, supra note 12, 577-578.19 Id. at 577.20 Id21 Id. 579.22 Id.23 As, for example, visible in the Aarhus Convention and related national developments in European states;

Bosselmann, SUSTAINABILITY, supra note 11, 116-118.24 Bodansky (supra note 12, 569) explains a constitution as “a higher level of law, typically of enduring nature,

setting forth fundamental rules of a political community”.25 Anne Peters, Compensatory Constitutionalism: The function and potential of fundamental international norms and

structures 19 LEIDEN J. INT’L. LAW (2006) 579, at 595.

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28 Boyd, supra note 26, 72.29 David Law and Mila Versteeg, The Evolution and Ideology of Global Constitutionalism 99 CALIF. L. R. (2011)

1163.30 Bosselmann, SUSTAINABILITY, supra note 11, 126.31 Alan Boyle, Human Rights and the Environment: A Reassessment XVII FORDHAM ENVT’L L.R. (2007)

471-511, at 471.32 Ib. at 473.33 E.g. Alan Boyle, Human Rights and the Environment. Where next? 23 EUROPEAN JOURNAL OF INTER-

NATIONAL LAW 3 (2012) 613–642.34 Klaus Bosselmann, A Vulnerable Environment: Contextualizing Law with Sustainability, 2 JOURNAL OF

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36 Bruce Ackerman, WE THE PEOLE. VOL.1: FOUNDATION (Harvard University Press, Cambridge, 1991); see also Anne-Marie Slaughter and William Burke-White, An International Constitutional Moment (2002) 43 HARVARD INT’L L.R. (2002) 1.

37 Bosselmann, IM NAMEN DER NATUR, supra note 35, 196-202. 38 Klaus Bosselmann, OEKOLOGISCHE GRUNDRECHTE – ZUM VERHAELTNIS ZWISCHEN INDI-

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40 Bosselmann, SUSTAINABILITY, supra note 11, 139-140.41 Erin Evins, The Inclusion of Animal Rights in Germany and Switzerland: How did animal protection become and

issue of national importance? 18 SOCIETY AND ANIMALS (2010) 231-250, at 236. For a comparative con-stitutional perspective on animal rights see generally Thomas Kelch, GLOBALIZATION AND ANIMAL LAW (Kluwer Law International, Alphen aan den Rijn, 2011). Bosselmann, IM NAMEN DER NATUR, supra note 35, 181-189, 221-223.

42 Supra note 26.43 Supra note 11.44 Desta Mebratu, Sustainability and Sustainable Development: Historical and Conceptual Review 18 ENVIRON-

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45 Donella and Dennis Meadows et al., THE LIMITS TO GROWTH. A REPORT TO THE CLUB OF ROME’S PROJECT ON THE PREDICAMENT OF MANKIND (Earth Island, Royal Tunbridge Wells, 1972).

46 Ulrich Grober, SUSTAINABILITY: A CULTURAL HISTORY (Green Books, Totnes, 2012) 155-160. Bosselmann, SUSTAINABILITY, supra note 11, 25-27.

47 Hans Carl von Carlowitz, SYLVICULTURA ECONOMICA. ANWEISUNG ZUR WILDEN BAUM-ZUCHT (TU Bergakademie, 1713; reprint 2000). Grober, supra note 46, 80-85.

48 Bosselmann, SUSTAINABILITY, supra note 11, 21-29.49 World Commission on Environment and Development, OUR COMMON FUTURE (Oxford University

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50 Bosselmann, SUSTAINABILITY, supra note 11, 29-34.51 Brundtland Report, above n 49, 65.52 Staffan Westerlund, Theory for Sustainable Development Towards or Against? in Hans-Christian Bugge and

Christina Voigt (eds.), SUSTAINABLE DEVELOPMENT IN INTERNATIONAL AND NATIONAL LAW (Europa Law Publ., Groningen, 2008) 48-65.

53 Douglas Fisher, LEGAL REASONING IN ENVIRONMENTAL LAW: A STUDY OF STRUCTURE, FORM AND LANGUAGE (Edward Elgar, Cheltenham, 2013) 23.

54 Id., 433.55 Bosselmann, SUSTAINABILITY, supra note 11, 63-64; Gordon Steinhoff, Ecological Integrity in Protected

Areas: Two interpretations 3 SEATTLE JOURNAL OF ENVT’L LAW (2013) 155-180.56 Its purpose is “to restore and maintain the chemical, physical and biological integrity of the waters of the

Great Lakes Basin Ecosystem” (IJC 1978).57 “(W)orking towards international agreements which respect the interests of all and protect the integrity

of the global environmental and developmental system”.58 Rakhyun Kim and Klaus Bosselmann, Towards a Purposive System of Multilateral Environmental Agreements 2

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59 Steven Rockefeller, Building a Global Culture of Peace, 21 ORION MAGAZINE 1 (2002) 46; Ervin Laszlo, Paths to Planetary Civilization, 5 KOSMOS (2006) 2.

60 Morton Ougaard, Approaching the Global Polity, CSGR WORKING PAPER NO.42 (Centre for the Study of Globalisation and Regionalisation,1999).

61 http://www.worldbeyondborders.org/chicagodraft.htm 62 Named after its drafting group of humanists, social scientists, philosophers and lawyers around the Uni-

versity of Chicago.63 Also known as the “mother of the oceans”, Elisabeth Mann Borgese was the organizer of the first confer-

ence on ocean governance in 1970, founder of the International Ocean Institute and a highly influential proponent of the common heritage principle with respect to the UN Convention of the Law of the Sea; http://internationaloceaninstitute.dal.ca/emb.htm

64 Elizabeth Mann Borgese, THE BEGINNINGS - THE IOI (International Ocean Institute, Malta 1999) 9-13.

65 Klaus Bosselmann, EARTH GOVERNANCE: TRUSTEESHIP FOR THE GLOBAL COMMOMS (Edward Elgar, Cheltenham, 2015).

66 Klaus Bosselmann and Ronald Engel, Introduction in Klaus Bosselmann and Ronald Engel (eds.), THE EARTH CHARTER: A FRAMEWORK FOR GLOBAL GOVERNANCE (KIT Publ. Amsterdam, 2010) 15-26; Martin Holdgate, THE GREEN WEB: A UNION FOR WORLD CONSERVATION (Earthscan, Oxon, 1999) 51.

67 Nicholas Robertson, Foreword in Bosselmann and Engel, supra note 66, at 8.68 Id., at 12.69 Klaus Bosselmann and Prue Taylor, The Significance of the Earth Charter in International Law in Peter Blaze

Corcoran (ed.), TOWARD A SUSTAINABLE WORLD: THE EARTH CHARTER IN ACTION (KIT Publishing, Amsterdam, 2005) 171-173.

70 Klaus Bosselmann, Outlook: The Earth Charter: A Model Constitution for the World? in Bosselmann and Engel, supra note 66, 239-255; Klaus Bosselmann, Earth Charter (2000) MAX PLANCK ENCYCLOPAEDIA OF PUBLIC INTERNATIONAL LAW (Oxford University Press, Oxford, 2009) 4.

71 Other examples include the Universal Declaration of Human Responsibilities http://globalethic.org/Center/unesco.htm and the Universal Declaration of Rights of Mother Earth http://therightsofnature.org/universal-declaration/.

72 E.g. Peter Burdon (ed.), EXPLORING WILD LAW: THE PHILOSOPHY OF EARTH JURISPRUDENCE (Wakefield Press, Kent Town, 2011); Ian Mason and Begonia Filgueira, WILD LAW: IS THERE ANY EVIDENCE OF PRINCIPLES OF EARTH JURISPRUDENCE IN EXISTING LAW AND LEGAL PRACTICE? (UK Environmental Law Association, 2009).

73 Günter Frankenberg, Constitutions as Commodities in Günter Frankenberg (ed.), ORDER FROM TRANS-FER: COMPARATIVE CONSTITUTIONAL DESIGN AND LEAGL CULTURE (Edward Elgar, Chel-tenham, 2013) 1-28, at 2.

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Klaus Bosselmann

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74 Klaus Bosselmann, Eco-constitutionalism: A new area of legal research and advocacy (Key note, Earth Jurispru-dence: Building Theory and Practice, Griffith University and Earth Law Australia Alliance, 18-21 September 2011) http://www.earthlaws.org.au/wp-content/uploads/presentations/Bosselmann,-K.-Eco-Constitutionalism-A-new-area-of-legal-research-and-advocacy; Klaus Bosselmann, Grounding the Rule of Law, in Christina Voigt (ed.), RULE OF LAW FOR NATURE: NEW DIMENSIONS AND IDEAS IN ENVIRONMENTAL LAW (Cambridge University Press, Cambridge) 75-93, at 92; Bosselmann, TWO WORLDS, supra note 11, at 222.

CONSTITUCIONALISMO AMBIENTAL GLOBAL

RESUMO

Este artigo defende a perspectiva de que o constituciona-lismo ambiental é assunto de interesse global e fundacio-nal. Considerando a originalidade e, consequentemente, o suporte teórico rarefeito de um campo de pesquisa emergente, pretende-se fazer algumas sugestões quanto à definição do propósito e da abordagem adequada a um constitucionalismo ambiental de alcance global. Ademais, considerando-se que os direitos ambientais são, por natureza, ainda mais fundamentais do que os direitos humanos clássicos, a concepção e a metodolo-gia aplicadas aos estudos sobre constitucionalismo ao redor do mundo deverão transmutar sua racionalidade de base antropocêntrica para ecocêntrica, por meio da incorporação da sustentabilidade ao rol de princípios constitucionais. Pretende-se, desse modo, contribuir com os primeiros passos dados nos últimos anos na direção do constitucionalismo ambiental global; assunto que permanece instigante.

Palavras-chave: Constitucionalismo ambiental global. Princípio da sustentabilidade. Ecocentrismo.

Submetido: 07 ago. 2015Aprovado: 14 ago. 2015

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A cAminho Do constitucionAlismo 4.0: teses constitucionAis pArA hoJe e AmAnhã1

Paulo Ferreira da Cunha*

“Ainsi un peuple a une Constitution comme un individu a des yeux, des oreilles, un nez. Chaque peuple a son visage, où tout s’ajuste; et vous n’allez pas dire qu’il faudrait

un nez un peu plus long; ne touchez pas au nez; il faudrait changer tout.”Alain2

1 As Teses. 1.1 Lições da História. 1.2 Defender as Instituições Constitucionais e Descartar a Demagogia. 1.3 Compreender o caráter unitário das Constitui-ções. 1.4 Avançar na concretização constitucional pelo Constitucionalismo Global. 2 Saber História Constitucional para melhor compreender o presente e preparar o futuro. 3 Compreender climas anticonstitucionais antipolíticos e antiparlamentares. 4 Entender a relação entre dois princípios constitucionais para a crise: proibição do retrocesso e reserva do possível. 5 Para uma justiça constitucional internacional. Referências.

RESUMO

O presente artigo apresenta e desenvolve algumas teses a nos-so ver elementares e vitais para o advento consciente de um Constitucionalismo novo (não confundir, evidentemente, com neoconstitucionalismo), que se poderá designar por 4.0. Para isso, é necessária uma compreensão histórico-filosófica profunda das fases anteriores, um diagnóstico agudo da situação atual de ataque, desprezo e olvido das constituições em vários países e uma confiança (feita também de muito trabalho) nas energias teóricas e práticas dessa grande conquista civilizacional, que esbarra hoje com outras racionalidades e irracionalidades, desde os interesses à superficialidade, a incultura e a tecnocracia. Uma das novas bandeiras de esperança é a criação de um Tribunal Constitucional Internacional, para a Democracia, os Direitos Humanos e o Estado de Direito.

Palavras-Chave: História Constitucional. Constitucionalismos. Crise das Democracias. Tribunal Constitucional Internacional.

* Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito pelas Universidades Paris II e Coimbra. Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e Diretor do Instituto Jurídico Interdisciplinar. Professor-visitante da Faculdade de Direito da USP. E-mail: [email protected]

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Paulo Ferreira da Cunha

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1 AS TESES

O presente artigo desenvolve-se a partir de algumas teses sobre temas atu-ais do Constitucionalismo hodierno e que deverão continuar a sê-lo no futuro. Vamos enunciá-las primeiro e depois as desenvolveremos, uma a uma.

1.1 Lições da História

É útil recordar as fases de desenvolvimento de um novo Constituciona-lismo no séc. XX e concomitantemente os momentos de ataque à Constituição, que mais se elevam até no dealbar do séc. XXI. E pôr em relevo a novidade da atual fase de silêncio e desprezo pela Constituição em alguns países. Como se se pudesse tudo fazer e mudar sem ela e contra ela. São motivos para profunda reflexão. Será que a Constituição não conseguiu, em muitos países, sair do círculo seleto de acadêmicos, para se ancorar no coração das pessoas comuns? Ou pelo contrário, há uma adesão de fundo às constituições, mas não se acredita mais nos seus concretos protagonistas políticos, ao ponto de se esquecerem as magnas cartas de que eles deveriam ser encarnação viva e atuante?

1.2 Defender as Instituições Constitucionais e Descartar a Demagogia

É complicado (não é cômodo, nem facilmente explicável, hoje) defender--se intransigentemente uma ética republicana3 e naturalmente apontar-se o dedo acusador a quem a despreze e, ao mesmo tempo, considerar imaculado o prestígio das instituições hoje sempre mais ou menos atingidas pela ação de eventuais titulares de cargos menos retos ou tidos como tais pela comunicação social, que sempre empola qualquer suspeita.

E, contudo, é isso que deve fazer-se: separar as águas. Uma coisa são as instituições, e outra os seus titulares, que passam, sempre, sejam bons sejam maus, retos ou corruptos.

Uma das grandes virtualidades de um regime democrático é que podem vir à luz do dia os erros e os crimes dos políticos. Por isso, até acabam por ser absurdas as campanhas “ontológicas” tentaculares contra a Democracia e contra os Parlamentos que invocam mordomias e corrupções, além de rumores e pre-conceitos. Sim, tudo isso pode ocorrer, e ocorrerá, sem dúvida, neste ou naquela país, nesta ou naquela ocasião. Mas haverá melhor regime que o que permite que isso se saiba e puna?

Parece haver atualmente, ao mesmo tempo que uma enorme despolitização, um populismo e demagogia crescentes (que podem arrastar massas e, pior ainda, eleitores...), que consoante os países dançam ao som de diferentes músicas, mas se teme legitimamente (pelo conhecimento histórico de situações análogas no passado) venham objetivamente a levar água ao moinho de situações não só de “momento”, timbre e raiz anticonstitucionais, como a futuros possíveis regimes de facto de prática inconstitucional reiterada. Alguns sinais já muito concretos se

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A caminho do constitucionalismo 4.0: teses constitucionais para hoje e amanhã

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fazem sentir em países europeus, alguns até democráticos, mas que apresentam agora tiques de autoritarismo... O preconceito, a incultura e as dificuldades econômicas (ou algumas privações depois de um breve desafogo artificial) são propícia seara para que essas nocivas sementes frutifiquem.

1.3 Compreender o Caráter Unitário das Constituições

Os princípios constitucionais mais próprios dos tempos de crise, o da proibição do retrocesso e o da reserva do possível, precisam de ser repensados e devida-mente integrados dialeticamente. Não atirados um contra o outro e defendidos, ora um ora outro, ao sabor de paixões e dos interesses mesquinhos e particulares; antes deverão ser compreendidos ambos como concorrendo para a defesa da Constituição em situações limite. São parte de uma necessária interpretação holística da Constituição conforme a Constituição e conforme à Constituição.

Esses são apenas exemplos de como importa estudar a Constituição e ensiná-la nas escolas (mesmo elementares), de forma a que os cidadãos dela tenham um conhecimento mais aprofundado, ou seja, menos ingênuo.

1.4 Avançar na Concretização Constitucional pelo Constitucionalismo Global

A próxima fase do Constitucionalismo, a que podemos chamar Constitu-cionalismo 4.0, será certamente (e desejavelmente) a da institucionalização de um Tribunal Constitucional Internacional, voltado à defesa dos Direitos Humanos, da Democracia e do Estado de Direito, após esgotadas as vias de recurso. Longe de ser uma quimera, é uma necessidade, não apenas para os países com claro déficit democrático, como para o aperfeiçoamento e a sindicabilidade, assim como a transparência internacionais dos Estados que já atingiram um aceitável grau de democraticidade. Que é sempre uma meta a colocar além... pois nunca está concluída e perfeita a Democracia.

2 SABER HISTÓRIA CONSTITUCIONAL PARA MELHOR COMPREEN-DER O PRESENTE E PREPARAR O FUTURO

Aproximadamente pela segunda metade dos anos 70 do século passado, começou a fase das constituições sociais de segunda geração. A que alguns cha-mam já (contando com a primeira fase do Constitucionalismo moderno, a elas anterior, a liberal) “Constitucionalismo 3.0.4

Foi quando (para nos restringirmos à Europa dita “ocidental” – no domínio social, havia já, sobretudo, a Constituição mexicana de 1917 e as constituições soviéticas... fora dessa área específica), após a Constituição ita-liana de 1948 e a Grundgesetz alemã de 1949 (já portadoras de valores sociais), constituições como a portuguesa de 1976, ou espanhola de 1978 (e, mesmo numa ou noutra afloração, a Constituição suíça de 1999, aliás com um belo preâmbulo, obra de um poeta) protagonizaram uma nova forma de proteger

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Camila Figueiredo Oliveira Gonçalves

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o trabalhador e o cidadão, não apenas na sua dimensão política, mas também social, econômica e cultural.

No seguimento destas constituições, o movimento irradiaria. Nomea-damente tendo como um marco notável (desde logo por um prefácio muito equilibrado e promissor) na Constituição brasileira de 1988, justamente dita “Constituição Cidadã”.5

Ora este progresso civilizacional não foi desenvolvido sem reação e resistência.

Primeiro, houve governos que se escudaram na dimensão social das cons-tituições como álibi. Nada, ou quase nada – proclamavam - se poderia fazer alegadamente por causa da bendita da Constituição... A ideia de “ingovernabili-dade” foi então um tópico recorrente, como álibi e crítica implícita ou mesmo explícita às Constituições.

Depois, em tempo de governação mais moderada, certos outros, bem diferentes ideologicamente, queixavam-se na comunicação social e nas ruas, simetricamente aos aludidos, do incumprimento da Constituição a torto e a di-reito, por nem todas as promessas sociais serem cumpridas (frequentemente não entendendo as questões jurídicas de aplicação dos direitos sociais). Enquanto os outros atacavam, ainda, por outro lado, a pretexto de qualquer concretização mais generosa que se fizesse (por exemplo, o rendimento mínimo garantido, depois rebatizado rendimento social de inserção, em Portugal) e alegando já então a utopia dos direitos, considerando utópico, numa Constituição, tudo o que não fosse meramente organização do poder político e pouco mais...

Mesmo depois de haver revisões constitucionais muito moderadoras (no caso português, por exemplo, desde logo a primeira), num momento seguinte, começaram aqueles últimos críticos a reclamar revisões constitucionais ou constituições novas pretensamente consensuais e neutras, mas obviamente na linha do estiolamento cons-titucional. Visava-se à “limpeza” das cláusulas econômicas, sociais, culturais, ecológicas e afins, em sintonia com a ideia de uma constituição minimalista para um Estado mi-núsculo, próprias do neoliberalismo galopante, o qual se vira, porém, a metamorfosear ao ponto de pouco ter do veteroliberalismo, ou seja, o liberalismo tout court...

Tem-se vivido, em alguns países, uma nova fase, que já espanta alguns: desceu uma cortina de silêncio sobre as matérias constitucionais. Como no pas-sado ocorreu em situações dramáticas, mudou-se aparentemente de estratégia: agora a Constituição parece poder ser tranquilamente violada porque se ignora a Constituição econômica, social e cultural. Assim, o explicitava já há quatro anos, para Portugal, Boaventura Sousa Santos:

[...] Uma profunda transformação subterrânea do regime político corre paralela à manutenção, à superfície, da normalidade demo-crática da vida política. Trata-se de um novo tipo de Estado de excepção, ou de Estado de sítio, que suspende ou elimina direitos e instituições sem ter de revogar a Constituição. Basta ignorá-la [...] A tutela internacional da troika não colide com a soberania

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O direito a não saber: novos contornos do direito à intimidade

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nacional, quando o poder soberano não só está de acordo com o conteúdo político da tutela, como inclusivamente se legitima através do excesso com que a acolhe e reforça. [...] As medidas políticas para a destruição do Estado social e dos serviços públicos estão testadas com êxito nos governos de referência.6

A única parte da Constituição que ainda é cumprida é a política, a ins-titucional, a procedimental pura. Mas já começa a haver direitos fundamentais de primeira geração, como os que espelham o princípio da igualdade, que são postos em causa por legislação antissocial.

Enquanto em Portugal ocorre este risco altíssimo para a Constituição, sopram ainda, noutros países, ventos de grande desenvolvimento e prestígio constitucionais, o que, porém, não quer dizer que não tenham também. Atente-se em uma proclamação como a seguinte, a título de exemplo:

Vivemos um momento de triunfo pleno e absoluto do direito constitucional. Em menos de uma geração, o direito constitucional passou da desimportância ao apogeu. Uma vitória a ser celebrada com humildade. Na vida a gente deve ser janela e não espelho. O direito constitucional deve ser a janela pela qual se olha o mundo.7

Uma outra manifestação da pujança constitucional é a irradiação deste ramo para os demais ramos do Direito – a Constitucionalização do Direito, agora feita e pensada de forma muito mais profunda e consequente.8

3 COMPREENDER CLIMAS ANTICONSTITUCIONAIS ANTIPOLÍTI-COS E ANTIPARLAMENTARES

Muito se critica, e nem sempre sem razão, é certo, o Poder Legislativo, que tem uma visibilidade midiática muito grande, e relativamente ao qual se concentram muitas antipatias e preconceitos. Só comparável nos regimes presi-dencialistas à visibilidade presidencial.

Não podemos deixar de observar que a alternativa potencial (a que viria) à Democracia e ao Parlamento não é mais participação e mais liberdade: é a di-tadura e a concentração dos poderes - que obviamente são muito piores. Desde logo, nessa situação, não se poderia sequer descobrir nem falar de escândalos. E as fraquezas das pessoas, se a coberto do silêncio politicamente imposto numa ditadura (ou num interregno da democracia) seria presumivelmente muito maiores, com crimes muito mais graves. Assim foi já no passado. Porque haveria agora de um regime antiparlamentar e antipolítico de ser diferente?

Para dar exemplos do clima de democratização da discussão constitucional, que infelizmente vai hic et nunc de par com o mais profundo desconhecimento e preconceito, poderíamos deleitar-nos satiricamente a dissecar um e mail que andou a infetar ideologicamente a Internet, fulminando quem o não mandar a 20 amigos, não com uma praga das habitualmente rogadas para incumprimentos de índole su-persticiosa, mas com a desgraça nacional, e clamando pela mudança da Constituição, já.

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Paulo Ferreira da Cunha

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Não o vamos fazer, porque não merece a pena. Mas importa registrar a sua existência, e sublinhar o nível a que se chegou nalguns círculos. A tanto ajuda, evidentemente, por exemplo, a facilidade (e em grande medida irresponsabilidade, apesar de algumas decisões pesadas já) difusora da superficialidade das redes sociais, na qual, eviden-temente, pode haver pérolas, mas que foram já bem analisadas por Umberto Eco.

Curiosamente, não vemos que nenhum dos pontos que reivindica o referi-do documento (todos apontados ao preconceito antiparlamentar: todas contra os sujeitos-deputados) tenham acolhimento fundamental na Constituição. É, pois, uma “bola fora”, apostada na desestabilização, nas nossas repúblicas, tornando-se, a certos níveis, num excesso de rumores e maledicências, de invejas e raivas, em que os suspeitos do costume têm de ser bode expiatório, sem sequer qualquer imaginação em mudar os alvos. E assim sujeitando naturalmente os estigmatiza-dores aos mesmos rótulos dos que antes atacaram e perseguiram ideias e pessoas que, de novo, voltam a estar sob mira.

Apenas uma ilustração, também foi dito, há uns anos, que, mesmo se o Tribunal Constitucional português fulminasse de inconstitucionalidade com aplicação total e imediata (e não diferida) o confisco (ou ablação) de parte do 13º mês, o Governo poderia placidamente não cumprir. Por que razão? Suspeitamos que por uma espécie de “executoriedade” política.

Obviamente que sim, as ilegalidades e as inconstitucionalidades são fática, fenomênica, historicamente possíveis. É óbvio. A História está cheia de situações dessas: que preconceito de redoma juridista não o faz ver? Há, no limite, a cha-mada a força normativa dos fatos - que é rematado exemplo de antijuridicidade.

Com algum subterfúgio colhido nas dobras da Constituição, é, obviamen-te, caso discutível. Contudo, o que está em causa é a fidelidade geral à Constitui-ção. Uma Constituição assim diminuída e aviltada, ainda que com justificação ainda constitucional, passa a breve trecho a mera folha de papel.

Consideramos que pode haver, com respeito por um círculo mínimo de direitos, até, no limite, estado de necessidade financeiro.9

Se não houvesse tesouro para pagar aos inúmeros gastos supérfluos e sump-tuários, que, mesmo eventualmente contra vontade dos governantes persistem (e persistem mais se localizadamente ao menos não houver vontade de os eliminar), etc., poderia talvez não se pagar aos funcionários e pensionistas uma parte da sua remuneração. Uma vez que, nos Estados, há sempre muito dinheiro para esbanjar, parece que os sacrifícios que se pedem aos pequenos são realmente exagerados, e que haveria outros lugares por onde cortar. Nesta matéria, a questão econômica não é alheia à determinação jurídica, porque está em causa a reserva do possível. E o possível depende do que o tesouro possa pagar. E da dialética com o princípio da proibição do retrocesso. Na verdade, ambos são duas faces da mesma realidade...

A questão fulcral é esta: é evidente que ainda há Constituição em estado de sítio, em estado de emergência, etc.. Mas não a há na sua plenitude. O princípio

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da máxima efetividade da Constituição também deve ser lido nessa perspetiva: a Constituição deve caminhar para a sua aplicação plena. E tudo, na atividade do Estado, deve-se dirigir a esse objetivo. Não por um fetichismo constitucionalista, mas porque, realmente, a Constituição é o grande contrato social de hoje em dia, é o acordo público dos cidadãos, é a carta do programa nacional.10

E a verdade é que, embora os críticos falem muito, gritem alto, atuem poderosamente e façam grande alarido e grandes estragos na Constituição em ação, sempre que têm poder para tanto, eles são minoritaríssimos, porque a Constituição em geral espelha realmente as aspirações profundas do Povo. Isso mesmo se verificou, no caso lusitano, na própria votação por esmagadora maioria (só quinze votos contra) da Constituição na Assembleia Constituinte.

O problema real que se está a viver é que, mercê da crise, que não foi criada pelos amigos da Constituição, muito pelo contrário, as situações de vida em que muitos se encontram levam-nos a confundir os responsáveis, sob pressão de uma comunicação social sensacionalista que parece apostada em desviar as atenções dos reais problemas, encontrando manobras de diversão.

Como o grande crime da democracia que temos foi um clamoroso fracasso educativo, quer na informação quer na formação, desde logo, na formação crítica e cívica dos cidadãos, muitos de nós não estamos preparados para resistir, com sentimentos democráticos, ao rol de lama que é atirado para cima dos políticos, com especial alvo para o Parlamento, casa da democracia e que tantos gostam, ao longo da História, de caluniar para depois fechar e vir mais tarde a transformar numa assembleia dócil (lembremos apenas Oliver Cromwell): com razão ou sem razão, envolvendo nas condenações em praça pública os justos e os pecadores. E assim motivando o sentimento de ódio e revolta do cidadão comum cheio de dificuldades econômicas e afrontado pelo escândalo de negócios e negociatas que se desfila perante os seus olhos e a sua impotência.

É assim que há terreno propício às maiores das demagogias. E seria importante que os verdadeiros democratas, de todos os quadrantes, se unissem nos vários países em torno da sua Constituição, antes que um aventureiro ou um grupo de aventu-reiros decida passar o Rubicão. Levando, atrás de si, a reação, a vingança, o ajuste de contas com a democracia por parte de alguns, poucos, saudosistas, mas também manipulando a massa dos desempregados, dos espoliados, dos maltratados por uma democracia meramente formal como a que estamos cada vez mais a ter, com olvido, menoscabo ou compressão dos direitos sociais.11 Em que os traços generosos e sociais do Estado se arriscam a ser apagados, com acinte e sobranceria, por uma vanguarda que, precisamente pela sua falta de passado e especialmente de memória, acredita que o neoliberalismo (à sua moda) é o alpha e o omega da História. E pode ser um neoliberalismo com laivos autoritários (e repressivos até: como veremos).

Não é que os Parlamentos que temos tido sejam conclaves de santos e acade-mias de sábios. Como em todas as associações de pessoas há do bom e do mau, e até do muito bom e do muito mau... E assim será mais, se não houver regras apertadas de

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Paulo Ferreira da Cunha

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seleção. Já um Oliveira Martins deplorava que, para se ser político, não fosse preciso nenhum diploma e nenhum currículo. Certamente tal terá de ser meditado nos par-tidos, que deverão pensar duas vezes antes de mandar para o Parlamento candidatos menos preparados, sob pena de a opinião categorizada do parlamento ser afinal tão leiga e tão manipulável como a massa. Não se fala sequer da idoneidade. Algo como o sistema brasileiro da “ficha limpa” é um exemplo a seguir por outros. Contudo, ser político não é ser graduado ou bacharel. E pode haver, e tem havido, excelentes políticos sem grandes habilitações formais. Depende muito, de muitos fatores...

Muito se pode melhorar na seleção dos deputados e nas regras de funcio-namento das Assembleias legislativas. Desde logo, a ideia de eleições primárias internas nos partidos, pelo menos entre os seus filiados, parece tão passível de promover a renovação que alguns fogem dela como o diabo da cruz. Não seria panaceia universal, mas ajudaria, ao menos, à efetivação dos direitos dos membros dos partidos se efetivarem, e a maior transparência e menos compadrio.

Mas uma coisa é uma sã reforma do sistema político, aprofundando a democracia, outra, precisamente inversa, é atirar fora a democracia efetiva e, ainda que com capa democrática no discurso (hoje é difícil ser-se assumidamente ditador: mas nunca se sabe), implantar uma autocracia a sério, a começar pela asfixia das liberdades públicas.

4 E N T E N D E R A R E L A Ç Ã O E N T R E D O I S P R I N C Í P I O S CONSTITUCIONAIS PARA A CRISE: PROIBIÇÃO DO RETROCESSO E RESERVA DO POSSÍVEL

Numa situação de crise, como aquela em que se vive, embora se saiba bem que avulta muito má repartição da riqueza e ainda péssima gestão dessa riqueza, a verdade é que sem uma alteração (que levaria tempo e exigiria outras políticas e outros protagonistas políticos) dessas variáveis não há forma simples de satisfazer completamente todos os direitos sociais de todos os cidadãos.

Há, contudo, necessidade de compaginar essa situação de fato com o respeito pela Constituição. Pelo menos visando a um respeito decoroso, razoável, pela Cons-tituição. Mantendo-lhe ao menos um mínimo respeitabilidade e força normativa.12

A única saída para os constitucionalistas e juristas com conhecimento e escrúpulo parece então ser, nessas circunstâncias adversas, o uso de dois co-nhecidos princípios,13 os quais, quando são usados, normalmente o vêm a ser contraditoriamente: a reserva do possível (pela qual se procura legitimar muito o corte de direitos) e proibição do retrocesso (normalmente social – mas pode ser até usado para questões constitucionais mais elementares e aparentemente mais consensuais numa sociedade), que, pelo contrário, é uma barreira ao recuo social e civilizacional.

A tendência para a contradição e contraposição entre os dois princípios é o que ocorre normalmente na doutrina. E, sobretudo, na banalização superficial

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A caminho do constitucionalismo 4.0: teses constitucionais para hoje e amanhã

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da sua invocação no debate ideológico e político corrente, quando ocorra... (o que já é um “plus” relativamente ao argumentum baculinum).

E então somos tentados a efabular questões como: e qual o mais importan-te? Qual o que deverá prevalecer? No sentido de encontrarmos uma solução fácil e cômoda, aplicável mecanicamente e que nos exima de pensar no caso concreto.

Ora tal levar-nos-ia por outras vias à vexata quaestio da ordem de valores.14 Uma ordem de valores, ou uma ordenação dos princípios, seria mais um fator de dissenso insanável. Mesmo que se tratasse apenas de arbitrar uma contenda entre simplesmente dois. Não é correta essa ordenação. Com que critério se faria? Evidentemente que, no caso, haveria preferências ideológicas extremas evidentes, e de novo se cairia em dar razão ao ataque proverbial ao Direito Constitucio-nal juridicizado: “não é Direito; é apenas política”, ou “é política com capa de Direito...”, etc. Só topicamente, dialeticamente, nos casos concretos, poderá-se ver qual poderá prevalecer, e sempre – como ocorre para os direito tout court – resguardando, na aplicação dos princípios, o círculo mínimo, o núcleo essencial dos direitos que cada um protege. Ou os bens jurídicos que tutela.

Mas, ainda assim, a mera contraposição principial nos parece relevar uma consideração isolada dos princípios, esquecendo-se a necessidade de atentar a um princípio de unidade da Constituição (que se pode estender à unidade na própria hermenêutica constitucional), em conexão com o princípio da interpretação segundo a Constituição e o princípio da máxima efetivação ou efetividade da Constituição.15

Poder-se-ia então (cercando os dois princípios aparentemente contrapostos, e iluminando-os com a luz dos vários outros que acabamos de invocar) começar a entender que reserva do possível e proibição do retrocesso devem ser vistos em consonância, como concorrendo ambos para a efetivação, para a concretização e para a defesa e salvaguarda da Constituição, na sua aplicação prática, concreta, real.16

No fundo, a reserva do possível só pode conceber-se como uma forma de cortar no acessório para salvar o essencial. Nunca pode ser um sacrifício do essencial. Ao aplicar este princípio, apropriadamente, não se ataca senão na aparência a proibição do retrocesso, porque, afinal, trata-se de um passo atrás para poder dar dois à frente, em tempo mais oportuno.

Do mesmo modo, a proibição do retrocesso também não pode ser vista como uma obstinada manutenção, por exemplo, de “despesismo”, desperdício, mordomias, gastos sumptuários, privilégios de casta, de corporação, etc.

Na verdade, é muito sutil e complexo diferenciar com objetividade aquelas situações de outras, de direitos efetivos, que devem ser preservados.

A nossa sociedade ainda comporta muitas situações especiais. A igualdade e a equidade aconselham a que se tratem situações desiguais de forma desigual (na medida da sua desigualdade, de acordo com a diferença). É normalmente sinal de desconhecimento, falta de sensibilidade social e/ou demagogia criticar-se de forma sistemática qualquer regra que saia da normalidade, da mediania. Não

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nos esqueçamos, por exemplo, da justificação de Rawls de algumas desigualdades em nome da utilidade geral.17

Existem desigualdades, umas mais ilegítimas que outras, e algumas necessárias e outras até legítimas, e há a desigualdade, que é a situação geral e permanente que, ferindo no coração o valor político-jurídico e constitucional da Igualdade, não deveria deixar nenhum jurista e nenhum estadista com o sono tranquilo. A demagogia dos invejosos (e os invejosos atiçados pela demagogia) dorme placidamente com um quadro geral de desigualdade, mas, por vezes, embirra com uma ou outra desigualdade pontual, a qual até poderá ser, pelo contrário, sinal de prêmio do mérito, ou de adequação a uma idiossincrasia. E se o for não pertencerá ao sistema da desigualdade, mas, pelo contrário, da Igualdade. Mas fazer entender isto!?... Só um simples exemplo: o automóvel da Polícia que, em perseguição de criminosos a sair da cena do crime, ultrapassa os limites de velocidade não abusa de poderes, não tem privilégio. Tal decorre da natureza das coisas... Em contrapartida, a opinião pública admite facilmente as desigualdades gritantes (eticamente escandalosas) das vedetas18 de qualquer tipo, enquanto em muitos casos (e sem razão) considerará absurdas as licenças sabáticas dos professores pesquisadores ou as férias mais alargadas dos juízes em alguns países. Em grande medida porque acicatada pela demagogia dos que não gostam de que quem pense tenha tempo. Dos que erroneamente fazem crer que só se trabalha num local de trabalho de linha de montagem com pica-ponto, e, no geral, que esse tipo de profissionais realmente não trabalha (é proverbial a pergunta, milhões de vezes repetida: “Professor, o senhor trabalha ou só dá aula?”).

Como diz François Vallançon:

On attribue moins à qui est capable de porter moins. Donner la même part au loup et à l’agneau serait injuste car ce serait la mort de l’agneau. Donner à un mouton une part de mouton et à un autre mouton la part de loup serait aussi injuste car ce serait au désavantage de l’un des deux.19

Há ainda todo um labor a desenvolver que passa pela teorização dos direitos adquiridos, dos que são intocáveis e dos que têm diversos graus de permeabilidade à mudança, para mais em tempos de crise. Infelizmente a doutrina nem sempre se preocupa com questões de vital relevância como essas...

De qualquer forma, a proibição do retrocesso tem de ser vista como um princípio de adesão ao programa constitucional, de defesa desse mesmo programa, nas suas grandes linhas, e não de reduto de situações mais ou menos arcaicas que nada tenham a ver com os grandes direitos constitucionalmente consagrados. Mas é necessário o maior cuidado para não embarcar na linguagem da identi-ficação dos direitos com arcaísmos... Pode haver uma tentação de eficientismo, tecnocracia e afins que calunie os direitos...

E do mesmo modo, a reserva do possível também é uma válvula de segurança do programa constitucional, que assumidamente se limita a reduzir a mínimos (mas os assegura de forma equitativa) no caso de uma situação difícil, de carência, sobretudo

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financeira – não se fala, obviamente de (im)possibilidade ontológica, matemática, física, lógica, como é óbvio – mas com o fim de, assim, se assegurar o essencial do quadro jurídico-político, social, econômico e cultural da Constituição.

Ou seja: a reserva do possível, no limite dos limites, aceitaria (metaforica-mente) cortar um membro da proteção aos cidadãos para com isso (e só se isso para tal fosse imprescindível) salvar todo o corpo (ou edifício) desses direitos. Não se trata de sacrificar algumas pessoas, para salvar outras – isso seria inaceitável, e contrário, desde logo, ao princípio da Igualdade. Mas de aceitar diminuir algumas prestações sociais, por exemplo, para salvar a continuidade e evitar a “falência” da Segurança Social, ou do sistema de saúde, etc. E cortar por cortar, deve cortar-se com justiça, nunca com alvos fáceis, ou escolhidos por preconceito ideológico (é fácil atacar funcionários públicos, pensionistas, professores e outras classes pouco reivindicativas; é difícil tirar o que quer que seja a políticos, banqueiros, grandes empresários, associações poderosas, mesmo a trabalhadores de setores-chave que podem parar os países com greves geradoras de grande anomia).

Ao vermos estes dois princípios assim, solidários, pelo bom senso, pelo senti-do da medida das coisas, pela necessidade de harmonização,20 suspeitamos que haja algum princípio superior que presida a ambos. Um desses princípios silenciosos, que, se fosse expresso apenas por si, arriscar-se-ia certamente a não ser entendido em todo o seu alcance podendo mesmo quedar-se vazio. Mas que vive e se atualiza e tem efeito útil na dialética “cúmplice” dessas duas vertentes do problema.

Não seria fácil nomear o princípio que aos dois move. É um princípio de fidelidade à Constituição, com flexibilidade quando haja latitude para tanto, e inflexibilidade quando a tal seja obrigado. Um princípio cibernético que umas vezes fará com que as comportas da Constituição se fechem a mudanças con-fiscadoras de direitos, e outras vezes se permitam algumas perdas, temporárias, estratégico-táticas, sem vacilação no essencial e muito em especial do horizonte dos grandes fins constitucionais.

Parece ficar claro que este princípio silencioso só se faz ouvir, só se pode mesmo fazer ouvir, através da aparente antinomia dos dois outros que referimos.

5 PARA UMA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

O papel das Cortes Constitucionais nacionais e regionais tem sido dos mais relevantes nos últimos anos. O Direito Constitucional, que inicialmente, nas fases 1.0 e 2.0 (para não falar no Constitucionalismo tradicional, histórico, consuetu-dinário, digamos fase 0.1), era sobretudo proclamatório (de grandes Declarações de Direitos - e essa a grande crítica dos tradicionalistas e “realistas”) e normativo, por assim dizer legal-codificado (nas Constituições do Constitucionalismo moderno, naturalmente escritas - e essa a crítica capciosa de pretensos antipositivistas na ver-dade anticonstitucionais tout court) passa agora a ter também uma importantíssima vertente jurisprudencial. Além disso, na nova constelação de fontes passa a ser importantíssima a dimensão internacional nos seus diversos aspetos (proclamató-

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rio, normativo, e jurisprudencial; não esquecendo ainda, no plano internacional, sobretudo, a importância do costume).

O acervo jurídico constitucional que hoje se pode considerar, além do bloco de constitucionalidade nacional de cada país, inclui matéria internacional, como, desde logo na União Europeia, o Tratado de Lisboa. Este, em grande medida, é explicitamente herdeiro de uma gorada tentativa de afirmar a constitucionalidade de um tratado (o projeto da Convenção Europeia),21mas que obviamente é a base codificada da Constituição material da União Europeia, hoje, apesar das dificul-dades da Constituição real (efetiva relação de forças e protagonismos).22

Um corpus significativo pode ser utilizado por um futuro Tribunal Cons-titucional Internacional,23 que será o próximo passo, o Constitucionalismo 4.0. Sem caráter de exaustividade, recordemos alguns instrumentos, que alguns já pensam em codificar, dada a sua profusão: sobretudo costumes e tratados, mas não esqueçamos o direito nacional, e não apenas as Constituições de cada país.

Vejamos, pois trata-se de textos que vão da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos, da Carta da Organização dos Estados Americanos, da Ata Constitutiva da União Africana, Princípios de Harare, aos Tratados da União Europeia, v.g. o referido e importantíssimo Tratado de Lisboa, sem esquecer, evidentemente, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Ninguém poderá certamente negar que só estas fontes são uma grande Constituição material dispersa, e universal. Há um Constitucionalismo material global, já. E torna-se urgente, assim, ir dando passos no sentido de uma jurisdição que faça prático, vivente, real esse direito.

O futuro do Direito Constitucional passa, assim, pelo levar a sério24 todas as fases anteriores, e avançar para a globalização jurisdicional constitucional, com a criação da nova Corte, que tem vindo a ser discutida em grandes fóruns interna-cionais, primeiro na Tunísia (por várias vezes, em vários congressos) e ainda este ano de 2015 (junho) em Marrocos, mas que se espera venha a ter um momento alto nos próximos anos, com grandes iniciativas no Brasil e na América Latina em geral, onde há grandes entusiastas da ideia, para já sobretudo no meio acadêmico...

Mas perguntar-se-á: um Tribunal Constitucional mais, e ainda por cima Internacional? Não serão instituições a mais? Burocracia em excesso? Mise-en-scènes internacionalista para media propagandear? Ou (pior ainda) nem isso sequer?

O cidadão comum em um país democrático q.b. desconfiará certamente dessas distantes instituições supranacionais, que não vê sequer legitimadas pelo voto, e que presume serem pagas a peso de oiro pelos seus impostos, ainda que indiretamente. Para quê criar mais uma? E estando já os tribunais constitucio-nais e afins nacionais sob a mira de muita propaganda para os desacreditar (em Portugal não pode discordar uma vírgula do poder, que logo um coro - sem grandes notas dissonantes em sua defesa nos media - se levanta indignado, tor-tuoso, ou mesmo agressivo e furioso contra ele), um tribunal do mesmo gênero,

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mas internacional, poderia assim parecer um luxo do mais supérfluo.

Mas vejamos a questão por outro ângulo: e se tal instância fosse o único re-curso em casos de estrangulamento das instituições, o último apelo antes do clássico recurso para o céu, piedosa metáfora de resignação que se atribui a Locke e a Hume?

Em situações de placidez democrática não costumamos pensar muito nesta possibilidade trágica de não ter juiz a quem recorrer verdadeiramente. Na velha Europa Ocidental, os recursos costumavam ser para instâncias conhecidas, e relativa-mente próximas em quem geralmente confiamos, ou, pelo menos, não desconfiamos sistematicamente. Mas quando as crises apertam, e, sobretudo, quando se produz o salto qualitativo (negativo) de falta de direitos sociais (em si mesma já terrível) para falta de liberdade (insuportável), ou, pelo menos, o temor razoável e plausível que tal venha a ocorrer, a questão começa a ganhar uma enorme acuidade: quem nos poderá valer, em situações extremas de injustiça? Quem guarda os guardas?

Stamatios Tzitzis, em um artigo brilhante e cheio de atualidade ainda hoje (talvez até cada vez mais)25 chama a atenção para a situação que tecnicamente poderíamos considerar ser de inconstitucionalidade da constituição real da Europa, e termina com uma terrível advertência:

Peu sensibles aux infortunes des peuples, les Stratèges de l’Europe les poussent à opter pour ces sortes de regimes qui ont ensanglé les années ’40 l’humanité toute entière.26

Evidentemente que a Europa, mesmo a Europa do Sul massacrada pelo neo-liberalismo repressivo (de que fala o Prof. Adriano Moreira27, prestigiado universitário jubilado, antigo líder democrata cristão, e ex-Presidente da Academia das Ciências de Portugal), ainda é um paraíso comparada com certos países, pelo mundo fora, em que se aliam a desigualdade e a falta de cuidado social mais profundas, a ausência ou limitação drástica dos direitos e liberdades mais elementares e o bloqueio dos canais de acesso a uma verdadeira justiça, reta e independente.

O Tribunal Constitucional Internacional (TCI), longe de vir a ser um luxo ou mais um lugar de mordomias para happy few, é uma necessidade, em dois níveis: nos países democráticos, ele será vigilante no sentido de que não possa haver (por exemplo, mercê de crises e voluntarismos que elas acarretam) uma deriva autoritária ou mesmo totalitária, como a que parece temer Tzitzis, entre tantos outros; contribuirá para mais e melhor democracia e justiça. Nos países que o não são, ou que o são menos ou imperfeitamente, trata-se de propiciar a aí inexistente ou escassa sindicabilidade dos atos do poder, em que, muitas vezes, há a pior da indivisão dos poderes: o remar na mesma direção e na mesma sintonia ideológica e/ou de interesses de governo, legislativo, poder judicial e não raro do quarto poder da comunicação social. O qual está a ganhar uma dimensão avassaladora, pela enorme capacidade que tem de formatação das consciências, muito pouco críticas, e, desde logo, sem tempo para refletir, e sem educação em geral votada ao exercício da crítica. As massas (e mesmo algumas pretensas elites) são, assim, muito permeáveis à doutrinação, à propaganda, à alienação.28

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Quando em um país os poderes em vez de se equilibrarem protegem alguns e perseguem outros, encobrem uns e caluniam outros, quando o cidadão honesto e, muitas vezes, o opositor político (mas não só: por vezes apenas o pacato cidadão cujo nariz desagradou, ou o moleiro que tem uma propriedade que o imperador cobiça) não encontram no próprio sistema judicial do seu país uma saída, é necessário um TCI.

Mas evidentemente que nem só estes casos drásticos serão tratados pelo TCI. Para além da função contenciosa, duas outras funções mais fisiológicas e até profiláticas ele terá:

Por um lado, poderá ser chamado a verificar a legalidade, transparência e limpeza de eleições. Há ainda países que isso reclamam, e tal necessita de ser feito cada vez mais por um corpo especializado e não meramente por comissões eventuais. Sem prejuízo da necessária rotatividade e escrutínio dos observadores, para garantir que estejam acima de qualquer suspeita.

Por outro lado, e a pedido de organizações dos Estados ou algumas ONGs, etc., o TCI terá ainda, em termos que permitam uma não proliferação de casos de lana caprina, a função de aconselhamento, elaborando respostas a consultas. Resolvendo assim dúvidas constitucionais legítimas de instituições públicas e entidades particulares relevantes.

É um projeto ainda em curso, em discussão pública internacional. Apenas se encontra elaborado o perfil da instituição e as linhas gerais dos seus objetivos, havendo algumas propostas, mas encontrando-se muitas das questões flexíveis e em aberto...

A discussão é essencial para que se encontrem boas soluções. Mas uma coisa é certa: será um tribunal, com toda a força jurídica e o rigor do Direito, votado a que não possa haver no planeta nenhum recanto onde possa triunfar a tirania, o despotismo, o torto, ainda que protegido por sistemas “jurídico-políticos” de ditadura mais ou menos sutil e/ou de falsa juridicidade.

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1 Neste artigo utilizou-se o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor, na sua variante europeia.2 ALAIN. Propos, n. 524, abril de 1931, Paris, Gallimard: ed. Pléiade, v. II, p. 854 Cf. o nosso livro CUNHA, Paulo Ferreira. Para uma Ética Republicana. Lisboa: Coisas de Ler, 2010, com

Prefácio de Eduardo Bittar.

4 Sobre todos estes conceitos de periodização, cf., v.g., o nosso livro CUNHA, Paulo Ferreira. Direito Cons-titucional Geral. 2. ed. Lisboa: Quid Juris, 2013. (da edição brasileira se fará em breve nova publicação). Sobre os Constitucionalismos.

5 CUNHA, Paulo Ferreira. Constituintes, Ideologia e Utopia. Linhas de Leitura Comparatísticas Luso--brasileiras. In: DUARTE, Rui Pinto et al. (orgs). Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida. Coimbra: Almedina, 2011, v. 3, pp. 73-96.

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6 DE SOUSA SANTOS, Boaventura. Que Democracia é esta? In: Público, 19 de Julho de 2011, apud A Viagem dos Argonautas. Disponível em: <http://aviagemdosargonautas.blogs.sapo.pt/755904.html>.

7 BARROSO, Luís Roberto. O Novo Direito Constitucional e a Constitucionalização do Direito. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA, Martinio Mont’Alverne Barreto (Orgs.). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em Países Periféricos. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife, 2006, Renovar, p. 324-325.

8 Cf., v.g., SARLET, Ingo (Org.). A Constituição Concretizada. Construindo Pontes com o Público e o Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional. Construindo uma Nova Dogmática Jurídica. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1999. MORAES, Maria Celina Bodin de. A Ca-minho de um Direito Civil Constitucional, In: Revista de Direito Civil, 65: 23, 1991. LUCARELLI, Maria Virginia Galvão Paiva. Repensando o Direito da Família, à luz dos Direitos Constitucionais Fundamentais. In : SILVA, Roberto B. Dias da. (Coord.). Direito Constitucional. Temas Atuais, p. 131 ss. ARONNE, Ri-cardo. Direito Civil Constitucional e Teoria do Caos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006. BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, com o significativo prefácio de Luis Roberto Barroso, A Caminho de um Direito Administrativo Constitucional; ZANITELLI, Leandro Martins. Direito Privado Consti-tucional e Método. Porto Alegre: UniRitter, 2008. PALMA, Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal. Coimbra: Almedina, 2006. CARVALHO, Alexander Perazo Nunes de. O Direito Constitucional e as Novas Relações Patrimonais. In: SALES, Gabrielle Bezerra; JUCÁ, Roberta Laena Costa (Orgs.). Constituição em Foco. 20 Anos de um Novo Brasil. Fortaleza: Faculdade Christus, 2008, p. 261 ss.

9 Cf., mais desenvolvidamente, o nosso livro, CUNHA, Paulo Ferreira da. Constituição & Política. Lisboa: Quid Juris, 2012.

10 Cf. o nosso livro CUNHA, Paulo Ferreira. O Contrato Constitucional. Lisboa: Quid Juris, 2014.11 Cf. o nosso livro CUNHA, Paulo Ferreira. Direitos Fundamentais. Fundamentos e Direitos Sociais. Lisboa:

Quid Juris, 2014.12 HESSE, Konrad. Die normative Kraft der Verfassung. Tubinga: Mohr, 1959, trad. port. In: A Força Normativa

da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991.13 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. LEITE, George

Salomão (Org.). Dos Princípios Constitucionais: Considerações em torno das Normas Principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Prin-cípio. Os Limites da Jurisdição Constitucional Brasileira. Barueri: São Paulo, 2003. Uma visão diversa das preponderantes hoje é a de PEREIRA MENAUT, Antonio-Carlos. Constitución, Principios, Valores. In: Dereito, v. 13, n. 1, 2004, pp. 189-216.

14 Cf., ALEXY, Robert .Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, 1986, In: VALDÉS, Ernesto Garzón (Trad.). Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 152 ss.; e já o nosso CUNHA, Paulo Ferreira. Teoria da Constituição. Direitos Humanos, Direitos Fundamentais. Lisboa/São Paulo: Verbo, 2000, v. 2, p. 278.

15 Sobre vários princípios constitucionais aqui relevantes, cf., por todos, o nosso manual CUNHA, Paulo Ferreira. Direito Constitucional Geral. Nova edição. Lisboa: Quid Juris, 2013, p. 357 ss.

16 Cf. o nosso CUNHA, Paulo Ferreira. Dos Princípios Positivos e dos Princípios Supremos. In: Collatio, Madrid, 2012, n. 11, pp. 5-16.

17 RAWLS, John. A Theory of Justice. Harvard University Press, 1971. In: CHACON, Vamireh (Trad.). Uma Teoria da Justiça. Brasília: Edições da Universidade de Brasília, 1981.

18 Cf. ARON, Raymond. Essai sur les libertés. Paris: Hachette, 1998, p. 129.19 VALLANÇON, François. Philosophie juridique. Paris: Studyrama, 2012, p. 109.20 CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões entre Princípios Constitucionais. Razoabilidade, Proporcio-

nalidade e Argumentação Jurídica. Curitiba: Juruá, 2006. MORESO, José Juan. Conflictos entre Principios Constitucionales. In : Neoconstitucionalismo(s). Madrid : Trotta, 2003, p. 99 ss

21 Cf. o nosso livro CUNHA, Paulo Ferreira da. Novo Direito Constitucional Europeu. Coimbra: Almedina, 2005.22 Cf. o nosso artigo CUNHA, Paulo Ferreira. União Europeia, Soberania e Finanças Públicas, no prelo.23 Cf., por todos, BEN ACHOUR, Yadh. Au Service du droit démocratique et du droit constitutionnel international.

Une Cour constitutionnelle international. Revue du Droit Public, 2014, n. 2, p. 419 ss..; International Consti-tutional Court — Projet de Création d´une Cour Constitutionnelle Internationale / Project for the Establishment of an International Constitutional Court, Tunis, Documents of the ICCo Ad hoc Comimittee, 2014. E os nossos artigos CUNHA, Paulo Ferreira da. Tribunal Constitucional Internacional (TCI): Corpus e Animus. In: Justiça com A, n. 3, 17 de fevereiro de 2015, pp. 10-11. La Cour Constitutionelle Internationale (ICCo) - Une Idée

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qui fait son chemin, “Notandum” 38 mai-ago 2015, CEMOrOC-FEUSP / IJI-Univ. do Porto, p. 21 ss.; Psycho-logie des souverainistes. Un obstacle de fond au droit constitutionnel international, conferência no colóquio Une Cour Constitutionnelle Internationale au service du droit démocratique et du droit consitutionnel, Rabat, Faculté de Droit de Rabat-Agdal, Université Mohammed V, 16 de Junho de 2015, no prelo. E o nosso livro CUNHA, Paulo Ferreira da. Pour une Cour constitutionnelle internationale. Lisboa: A Causa das Regras, no prelo.

24 Recordando, evidentemente, DWORKIN, Ronald. Taking Rights seriously. Londres: Duckworth, 1977. GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Tomemos a sério os direitos econômicos, sociais e culturais. Separata de Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, número especial, “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Antônio Arruda Ferrer Correia, 1984“. Coimbra: 1988, In: Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.

25 TZITZIS, Stamatios. Crise économique, souveraineté populaire et droits sociaux. Annuaire International des Droits de l´Homme, v. VII, 2012-2013, p. 505 ss.

26 Ibidem, p. 513.27 Apud “Jornal i”,13 de julho de 2014. Disponível em: <http://www.ionline.pt/artigos/portugal-25-abril/

adriano-moreira-portugal-esta-governado-neoliberalismo-repressivo>. Acesso em: 16 ago. 2014.28 Especificamente sobre alienação, mesmo dos próprios juristas, que são uma certa casta, apesar da massificação a

que se tem assistido, cf. o nosso livro CUNHA, Paulo Ferreira. Desvendar o Direito. Lisboa: Quid Juris, 2014.

HEADING TO CONSTITUTIONALISM 4.0: CONSTITUTIONAL THOUGHTS FOR TODAY AND TOMORROW

ABSTRACT

This article presents and develops some thoughts we figure as elementary and vital for the conscious emergence of a new constitutionalism (do not confuse it, of course, with neoconstitutionalism), which might be designated as 4.0. To achieve this objective it will be necessary a profound historical and philosophical comprehension of previous phases of constitutionalism. Also an accurate diagnosis of the attacks, the disdain and the oblivion of the constitutions in many countries must be performed. To accomplish these tasks will require confidence (forged by hard work) in theoretical and practical energy of this great civilizational conquer, which nowadays stumbles in others rationalities or irrationalities, from interests and superficialities to lack of culture and technocracy. One of the new glimpses of hope is the creation of a International Constitutional Court for Democracy, Human Rights and rule of law.

Keywords: Constitutional History. Constitutionalism. Crisis on Democracy. International Constitutional Court.

Submetido: 17 ago. 2015Aprovado: 21 ago. 2015

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Normas de Publicação

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normAs De puBlicAção

1 LINHAS DE PESQUISA

Os temas poderão receber abordagens variadas tanto de natureza mais dogmática quanto teorética. São admissíveis leituras históricas, políticas, jurídi-cas, metodológicas e interdisciplinares. É facultado aos autores abordar apenas aspectos específicos no contexto maior da linha de pesquisa escolhida. São elas:

Constituição, Estado e Sociedade

Direitos Humanos e Fundamentais

Teoria Política e do Direito

Estado Democrático de Direito

2 ESTRUTURA GERAL DO ARTIGO CIENTÍFICO ( 15 A 30 PÁGINAS)

Elementos pré-textuais:

Título e subtítulo (se houver), separado por dois pontos;

Nome do autor (e do coautor, se houver), acompanhado de breve cur-rículo que o qualifique na área de conhecimento do artigo, com a respectiva titulação acadêmica, endereço eletrônico e filiação institucional (em nota de rodapé);*

Resumo na língua do texto: sequência de frases concisas e objetivas, e não uma simples enumeração de tópicos, de 150 a 250 palavras, espacejamento entre linhas simples. Seguem-se as palavras-chave, representativas do conteúdo do trabalho, separadas por ponto e finalizadas por ponto (de 3 a 5 palavras).

* A submissão do artigo, sem qualquer menção de autoria, para os pareceristas, ficará a cargo da equipe editoral responsável.

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Elementos textuais:

Modelo A:

1 Introdução

2 Desenvolvimento

3 Conclusão

Modelo B:

1 Introdução

2 Referencial Teórico

3 Metodologia da Pesquisa

4 Análise dos Resultados (deve conter a análise dos dados obtidos)

5 Conclusão

Elementos pós-textuais:

Agradecimento (não é obrigatório)ReferênciasNotas de fim, após referências, em Times Nem Roman 10

3 FORMATAÇÃO DO ARTIGO

O título deve estar centralizado, em negrito e em caixa alta, sendo escrito em tamanho 14.

Logo abaixo do título do trabalho devem constar o(s) nome(s) completo(s) do autor, do(s) coautor(es) recuados à direita, acompanhados de breve currículo que os qualifiquem na área de conhecimento do artigo, com a respectiva titulação acadêmica e endereço eletrônico (em nota de rodapé identificada com asterisco).

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Exemplo:

TÍTULO DO ARTIGO

João J. João*

Pedro P. Pedro**

Maria M. Maria***

O texto deve ser digitado com letra Times New Roman, tamanho 12, usan-do espaço entrelinhas 1,5 e espaçamento entre parágrafos de 0 pt antes e 06 pt depois. O espaço da primeira linha dos parágrafos é de 1cm. As citações de mais de três linhas, as notas de rodapé, as referências e os resumos em vernáculo e em língua estrangeira devem ser digitados em espaço simples.

O formato do papel a ser utilizado tanto na versão eletrônica quanto na impressa, deve ter formato A4 (210 mm x 297 mm), com as seguintes margens: superior e esquerda - 3,0cm; inferior e direita - 2,0 cm.

O trabalho deve estar obrigatoriamente digitalizado em Word.

4 REFERÊNCIAS

As referências devem ser constituídas por todas as obras citadas no artigo e devem ser listadas de acordo com a norma ABNT-NBR-6023/2002, conforme exemplos abaixo:

LivrosALVES, Roque de Brito. Ciência Criminal. Rio de Janeiro: Forense, 1995.BANDEIRA, Manuel (Org). Gonçalves Dias: poesia. 11. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1983.

Artigos em periódicosMONTEIRO, Agostinho dos Reis. O pão do direito à educação... Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 24, n. 84, p. 763-789, set. 2003.O MELHOR de dois mundos. Após, São Paulo, ano 1, p. 24-25, fev. 2003.

* Breve currículo

** Breve currículo

*** Breve currículo

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Artigos em revistas, jornais etc.

MONTEIRO NETO, Armando. Desoneração da folha salarial. Estado de Minas, Belo Horizonte, n. 22.368, p. 9, 26 mar. 2003.

SitesCONY, Carlos Heitor. O frágil lenho. Folha online, São Paulo, 19 jan. 2004. Disponível em: <www.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult505u135.shtml>. Acesso em: 19 jan. 2004.FREIRE, José Bessa. O patrimônio cultural indígena. In: WELFORT, Francisco; SOUZA, Márcio (Org.). Um olhar sobre a cultura brasileira. Brasília: Ministério da Cultura, 1998. Disponível em: <http: // www.minc.gov.br/textos/olhar/patrimonioindigena>. Acesso em: 20 jan. 2004.

5 CITAÇÕES

As citações deverão ser feitas da seguinte forma (NBR 10520): citações de até três linhas devem estar contidas entre aspas duplas; as citações de mais de três linhas devem ser destacadas com recuo de 4cm da margem esquerda, em Times New Roman 10, sem aspas.

Para enfatizar trechos da citação, deve-se destacá-los indicando essa alteração com a expressão “grifo nosso” entre parênteses após a chama-da da citação ou “grifo do autor”, caso o destaque já faça parte da obra consultada.

A referência da citação será feita em nota de fim, após as referências do texto.

6 ABSTRACT E KEYWORDS

Após as referências, seguem-se as notas de fim; após as notas de fim, cul-minando todo o trabalho, deve-se fazer constar o título do artigo, o resumo e as palavras-chave em versão para o inglês, com recuo de 4 cm em espaço simples.

7 INSTRUÇÕES AOS AUTORES

7.1 AVALIAÇÃO POR PARES – MODUS OPERANDI

Os artigos recebidos passam por uma análise prévia (fase inicial: desk review), envolvendo a equipe de Editores institucionais e/ou Editores-Asso-ciados (vinculados a outras Instituições de outros Estados). Essa primeira fase funciona como um mecanismo de filtragem quanto à adequação do artigo, às linhas de pesquisa, à adequação às normas de publicação; inteligibilida-de, coerência e coesão do texto; avaliação preliminar da compatibilidade do artigo submetido às exigências atribuíveis a uma produção em termos de pós-graduação; relevância e adequação do aporte teórico; relevância da dis-

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cussão enfrentada e potencial de contribuição do artigo para a comunidade acadêmica. Essas são diretrizes às quais a equipe de Editores (institucionais e associados) se atêm, de modo geral.

Superada essa fase preliminar, o artigo é submetido a, no mínimo, dois pareceristas, que tenham titulação maior (preferencialmente) ou igual à titulação do coautor mais bem titulado do trabalho em exame. Atenta-se, ainda, quando da escolha dos pareceristas responsáveis para uma adequação entre as áreas de conhecimento dos avaliadores e a área da temática enfrentada no artigo, antes de submetê-lo à apreciação dos pares.

Opera-se com o sistema double blind review, conforme orientação do Programa Qualis, procedendo-se à desidentificação dos artigos, a fim de que a avaliação por pares seja cega, garantindo-se a lisura do processo. Nessa etapa da avaliação, os pareceristas preenchem uma ficha de avaliação específica e padro-nizada, a qual é devolvida à equipe de Editores-Responsáveis, recomendando ou não a publicação dos artigos submetidos. Cada parecerista só pode avaliar, no máximo, dois artigos por número publicado. Procura-se, sempre que possível, escolher pareceristas que não pertençam ao mesmo Estado da Federação de onde se originou o artigo. Em caso de divergência de pareceres, ou, permanecendo quaisquer dúvidas, pode a equipe institucional ampliar o leque de avaliações para melhor subsidiar sua decisão.

7.2 IDIOMAS DE PUBLICAÇÃO

A Opinião Jurídica aceita artigos escritos em português, espanhol, francês, italiano e inglês. Artigos em alemão serão aceitos apenas de autores previamente convidados. Todos os artigos, independentemente da língua em que estejam escri-tos, devem fazer constar título, resumo e palavras-chave em inglês – atendendo-se às exigências do Programa Qualis da Capes.

7.3 INEDITISMO

A Opinião Jurídica visa à publicação e à divulgação de trabalhos inéditos, devendo o autor fazer constar, sob as penas da lei, qualquer condição em contrá-rio, por ocasião da submissão de seu trabalho. Em caso de existência de publica-ção prévia, deve o autor explicitar o veículo de publicação e o suporte utilizado (virtual ou impresso), a fim de que a equipe de Editores-Institucionais delibere, soberanamente, a respeito da conveniência de uma eventual republicação.

7.4 TRANSFERÊNCIA DE DIREITOS AUTORAIS

A submissão de artigo à apreciação da Equipe Editorial da Revista Opinião Jurídica implica, por este mesmo ato, a cessão, por parte do(s) autor(ES), para o Centro Universitário Christus – UNICHRISTUS, da referida OBRA para fins de reprodução, divulgação, distribuição, impressão, publicação e disponibilização,

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a encargo da UNICHRISTUS, em qualquer forma ou meio que exista ou venha a existir, nos termos do art. 49 e os seguintes da Lei 9.610/98.

Parágrafo Primeiro. A cessão, objeto deste Termo, é feita a título não exclusivo e gratuito, abrangendo a totalidade da OBRA.

Parágrafo Segundo. A UNICHRISTUS poderá disponibilizar, para fins didáticos, a OBRA no todo ou em partes, vedada a alteração de seu conteúdo textual, ressalvadas correções e formatações que se fizerem necessárias.

Parágrafo Terceiro. A cessão é válida em quaisquer países, em língua portuguesa ou tradução, a critério da UNICHRISTUS.

7.5 DAS RESPONSABILIDADES

Ao submeter(em) artigo de sua lavra, o autor (e coautores, se houver) assume(m), por esse ato, a responsabilidade exclusiva pela integralidade do conteúdo da obra de sua autoria. Dessa forma, quaisquer medidas judiciais ou extrajudiciais concernentes ao seu conteúdo serão de sua inteira responsabilidade.

Parágrafo único. Em caso de pluralidade de autores, considera-se solidária a responsabilidade, ressalvadas as provas em contrário.

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