revista opinião jurídica 10

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RevistaOpinião Jurídica

Ficha Catalográfica

Opinião Jurídica – Revista do Curso de Direito da Faculdade Christus - n. 10, ano VI, 2008

© Faculdade Christus, 2008

Opinião Jurídica- [n. 10] – Fortaleza: – Faculdade Christus.[2008]-v.I. Direito

CDD : 340Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP).

REVISTAOPINIÃO JURÍDICA

Fortaleza, 2008

FACULDADE CHRISTUS

Opinião JurídicaRevista do Curso de Direito da Faculdade Christus

n. 10, ano 06, 2008

DiretorProf. M. Sc. Roberto de Carvalho Rocha

Vice-Diretor AcadêmicoProf. M. Sc. José Carlos Gomes de Freitas Teixeira

Supervisora de Campus - Dom LuísProfa. M. Sc. Marbenia Gonçalves Almeida Bastos

Coordenadora-Geral do Curso de DireitoProfa. Dra. Cláudia Sousa Leitão

Coordenadora de Pesquisa e Monografia do Curso de DireitoProfa. M. Sc. Roberta Laena Costa Jucá

Editora-Responsável pela Revista Opinião JurídicaProfa. M. Sc. Fayga Silveira Bedê

Comissão EditorialProf. M. Sc. Roberto de Carvalho Rocha

Profa. Dra. Cláudia Sousa LeitãoProfa. M. Sc. Fayga Silveira Bedê

Profa. M. Sc. Gabrielle Bezerra SalesProfa. M. Sc. Roberta Laena Costa Jucá

Prof. Dr. Etienne Picard (Paris I - Sorbonne)Prof. Dr. João Maurício Adeodato (UFPE)

Prof. Dr. Friedrich Müller (Universidade de Heidelberg - Alemanha)Prof. Dr. Paulo Bonavides (UFC)

Prof. Dr. Willis Santiago Guerra Filho (UNIRIO)Prof. Dr. Horácio Wanderlei Rodrigues (UFSC)Prof. Dr. Roberto da Silva Fragale Filho (UFF)

Prof. Dr. João Luís Nogueira Matias (UFC)

BibliotecáriaTusnelda Maria Barbosa

CapaIvina Lima Verde

Coordenação de DesignJonatas Barros (John)

Programação Visual / DiagramaçãoDaniel Veras / Juscelino Guilherme

CorrespondênciaFaculdade Christus

Coordenação-Geral do Curso de DireitoAvenida Dom Luís, 911 – 5º andar

Aldeota – CEP 60.160-230Fortaleza – Ceará

Telefone: (0**85) 3461.2020e-mail: [email protected]

ImpressãoGráfica e Editora LCR Ltda.

Rua Israel Bezerra, 633 - Dionísio TorresCEP 60.135-460 - Fortaleza – Ceará

Telefone: (0**85) 3272.7844 - Fax: (0**85) 3272.6069Site: www.graficalcr.com.br – e-mail: [email protected]

Tiragem mínima400 exemplares

ApresentAção

A Revista Opinião Jurídica chega ao seu décimo número conjugando o interesse de adequar-se plenamente aos novos critérios do Programa Qualis sem, no entanto, descurar da preocupação de oferecer aos seus leitores um leque ampliado de opções de leitura.

Assim, em consonância com as linhas de pesquisa do periódico - vide “Normas de Publicação” ao final - apresentamos 14 artigos científicos, que se subdividem entre as secções de “Doutrina Nacional” e “Doutrina Es-trangeira”. Dentre estes, cinco são oriundos de autores de outros Estados da Federação, bem como de outros países. É o caso de Edith Maria Barbosa Ramos (Maranhão); Vinícius José Marques Gontijo (Minas Gerais) e Willis Santiago Guerra Filho (Rio de Janeiro); como também de Véronique Cham-peil-Desplats (Universidade de Paris) e de Friedrich Müller (Universidade de Heidelberg). Ao garantir mais de 35% de artigos originários de outras instituições, o presente número assegura a manutenção do alto padrão de exogenia que caracteriza a nossa publicação.

Por outro lado, o sistema double blind review foi rigorosamente aco-lhido. Excetuando-se três artigos de autores convidados (de modo a não ultrapassar os 25% permitidos pelo padrão Qualis), todos os demais trabalhos foram remetidos para, no mínimo, dois pareceristas cegos. Nas raras situ-ações em que houve divergência de entendimentos, procuramos prestigiar igualmente a ambos os pareceristas, razão pela qual, optamos, sempre que possível, por ouvir um terceiro parecerista, acolhendo a solução do voto de Minerva, em vez de preterir um entendimento em razão do outro.

Atualmente, contamos com um corpo de 13 pareceristas, sendo apenas três deles do Estado do Ceará, o que denota, mais uma vez, um forte grau de exogenia e variada especialidade na escolha do quadro. Nessa edição específica, trabalharam conosco, efetivamente, dez pareceristas, tanto em razão do grau de afinidade que mantinham com os temas ventilados nos artigos desse número, como em razão da disponibilidade de tempo de cada de cada um.

A todos os nossos pareceristas, a nossa gratidão e estima, pela pronti-dão com que acolheram o convite firmado. Sem o seu trabalho, generosidade,

eficiência e perfeccionismo, esse número não teria sido possível.Agradecemos também a todos os professores da casa que continuam

a nos prestigiar com o melhor de suas produções acadêmicas. São eles: Ana Paula Martins Albuquerque, Christianny Diógenes Maia, Gabrielle Bezerra Sales, Hugo de Brito Machado Segundo, Ivo César Barreto de Carvalho e Sérgio Bruno Araújo Rebouças. Agradecimentos especiais aos professores que se lançaram na tarefa primordial de produzir ciência em relação de co-operação com seus alunos. São eles: Germana Parente Neiva Belchior (em co-autoria com sua orientanda no Programa de Iniciação Científica, Marta-sus Gonçalves Almeida) e Nagibe de Melo Jorge Neto (em co-autoria com sua orientanda de monografia, Trycia Alexandre Carneiro de Melo Jorge). Outra produção da casa, que amplia e enriquece o cardápio dos leitores, diz respeito à resenha de Gretha Leite Maia, acerca da relevante obra de Luiz Moreira. A todos os nossos professores e alunos, que nos engrandeceram com as suas participações, obrigada!

Agradecimentos especialíssimos a três amigos queridos, por suas contribuições sempre pujantes e generosas: Prof. Willis Guerra e Prof. Friedrich Müller, na seção de artigos, e Prof. Roberto Fragale Filho, em deliciosa entrevista sobre questões que nos dizem respeito a todos: alunos e professores, que, seja no Brasil, seja ao redor do mundo, preocupam-se em fazer do ensino jurídico uma experiência estética.

Por fim, registramos nossa gratidão a Tércio Aragão Brilhante, Paulo Henrique Portela, Fátima Regina Ney Matos, Stela Márcia Vasconcellos, Viviane Rocha Evangelista e Daniel Veras Macedo que nos auxiliaram - cada um a seu modo - com seus saberes e sua amizade.

Boa leitura, bom-apetite, e até breve!

CLÁUDIA SOUSA LEITÃOCoordenadora-Geral do Curso de Direito da Faculdade Christus

FAYGA SILVEIRA BEDÊ

Editora-Responsável pela Revista Opinião Jurídica

sumário

ApREsEntAçãO

PRIMEIRA PARTE – DOUTRINA NACIONAL

A inconstitucionalidade da lei complementar n. 116/2003 quanto à incidência tributária do ISS sobre o licenciamento e/ou cessão de direito de software ........9Ana paula Martins Albuquerque

Por uma nova concepção jurídica da cidadania ................................................33Christianny Diógenes Maia

O ensino jurídico e a metáfora do espaço .........................................................46Edith Maria Barbosa Ramos

Thanátos e os paradoxos da Biotecnologia: da pertinência da ortotanásia à luz da Constituição Federal de 1988 ...........................................................................56Gabrielle Bezerra sales

Notas sobre democracia, liberdade e igualdade .................................................73Hugo de Brito Machado segundo

Análise dos aspectos civis e constitucionais do abuso de direito .......................88Ivo César Barreto de Carvalho

A cidadania ambiental e a conscientização ecológica: uma análise crítica de uma pesquisa de campo realizada no campus Dom Luís da Faculdade Christus .....104Martasus Gonçalves Almeida e Germana parente neiva Belchior

Biodireito: instrumento de reflexão da ética da vida .......................................116paulo Césas Barros Monteiro

A responsabilidade penal da pessoa jurídica no Direito francês ......................131sérgio Bruno Araújo Rebouças

A reclamação constitucional .........................................................................147trycia Alexandre Carneiro de Melo Jorge e nagibe de Melo Jorge neto

Inexigibilidade de multas tributárias do contribuinte na sua falência ..............164Vinícius José Marques Gontijo

Por uma poética do Direito: introdução a uma teoria imaginária do Direito (e da totalidade) ..................................................................................180Willis santiago Guerra Filho

SEGUNDA PARTE – DOUTRINA ESTRANGEIRA

Positivismo .....................................................................................................224Friedrich Müller

Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification .........232Véronique Champeil-Desplats

TERCEIRA PARTE – RESENHAS

Reflexões filosóficas do Direito: resenha do livro “A constituição como simulacro”, de Luiz Moreira ..............................................................................................261Gretha Leite Maia

QUARTA PARTE – ENTREVISTA

O papel das disciplinas propedêuticas no ensino jurídico: desafios e perspectivas ............................................................................ 265Roberto Fragale Filho

NORMAS DE PUBLICAÇÃO .......................................................................269

R E V I S T A O P I N I Ã O J U R Í D I C A 9

A inconstitucionAlidAde dA lei complementAr no 116/2003 quAnto à incidênciA tributáriA do iss sobre o licenciAmento e/ou cessão de

direito de softwAre

Ana paula Martins Albuquerque*

1 Introdução. 2 O ISS no ordenamento jurídico. 3 O Conceito de produtos industrializados, mercadorias e serviços. 3.1 Pro-duto industrializado. 3.2 Mercadoria. 3.3 Serviço. 4 A lista de serviços: taxatividade? 5 Interpretação e integração da legislação tributária: observância do Direito Privado. 6 Incidência, não-incidência, isenção e imunidade do ISS. 7software: propriedade intelectual. 7.1 O objeto do Direito Autoral. 7.2 Direitos auto-rais no campo da informática. 7.3 Direitos patrimoniais do autor. Cessão de direitos. 8 Conclusão. 9 Referências.

RESUMOCom a informatização dos setores produtivos e a facilitação do acesso dos indivíduos aos microcomputadores, intensificou-se o desenvolvimento, bem como a produção dos programas de computador em todo mundo. No Brasil, o crescimento desses dispositivos eletrônicos trouxe questionamentos referentes à tributação devida nas operações mercantis envolvendo software. Embora a polêmica tenha se iniciado com as decisões do Supe-rior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, foi com o advento da Lei Complementar n° 116 de 31 de julho de 2003 que as discussões no que tange à incidência tributária sobre tais relações econômicas aumentaram. A referida LC n° 116/03 incluiu, no rol de atividades tributadas pelo ISS, o “licenciamento e cessão de direito de uso de programas de computação”, negócio este que faz surgir, como vínculo obrigacional, o dever de abs-tenção do titular do programa em relação à sua livre utilização pelo licenciado, o que encerra patente obrigação de não fazer, a qual não se trata de serviço e, portanto, afasta completamente a incidência de qualquer imposto.

* Mestranda em Direito Constitucional na Universidade Federal do Ceará (UFC), Advogada, Especialista em Direito e Processo Tributários pela UNIFOR, Pós-graduanda em Contabilidade e Planejamento Tributário na UFC, Licenciada em Letras e Membro da Comissão de Estudos de Direito Tributário da OAB/CE.

n. 10 - 200810

Ana Paula Martins de Albuquerque

Palavras-Chave: software. Lei Complementar n° 116/2003. ISS. Licenciamento de uso. Não incidência tributária.

1 INTRODUÇÃOIntensa é a controvérsia gerada em nossos Tribunais no que tange à

incidência tributária sobre as relações mercantis pelas quais se adquirem os programas de computador, conhecidos por softwares. Os Estados, os Municí-pios e as empresas estabelecem uma inesgotável batalha judicial defendendo entendimentos antagônicos quanto à possibilidade dessa incidência tributária e, ainda, quanto à determinação do imposto aplicável às várias modalidades de negócios jurídicos envolvendo os referidos programas.

A polêmica surgiu a partir das decisões do STJ (2ª Turma, Mandado de Segurança nº 5934/RJ e Recurso Especial nº 216.967/SP, 1ª Turma, Recurso Especial nº 123022/RS) e STF (1ª Turma, Recurso Extraordinário nº 176.626-3 e Recurso Extraordinário nº 199.464-9), nas quais foi construída uma solução, no mínimo, simplista: quando o programa for desenvolvido sob encomenda, incide o ISS. Em contrapartida, quando o programa puder ser utilizado indistin-tamente por qualquer interessado (o chamado programa-produto, ou software de prateleira), o mesmo circula como mercadoria, estando sujeito ao ICMS. Percebe-se que, seguindo a linha de raciocínio do Poder Judiciário, a tipificação tributária está condicionada ao negócio jurídico realizado, ou seja, ao produto acabado (ICMS), ao programa por encomenda, ou, ainda, adaptado ao tomador dos serviços (ISS).

Ocorre que duas alterações relevantes foram introduzidas na legislação que disciplina a matéria. A primeira remete-se à Lei nº 9.609/98, que deu tratamento mais explícito à questão dos contratos de comercialização de programas de computador (art. 9º) e a segunda alteração remete-se à Lei Complementar n° 116, de 31 de julho de 2003, que incluiu no rol de atividades tributadas pelo ISS o “licenciamento e cessão de direito de uso de programas de computação”, hipótese de incidência inexistente na legislação anterior (Lei Complementar nº 56/87) que não dispunha especificamente sobre serviços de informática, apenas mencionando “processamento de dados” (item 22) e “programação” (item 23).

Por isso, ainda que nossos Tribunais Superiores tenham cristalizado esse entendimento apoiado numa leitura superficial das normas atinentes ao assunto, é preciso ter muita cautela com fórmulas jurídicas. Agrava-se, desse modo, a dúvida quanto ao enquadramento dos softwares negociados através de contratos escritos de licenciamento do direito de uso.

2 O ISS NO ORDENAMENTO JURÍDICOA Constituição Federal de 1988 não trouxe, aparentemente, inovações

sobre o ISS acerca da sua denominação, como ainda da sua base de incidência.

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A inconstitucionalidade da lei complementar no 116/2003 quanto à incidência tributária do ISS sobre o licenciamento e/ou cessão de direito de software

Entretanto, Sacha Calmon Navarro Coelho1 afirma que o imposto sofreu na Constituição vigente uma mutação substancial2 ainda não percebida, na profun-didade desejável, pelas doutrina e jurisprudência.

O imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) substituiu, com a Reforma Tributária feita pela Emenda Constitucional n° 18, de 1965, o antigo imposto de indústria e profissões, que tinha, como fato gerador, o exercício de atividade econômica do industrial, do produtor, do comerciante e do prestador de serviço e que, na Constituição de 1891, era da competência do Estado-Membro. A Constituição de 1934 manteve a referida competência, embora tenha determinado que fosse dada aos Municípios em que é exercida a atividade econômica.

A Constituição de 1946, por sua vez, instituiu uma melhor repartição de competências e de atividades tributadas3. A Emenda nº 18 à Constituição de 1946 restringiu o campo de incidência do ISS ao feitio até hoje conhecido como serviços. Dessa maneira, a circulação de mercadorias, industrializadas ou não, ficou dividida entre a União (IPI) e os Estados (ICM) na Constituição de 1967, emendada em 1969. Sendo assim, dispõe a Carta Magna, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993 e EC nº 37, de 12 de junho de 2002, in verbis:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:[...]III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.[...]§ 3° Em relação ao imposto previsto no inciso III do caput deste artigo, cabe à lei complementar:I – fixar as suas alíquotas máximas e mínimas;II – excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior,III – regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

ADCT – CF/88 (artigo acrescentado pela Emenda Constitucional n 37, de 12-6-2002):

Art. 88. Enquanto lei complementar não disciplinar o disposto nos incisos I e II do § 3º do art. 156 da Constituição Federal, o imposto a que se refere o inciso III do caput do mesmo artigo:Terá alíquota mínima de dois por cento, exceto para os serviços a que se referem os itens 32, 33 e 34 da Lista de Serviços anexa ao Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968;Não será objeto de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resulte, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima estabelecida no inciso I.

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Ana Paula Martins de Albuquerque

Nos termos da nova redação, a tributação do ISS abrangeria, em prin-cípio, todo e qualquer tipo de serviço, salvo os de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, que, por determinação constitucional, estão sujeitos ao ICMS (art. 155, II, CF/88). Para o completo delineamento dessa competência municipal, o texto constitucional, contudo, estabelece que os serviços de qualquer natureza a serem tributados pelo ISS devem ser definidos em Lei Complementar Federal.

Definidos, por lei complementar, os serviços sujeitos ao ISS, é indispen-sável, de acordo com Vittorio Cassone4, um segundo ato legislativo oriundo da Câmara Municipal: lei do Município, prevendo todos os aspectos da hipótese de incidência, quais sejam: pessoal, espacial, temporal, material e quantitativo. Isso porque a lei complementar tem a determinada competência de definir os serviços sujeitos ao ISS e dirimir conflitos de competência, enquanto a Lei Mu-nicipal tem a competência de instituir o tributo. A lei municipal, então, poderá adotar o inteiro teor da lista de serviços ou apenas parte dela. Não poderá, no entanto, acrescentar itens não previstos em lei complementar.

Percebe-se, assim, que não basta o Município editar lei instituindo o imposto ou especificá-lo sobre serviços de qualquer natureza. Faz-se necessário que previamente seja editada uma Lei Complementar Nacional definindo quais os serviços que tal imposto pode alcançar. Além disso, cabe a ela, também, fixar as alíquotas máximas e mínimas.

Nesse sentido, para atualizar a legislação tributária relativa ao Imposto sobre Serviços (ISS), foi editada a Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, que, além de outras inovações, substituiu a lista de serviços anexa ao Decreto-Lei nº 406/68, aumentando de 101 itens para 206 subitens, agrupados em 40 itens. O Decreto-Lei nº 406/1968 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 com força de lei complementar (RE nº 262.598, rel. Min. Ilmar Galvão, nº 60.02.20015), sendo esse o status de seus dispositivos ainda vigentes. A Lei Complementar nº 56/1987 e a Lei Complementar nº 100/1999, que também versavam sobre o assunto, foram inteiramente revogadas pela Lei Complementar n° 116/2003.

Dentre esses, convém enfatizar o que está previsto no subitem “1.05 - Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação”, cuja inclusão como atividade sujeita ao ISS aparenta carecer totalmente de fundamento jurídico.

Antes da LC nº 116/03, os Municípios fundamentavam sua tributação me-diante a equiparação do software à locação de bem móvel, atividade (hipótese de incidência) prevista na lista anexa ao Decreto-Lei nº 406/686. Esse entendimento apoiava-se na definição dada pelo Código Civil de 1916, que considerava como bem móvel, para os efeitos legais, o direito do autor. O atual Código Civil não repete esse dispositivo, já que é a Lei nº 9.610/98 que disciplina integralmente a matéria concernente aos direitos autorais. O Superior Tribunal de Justiça, por

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A inconstitucionalidade da lei complementar no 116/2003 quanto à incidência tributária do ISS sobre o licenciamento e/ou cessão de direito de software

sua vez, firmou entendimento de que os direitos autorais são considerados bens móveis, podendo, assim, ser cedidos ou locados.

Contudo, posteriormente, o Supremo Tribunal Federal, apreciando ques-tão ligada à incidência do ISS, concluiu pelo afastamento da tributação, não em razão de discordar que os direitos autorais se equiparam aos bens móveis, mas pelo fato de que a locação de bens móveis não possui características de um serviço e que por isso não estaria no campo de incidência do ISS.

Esse entendimento do STF embasou o veto presidencial da tributação da atividade de locação de bens móveis que, originalmente, constava do projeto de lei que deu nova redação à lista anexa à LC nº 116/03. Ocorre que, com o advento dessa lei complementar, verificou-se a inclusão de item específico para o caso de licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação.

Para o STF, dessa forma, não é o simples fato da inclusão de determi-nada atividade na lista anexa à LC nº 116/03 que permite a tributação do ISS. A atividade deve se revestir das características de um serviço, pois, como já mencionado, o aspecto material do citado tributo é a “prestação de serviço”, e não o desenvolvimento de uma atividade qualquer. Para reconhecer a configu-ração da competência atribuída ao Município, faz-se necessário verificar o que se compreende por serviço.

3 O CONCEITO DE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS, MERCADO-RIAS E SERVIÇOS

A ciência consiste em captar os lineamentos dos impostos nas normas constitucionais que estabelecem as competências tributárias e as respectivas ma-terialidades, sendo o ponto de partida para conhecer qualquer tributo. Somente os princípios e as regras constitucionais é que possuem legitimidade de funda-mentar a edição de normas inferiores, obedecendo a hierarquia normativa.

As leis e os atos administrativos têm obrigação de guardar conformidade com a Constituição Federal, respeitando os âmbitos de tributação conferidos à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Dessa maneira, constata-se que o legislador constitucional foi extremamente lacônico no tocante à previsão do IPI e do ISS, não agindo a mesma prodigalidade no que se refere ao ICMS7.

Entre os impostos que o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66) classifica em função da base econômica de “imposto sobre a produção e circula-ção”, o IPI, o ICMS e o ISS têm originado algumas divergências doutrinárias, no que se refere à incidência de um ou de outro imposto, sobre certos fatos que se situam na chamada “zona cinzenta”. E, para uma coerente adequação do fato à norma (subsunção), é fundamental que os conceitos de produto industrializado, mercadoria e serviço estejam bem elucidados.

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Ana Paula Martins de Albuquerque

3.1 Produto IndustrializadoSão confusos os preceitos que tratam sobre o IPI, tornando difícil a tarefa

de desvendar seus aspectos nucleares, sua essência, o que não significa que seu conceito e suas características devam ser extraídas das normas inferiores à Constituição Federal.

Definir “produto industrializado” é uma tarefa árdua a que poucos juristas se aventuram. Dessa forma, questiona-se: o hermeneuta tem que se fundamentar em elementos técnicos, físicos, operacionais ou a característica da industrialização deve ser compreendida em termos jurídicos? A composição do IPI obriga, necessariamente, ao exame da existência das demais materialidades dispostas na Carta Magna que com ela possa se confrontar ou delimitar seu âmbito de incidência.

Produto, no sentido comum, é o “resultado da produção, física ou mental (produtos agrícolas, produtos da indústria, produtos da imaginação). Mas, para a legislação tributária, o que importa é o conceito de produto industrializado”8 (CF, art. 153, IV; CTN/66, art. 46), que é fornecido pelo próprio Código Tributário em seu art. 46, parágrafo único: “considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade ou o aperfeiçoe para o consumo”, servindo-se de matéria-prima, que é a substância bruta principal e essencial com que é produzida ou fabricada alguma coisa.

O produto, pois, é posicionado no ciclo econômico (circulação econômica ou jurídica) da fonte de produção até o consumo, por meio das chamadas operações de circulação de mercadorias. Assim, pode-se entender que, enquanto a coisa se acha na disponibilidade do industrial que a produz, chama-se “produto industrializado”; colocado pelo industrial no ciclo econômico (venda, etc), é identificado como produto industrializado (para a legislação do IPI) e mercadoria (para a legislação do ICMS); chegando às mãos do consumidor final, encerra o ciclo de operações de circulação.

3.2 Mercadoria“Mercadoria são as coisas móveis objetos do comércio”9. A legislação

tributária não a define, aceitando esse conceito doutrinário. José Eduardo So-ares de Melo10, por sua vez, afirma que, no Brasil, o conceito de mercadoria é de caráter legal e vinculado à finalidade de compra e venda.

Eis o motivo pelo qual, tradicionalmente, pode-se dizer que mercadoria é bem corpóreo da atividade empresarial do produtor, industrial e comerciante, tendo por objeto a sua distribuição para consumo, compreendendo-se no es-toque da empresa, distinguindo-se das coisas que tenham qualificação diversa, segundo a ciência contábil, como é o caso do ativo permanente. Esse conceito, contudo, sofreu mudança constitucional ao submeter o fornecimento de energia elétrica (coisa incorpórea) ao âmbito de incidência do ICMS, enquadrando-o no espectro mercantil (art. 155, § 3º, CF/88).

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A inconstitucionalidade da lei complementar no 116/2003 quanto à incidência tributária do ISS sobre o licenciamento e/ou cessão de direito de software

3.3 ServiçoEm sentido amplo, serviço “é o ato ou efeito de servir”11. É no interior

desse conceito que se enclausura a competência municipal para a tributação dos serviços de qualquer natureza, dado que foi por ele que a Constituição Federal de 1988, de modo expresso, a discriminou.

Serviço, pois, é “qualquer prestação de fazer”, uma vez que “servir é pres-tar atividade a outrem”; é prestar qualquer atividade que se possa considerar “locação de serviços”. O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, assim, só pode alcançar a obrigação de fazer, isto é, aquela cuja prestação é a própria atividade do locador. É, enfim, o esforço humano, físico ou intelectual, que o prestador desenvolve (faz) em favor de terceiros.

No plano jurídico, serviço constitui-se uma obrigação de fazer, a qual é definida pelo Direito Civil. Ao distinguir a obrigação de dar e de fazer, o civilista Clóvis Bevilácqua se manifesta no sentido de que:

A primeira consiste na entrega de uma coisa móvel ou imóvel, para constituição de um direito real (venda, doação, etc.), a concessão de uso (empréstimo, locação), ou a restituição ao dono. Já as de fazer, conquanto se definam em geral de modo negativo, são todas as prestações que não se compreendem entre as de dar, têm na verdade, por objeto um ou mais atos, ou fatos do devedor, como trabalhos materiais ou intelectuais12.

Sacha Calmon Navarro Coelho13 alerta para o fato de que a lei comple-mentar para editar normas gerais de Direito Tributário, inclusive para estruturar os fatos geradores dos tributos e suas espécies, como está no art. 146, III, “a”, da CF/88, não implica, obrigatoriamente, permissão para alterar as áreas tributá-veis destinadas constitucionalmente às pessoas políticas, caso contrário, seria totalmente inútil a Carta Magna do país. Quanto ao ISS, todavia, nada poderia ser mais verdadeiro. Nas palavras do referido doutrinador14:

Às luzes da nova Constituição, a questão dos serviços tributáveis deve ser, necessariamente, reinterpretada. É que na CF de 67, o seu art. 24, inciso II, dizia competir aos municípios instituir im-posto sobre “serviços de qualquer natureza não compreendidos na competência tributária da União ou dos Estados, definidos em Lei Complementar”. A redação falava genericamente em serviços, sem nomeá-los. E, mais, dava prevalência a serviços tributados, antes, pela União e os Estados, que podiam recortar a área dos serviços à disposição dos entes municipais. É o que não ocorre com a redação da Constituição de 88, que apropria em prol dos municípios todos os serviços (de qualquer natureza) não compreendidos no art. 155, II. Isto é, todo e qualquer serviço que não seja de comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal sujeita-se ao ISS, por

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Ana Paula Martins de Albuquerque

expressa determinação constitucional, inclusive o do transporte municipal (transporte no âmbito territorial do município). Houve, no plano constitucional, intensa mudança. Urge assuma o Poder Judiciário sua função de intérprete da Constituição, conferindo-lhe feição inteligível. É o caso, por exemplo, de se dar ao art. 156, III, a interpretação que decorre do seu texto.

Não se questiona o fato de que o ato de “prestar serviços”, em determi-nadas situações, envolve fricções em áreas próximas do ICMS e do IPI. Assim, por exemplo, a oficina que conserta o automóvel, seja ele qual for, freqüente-mente utiliza peças prontas, que são mercadorias. São as chamadas “operações mistas”, que envolvem “serviços” (obrigações de fazer) e o fornecimento de peças. Entretanto, o dar a peça é acessório. O prestador não tem a pretensão de vender a peça e de realizar o serviço, mas, apenas, de a “consertar”, implicando a utilização delas. É a prestação do serviço. Situação semelhante aplica-se ao caso do fornecimento de comidas e bebidas em restaurantes, bares etc. O usuário não contrata a compra de uma garrafa de refrigerante ou de pizza, mas contrata o serviço (facere) e não uma venda (dare).

Prestação de serviços é, pois, a produção de utilidades (sejam materiais ou não) específicas, peculiares e inconfundíveis. A nota característica do serviço é a sua individualidade, em que “cada serviço é um serviço, na acepção de haver em cada oportunidade, uma identidade inconfundível e irrepetível” (sic)15.

4 A LISTA DE SERVIÇOS: TAXATIVIDADE?Sacha Calmon Navarro Coelho16 afirma que “definir é conceituar, e não

‘listar’, ‘discriminar’, pois a técnica do conceito se opõe à técnica da lista17, dispensando-a”. Previa o art. 24, II (Emenda Constitucional nº 1/69), que competia ao Município instituir o imposto sobre serviços não compreendidos na competência tributária da União ou dos Estados, entregando à lei complementar a função de definí-los (e não de listá-los).

A lista surgiu depois com o Decreto-Lei nº 406/68, com a finalidade de dirimir conflitos de competências que as operações mistas estavam causando, envolvendo prestação de serviço e fornecimento de mercadorias. Em razão disso, a técnica de resolução legislativa dos conflitos envolvendo o ISS, ICMS e IPI foi a da redação de lista taxativa a respeito dos serviços tributáveis pelos municípios.

A Constituição Federal de 1988 reforça esta reserva de competência dos Estados sobre serviços não listados, implicando fornecimento de mercadorias numa sub-regra competência. Para os que aderem à tese doutrinária de que os serviços excluídos da competência municipal são apenas aqueles deferidos à competência dos Estados – transporte não estritamente municipal e comunica-ções – , atribui-se à questão uma solução simples. No entanto, a jurisprudência considera excluídos da competência municipal todos os serviços que não se

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encontram listados.

Ocorre que a própria cláusula da Carta Magna “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II” definiu a área tributável posta à disposição dos Municípios. A Lei Complementar não pode limitar o poder do constituinte. O poder de tributar é derivado da vontade do povo, por seus repre-sentantes, reunidos em Assembléia Constituinte, que o reparte entre as pessoas políticas. Os entes políticos, em posição de isonomia, recebem da Constituição suas respectivas competências.

Posto isso, o art. 156, III, da Constituição Federal de 1988 apropria em fa-vor dos Municípios todos os serviços (de qualquer natureza) não compreendidos no art. 155, II. Ou seja, todo e qualquer serviço que não seja de comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal sujeita-se ao ISS por expressa determinação constitucional, inclusive o de transporte municipal (transporte no âmbito territorial do Município). “A técnica da lista bloqueia o ditado cons-titucional e permite a excrescente e contraditória regra do art. 155, § 2º, IX, ‘b’, ter sobrevida, ainda que como aleijão”18. Sob essa análise, o doutrinador Sacha Calmon Navarro Coelho afirma que a missão do legislador não seria fazer lista taxativa. Seu objetivo, então, seria apenas legislar para evitar conflitos de competência entre pessoas políticas (art. 146, I, CF/88):

Art. 146. Cabe à lei complementar:I – dispor sobre os conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Eis a razão pela qual o mencionado tributarista defende que a lista seja exemplificativa para evitar o defeito de limitar, contra a Constituição, a com-petência do Município. E a omissão do legislador complementar ocasionou que a jurisprudência recepcionasse a legislação complementar anterior à Carta Política de 1988. A técnica confusa da lista ainda permanece. A doutrina, ao mesmo tempo que critica, defende-a. Nesse mesmo sentido, posicionam-se os doutrinadores Alexandrino e Paulo para quem a quantidade de serviços é indefinida, uma vez que “a própria lista, em diversos itens e subitens, faz uso de expressões que obrigam à interpretação analógica”19.

Atualmente, como já visto, a Lei Complementar nº 116/03 é o assoalho do ISS, enquanto textos de normas gerais do imposto. É um diploma jurídico legislativamente imperfeito e eivado de algumas inconstitucionalidades, o que lhe rendará vida extremamente conturbada até que a jurisprudência lhe fixe os conceitos e os rumos definitivos.

O seu maior defeito é basear-se em lista de serviços tributáveis. Entram muitos serviços, outros ficam de fora e negócios jurídicos, como é o caso da locação de coisas móveis, passam a ser tributados contra orientação já firmada pelo Supremo Tribunal Federal.

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Ana Paula Martins de Albuquerque

5 INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DA LEGISLAÇÃO TRIBUTÁ-RIA: OBSERVÂNCIA DO DIREITO PRIVADO

Não há Direito que não exija ser interpretado. A interpretação das nor-mas, segundo Machado20, pode ser entendida, em sentido amplo, como a busca de uma solução para o caso concreto e, em sentido restrito, como a busca do significado de uma norma. Adverte, porém, que, neste último sentido, a inter-pretação pode ser considerada insuficiente, posto não existir, no ordenamento jurídico, uma norma para o caso que se tem a solucionar. Em conseqüência, para quem entenda estar diante de uma lacuna, defende a necessidade de recorrer à integração. O art. 107 do CTN, então, introduz a questão da interpretação e integração da norma tributária.

No Ocidente, geraram-se duas escolas: a da lei e a da experiência. Pela primeira, predominante na França, tem-se que a lei é a fonte, por excelência, do Direito. Entretanto, a lei é genérica, abstrata, geral, não abarcando todos os fatos da vida. O intérprete, então, é obrigado a reduzi-la para cobrir os casos ricos em minúcias. A escola da experiência, por sua vez, concentra-se nos casos para criar normas generalizantes, ocasionando o nascimento de jurisprudências de princípios, sempre inovadas por um caso novo. Esta gerou o Common Law na Inglaterra.

A interpretação e a integração das normas, embora sejam processos diferentes, estão interligadas. Aquela procura compreender a norma jurídica para aplicá-la a um caso concreto. Esta busca também aplicar a norma aos casos concretos, quando esta suscita dúvidas quanto à sua aplicabilidade in concretu relativamente a tais casos, por ser lacunosa. Sendo assim, a integração do Direito nos sistemas jurídicos que adotam a lei como fundamento, apresenta grandes dificuldades em face ao princípio da legalidade.

Aqui no Brasil, quem faz a lei é o Poder Legislativo. Todos nós, no en-tanto, interpretamo-la, formulando “proposições” a respeito da norma criada pelo legislador. Ocorre que somente os juízes possuem o poder de dizer o que a norma realmente significa. Não só o poder de dizer, mas o poder de aplicá-la aos casos concretos de conformidade com o significado que adotam. A lei, portanto, tem um ponto de partida legislativo e um ponto de chegada jurisdicional. No Direito Tributário brasileiro, o art. 107 não tem a pretensão de reduzir o processo interpretativo geral, mas de atribuir algumas regras pontuais.

O fato é que a discussão sobre a legislação tributária se divide entre estudiosos sustentando a interpretação em favor do fisco, considerando a preva-lência do interesse público presente na tributação, e outros juristas, para quem a lei tributária deveria ser interpretada em favor do contribuinte, defendendo que a tributação é odiosa e restritiva da liberdade, bem como da propriedade. A questão é, pois, interpretativa.

As regras gerais de interpretação, comuns a todos os ramos do Direito, se aplicam, sem problemas, em matéria tributária, desde que não conflitantes com as regras especiais dispostas no CTN. Dessa maneira, o art. 107 do CTN, apesar

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de dispor que “a legislação tributária será interpretada conforme disposto neste capítulo” (composta pelos arts. 107 a 112), em verdade não está excluindo as referidas regras gerais. Vanoni21 acentua ser pacífica a doutrina a qual diz que as regras a serem utilizadas na interpretação das leis não podem ser consideradas inteiramente idênticas em todos os campos do Direito, devendo o intérprete levar em consideração a natureza particular das relações reguladas e as características comuns, que delas decorrem, se quiser atingir o verdadeiro entendimento do alcance da norma.

Em matéria de interpretação, quanto ao Direito Tributário, cabe registrar, inicialmente, a existência de duas correntes doutrinárias. A primeira, resultante da dicotomia entre mens legis (vontade da lei) e mens legislatoris (vontade do legislador) e defendida por Kelsen, diz que, editada a lei, ganha ela autonomia e existência própria, desvinculada da intenção do legislador, a que se dá o nome de interpretação estritamente jurídica. A segunda afirma que a interpretação deve levar em consideração aspectos extrajurídicos, tais como: a intenção do legislador averiguado pelo desenvolvimento dos trabalhos legislativos e pela exposição de motivos; os aspectos políticos, sociais e econômicos.

Com efeito, se de um lado deve-se ter presente o Direito positivo tal como posto (primado do princípio da legalidade), por outro lado nada impede que se verifiquem o histórico do processo de elaboração legislativa e as razões que levaram à aprovação do texto final da lei, embora nos defrontemos, aqui, inevitavelmente, com sérias dificuldades, já que percorrer as várias etapas e relatórios pelos quais passou o processo de elaboração da lei até sua redação final é tarefa das mais árduas, cujos elementos materiais apenas alguns obtêm. Vejamos, pois, os arts. 109 e 110 do CTN22:

Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para a pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus insti-tutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.

Art. 110. A lei tributária não pode alterar definição, o conteúdo e o alcance dos institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados expressa ou implicitamente, pela Constituição Fede-ral, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

O art. 109 é de alcance notável e deve ser cuidadosamente analisado, sobretudo em face das divergências doutrinárias a respeito da utilização, pelo Direito Tributário, dos institutos, conceitos e formas do Direito Privado.

A questão da autonomia do Direito Tributário gera discussões intermi-náveis. Os que a defendem “dizem que os conceitos de Direito Privado não se

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prestam para o Direito Tributário, em cujo âmbito adquirem significação própria, inteiramente desvinculada de suas origens”23. Já os que defendem a unicidade do Direito alegam que os conceitos de Direito Privado têm plena valia no campo do Direito Tributário, como em qualquer ramo da Ciência Jurídica.

A verdade é que o Direito é uno. Não há o ramo do Direito que esteja totalmente desvinculado dos demais. Há, em decorrência das peculiaridades das relações jurídicas, regras jurídicas com características especiais. Desse modo, o art. 109 do CTN, “refere-se aos princípios gerais do Direito privado e não às leis de Direito Privado”24. Assim, os conceitos, os institutos, as formas, prevalecentes do Direito Civil, em virtude de elaboração legislativa, prevalecem igualmente no Direito Tributário.

Quando a lei tributária adota, como base da tributação, institutos do Direito Privado (por exemplo, o conceito de propriedade para incidência do IPTU), essa lei fará referência nominativa ao instituto, conceito ou forma. Observa-se, então, que o art. 109, bem como o art. 110 do CTN é dirigido ao legislador infraconstitucional, e não, obviamente, ao elaborador da norma constitucional, uma vez que a Constituição pode tudo (ou quase tudo), inclusive alterar conceitos de direito privado.

O art. 110 contém uma norma de limitação no âmbito do art. 109 e especialmente da atuação do legislador fiscal. Precisamos recordar que estamos analisando uma lei normativa, ou seja, uma lei dirigida, primeiramente, ao legislador e por via indireta ao contribuinte. Como norma dirigida ao legislador ordinário, o art. 109 lhe proíbe manipular as formas de direito privado para efeitos tributários (o que é desnecessário dizer, porque ele não o poderia fazer para outros efeitos), salvo – e esta é a ressalva que se contém no art. 110 – quando essas formas do direito privado sejam utilizadas para definir ou limitar a competência tributária. Parece-nos necessária a ressalva – seja qual for a conclusão que se adote quanto ao art. 109 – de que ela vem complementar, porque caso contrário teríamos uma lei ordinária sobrepondo-se à Constituição. Se a Constituição se refere a uma figura do direito privado, sem ela própria a alterar para efeitos fiscais, incorpora ao direito tributário aquela figura de direito privado que, por conseguinte, se torna imutável para o legislador fiscal ordinário, porque se converteu em figura constitucional25.

As controvérsias surgiram em razão da chamada interpretação econômica, admitida por alguns juristas no Brasil, influenciados por doutrinadores alemães, em que o intérprete deve considerar, acima de tudo, os efeitos econômicos dos fatos disciplinados pelas normas em questão. Para eles, na relação jurídica tributária, há uma relação econômica subjacente e esta é que deve ditar o significado da norma.

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A Emenda Constitucional nº 18/65 é reflexo disso quando passou a ter a preocupação de discriminar os impostos pelos seus aspectos econômicos. Dessa maneira, todos os impostos foram agrupados em: a) impostos sobre o patrimônio e a renda; b) impostos sobre a produção e circulação e c) impostos especiais. Essa norma inovadora, além de agrupar os tributos, atribuiu ao ISS, particularmente, uma nomenclatura econômica “imposto sobre serviços”, classificando-o, assim, enquanto imposto sobre a produção e circulação. Pode-se, diante disso, dizer, sob o aspecto econômico, que o ISS é, sim, um imposto sobre a circulação de serviços. O problema é que o conceito dado pela economia não satisfaz plenamente o conceito de serviço para fins tributários. José Eduardo Soares de Melo defende que:

Considerando que o tributo é uma entidade jurídica (amplamente constitucionalizada), os seus elementos estruturais (especialmente a materialidade) circunscrevem-se a conceitos, critérios e institu-tos jurídicos. Embora os impostos apresentem um natural substrato econômico (pertinente à própria capacidade contributiva), não há sentido em conferir-se preeminência às etapas econômicas (produ-ção, circulação e consumo), para a conceituação de serviço26.

Não se discute o fato de que o tributo é uma realidade econômica. A relação tributária é, inegavelmente, de conteúdo econômico. O que não pode, no entanto, é afastar os métodos de interpretação, assim como os meios de integração, para buscar o sentido da regra jurídica só e exclusivamente obje-tivando os efeitos econômicos dos fatos envolvidos na relação de tributação. No Brasil, ainda que defendido por alguns doutrinadores, o critério econômico de interpretação das leis tributárias, no entender da doutrina majoritária, não foi acolhido pelo sistema constitucional tributário, por ofender, claramente, os princípios da estrita legalidade tributária e tipicidade fechada, institutos que expressam, em nosso ordenamento jurídico, segurança jurídica.

Com efeito, se a lei, ao descrever determinada hipótese de incidência tributária, é obrigada a mencionar expressamente todos os elementos objetos da compulsoriedade (pessoal, espacial, temporal, material e quantitativo), a análise desses elementos é que dirá se ocorreu ou não determinado fato gerador, e não o resultado econômico de um ato, fato ou situação. Não se pode, enfim, por meio de uma interpretação econômica, afirmar que ocorreu esse ou aquele fato gerador tributário.

É verdade que o art. 109 muniu o legislador de meios para enfrentar o “abuso de formas do Direito Privado”, não significando permissão para a interpretação econômica dos fatos geradores pelos intérpretes. A regra endereça-se, mais uma vez, ao legislador, e não aos intérpretes oficiais da lei fiscal (Executivo e Judiciário).

O objetivo dos referidos artigos é preservar a rigidez do sistema de re-partição das competências tributárias entre os entes políticos da Federação,

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segregando a partir dos conceitos de Direito Privado, já sedimentadas as fontes de receita tributária dos mesmos. Dessa maneira, mercadoria, serviço, salário etc. quando usados para articular os fatos geradores dos impostos, não podem ser alterados pelo legislador infraconstitucional, com a finalidade de tributar realidades não previstas.

6 INCIDÊNCIA, NÃO-INCIDÊNCIA, ISENÇÃO E IMUNIDADE DO ISSA imunidade pode ser entendida enquanto uma exclusão de compe-

tência da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para instituir tributos relativamente a determinados atos, fatos, pessoas, expressamente prevista na Constituição Federal. Dessa maneira, do mesmo modo que outorga as com-petências para instituir tributos sobre determinadas materialidades, a própria Constituição também estabelece outras específicas situações que são afastadas dos gravames tributários.

A temática da imunidade constitucional não tem encontrado consenso doutrinário no que se refere à sua real natureza. O conceito de imunidade não é uníssono para os doutrinadores. Ora referem-se a ela como limitação ao poder de tributar, como regra de exclusão de competência tributária, ora como espécie de não incidência de qualificação constitucional de exoneração tributária.

Tributaristas, como Aliomar Baleeiro27, por exemplo, enfatizam o aspecto de limitação constitucional do instituto: “as limitações constitucionais ao poder de tributar funcionam quase sempre por meio de imunidades fiscais”, isto é, dis-posições da lei maior que vedam ao legislador ordinário decretar impostos sobre certas pessoas, materiais ou fatos, enfim, situações que define. Será inconstitu-cional a lei que desafiar imunidades fiscais. Já para outros doutrinadores, trata-se de regra negativa de competência: as regras que vedam às entidades políticas editarem lei de imposição que apanham determinadas pessoas, ou determinados bens, são regras jurídicas negativas de competência. Criam a respeito dessas pessoas, ou desses bens, respectivamente, imunidade subjetiva ou objetiva.

De uma forma ou de outra, aderimos ao entendimento de Roque Antonio Carrazza28, para quem a imunidade tributária ajuda a delimitar o campo tribu-tário. As regras de imunidade, no sentido negativo, demarcam as competências tributárias das pessoas políticas.

O grande ponto de discussão é a diferenciação existente entre os insti-tutos da não-incidência, imunidade e isenção. O resultado final de todas elas, na verdade, é a desoneração tributária. Ocorrendo qualquer das hipóteses, não se configura a obrigação de pagar o tributo. Alguns juristas identificam todas as situações como de não-incidência em sentido amplo, referindo-se apenas a primeira como não incidência em sentido estrito. Na não incidência (em sen-tido estrito), o fato em questão não foi descrito na hipótese de incidência de nenhuma norma de tributação. Não há lei criando obrigação de pagar tributo

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pela ocorrência daquele fato. O fato continua sendo mero fato da vida, não há incidência, o fato não se juridiciza e não se torna, por isso, fato imponível.

No que tange à imunidade e isenção, para a doutrina clássica, haveria incidência (o fato é definido como hipótese de incidência pela lei tributária), mas a obrigação de pagar tributo seria afastada pela norma constitucional (no curso da imunidade) ou pela norma legal (no caso da isenção). Hoje predomina na doutrina o entendimento de que tanto para a imunidade como para a isen-ção, há obstáculo à própria incidência da norma da tributação. Na imunidade porque a Constituição, ao outorgar competência impositiva às pessoas jurídicas de Direito Público, exclui de tal competência aquelas situações ou pessoas objeto da regra de imunidade. Ali não há competência para o legislador ordi-nário criar hipótese de tributação. A Constituição é que outorga competência tributária e exclui a situação objeto da regra constitucional de imunidade. Já na isenção, a regra isentiva inviabiliza a incidência da regra da tributação. A norma isentiva, posta em lei ordinária, exclui determinada hipótese de inci-dência da regra de tributação.

7 SOFTWARE: PROPRIEDADE INTELECTUALO Código Civil de 1916 tratava a matéria sobre criação intelectual sob

a epígrafe Da propriedade literária, científica e artística nos arts. 649 a 673. Tais dispositivos, entretanto, foram derrogados pela Lei nº 5.988/73, recentemente substituída pela Lei nº 9.610, de 19, de fevereiro de 1998, e pela Lei nº 9.609, também de 19 de fevereiro de 1998, que regula os direitos autorais, compreen-dendo-se sob esta denominação os direitos do autor propriamente ditos, bem como os chamados direitos conexos.

Obviamente, as discussões sobre a colocação dos direitos do autor no campo dos direitos reais ainda persistem. Contudo, para fins didáticos, pode-se dizer que, nos direitos do autor, pontificam aqueles de cunho patrimonial ao lado dos direitos morais. Como a propriedade, ou mais propriamente, o domínio pode ter por objeto direitos corpóreos e incorpóreos, “mostra-se inafastável a inclusão desses direitos no campo patrimonial e na esfera dos direitos reais. Cuida-se, sem dúvida, de modalidade de propriedade, ao menos no que tange aos direitos patrimoniais”29.

Não se pode, na verdade, questionar a importância que esses direitos, no século XXI, alcançaram. É um campo tão vasto que não tem como ficar restrito apenas aos direitos reais:

Nesses direitos do intelecto, pontua-se a concepção meramente material, às vezes não muito clara na prática, incluindo complexo de direitos que se traduzem em produção literária, científica ou artística. Essa relação entre o autor e o objeto de sua criação, o corpus mechanicum30, mantém-se exclusivamente na esfera patri-

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monial, enquanto não divulgada a obra pela publicação do livro, a divulgação da escultura, da película cinematográfica, da peça teatral, do programa de informática etc. Divulgado o produto da criação intelectual, podemos afirmar que passa a integrar o patrimônio da coletividade, como bem cultural. A partir de en-tão, surge a dicotomia de direitos morais e patrimoniais a serem examinados no campo legislativo e doutrinário. Por essa razão, não se podem resumir de forma singela os direitos do autor à mo-dalidade de propriedade. É, sem dúvida, espécie de propriedade e muito mais31.

A evolução do pensamento jurídico no século passado procurou situar as emanações do intelecto no campo dos denominados direitos da personalidade e direitos intelectuais. Os primeiros são aqueles que decorrem da pessoa humana considerada em si mesma, ou seja, valores que são inatos à natureza do Ho-mem, como a vida, a honra, o nome, a privacidade, etc. Entretanto, em razão da amplitude de fenômenos, não há como fazer uma delimitação doutrinária acerca dos direitos de personalidade. Então, quando esses direitos são elevados ao nível do cidadão perante o Estado e assim reconhecidos pelo ordenamento jurídico nos quais estão imersos, recebem a denominação de liberdades públicas, ou direitos individuais. Nesse sentido, muito desses direitos estão positivados no art. 5º da Constituição Federal como Direitos e Deveres Individuais e Cole-tivos. Pode-se entender que os direitos intelectuais, conhecidos como direitos autorais, são modalidades de direito da personalidade. São, pois, direitos que disciplinam a relação entre a pessoa e sua criação intelectual, de cunho pecu-niário ou simplesmente moral.

Silvio de Salvo Venosa32, todavia, alerta para a necessidade de se distin-guir duas espécies de criação intelectual: “uma destinada à estética, às artes, à ciência, à educação e à elevação cultural da coletividade. Outra destinada a fins utilitaristas, técnicos e de produção”. A partir dessa distinção, tem-se a definição de duas disciplinas distintas: o Direito do Autor e Direito da Proprie-dade Industrial. E por mais que possuam substrato comum, tais direitos possuem regulamentação diversa, uma vez que suas finalidades também são diversas, ainda que interligadas.

O fato é que, em qualquer hipótese relativa a direito autoral, o intérprete será orientado a examinar, permanentemente, dois aspectos fundamentais, quais sejam: a) manifestação direta da personalidade, enquanto direito de ordem moral, intangível, ou seja, reconhecimento da paternidade da obra, ao inédito, à integridade de criação e b) natureza real e, portanto, com cunho econômico, passível de exploração, referindo-se à publicação, reprodução, execução, tradu-ção e divulgação de forma geral. A Lei nº 9.610/98 destaca esses dois aspectos, quando enuncia os direitos morais do autor, nos arts. 24 a 27, e os direitos patrimoniais do autor e sua duração, nos arts. 28 a 45.

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7.1 O Objeto do Direito AutoralA Lei nº 9.610/98, atualizando o alcance da lei revogada, procura definir

com abrangência a exata extensão dos direitos autorais no art. 7º, incluindo todas as formas de criatividade humana, presentes ou futuras. Estatui esse dispositivo:

Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações de espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:[...]XII – os programas de computador;33

O exame desse dispositivo permite deduzir que apenas o caso concreto definirá se uma obra é protegida pela lei. Afinal, o campo de criação intelectual é bastante amplo e o próprio legislador reconhece que, a cada instante, podem surgir novas manifestações do intelecto. Sílvio de Salvo Venosa34 apresenta três requisitos indispensáveis para que a criação intelectual seja albergada: “criativi-dade, originalidade e exteriorização”. Não há, segundo ele, obra intelectual sem criação e é onde está o aspecto mais substancial do direito do autor. O segundo elemento é o da originalidade, ou seja, obra de espírito diversa de qualquer outra manifestação anterior. E, finalmente, a exteriorização é essencial, já que uma obra desconhecida ou inédita inexiste para a esfera jurídica ou para defesa de direitos morais ou patrimoniais.

7.2 Direitos autorais no campo da InformáticaA Lei Federal nº 9.609/98, em seu artigo 1º, define software como:

Art. 1º Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego ne-cessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos baseados em técnicas digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.

De acordo com a referida lei (nº 9.609/98), que dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador e sua comercialização no país, o software constitui a elaboração intelectual de um programa que pos-sibilita a utilização de um equipamento, constituído em um sistema de funções múltiplas e que permite a distribuição de informações através de um suporte físico. Representa, no Direito de Informática, a parte dos computadores sujeita à programação, em contraposição ao hardware, correspondente às peças que

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compõem o aparelho propriamente dito.

A idéia mais difundida sobre o software é que ele se compõe por dois elementos básicos: o suporte físico e o trabalho intelectual. A partir daí, consideram-se os programas de computador sob dois aspectos: primeiro, enquanto atividade intelectual, ocasionando uma prestação de serviço, re-presentada por uma obrigação de fazer, ensejando a cobrança do imposto de competência do Município, incidente sobre serviços de qualquer natureza (ISS); segundo, o segmento físico, veiculando programas padronizados, ca-racterizando, dessa forma, a existência de uma mercadoria, isto é, a prestação de uma obrigação de dar coisa, a qual ensejaria a cobrança do imposto de competência do Estado, incidente sobre operações relativas à circulação dessas mercadorias, o ICMS.

7.3 Direitos patrimoniais do autor. Cessão de DireitosA elaboração do programa de computador a pedido de alguém, parti-

cularmente, até se reveste das características de uma obrigação de fazer e por conseqüente se configuraria em serviço. Mas, por outro lado, depois do programa elaborado, a simples cessão para o uso não se enquadra em uma obrigação de fazer, tendo em vista que o objetivo único é a obtenção de autorização para utilização do programa, e não a contratação do serviço de um especialista para elaborar o programa.

De fato, a obrigação de dar jamais poderá conduzir à exigência de ISS, porquanto serviço se presta, mediante um “facere”. Em outras palavras, serviço se faz, não se dá. O conceito constitucional de serviço tributável somente abrange operações que pressuponham obrigações de fazer. Assim, considerando os princípios e normas consagradas pela Constituição Fede-ral, quanto à tributação, tem-se que o conceito constitucional de serviço é a prestação de esforço humano a terceiros, com conteúdo econômico, em caráter negocial, sob regime de direito privado, tendente à obtenção de um bem material ou imaterial.

Não integram, já se sabe, a competência municipal, os serviços de transporte interestadual e intermunicipal e os de comunicação, cometidos que foram aos Estados (inciso II, do art. 155, da CF/88), assim como a atividade de locação de bens móveis, tal como decidido pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 116.121-3/SP, in verbis:

TRIBUTO – FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos.IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – CONTRATO DE LOCAÇÃO – A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem mó-

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vel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional.

Assim, diante da disposição do artigo 110 do Código Tributário Nacional, que veda a alteração, via legislação tributária, de definições e conceitos utilizados pelo Direito Privado, in verbis:

Art. 110 A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Fede-ral, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar com-petências tributárias.

Não resta dúvida de que a prestação de serviços caracteriza-se, eminen-temente, por ser uma obrigação de fazer, como também o fato de que o conceito de serviço consagrado pelo texto constitucional como fato gerador da exação tem suas raízes no direito privado. Salienta-se que, apesar de o dispositivo supra, referir-se a um critério de interpretação, trata-se de uma limitação imposta ao intérprete da norma tributária, pois não caberá a alteração de conceitos e insti-tutos consagrados em Direito Privado se estes forem recepcionados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, dos Estados e pelas Leis Orgânicas do DF e dos Municípios.

Pode-se defender que não há fundamento jurídico para a incidência do ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação, pelo simples fato de essa atividade não ser um serviço. Questiona-se, então: qual seria a natureza da obrigação na atividade em estudo?

A distinção entre software de prateleira e programa desenvolvido sob encomenda é antiga e adotada por diversos autores estrangeiros. O equívoco, portanto, não está na distinção em si, mas na forma como a mesma é utilizada. Para nós, respectivamente, a grande distinção entre as espécies de programas acima mencionadas reside na modalidade de contratação. Em se tratando de programa sob encomenda, as partes firmam contrato de licença ou cessão de direitos de uso, cujas cláusulas são amplamente discutidas. Na segunda hipótese, a indústria adotou uma forma diversa, consubstanciada nos contratos por adesão, que terminou tornando-se padrão utilizado pela quase totalidade do mercado. Ambos são contratos de licença de uso, diferindo tão somente quanto à forma de aceitação das partes contratantes, uma expressa e outra presumida.

Os julgados que serviram de paradigma para a construção da fórmula jurídica acima criticada não atentaram para a condição excepcional disposta

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no art. 9º da Lei n. 9.609/98. É preciso deixar claro que o referido dispositivo determina que o uso de programa de computador no território brasileiro será objeto de contrato de licença. Isto significa dizer que o legislador criou, expres-samente, uma vinculação permanente entre o titular e o usuário de programa de computador, vínculo esse marcado pela nota essencial da obrigação de não fazer, ou seja, do titular/criador do programa permitir uso e, portanto, abster-se de interferir no livre e efetivo uso do mesmo.

Desta forma, apenas pode ser usuário de programa de computador: a) aquele que desenvolveu o programa, detendo os direitos sobre o mesmo; b) aquele que firmou um contrato de licença de uso com o respectivo titular ou c) aquele que firmou contrato de cessão de direitos com o respectivo titular, tornando-se, a partir de então, detentor dos direitos, ele próprio.

Fora dessas três hipóteses não há possibilidade de uso lícito de programa de computador no Brasil. Sendo assim, quando um indivíduo se dirige a uma loja e paga o preço do Microsoft Windows, por exemplo, ele está celebrando, por adesão, um contrato de licença de uso. Existirá, neste caso, uma vincula-ção entre o titular e o usuário e a ocorrência da hipótese estabelecida na Lei Complementar nº 116/2003. A verificação destas condições independe do fato de o programa ter sido desenvolvido sob encomenda ou estar ao alcance de todos no comércio em geral. O fato é que sempre existirá uma licença ou cessão de uso na comercialização de programa de computador. É descabido o paralelo traçado nos julgados dos nossos Tribunais, no sentido de que a co-mercialização de um software de prateleira se assemelharia à comercialização de um livro, disco ou fita de vídeo.

Ao contrário do art. 9º da Lei nº 9.609/98, não há nenhuma disposição na Lei de Direitos de Autor – Lei nº 9.610/98 – que determine que o uso de livros, discos e fitas de vídeo no Brasil está vinculado ao contrato de licença. Se a lei expressamente confere tratamento diferenciado aos programas de computador, não pode o intérprete ignorar esta distinção para efeitos tributários, tratando-os como se fossem livros, discos ou outros produtos de vinculação de produção intelectual e científica. Revela-se absolutamente descabida, para efeitos tribu-tários, a distinção entre software desenvolvido sob encomenda e aquele dito de “prateleira”. Há de se verificar a ocorrência, no caso concreto, de contrato de licença ou cessão de direitos de uso.

José Eduardo Soares de Melo35 demonstra que, nas operações de licencia-mento ou cessão de direito de uso de software, apenas o direito de fruir ou dispor da propriedade intelectual, qual seja, patente ou direito autoral, é que é nego-ciado. Trata-se de cessões parciais de direitos autorais entre autor (cedente) e terceiro (cessionário), sendo considerados bens móveis. Para o Direito Civil, bens móveis, “são bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem que tal movimento ou remoção altere sua substância essencial ou sua destinação econômico-social”36.

Sobre Locação de bens móveis, por sua vez, na mensagem nº 362, de 31 de julho de 2003, o Ministério das Cidades propôs, ao Presidente do Senado

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A inconstitucionalidade da lei complementar no 116/2003 quanto à incidência tributária do ISS sobre o licenciamento e/ou cessão de direito de software

Federal, veto:

Senhor Presidente do Senado Federal,

Comunico a Vossa Excelência que, nos termos do § 1º do art. 66 da Constituição, decidi vetar parcialmente, por contrariedade ao interesse público e por inconstitucionalidade, o Projeto de Lei nº 161, de 1989 – Complementar (nº1/91 – Complementar na Câmara dos Deputados), que “Dispõe sobre o imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, e dá outras providências”

O Ministério das Cidades propôs veto aos seguintes dispositivos:

Itens 3.01 da lista de serviços

Locação de bens móveis

Razões do veto

Verifica-se que alguns itens da relação de serviços sujeitos à incidência do imposto merecem reparo, tendo em vista decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. São eles:

O STF conclui julgamento de recurso extraordinário interposto por empresa de locação de guindastes, em que se discutia a consti-tucionalidade da cobrança do ISS sobre a locação de bens móveis, decidindo que a expressão ‘locação de bens móveis’ constante no item 79 da lista de serviços a que se refere o Decreto-lei nº 56 no 15 de dezembro de 1987, é inconstitucional (noticiado no informativo do STF nº 207). O Recurso Extraordinário 116.121/SP, votado unanimemente pelo Tribunal Pleno, em 11 de outubro de 2000, contém linha interpretativa no mesmo sentido, pois a ‘terminologia constitucional do imposto sobre serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo a contrato de locação de bem móvel. Em direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentidos próprios, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável’. Em assim sendo, o item 3.01 da Lista de Serviços anexa ao projeto de lei complementar, ora analisado, fica prejudicado, pois veicula indevida (porque inconstitucional) incidência do imposto sob locação de bens móveis (In: CASSO-NE, 2004, p.497).

Sob essa perspectiva, se nas operações de licenciamento ou cessão de di-reito de uso de software não há uma obrigação de fazer, e, portanto, não há um

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Ana Paula Martins de Albuquerque

serviço, não existe, conseqüentemente, a incidência do imposto municipal sobre tal operação. Sacha Calmon Navarro Coelho37 explica que a hipótese de incidência é constituída pela descrição do fato, e que é justamente a ocor-rência deste que ocasiona a incidência do dever jurídico previsto na norma jurídica tributária.

Referido negócio (licença de uso de programas de computador), enfim, faz surgir como principal vínculo obrigacional o dever de abstenção do titular do programa em relação à sua livre utilização pelo licenciado, o que encerra patente obrigação de não fazer, a qual não se trata de serviço e, portanto, foge completamente à incidência de qualquer imposto. Quanto ao ISS, porque de serviço não se trata, devendo ser reconhecida a inconstitucionalidade do item 1.05, da LC nº 116/2003. No que concerne ao ICMS, porque a operação de “aquisição” de software não configura uma compra e venda mercantil de bem móvel, a exemplo do que ocorre com livros e outros tipos de reprodução da propriedade intelectual, tanto que recebe da lei tratamento específico e dife-renciado em relação àqueles. Trata-se claramente de contrato que culmina com obrigação de não fazer, a qual não constitui hipótese de incidência de nenhum desses impostos, tratando-se, pois, de operação não tributável.

8 CONCLUSÃONa área da informática, a computação exige o processamento de progra-

mas cuja elaboração requer do profissional criatividade e esforço intelectual. O programa é original em sua composição, como em sua expressão. Universalmente conhecido por softwares, o conjunto de processamento de dados no computa-dor gera, tão somente, o direito de fruir da propriedade intelectual. O que há é o direito de uso da obra, não tendo fundamento a distinção realizadas pelos nossos Tribunais. É evidente a inconstitucionalidade da Lei Complementar n° 116/2003 no que se remete à incidência tributária do ISS sobre o licenciamento ou cessão de direito de uso de programa de computação.

9 REFERÊNCIAS

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COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

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A inconstitucionalidade da lei complementar no 116/2003 quanto à incidência tributária do ISS sobre o licenciamento e/ou cessão de direito de software

FABRETTI, Laudio Camargo. Código Tributário Nacional Comentado. São Paulo: Atlas, 2001.

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____________.ICMS: teoria e prática. 4. ed. São Paulo: Dialética, 2000.

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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

1 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 618.

2 Grifo do autor.3 Ibid., p. 618.4 CASSONE, Vittorio. Direito Tributário. São Paulo: Atlas, 2004, p. 54.5 ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente de. Direito Tributário na Constituição e no STF: teoria

e jurisprudência. 8. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 209.6 MOTA, Douglas. Tributação do ISS no Uso do Software. Gazeta Mercantil, Legal & Jurisprudência, 3

nov. 2004, p. 1.7 MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: Teoria e Prática. 4. ed. São Paulo: Dialética, 2000, p. 54.8 CASSONE, op. cit., p. 479.9 Ibid., p. 479.10 MELO, op.cit., p. 18. 11 CASSONE, op. cit., p. 47912 BEVILÁCQUA, Clóvis [s.d] apud GOLÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo:

Saraiva, 2004, v. III, p. 57.13 COELHO, op. cit., p. 434.14 Ibid., 434.15 MELO, op. cit., p.57.16 COELHO, op. cit., p. 619.17 Grifo do autor.18 Ibid., p. 621.19 ALEXANDRINO; PAULO, op. cit., p. 209.20 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 90.21 VANONI [s.d] apud CASSONE, Vittorio. Direito Tributário. São Paulo: Atlas, 2004, p. 287.22 FABRETTI, Laudio Camargo. Código Tributário Nacional Comentado. São Paulo: Atlas, 2001.23 MACHADO, op. cit., p. 94.24 Grifo do autor.25 CASSONE, op. cit, p. 296.26 MELO, op. cit., p. 40.27 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 283.28 Idem.29 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 581.30 Grifo do autor.

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31 Ibid., p. 582.32 Ibid., p. 583. 33 Grifo nosso.34 VENOSA, op. cit., p. 586.35 MELO, op. cit., p.61-6236 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 146.37 COELHO, op. cit., p. 185.

T H E U N C O N S T I T U T I O N A L I T Y O F SUPPLEMENTARY LAW 116/2003 REGARDING THE INCIDENCE OF OCCUPATION TAX (ISS) ASSOCIATED TO THE OPERATIONS OF LICENSING AND/OR ASSIGNMENT OF SOTWARE-RELATED RIGHTS

ABSTRACT

As the use of information technology becomes increasingly widespread in all economic sectors, and as individuals have easier access to computers and related electronic devices and technologies, the development and production of software all over the world is undergoing a noticeable growth process. In Brazil, however, controversy remains as there are still serious doubts about the lawfullness of taxation in trade operations involving software. Although the aforementioned controversy effectively begun with decisions taken at the Superior Court of Justice (STJ) and at the Federal Supreme Court (STF) of the Federative Republic of Brazil, debate on tax incidence over such operations turned more intense only after the enactment of the Supplementary Law (LC) 116, in July 31, 2003. Such legal statute included the licensing and assignment of the right of use of computer programs in the set of activities upon which Occupation Tax (ISS) incides. This measure imposed, to the holder of the rights over the software product, the duty of not doing anything as regards the free use of the program by the licensed user, a behaviour which comprises an evident obligation to refrain from doing something, which is not a service and, therefore, excludes the incidence of any tax.

Keywords: Software. Supplementary Law (LC) 116/2003. Occupation Tax (ISS). Licensing. Non incidence of tax.

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por umA novA concepção jurídicA de cidAdAniA

Christianny Diógenes Maia*

Introdução. 1 O debate atual sobre cidadania. 2 A cidadania na ordem jurídica nacional. 2.1 Cidadania e ação popular. 2.2 Cidadania e acesso à Justiça. 3 Cidadania Ativa e Democracia Participativa. Conclusão.

RESUMOO referido trabalho objetiva abordar as presentes discussões sobre o conceito jurídico e político de cidadania, contextuali-zando o problema no atual Estado Democrático Direito e com base na Constituição Federal de 1988 e na melhor doutrina, avançarmos nessa re-significação do termo, reforçando, assim, a necessidade de amadurecermos esse debate com o intuito de contribuirmos, também, para a construção de uma verdadeira cidadania, que possa ser exercida plenamente por todos.

Palavras-Chave: Cidadania. Democracia. Estado Democrático de Direito. Direitos Fundamentais. Acesso à Justiça. Ação Popular.

INTRODUÇÃOA Constituição Federal de 1988 instituiu a República Federativa do

Brasil como um Estado Democrático de Direito, prevendo o regime político democrático e estabelecendo entre seus princípios fundamentais a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, não é mais possível conceber o Estado brasileiro como um Estado em que diversas parcelas da sociedade estão excluídas do efetivo exercício da cidadania. Com efeito, após 20 anos da promulgação da nossa Lei Maior, ainda é possível constatar a existência de grupos cujos direitos políticos, além de outros direitos, encontram-se prejudicados, evidenciando-se, desse modo, a necessidade de um estudo sobre a cidadania, com o intuito de contribuir para as discussões acerca do tema, e, mais do que isso, para a consolidação do Estado Democrático de Direito.

Os principais responsáveis por pautar as discussões sobre cidadania são os

* Professora de Direito Constitucional I e de Direitos Humanos e Fundamentais da Faculdade Christus. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Advogada.

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novos movimentos sociais, que representam os setores excluídos da sociedade, do acesso aos bens públicos e da participação política, que passaram a lutar, de forma cada vez mais organizada, por seus direitos. Mas, não só os movimentos sociais têm demonstrado interesse pela cidadania como prática social e política, mas também as correntes políticas tradicionais e em especial as forças de esquerda inserem essas preocupações como foco principal de seus discursos políticos.

O enfoque central do presente trabalho, através da pesquisa doutrinária, legislativa e jurisprudencial e análise comparativa dos autores, insere-se no atual conceito atribuído à cidadania com a Constituição de 1988 e o surgimento de um Estado Democrático de Direito.

O primeiro tópico do texto, mais histórico e político, explica a ligação do tema com a luta pelos direitos humanos. Logo após esses breves comentários, será iniciada a abordagem jurídica sobre o tema no capítulo segundo, denominado A cidadania na ordem jurídica nacional. Esse tópico problematiza o conceito de direitos políticos e o próprio conceito de cidadania, utilizando como principais referenciais teóricos os constitucionalistas Francisco Gérson Marques de Lima e José Afonso da Silva e o jus-filósofo Eduardo Bittar, demarcando o tema sob o aspecto da atual Constituição, além de comentários a dispositivos da legislação infraconstitucional. O último tópico discute as novas formas de participação popular e a construção de uma democracia participativa que potencialize o exercício da cidadania. Por fim, as conclusões sobre o tema.

1 O DEBATE ATUAL SOBRE CIDADANIAA necessidade de compreender o conceito atual de cidadania veio como

herança do processo de formação das democracias modernas. Há algum tem-po, o tema cidadania passou a ser mais ventilado no mundo contemporâneo, inclusive no Brasil. Ele aparece na fala de quem detém o poder político, na produção intelectual e nos meios de comunicação, e também junto às camadas desprivilegiadas da população, lembra a cientista social Covre.1

As lutas sociais observadas em diversos países, ao longo dos séculos XIX e XX, foram as principais responsáveis pelo caráter reivindicatório da cidadania, tal como a conhecemos hoje. A cidadania aparece na pauta de diversos movimentos sociais. Atualmente, uma variedade de atitudes caracteriza sua prática.

Pode-se afirmar que todos esses anos de evolução acabaram por confirmar que a cidadania de fato só pode constituir-se por meio de acirrada luta quotidiana por direitos e pela garantia daqueles que já existem. Problemas recorrentes, como as violações dos direitos humanos, as ineficiências no campo social e o processo de pauperização manifestado na periferia do capitalismo, mostram que a cidadania exige mais do que o simples ato de votar ou de pertencer a uma sociedade política.

Mas, então, o que é ser cidadão? Para muitos, o cidadão confunde-se com o eleitor, mas quem já teve alguma experiência política sabe que o ato de votar

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Por uma nova concepção jurídica da cidadania

não garante nenhuma cidadania, se não vier acompanhado de determinadas condições de cunho econômico, político, social e cultural, como lembra ainda Covre.2 Desse modo, afirma a autora que a cidadania é o próprio direito à vida em sentido pleno, e completa sua definição, explicando que: “Trata-se de um direito que precisa ser construído coletivamente, não só em termos do atendi-mento às necessidades básicas, mas de acesso a todos os níveis de existência, incluindo o mais abrangente, o papel dos homens no Universo”.3

Assim, a idéia de cidadania deve estar associada às discussões sobre as garantias dos direitos fundamentais, ou seja, às condições dignas de vida para o pleno exercício daquela. Será visto a seguir como a atual ordem jurídica está construindo essa “nova” concepção de cidadania.

2 A CIDADANIA NA ORDEM JURÍDICA NACIONALTradicionalmente, o conceito jurídico de cidadão esteve ligado aos direitos

políticos. Considerava-se cidadão aquele que estivesse gozando plenamente de seus direitos políticos, confundindo-se, muitas vezes, com o conceito de eleitor, ou seja, com o status de votar e de ser votado. Essa idéia de cidadania, restrita aos titulares desses direitos, revela uma forma de tornar mais abstrata a rela-ção povo/governo, como lembra Silva,4 em contradição a si próprio,5 quando afirma que os direitos de cidadania adquirem-se mediante alistamento eleitoral na forma da lei, denotando, assim, a visão tradicionalista sobre o conceito. No entanto, o autor, ao discorrer sobre os fundamentos do Estado brasileiro, entre estes a Cidadania, afirma que aqui a cidadania está num sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos, pois “qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal”.6 Para Silva,7 os direitos políticos constituem-se na disciplina dos meios necessários ao exercício da soberania popular, enquanto Covre assinala o que segue sobre os direitos políticos:

Os direitos políticos dizem respeito à deliberação do homem sobre sua vida, ao direito de ter livre expressão de pensamento e prática política, religiosa etc. Mas, principalmente, relacionam-se à convivência com os outros homens em organismos de represen-tação direta (sindicatos, partidos, movimentos sociais, conselhos, associações de bairro etc) ou indireta (pela eleição dos governantes etc.), resistindo à imposição dos poderes (por meio de greves, pressões, movimentos sociais).8

Percebe-se, então, a amplitude do conceito de direitos políticos atribuída por Covre, que, por sua vez, também implica uma amplitude do conceito de cidadania, aqui construído.

As discussões no âmbito da Sociologia, da Pedagogia e da Ciência Política

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Christianny Diógenes Maia

levaram a uma evolução, a uma re-significação do conceito de cidadania, que, por sua vez, influenciaram a idéia jurídica anterior sobre cidadania, repensando-se também o tradicional significado a ela atribuído.

O discurso político da modernidade confunde o Homem com o Cidadão, mas o homem não é cidadão em si mesmo, somente o é em relação ao Estado, e só ao Estado moderno. Assim, conclui Silva que ser cidadão consiste em ser titular de direitos.9

Deve-se superar a dimensão tradicionalista que marca a concepção con-ceitual de cidadania, expandindo-se, como propõe o renomado filósofo Bittar,10 o sentido do vocábulo em direção às fronteiras das grandes querências sociais, dos grandes dilemas da política contemporânea, dos grandes desafios histórico-realizativos dos direitos humanos. Bittar lembra ainda que:

A ampliação dos horizontes conceituais da idéia de cidadania faz postular, sob este invólucro, a definição de uma realidade de efetivo alcance de direitos materializados no plano do exercício de diversos aspectos da participação na justiça social, de reais práticas de igualdade, no envolvimento com os processos de construção do espaço político, do direito de ter voz e de ser ouvido, da satisfação de condições necessárias ao desenvolvimento humano, do atendi-mento a prioridades e exigências de direitos humanos, etc.11

Sobre o atual conceito jurídico de cidadania, discorre o professor Mar-ques de Lima: “os chamados direitos de cidadania passaram a ser todos aqueles relativos à dignidade do cidadão, como sujeito de prestações estatais, e à parti-cipação ativa na vida social, política e econômica do Estado. Participação não só política, mas também social e econômica”.12

Portanto, a idéia de cidadania significa algo mais que simplesmente direitos e deveres políticos, ganhando a dimensão de sentido segundo a qual é possível identificar nas questões ligadas à cidadania as preocupações em torno do acesso às condições dignas de vida. É impossível pensar um povo capaz de exercer plenamente a sua cidadania, sem que lhe sejam garantidas as condições elementares a uma vida digna. Por isso, conclui Bittar:

Toda a questão da cidadania encontra-se profundamente enraiza-da na discussão de proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, na medida em que não se deve falar em cidadania se não puder falar em acesso efetivo a direitos fundamentais da pessoa humana.13

A nova idéia de cidadania se constrói sob o influxo do progressivo en-riquecimento dos direitos fundamentais. A Constituição de 1988, que assume

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Por uma nova concepção jurídica da cidadania

as feições de uma Constituição dirigente, incorpora essa nova dimensão da cidadania quando, no seu art. 1º, inciso II, adota-a como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, em que é constituída a República Federa-tiva do Brasil.14 Portanto, o conceito de cidadão na nova ordem constitucional possui um sentido mais amplo que o tradicional conceito associado ao eleitor, indicando-o como participante da vida do Estado e reconhecendo-o como pessoa integrada na sociedade estatal.

Outros artigos da Constituição refletem a nova dimensão do termo “ci-dadania”, deixando, portanto, bem clara a intenção do legislador constituinte de afastar o sentido tradicional atribuído ao termo, como é o caso do artigo 1º, que conecta a cidadania aos princípios da soberania popular e da dignidade da pessoa humana. No art. 5º, temos o inciso LXXIII, que fala da ação popular, a qual pode ser impetrada por qualquer cidadão, significando que o funcionamento do Estado estará submetido à vontade popular; e o inciso LXXVII, dispondo sobre a gratuidade dos atos necessários ao exercício da cidadania, regulado pela Lei n. 9.265/96, que considera como atos de cidadania, dentre outros, os pedi-dos de informações ao poder público, em todos os seus âmbitos, objetivando a instrução de defesa ou a denúncia de irregularidades administrativas na órbita pública, bem como quaisquer requerimentos ou petições que visem às garantias individuais e à defesa do interesse público.

Como se vê, para praticar ato de exercício da cidadania e, portanto, ser considerado cidadão, não é necessário estar no gozo dos direitos políticos, pois, do contrário, poder-se-ia pensar que os condenados criminalmente não podem peticionar em defesa de seus direitos individuais ou requerer informações a órgão público. No art. 68, § 1º, fica clara a distinção entre os conceitos de cidadania e de direitos políticos ao mencionar cada um dos termos, quando afirma que não será objeto de delegação ao Presidente da República a elaboração da legislação pertinente à nacionalidade, à cidadania e aos direitos individuais, políticos e eleitorais. No art. 205, a cidadania se relaciona com os objetivos da educação. Ressalte-se que os dispositivos constitucionais supracitados, que claramente adotam uma dimensão mais ampla do conceito de cidadania, são apenas alguns dos artigos em que esse novo conceito de cidadania está inserido.

Há, ainda, dispositivos legais infraconstitucionais, que comungam da mesma dimensão atribuída à cidadania pela Constituição Federal, cujos exem-plos são ilustrados a seguir:

Art. 1º, § 3º, do Código de Trânsito Brasileiro: “os órgãos e enti-dades componentes do Sistema Nacional de Trânsito respondem, no âmbito das respectivas competências, objetivamente, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito do trânsito seguro”.

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Christianny Diógenes Maia

Art.1º da Lei n. 8742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social): “A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é política de seguridade social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”.

Art. 16, da Lei Complementar n. 75/93 (Lei Orgânica do Mi-nistério Público): “A lei regulará os procedimentos da atuação do Ministério Público na defesa dos direitos constitucionais do cidadão.

Ora, se cidadãos fossem somente aqueles que podem votar e ser votados, todas as demais pessoas que não possuem tal status estariam desamparadas pelo Estado, em caso de danos causados por seus próprios órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito. Pelo mesmo motivo, também estariam desam-paradas das políticas assistenciais, dever do Estado para com todas as pessoas que delas necessitam para viver. Ainda pelo mesmo motivo, não teriam seus direitos constitucionais defendidos pelo Ministério Público, quando fosse o caso. Confirma-se, portanto, através desses dispositivos, que a intenção do legislador constituinte foi a de ampliar a dimensão da cidadania, pois vivemos num Estado Democrático de Direito.

2.1 Cidadania e Ação PopularA idéia de cidadão encontrada na lei da ação popular ainda é restrita.

O § 3º do art. 1º da Lei n. 4.717/65 estabelece que a prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral, ou com documento que a ele corresponda.

A Lei n. 4.717/65 fundamenta-se na Constituição da República de 1946. Esta, bem como as Cartas de 1967 e 1969, não elencam expressamente como princípio fundamental a cidadania, pois não havia na época um compromisso formal do Estado em fomentar a cidadania. Era um período difícil, aquele em que foi editada a Lei da Ação Popular, em pleno regime ditatorial, quando a idéia de cidadania e de participação política era a mais restritiva possível, como lembra Marques de Lima.15 Aliás, até mesmo a distinção entre cidadania e na-cionalidade dava, apenas, seus primeiros passos. Somente com as Constituições de 1967 e 1969 é que ficaram nítidas, no direito nacional, as diferenças entre o nacional e o cidadão. Este, tendo em vista a Constituição da República de 1988, tem amplos direitos e deveres, pois agora o Estado fomenta a cidadania em obediência a um princípio fundamental.

É verdade incontroversa que a ação popular é um direito de todo cida-dão, inserido no rol de direitos e garantias fundamentais, do art. 5º da Carta Magna, devendo ser considerado e interpretado em sentido amplo, como todo

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Por uma nova concepção jurídica da cidadania

direito fundamental.

A ação popular surge do princípio republicano, pois o patrimônio estatal é público, pertence ao povo e por este deve ser fiscalizado. Não se pode olvidar que o beneficiário da ação popular é o povo, na medida em que tem por finali-dade anular ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente, etc.

O Estado brasileiro assumiu compromisso de estimular o exercício da cidadania em seu grau máximo, como se expôs anteriormente, através dos ar-tigos 1º, inciso II; art. 5º, incisos LXXIII e LXXVII, entre outros. O verdadeiro fundamento de nossa Constituição, a cidadania, não pode ter suas formas de exercício restritas por uma interpretação que relega a um segundo plano uma diretriz básica do sistema constitucional brasileiro. Portanto, a Lei n. 4.717/65 precisa ser interpretada à luz da Constituição da República atual, sob pena de negar-se, indevidamente, o exercício de direitos individuais garantidos pela Lei Maior. Dessa forma, é inconteste a não recepção do § 3º do art. 1º da Lei n. 4.717/65 pela Constituição de 1988.

A consideração central sobre a questão em tela é saber se ação popular é um direito político. Penso que não. O artigo 14 da Constituição da República enumera os direitos políticos e não inclui entre eles a ação popular. A ação popular está garantida aos cidadãos no capítulo dos direitos individuais. Deve, portanto, ser considerada como exercício da cidadania em sentido lato, ou seja, em consonância com os princípios fundamentais da República brasileira. Deve-se lembrar que o artigo 15 da Constituição da República, que suspende os direitos políticos dos condenados criminalmente, é norma vedativa, não podendo, pois, ser interpretada extensivamente, segundo os bons princípios hermenêuticos. Deve a suspensão referida recair apenas sobre os direitos políticos, assim de-finidos pela própria Constituição. Por outro lado, o artigo 5º, inciso LXXIII, sendo direito individual garantido pela Constituição da República, deve ser interpretado o mais amplamente possível.

Por todo o exposto, a legitimidade para propor ação popular não deve ser restrita a quem vota ou é votado, pois não se trata de direito político, mas direito fundamental do cidadão que, mesmo condenado criminalmente ou analfabeto, contribui para a formação da riqueza nacional. Repita-se que não se pode partir de uma lei ordinária, que há muito tempo necessita de reformulação, para con-trariar a Constituição da República que, como já se disse, produziu um Estado comprometido, fundamentalmente, com o exercício da cidadania.

Entendo que o § 3º do artigo 1º da Lei n. 4.717/65 não foi recepcionado pela atual Constituição. Pensar de outra forma implica o não reconhecimen-to da condição de cidadão ao analfabeto que não fez o alistamento eleitoral ou ao condenado criminalmente. Dessa maneira, a legitimidade para ajuizar ação popular deve ser franqueada a todos os cidadãos, exigindo-se, apenas, os requisitos ordinários compatíveis com o ajuizamento de qualquer outra ação.

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Esta solução se coaduna com a interpretação teleológica e sistemática da Constituição da República e afirma a condição de cidadão a todos aqueles que devem ser tutelados pelo Estado, confirmando, assim, o sentido amplo e atual do significado da cidadania.

2.2 Cidadania e Acesso à JustiçaRestringir o sentido do termo cidadania ao status de votar e ser votado

implica também limitar o direito de acesso à justiça dos cidadãos, já que, se assim fosse, muitos estariam excluídos de ingressar com ação popular. Mas não somente nesse aspecto é possível relacionar o termo cidadania ao direito de acesso à justiça, já que o pleno exercício da cidadania implica também o direito que tem o cidadão de participar das atividades do Estado, provocando todos os Poderes da República para a garantia de seus direitos.

Marques de Lima lembra que:

O problema do acesso à justiça passa, ainda, por uma questão política, de poder mesmo, na medida em que implica manifestação da cidadania do jurisdicionado, participação ativa perante um setor da função estatal. De fato, não se compreende o lado ativo da cidadania sem o direito de participar das atividades e funções do Estado, dentre as quais se inclui a jurisdicional.16

O Poder Judiciário é o poder que, em última instância, deve garantir os direitos dos cidadãos, por vezes negados pelos outros poderes estatais, bem como por particulares. No entanto, a negação ao direito e garantia de acesso à justiça é um outro problema do nosso país, que também nega a condição plena do ser cidadão. Calcula-se que 70% da população dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro não têm acesso à justiça civil, por falta de recursos materiais e de assistência gratuita; por outro lado, a população carente constitui a prin-cipal “clientela” do sistema de justiça penal.17 O censo penitenciário de 1993 indicou que 98% dos presos não têm condições econômicas para contratar um advogado, dois terços dos detentos são negros ou mulatos, 76%, analfabetos ou semi-analfabetos e 95% encontram-se na faixa de pobreza absoluta.18 Um outro problema ligado ao acesso à justiça diz respeito ao tratamento pelo sistema jurí-dico. Vários estudos indicam que a atuação dos órgãos do Estado favorece, em geral, membros das camadas superiores, por razões que podem ir da corrupção passiva até fatores como o preconceito.19

Essa situação, condicionada pela forte desigualdade social, é uma negação ao exercício da cidadania, que, para o seu exercício pleno por parte dos cidadãos, depende de condições básicas para uma vida digna, ou melhor, para o seu pleno exercício, ou seja, depende de que sejam garantidos os direitos fundamentais da pessoa humana.

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Por uma nova concepção jurídica da cidadania

3 CIDADANIA ATIVA E DEMOCRACIA PARTICIPATIVAO conceito de cidadania está vinculado ao princípio democrático. A

democracia representativa reproduz a primeira manifestação da cidadania que qualifica os participantes da vida do Estado – o cidadão, indivíduo dotado do direito de votar e ser votado.20 Não se concebe mais a cidadania como o simples direito de votar e ser votado, já que a participação da vida política de um país não se restringe ao aspecto eleitoral. A própria definição de direitos políticos não se confunde mais com o simples direito de votar e ser votado, lembra Marques de Lima, que define o direito político como um direito à participação, manifestação de intensa atividade democrática, afirmando que:

A concepção restritiva negaria o caráter de cidadão, por exemplo, às crianças e a todos quantos não possam votar e ser votados; e, conseqüentemente, o Estado estaria desobrigado de lhes prestar assistência, bem como de permitir que eles participassem de suas decisões, o que, obviamente, é um contra-senso, um paradoxo inaceitável no atual estágio.21

Logo, se fosse negada a cidadania àqueles que não podem votar e ser votados, uma parte considerável da população brasileira não seria tutelada pelo Estado.

O novo significado da cidadania vem exigindo a reformulação do próprio conceito de Democracia, buscando-se, hoje, um meio termo entre a democracia representativa e a democracia direta, que vem a ser a democracia participativa, ou semi-direta.

O princípio básico desse novo sistema está contemplado no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Ao proclamar pela primeira vez em nossa história constitucional que o povo pode exercer o poder também diretamente, a Constituição introduziu o princípio da democracia participativa.

O artigo 14 da Carta Magna determina que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e também, nos termos da lei, mediante o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular da lei, institutos regulamentados logo depois da Lei n. 9.709/98. O artigo 29 da mesma Carta, que trata da organização municipal, em seus incisos XII e XII, torna obrigatória a inclusão de associações repre-sentativas no planejamento municipal e garante a iniciativa popular de lei nessa esfera federativa.

O Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) garantiu a gestão democrática

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da cidade (art. 43), determinando para isso a utilização, entre outros, dos se-guintes instrumentos: órgãos colegiados de política urbana, debates, audiências e consultas públicas, conferências sobre assuntos de interesse urbano, iniciativa popular de projetos de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Determinou também, no art. 44, que a gestão orçamentária participava no âmbito municipal, prevista na alínea f do inciso III do art. 4º, incluirá a re-alização de debates, audiências, consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e dos orçamentos anuais, como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal. Finalmente, no artigo 45, fixou como obrigatória a inclusão, nos organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania.

Com a proclamação do exercício direto do poder pelo povo, nossa le-gislação constitucional ofereceu a base legal para o real ingresso do povo no exercício efetivo da função legislativa e da produção e gestão das políticas governamentais.

No âmbito específico da função legislativa, a democracia participativa significa que, além dos direitos políticos já garantidos ao povo pela democracia representativa, quais sejam, o de eleger pelo voto direto e secreto seus repre-sentantes parlamentares, é possibilitado ao cidadão uma participação política mais abrangente e mais eficaz: a elaboração, a apresentação, a discussão e a votação de projetos de lei. Isso se materializa juridicamente pelos institutos da iniciativa popular de lei, do plebiscito e do referendo.

Na esfera da produção e gestão de políticas governamentais, a democracia participativa dá direito ao povo de dividir com o Poder Executivo a administração da coisa pública, inclusive no que tange à destinação dos recursos públicos. O ponto alto desse compartilhamento da administração tem se dado no chama-do orçamento participativo, experimentado quase exclusivamente na esfera municipal, mas cujos princípios e procedimentos poderão ser perfeitamente estendidos às outras duas esferas da Federação.

Só numa democracia de participação ampliada do povo no processo legis-lativo e no processo governamental, o exercício da cidadania pode ultrapassar o mero discurso sobre a cidadania e fazê-la uma prática concreta no cotidiano das sociedades democráticas. Em outras palavras, a idéia abstrata de cidadania só se materializa de fato em cidadania ativa num regime democrático que vai além da mera representação, para ingressar no terreno vivo da participação popular. Nesse novo contexto, a cidadania ativa é a realização autêntica da soberania popular, tornando-se um ato mais importante do que a atividade eleitoral pura e simples. A cidadania ativa supõe, necessariamente, a participação popular com possibilidade de transformação de formas do poder de alguns em poder de todos.

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Por uma nova concepção jurídica da cidadania

O cidadão é, portanto, o sujeito ativo responsável pela história, com direitos e aptidões de participar das decisões do Estado deste, exigindo e reivin-dicando posturas e atitudes efetivas para a satisfação das necessidades e anseios sociais e individuais.22

Como foi visto, o Estado em que vivemos propõe uma forma democrática de fazer política, através das formas diretas de participação popular nas decisões políticas do Estado, estabelecidas na Constituição e em leis infraconstitucionais, confirmando, assim, a intenção de ampliar a concepção de cidadania, também através das formas de participação do povo. Porém, para que o povo verdadei-ramente exerça seu papel de cidadão, participando ativamente dos destinos políticos de sua cidade, seu Estado e seu país, é necessário que viva dignamente, ou seja, que tenha seus direitos fundamentais efetivados, condição preliminar para o pleno exercício da cidadania.

CONCLUSÃOTalvez por vivermos há poucos anos numa democracia, ainda não apren-

demos a ser cidadãos. O povo não se sente responsável pelos destinos do Estado, porque está acostumado ao assistencialismo e aos “vícios” da representatividade. Por isso, é preciso investir em medidas educacionais que priorizem o exercício da cidadania, ao mesmo tempo em que devem ser potencializados os mecanismos de democracia direta para que o povo possa emancipar-se e sentir-se verdadeiro sujeito da história, pois, embora tenha conquistado o Estado Democrático de Direito, na realidade, ainda falta muito para uma real democracia, em que todos possam exercer sua cidadania plenamente.

Durante a pesquisa, refletiu-se acerca do significado de cidadania e chegou-se à conclusão de que a idéia de cidadania está diretamente ligada às discussões sobre a luta pelos direitos humanos e à garantia dos direitos funda-mentais, pois somente um povo que possua efetivamente todas as condições básicas a uma vida digna será capaz de exercer plenamente o seu direito de cidadania, participando ativamente da vida política de seu país. Concluiu-se também, que o significado do termo cidadania, proposto pela Carta Magna, reflete uma idéia bem mais ampla do que seu conceito tradicional, que associava cidadão ao eleitor.

Além disso, a cidadania, assim considerada, promove um grande debate sobre Democracia, Participação Popular e Estado Democrático de Direito, na medida em que defende um espaço cada vez maior para a construção da De-mocracia Participativa, potencializando os instrumentos de Democracia Direta, e, assim, consolidando o Estado Democrático. Acreditamos que somente numa autêntica democracia participativa o exercício da cidadania pode ultrapassar o mero discurso, tornando-se uma prática concreta no cotidiano das sociedades democráticas. Lembrando sempre a construção de espaços democráticos, em que se efetive a cidadania associada a políticas públicas garantidoras das neces-sidades básicas a uma vida digna.

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Por fim, reitera-se o desejo de fomentar, com este trabalho, o debate sobre a cidadania, envolvendo os temas aqui desenvolvidos, tão importantes para as discussões da atualidade, numa sociedade que busca se afirmar enquanto Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

BITTAR, Eduardo C.B. Ética, educação, cidadania e direitos humanos. Barueri, SP: Manole, 2004.

COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é cidadania. São Paulo: Brasi-liense, 2003.

LIMA, Francisco Gérson Marques de. Fundamentos constitucionais do processo: sob a perspectiva da eficácia dos direitos e garantias fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2002.

SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do Direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2002.

______. Curso de Direito Constitucional positivo. 15. ed. São Paulo: Ma-lheiros, 1998.

1 COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é cidadania. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 7.2 Ibid., p. 9.3 Ibid., p. 11.4 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo:

Malheiros, 2002, p. 139.5 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, p.

347.6 SILVA, 1998, op. cit., p. 108.7 Ibid., p. 108.8 COVRE, op. cit., p. 15.9 SILVA, 2002, op. cit., p. 140.10 BITTAR, Eduardo C.B. Ética, educação, cidadania e direitos humanos. Barueri: Manole, 2004, p. 11.11 Ibid., p. 11.12 LIMA, Francisco Gérson Marques de. Fundamentos constitucionais do processo: sob a perspectiva da

eficácia dos direitos e garantias fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 97.13 BITTAR, op. cit., p. 19.14 SILVA, 2002, op. cit., p.141.15 LIMA, op. cit., p. 101.16 Ibid., p. 96.17 SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do Direito.

2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 184.18 MINHOTO, 2000 apud SABADELl, Ana Lúcia. Manual de Sociologia jurídica: introdução a uma

leitura externa do Direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002., p. 159.19 SABADELL, p. 18520 SILVA, 2002, op. cit., p. 139.

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Por uma nova concepção jurídica da cidadania

21 LIMA, op. cit., p. 97-98.22 Ibid., p. 99.

FOR A NEW JURIDICAL UNDERSTANDING OF CITIZENSHIP

ABSTRACTThis paper intends to examine the discussions on the juridical and political notions of citizenship, taking into account the rule of law regime and based upon 1988 Constitution and doctrine, in order to be able to re-evaluate the meaning of citizenship, reinforcing the need to improve a debate aimed at contributing to the building of a true kind of citizenship able to be for the benefit of everyone.

Keywords: Citizenship. Democracy. Rule of law. Fundamental rights. Access to Justice. Popular Action.

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o ensino jurídico e A metáforA do espAço

Edith Maria Barbosa Ramos*

RESUMOTem-se por objetivo iniciar, em consonância com o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, o estudo de uma verdadeira cartografia simbólica do ensino do Direito no Brasil, o que implica perceber as relações sociais por um novo prisma, sem desmerecer a importância histórica de sua constituição, mas privilegiando a perspectiva espacial de seu desenvolvimento. Procurar-se-á compreender o ensino e o Direito como fenôme-nos do quotidiano, livres de preconceitos e dos pressupostos teóricos dos juristas tradicionais. Tem-se a pretensão de apre-sentar o Direito a partir das relações sociais que transbordam dos centros universitários; com suas diferentes espacialidades, com suas diversas temporalidades e, principalmente, com a identificação dos vários atores envolvidos.

Palavras-Chave: Ensino jurídico. Relações sociais. Pluralismo jurídico. Cartografia do Direito.

O diálogo é o mapa do futuro, da transformação do presente, na medida em que a imaginação dá forma ao nosso desejo de modificação a partir dos obs-táculos e limites do presente. À medida que o atual modelo de ensino jurídico é colocado em debate, novas experiências se tornam possíveis, pois aquilo que era periferia se transforma em centro, e o centro em periferia, num processo de deslocamento contínuo.

Boaventura de Sousa Santos afirma que a modernidade tem privilegiado a metáfora do tempo, pois toda realidade é vista e refletida, unicamente, a par-tir do momento histórico vivenciado. No entanto, outras metáforas permitem compreender a realidade, dentre elas a metáfora do espaço. Esquecida, porém pulsante, esta metáfora poderá trazer uma força esclarecedora sobre o pensar e o agir humanos.

Quando se desloca o olhar para a metáfora do espaço, podem-se perceber os mesmos fenômenos presentes na realidade social, antes estudados apenas

* Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora e Chefe do De-partamento de Direito da Universidade Federal do Maranhão. Professora e Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade São Luís - Maranhão. Professora e Coordenadora do Curso de Pós-graduação lato sensu em Direito Sanitário do Laboro/Estácio de Sá - Maranhão.

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O ensino jurídico e a metáfora do espaço

temporalmente. O espaço permitirá outro prisma, uma nova perspectiva, capaz de desvelar circunstâncias antes ocultadas ou ignoradas pela ideologia dominante.

Como exemplo deste olhar metafórico pode-se, analogicamente, citar a criação dos mapas, instrumentos de localização, freqüentemente manuseado pelo homem comum.

Os mapas são distorções da realidade, pois apenas representam a realidade referenciada. Ressalte-se que tais distorções não significam, necessariamente, distorções da verdade, pois os mapas são dotados de credibilidade. Por isso, quando se chega numa cidade desconhecida tem-se como primeiro impulso a aquisição de um mapa, ferramenta indispensável aos turistas e aventureiros. A credibilidade de tais instrumentos está diretamente relacionada à consciência dos lugares e ao controle de suas respectivas representações.

A Cartografia é a ciência que estuda o processo de confecção dos mapas. É caracterizada por um conjunto de requisitos e mecanismos que possam garantir a veracidade das informações apresentadas. Destacar-se-ão dois mecanismos, considerados fundamentais: a escala e a projeção.

A escala identifica o terreno, de forma pormenorizada. Sua função é apresentar detalhes. Quanto maior a escala, maior o número de particularida-des visíveis; no entanto, menor a visão panorâmica do lugar, e vice-versa. A variação da escala demonstra a tensão própria da confecção dos mapas, qual seja, apresentar os detalhes sem perder a visão do todo.

A projeção permite planear o real, ou seja, representar, no plano, partes da terra e do céu. A projeção permite perceber - e isso é fundamental para a compreensão das distorções - que todo mapa possui um centro e este ponto central reflete a visão de mundo daquele que confeccionou o mapa. O ponto de vista cria o objeto, marca decisivamente quais espaços serão privilegiados e quais serão marginalizados, colocados à margem.

Tem-se por objetivo iniciar o estudo de uma verdadeira cartografia simbó-lica do ensino jurídico no Brasil, o que implica perceber as relações sociais por um novo prisma, sem desmerecer a importância histórica de sua constituição, mas privilegiando a perspectiva espacial de seu desenvolvimento.

Procurar-se-á compreender o ensino jurídico e o Direito como fenômenos do quotidiano, livres de preconceitos e dos pressupostos teóricos dos juristas tradicionais. Tem-se a pretensão de apresentar o Direito a partir das relações sociais que transbordam os centros universitários.

Para Inês de Fonseca Porto, há que se realizar uma cartografia do ensino jurídico e de suas relações sociais, com suas diferentes espacialidades, com suas diversas temporalidades e, principalmente, com a identificação dos diferentes atores envolvidos.1

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Um fenômeno social possui tantas significações quantos forem o número de sujeitos que o interpretam. Porém, por mais diferentes que sejam as expli-cações sobre o evento avaliado, existe sempre a possibilidade de se identificar elementos mínimos caracterizadores de determinado objeto de estudo.

Quando se põe em questão o ensino jurídico no Brasil, uma constatação salta aos olhos de todos os envolvidos, qual seja: o ensino jurídico está em crise e, ainda, que esforços precisam ser realizados para a modificação dessa situação.

Para que se possa compreender esta crise utiliza-se a metáfora espacial; a escala é capaz de realçar as relações subjacentes ao próprio ensino jurídico, indicando, por exemplo, onde estão localizados os atores beneficiados com a crise do ensino jurídico. E a projeção identifica, no mapa, o centro da crise do ensino jurídico, qual seja, o modelo de ensino jurídico tradicional, paradigma que representa a experiência que se deseja superar.

Assim, duas questões precisam ficar claras: 1) O modelo tradicional de ensino jurídico ministrado na maioria das escolas jurídicas do país não está adequado às demandas sociais e por isso se faz necessária a delimitação de ações concretas para modificação do atual statu quo; 2) deve-se identificar o espaço (o local mesmo) de nascimento e desenvolvimento do fenômeno jurídico, para que se possa garantir maior orientação, permitindo um sentido seguro para o deslocamento dos atores e possibilitando uma visão estratégica dos acontecimentos.

O que se deve enfatizar é que o ensino jurídico precisa construir seus sentidos a partir do processo de relações sociais quotidianas. Não se pode permitir que especialistas criem padrões ou fórmulas para o enquadramento da realidade, ou ainda, criem soluções legalistas e simplistas para problemas sociais, que em sua maioria são complexos e intricados.

O ensino jurídico somente poderá aproximar-se dos direitos humanos quando forem constituídas condições de possibilidade para o diálogo entre o político, o social e o jurídico. Este intercâmbio propiciará que as contradições do atual modelo de ensino jurídico se afinem e alternativas sejam pensadas e implementadas.

Deve-se ressaltar, ainda, que o modelo tradicional de saber somente po-derá ser superado quando as diferentes perspectivas forem respeitadas, quando o diálogo for efetivamente aberto (entre alunos e professores, entre as escolas de Direito e entre o Direito e a sociedade). As contradições e as rupturas não devem ser ocultadas, como se fossem perigosas ou geradoras de instabilidade, pois mesmo que não se queira, a “imaginação espiona o real desprevenidamente, por um ângulo em que ele não se percebia observado”.2

No livro 1984, de George Orwell, as metáforas não eram permitidas, pois a nova língua (novilíngua) devia ter o menor número possível de palavras, o caráter conotativo era extremamente perigoso, a palavra poderia arrastar

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O ensino jurídico e a metáfora do espaço

algo oculto, algo não planejado. Aliás, esta é uma característica da ciência moderna e do Direito atual. No entanto, procurou-se uma metáfora para a questão do ensino, pois Boaventura de Sousa Santos afirma que a cartografia, enquanto metáfora, é acessível ao homem comum, ao não jurista, utilizando esta imagem podem-se ilustrar as condições de possibilidade do ensino jurídico. Pode-se, desta forma, escapar daquilo que os juristas “de carteirinha” chamam de especificamente jurídico ou puramente jurídico, aquilo que outras disciplinas ou formas de conhecimento não têm permissão para acesso. Roberto Lyra Filho expôs que a idéia do puramente jurídico construiu verdadeiras barreiras sociais para a Ciência do Direito.3

Falar de Direito é falar de linguagem e falar de linguagem é falar de poder. O poder não é uno, é plural, existe na sociedade sob diversas formas e manifes-tações, estrutura as relações sociais e cria diferentes possibilidades contextuais. O Direito é apenas uma dessas modalidades contextuais. O ensino jurídico tradicional, no entanto, constitui-se na perspectiva de que o poder só existe em sua forma estatal e, nessa linha de raciocínio, somente há Direito quando nascido ou modelado por essa fonte formal.

O Direito é arrancado da sociedade, esculpido por especialistas e cris-talizado pela competência. Este processo de esvaziamento material do Direito determina o que Inês Porto chama de descontextualização do Direito. A des-contextualização significa a negação do pluralismo jurídico.4

Dizer que o Direito é plural não significa definir decisivamente o que é o Direito, não significa determinar sua ontologia, de uma vez por todas. Tem-se a finalidade de entender “como, em nossas práticas quotidianas, pode-se delimitar seu domínio”. 5Nesta perspectiva, quer-se afirmar que o Direito está ao alcance de todos, inclusive, do homem comum, do não-jurista.

O Direito é uma prática social experimentada no quotidiano do homem. E enquanto prática quotidiana desenvolve-se em diversos espaços, estrutura-se a partir de práticas específicas e organizadas em consonância com a forma de poder predominante. O poder cerca o Direito, delimita-o, cria códigos e linguagem própria, cria dominação e resistência, mas, também, constitui e esquadrinha.

O ensino jurídico tradicional não alcança estas dimensões, pois não possui instrumentos capazes de captar esta sofisticada forma de exercício de poder. Tende a procurar um poder, um saber e uma solução. Escamoteia os acidentes, esconde as rupturas e oculta os desequilíbrios sociais. Quanto maior a abertura para o diálogo, maior deve ser o cuidado, é necessário não pretender juridici-zar todas as relações sociais. O Direito não está em todos os lugares. Existem espaços onde se pode identificar a existência e o exercício de poder, em outra escala que não a jurídica.

É necessário identificar a espacialidade e temporalidade do contexto jurídico pretendido; através deste instrumento poder-se-á demonstrar que o ensino jurídico tradicional é, apenas, uma das formas de saber e de constituição

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do Direito. Concomitante a este, existem outros poderes e outros saberes, com formas próprias de juridicidade, gerado a partir de determinações específicas.

Cada contexto depende de um poder próprio e produz um saber especí-fico, com linguagem e códigos diferenciados. Conhecer as espacialidades dos diferentes contextos tem a aptidão notável para negociar sentidos, encenar presenças, dramatizar enredos, amortizar diferenças, deslocar limites, esquecer princípios e lembrar contingências.6

Existem contextos quotidianos que criam pelo menos quatro saberes diferentes sobre o Direito: o da cidadania formal, o doméstico, o da produção e o da mundialidade. No primeiro encontram-se as relações entre as pessoas e o Estado, o poder aparece como dominação e o saber como legitimidade jurí-dica: este é o modelo tradicional de ensino jurídico. No contexto doméstico, encontram-se relações das pessoas entre si, e o poder aparece como autoridade de um saber constituído pela experiência e pelo afeto. No contexto da produ-ção estão localizadas as relações dos indivíduos e o trabalho, o poder aparece como exploração e o saber se constitui em tecnologia e lucro. No contexto da mundialidade estão as relações entre os Estados, quando o poder aparece como troca e o saber, como eficácia.

O pluralismo jurídico pode ser, desta forma, entendido como a sobreposi-ção, articulação e interpenetração de vários espaços jurídicos misturados, tanto nas nossas atitudes, como nos nossos comportamentos, quer em momentos de crise ou de transformação qualitativa nas trajetórias pessoais e sociais, quer na rotina morna do quotidiano sem história.7

Há uma complexidade intrínseca nas relações contextuais referenciadas acima, com predominância do contexto da cidadania formal sobre os demais, impondo sua juridicidade específica na regulação dos demais contextos. Este processo de ocultação tenta obscurecer os demais contextos, esquadrinhando todas as relações quotidianas à categoria de dominação. Mas, o marginal não obedece à mesma lógica do legal, não funciona na mesma escala. O Direito é plural e o Estado não conseguiu e nem conseguirá captá-lo por inteiro: o Estado na constatação de sua impotência acaba por esquartejar a funciona-lidade do Direito.

A descontextualização do ensino jurídico impede a indagação e forma bacharéis amorfos, impossibilitados de formular, como jurídicas, questões fun-damentais da vida política e social do país.

O modelo tradicional do ensino jurídico funda-se numa sistemática de aprendizagem que se alicerça na repetição continuada de informações, com papéis predefinidos e esteriotipados.

As relações constituídas por essa forma de aprendizagem impedem a formulação e criação de alternativas do conhecimento. Há uma exigência que as informações sejam simplificadas, mesmo em detrimento do conhecimento,

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para impedir a resistência dos discentes, para ocultar as contradições do discurso que se constitui contra os saberes da vida cotidiana.

No entanto, o aparato teórico dos juristas tradicionais não foi suficiente para garantir a sustentação desse modelo centralizador. As décadas de 70 e 80 do século passado representaram o fortalecimento de um movimento desencadeado por vários sociólogos do Direito, que, vinculados direta ou indiretamente aos movimentos sociais, passaram a reivindicar o direito a ter direitos.8

Os movimentos sociais representaram uma verdadeira ruptura com o statu quo. Demonstraram a necessária e urgente constituição de uma nova ordem ju-rídica fundada nos diferentes contextos sociais. Assim, alguns paradigmas foram quebrados, como, por exemplo, a exclusividade dos tribunais para as questões jurídicas. Quando o espaço de discussão é o social, o coletivo, o concreto, e o tempo é o quotidiano com suas carências e incompletudes, a percepção do Direito deve mudar, sob pena do isolamento.

No entanto, o pensamento e a ordem jurídica tradicionais não conse-guiram captar o significado dessas novas demandas. Um dos elementos para compreensão dessa incapacidade está associado ao ensino jurídico descontex-tualizado, que não cria condições para que os operadores do Direito aprendam a indagar a realidade. Percebe-se que a dinâmica da vida social e política não cabe no quebra-cabeça desse sistema de aprendizagem do ensino jurídico.9

Deve-se lembrar que o ensino jurídico é uma prática social. O aprendizado da prática profissional não se processa pela eloqüência dos discursos teóricos, mas por meio das experiências quotidianas e de suas relações com o processo de ensino-aprendizagem. Se o ensino é, em si, prática, não pode reproduzir relações de desigualdade esteriotipadas e depreciativas dos demais saberes sociais, pois esse procedimento poderá fortalecer e determinar que os alunos de hoje dêem continuidade ao processo de dominação, quando se tornarem profissionais.10

Segundo Inês Porto, os juristas do ensino tradicional definem limites para a resolução segura dos conflitos através da repetição do passado como forma de decidir o presente. Além disso, criam um ambiente profissional distanciado, a cujas regras o homem comum não tem acesso. A segurança jurídica torna-se, assim, um sentido social ambíguo, na medida em que os sujeitos não podem parti-cipar da construção de novas e possíveis soluções de seus próprios conflitos.11

Antes de o Direito explicar e ordenar a sociedade, deve ouvi-la para poder compreendê-la. Só assim perceberá que a legitimidade do Direito se consolida pelo fortalecimento do diálogo entre os diferentes saberes sociais.

Qualquer modificação ou reforma no atual modelo de ensino jurídico deverá ser estruturada através do intercâmbio com as diversas dimensões sociais hoje sonegadas pelo modelo tradicional.

A relação entre as diferentes instâncias implica a modificação das atitudes quotidianas no espaço de ensino-aprendizagem. Pelo diálogo interdisciplinar

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com a diferença, ou seja, com a diversidade de saberes, os cursos poderiam transformar tanto as relações internas do aprendizado, como aproveitar-se desse aprendizado para se comunicarem com os outros cursos jurídicos, intercambian-do conhecimentos nascidos da experiência.

Vale ressaltar que a experiência do ensino não antecipa a riqueza da vida profissional.12 O ensino jurídico é o impulso processual de conscientização das experiências presentes e futuras.13

A existência de um curso jurídico somente se justifica pela demanda social. Por isso, faz-se necessária a identificação das particularidades de cada região, pois o diálogo do ensino jurídico com aquela realidade específica se processa a partir do diálogo entre as partes envolvidas.

A situação geográfica, as expectativas profissionais dos alunos, a in-serção da graduação no conjunto de atividades da Faculdade de Direito, as características das Instituições de Ensino Superior14 são requisitos necessários e importantes para a reflexão da demanda social de um curso jurídico, mas não podem ser caracterizados como suficientes, pois não põem em xeque as causas mais remotas da crise que assola o contexto do ensino jurídico, em que esse conhecimento é processado. Não são suficientes, ainda, sobretudo, por não trazerem elementos para estabelecer como o diálogo com a sociedade poderá ser estabelecido.15

As Faculdades de Direito vivenciam uma situação extremamente con-flituosa: simultaneamente, devem formar profissionais aptos a atenderem aos apelos da sociedade (na sua diversidade), garantir a estes profissionais mobilidade social da classe média e, ainda, produzir mão-de-obra tecnicamente especia-lizada. Uma verdadeira crise de hegemonia, pois há uma diluição das funções dos cursos em razão da diversidade de demandas.

A crise de hegemonia dos cursos jurídicos iniciou-se com o processo de desqualificação de todos os outros saberes em benefício do privilégio da cienti-ficidade moderna. A desqualificação dos saberes não oficiais implicou, dentre outras coisas, a desqualificação das orientações sociais da vida prática.16 A ciência jurídica descontextualizou-se e perdeu a consciência de que é apenas mais uma forma de explicação da realidade.

O Direito, enquanto ciência pura, impede as formas sociais de resisti-rem contra as relações de dominação e subordinação. O discurso nascido das situações concretas e das práticas da vida quotidiana reivindica igualdade de acesso ao ambiente jurídico sem negação de sua espontaneidade, criatividade e irreverência metodológica.

A Ciência do Direito é um contexto, a sociedade é pluralista e como tal, constituída por contextos diferenciados, regidos por lógicas próprias e desni-veladas entre si.17

A ciência do Direito somente poderá ser resgatada da crise hegemônica

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O ensino jurídico e a metáfora do espaço

do ensino jurídico quando desenvolver seriamente sua função social, qual seja, um conhecimento que se destine à transformação quotidiana das relações e do mundo.

Boaventura de Sousa Santos fala de uma outra ciência do Direito, objeto do ensino jurídico, um novo conhecimento, um novo sentido comum teórico dos juristas, discurso crítico e transitório, resultado das contínuas rupturas que a realidade impõe, caracterizado pela agilidade para desentranhar o que as relações de poder tentam ocultar.18

Na proporção que a compreensão do Direito ultrapassar a análise ju-risdicional e alcançar diferentes práticas sociais, outras relações de poder, não estatais, começarão a desvelar fenômenos antes excluídos do mundo jurídico. Para Boaventura, as universidades talvez sejam as únicas instituições capazes de pensar, até as raízes, as relações entre seu pensamento e suas ações.19 As universidades reúnem as condições de possibilidade para promoverem o encontro entre os diversos saberes sociais, sem preconceitos e sem demagogia.20

A universidade deve, para tanto, beber da fonte do conhecimento, numa posição diferente, não daquela que exerce extensão como assistencialismo, mas como instrumento capaz de garantir a transformação da sociedade e, principal-mente, a sua própria transformação.

REFERÊNCIAS

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Teoria constitucional. Coimbra: Alme-dina, 1998.

LEDRUT, Raymond. Situation de l’Imaginaire dans la dialectique du Ration-nel e d’Irrationnel. L’Imaginaire dans les Sciences et les Arts – Cahiers de l’Imaginaire, Toulouse, França, n. 1, p. 43-50, 1988.

LYRA FILHO, Roberto. Filosofia geral e filosofia jurídica, em perspectiva dia-lética. In: PALÁCIO, Carlos S. J. (Org.). Cristianismo e história. São Paulo: Loyola, 1982.

PÔRTO, Inês da Fonseca. Ensino jurídico, diálogos com a imaginação: cons-trução do projeto didático no ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

_______. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1987.

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Edith Maria Barbosa Ramos

_______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto: Afrontamento, 1994.

_______ . Uma cartografia simbólica das representações sociais: prolegómenos a uma concepção pós-moderna do direito. Revista Brasileira de Ciências Cri-minais, São Paulo, ano 4, n. 13, p. 253-277, jan./mar. 1996.

1 PÔRTO, Inês da Fonseca. Ensino jurídico, diálogos com a imaginação: construção do projeto didático no ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000, p. 17

2 LEDRUT, Raymond. Situation de l’Imaginaire dans la dialectique du Rationnel e d’Irrationnel. L’Imaginaire dans les Sciences et les Arts – Cahiers de l’Imaginaire. Toulouse, França, n. 1, 1988, p. 46.

3 LYRA FILHO, Roberto. Filosofia geral e filosofia jurídica em perspectiva dialética. In PALÁCIO, Carlos S. J. (org.). Cristianismo e História. São Paulo: Loyola, 1982, p. 47.

4 PÔRTO, op. cit., p. 33.5 ARNAUD, André Jean. O direito traído pela Filosofia. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor,

1991, p. 220.6 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989,

p. 155.7 SANTOS, Boaventura de Sousa. Uma cartografia simbólica das representações sociais: prolegómenos a

uma concepção pós-moderna do Direito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 4, n. 13, jan./mar. 1996, p. 272.

8 PÔRTO, op. cit., p. 40.9 Ibid., p. 43.10 Idem.11 Ibid., p. 49.12 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Teoria constitucional. Coimbra: Almedina, 1998, p. 13.13 PÔRTO, op. cit., p. 116.14 Idem.15 Ibid., p. 117.16 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1987, p. 34.17 SANTOS, 1987, op. cit., p. 34.18 PÔRTO, op. cit., p. 119.19 Ibid., p. 121.20 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto:

Afrontamento, 1994, p. 199.

THE JURIDICAL EDUCATION AND THE SPACE METAPHOR

ABSTRACT

The purpose of this paper is to begin, in accordance with the thought of Boaventura de Sousa Santos, the study of a true symbolic cartography of juridical education in Brazil, implying to perceive social relations from a new point of view, which does not mean to disregard the historical relevance of their organization, but emphasizing

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O ensino jurídico e a metáfora do espaço

the space-related outlook of their development. The author will attempt to understand teaching and law as ordinary facts, free from the prejudices and theoretical assumptions of traditional jurists. There is also the intention of presenting law from the social relations that exist far beyond the institutions of higher education, with their different relations to space and time and, especially, with the identification of the various subjects involved.

Keywords: Juridical education. Social relations. Juridical pluralism. Law cartography.

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thAnátos e os pArAdoxos dA biotecnologiA: dA pertinênciA dA ortotAnásiA à luz dA

constituição federAl de 1988

Gabrielle Bezerra sales *

RESUMOO artigo trata da morte como uma conseqüência natural da vida, destacando as questões relativas à possibilidade de sua abreviação ou de seu prolongamento indefinido. Numa perspectiva consti-tucional e filosófica, diferencia a tipologia relativa ao fenômeno morte, propondo a pertinência do abandono de práticas médicas e terapêuticas que só resultam em sofrimento, tendo em vista a sua futilidade. Analisa a constitucionalidade do abandono da utilização em pacientes terminais, em estado irreversível, de meios extraordinários que intentam somente uma sobrevida incompa-tível com a dignidade, distintivo essencial de todas as pessoas humanas e axioma máximo da teoria dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados no Direito pátrio atual.

Palavras-Chave: Dignidade humana. Direitos humanos. Morte. Constituição. Imortalidade.

A temporalidade é talvez uma das características mais notáveis do ser humano e igualmente aquela que mais o desafia a lançar-se em busca de perpe-tuação. O fato é que a experiência humana não pode ser dissociada do aspecto histórico que tenta descrever a sua trajetória ao longo do tempo, margeando a compreensão de si e do outro como mortais, isto é, inescapáveis à linha im-perscrutável da morte.

A morte, normalmente representada como a feição mais cruel da fatalidade, tornou-se o principal motivo de investigação humana, de novas tecnologias que possibilitem trazer à vida a capacidade de superação do seu destino inevitável.

Trata-se de um anseio incontido de viver eternamente que, na medida da inevitabilidade e da gravidade de certas moléstias, passa a ser compre-endido como alternativa irreal, ensejando o paradoxo perverso de querer * Gabrielle Bezerra Sales é Advogada, Coordenadora Geral-adjunta do Curso de Direito da Faculdade

Christus, membro do Comitê de Ética na Pesquisa com seres humanos da Faculdade Christus, mestre em Direito Constitucional pelo convênio das Universidades Federais do Ceará e de Santa Catarina (UFC- UFSC), atualmente em fase de defesa de doutorado em Direito Civil na Universidade de Augsburg na Alemanha e cursando créditos na qualidade de doutoranda em Bioética pelo convênio luso-brasileiro entre a Universidade do Porto e o CFM- Conselho Federal de Medicina.

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Thanátos e os paradoxos da Biotecnologia: da pertinência da ortotanásia à luz da Constituição Federal de 1988

evitar um prolongamento da dor e do sofrimento desnecessário numa vida meramente vegetativa.

A partir do Renascimento, todas as ações humanas passaram a ser me-didas e mediadas pela compreensão de sua dignidade essencial. Nesse sentido, observa-se que tanto na vida quanto na morte, o ser humano não pode abjurar de sua dignidade, valor supremo de sua existência temporal na terra.

Embora o sofrimento contínuo muitas vezes justifique a perpétua fuga da dor, é real a qualificação do viver como uma inelutável ode à dignidade da pessoa humana. Assim, a morte deve traduzir-se em evento que, cedo ou tarde, adiantada ou atrasada, deve ser a expressão do viver dignamente.

É thanátos, portanto, que inviabiliza materialmente a existência do desejo, ou seja, do futuro. Pequeno leciona que:

O futuro, pois, não existe. Dele, nenhum registro ou atualidade há, para além dos meros anseios e receio. E estas são categorias psicológicas, estados d’alma insuflados por nossa imaginação e não concreta e efetiva experiência. O futuro, quando, e se, viermos a experimentá-lo, futuro não mais será. Assim, o futuro não é. De passados e presente, pois, toda a realidade se fez, faz e fará1.

Daí, dizer que a morte é uma das fases da história do ser humano em que há o fim da vida necessariamente dignificada, é admitir igualmente que a humanidade que há em cada um subsiste na medida da dignidade que o acom-panha e é reconhecida nos estertores da morte.

De origem remota, a eutanásia tem sido praticada ao longo da história por inúmeras civilizações, consistindo normalmente numa forma de proporcionar um último conforto aos doentes, especialmente aos idosos. Versava igualmente numa forma de resolver os problemas do custo social daqueles considerados inúteis, bem como num último resquício ético entre combatentes.

Tradicionalmente no Brasil, os diplomas legais sempre disciplinaram se-veras penas ao delito de homicídio, ignorando os motivos do agente. O Código Penal de 1890, não trouxe grandes modificações. Portanto, o homicídio euta-násico, permaneceu sancionado com os mesmos rigores do homicídio simples. As Leis Penais de 1932 se mantiveram igualmente inertes no que se refere a qualquer tipo de alteração sobre a matéria.

Em 1940, o Código Penal inaugurou um novo tratamento aos que come-tiam crimes impelidos por motivo de relevante valor social ou moral (art. 121, § 1º). Previa, pois, a minoração da pena para aqueles que haviam cometido delito, impulsionados pela compaixão face aos sofrimentos irremediáveis de pacientes terminais.

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Gabrielle Bezerra Sales

O Código Penal de 1969, mesmo sem ter entrado em vigor, manteve so-bre a matéria o entendimento idêntico, ou seja, vislumbrando a piedade como atenuante no crime de homicídio.

O anteprojeto de Reforma da Parte Especial de 1984 não chegou a ser aprovado, porém contemplava a possibilidade de isenção de culpa ao médico que agisse por compaixão. Gerou, todavia, uma considerável confusão nos conceitos de eutanásia passiva e ativa.

O texto constitucional de 1988, em seu artigo 5º, afirmou taxativamente a igualdade de todos perante a lei, inadmitindo distinções e garantindo a inviola-bilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Trata-se do emprego da técnica legislativa no intuito de explicitar o direito à vida como cerne inconteste de todos os direitos fundamentais, reforçando a tutela estatal2.

A complexidade gerada é se, a qualquer indivíduo ou a qualquer autori-dade pública, é facultado tirar a vida de um embrião, de um feto, de um bebê, de um adulto portador de algum tipo de deficiência ou simplesmente de alguém que, nos parâmetros sociais, seja considerado inútil3.

A rigor, contudo, há um elo indisfarçável entre a ética e as molduras do conceito de vida humana, evidenciado no fato do ser humano ser um animal essencialmente carente de justificativas. A propósito, “O fato de alguém ser morto por meios indolores não altera a justiça básica de ele ser drasticamente privado do direito”.4

Essa valorização da vida, embora já destituída de autonomia5, deve igualmente assegurar uma morte tranqüila quando já foram exauridos todos os esforços para manter a sobrevivência do paciente, isto é, constatando-se a inutilidade terapêutica e, portanto, sendo justificada a suspensão ou retirada do tratamento.

A respeito da eutanásia há uma tipologia tripla, a dizer, ativa, passiva e social6. Por eutanásia positiva ou ativa compreende-se a ação direta que provoca a morte do paciente mediante algum recurso letal. Por eutanásia negativa ou passiva entende-se a decisão de omitir ou interromper os cuidados médicos (medicamentos, aparelhos etc.) que prolongariam a vida do enfermo7. Dessa forma, todas essas situações giram em torno de uma questão ética: o respeito à dignidade da pessoa humana.

A eutanásia passiva voluntária é simplesmente a recusa de tratamento, ou seja, o uso de meios ordinários ou de meios extraordinários. O primeiro se refere aos cuidados essenciais, fundamentais para o ser humano tais como: alimentação, higiene, etc. Já os meios extraordinários são meios terapêuticos considerados inúteis para o estado do paciente.

Os defensores da modalidade positiva, apesar da controvérsia moral, aduzem como o motivo de sua aplicação a compaixão, o sofrimento comparti-

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Thanátos e os paradoxos da Biotecnologia: da pertinência da ortotanásia à luz da Constituição Federal de 1988

lhado8. Já os da eutanásia passiva entendem que esta não implica o abandono do doente terminal. Advertem que são dispensados todos os outros cuidados essenciais até o óbito9.

O Estado tem como tarefa precípua a de proteger o social, o público e o coletivo, numa harmônica relação com os interesses dos particulares, mesmo em circunstâncias que incluam casos como a eutanásia face ao consentimento da vítima?

De fato, a dignidade da pessoa humana nos norteia na percepção de que tratamentos ineficazes só trarão mais sofrimento e angústia, não só para o indivíduo, mas também para toda a sua família.

Muitos autores afirmam que antes de qualquer ação estatal que impeça a disponibilidade da realização da eutanásia, deve prevalecer o direito de morrer dignamente, ou seja, com o mínimo de sofrimento possível.

A propósito, tem se argumentado ainda a respeito dos limites da validade do consentimento para a prática da eutanásia, concedido pelo paciente ou por quem tenha legitimidade para representá-lo.

Sobre as questões relacionadas à liberdade do indivíduo e às intervenções de terceiros nos atos de disposição da vida, enfatizando as restrições reafirmadas na Constituição Federal de 1988, tem-se que:

[...] a decisão de morrer não pode ser interpretada como um ato de liberdade da vítima, ou de livre desenvolvimento de sua personalidade, visto que a própria morte, produzida por si mesmo ou por um terceiro, implica verdadeira destruição e fim daquele desenvolvimento. O direito à vida, pressuposto material do exer-cício de todos os demais direitos, constitui antecedente lógico da liberdade humana e não pode ser por ela sobrepujado. É de notar, porém, que o consentimento do titular do bem jurídico nos delitos contra a vida, desde que validamente prestado, não é irrelevante, como o pretende a doutrina majoritária, devendo ser considerados seus efeitos atenuatórios da responsabilidade, por influir na magnitude do injusto penal.10

A eutanásia encontra-se condicionada à vitalidade do paciente11. As diferentes formas da eutanásia recebem tratamento igualmente diverso na sea-ra penal. A eutanásia pura que implica na atuação do médico e a omissão dos cuidados recai no tipo definido no art. 13, § 2ºb, do Código Penal.

A eutanásia ativa indireta, por outro lado, não se subsume ao tipo do delito de homicídio, pois não faz parte da intencionalidade do autor o abreviar a vida da vítima, mas o aliviar seus sofrimentos.

Já eutanásia ativa direta é punível em todos os casos, mesmo com exis-tência de consentimento por parte do moribundo. “É unânime o entendimento

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Gabrielle Bezerra Sales

de que o consentimento do ofendido, nos delitos contra a vida humana, não tem o condão de afastar por completo a ilicitude do fato.”12

A eutanásia passiva se enquadra na esfera de comportamento punível dos profissionais da área da saúde que fazem parte da prática médica e por isso são jurídico-penalmente irrelevantes.

Nesse caso, se o paciente é adulto e consciente da gravidade de sua molés-tia e de suas conseqüências e riscos, recusando-se a submeter-se ao tratamento, exime o médico de qualquer punição.

Se houver a submissão forçada do paciente para que seja efetuada a terapêutica, restará caracterizado o constrangimento ilegal (art. 146 do CP), indo, portanto de encontro ao princípio da dignidade da pessoa humana. Só se justificaria, enfim, tal intervenção médica em casos de iminente perigo da vida (art. 146, § 3º, I).

Aos pacientes menores ou incapazes de prestar uma recusa válida (deficien-tes mentais, por exemplo), face às situações em que haja perigo de vida é dever do médico intervir, ainda que exista a recusa de pais ou representantes legais.

Respeitando a liberdade religiosa do paciente, o médico poderá oferecer ao paciente tratamento alternativo, desde que exista essa outra opção terapêutica13. Porém, a prerrogativa de optar só é válida para pacientes conscientes.

Caso contrário, o médico poderá e deverá intervir, não configurando o delito de constrangimento ilegal do art. 146 § 3º, I do Código Penal. Registra-se que não se admite a recusa feita por familiares ou de seus representantes legais, valendo igualmente para os incapazes.

O mais recente Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal, de 1999, regulamentou a eutanásia ativa direta na forma do homicídio privilegiado (art. 121 § 3º).

Cumpre salientar que a eutanásia passiva, nos casos em que o paciente não queira iniciar o tratamento ou almejar suspendê-lo, o Anteprojeto silenciou, permanecendo como mera causa de diminuição de pena por motivo de relevante valor moral, sendo mantida nos mesmos termos do homicídio privilegiado.

Na eutanásia ativa, pura ou genuína, e na indireta, o sujeito ativo do homicí-dio eutanásico será apenas o médico orientado pelo lex artis. Para a eutanásia ativa direta, não só o médico, mas qualquer pessoa que preencha os requisitos poderá ser autor do homicídio. Nesta categoria admite-se co-participação e a co-autoria.

A eutanásia passiva é uma modalidade que admite apenas o médico como autor (delito próprio), portanto, somente a ele é dada a prerrogativa de suspender o tratamento terapêutico ou de não iniciá-lo.

A distanásia, por outro lado, (do grego dis, afastamento,e thánatos, morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento) consiste no emprego de recursos médicos com o objetivo de prolongar o máximo possível a vida humana.

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Thanátos e os paradoxos da Biotecnologia: da pertinência da ortotanásia à luz da Constituição Federal de 1988

Essa prática consiste, de fato, no emprego de todos os meios terapêuticos para o prolongamento do estado do paciente, inclusive os meios extraordinários e experimentais.

A eutanásia e a distanásia14, como procedimentos médicos, têm em co-mum a preocupação com a morte do ser humano e a maneira mais adequada de lidar com isso.

O termo distanásia15 ainda é pouco conhecido e pouco utilizado no meio acadêmico científico brasileiro, ao contrário do que acontece com seu antônimo “eutanásia”.

Com a modernização da medicina, novas atitudes e abordagens diante da morte e do doente terminal emergiram. Enfermidades que eram consideradas letais, hoje em dia, com tratamento adequado, são passíveis de cura. Outro aspecto inovador da contemporaneidade é a tecnologia dos novos fármacos e a extraordinária gama de equipamentos sofisticados que auxiliam nas desco-bertas da cura das doenças e apontam a possibilidade de intensa medicação no processo de morte.

De fato, trata-se de uma conseqüência inevitável do progresso nas áreas da ciência e da tecnologia biomédica. Deriva daí a grande indagação da forma como deve ser aplicado esse potencial biotecnológico sem violar a dignidade da pessoa humana.

No Brasil, numa tradição da ética médica codificada, havia uma tendência para a distanásia, de acordo com o Código de 1931, que afirmava ser obrigação da Medicina a conservação e prolongamento da vida.

No atual Código de 1988, verifica-se que há uma alteração no sentido de não se prolongar ao máximo o tempo de vida, independentemente do estado do paciente. Por isso não há nenhuma obrigação de iniciar ou de continuar uma intervenção terapêutica quando o sofrimento ou o esforço são desproporcionais aos benefícios reais para o paciente.

A conduta médica não será ilícita, nem culpável, do ponto de vista jurí-dico, exceto se os meios extraordinários forem empregados com o propósito de encurtar a existência do paciente, caso que se caracterizará como homicídio. O importante é viver e morrer com dignidade.

Parte da doutrina emprega o termo ortotanásia(do grego orthos, normal, correta e thanátos, morte) em alusão à eutanásia passiva ou por omissão.Daí, pode ser definida como a “deliberada abstenção ou interrupção do emprego dos recursos utilizados para a manutenção artificial das funções vitais do enfermo terminal, deixando assim que ele morra naturalmente, nos casos em que a cura é considerada inviável”16, traduzindo-se no auxílio dado pelo médico ao processo natural da morte, não havendo relevância nas distinções conceituais entre tais recursos.

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Gabrielle Bezerra Sales

Por tratamento ordinário entende-se: alimentação, alojamento, anal-gésicos, narcóticos e sedativos destinados a aliviar o sofrimento. Já os meios extraordinários são os tratamentos experimentais, caros, de alta tecnologia e, em sua maioria, de caráter agressivo.

Para outra parcela da doutrina, o pensamento é de não se fazer alusão à eutanásia passiva como a ortotanásia. Pois no sentido etimológico da palavra a ortotanásia é (morte natural, correta), ou seja, o direito que o ser humano tem de morrer digna e naturalmente.

De acordo com essa doutrina, a ortotanásia consiste na “morte a seu tempo”, sem que haja a abreviação da vida e nem o seu prolongamento irracio-nal. Seria a supressão ou limitação de todo e qualquer tratamento fútil, ante a inevitável morte do paciente.

Na ortotanásia o que se discute é a obrigação de continuar com o tra-tamento ordinário, não os extraordinários, uma vez que trariam tão somente angústia com o prolongamento do padecimento desnecessário. Consiste, de fato, em renunciar aos meios extraordinários e dispendiosos, por se tornarem inadequados à situação real do doente, não proporcionando mais a cura.

Admitir a ortotanásia é permitir, ao doente que entrou na fase final de sua vida e também para aqueles que o cercam, enfrentar a morte serenamente, já que a morte não é uma doença a curar, mas a conseqüência natural da vida.

Uma vez aceita essa distinção entre curar e cuidar do paciente terminal, ou seja, entre manter a vida quando isso é o procedimento correto e permitir que a pessoa morra sem prolongamento infinito de sua miséria, é a única ma-neira de respeitar o bem-estar da pessoa humana, garantindo a dignidade em seu viver e em seu morrer17.

Resta a sugestão de alteração, no anteprojeto do Código Penal-Parte Especial de 1999, da parte relativa à ortotanásia (121 § 4º), como sendo uma hipótese de exclusão de crime, tendo seu agente ativo na figura do médico.

Com efeito, à ortotanásia opõe-se a distanásia. E não se identifica com a eutanásia passiva, porquanto nesta são retirados do paciente os meios ordinários, que são comuns à sustentação da vida. É, nesse caso, consentida a temporalidade real da morte, considerando que apenas os meios ordinários serão mantidos18.

A morte do paciente que se encontra em estado terminal, em que se torna impossível de reverter o quadro clínico, não pode ser considerada como sendo uma morte arbitrária, ou seja, não gera um resultado antijurídico, ao contrário, será considerada como uma morte “digna”, constitucionalmente incensurável.19

Para cada caso concreto, porém, é necessária uma ponderação. Dessa forma, a base desse sopesamento decorre de uma razoabilidade do que venha a ser “morte digna”, pois existem dois lados: um é o interesse de proteção de um bem jurídico que tende a proibir todo tipo de conduta perigosa relevante

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Thanátos e os paradoxos da Biotecnologia: da pertinência da ortotanásia à luz da Constituição Federal de 1988

que possa ofendê-lo e o outro, que é o interesse geral de liberdade de que o ser humano é detentor, que procura assegurar um âmbito de liberdade de ação, sem nenhuma ingerência estatal, estando amparado e fundado em valores constitucionais fundamentais como o da dignidade humana20.

Os dispositivos21 constitucionais pertinentes ao tema estão plenamente amparados no nosso ordenamento jurídico nos artigos 1º e 5º, dentre ou-tros. Tais disposições constitucionais nos conduzem à conclusão de que o indivíduo pode deixar de querer prolongar o sofrimento sem ferir um bem juridicamente tutelado.22

A rigor, na esfera constitucional, o que prevalece na abordagem sobre a morte digna é o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à liberdade. Eles não são conflitantes com o direito à ortotanásia, constituindo, pois, o amparo jurídico à dignidade da pessoa humana até o momento de seu óbito, isto é, até os limites extremos da sua personificação.23

A relevância constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana redimensiona o indivíduo, colocando-o no centro do ordenamento jurídico. A pessoa humana passa a ser o foco principal da tutela jurídica e por isso devem ser preservadas todas as condições e os valores que a integralizam, tais como: a liberdade, a integridade física, a saúde, a vida e também a morte, desde que circunscrita à noção de dignidade.

Essa entronização do indivíduo no centro da tutela constitucional impede que o ser humano seja reificado, ou seja, posto como objeto a mercê de quaisquer interesses, seja na esfera pública ou privada.24

A condenação da prática da eutanásia pode ser considerada um pressu-posto na maioria dos ordenamentos jurídicos, nos quais se busca a formulação de uma norma fundamental25, despida de considerações de ordem moral e alheia a fatores externos à lei.

Especialmente, porque as conseqüências advindas desse fato, aqui con-cebidas em conformidade com a noção de justiça, implicariam a necessidade de definir quais são os bens tutelados que, no tocante à vida ou à morte, estão plenamente amparados pela constitucionalização26 da dignidade da pessoa humana27.

Diante de todos esses conflitos, sobre qual seria o melhor caminho a se buscar no caso de paciente terminal e comatoso; é que surgem muitos questio-namentos não só na seara médica, como na seara jurídica, gerando a zona de transdiciplinaridade que caracteriza o discurso bioético.

Um paciente clinicamente morto, de maneira irreversível, que posterior-mente venha a ser submetido à reanimação, deve ser assistido indefinidamente? Ou, após um determinado momento, é mais prudente deixar que se opere sua morte biológica e completa?

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Gabrielle Bezerra Sales

Casos como esses, nos quais a possibilidade de cura é algo nulo, os proces-sos de prolongamento da vida irão trazer apenas agonia aos pacientes terminais. São normalmente pacientes internados e submetidos a procedimentos dolorosos e fúteis, sobrevivendo tão somente à custa de isolamento e sofrimento desne-cessário, caracterizando o que se identifica como obstinação terapêutica.

Ademais, a formação dos profissionais em Medicina lhes impõe o dever de prolongar a vida e vencer a morte, vislumbrando-a não como processo natural, mas como certo fracasso no seu conhecimento e na tecnologia médica. Todavia, importa considerar que a morte não representa um fracasso, uma derrota.

Por conseguinte, há normalmente a obstinação28 em impor cada vez mais tratamentos terapêuticos, assim como os medicamentos como solução para todas as situações da vida; gerando as incomensuráveis ansiedades de cura que a medicina atualmente29 implanta na sociedade.

Tendo em vista a dificuldade em se aferir qual o tratamento mais bené-fico para o paciente que se encontra sem perspectiva de vida, resta empregar os meios ordinários, por serem vias menos dolorosas, não só para o paciente, como para a sua família.

O certo é que deve ser feita uma análise casuística, devendo estar vin-culada ao conceito valorativo de qualidade de vida, na busca da função de benefício ou bem-estar.

Na década de 80, surgiu a expressão “tratamento fútil” ou “tratamento inútil”, que significa que o profissional da saúde não poderá abandonar o tra-tamento com indivíduo mesmo que não esteja surtindo os efeitos desejados. Portanto, deveria o médico permanecer com o paciente enquanto houver resquício de vida.

Conforme Garcia, a expressão “futilidade” se refere às práticas de trata-mentos desnecessários, consistindo num termo técnico para designar o que é aplicado num paciente e não produz benefício algum, mas um dano.30

O que a ortotanásia visa é à importância de não programar terapêuticas desnecessárias, fruto de uma simples histeria, mas que seja a forma mais bené-fica ou a que se julgue mais apropriada para o caso concreto. A distinção entre meios ordinários e extraordinários é que define o que deve ser mantido e o que deve ser sustado.

Essa morte correta que a doutrina moderna vem defendendo e ex-plicando se dá mediante a suspensão ou limitação de tratamento fútil, que seja extraordinário ou inapropriado, ante a morte inevitável do paciente em estado terminal.

A eutanásia passiva provoca a morte do enfermo terminal por omissão aos cuidados paliativos que sejam ordinários, haja vista que tais procedimentos são vitalmente imprescindíveis.31

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Thanátos e os paradoxos da Biotecnologia: da pertinência da ortotanásia à luz da Constituição Federal de 1988

Diante dessas situações supra-expostas, o conceito e entendimento de ortotanásia não se aproximam da definição de eutanásia passiva, vez que a última provoca a morte do enfermo terminal por omissão do tratamento ordinário.

O principal questionamento32 a respeito da ortotanásia é a legitimida-de de se continuar o tratamento que mantém as funções vitais do paciente terminal. Em contrapartida, a eutanásia passiva abandona as técnicas que acelerariam a morte. Já na ortotanásia o que se discute é a obrigação de atuar, de continuar o tratamento extraordinário mediante a constatação de que não produzirá o efeito esperado da cura ou mesmo da melhora do estado clínico do paciente.33

Atualmente o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM) é de que a partir da fase de irreversibilidade do quadro clínico, o paciente termi-nal deve o receber os “cuidados paliativos”, que consistem em medicação para aliviar os sinais e sintomas da doença.

Essa conduta médica consiste na ortotanásia, que leva em conta os limites do ser humano, e a compreensão de que a morte é um processo, de que não se trata de uma derrota, mas do fim do ciclo da vida34.

O anteprojeto de reforma do Código Penal que tramita no Congresso Nacional admitiria a possibilidade da ortotanásia mediante consentimento do paciente ou de algum familiar (art. 121 parágrafo 4o do anteprojeto), intentando assim diminuir o sofrimento do paciente, já que não haveria mais nenhuma pers-pectiva de cura. A ortotanásia seria então considerada uma prerrogativa ou uma opção do paciente mediante o estabelecimento formal do seu consentimento.

Não teria, portanto, o intuito de determinar a morte de alguém sem dei-xar que o tempo normal determine a hora do óbito. Por isso é que a ortotanásia não constitui crime.

Alguns doutrinadores admitem que a ortotanásia atenda ao princípio constitucional, o qual garante que “... ninguém será submetido à tortura, nem tratamento desumano ou degradante” (art. 5º inciso III).

No Brasil, os muitos diplomas que regeram a vida da Colônia e do Império nos séculos XVI, XVII e XVIII, foram unânimes em reservar severas sanções ao delito de homicídio, mesmo com a anuência da vítima.

O Código Criminal do Império manteve a postura semelhante para não atenuar a pena do homicídio. Foi o de 1830, o primeiro código a tipificar como conduta passível de punibilidade penal, o auxílio ao suicídio.

Em 1890 o Código Penal não operou maiores alterações, mantendo o que já estava estabelecido. Já o Código Penal de 1940 inaugurou um novo tratamento a esse tema, ao prever a hipótese de diminuição de pena para o agente que co-metesse um crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral (art. 121. § 1º). O exemplo de relevante motivo de valor moral pode ser entendido

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Gabrielle Bezerra Sales

como “a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima”.

Em 1984, a Lei 7.209 promovia a reformulação da Parte Geral do Código Penal, mas o Anteprojeto de Reforma da Parte Especial não chegou a ser apro-vado. A proposta era de isentar o médico de pena se houvesse o consentimento da vítima, ou se ela estivesse impossibilitada de fornecê-lo, caberia aos ascen-dentes, aos descendentes, ao cônjuge ou ao irmão, que pudessem antecipar a morte evitando tanto sofrimento (art. 121 § 3º).

Foi, entretanto, revisto pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciário, que jamais o encaminhou para o Congresso Nacional. Só em 1994 é que o projeto foi levado adiante e recebeu o nome de Esboço de Ante-projeto de Código Penal da Parte Especial, no qual o homicídio eutanásico era disciplinado de modo singular.

O anteprojeto de Código Penal-Parte Especial de 1998 concedia tra-tamento privilegiado para o autor de homicídio “por compaixão a pedido da vítima”. (Art. 121, § 3º) e, ao mesmo tempo, excluía a ilicitude da conduta do médico (Art. 121 § 4º). A própria exposição de motivos no texto cuidava de distinguir as formas de eutanásia, a figura prevista no art. 121 § 4º correspon-deria à ortotanásia”.

Por fim, uma nova proposta veio à tona, no anteprojeto da Parte Especial do Código Penal de 1999, que fixa sanções mais brandas que o projeto anterior para quem comete a eutanásia ativa, desde que seja o autor do delito, o cônjuge, companheiro, ascendente, descendente, irmão ou quem tivesse estreitos laços com a vítima e que tenha agido por compaixão a fim de abreviar-lhe tamanho sofrimento, em razão do estado terminal devidamente diagnosticado (Art. 121 § 3º).

No que tange à exclusão de ilicitude – ortotanásia – houve uma pequena alteração, dando preferência ao cônjuge ou companheiro em detrimento dos ascendentes e descendentes do moribundo (art. 121 § 4º).

O referido Anteprojeto do Código Penal de 1999 cuidou bem em regular a eutanásia ativa direta como hipótese de homicídio privilegiado. O legisla-dor não incorreu, porém, no mesmo acerto ao prever, para a ortotanásia, a simples exclusão da ilicitude, quando na verdade cuida-se aqui de atipicidade da conduta.

A ortotanásia é um novo modelo de moralidade, sendo um novo siste-ma ético da vida e da morte. A sua busca é no sentido de priorizar a pessoa que se encontra no estado terminal e não mais o tratamento da doença com a finalidade de prolongar aquela vida. Apesar da questão da ortotanásia girar em torno de tema trágico como é a morte, ela tem uma grandeza ao defender a dignidade humana.

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Thanátos e os paradoxos da Biotecnologia: da pertinência da ortotanásia à luz da Constituição Federal de 1988

No Brasil, não há autorização legal para a eutanásia nem para o suicídio assistido. Mas a suspensão de esforço terapêutico está autorizada na Constituição Federal e no novo Código Civil, que permite ao paciente recusar determinados procedimentos médicos, na Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90, artigo 7º III), que reconhece o direito à autonomia do paciente, e no Código de Ética Médica, que proíbe a realização de procedimentos terapêuticos contra a vontade do paciente, fora das situações de emergência médica de salvação, o que não é o caso de doentes com quadros irreversíveis, sem nenhuma resposta a qualquer tipo de tratamento.

Há ainda, uma lei excepcional sobre o tema, isto é, a “Lei dos Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde do Estado de São Paulo” (Lei nº 10.241/99), que diz: “Art 2º - São direitos dos usuários dos serviços de saúde do Estado de São Paulo: XXIII – recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida”.

O atual Código Penal, portanto, tem urgência em sua revisão em diver-sos assuntos, dentre os quais, a discriminação da ortotanásia. O que se quer não é a legitimidade da prática de matar alguém, mas tão somente deixar que a natureza siga seu caminho, que é a morte, sem que haja tantos sofrimentos, principalmente quando a cura é inevitável.

O princípio da dignidade humana é um dos maiores axiomas da Consti-tuição. Esse princípio, ao lado de outros, constitui um dos fundamentos de nossa Carta Magna. A pessoa humana constitui um valor absoluto que não pode ser ultrapassado pelo Estado em favor de nenhum interesse coletivo.

Diante de todos os direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana é basilar. Por meio dela, do respeito a ela, é que os demais direitos são respeitados e se tornam inalienáveis, indisponíveis e irrenunciáveis.

O bem jurídico da vida humana, erigido à categoria de direito fundamental pela Constituição Federal, constitui o fulcro primordial para todos os demais direitos35. A vida humana é algo sagrado e intangível, o direito surge aliado igualmente ao princípio da qualidade de vida, segundo o qual a vida humana é inerente de dignidade e condições igualitárias.

A dignidade da pessoa humana foi guindada à categoria de princípio funda-mental, isto é, fonte última de legitimação do Estado de Direito Democrático. Tal princípio expressa a superioridade que o homem tem em relação a todos os demais seres e objetos da natureza, devendo agir holisticamente com todos eles36.

Nesse sentido, afirma-se que a vida é o pressuposto da personalidade, dos direitos a ela atribuídos, e é o supremo bem individual. Por isso os direitos da personalidade são inalienáveis, indisponíveis, irrenunciáveis e imprescritíveis. O ser humano não pode dispor de sua vida, ou seja, renunciar à própria vida já que a vida é o bem maior tutelado pelo Estado de Direito. Mas, pode deixar-se falecer, na medida em que abdica da terapêutica abusiva.

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Gabrielle Bezerra Sales

Debates surgem, contudo, no tocante ao alcance da indisponibilidade do direito à vida e da legitimidade do representante legal do paciente inconsciente ou incapaz de autorizar a ortotanásia.

A dignidade humana37, constitucionalmente tutelada, nos assegura que ninguém pode ser desprovido da própria vida contra sua vontade. O princípio da dignidade da pessoa humana é norma constitucional de eficácia plena, ou seja, produz, desde o momento de sua promulgação, todos os efeitos essenciais, todos os objetivos especialmente visados pelo legislador constituinte e incide direta e indiretamente, de modo pleno, sobre o seu objeto.

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1 PEQUENO, Tarcísio. Tempus Fugit, Jornal O Povo, Fortaleza, CE, 6 jan. 2008. Vida & Arte, Caderno de Cultura.

2 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 292.

3 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 985-986. Entende-se por útil, “o que é meio ou instrumento para um fim qualquer. Nesse sentido a utilidade foi definida por Alberto Magno, Geulinex e Haumgarten; é um caráter das coisas. [...] Nesse sentido, por um lado a utilidade tornou-se fundamento da doutrina moral chamada utilitarismo e, por outro lado, conceito fundamental da economia política. Na primeira direção, Hume já perguntava “porque a utili-dade agrada”, e encontrava a resposta a essa pergunta na natural simpatia do homem para com o outro homem. A coincidência da utilidade individual com a social estava assim já postulada e passou a ser um dos temas do utilitarismo. Bentham definia utilidade como “a propriedade de um objeto em virtude da qual ele tende a produzir benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade. No campo da economia política, por útil entendeu-se habitualmente “tudo o que satisfaz uma necessidade”.

4 VARGAS, A.C. Problemas de Bioética. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001, p. 236.5 PESSINI, Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Loyola, 2004, p.187. “Muitas, talvez a

maioria, das decisões médicas a respeito da vida e da morte precisam ser feitas em favor de pessoas que não podem expressar qualquer desejo, seja porque elas ainda não tenham desenvolvido a capacidade de formular desejos e intenções, seja porque tal capacidade tenha sido destruída por doença de acidente – às vezes chamada de eutanásia não voluntária”fundamental à vida”.

6 WANDERMUREN, Jonathas Lucas. Aspecto ético-religioso da eutanásia. Revista Jurídica Consulex, ano 9, n. 199, 30 abr. 2005.

7 VARGAS, op. cit., p. 236.8 MARANHÃO, J. L. S. O que é morte. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 56-57.9 CARVALHO, G. M. Aspectos jurídico-penais da eutanásia. São Paulo: IBCCRIM, 2001, p. 115-116.10 Ibid., p. 121-122.11 O atual Código de Deontologia Médica, no artigo 6º, afirma claramente sua preocupação com o valor

da vida humana, in verbis: “O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.”

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Gabrielle Bezerra Sales

12 CARVALHO, op. cit., p.158.13 MENDES; COELHO; BRANCO, op. cit., p. 409.14 GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo. Bioética: poder e justiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 391.15 PESSINI, Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Loyola, 2004, p. 390.16 CARVALHO, G.M. Aspectos jurídico-penais da eutanásia. São Paulo: IBCCRIM, 2001, p.27.17 PESSINI, op. cit.,p.226.18 World Medical Journal, nov/dez. 1968, p.133. A definição de morte encefálica foi divulgada e, conse-

quentemente, a Associação Médica Mundial formulou a declaração de Sidney, em 1968, na qual restou assentado que: “Uma dificuldade é que a morte é um processo gradual, a nível celular e que a capacidade dos tecidos, para suportar a falta de oxigênio, é variável. Sem embargo disto, o interesse clínico não reside no estado de conservação das células isoladas, mas no destino da pessoa. Em decorrência, o momento da morte de diferentes células e órgãos não tem tanta importância, como a certeza de que o processo tornou-se irreversível, quaisquer que sejam as técnicas de ressuscitação que se possam aplicar. Esta conclusão se deve basear no juízo clínico, complementado, caso necessário, por diversos instrumentos auxiliares de diagnóstico, dos quais o mais útil é atualmente o eletroencefalógrafo. Em qualquer caso, nenhuma prova instrumental isolada é inteiramente satisfatória no estado atual da medicina nem qualquer método pode substituir o ditame global do médico.”

19 GOMES, Luiz Flávio. Eutanásia, morte assistida e ortotanásia: dono da vida, o ser humano é também dono da sua própria morte?. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1305, 27 jan. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9437>. Acesso em: 25 out. 2007.

20 DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 338.

21 SALES, Gabrielle Bezerra.Teoria da Norma Constitucional. São Paulo: Manole,2004, p.143.22 AWAD, Fahd. O Principio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Revista Justiça do Direito,

Passo Fundo, v. 20, n. 1, 2006, p. 111.23 PESSINI, op. cit., p.273.24 GORCZEVSKI, Clovis et al. O Principio da Dignidade da Pessoa Humana. Revista do Direito, São

Paulo: Universidade de Santa Cruz, n. 24, jul/dez 2005, p.168.25 CANARIS, Claus-Wilhelm. A Influencia dos Direitos Fundamentais sobre o Direito Privado na Alemnha.

Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, Fortaleza, Del Rey, n. 3 jan/jun, 2004, p. 375. “No fato de os direitos fundamentais, enquanto parte da Constituição, terem um grau mais elevado na hierarquia das normas do que o Direito Privado, podendo, por conseguinte, influenciá-lo. De outro modo, a Constituição, em principio, não é o lugar correto nem habitual para regulamentar as relações entre cidadãos individuais e entre pessoas jurídicas. Nisso consiste, ao contrário, a tarefa específica do Direito Privado, que desenvolveu nesse empenho uma pronunciada autonomia com relação à Constituição; e isso não vale apenas em perspectiva histórica, mas também no tocante ao conteúdo, pois o Direito Privado, em regra, disponibiliza soluções muito mais diferenciadas para conflitos entre os seus sujeitos do que a Constituição poderia fazer. Disso resulta uma certa relação de tensão entre o grau hierárquico mais elevado da Constituição, por um lado, e autonomia do Direito Privado, por outros.”

26 DWORKIN, apud TORRES, Ricado Lobo. Teoria dos Direitos Fundamentais. Rev. Atual. 2. ed. Rio de Janeiro: 2001, p. 147-148. Moral e Direito numa visão unificada, Dworkin pensa no ordenamento jurídico positivo apenas como uma providência destituída a conferir maior segurança às relações jurídicas. As normas, no seu entender, devem ser sustentadas por princípios morais, os quais na verdade, são seu fundamento de validade. Daí a conclusão de que tais princípios podem, inclusive, afastar a aplicação de normas que lhes contrariem. Para Dworkin, a Moral se manifesta através de princípios, seja orientando a elaboração das normas, seja através da aplicação direta ao caso concreto, realizada pelo juiz. Portanto, aceitando-se uma definição de Direito como sendo apenas o texto positivado, chega-se à conclusão de que a Moral deve ser posta acima do Direito. A idéia que surge deste raciocínio é a de que a Moral é prévia ao Direito e deve ser resguardada por seus instrumentos. Desta afirmação de que os valores morais estão superpostos às leis escritas, nasceram conclusões interessantes, que merecem em estudo individualizado.

27 OLIVEIRA, Patrícia de Almeida e. Importância da Bioética no âmbito médico-científico em prol da defesa de direitos humanos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1563, 12 out. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10510>. Acesso em: 25 out. 2007.

28 GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo. Bioética: poder e justiça. São Paulo: Loyola, 2003, p. 395. “Diante deste critério, muito difundido entre os médicos, já ia ganhando corpo a tese de que não é digno nem prudente continuar agredindo a pessoa doente quando praticamente não existe mais possibilidade de continuar

R E V I S T A O P I N I Ã O J U R Í D I C A 71

Thanátos e os paradoxos da Biotecnologia: da pertinência da ortotanásia à luz da Constituição Federal de 1988

a viver. Afirma-se que não é o mesmo ajudando a viver quem está vivendo e impedir de morrer quem está morrendo. Surgiram expressões para nomear toda esta problemática, entre outras a de “obstinação terapêutica’. Nem tudo o que é tecnicamente possível é eticamente correto, e a luta pela vida deve levar em conta alguns limites racionais e humanos, para além dos quais se comportam a dignidade humana. É neste contexto que surge o debate da futilidade.”

29 KOVÁCS, Mário Júlio. Autonomia e o direito de morrer com dignidade. Revista Bioética, 1998, v. 6, n. 1, p. 63.

30 GRACIA apud GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo. Bioética: poder e justiça. São Paulo: Loyola, 2003, p 396

31 CARVALHO, op. cit., p. 28.32 O Conselho Federal de Medicina, por seu turno, dispôs em documento publicado no Diário Oficial de

28/11/06, sobre a legitimidade da suspensão dos meios extraordinários de subsistência em casos desespe-rançados, mas não acrescentou haver obrigação de entreter a vida do paciente retirado do CTI mediante os recursos ordinários e corriqueiros da Medicina (injeções, soro, alimentação etc.)

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º - O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades tera-pêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º - A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.§ 3º - É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. Art. 2º - O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam

ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.

Art. 3º - Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrá-rio.

33 SOUSA, Deusdedith. Eutanásia, Ortotanásia e Distanásia. Revista Pensar, Fortaleza, ano 4, n. 3, p.150-159, jan. 1995.

34 MOURA, Elizabeth M. Eutanásia, ortotanásia e doações de órgãos. Revista Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, 2007, p. 44.

35 CARVALHO, op. cit., p. 96. “O direito à vida nem sempre tenha merecido expressa menção por parte dos textos constitucionais. Registre-se, por oportuno, que os direitos humanos atravessaram de primeiro uma fase metapositiva, vale dizer, de independência do Direito vigente na comunidade organizada como Estado, que resultou nas declarações e textos internacionais sobre direitos humanos, cujo mais significativo expoente de 10 de dezembro de 1948.”

36 CASABONA apud CARVALHO, Gisele.M. Aspectos jurídico-penais da eutanásia. São Paulo: IBC-CRIM, 2001, p.113. O respeito da dignidade humana, consoante expõe o autor, leva consigo a idéia de legitimação democrática e significa ao mesmo tempo seu reconhecimento como princípio material de justiça, prévio e imanente ao Direito positivo o que impede seja considerado apenas mais um interesse dentre vários passiveis de ponderação nas hipóteses de conflito.

37 SARLET, I.W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 62. “ [...] qualidade intrínseca e distinta de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”

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Gabrielle Bezerra Sales

THANÁTOS AND THE PARADOXES OF BIO-TECHNOLOGY: ON THE SUITABILITY OF “ORTHOTANASIA” UNDER 1988 FEDERAL CONSTITUTION

ABSTRACTThis paper examines death as a natural consequence of life, highlighting the questions regarding the possibilities related to the abbreviation of the time of living or to its indefinite lengthening. From a constitutional and philosophical point of view, the author examines the typology of death, presenting the adequacy of abandoning certain medical and therapeutical practices that only bring suffering to the dying human being, as these practices are futile. The text also presents an assessment of the constitutionality of not using, in case of terminal illness and irrevesible situations, extarordinary means that bring, as a sole consequence, a kind of survival incompatible with human dignity, distinctive characteristic of all human beings and paramount principle of the theory of the fundamental rights protected by constitutional order in Brazilian Law.

Keywords: Human dignity. Human rights. Death. Constitution. Inmortality.

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notAs sobre democrAciA, liberdAde e iguAldAde

Hugo de Brito Machado segundo*

Introdução. 1 Democracia na Grécia Antiga. 1.1 Preliminar-mente. 1.2 Premissas fundamentais. 1.3 Criticas à sua estru-tura. 2 O que se extrai da “crítica” aos defeitos da democracia grega. 2.1 A questão da igualdade e da inaptidão do povo. Governo dos sábios. 2.2 A questão do eventual açodamento da maioria. Rigidez constitucional. 2.3 2.3 Liberdade e igual-dade. Conciliação no prestígio à dignidade da pessoa humana. Conclusões.

RESUMONeste trabalho, faz-se exame de algumas características da democracia na Grécia antiga, e de experiências políticas poste-riores, para, a partir especialmente de seus defeitos, apontados por seus mais contundentes críticos, aferir-se o que os modelos contemporâneos de democracia têm de positivo, quais pontos não devem ser alterados, e quais necessitam de revisão.

Palavras-Chave: Democracia. Liberdade. Igualdade. Consti-tuição. Segurança.

INTRODUÇÃONão é rara a utilização de idéias geralmente aceitas em uma comunidade

para a obtenção de resultados que delas não necessariamente decorrem. O uso desse recurso presta-se para, diante de eventual oposição, afirmar-se simples-mente que o opositor está a questionar as premissas (que a maioria aceita), para com isso desacreditá-lo sem que se tenha de entrar no debate – que é essencial – relativo ao (inexistente) fio condutor entre premissas e conclusões.

É o que ainda se verifica, na atualidade,1 com alguns aspectos da idéia de democracia, notadamente em sua relações com liberdade e igualdade.

Afirma-se que os direitos ligados à liberdade, conquistados modernamen-te2 no âmbito das revoluções burguesas, seriam fruto de uma visão ultrapassada do Estado. O Estado atual não seria mais apenas “de Direito”, mas também “Social” ou “Democrático de Direito”, a teor do que dispõe o art. 1.º da Cons-* Advogado, Mestre em Direito pela UFC. Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de

Fortaleza. Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários. Professor de Processo Tributário da pós-graduação da Unifor. Professor de Direito Tributário da Faculdade Christus e da Faculdade Farias Brito.

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Hugo de Brito Machado Segundo

tituição Federal de 1988 (CF/88) e, por isso mesmo, os direitos inerentes à liberdade deveriam ser relativizados ou ponderados. Aqueles que se insurgem contra uma “relativização” de sua liberdade, nesse contexto, são rapidamente acusados de partidários de um liberalismo ultrapassado, situados ainda no século XIX e cegos à realidade social.3

Mas, do mesmo modo, também há quem afirme que a promoção de direitos ligados à igualdade, através da atuação do Poder Público, relaciona-se com um perfil de Estado que a História mostrou ser terrivelmente supressor de liberdades, e que também está ultrapassado, sobretudo depois da queda do muro de Berlim. A CF/88, neste ponto, por conter inúmeros resíduos dessa visão de Estado, estaria defasada e pesada, atravancando o desenvolvimento econômico do País.

É curioso, nesse contexto, como um mesmo documento – no caso brasilei-ro, a CF/88 – tenha partes de seu texto defendidas e atacadas, reciprocamente, por pessoas que se dizem suas defensoras. Em ambos os lados, algumas agem sinceramente, acreditando no que defendem. Outras não: seus propósitos são inconfessáveis. Mas todas afirmam agir em nome da democracia. Revela-se, com isso, o acerto de Neil MacCormick quando afirma que, no debate jurídico, “a insinceridade é ainda mais reveladora que a sinceridade”4, pois o simples fato de alguém tentar inventar uma justificativa plausível (e apenas aparente) revela que o próprio defensor do ato em discussão considera que seus verdadeiros mo-tivos são inaceitáveis. Mas não só. Mostra-se, também, a retidão do que afirma Giovanni Sartori, segundo o qual “a democracia se transformou numa palavra universalmente honorífica”,5 sendo certo que, para os inimigos da democracia, “a melhor forma de evitá-la é fazê-lo em seu nome e com seu próprio nome”.6

Neste pequeno artigo, faz-se análise de alguns aspectos da relação entre democracia, liberdade e igualdade. Parte-se, de início, do modelo grego de demo-cracia, adotado por volta do século IV a.C. Não como mera ilustração histórica, tão freqüente quanto desnecessária em muitos trabalhos acadêmicos, tampouco porque se pense que tal modelo de democracia é isento de defeitos, mas precisamente pelo contrário: buscar-se-á, à luz de seus defeitos, das críticas que lhe foram feitas e das experiências posteriores, a indicação de caminhos sobre como não resolver os proble-mas que eventualmente se apresentam à democracia no mundo contemporâneo.

1 DEMOCRACIA NA GRÉCIA ANTIGA

1.1 PreliminarmenteNão é o caso, aqui, de se aprofundar o exame em torno das origens da

democracia, dos aspectos geográficos, sociais e políticos que levaram ao seu surgimento na Grécia do século IV a.C.7 Será suficiente, para os propósitos desde texto, relembrar, em linhas gerais, suas características centrais. Sobre-tudo suas deficiências, e suas qualidades. Isso é importante, principalmente,

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porque – como observa Del Vecchio – o estudo da história fornece material, reflexões e experiências que “a um homem só, no decurso da vida, seria impos-sível ocorrer.”8 Desprezá-la, continua Del Vecchio, conduz à mesma situação que a do “artífice actual que, agora, seria incapaz de ser o inventor de todos os instrumentos da sua arte.”9

1.2 Premissas fundamentaisA democracia na Grécia do século IV a.C, notadamente em Atenas,

orientava-se basicamente por três premissas: a igualdade, a liberdade e o respeito pela lei. A todos do povo – conceito assaz restrito, como adiante será visto – era lícito participar dos assuntos de interesse da coletividade. Aliás, não apenas lícito, mas verdadeiramente necessário.

É importante destacar, contudo, que à época ainda não havia uma idéia de “indivíduo”, oponível ao “Estado”, o que só surgiu na idade moderna. O cidadão ateniense tinha direitos e obrigações; mas estes direitos não eram atributos de indivíduos privados e estas obrigações não eram forçadas por um estado dedi-cado à manutenção de uma estrutura que visava proteger os fins privados de certos indivíduos.10 As idéias de “indivíduo” e “sociedade” em face do “estado” só surgiram na idade moderna, com teóricos como Maquiavel e Hobbes.11 Tais noções não existiam na Grécia do século IV a.C, até porque o que havia, na época, era um “autogoverno”. As decisões eram tomadas e as leis feitas com a participação de todos, à luz do melhor argumento, e não em face de costumes ou da força bruta. O ateniense não se via livre de qualquer restrição, mas traçava a distinção entre a restrição que é decorrente de sua sujeição à arbitrariedade de outro homem, e a que decorre da lei, em cuja feitura ele participou, e cuja necessidade de respeito ele reconhece, podendo se considerar, nesse sentido, auto-imposta.12

Questões difíceis, em face das quais seria difícil obter consenso, eram resolvidas à luz da opinião da maioria, no âmbito de processo no qual todos os interessados tinham oportunidade de participar.13 Pode-se dizer, pois, que o Estado de Direito e o devido processo legal teriam seus germes aqui.

Havia dois critérios ou formas de manifestação da liberdade: i) viver como escolher; ii) governar e ser governado.14 O exercício da segunda forma de liberdade, em tese, pode mitigar a primeira, mas se todos participam igualmente das decisões do governo (governar e ser governado), essa mitigação não ocorre de forma significativa, pois se teria o “ser governado como se escolheu”. Liber-dade e igualdade, portanto, estavam umbilicalmente ligadas, somente sendo possível o exercício de uma porque se assegurava, também, a outra. Iss porque realmente não há como “governar e ser governado” se não houver igualdade na participação das deliberações relativas aos assuntos da polis.15

Quanto à sua forma de funcionamento (nomenclatura de órgãos, sua composição, funcionamento etc.), trata-se de aspecto cujo aprofundamento

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não seria pertinente neste texto. Entretanto, cabe registrar que os cidadãos atenienses reuniam-se em assembléia 40 vezes ao ano. O quorum para instalação era de 6 mil cidadãos. Essa assembléia decidia assuntos como a declaração de guerra, a tributação, o ostracismo etc.

Buscava-se a unanimidade, que, evidentemente, nem sempre era obtida. Em relação às questões mais difíceis, nas quais havia profunda divergência entre os atenienses, a assembléia era uma forma de dar uma solução ao problema, pois a decisão tomada encontrava legitimidade tanto por haver sido acolhida pela maioria como por permitir a participação (por meio da argumentação) de todos os interessados.

Mas a assembléia, composta de um número tão grande de pessoas, não tinha condições de administrar seu próprio funcionamento, decidir quando e como os assuntos seriam a ela submetidos, esboçar a legislação que depois seria submetida à sua aprovação, elaborar sua agenda etc. Para isso, existia um “Conselho de 500”, que era auxiliado nesse mister por um “Comitê de 50”, que tinha um presidente como líder. Tal presidente, contudo, só poderia ocupar o cargo por um dia.

É importante observar que quase todos os servidores eram eleitos para um período não renovável de um ano. Para evitar os vícios e os problemas decorrentes da eleição direta (v.g., clientelismos), existiam mecanismos para preservar a responsabilidade de prestação de contas dos administradores, e os servidores eram designados para o desempenho de tarefas por meio de sorteio,16 havendo rotatividade no exercício das mesmas.

De tudo isso, se pode extrair, em suma, os seguintes aspectos fundamen-tais: a) responsabilidade de quem age em nome da coletividade; b) rotatividade no exercício da função pública; c) sorteio para o preenchimento de cargos.

1.3 Críticas à sua estruturaA primeira crítica que se pode dirigir à democracia grega – e a mais

usualmente verificada – é a de que eram cidadãos os atenienses homens, livres e maiores de vinte anos.17 Descendentes de imigrantes, mulheres, crianças, escravos etc. não tinham direito a voto nem à participação nos assuntos da polis. Por essa razão, David Held chega mesmo a questionar se, a rigor, pode-se efetivamente referir a estrutura ateniense da época como sendo uma democra-cia.18 Talvez esse exclusivismo, com as tensões e os conflitos dele decorrentes, tenha sido uma das razões pelas quais a democracia grega não persistiu por muito tempo.

Outra crítica – feita especialmente por seus contemporâneos, como Platão – é a de que a democracia trata todos os homens como iguais, sejam eles iguais ou não. Na verdade, para os críticos, assim como um barco deve ser liderado por seu comandante, e não pelo que decidir a maioria dos marinheiros

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ignorantes, a polis deve ser governada por sábios.

Objetivamente, para Platão, os principais problemas da democracia são: i) os governantes, preocupados em obter e manter popularidade, não tomam as decisões nem adotam as posturas corretas, em situações difíceis, quando isso é necessário; ii) a maioria pode tomar decisões precipitadas, movida pela paixão, ou influenciadas por uma retórica falaciosa, em relação às quais ela própria pode arrepender-se depois; iii) a maioria pode vir a adotar decisões ou posturas contrárias à lei, e, portanto, arbitrárias.19

Na visão dos críticos, a melhor forma de governo seria aquela em que os filósofos tivessem o poder e decidissem a respeito dos assuntos de interesse coletivo. Essa visão está muito claramente delineada em A República, embora, em obras de sua maturidade (O político e As Leis), Platão tenha admitido a ne-cessidade de alguma forma de consenso e participação populares para manter o governo.

2 O QUE SE EXTRAI DA CRÍTICA AOS “DEFEITOS” DA DEMO-CRACIA GREGA

2.1 A questão da igualdade e da inaptidão do povo. Governo de sábiosA história é rica de exemplos de formas de governo que não consagram

a igualdade entre governantes e governados, e que atribuem a um governante supostamente “iluminado” o comando do Estado. Numa demonstração de que não há linearidade na história, e para não alongar muito o texto, podemos nos contentar com a remissão às monarquias absolutistas da Europa do final da Idade Média e aos regimes totalitaristas da primeira metade do século XX.

Tais exemplos mostram a magnitude do problema, e o acerto da célebre frase proferida por Winston Churchill em discurso na Casa dos Comuns, em 11 de novembro de 1947, de que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.20

É verdade que as pessoas não são iguais,21 que umas são mais preparadas que outras, e que não seria adequado deixar-se que a opinião das despreparadas, que talvez seja maioria, determine os destinos da coletividade. Tais premissas são corretas, e realmente seria muito bom um governo de sábios, filósofos pre-paradíssimos. A questão, contudo, está em saber: i) quem determinaria quem são os sábios? ii) quem imporia limites aos sábios?

A imprestabilidade da afirmação de que um governo de sábios seria melhor que uma democracia é análoga à da afirmação de que justiça é o ideal de “dar a cada um o que é seu”, eis que o ponto questionado é justamente “o que é de cada um”.

Para que a idéia de um governo de sábios fosse boa, ou pelo menos

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factível, seria necessário que tais sábios fossem infalíveis, que fosse possível diferenciá-los em meio à coletividade, e que a pessoa incumbida de os escolher e indicar fosse ainda mais sábia e também infalível, o que, já se vê, conduz a um regresso ao infinito.

A questão é muito bem colocada por Pontes de Miranda, que escreveu:

Certamente, em matéria de ciência ou de técnica, a opinião de um só indivíduo pode valer mais e ter mais razão contra a de muitos. Em assuntos de interesse imediato de muitos, a de muitos, ou de todos, tem de valer mais. Pelo menos, evita que o interesse de poucos prevaleça sobre o de muitos. [...] O que é preciso é que seja o povo que decida dos seus destinos, desde os menores círculos políticos. A inserção de alguém que adote soluções sem ter sido escolhido pelo povo, ou por alguém a que o povo atribuiu escolher, cria o núcleo monocrático, que, se irresponsável, se torna, aos escorregos, autocracia.22

A crítica de que a democracia é ruim, por permitir que despreparados sejam tratados de forma igual aos sábios, portanto, não procede. Não porque o defeito não seja verdadeiro, mas porque para ele não há remédio. Ou, talvez, até existam remédios, mas todos de efeitos colaterais muito, mas muito piores que a doença.

Assegurando-se a igualdade na participação no processo democrático, será o tempo e a própria democracia que selecionarão as propostas e os repre-sentantes, fazendo com que permaneçam no poder os sábios – pelo menos os que assim são considerados pela maioria – e não os ineptos.

2.2 A questão do eventual açodamento da maioria. Rigidez constitucional.Outro defeito apontado na democracia grega, como visto, é o de permitir

que a maioria tome decisões apressadas, das quais depois se arrepende, e que não obedecem a limites preestabelecidos. Em outras palavras, a maioria, na Grécia, não conhecia limites jurídicos, podendo tomar decisões arbitrárias.

Talvez esse seja um dos pontos (juntamente com o federalismo e a tripar-tição de poderes) em que se pode afirmar que os teóricos modernos e contem-porâneos criaram ou inovaram em relação aos gregos, e não apenas repetiram o que já teria sido por eles descoberto ou anunciado. Com efeito, o mencionado defeito mostra a necessidade de instituições rígidas, pré-estabelecidas, as quais nem a maioria deve poder modificar, o que se obtém precisamente através de uma Constituição rígida.

Por conta disso, Pontes de Miranda, depois de apontar a importância do surgimento das Constituições rígidas para o aperfeiçoamento da democracia,23 observa que elas “protegem a liberdade, a democracia e a maior igualdade

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contra o impulso puxante para o remoto, contra o impulso de descida à horda, que se produz na multidão-povo, que é a multidão passageira, acidental, e na multidão-religião, ou, ainda, na multidão-exército”.24

No mesmo sentido, Ronald Dworkin destaca que “we may better protect equal concern by embedding certain individual rights in a constitution that is to be interpreted by judges rather than by elected representatives, an then providing that the constitution can be amended only by supermajorities.”25

É preciso muito cuidado, portanto, quando se fala, hoje, em “nova constituinte”, e quando se critica a carta constitucional vigente com suposto amparo no que seriam os “interesses do povo”. Mesmo que as premissas fossem verdadeiras – muitas vezes não são – por elas não se poderia abdicar da rigidez constitucional, sob pena de se incorrer nos mesmos vícios da democracia grega, de cujas conseqüências a História dá seu testemunho.

2.3 Liberdade e igualdade. Conciliação no prestígio à dignidade da pessoa humanaNão basta, contudo, para aperfeiçoar a democracia em face dos defeitos

que seus próprios críticos apontaram, que se atenda a exigência formal relativa ao estabelecimento de uma Constituição rígida. Algo mais há de ser assegurado, sobretudo em relação ao conteúdo dessa Constituição.

Nesse ponto, até hoje, as divergências são intermináveis, sobretudo no que toca à liberdade, e à igualdade. Seja como for, o que importa é que, atualmente, considera-se de forma pacífica que o poder da maioria não é absoluto, devendo respeito à dignidade da pessoa humana, e aos direitos que dela decorrem. Com essa exigência, somada à rigidez constitucional, se corrige o defeito apontado à democracia grega, de que a maioria eventualmente tomava decisões arbitrárias, contra as quais nada se podia fazer.26 Atualmente, entende-se que o princípio democrático encontra alguns limites, devendo a vontade da maioria submeter-se aos direitos humanos, não podendo, por exemplo, tomar decisões ou formular prescrições de caráter retroativo (em face da segurança jurídica), ou supressoras da liberdade, da igualdade, do direito ao meio ambiente saudável etc.

Nesse ponto, convém notar que o excessivo prestígio dado a uma das dimensões de direitos inerentes ao prestígio da dignidade da pessoa humana pode levar à supressão não só de direitos de outras dimensões, mas daquele mesmo de cujo excessivo prestígio se cuida. Liberdade excessiva, que permita a uma pessoa exercer suas faculdades sem limites, certamente faz com que se acentue a desigualdade, e outras pessoas não possam exercer sequer seu direito à liberdade. Da mesma forma, assegurar a igualdade, de forma a suprimir a liberdade das pessoas de serem diferentes, suprimirá o direito à liberdade, que é traço diferenciador do homem,27 e a própria igualdade, pois as pessoas às quais se delegar o papel de “igualar forçadamente” as demais seguramente terão privilégios que as tornarão diferentes.

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Fábio Konder Comparato observa, a propósito da mais eloqüente tenta-tiva – pelo menos em tese - de implantar a igualdade entre os membros de uma comunidade, o socialismo – que a hipotética ‘ditadura do proletariado’ cedo transformou-se na real e crudelíssima ditadura do secretário-geral do Partido Comunista. E o pretendido e anunciado desaparecimento do Estado cedeu lugar à montagem do mais formidável aparelho estatal de todos os tempos.28

Notável, a esse respeito, é a observação de Mario Vargas Llosa. Para ele, hoje

[...] sabemos que a centralização da economia suprime a liberdade e multiplica cancerosamente a burocracia, e que, com essa, ressur-ge uma classe privilegiada ainda mais inepta do que a que Orwell crucificou em seu ensaio, igualmente ávida e perversa na defesa desses privilégios, fazendas, permissões especiais, monopólios, níveis de vida, que acarreta o exercício do poder vertical numa sociedade que, devido à falta de liberdade, aquilo é intocável e onímodo. [...] Agora sabemos que o Estado é a representação real e concreta de um povo somente como ficção jurídica, mesmo nas democracias, onde essa ficção está muito menos alienada da sociedade do que sob os regimes de força. No mundo real, o Estado é patrimônio de uma determinada coletividade que, se acumula um pode desmedido que lhe assegura o controle de toda a economia, termina usufruindo-o em seu proveito contra os interesses daquela economia à qual, em teoria, representa. [...] Isso traz como conseqüência piores formas de privilégio e de injustiça que as permitidas por uma economia privada, nas mãos da sociedade civil que, se estiver bem regulada por um regime legal e submetida à vigilância de um Estado independente e democrático, pode ir abrindo oportunidades e diminuindo essas diferenças sociais e econômicas que Orwell, o socialista libertário, nunca deixou de combater.29

Ronald Dworkin, a esse respeito, escreve que, embora sejam relativos o sentido e o alcance que cada comunidade – e, por conseguinte, cada ordena-mento jurídico – atribui à dignidade da pessoa humana, e especialmente aos seus desdobramentos, pode-se sempre partir de duas premissas fundamentais, a saber: i) todo ser humano tem direito de desenvolver plenamente os seus potenciais; ii) todo ser humano tem a responsabilidade pelo desenvolvimento pleno de seus potenciais.30

Tais premissas são, em outras palavras, representações dos princípios da igualdade e da liberdade. As pessoas têm de ter – todas elas – condições para desenvolver seus potenciais, assegurando-se-lhes saúde, educação etc. Mas também têm responsabilidade sobre como desenvolver esses potenciais, não sendo compatível com sua liberdade – e, por conseguinte, com sua dignidade – que outrem lhe diga, ou pior, lhe imponha como fazê-lo.

Lapidar sua definição de igualdade, pois corrige o que em seu nome se quis fazer nos regimes socialistas, e que implica (a história o mostra) grave supressão da liberdade. Como a igualdade – decorrência da dignidade humana – impõe

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como conseqüência permitir a todo ser humano que desenvolva ao máximo suas potencialidades, tem-se que a igualdade reclama igualdade de oportunidades, mas não de resultados.

Houvesse igualdade de resultados, suprimir-se-ia a liberdade, e a conse-qüente responsabilidade pelas escolhas, que dela decorre. Foi exatamente o que se assistiu nas economias socialistas, com o agravante da ditadura que nelas se instaurou de forma definitiva,31 em mera substituição de uma classe dominante por outra. Em ilustrativa comparação com o jogo Monopoly, no Brasil conhecido sob o nome de “Banco Imobiliário”, Dworkin escreve:

suppose, for example, a radically egalitarian economic policy that collects all the community´s resources once a year and redistributes them equally so as to cancel out all the transactions of the past year and leave people free to start all over again on equal terms. that would be like sweeping up all the Monopoly money and property every quarter of an hour and beginning again, which would of course ruin the game because then no choice would have any consequences for anyone. It would not matter what anyone did. the radical egalitarian economic policy would have the same result at least financially: people would be insulated from the economic consequences of their acts therefore unable to take any responsibility for the economic dimension of their own lives. In such a world I could not stay in school longer in order to hold a higher-paying job later or economize now in order to educate my children better or make a screwd investment in hopes of realizing a profit. none of these choices would make any sense because I would end in the same economic position whatever I did; I could take no financial responsibility for my own choices because my own choices would have no financial consequences at all.32

E, para Dworkin, entre liberdade e igualdade, nesses termos, não há conflito. Em suas palavras, “political communities must find un understanding of each of these virtues that shows them as compatible, indeed that shows each as an aspect of the other.”33

A partir dessas duas premissas, que ele batiza de common ground, em torno das quais praticamente não há dissenso, pode-se argumentar – sincera e racionalmente – em torno de quais medidas são necessárias e adequadas para atingir tais finalidades. Isso, aliás, conduz à última parte deste texto.

2.4 Transparência e sinceridade nas discussões. PublicidadeOutro defeito apontado na democracia grega diz respeito ao uso de fa-

lácias e sofismas para convencer o povo a tomar (ou aceitar) certas decisões. Trata-se, mais uma vez, de defeito talvez menos ruim que o das demais formas de governo experimentadas pela humanidade ao longo da História. Seria o caso

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de tentar corrigi-lo, ou minimizá-lo, em vez de utilizá-lo para atacar a idéia de democracia como um todo.

Esse problema, aliás, também foi colocado por Ronald Dworkin, na obra já referida neste texto,34 preocupado com a pobreza do debate político nos Es-tados Unidos atualmente, que tem sido conduzido muito mais com amparo no marketing, no uso abusivo dos meios de comunicação de massa, na manipulação de questões religiosas, na feitura de associações descabidas que polarizam de modo irracional a sociedade americana.35

Para ele, é necessário restabelecer o debate racional, aberto e sincero de idéias, para que se possa implementar verdadeiramente a democracia e resolver – em um sentido ou em outro, não importa – as questões relevantes à coletividade,36 a partir das premissas apontadas no item anterior deste texto.

Isso mostra a importância dos direitos fundamentais de quarta dimensão, ligados à democracia, à informação e ao pluralismo. A democracia presta-se a que o direito tenha por conteúdo aquele desejado pela maioria dos que a ele se submetem, sendo complementada pelo direito à informação, que a viabiliza (permitindo ao povo fazer escolhas e conhecer o que se faz em seu nome), e ao pluralismo (impondo o respeito, pela maioria, às minorias).

Merece referência, a esse respeito, o discurso de Kant em A paz perpétua, e o que a respeito dele escreveu Norberto Bobbio em sua teoria Geral da política. No dizer de Bobbio, o pressuposto do discurso kantiano é claro:

[...] manter em segredo um propósito, ou mesmo um pacto, ou, se fosse possível, qualquer providência pública, é por si só uma prova de sua ilicitude. Talvez seja o caso de observar que Kant não deduz todas as conseqüências políticas dessa premissa. A fim de que o princípio da publicidade possa ser não apenas declarado pelo filósofo mas realizado pelo político, de modo que, para usar uma vez mais a expressão de Kant, não se dê razão ao ditado popular: ‘Isto pode ser justo na teoria, mas não vale para a prática’, é preciso que o poder público seja controlável. Mas em que forma de governo esse controle pode se realizar senão naquela em que o povo tem direito de participar ativamente na vida política? 37

Deve-se ter muito cuidado, também, com a invocação vazia e genérica do “interesse da coletividade”, ou do “interesse público”, como fundamento para hipertrofiar os poderes do Estado. Para que haja sinceridade e transparência nas deliberações e nas decisões em torno dos valores consagrados em determinada sociedade, esses valores devem ser sopesados diretamente, e não com um ideal e vazio “interesse público”.38

Assim como na Grécia, ao longo de toda a história os tiranos – à cata da necessária legitimidade – “têm sempre um comportamento demagógico: apóiam-

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se no povo contra os aristocratas ou os oligarcas, mas raramente buscam realizar o bem comum de todos.”39 Observa-se, com efeito, mesmo modernamente, que o burocrata tem instinto infalível para a conservação do seu poder, o que o leva “sempre a procurar mais e mais atribuições, como condição de eficiência administrativa, e a tudo recobrir com o manto do segredo, por razões de alegado ‘interesse público’.” 40

Não se deve aceitar que alguém, em nome do povo, pratique atos fundamentados apenas no que supostamente seria o interesse do povo, sem observância a outros limites, porque “jamais interesse algum estará protegido se a parte interessada não pode decidir por si e defender seu interesse”.41 É preciso que o governante se submeta a limites – os Direitos Fundamentais. Do contrário, corre-se sério risco. Primeiro porque não existe um interesse do povo, sobretudo em sociedades pluralistas como as pós-modernas. Segundo – escreve Sartori – porque é muito difícil que alguém que não o próprio povo saiba qual é o seu interesse. E, finalmente, porque se teria, nesse caso, uma demofilia, e não uma democracia, em face da qual se tem sorte se o déspota for benevolente. Mas – conclui Sartori –

[...] e se não o for? Por que deixar ao acaso o que pode ter sal-vaguardas? É claro que se pode dizer que o sol não se levante amanhã. Talvez, mas é extremamente improvável (com referência a amanhã). É possível que um macaco sentado diante de uma máquina de escrever produza um romance; mas a probabilidade é desoladoramente pequena. Da mesma forma, é possível que, num regime de Estado despótico e declaradamente antiliberal, os súditos sejam mimados por um déspota benevolente, inteiramente dedicado ao altruísmo. No entanto, a ligação entre ditadura e filantropia é um ‘possível extremamente improvável’, ao passo que a ligação entre o poder do povo e benefícios para o povo é uma possibilidade intrínseca e extremamente provável. 42

CONCLUSÕESEm razão do que foi visto ao longo deste texto, podemos concluir, em

síntese, o seguinte:

a) a democracia grega tinha como principais defeitos o fato de permitir a participação de despreparados na condução dos assuntos de interesse da coleti-vidade; a ausência de limites aos poderes da maioria; a possibilidade de a maioria ser levada ao erro por oradores falaciosos e o seu elevado exclusivismo;

b) quanto à participação de despreparados, trata-se de defeito que só mesmo a própria democracia, e o seu efetivo exercício pelo povo, pode corrigir. Todos os regimes alternativos, nesse ponto, são piores, pois a questão, se se trata de escolher um “iluminado” para governar, em saber quem será esse iluminado,

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quem o limitará e quem terá poderes para o escolher;

c) quanto à possibilidade de a maioria chegar a conclusões açodadas, das quais depois se arrepende, e que podem ser arbitrárias, a solução, encontrada modernamente, está no estabelecimento de constituições rígidas, nas quais se prestigiem direitos inerentes à preservação da dignidade da pessoa humana (direitos fundamentais);

d) tais lições são importantes para que se saiba, hoje, à luz da história, o que pode ocorrer quando se abre mão da supremacia constitucional, e dos direitos fundamentais, em face do que seria a “vontade de maioria”, ou, o que é ainda pior, do que seria supostamente do “interesse G84 público”, conceito altamente indeterminado em torno do qual os déspotas de vários lugares e tempos ocultaram suas mais inconfessáveis pretensões.

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1 Embora o fenômeno tratado no texto possa ocorrer em outros lugares do globo, e em outras áreas, quando se refere o que “acontece atualmente”, tem-se em mente a realidade brasileira, sobretudo no que pertine ao debate em torno do Direito Constitucional e dos demais subconjuntos a ele mais diretamente ligados, como é o caso do Direito Eleitoral, do Direito Tributário e do Direito Administrativo.

2 A expressão modernamente, aqui, não se refere a algo contemporâneo, mas como designação de acon-tecimento havido no período histórico imediatamente posterior à Idade Média. As divisões na História, como as classificações em geral, têm algo de arbitrário, não sendo possível estabelecer um marco preciso e exato a partir do qual uma idade teria começado e outra terminado, sobretudo porque a história não é linear. De qualquer modo, o texto se reporta, nesse particular, ao período imediatamente posterior às revoluções havidas na Europa e na América entre os séculos XVII e XIX, através das quais governos monárquicos foram substituídos por democracias representativas.

3 Essa argumentação é freqüentemente invocada pelos que representam o Estado, em especial em processos judiciais, no âmbito de suas relações com o cidadão-contribuinte. Preconiza-se que os direitos deste último sejam relativizados, ou mitigados, porque oriundos de uma visão liberal ultrapassada, cega para uma realidade social que, pelo menos em tese, seria corrigida pelo Estado com a arrecadação do valor em disputa.

4 McCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 19. A natureza “reveladora” a que se refere MacCormick diz respeito à cientificidade do estudo do Direito. Com efeito, por mais que não se tenha a “objetividade” das ciências exatas, não se pode falar que a resolução de problemas jurídicos seja completamente subjetiva, a tornar inviável o debate racional. Tanto que o defensor de uma postura arbitrária não poder dizer, simplesmente, que “para ele” aquilo é justo, e assim encerrar a questão. Tem de valer-se da insinceridade na exposição de seus motivos, cabendo aos seus opositores, então, demonstrar a improcedência dos motivos (aparentes) invocados. E a experiência mostra que isso realmente ocorre, não só no debate jurídico, mas em todos aqueles em que se questionam valores e, por isso mesmo, se aplica a lógica dialética, e não a lógica formal. Dificilmente alguém adota uma postura arbitrária sem procurar, de alguma forma, dar a ela uma justificativa aparente, para tentar torná-la legítima. É preciso obter a aceitação do grupo, nem que seja com o uso de um pretexto. Ao proibir a mulher de trabalhar, o marido machista e ciumento alega, de forma muito gentil, que assim é melhor para as crianças, que ficarão próximas da mãe, e quem sabe para ela própria, que viverá mais descansada. Em tom grave, diz aceitar o sacrifício de sustentar a família, por ser muito bom e generoso. Não admite, naturalmente, que terá ciúmes de eventuais colegas de trabalho. Tampouco confessa que se sentirá diminuído diante do sucesso profissional de sua companheira, e que entrará em crise se a remuneração dela tornar-se maior que a sua. Da mesma forma, ao promover a invasão de um país no Oriente Médio, representante de superpotência ocidental não afirma estar disposto a sacrificar vidas, a soberania do país e todo o Direito Internacional apenas para se apropriar do petróleo ali situado. Não. Em tom bondoso e até de sacrifício, alega estar protegendo o povo do local, estabelecendo a democracia e afastando um ditador malvado.

5 SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada: o debate contemporâneo. São Paulo: Ática, 1994, v. 1, p. 18.

6 Ibid., p. 19.7 Cf., a propósito, HELD, David. Modelos de democracia. Belo Horizonte: Paidéia, 1997, p. 13 et seq;

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Hugo de Brito Machado Segundo

GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 9 et seq.

8 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 5. ed. Coimbra: Armênio Amado Editor Sucessor, 1979, p. 31.

9 Ibid.10 HELD, op. cit., p. 17; GOYARD-FABRE, op. cit., p. 56.11 Para Michel Villey (Filosofia do Direito: Definições e Fins do Direito; os meios do Direito. São Paulo:

Martins Fontes, 2003, p. 127), o individualismo teria seu germe em Santo Tomás de Aquino. No mesmo sentido: COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, passim.

12 HELD, loc. cit.13 Em certo sentido, não é isso o que preconizam os contemporâneos teóricos do pós-positivismo, relativa-

mente ao conceito de verdade pós-moderno, à legitimação pelo procedimento etc.?14 HELD, op. cit., p. 19.15 Cf. COMPARATO, op. cit., p. 473.16 Como explica Fábio Konder Comparato, a designação de cidadãos pelo sorteio, e não por eleição, “pro-

cedimento que hoje nos causa o maior espanto – a razão política era, evidentemente, impedir a ascensão, acima do povo, de personalidades individuais muito marcadas; procurava-se impedir no nascedouro o estabelecimento de tiranias.” (op. cit., p. 569)

17 Simone Goyard-Fabre reporta-se, no texto já referido em nota anterior neste artigo, à idade de dezoito anos (e não vinte) como necessária à aquisição do status de cidadão. Tal divergência (David Held, no texto também anteriormente mencionado, faz alusão a vinte anos, posição adotada neste artigo), contudo, não tem qualquer relevância para a análise da democracia grega, e muito menos para as lições que dela se pretende extrair neste artigo.

18 HELD, op. cit., p. 23.19 Ibid., p. 29.20 “Democracy is the worst form of government except from all those other forms that have been tried

from time to time.” Citação obtida na enciclopédia Wikipedia, em Wikipedia. Disponível em: <http://pt.wikiquote.org/wiki/Winston_Churchill>.

21 Sobre a desigualdade natural das pessoas, vale conferir ROUSSEAU, J. J., Discurso sobre a origem da desigualdade. Cultura Brasil. Disponível em: < http://www.culturabrasil.org/dadesigualdaderousseau.htm>. Acesso em: 20 set. 2007.

22 MIRANDA, F.C Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade: os três caminhos. Campinas: Bookseller, 2001, p. 141.

23 Ibid., p. 43.24 MIRANDA, loc. cit.25 DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? Principles for a new political debate. Princeton:

Princeton University Press, 2006, p. 144.26 Cf. HELD, op. cit., p. 29.27 COMPARATO, op. cit., p. 409.28 Ibid., p. 383. Pontes de Miranda, no mesmo sentido, observa que, a propósito de instituir sociedade sem

Direito e sem Estado, o socialismo fez surgir um Estado totalitário e um Direito extremamente injusto. (PONTES DE MIRANDA, F. C. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: RT, 1967, v. 1, p. 49.

29 LLOSA, Mario Vargas. A verdade das mentiras. São Paulo: Arx, 2004, p. 214.30 “These two principles – that every human life is of intrinsic potential value and that everyone has a

responsibility for realizing that value in his own life – together define the basis and conditions of humanity dignity.” (DWORKIN, op. cit., p. 10).

31 Ainda a propósito da ditadura do proletariado, Giovani Sartori observa que não existe ditadura provi-sória. Isso porque “como obrigar uma ditadura a cumprir uma promessa? Em particular, como obrigá-la a cumprir a promessa de se destruir a si mesma? A resposta é absolutamente simples: não há como. Uma ditadura é, por definição, um Estado sem controle; controla as pessoas que lhe são submetidas sem ser controlado por elas. Portanto, é evidente que no que diz respeito à ditadura, não há possibilidade de se cumprirem promessas; toda promessa é vazia ex hypothesi. [...] Prometer uma liberdade que deve passar primeiro pelo túnel de uma ditadura é como queimar o dinheiro necessário para o pagamento a ser feito amanhã.” (SARTORI, op. cit., v. 2, p. 279)

32 Ibid., p. 102-103.33 DWORKIN, op. cit., p. 11; Cf. COMPARATO, op. cit., p. 555.

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Notas sobre democracia, liberdade e igualdade

34 Ibid., p. 22, 133 e passim.35 Por exemplo: se o cidadão acredita em Deus e é contrário ao casamento entre pessoas do mesmo sexo,

deve ser contrário também às ações afirmativas, às garantias processuais dos suspeitos de ligação com o terrorismo etc.

36 Em suas palavras “If we aim to be a partnership democracy, on the other hand, the degraded state of our political argument does count as a serious defect in our democracy because mutual attention and respect are the essence of partnership. We do not treat someone with whom we disagree as a partner – we treat him as an enemy or at best as an obstacle – when we make no effort either to understand the force of his contrary views or to develop our own opinions in a way that makes them responsive to his. The partnership model so described (Dworkin fala aqui do modelo por ele proposto) seems unattainable now because it is difficult to see how Americans on rival sides of the supposed culture wars could come to treat each other with mutual respect and attention.” (Op. cit., p. 133).

37 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. São Paulo: Campus, 2000, p. 408-409.

38 Nesse sentido: MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Interesse público e direitos do contribuinte. São Paulo: Dialética, 2007, passim.

39 COMPARATO, op. cit., p. 638.40 Ibid., p. 640.41 SARTORI, op. cit., v. 2, p. 281.42 Ibid., p. 282-283.

NOTES ON DEMOCRACY, FREEDOM AND EQUALITY

ABSTRACT

This paper examines some characteristics of democracy in Ancient Greece and of later political experiences, in order to verify the positive features of contemporary democratic models, the points to be changed and the ones requiring revision, taking into account the imperfections pointed out by some of the fierce critics of democracy.

Keywords: Democracy. Freedom. Equality. Constitution. Safety.

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Análise dos Aspectos civis e constitucionAis do Abuso de direito

Ivo César Barreto de Carvalho*

1 Considerações preliminares. 2 Noção histórica. 2.1 Prece-dentes teóricos. 2.2 Origem e evolução da teoria no Direito alienígena. 3 Introdução da teoria no ordenamento jurídico pá-trio. 3.1 Conceito e natureza jurídica 3.2 Análise dos requisitos legais para a configuração do abuso de direito no Código Civil de 2002. 3.3 Outros dispositivos caracterizadores do abuso de direito no Código Civil de 2002. 3.4 Responsabilidade. 3.5 Jurisprudência. 4 Conclusões.

RESUMOO presente artigo trata da teoria do abuso de direito, atualmente positivada no artigo 187 do Código Civil Brasileiro como ato ilícito, mais especificamente de sua natureza jurídica, hipóte-ses legais e responsabilidade. Igualmente, será apresentada a evolução do instituto no Direito alienígena e no ordenamento jurídico pátrio.

Palavras-Chave: Ato ilícito. Abuso de direito. Fins econômicos. Fins sociais. Boa-fé. Bons costumes.

1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARESVivemos numa época em que as pessoas estão mais cônscias de seus direi-

tos. Muito mais do que quando era criança ou na época de meus pais. Grande parte dos trabalhadores tem noção de seus direitos trabalhistas; a maioria dos cidadãos já pleiteia, imediatamente, seus direitos de consumidor quando do não-cumprimento de uma relação jurídica consumerista. Até os presos têm conhecimento suficiente do Direito e processo penais.

Por um lado, isto é muito bom, pois traduz uma sociedade mais politiza-da. Por outro, vemos excessos. As pessoas, hodiernamente, só pensam em seus direitos. A conscientização do papel democrático do cidadão, em parte ajudado pela mídia brasileira, vem solucionando um problema, mas causando um outro: a ausência de conhecimento dos deveres dos cidadãos.

Desta feita, percebo estar-se criando uma legião de “quase-cidadãos”, que estão conscientes de uma boa parte de seus direitos, mas que desconhecem por * Professor do Curso de Direito da Faculdade Christus. Mestre em Direito pela Universidade Federal do

Ceará. Especialista em Direito Contratual pela PUC-SP. Advogado licenciado (OAB-CE). Assessor de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.

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completo ou quase inteiramente seus deveres. Para alguns, tal fenômeno poderia ser encarado como um mal menor, sanável com o tempo ou (in)formação ade-quada. Visto de outro ângulo, compreendo tratar-se de um problema quando o cidadão tem noção apenas de seu direito e, ao exercê-lo, excede os limites para tal e acaba por praticar um ato ilícito.

2 NOÇÃO HISTÓRICAA idéia de abuso de direito acompanha o ser humano desde os primór-

dios, pois ínsita está a noção de Justiça. Todo e qualquer ordenamento jurídico, ocidental ou oriental, hoje ou ontem, possui uma ou mais regras, implícitas ou explícitas, abordando o ideal de justiça e, consequentemente, o exercício abusivo de um direito. A questão que se coloca é a interpretação do que é um direito exercido abusivamente e quais são esses limites.

2.1 Precedentes teóricosComo já acentuado, a teoria do abuso de direito tem sua base de formação

no ideal de justiça. O Direito romano já trazia esses ideais, a despeito de não ter construído a teoria ora estudada. Vladimir Mucury Cardoso retrata bem o tratamento dos direitos subjetivos pelos romanos:

Esses limites ao exercício do direito, todavia, não chegavam a configurar a figura do abuso do direito. Se por um lado os romanos já haviam percebido que os direitos subjetivos não poderiam ser exercidos de forma a contrariar as suas finalidades próprias, nem, muito menos, com o intuito de causar dano a outrem, por outro lado não formularam uma teoria do abuso do direito. A noção não consistia num princípio geral, porém, era praticada em vista à necessidade de “reajustamento da ordem jurídica aos casos engendrados pela vida social”.1

Já na Idade Média, surge a teoria da aemulatio, que ainda não configura-ria o abuso de direito, como atualmente é conhecido. O citado autor também descreve com precisão esta teoria:

Tratava-se, pois, da utilização do direito subjetivo com o único fim de provocar um prejuízo, uma emulação a terceiro, sem que o titular obtivesse qualquer proveito do seu ato. Destacavam-se, na configuração do ato emulativo, esses dois elementos: o intuito de lesar e a ausência de proveito para o sujeito que praticara a ação.2

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Infere-se, claramente, desta teoria, que a finalidade era elemento essen-cial para sua configuração. Um ato praticado por alguém que tivesse o fim de causar um prejuízo a outrem e sem que houvesse qualquer proveito por parte do primeiro consistia num ato emulativo. Da teoria do aemulatio para a teoria do abuso de direito, contudo, ainda havia um percurso a caminhar.

2.2 Origem e evolução da teoria no Direito alienígenaA teoria do abuso de direito tem origem pretoriana, nascida a partir da

necessidade dos magistrados solucionarem conflitos entre pessoas que aparen-temente exerciam regularmente seus direitos.

O primeiro precedente jurisprudencial conhecido na história ocorreu na França, no século XIX. Trata-se do famoso caso Clement Bayard, julgado por um tribunal francês. Assim relatam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:3 “O proprietário de um imóvel, sem razão justificável, construiu altas hastes pontiagudas para prejudicar o vôo de aeronaves no terreno vizinho. Cuidava-se de nítido abuso de direito de propriedade”. No caso em apreço, resta patente que o abuso configurado cingiu-se ao exercício do titular do direito de propriedade que excedeu os limites legais e prejudicou o titular de outro direito.

A expressão “abuso de direito” fora criada por Laurent, pautado na jurisprudência francesa que se formava sobre o tema. Os tribunais da França, embasados no Código de Napoleão, arraigado fortemente nos ideais liberalistas dominantes, optaram por tutelar o titular do direito prejudicado ao invés do titular do direito excedido.4

A controversa teoria fez com que surgissem aqueles que negavam a sua existência e aplicabilidade, como Planiol, afirmando que a mesma era uma con-tradição em termos, pois “a idéia de abuso já é a negação do direito, enquanto o conceito de direito repele a noção de abuso.”5

Por outro lado, outros a defendiam com veemência (Ripert, Josserand e Saleilles). De acordo com Ripert, a teoria do abuso de direito tinha como justi-ficativa a proteção do direito subjetivo contra ato praticado com a intenção de prejudicar. Era a chamada teoria subjetivista, pois, como o próprio nome enseja, recaía sobre o sujeito, sua motivação.

Vigoraram, no entanto, as teorias finalistas de Josserand e Saleilles, cons-truída pelo primeiro e aperfeiçoada pelo segundo. Parte-se da premissa de que o direito subjetivo e o abuso desse direito são categorias que devem ser analisadas distintamente. Isto porque se considerou o abuso como um limite interno do direito subjetivo. A noção que complementa esta premissa é a da relatividade dos direitos. Josserand afastou-se da idéia absolutista do direito, chegando à conclusão de que os direitos são relativos e assim devem ser interpretados quan-do num eventual conflito. Em suma, os direitos devem ser protegidos quando

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exercidos de acordo com sua finalidade.

A contribuição de Salleiles cingiu-se a definir tais finalidades, quando concebeu que o abuso do direito se dava no desvio da destinação econômica e social. É o que hoje chamamos de exercício anormal de um direito.6

Ainda encontramos algumas referências legislativas ao abuso de direito no direito alemão (Código Civil, § 226), no direito austríaco (art. 1.295 do Código Civil austríaco de 1916)7 e no direito suíço (Código Civil, art. 2°), preceituando, timidamente, este último: “O abuso manifesto de um direito não é protegido pela lei”.8 O Código civil italiano não adotou a teoria do abuso de direito, mas proíbe expressamente os atos emulativos. O português adota a concepção objetiva da teoria do abuso de direito, considerando-o ilegítimo quando houver desvio de sua função econômica e social ou desprovido de boa-fé.9

Traçada, de modo sucinto, a evolução da teoria no direito alienígena, passemos a analisá-la no ordenamento jurídico pátrio.

3 INTRODUÇÃO DA TEORIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

O Código Civil brasileiro de 1916 não albergou nenhuma regra explícita sobre o abuso de direito. Há quem defenda a sua existência no revogado artigo 16010, numa interpretação a contrario sensu; outros entendem que sua configu-ração somente se efetivou na codificação vigente.11

Caio Mário da Silva Pereira visualiza a materialização e aplicação da te-oria do abuso de direito no art. 554 do Código Civil de 1916 (repressão ao uso nocivo da propriedade), no art. 20 do Decreto-lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945 (a revogada Lei de Falências, onde se caracterizava o pedido abusivo de falência) e no art. 17 do Código de Processo Civil (trata da litigância de má-fé, que nada mais é do que o exercício abusivo de uma demanda).12

Sílvio Venosa afirma que existem disposições em nosso ordenamento jurídico que já despontavam a teoria do abuso de direito, tais como o art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil13 e os arts. 76, 100 e 160 do CC/1916.14

3.1 Conceito e natureza jurídicaO Código Civil de 2002 dispõe sobre o conceito de abuso de direito no

art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

Antes de aprofundar as hipóteses legais do abuso de direito, mister analisar o conceito e a natureza jurídica do instituto.

Silvio Venosa assevera que a doutrina tem tido certa dificuldade no es-

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tudo do abuso de direito, notadamente para situá-lo numa categoria jurídica. Há quem entenda nem se tratar de uma categoria jurídica, mas de um simples fenômeno social, como Pedro Batista Martins. Aduz, ainda, que a teoria em liça já foi colocada como parte do estudo da responsabilidade civil, dentro da noção de culpa. O fato é que, enfim, hoje é estudada como um direito subjetivo, cuja ocorrência acarretará uma responsabilidade civil.15

O mencionado jurista paulista define, sucintamente, o abuso de direito:

No abuso de direito, pois, sob a máscara de ato legítimo esconde-se uma ilegalidade. Trata-se de ato jurídico aparentemente lícito, mas que, levado a efeito sem a devida regularidade, ocasiona resultado tido como ilícito.16

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery asseveram a distin-ção entre o ato ilícito do artigo 186 do Código Civil e o do artigo seguinte do mesmo diploma legal:

7. Abuso de direito. Ilícito objetivo. A norma comentada imputa ao ato abusivo a natureza de ilícito. Tendo em vista suas próprias peculiaridades, não se assemelha ao ato ilícito do CC 186, assim considerado pela lei para fins de reparação do dano por ele causado. O ato abusivo pode, até, não causar dano e nem por isso deixa de ser abusivo. A ilicitude do ato cometido com abuso de direito é de natureza objetiva, aferível independentemente de dolo ou culpa. 17

Gustavo Tepedino entende que o abuso de direito deve ser considerado como um ato ilícito lato sensu, “no sentido de contrariedade do direito como um todo, e não como uma identificação entre a etiologia do ato ilícito e a do ato abusivo, que são claramente diversas”.18

Para César Fiúza, é preciso distinguir o ato intrinsecamente ilícito do ato abusivo, mormente diante de suas diferentes conseqüências. Bastante esclare-cedoras são as lições do jurista mineiro:

Em alguns casos, o ato intrinsecamente ilícito pode derivar do exercício de um direito, que ultrapassa seus limites formais. Por exemplo, se uma pessoa dirige em alta velocidade, estará pratican-do ato intrinsecamente ilícito. Ao exercer seu direito de dirigir, violou o limite formal de velocidade. Não se trata de abuso de direito, ilícito funcional, uma vez que o ato é formalmente antijurí-dico, não apenas funcionalmente. Ninguém tem o direito legítimo de dirigir acima da velocidade razoável. Mas, ao contrário, se uma

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pessoa, propositadamente, dirige em velocidade extremamente baixa, com o objetivo de travar o trânsito, estará cometendo abuso de direito. Na aparência, o ato é perfeito, legítimo. Formalmente, essa pessoa não está cometendo nenhuma antijuridicidade. Ocorre que, do ponto de vista valorativo, funcional, está ultrapassando os limites impostos pela boa-fé.As conseqüências do ato abusivo podem ser diferentes das do ato intrinsecamente ilícito.A prática do ato intrinsecamente ilícito, como vimos acima, gera, como regra, o dever de indenizar o dano causado. Já o abuso de direito, pode gerar a obrigação de indenizar, como pode gerar outra espécie de sanção. Tudo dependerá do caso concreto.19

Felipe Peixoto Braga Netto, partindo da premissa da relatividade dos direi-tos, explica a natureza jurídica do ato abusivo como um ato ilícito funcional:

Nesse panorama, que é, indiscutivelmente, o da realidade atual, assume proporções insustentáveis a postulação de direitos que se realizariam ao abrigo de qualquer flexibilização, de maneira rígida e arbitrária. Ao revés, situa-se a presente espécie dentre aqueles permitidos e até estimulados pelo sistema, mas que, dada a desvirtuação existente no seu exercício, são reputados ilícitos funcionais, porquanto ter direito não significa poder exercê-lo caprichosamente, ou de forma anti-social.No direito civil é ilícito o ato cujo resultado funcional seja distorcido. Se há desvio funcional no exercício, ainda que esse exercício seja permitido pelo sistema, o ato é ilícito, mercê da repulsa do direito moderno pela utilização abusivo e imoderada dos direitos.Não importa a razão jurídica de atuar. Fundamentalmente, o que é vedado é o agir desarrazoado, desviado de toda consideração social. O direito moderno repudia a utilização de uma faculdade jurídica em dissonância com sua função social. Não basta, em termos estruturais, ter direito; é fundamental que seu exercício se dê em limites socialmente adequados. 20

Partindo do velho brocardo romano neminem laedit qui suo jure utitur (ou seja, não causa dano a outrem quem utiliza um seu direito), Sílvio Rodri-gues afirma que tal verdade outrora incontestável não mais se aplica, “pois a utilização de um direito só não constituirá ato ilícito se o seu titular o exercer regularmente. É o que proclama a lei. Daí decorre que, se o seu exercício foi irregular, há iliceidade”.21

Diante de todas as correntes expostas, entendo que a máxima romana não mais tem aplicabilidade. Corroboro as lições de Silvio Rodrigues no sentido de que a noção tradicional do ordenamento jurídico formado por conjuntos

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justapostos de direitos subjetivos dos indivíduos, hoje, está totalmente supera-do. Aquela famosa e velha “cantiga”: “o direito de uma pessoa termina quando começa o direito de outra” não possui mais qualquer sentido.

Esta visão estática do ordenamento jurídico é retrógrada e limitada. Nosso sistema é algo vivo e dinâmico, sujeito aos inúmeros fatores internos e externos (sociais, econômicos, culturais etc). O ser humano não vive isolado no mundo, mas integrado a seus pares. Desta feita, o conjunto de direitos subjetivos “pertencentes” ao indivíduo não está isolado de outro, mas nele se encontra integrado.

Há, em verdade, uma interseção dos direitos subjetivos dos indivíduos; noutros termos, há uma área ou zona de comunicação entre esses direitos. Nela, são exercidos simultaneamente os direitos dos indivíduos, sem que haja sobreposição ou imposição de um sobre o do outro.

O abuso do direito ocorre justamente quando ultrapassada esta tênue linha, nem sempre tão visível, mas de possível análise no caso concreto. Com efeito, cabe ao legislador de cada ordenamento estatal estabelecer tais limites, apontar as hipóteses legais de excesso no exercício desses direitos.

Dito isto, vejamos esses limites nas hipóteses legais do abuso de direito no âmbito do diploma civil pátrio vigente.

3.2 Análise dos requisitos legais para configuração do abuso de direito no Có-digo Civil de 2002

Emerge da leitura do artigo 187 da codificação civil brasileira o critério finalístico a que dera o legislador na caracterização do abuso de direito. O exercício dos direitos subjetivos é limitado por certas finalidades e o excesso manifesto delas é considerado abuso e, por conseguinte, ato ilícito.

O primeiro requisito legal de caracterização de um ato ilícito pelo exer-cício abusivo de um direito é a da violação aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social. O que é fim econômico e social?

Em verdade, não é fácil a caracterização de expressão tão aberta. Para alguns juristas, tal expressão poderia se caracterizar como conceito jurídico indeterminado ou cláusula aberta, como preferem outros. Ora, mas o direito não pode se compadecer a respostas lacônicas ou inexpressivas. Analisemos, então.

Nem todo exercício de um direito é voltado para uma finalidade econô-mica. Por certo que não, veja o caso dos direitos humanos e da personalidade.

No entanto, uma gama considerável de direitos possui um conteúdo patrimonial, ou seja, pode ser avaliado pecuniariamente. Desta feita, por exemplo, existem os direitos de propriedade, cuja relação jurídica tem como objeto um bem móvel ou imóvel, suscetível de apropriação pela pessoa e de

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Análise dos aspectos civis e constitucionais do abuso de direito

valoração econômica. A propriedade é um direito real, protegido pelo ordena-mento jurídico brasileiro, e possui um conteúdo patrimonial. Seu exercício está voltado, assim, a uma finalidade econômica (aquisição de bem imóvel para o patrimônio e acréscimo de riqueza, fomento do mercado imobiliário, proteção da propriedade privada etc.), desde que atendidos os limites do §1° do artigo 1.228 do Código Civil.

Tal finalidade é, inclusive, protegida no texto constitucional como um direito individual fundamental (art. 5°, caput e inciso XXII) e como princípio da ordem econômica (art. 170, II).

Com certo atraso o Código Civil Brasileiro incorporou o espírito social que já albergava a Carta Política de 1988. Ao contrário da codificação anterior, a nova feição do direito civil positivado trouxe a proteção aos valores sociais e o tornou princípio fundante do novel diploma.

O princípio da socialidade informa, precisamente, a finalidade social como limite ao exercício de um direito e para configuração do abuso. Em que consiste, então, um fim social?

O exercício dos direitos subjetivos não pode ser um fim em si mesmo. Todo direito subjetivo, na medida que as pessoas não existem isoladas na sociedade, não deve ser voltado apenas para o próprio titular, para sua própria comodidade em detrimento dos demais. Excede os limites legais o titular de um direito que ao exercer um direito subjetivo que lhe pertence pratica um ato contrário a uma finalidade social.

Seguindo os mesmos exemplos já demonstrados, notadamente ao do direito de propriedade, a visão tradicional deste direito tido como o supra sumo da individualidade, resta hoje modificada. O exercício do direito de propriedade não pode estar dissonante a um fim social. Deve tal direito ser exercido em prol do seu titular, desde que não viole direitos dos demais.

O fim social, igualmente, consiste em nova diretriz da nossa ordem constitucional, conforme se observa da leitura do art. 5°, XXIII, e 170, III, da Carta Magna de 1988. No âmbito da legislação infraconstitucional, o Código Civil de 2002 também insere o princípio da socialidade na interpretação dos contratos (art. 421) e da propriedade (art. 1.228, §1°).

Maria Helena Diniz explica com propriedade os limites impostos pelo fim econômico e social:

Como o direito deve ser usado de forma que atenda ao interesse coletivo, logo haverá ato abusivo, revestido de iliceidade de seu titular se ele o utilizar em desacordo com sua finalidade social. Assim, se alguém exercer direito, praticando-o com uma finalidade contrária a seu objetivo econômico ou social, estará agindo abusi-vamente. Josserand explica-nos que o abuso pode ser constituído

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pelo caráter antieconômico do ato praticado. O juiz deverá pes-quisar o móvel visado pelo agente, a direção em que encaminhou seu direito e o uso que dele fez. Se essa direção e esse uso forem incompatíveis com a instituição, o ato será abusivo, tornando-se, então, produto de responsabilidade. Haverá, portanto, abuso de direito se o agente, ao agir dentro dos limites legais, deixar de levar em conta a finalidade social e econômica do direito subjetivo e, ao usá-lo desconsideradamente, prejudicar alguém. Não há violação dos limites objetivos da norma, mas tão-somente um desvio aos fins socioeconômicos a que ela visa atingir. P. ex.: se A, credor de B, encontrando-se este doente e endividado, ameaça a filha do devedor com o requerimento judicial de falência do pai, se ela não se casar com ele, está exercendo anormalmente seu direito, pois a cominação do requerimento da falência não visa obter o pagamento o débito, mas sim extorquir da filha do devedor o con-sentimento de casar, o que o art. 153 do Código Civil considera como coação sobre o declarante.22

A segunda hipótese legal para configuração do abuso de direito é a transgressão aos limites da boa-fé. O princípio da boa-fé está realmente entra-nhado em todo o Código Civil de 2002. E não podia ser diferente, uma vez que constitui este corolário do princípio da eticidade, uma das pilastras do novo diploma civil.

A boa-fé é estudada como uma cláusula aberta, sujeita à análise do intér-prete e aplicador da lei ao caso concreto. Cabe ao magistrado discernir, de modo ético e com bom senso, qual norma a ser aplicada na situação sub judice.

No âmbito dos contratos, a boa-fé consiste em uma diretriz interpretativa dos negócios jurídicos (art. 113, CC). A conduta baseada nos princípios da probidade e da boa-fé é imposta aos contratantes, antes, durante e depois da conclusão do contrato (art. 422, CC).

Humberto Theodoro Júnior aduz que o princípio da boa-fé, no caso do artigo 187, configurando-se o abuso de direito, pode conduzir à nulidade (total ou parcial) do contrato, sem prejuízo do dano sofrido pela vítima.23

Pautar-se com boa-fé é praticar uma conduta honesta, proba, correta e leal. Quem age de má-fé o faz com intuito de prejudicar outrem. Ao contrário, a conduta pautada sempre no interesse de não prejudicar terceiros é uma prática da boa-fé.

O terceiro requisito legal consiste nos bons costumes. Em tese, diferen-ciam-se a boa-fé e os bons costumes. Estes são o conjunto de atos e condutas praticados de forma reiterada por uma determinada sociedade. Os costumes são fontes do direito.

No passado, já tiveram bastante peso como fonte de interpretação ju-rídica, notadamente na seara do direito comercial e do direito internacional.

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Análise dos aspectos civis e constitucionais do abuso de direito

Hoje, no entanto, apesar de ainda serem considerados como fontes jurídicas, não possuem a carga valorativa de outrora.

Desta feita, entendemos que, no artigo 187 do Código Civil de 2002, os bons costumes complementam a idéia da boa-fé como limite ao abuso de direi-to. Agir conforme os bons costumes de uma dada região ou localidade é agir de acordo com a boa-fé. São idéias que, via de regra, devem ser interpretadas conjuntamente, não merecendo maiores digressões a respeito.

3.3 ResponsabilidadeArnaldo Rizzardo entende que o artigo 187 configura um caso de res-

ponsabilidade subjetiva. No entanto, ele alerta sobre os riscos que se corre na ampliação dos casos de responsabilidade objetiva trazidos pelo Código Civil de 2002 e tão defendidos pela doutrina e jurisprudência pátrias.24

Maria Helena Diniz também assevera que os casos de responsabilidade civil resultantes do exercício abusivo de direito subjetivo devem possuir três critérios:

a) intenção de lesar outrem, ou seja, no exercício de um direito com o intuito exclusivo de prejudicar, que deverá ser provado por quem o alega; b) ausência de interesse sério e legítimo; c) exercício do direito fora de sua finalidade econômica e social (CC, art. 187). 25

Silvio Venosa entende que a configuração do abuso de direito prescinde da noção de culpa. O art. 187 do CC/2002, segundo o jurista, adota o critério objetivo-finalístico, ou seja, a culpa não é essencial, mas acidental, para a ca-racterização do ato abusivo. Em suma, a responsabilidade civil por ato abusivo prescinde da caracterização do elemento culpa.26

Em verdade, não há dúvidas quanto à natureza objetiva da responsabili-dade decorrente do abuso de direito, tanto que o Conselho das Justiça Federal, no âmbito da I Jornada de Direito Civil, concluiu pelo Enunciado n. 37: “A responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.

A despeito de não ter caráter vinculante e nem mesmo ser tido como fonte jurisprudencial, o enunciado supra é extremamente útil na interpretação dos dispositivos insertos no Código Civil de 2002. Percebe-se, in casu, que a responsabilidade civil quando da ocorrência do abuso de direito é objetiva, prescinde assim da comprovação da culpa. O parâmetro finalístico cinge-se aos limites legais analisados no item anterior.

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3.4 Outros dispositivos caracterizadores do abuso do direito no Código Civil de 2002

Além do disposto no art. 187 do novel diploma civil, Maria Helena Diniz aponta outros dispositivos do mesmo código contrários ao exercício anormal de um direito, a saber27: (i) o artigo 153, ao prescrever que “não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito...”, logo, a contrário senso, é anormal e vicia o negócio jurídico quando o exercício do direito é anormal; (ii) o art. 188 arrola como uma das causas excludentes de ilicitude os atos pra-ticados no exercício regular de um direito reconhecido, também dando ensejo a uma interpretação a contrario sensu; (iii) o art. 939 estabelece sanções para o credor que extrapola os limites da cobrança de seu crédito; (iv) o art. 1277 trata do uso anormal da propriedade, que prejudica a segurança, o sossego e a saúde do vizinho; (v) o art. 1289 estabelece regra para o exercício normal e regular das águas por proprietários de prédios superiores em relação aos do prédios inferiores.

Carlos Roberto Gonçalves, por sua vez, afirma que o artigo 5° da Lei de Introdução ao Código Civil caracteriza a ilicitude de ato abusivo quando “o titular do direito se desvia da finalidade social para a qual o direito subjetivo foi concedido”.28 Além dos já citados por Maria Helena Diniz, o Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo aponta ainda os artigos 1.637 e 1.638 (que prevêem sanções contra abusos no exercício do poder familiar).

3.5 JurisprudênciaConforme já apontado, a aplicação da teoria do abuso de direito ocorre nas

mais diversas searas do direito civil. Analisemos, neste ponto, o entendimento jurisprudencial sobre a matéria.

No que tange a abuso de direito nos contratos, assim se manifestam os tribunais superiores:

Age com abuso de direito e viola a boa-fé o banco que se cobra, invocando cláusula contratual constante de financiamento, lançando mão do numerário depositado pelo correntista em conta destinada ao pagamento dos salários de seus empregados, cujo numerário teria sido obtido junto ao BNDES. A cláusula que permite esse procedimento é mais abusiva do que a cláusula mandato, pois, enquanto esta autoriza apenas a constituição do título, aquela permite a cobrança pelos próprios meios do credor, nos valores e no momento por ele escolhidos.29

Ao retomante, que tenha mais de um prédio alugado, cabe optar entre eles, salvo abuso de direito.30

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Análise dos aspectos civis e constitucionais do abuso de direito

Quanto ao abuso de direito em matéria cambial, seguem os escólios pretorianos:

Não caracteriza exercício normal de um direito compelir uma pessoa a assinar cheque de valor fixado aleatoriamente. 31

Há abuso de direito quando se saca letra de câmbio, sem autoriza-ção legal ou por escrito, para compelir o devedor a um pagamento que ele mesmo tem por indevido, pelo só temor dos desastrosos efeitos do protesto, com a finalidade de receber comissão de corretagem.32

Constitui abuso de direito sacar letra de câmbio e levá-la a protesto sem estar autorizado por lei ou contrato.33

Saque de letra de câmbio, sem previsão contida no contrato, para o recebimento de honorários de advogado caracteriza abuso de direito.34

Configuram abuso de direito o saque e a tentativa de protesto de letra de câmbio, sem que exista direito cambial a ser resguar-dado.35

Sobre a responsabilidade civil por ofensa à honra praticada pela imprensa, os tribunais assim vêm entendendo:

Responsabilidade civil – Imprensa (publicação de notícia ofensiva) – Ofensa à honra – Dano moral – Valor da indenização – Controle pelo STJ. 1 – Quem pratica pela imprensa abuso no seu exercício responde pelo prejuízo que causa. Violado direito, ou causado prejuízo, impõe-se seja reparado o dano. Caso de reparação de dano moral, inexistindo, nesse ponto, ofensa a texto de lei federal. 2 – Em não sendo mais aplicável a indenização a que se refere a Lei n° 5.250/67, deve o juiz no entanto quantificá-la modera-damente.3 – Caso em que a indenização foi moderadamente arbitrada.4 – Recurso especial conhecido pelo dissídio, mas improvido.36

O dano moral também pode ser configurado pelo exercício abusivo do di-reito do credor ao remeter o nome do devedor para cadastro de inadimplentes:

Dano moral – Cambial – Nota promissória – Remessa do nome do devedor avalista ao Serasa – Prescrição cambial – Desapare-cimento da obrigação, sendo desatendida a notificação ao banco credor para cancelamento da inscrição no cadastro dos devedores – Abuso de direito configurado – Indenização devida quanto aos

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danos morais – Afastada, por não comprovados, a reparação do dano material – Obrigação de fazer cumulada com indenizatória – Recurso parcialmente provido para este fim.37

Se o contrato encontra-se em discussão, nenhuma razão de direito ou de fato permite dar-se à palavra do banco, credor, maior valor do que à palavra do cliente, devedor. Tanto o banco pode estar certo, eventualmente, como, também eventualmente, pode estar certo o cliente – e, em sendo assim, é absolutamente inadmissí-vel certificar-se o cliente como inadimplente, não cumpridor do contrato, se este ainda se encontra em discussão. Se, e quando, houver o trânsito em julgado da indigitada ação em que se dis-cute o contrato assinado pelas partes, aí sim poderá a agravante legitimar-se a incluir o nome do devedor como inadimplente, pois só aí terá o Judiciário decidido ter ocorrido efetivamente a inadimplência. E não é “normal”, em absoluto, acabar com crédito de alguém que ainda está discutindo os termos do que contratou, o que implicaria admitir inaceitável pressão social e psicológica para forçar o devedor à desistência da demanda proposta.38

Também ocorre o chamado abuso de direito no âmbito do direito socie-tário, verbis:

O juiz pode julgar ineficaz a personificação societária, sempre que for usada com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar terceiros.39

Como é possível observar, o abuso de direito pode ocorrer pelo exercício, fora dos limites legais, de um direito seja ele ligado à seara contratual, obriga-cional, societária, cambial, dentre outras.

4 CONCLUSÕESO abuso de direito sofreu uma evolução ao longo dos tempos, partindo da

premissa inicial dos atos emulativos até a configuração precisa de seu conceito nos ordenamentos jurídicos de diversos países, dentro de certos limites legais.

No Brasil, não houve a positivação expressa da citada teoria no âmbito da codificação civilista revogada, mas em diversas passagens do Código de 1916 o legislador trouxe parâmetros implícitos de aplicação e caracterização do abuso de direito.

Somente com o Código Civil de 2002, em seu artigo 187, preocupou-se o legislador infraconstitucional em explicitar o abuso de direito como ato ilícito. Não se configura como o mesmo ato ilícito previsto no artigo 186, mas possui

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Análise dos aspectos civis e constitucionais do abuso de direito

uma natureza distinta, como um ato ilícito funcional (nos dizeres de Felipe Peixoto Braga Netto), sendo uma espécie do ato ilícito lato sensu (nas lições de Gustavo Tepedino).

A configuração do exercício abusivo de um direito deve passar pela análise de seus requisitos legais, quais sejam: fim econômico e social, bons costumes e boa-fé.

A interpretação do ato abusivo deve voltar-se para o critério objetivo-finalístico. Noutros termos, a responsabilidade decorrente do ato abusivo é objetiva, independente de culpa, sendo o excesso configurado pelos limites impostos legalmente, já mencionados.

Por fim, percebe-se claramente que os tribunais pátrios já vêm enfren-tando e acolhendo a tese do abuso de direito, antes mesmo de sua expressa positivação no Código Civil de 2002, o que reflete, de certo modo, a cultura de alguns magistrados desarraigados de ideais exclusivamente positivistas e de interpretações literais.

5 REFERÊNCIAS

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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1.

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FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 8. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 1.

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NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. São Paulo: RT, 2003.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 20. ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 1.

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RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. 34. ed. São Paulo: Saraiva,

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Ivo César Barreto de Carvalho

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TEPEDINO, Gustavo et al. Código Civil interpretado conforme a Constitui-ção da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v. 1.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

1 CARDOSO, Vladimir Mucury. O abuso do direito na perspectiva civil-constitucional. In MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Renovar, 2006, p. 63.

2 Ibid,. p. 64.3 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil: parte geral.

5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 1, p. 467.4 CARDOSO, op. cit., p. 64-65. O autor retrata inúmeros casos interessantes: a) em 1808, o dono de uma

oficina foi condenado pelas evaporações desagradáveis que provocava na produção de chapéus; b) em 1853, determinou-se a destruição de uma chaminé construída com o único intuito de fazer sombra sobre o terreno do vizinho; c) em 1915, a Corte de Cassação condenou o proprietário de um terreno que, sendo vizinho a um campo de pouso de dirigíveis, erguera um dispositivo dotado de espinhos de metal, os quais se destinavam a danificar os balões que sobrevoavam a sua propriedade.

5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 1, p. 671.

6 CARDOSO, op. cit., p. 70-74.7 O art. 226 do Código Civil alemão preceitua: “O exercício de um direito será permitido, quando não

tiver outro fim que não o de causar prejuízo a outrem.” (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 320).

8 PEREIRA, op. cit., p. 674.9 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 363.10 “Art. 160. Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de

um direito reconhecido; II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, a fim de remover perigo imi-nente (arts. 1.519 e 1.520). Parágrafo único. Neste último caso, o ato será legítimo, somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”

11 Clóvis Beviláqua, Sílvio Venosa e Sílvio Rodrigues defendem que o artigo 160 do CC/1916 já albergava a teoria do abuso de direito. Caio Mário, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona entendem não ter havido a consagração explícita de tal teoria na codificação anterior.

12 PEREIRA, op. cit., p. 674.13 “Art. 5°, LICC: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências

sociais do bem comum”. Segundo este dispositivo legal, o magistrado deve decidir segundo o critério finalístico.

14 Art. 76, CC/1916: “Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico, ou moral”. Logo, consiste em abuso de direito a propositura de demanda temerária.

Art. 100, CC/1916: “Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial”. Este último artigo corresponde ao atual art. 153 do CC/2002.

O art. 160, CC/1916 já foi transcrito na nota n. 09, supra.15 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 562.16 Ibid., p. 562.17 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil anotado e legislação extravagante.

2. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 255.18 TEPEDINO, Gustavo et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de

Janeiro: Renovar, 2004, v. 1, p. 342.19 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 8. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 244.20 BRAGRA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 122-123.

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Análise dos aspectos civis e constitucionais do abuso de direito

21 RODRIGUES, op. cit., p. 319.22 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 7, p. 557.23 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004,

p. 23.24 RIZZARDO, Arnaldo. Parte geral do Código Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 574-577.25 DINIZ, op. cit., p. 566. 26 VENOSA, op. cit., p. 568.27 DINIZ, op. cit., p. 563-564.28 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p.

460.29 STJ, RE 124.527/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, 4. T., DJU de 04.05.2000.30 Supremo Tribunal Federal, Súmula 409.31 RT 587/137.32 RJTJRS 28/373.33 RJTJRS 43/374.34 RJTJRS 43/345.35 RJTJRS 29/298.36 STJ, RE . 53964/RJ (9400278861), Rel. Min. Nilson Naves, 3.T., DJU de 15.06.98.37 1° TACSP – Ap. Cível 724606-3/00, 8ª Câmara Extraordinária, Rel. Costa Telles, 05.11.97.38 2° Tribunal de Alçada Cível de São Paulo, 10ª Câmara, Agravo n°.549.613-0/6, Rel. Soares Levada, v.u.39 RSTJ 140/396.

A N A S S E S S M E N T O F C I V I L A N D CONSTITUTIONAL ASPECTS OF ABUSE OF POWER

ABSTRACT

This work examines the theory of the abuse of power, qualified as an unlawful act by Article 187 of Civil Code. The author focus on its juridical nature, the legal possibilities regarding the abuse of power and the matters concerning liability. The evolution of the abuse of power theory in foreign and Brazilian law is also presented.

Keywords: Unlawful act. Abuse of power. Economic ends. Social ends. Good faith. Good behavior.

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A cidAdAniA AmbientAl e A conscientizAção ecológicA: umA Análise críticA de umA

pesquisA de cAmpo reAlizAdA no cAmpus dom luís dA fAculdAde christus

Martasus Gonçalves Almeida*Germana parente neiva Belchior **

1 Introdução. 2 Referencial teórico. 2.1 Medidas protecionistas ambientais e a conscientização ecológica. 2.2 A educação am-biental e o princípio da solidariedade. 3 Metodologia da pesquisa. 4 Análise dos resultados. 5 Conclusão. 6 Referências.

RESUMO O artigo é resultado do grupo de estudo e de pesquisa “Meio ambiente e Direitos Humanos: desafios e perspectivas”, e resultado final do projeto de Iniciação Científica, intitulado “A cidadania ambiental como instrumento de (re)construção harmônica do binômio homem versus meio ambiente”, ambos desenvolvidos pela Faculdade Christus. Tem como objetivo geral buscar instrumentos que ocasionem a cidadania e a educação ambiental, a ponto de proporcionar um convívio harmônico e sustentável entre os homens e o meio ambiente. Os objetivos específicos consistem em aprofundar o conhecimento acerca da crise ambiental hodierna para incentivar a ética ambiental e o comprometimento, individual e coletivo, por uma cidadania ambiental viável; averiguar o nível de consciência ambiental dos que compõem os corpos docente, discente e funcional da Faculdade Christus - sede Dom Luis. As metodologias utilizadas foram bibliográfica, descritiva e exploratória, com a realização de uma pesquisa de campo na citada faculdade, por meio da aplicação de questionário estruturado. Constata-se que há a necessidade de um maior engajamento dos entrevistados com a causa ambiental, a ponto de fortalecer uma ética ambiental basificada em um dever moral de preservação do meio ambiente, como alternativa para amenizar e desacelerar a crise ambiental ora existente, e, assim, firmar um compromisso existencial com as próximas e atuais gerações.

* Graduanda em Direito. Pós-Graduanda lato sensu em Direito Constitucional pela ESMEC. Pesquisadora do Projeto de Iniciação Científica 2009/2010. Pesquisadora do Projeto Casadinho (UFC-UFSC-CNPQ). E-mail: [email protected].

** Mestra em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professora do curso de graduação em Direito pela Faculdade Christus. Pesquisadora do Projeto do Casadinho (UFC-UFSC-CNPQ). E-mail: [email protected].

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A cidadania ambiental e a conscientização ecológica: uma análise crítica de uma pesquisa de campo realizada no campus Dom Luís da Faculdade Christus

Palavras-chave: Meio ambiente. Cidadania ambiental. Socie-dade de risco. Educação ambiental participativa.

1 INTRODUÇÃOO presente artigo é oriundo de debates e discussões do grupo de estudo e

de pesquisa “Meio ambiente e Direitos Humanos: desafios e perspectivas”, e re-sultado final do projeto de Iniciação Científica, intitulado “A cidadania ambiental como instrumento de (re)construção harmônica do binômio homem versus meio ambiente”, ambos desenvolvidos pela Faculdade Christus.

O objeto geral situa-se em encontrar instrumentos para fazer que a cidadania ambiental proporcione um convívio harmônico e sustentável entre os homens e o meio ambiente, de forma a garantir uma qualidade de vida melhor para as presentes e futuras gerações.

Os objetivos específicos consistem em aprofundar o conhecimento acerca da crise ambiental hodierna para incentivar a ética ambiental e o comprometimento, individual e coletivo, por uma cidadania ambiental viável; averiguar o nível de consciência ambiental, dos que compõem o quadro docente, discente e funcional da Faculdade Christus - sede Dom Luís; realizar debates, palestras e retransmissão de vídeos ecologicamente educativos com o público alvo da pesquisa de campo.

Nessa perspectiva, a presente pesquisa busca contribuir para a formação de uma sociedade mais digna e sustentável, visando a (re)construir um melhor convívio do homem versus meio ambiente, na medida em que é mister a adoção de atitudes no âmbito da precaução e da prevenção do dano ecológico, próprio de uma sociedade de risco.

2 REFERENCIAL TEÓRICOA crise ecológica contemporânea assumiu proporções alarmantes a ponto

de ameaçar o conjunto de vida do Planeta e, em especial, a do ser humano. A sua constatação é vislumbrada por problemas fundamentalmente sociais expressos; com isso, no intuito de amenizá-la é que a conscientização e a educação ambiental se fazem necessárias.

2.1 Medidas protecionistas ambientais e a conscientização ecológicaAs mudanças climáticas que assolam o Planeta já é uma realidade indis-

cutível nas sociedades internacionais, a ponto de a crise ambiental, reflexo do desenvolvimento econômico desenfreado, percebido ao longo dos tempos, sem a preocupação com a preservação e com a manutenção do meio ambiente,1 urgir como um dos assuntos mais preocupantes e relevantes, neste século, para as so-ciedades mundiais.

O progresso da civilização hodierna, pautado na globalização e no desen-

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Martasus Gonçalves Almeida e Germana Parente Neiva Belchior

volvimento longe da proteção ambiental, gera o que Morato Leite intitula de sociedade de risco,2 no sentido de que:

É inegável que atualmente estamos vivendo uma crise ambiental, proveniente de uma sociedade de risco, deflagrada, principalmente, a partir da constatação de que as condições tecnológicas, industriais e formas de organização e gestões econômicas da sociedade estão em conflito com a qualidade de vida. Parece que esta falta de controle de qualidade de vida tem muito a ver com racionalidade do desen-volvimento econômico do Estado, que marginalizou a proteção do meio ambiente.3

Os desgastes nos ecossistemas e a escassez de matérias-primas ocorridos ao longo dos últimos séculos vêm comprometendo progressivamente a qualidade de vida das presentes gerações, e, consequentemente – com a errônea ideia de os bens naturais serem ilimitados – das futuras gerações.

Nesse esteio, a Constituição “esverdeada” de 1988, instituiu, em seu art. 225, que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”4

O constituinte originário buscou, no referido artigo, não só tratar o meio ambiente como um direito fundamental,5 mas como um dever fundamental, ao expressar “o dever de defendê-lo e preservá-lo”. Dessa forma, entende-se que é um dever geral de todos não degradar ou destruir o meio ambiente, pela imposição de condutas positivas ou negativas das atividades humanas, inclusive aquelas que constituem uso, fruição e gozo de propriedade.

No entanto, só a normatização não garante a efetiva proteção ambiental, pois não basta tão somente um Estado-parte, um Estado-membro ou uma região ter consciência ambiental e buscar-se solucionar sozinho a crise ecológica. Faz-se necessária uma participação conjunta dos poderes públicos com a sociedade.

O dever de proteger o meio ambiente, por ser um direito difuso, pressupõe atitudes conscientes do indivíduo, da coletividade e do próprio Estado, que se configura como o grande titular dos deveres fundamentais, segundo entendimento de José Casalta Nabais:

Todos os deveres fundamentais estão ao serviço de valores comuni-tários, de valores que, ainda que dirigidos directamente à realização de específicos direitos fundamentais dos próprios destinatários dos deveres ou de terceiros, são assumidos pela comunidade nacional como valores seus, constituindo assim, ao menos de um modo directo ou imediato, deveres para com a comunidade estadual. E nesta medida, o estado é o titular activo número um de todos os deveres fundamentais.6

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A cidadania ambiental e a conscientização ecológica: uma análise crítica de uma pesquisa de campo realizada no campus Dom Luís da Faculdade Christus

A sociedade acaba sendo sujeito ativo e passivo do direito-dever de garantir o meio ambiente ecologicamente equilibrado.7 Se ela tivesse a real consciência da importância da natureza e da crescente degradação ambiental, fruto do longo tempo de descaso, certamente diminuiriam os efeitos negativos ecológicos, e, consequentemente, amenizaria os ajuizamentos de tantas demandas judiciais de cunho ambiental.

2.2 A educação ambiental e o princípio da solidariedadeA crise ambiental que ora se encontra e se busca enfrentar acarreta um

comprometimento da própria sobrevivência humana. Nessa perspectiva, Boff res-salta que “a solidariedade é um valor indispensável para a própria subsistência e a todo o grupo. No segundo, não é indispensável para a subsistência, porque posso sobreviver mesmo que os outros pereçam; no entanto, o que é muito duvidoso é que possa sobreviver bem”.8

O princípio da solidariedade,9 que ocupa um dos pilares do Estado de Direito Ambiental, encontra-se na essência da cidadania, sendo indispensável para a exis-tência humana. O povo há de ser solidário naquilo que sua participação implique êxito comum. E não há maior interesse comum do que a própria sobrevivência, o que torna indispensável um meio ambiente sadio.

A promoção de uma educação ambiental para a formação de cidadãos ecologicamente conscientes deverá ser uma das soluções para o grande desafio de compatibilizar o desenvolvimento socioeconômico e cultural com a melhoria da qualidade ambiental e, consequentemente, uma sadia qualidade de vida. Conforme entendimento de Edis Milaré:

Sob o aspecto não formal, a Educação Ambiental refere-se aos aspectos e às ações de educação fora do ambiente escolar [...] Essa modalidade de educação tem grande aplicabilidade na educação popular, contribuindo para aperfeiçoar a consciência dos problemas ambientais e para buscar soluções práticas para eles a partir da própria comunidade em que o cidadão está inserido.10

A esse respeito, Germano Seara Filho afirma que “propõe-se considerar os espaços da Educação Ambiental informal nas instituições governamentais e naquelas não-governamentais, sem negar, porém, a possibilidade de se empreen-der o processo a partir de organizações não instituídas, como é o caso dos grupos espontâneos.11

É sabido que muitos locais, dentro de um mesmo país, sofrem as conse-quências pelo desrespeito à natureza, mesmo sabendo que, muitas vezes, não

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Martasus Gonçalves Almeida e Germana Parente Neiva Belchior

contribuíram diretamente para o impacto negativo no meio ambiente. É preciso, portanto, que todos estejam unidos e solidários em uma causa que demanda par-ticipação de todo povo.

O homem, na condição de cidadão (e integrante do povo), torna-se titular do direito ao ambiente equilibrado e também sujeito ativo do dever fundamental de proteger o ambiente.

O Estado de Direito Ambiental, ao revelar como valor-base a sustenta-bilidade, originada do princípio da solidariedade, exige uma nova concepção de cidadania, intitulada de cidadania ambiental, com uma participação ativa do povo na qualidade de sujeito do direito-dever do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A partir de uma eficaz participação garante-se o dever-ser perante uma norma, a qual se arraiga à vida cotidiana e torna-se um hábito cultural e espontâneo da sociedade; conhecendo-se a realidade dos problemas ameaçadores da vida, viabiliza-se a formação de juízos valorativos de responsabilidade, sustentabilidade e ética ambiental. Tais seriam as condições necessárias para se fomentar a desejada democracia ambiental.12

A sociedade, portanto, carece de uma cidadania ambiental, voltada para o princípio da solidariedade e o valor da sustentabilidade, visto a tomada da cons-ciência ambiental transformar as atitudes, os valores do homem e garantir uma redução dos danos ambientais. Há de se ressaltar que, tratando-se de meio ambien-te, não existem fronteiras para os seus malefícios. Notadamente, uma mudança de consciência de paradigma local repercutirá mundialmente.

3 METODOLOGIA DA PESQUISAA metodologia utilizada foi de natureza bibliográfica, descritiva e explo-

ratória, com levantamento de dados e informações sobre a temática, em livros e periódicos. Utilizou-se, ainda, o método dialético com a predominância indutiva, tendo em vista a busca por uma re(construção) da relação harmônica e viável do homem com o meio ambiente partir de uma conscientização pessoal, individual do ser humano para uma conscientização geral, coletiva.

A pesquisa de campo foi realizada com o quadro docente, discente e funcio-nal da Faculdade Christus, uma Instituição de Ensino Superior (IES) particular de Fortaleza, capital do Ceará, com a aplicação de um questionário estruturado com 23 (vinte e três) perguntas, a ser assinalado apenas um item por questão.

Ressalta-se que a referida IES possui duas sedes (Cocó e Dom Luís), mas a coleta dos dados só se desenvolveu na segunda, por englobar os cursos de Direito, Ciências Contábeis, Sistema de Informações e Administração.

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A cidadania ambiental e a conscientização ecológica: uma análise crítica de uma pesquisa de campo realizada no campus Dom Luís da Faculdade Christus

A aplicação dos questionários ocorreu durante 33 (trinta e três) dias, com-preendidos no período de 29 de outubro de 2009 a 30 de novembro do mesmo ano, e resultou em 156 (cento e cinquenta e seis) entrevistados, dos quais 90 (noventa) foram respondidos por alunos, 40 (quarenta) por funcionários e 26 (vintes e seis) por professores dos 4 (quatro) cursos mencionados.

O material coletado foi amplamente analisado, comparado e descrito para engrandecer e aprofundar o tema, pois, segundo Lakatos, “[..] sua finalidade é colocar o pesquisar em contato direto com tudo aquilo que foi escrito sobre de-terminado assunto, com o objetivo de permitir ao cientista o esforço paralelo na análise de suas pesquisas ou manipulação se suas informações”.13

Após a análise criteriosa do que foi coletado e verificadas as carências pertinentes ao tema, surgiram as intervenções educativas, nos três níveis de públi-cos pesquisados, por meio dos debates, das palestras e da retransmissão de vídeos ecologicamente educativos denominados projetos “Ecodocumentários e Direito” e “ECOcinema Jurídico” e a fixação de cartazes educativos para a capacitação do projeto “Passo a passo aos caminhos ecológicos”.

4 ANÁLISE DOS RESULTADOSA pesquisa de campo foi realizada com o quadro docente, discente e funcio-

nal da Faculdade Christus, sede Dom Luís, segundo informações repassadas pela direção da referida IES, no período da obtenção dos dados (ano letivo 2009.2). Esse quadro consta de aproximadamente 1.700 (mil e setecentos) alunos, 150 (cento e cinquenta) professores e 140 (cento e quarenta) funcionários.

Tem-se que do total de alunos matriculados nos cursos de Direito, Ciências Contábeis, Sistema de Informações e Administração, quanto à categoria em que se enquadra na Instituição de Ensino Superior, 58% (cinqüenta e oito por cento) dos alunos responderam as perguntas solicitadas pelas pesquisadoras.

Quanto aos demais, 25% (vinte e cinco por cento) dos funcionários e 17% (dezessete por cento) dos professores emitiram suas opiniões sobre assuntos que foram desde o conhecimento do que é desenvolvimento sustentável (88% responderam saber do que se trata) e de cidadania ambiental (79% responderam afirmativamente), até a forma como se informam sobre as mudanças climáticas e o aquecimento global.

Figura 1 – Percentual da verificação do número de participantes quanto à categoria em que se enquadram na IES Christus.

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O questionário estruturado obtém que dos participantes 60% (sessenta por cento) são do sexo feminino e 40% (quarenta por cento) do sexo masculino, sendo que a maioria dos entrevistados está entre a faixa etária de 18(dezoito) a 30(trinta) anos, como esclarece a figura a seguir:

Figura 2 – Resultado da aferição da faixa etária dos participantes da pesquisa.

Do total dos entrevistados, 64% (sessenta e quatro por cento) atribuíram a responsabilidade do aquecimento da temperatura mundial e das mudanças cli-máticas que assolam o planeta e geram os danos ambientais a fatos ocasionados por atitudes nocivas do homem associadas às alterações ambientais oriundas da própria natureza.

Figura 3 – Constata a que tipo de ação causadora o entrevistado atribui as constantes mudanças climáticas e o efeito do aquecimento global.

Há de se ressaltar que a veracidade na divulgação de pesquisas com números alarmantes sobre o aquecimento global e a crise ecológica é contestada por 33% (trinta e três por cento) dos entrevistados, em contraponto ao dobro desse número, que acredita nas informações retransmitidas pela imprensa mundial.

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A cidadania ambiental e a conscientização ecológica: uma análise crítica de uma pesquisa de campo realizada no campus Dom Luís da Faculdade Christus

Figura 4 – Corresponde à opinião dos entrevistados referente aos dados divulgados pelos meios de comu-nicação quanto ao aumento da crise ambiental global.

Destaca-se que há o interesse em amenizar a crise no meio ambiente, mas a busca de informações pertinentes à temática, como forma de garantir uma me-lhor qualidade de vida para as gerações futuras e as atuais, só é realizada de forma ocasional, visto que os 76% (setenta e seis por cento) dos entrevistados só buscam o tema ambiental quando ocorre algum fato que lhe chame a atenção.

Figura 5 – Retrata a frequência com que se buscam informações sobre a degradação ambiental.

É unânime a consciência dos questionados quanto ao fato dos riscos que as futuras gerações - de filhos, amigos, netos - estão sujeitas a vivenciarem, os quais são consequências negativas de ações maléficas ao meio ambiente, reflexo do uso inadequado e irracional dos recursos naturais existentes. Por isso, há a preocupação de 79% (setenta e nove por cento) dos entrevistados em informar e em educar os familiares e amigos da necessidade de se prevenir e de se proteger o meio ecológico.

No entanto, a procura pelo engajamento participativo direto em algum tipo de órgão ou grupo de proteção ambiental só é realizada por 2% (dois por cento) dos entrevistados, limitando-se aos demais, cerca de 98% (noventa e oito por cento) ao uso de algum tipo de material reciclado como meio de amenizar esse não comprometimento ativo das questões socioambientais.

Hodiernamente, não há mais o que questionar: os efeitos deletérios da agressão ambiental perpassam fronteiras, sendo assim, constata-se que 99% (no-venta e nove por cento) do público analisado confirma essa informação. O mesmo percentual vislumbra que só com a educação ambiental, focada na ética, é que se

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alcançará reversão e estagnação da crise ambiental global.

Mediante os resultados observados e como meio de efetivar a educação ambiental e ampliar a consciência ecológica, desenvolveram-se os projetos capacita-dores da pesquisa. O primeiro, “Ecodocumentários e Direito”, ocorreu no dia 12 de março de 2010 e consistiu na retransmissão de vídeos - na forma de documentários sobre o meio ambiente, intercalados com discussões, com o objetivo de ocasionar uma melhor compreensão da problemática ambiental e, consequentemente, focar em medidas ecologicamente educativas com os funcionários da Faculdade Christus - sede Dom Luís.

O segundo, “ECOcinema Jurídico”, realizou-se no dia 30 de abril, às 17h, no Auditório III, da Faculdade Christus, com a transmissão de um vídeo relacio-nado à temática jurídica ambiental para os alunos, com uma posterior miniaula e debate sobre os conceitos vistos e outros detectados como pouco conhecidos pelos discentes.

Por fim, o projeto “Passo a passo aos caminhos ecológicos” se desenvolveu com o repasse aos professores da Faculdade Christus (sede Dom Luís) de concei-tos, informações e dicas referentes ao meio ambiente, como forma de promover a educação ambiental e, consequentemente, a cidadania ecológica, por meio da colocação de cartazes (semanais) educativos na sala 505 (Sala dos professores) da referida faculdade.

5 CONCLUSÃOExtrai-se da pesquisa de campo realizada na IES particular de Fortaleza

que a crise ambiental que assola o Planeta já é uma realidade indiscutível nas sociedades internacionais, e, como não poderia deixar de acontecer, é um dado vislumbrado no público alvo da pesquisa (docentes, discente e funcionários da Faculdade Christus – sede Dom Luís).

A constatação do aquecimento global é uma situação que consiste em uma responsabilidade reflexiva do homem, como titular do direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e sujeito ativo do dever de protegê-lo dignamente, e da natureza, que, com o decorrer das constantes nocividades sofridas, ocasiona modificações representativas.

O descaso do ser humano em relação ao meio ambiente é observado nas respostas dos pesquisados. Todavia, já existem indícios de uma conscientização ambiental, a partir do momento em que se busca informações a respeito do tema, ao buscar-se repassá-las para os demais, e ao se tentar realizar atitudes sustentáveis, mas em face da urgente participação ativa em relação a medidas ecologicamente necessárias ainda é restrita a atuação prática.

Os projetos desenvolvidos buscam fortalecer uma ética ambiental galgada em um dever moral de preservação do meio ambiente, como alternativa de ame-nizar e desacelerar a crise ambiental ora existente, por meio de atitudes individuais ou coletivas que ocasionem reflexos positivos e reparadores ao meio ambiente a curto, médio e longo prazo.

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A cidadania ambiental e a conscientização ecológica: uma análise crítica de uma pesquisa de campo realizada no campus Dom Luís da Faculdade Christus

6 REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. Petró-polis: Vozes, 1999.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nº1/92 a 53/2006 e pelas Emendas Constitucionais de revisão n° 1 a 6/94. Brasília: Senado Federal, 2007.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

COSTA, Melinda de Oliveira Gonçalves Fernández. A Ação Popular como ins-trumento de defesa do meio ambiente e exercício da cidadania ambiental. Direito Público, Porto Alegre. v. 4, n. 15, 2005.

FERREIRA, Flávia Roberti. Preservação Ambiental. Revista Del Rey Jurídica, Minas Gerais, ano 10, n. 20, 2008.2.

LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do trabalho científico: procedimentos bá-sicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

LEITE, José Rubens Morato. Estado de Direito do Ambiente: uma difícil tarefa. In: LEITE, José Rubens Morato. (org.). Inovações em Direito Ambiental. Flo-rianópolis: Fundação Boiteaux, 2000.

MILARÉ, Édis. A gestão do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005.

NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

SEARA FILHOS, Germano. Apontamentos de introdução à educação ambiental. Ambiente. Revista Cetesb e Tecnologia, São Paulo, n. 1, [s/d].

1 FERREIRA, Flávia Roberti. Preservação Ambiental. Revista Del Rey Jurídica, Minas Gerais, ano 10, n. 20, 2008.2.

2 Ulrich Beck e Anthony Giddens são referências quanto ao tema da sociedade de risco. O primeiro alude que essa sociedade consiste na tomada de consciência do esgotamento do modelo de produção, marcada pelo risco permanente de desastres e de catástrofes. O segundo considera o risco como uma característica das sociedades que se organizam sob a ênfase da inovação, da mudança e da ousadia.

3 LEITE, José Rubens Morato. Estado de Direito do Ambiente: uma difícil tarefa. In: LEITE, José Rubens Morato (org.) Inovações em Direito Ambiental. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2000, p. 13.

4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de ou-tubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nº1/92 a 53/2006 e pelas Emendas Constitucionais de revisão n° 1 a 6/94. Brasília: Senado Federal, 2007.

5 Há de se esclarecer que embora não conste, expressamente, no capítulo dos direitos e das garantias funda-mentais da CF/88, o meio ambiente como um direito fundamental há de se efetivar tal posicionamento, devido

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a sua relevância em garantir a sadia e saudável qualidade de vida para a população. Assim, o meio ambiente configura-se como um dos direitos fundamentais, pois como elementos basilares da Constituição permite-se essa abertura. (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2001,p. 81.)

6 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p 105.7 Canotilho afirma que o termo “meio ambiente ecologicamente equilibrado” contido no caput do art. 225,

da CF/88, uma vez jurisdicionado perde-se o fenômeno natural que o equilíbrio ecológico possui, ou seja, da natureza seguir seu o próprio rumo e transforma-se em uma preocupação de interesse geral. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 108.)

8 BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano- compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 191.9 O princípio da solidariedade encontra-se na essência da cidadania, de forma que o povo há de ser solidá

naquilo que sua participação implique em um êxito comum.10 MILARÉ, Édis. A gestão do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 678-679.11 SEARA FILHOS, Germano. Apontamentos de introdução à educação ambiental. Ambiente. Revista

Cetesb e Tecnologia, São Paulo, n. 1, [s/d], p. 40.12 COSTA, Melinda de Oliveira Gonçalves Fernández. A Ação Popular como instrumento de defesa do meio

ambiente e exercício da cidadania ambiental. Direito Público, Porto Alegre. v. 4, n. 15, 2005, p.166.13 LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica,

projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p 43-44.

ENVIRONMENTAL CITIZENSHIP AND ECOLOGICAL AWARENESS: A CRITICAL ASSESSMENT OF A FIELD RESEARCH EXPERIENCE UNDERTAKEN AT CHRISTUS COLLEGE

ABSTRACT

This paper is one of the outcomes of the research and study group “Environment and human rights: challenges and prospects”, and final product of the scientific initiation Project “Environmental citizenship as an instrument of harmonically (re)building the relation between humankind and environment”, both undertaken at Christus College. These initiatives were aimed at contributing for the search of instruments that could help building citizenship and environmental education, in order to foster harmony between individuals and environment. More specifically, both actions intended to promote the further deepening of the knowledge on the modern environmental crisis, in order to strengthen environmental ethics and the individual and the general commitment with a viable model of environmental citizenship. The projects also had the purpose to check the level of environmental awareness of professors, students and employees at Christus College - Dom

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A cidadania ambiental e a conscientização ecológica: uma análise crítica de uma pesquisa de campo realizada no campus Dom Luís da Faculdade Christus

Luis campus. Methodologies used were bibliographical, descriptive and exploratory and included a field research at Christus College – Dom Luís campus, which resorted to a structured questionnaire. The initiatives found out that there still remains a need for a broader involvement of the academic community with environmental issues, in order to strengthen an environmental ethics based upon the moral duty of preserving environment as an alternative to appease and decelerate the present environmental crisis, thus settling an agreement with present and future generations.

Keywords: Environment. Environmental citizenship. Risk society. Participative environmental education.

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biodireito: instrumento de reflexão dA éticA dA vidA

paulo César Barros Monteiro*

1 Introdução. 2 Definindo Bioética. 3 Breve retrospectiva do cenário científico do século XX. 4 Perspectiva da Bioética na América Latina. 5 Princípios bioéticos. 5.1 Princípio da Au-tonomia. 5.2 Princípio da Beneficência. 5.3 Princípio da Não-maleficência. 5.4 Princípio da Justiça e Equidade. 6 Conclusão - Biodireito: A importância da inserção das ciências jurídicas como instrumento de reflexão na bioética.

RESUMOEste artigo tem por objetivo convidar os operadores do direito para uma reflexão do direito como instrumento necessário e indispensável para o debate e aprofundamento do novo ramo do conhecimento humano, a saber, o biodireito. Destacando a definição e trajetória da bioética, seus princípios basilares e intersecção com as ciências jurídicas.

Palavras-chave: Direito. Bioética. Dignidade Humana. Avanço Biotécnológico.

1 INTRODUÇÃOPassaram-se 36 anos desde que foi usada pela primeira vez a expressão

Bioética, termo esse cunhado pelo cientista norte-americano Van de Resselaer Potter, no ano de 1971, no livro que levava o seguinte título: Bioethics. Bridge to the future.

Atualmente rara ou quase nenhuma é a ciência que prescinda ou descarte a discussão teórica do tema bioética. Pelo contrário, as mais variadas áreas de conhecimento humano já inseriram no seu bojo teórico a discussão aprofundada do tema bioética. Esse despertar é sucedâneo das grandes transformações geradas pelas mais recentes descobertas no mundo científico. Temos vivido, nas últimas décadas, um importante despertar da chamada consciência ética científica. Não apenas os cientistas, mas a humanidade como um todo percebe facilmente que nem toda vantagem tecnológica e científica traz consigo tão somente efeitos pura-mente benéficos para a sociedade e as pessoas. A Humanidade não mais entende qualquer que seja a ciência como absolutamente isenta de interesses ilegítimos, capciosos, e de uma técnica limpa e benéfica, mas passou a acompanhar com cau-* Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Mackenzie, São Paulo-SP, Graduado em Direito pela

Instituição Toledo de Ensino (ITE), Bauru-SP,: e em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Bauru-SP. Advogado, Professor da Disciplina Psicologia Jurídica da Faculdade Christus.

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Biodireito: instrumento de reflexão da ética da vida

tela, propalados resultados e sucessos científicos, envolvida por máximas populares no mundo acadêmico como aquela que ensina: “Nem tudo o que cientificamente é possível, logo, ipso fato seria eticamente admissível.” 1

Dentro desse contexto, a bioética desponta como fonte de forte inter-pelação no que diz respeito aos avanços nas áreas da ciência da vida, nas suas dimensões morais, sociais e de saúde, aliados a uma correlação interdisciplinar. Assim, a bioética surge não apenas porque a revolução biomédica, biotecnológica, genética, gera problemas do tipo até agora desconhecidos, mas porque propõe um tipo de controle do mundo biológico passível de ser avaliado a partir de múltiplas concepções de mundo, laicas ou religiosas, e, por conseguinte, com base em várias éticas ou morais. 2

O mundo, jamais foi o mesmo, após a clonagem da ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado por transferência nuclear de células somáticas, feito que se deve ao professor e embriologista inglês Ian Wilnut, do Instituto Roslin, da Escócia, responsável por descortinar ao mundo o que viria a ser o prenúncio de um novo mundo científico.

Diante do exposto, está claro que as Ciências Jurídicas tampouco poderiam colocar-se à margem desse debate, dado sua importância como instrumento de reflexão no mundo normativo com contundente impacto social. Assim, muito mais do que uma questão de lógica e compreensível, faz-se imprescindível que cada vez mais os operadores do direito se envolvam determinantemente no de-bate da ética da vida. A bioética fundamentada na interdisciplinaridade deixa de exercer apenas e tão somente o papel de agência fiscalizadora, para tornar-se participante efetiva do progresso e avanço técnico-científico, isto porque é através da bioética que se quebra paradigmas de reserva, ou seja, não há mais falar-se em debate exclusivista dessa ou daquela ciência quando o assunto for tecnologia médico-científica, por exemplo.

2 DEFININDO BIOÉTICAA palavra bioética pode ser definida etimologicamente como a “ética da

vida”. O termo “bios” (vida) “ethos” (costume, comportamento ética) – de vida e ética - é um neologismo que significa ética da vida, adequação da realidade da vida com a da ética ou mais propriamente o estudo sistemático da conduta humana e das dimensões morais na área das ciências da vida. A bioética, atualmente, é considerada como sendo a ética aplicada às questões da saúde e da pesquisa em seres humanos, ou seja, é ética da vida. Nesse sentido, ela deve está voltada acima de tudo, para as questões de interdisciplinaridade e incorporação crítica de novos conhecimentos em parceria com as ciências da vida e humanas.

É inteiramente provável que o termo bioética tenha sido utilizado pela primeira vez através do biólogo e oncologista americano Van de Resselaer Potter em 1971 quando do lançamento do seu livro Bioethics: bridge to the future, apesar de que o seu conceito de bioética estivesse voltado para uma conotação mais especifica:

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Paulo César Barros Monteiro

Potter usou a palavra bioética num sentido evolutivo muito dis-tante do significado que ela tem hoje, com o resultado de que o uso do termo foi marginalizado. Potter explanou seus interesses no conflito entre ordem e desordem no mundo afetado pelas ciências biológicas. 3

Ao analisarmos o posicionamento de Potter chegaremos à conclusão de que o seu pensamento é muito mais amplo e global, Potter buscava o equilíbrio e a relação dos seres humanos com o ecossistema e a própria vida do mundo, diferentemente das posições sedimentadas a partir da publicação do livro The pinciples of bioethics, escritos por Beauchamp e Childress, em 1979. 4

Muito embora haja comentários e contestações por parte de alguns sobre a paternidade desse neologismo, a afirmação da antropóloga Diniz contrapõe esses posicionamentos e ao mesmo tempo afirma:

Na verdade o que nesse momento se questiona não é a originalida-de, tampouco o vandaguardismo de Potter, fatos indiscutíveis, mas o que Tomas Reich sugere ser a autoridade histórica da primeira institucionalização da palavra bioética.5

Bioética significa ética da vida, de saúde e do meio ambiente, é um espaço de diálogo transprofissional, transdisciplinar e transcultural na área da saúde e da vida. Um grito pelo resgate da dignidade da pessoa humana, dando ênfase na qualidade de vida: proteção da vida humana e seu ambiente, por meio da tolerância e da solidariedade. Não se trata de ética pré-fabricada, mas sim de um processo.6 Conforme Junges:

Define-se como bioética, a ética das ciências da vida e da saúde. Portanto, ela vai além das questões éticas relativas à medicina para incluir os temas de saúde pública problemas populacionais, genética, saúde ambiental, práticas e tecnologias reprodutivas, saúde e bem-estar animal. 7

Segundo Pessini a bioética por ter um conteúdo muito abrangente no que diz respeito à vida, gera dificuldade de se conceituar como definição sumária e apropriada, uma vez que as significações tendem a ser definidas e fixadas. Nesse caso, a bioética não possui fronteira, ou seja, ela não se define como as demais disciplinas. Trata-se, de um novo estudo, de uma nova reflexão, de um novo perfil de pesquisa, em evolução acelerada, em processo inalterável de descobertas de novos desafios, métodos e em afrontamento contínuo com enigmas inesperados. 8

Portanto, a bioética a despeito de tão recente, perpassa todas as ex-pectativas pós-modernas. “Nos dias atuais com a globalização alicerçada nos

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Biodireito: instrumento de reflexão da ética da vida

valores econômicos de uma economia de mercado, ela se estende também à análise das relações do ser humano com a natureza e a sociedade no sentido de garantir saúde e vida.” 9 Torna-se um fórum de discussão e de construção com relação aos objetivos apresentados pela comunidade cientifica com respeito ao ser humano.

3 BREVE RETROSPECTIVA DO CENÁRIO CIENTÍFICO DO SÉCU-LO XX

O século XX foi marcado por grandes descobertas científicas e tecnológi-cas dentro da história da humanidade. Foram desafios que envolveram política e economia das grandes potências mundiais que se voltaram exclusivamente para ambiciosos projetos com a intenção primária de se sobreporem umas às outras e despontarem na vanguarda científica. No transcurso da segunda guerra mundial surge primeiramente o Projeto Manhattan, em seguida o Projeto Apollo e depois, o Projeto Genoma, três megaprojetos revolucionarios de forte representatividade mundial e que abalaram os alicerces da ciencia moderna.

O Projeto Manhattan ou, formalmente, Distrito de Engenharia de Manhattan, foi um esforço durante a Segunda Guerra Mundial para desenvol-vimento das primeiras armas nucleares, projeto liderado pelos Estados Unidos da América com o apoio do Reino Unido e do Canadá. Através do Projeto Manhattan ampliou-se o leque de conhecimento da energia nuclear, e.g., pela construção de armas e destruição em massa e pela cura do câncer. Fruto do citado projeto, a famigerada bomba atômica (1945) que destruiu as cidades de Hiroshima e Nagasaki no Japão, selando assim a vitória norte-americana na Guerra e a derrota da humanidade para o pânico coletivo e sem fronteira da III Guerra Mundial.

O boato de que os alemães estariam fazendo pesquisas intensas para a produção de uma bomba de urânio, fez com que os cientistas considerassem o assunto mera ficção, porém o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roo-sevelt classifica a situação como emergente e propõe um planejamento para a construção de uma bomba de urânio, apesar de todas as incertezas e de todo o ceticismo, como relevante para a guerra. Assim, no dia 9 de outubro de 1941, o projeto foi levado adiante com todos os recursos possíveis, sendo avaliados na época em 133 milhões de dólares. Dessa forma, o plano recebeu o codinome de “Projeto Manhattan”, devido importantes trabalhos preliminares terem sido feitos na Universidade de Columbia, no bairro nova-iorquino de Manhattan.10 Cabe ressaltar que esse projeto só foi levado adiante após o bombardeio de Pearl Harbour e da conseqüente entrada dos Estados Unidos na guerra.

O Projeto Apollo teve início num período difícil da história – a Guerra Fria. Nessa corrida espacial os Estados Unidos e a ex-União Soviética (URSS) investiam milhões e milhões de dólares nas pesquisas para novos tipos de fo-guetes, com objetivos bélicos de defesa e ataque. Havia o temor mundial de

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Paulo César Barros Monteiro

uma guerra entre as duas superpotências. Estas pesquisas acabaram sendo as precursoras dos atuais programas espaciais.

Essa data histórica ficou na memória daqueles que acompanharam a conquista pelos meios de comunicações e marcou todas as gerações que vieram depois. A chegada à Lua também deixou um rico legado para o desenvolvimento científico e tecnológico e proporcionou inúmeras mudanças no dia-a-dia da humanidade, onde novas empresas foram criadas, algumas delas hoje gigantes consolidadas no mercado, tornando-se assim, um fator preponderante que também justifica inteiramente as qualificações da bioética no mundo.

O Projeto Genoma representa um avanço da ciência com uma enverga-dura sem igual, é uma das mais importantes iniciativas científicas do século XX, localizando cada gene da nossa espécie, com registro de cada carater. Vislumbra assim, o dominio de todas as doenças, com a construção de celulas, tecidos e orgãos para substituir os imprestáveis, de diversos seres vivos, copiados, modi-ficados ou não, chegando mesmo à alteração do patrimônio da humanidade, dos demais seres vivos e até a clonagem do homem.11

Esse Projeto começou como uma iniciativa do setor público, tendo a liderança de Professor Dr. James Watson, na época chefe dos Institutos Nacio-nais de Saúde dos EUA em 1990, sendo projetado para durar 15 anos. Os seus objetivos: determinar a ordem, ou seqüência, de todas as bases do nosso DNA genômico; identificar e mapear os genes de todos os 23 pares de cromossomos humanos; armazenar essa informação em bancos de dados, desenvolver ferra-mentas eficientes para analisar esses dados e desenvolver meios de usar esta informação para estudo da biologia e da medicina.

Durante discusso no III Congresso Regional de Informação em Ciência da Saúde realizado na cidade do Rio de Janeiro em 1996, falando sobre o tema e a revolução do projeto Genoma, o então Ministro da Saùde, Adib Jatene, ressaltou:

Não nos esqueçamos da Louise Brown em 1978, o primeiro bebê de proveta que mudou completamente o setor da reprodução humana e nos conduz hoje à necessidade de rever a Bioética porque o que se consegue fazer no manejo de todos esses genes e de toda essa evolução reprodutiva precisa de uma revisão ética para saber até que ponto se pode ou não se pode intervir na pessoa humana.12

É nesse cenário que a bioética se constitui como uma nova face de ética científica, com a finalidade de impulsionar o ser humano a pensar sobre sua complexidade, sobre a sua moralidade no campo das ciências da vida, sobre os mecanismos que irão norteá-lo, abrindo um espaço de reflexão para o saber biomédico numa perspectiva global de interdisciplinaridade. Entendemos, portanto, que o propósito primordial desse instrumento de negociação pacífi-

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Biodireito: instrumento de reflexão da ética da vida

ca das instituições morais, a bioética, nasceu em resposta ao conflito entre a ética médica deontológica, restrita à corporação médica, e as reivindicações de responsabilidade pública, levantadas por movimentos histórico-sociais, que reconhecia, entretanto, as conquistas fundamentais realizadas pelas ciências biológicas.

4 PERSPECTIVA DA BIOÉTICA NA AMÉRICA LATINAEm todo o mundo, a bioética é assunto de bastante relevância, isso ob-

viamente se deve diretamente aos diversos institutos fundados e congressos que são realizados periodicamente. Na América do Norte encontra-se os Estados Unidos, através do Kennedy Institute of Ethics, sendo o pioneiro nessa nova disciplina, a bioética; na Europa nos anos 80 e; na América Latina, destacando-se a Argentina como pioneira através da Escuela Latino Americana de Bioética.

Em 1994, foi realizado em Buenos Aires o II Congresso Mundial de Bioética, que reuniu mais de 500 especialistas no assunto de diversos paises. Este evento, segundo Pessini, participante desse congresso, “permitiu uma visão maior de como está se desenvolvendo a bioética nos diferentes continentes e mais especificamente na América Latina”. 13

Dessa forma, analisando as perspectivas dos países latinos, encontramos em linhas gerais, todos imbuídos por um ideal. De maneira especial podemos destacar o Programa Regional de Bioética, com sede em Santiago, no Chile que tem por finalidade cooperar com os estados membros da Organização Mundial de Saúde (OMS). Dentro desse contexto, citaremos alguns objetivos a serem priorizados: difundir conhecimentos de bioética; incentivar os trabalhadores para estudo e formação em bioética; motivar as pessoas para uma ampla discussão pluralista; relacionar a bioética como ponte de melhoria das políticas públicas de saúde, ligadas a questões da equidade, “que equivale à justiça distributiva, leva em conta as diferentes necessidades individuais e a existência de desigualdades entre as pessoas” 14; solidariedade e fomentar e apoiar as pesquisas de bioética na América Latina.

Cabe ressalvar que a bioética na América Latina está voltada para uma visão em que a tecnologia observada gira em torno de quem usa e tem acesso a medicina, ou seja, os conceitos prioritariamente estão ligados culturalmente às questões da justiça, de equidade e solidariedade, conforme mencionado acima. Segundo Pessini:

O grande desafio é desenvolver uma bioética latino-americana que corrija os exageros das outras perspectivas e que resgate e valorize na cultura latina no que lhe é único e singular, uma vi-são verdadeiramente alternativa que possa enriquecer o diálogo multicultural. 15

A força vital da bioética no Brasil aparece sem dúvida nenhuma no

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enfrentamento de seus muitos desafios. Por isso, dentro do cenário mundial, ocupa um lugar de destaque nas pesquisas biotecnológicas, incluindo recursos de medicina de ponta nos mais diversos setores. No entanto, cabe observar que experimenta também em seu contexto grandes dificuldades sociais e condições melhores de vida, a despeito de estatísticas, críticas e promessas políticas de transformação.

No Brasil, as perspectivas sobre a bioética são as melhores possíveis, pois nela devem ser incluídos todos os aspectos estruturais com que a vida se tece na sociedade, em termos de cultura, saúde, organização social, além de outras discussões pertinentes. Segundo Pessini:

Existem várias iniciativas, pessoais e institucionais, bem como centro de estudos de bioética em distintos pontos do país. No estado de São Paulo, por exemplo, foi fundado em 1995 a sociedade Brasileira de Bioética, que desenvolve um trabalho de pesquisa entre os docentes nas diversas áreas de interesse da bioética, por outro lado outras iniciativas são desenvolvidas através de setores individuais, confessionais, institucionais, públicas e privadas e autônomas, todas desenvolvendo livremente seu trabalho. 16

A Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), criada em 1995, tem o seu trabalho voltado para as diversas áreas do conhecimento humano, de caráter pluralista e multidisciplinar, com a finalidade de formações científicas e fo-mentar o progresso e difusão da bioética; divulgar os propósitos da bioética; assessorar, quando solicitada, projetos e atividades nessa área; patrocinar eventos de âmbito nacional e internacional; apoiar movimentos e atividades que visem à valorização da Bioética e; defender os interesses profissionais de seus membros, no desempenho de atividades ligadas à Bioética. Citamos ainda, a Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília, que foi criada em 1994, em que os objetivos estão estimular a discussão relacionada a problemas éticos, jurídicos e sociais; orientar estudantes de graduação e pós-graduação em pesquisas; oferecer formação teórica e aplicada sobre as questões bioéticas por meio de cursos e atividades de extensão, especialização, mestrado e douto-rado em bioética; estabelecer parcerias de pesquisa com o intuito de fortalecer a bioética no Brasil e assessorar órgãos públicos, privados e comunitários nos assuntos de bioética.

O Brasil vem alcançando resultados muito positivos. Como corolário desse esforço pode ser verificada a multiplicação de artigos, livros, congressos e seminários cuja temática bioética se encontra em alto relevo, e muitos cursos de graduação e pós-graduação das faculdades e universidades de Norte a Sul do Brasil passaram a incluir o estudo da disciplina bioética.

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5 PRINCÍPIOS BIOÉTICOSNa década de 70, o mundo atravessou uma fase muito difícil de compre-

ensão dentro da sociedade, pois nessa ocasião inúmeros casos de manipulação com pessoas enfermas social e mentalmente fragilizadas, fizeram com que em 1974, com o objetivo de fazer um estudo completo para identificar os princípios éticos básicos, e que deveriam nortear a experimentação em seres humanos nas ciências, fosse criado a national Commission for protection of Human subjects of Biomdical and Behavioral Research, pelo congresso dos Estados Unidos.

Assim, após quatro anos de encontros dessa comissão, foi publicado o Relatório de Belmont (Belmont Report), levando esse nome exatamente por ter sido realizado no Centro de Convenções de Belmont em Elkridge no Estado de Maryland (EUA). Essa comissão entendeu que poderiam enfocar e resolver os conflitos éticos dentro das ciências biomédicas. No entanto, chegaram à con-clusão que os códigos não eram operativos de maneiras a resolver as situações mais complexas, mesmo que já dispusesse do código de Nuremberg.17

Inspirados no Relatório Belmont, e após a publicação do livro princípios da Ética Biomédica, o filósofo Tom Beauchamp e o teólogo James Childress, a bioética consolidou a sua força teórica, especialmente nas universidades esta-dunidenses. Por isso, suas propostas apresentadas defendiam a idéia de que os conflitos morais poderiam ser mediados pela referencia a algumas ferramentas morais, os chamados princípios éticos. 18

Neste sentido passo apontar os quatro princípios que norteiam a bioética desde os seus primórdios.

5.1 Princípio da autonomia

“O principio de autonomia requer que os indivíduos capacitados de deliberarem suas escolhas pessoais, devam ser tratados com respeito pela sua capacidade de decisão. As pessoas têm o direito de decidir sobre as questões relacionadas ao seu corpo e a sua vida”. 19 O conceito de autonomia se esta-belece como um viés que leva a pessoa ao seu espaço de liberdade, de escolhas e momentos próprios de decisões. “É empregada para designar uma realidade que se rege por suas próprias leis, tendo a capacidade de dar a lei a si mesma”. 20 “Significa autogoverno, autodeterminação da pessoa de tomar decisões que afetem sua vida, sua saúde sua integridade físico-psíquica, suas relações sociais. Refere-se à capacidade de o ser humano decidir o que é bom, ou o que é seu bem-estar”. 21.

O principio de autonomia, segundo Junges,

[...] tem a sua expressão no assim chamado consentimento infor-mado. O direito ao consentimento informado quer proteger a

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promover a autonomia. A comunicação entre o profissional da saúde e o enfermo deve prevenir a ignorância que leve a uma escolha constringida e deve suprir a falta de informação e com-preensão.22

Pessini comenta que:

Alguns filósofos definem autonomia como um estado de caráter que exprime confiança para agir, escolher e formar opiniões. No entanto, esse estado de caráter, não significa que essa deva ser considerada virtude, mas sim um pré-requisito para todas as vir-tudes, na medida em que para as virtudes serem aceitas como tais, devem necessariamente ser originadas de escolhas deliberadas, isto é, devem ser ações autônomas. 23

Portanto, respeitar a autonomia é valorizar a consideração sobre as opiniões e escolhas, evitando, da mesma forma, a obstrução de suas ações, a menos que elas sejam claramente prejudiciais para outras pessoas. Ignorar o ser humano como um agente autônomo é desconsiderar seus julgamentos, negar ao indivíduo a liberdade de agir com base em seus julgamentos, ou omitir informações necessárias para que possa ser feito um julgamento, quando evidentemente não há razão persuasiva para fazer isto.

5.2 Princípio da beneficência

Para o bioeticista Drumond:

A beneficência é entendida como o princípio bioético da promoção do bem e distingue-se da tradicional beneficência hipocrática por quatro fatores limitantes de sua ação: a necessidade de definir o que é “bem” para o paciente; a não aceitação do “paternalismo” incrustado na beneficência médica tradicional; a autonomia do paciente em decidir o que é melhor para si mesmo e, finalmente, a utilização dos critérios de justiça, que, na área da saúde, é traduzida por eqüidade ou garantia de prioridade de acesso daqueles mais excluídos socialmente aos serviços de saúde. 24

O princípio da beneficência refere-se à obrigação ética de maximizar o benefício e minimizar o prejuízo. O profissional deve ter a maior convicção e informação técnica possível, que assegure ser o ato médico benéfico ao pa-ciente, ou seja, uma ação que possa fazer o bem. Não pode o médico exercer a beneficência de modo absoluto, mas sim dentro dos limites estabelecidos pela dignidade intrínseca a cada pessoa, respeitando-lhe a liberdade de decidir sobre

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si mesma.

Portanto, o principio da beneficência deve estar numa dimensão ampla e relacional entre médico e paciente, onde fazer o bem se torna absoluto e total sobre todos os aspectos relativos ao mal. Este princípio não diz exatamente como distribuir o bem e o mal, só impõe promover o primeiro evitando o segundo. Logo, havendo exigências conflitantes do ponto de vista ético, deve-se dar mais ênfase ao bem em detrimento do mal.

5.3 Princípio da não-maleficênciaPodemos defini-lo como a ação de não fazer o mal, ou seja, não se deve

infringir mal ou dano a outros. Deve-se entender que esse princípio assume dentro do campo da saúde o papel de requerer que os profissionais dessa área atuem com consciência e cuidado. “É universalmente consagrado através do aforismo hipocrático primum non nocere (primeiro não prejudicar), cuja finalidade é reduzir os efeitos adversos ou indesejáveis das ações diagnosticas e terapêu-ticas no ser humano”. 25 A valorização da vida humana tem sido assunto de bastante preocupação por parte da sociedade e alguns profissionais ligados à área da saúde. A relação médico-paciente, por mais hipocrática que possa parecer, deve ser saudável e com uma preocupação inconstante de sua parte para não infligir danos que possa comprometer agravos e riscos a vida humana, tanto no presente como no futuro. Por isso, “o dever da não-maleficência requer que os profissionais de saúde atuem com consciência e cuidado. Eles devem realizar seus trabalhos dentro dos parâmetros legais e morais que os recorrem a eles esperam encontrar”. 26

5.4 Princípio da justiça e eqüidadeLevando-se em conta os inúmeros registros de desigualdades sociais e

econômicas existentes já desde o século VI a.C. até o século XVII de nossa era, o conceito de justiça girava em torno da obediência dos inferiores aos governantes, ou seja, as limitações dos menos favorecidos aos mais fortes. Segundo Garrafa: “Platão descreve uma sociedade naturalmente ordenada e estabelece no seu livro A República, a categoria de homens inferiores, os artesãos ao lado de outros que naturalmente seriam forjados para o comando político, os governantes.” 27

A sociedade que tinha na figura do médico até o século XVII os conceitos de uma soberana e permanente obediência, hoje clama por medidas que venham estabelecer políticas humanamente eqüitativas e comedidas que levem a uma reflexão de ordem igualitária e justa. Dessa forma, com o avanço da medicina, o princípio bioético de justiça torna-se decisivo dentro do contexto do direito de igualdade e na necessária equidade na distribuição de recursos. Segundo afirma Goldim:

Beauchamp e Childress entendem o Princípio da Justiça como

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sendo a expressão da justiça distributiva. Entende-se justiça distributiva como sendo a distribuição justa, eqüitativa e apro-priada na sociedade, de acordo com normas que estruturam os termos da cooperação social. Uma situação de justiça, de acordo com esta perspectiva, estará presente sempre que uma pessoa receberá benefícios ou encargos devidos às suas propriedades ou circunstâncias particulares. 28

6 CONCLUSÃO - BIODIREITO: A IMPORTÂNCIA DA INSERÇÃO DAS CIÊNCIAS JURÍDICAS COMO INSTRUMENTO DE REFLEXÃO NA BIOÉTICA

As Ciências Jurídicas não poderiam jamais abster-se de envolver-se no debate da ética da vida. Pelo contrário, é consenso a certeza da enorme contri-buição que as ciências jurídicas podem oferecer, assumindo assim não um papel de mero coadjuvante, mas de protagonista.

Foi neste fértil cenário histórico-social que nasceu o Biodireito, ramo do conhecimento cujo campo de atuação se volta especificamente para a produção de instrumentos jurídicos cuja relação esteja voltada para o estudo da bioética. Campo de atuação extremamente vasto, pois abrange o teor das discussões e prática que dizem respeito às novas descobertas realizadas pela ciência, espe-cialmente aquelas que atingem diretamente a vida humana com amplo impacto na vida social, como clonagem terapêutica, células-tronco até às questões de políticas públicas básicas como planejamento do crescimento urbano, desloca-mento de população, atendimento médico das populações menos favorecidas, degradação do meio ambiente, agricultura familiar etc.

É verdade que no Brasil estamos “engatinhando” quanto ao estudo da bioética na sua interface com o direito. Ainda tem forte predomínio entre nós o estudo deste novo ramo de conhecimento a partir do pano de fundo forneci-do por, normas constitucionais e infra-constitucionais tão somente, ou seja, o sustentáculo das premissas jurídicas do debate quanto à ética da vida provém fundamentalmente dos princípios da dignidade humana, da solidariedade, da justiça social dentre outros. A Constituição Federal prevê duas espécies de pes-quisas: científica e tecnológica. A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências. A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional, nisto concordam a maioria dos estudiosos do tema, é nesta malha normativa que trafegam, às vezes até isoladamente, temas de grande importância para a bioética como normas de proteção ao corpo humano antes e depois da morte (utilização de órgãos para pesquisa, doação inter-vivos, esterilizarão, in-terrupção da gravidez, aborto, transfusão etc.). Há no mundo inteiro não apenas uma preocupação mais acertadamente a elaboração e aprovação de legislações avançadas e altruístas quanto à relação do ser humano com o meio ambiente, no Brasil temos como um exemplo dessa preocupação a Lei de Biossegurança

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e muitos outros projetos de lei que trazem no seu bojo aspectos importantes da bioética.

Em nível internacional, os chamados Direitos Humanos de Quarta Geração apontam, como possíveis direitos e garantias, a não alteração do patrimônio ge-nético da nossa espécie, através do estudo das três gerações anteriores de direitos humanos percebemos claramente uma guinada quanto ao centro das preocupações e naturalmente um reflexo de todo avanços tecnológicos e científicos que esta geração experimenta, assim vejam: A primeira geração pertence aos direitos civis e políticos - aqueles encontrados nos artigos de 2 a 21 da Declaração Universal que aborda questões de liberdade: o direito a vida; à liberdade de pensamento, de expressão, de consciência, de religião, e de ir e vir; o direito à liberdade de fazer parte de assembléias ou associações pacíficas; à segurança pessoal; liberda-de de vida, sem escravidão, tortura, e penas cruéis ou degradantes; o direito à propriedade; o direito à total igualdade e ao tratamento justo perante a lei. A segunda geração engloba os direitos econômicos, sociais e culturais - aqueles re-lacionados com questões de igualdade, que estão promulgadas nos artigos de 22 a 27 da Declaração Universal e mais especificamente no Acordo Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966: o direito à segurança social; o direito ao trabalho e à proteção contra o desemprego; o direito ao descanso e ao lazer; o direito a um padrão adequado de vida quanto saúde e ao bem-estar próprio e da família; o direito à educação; o direito à proteção de sua produção científica, literária e artística. A terceira geração refere-se aos direitos coletivos ou solidários. Esta categoria de direitos foi esboçada em termos gerais do artigo 28 da Declaração Universal, que declara: “Todos têm direito a uma ordem social e internacional na quais os direitos apresentados na Declaração possam ser com-pletamente realizados.”29.

Por último, vale ressaltar que atualmente no Brasil os debates de maior significância quanto à questão ética em intersecção com o direito dizem respeito à pesquisa com células-tronco e os transgênicos. A propósito, a corte máxima do país surpreendeu a todos positivamente quando mergulhou profundamente neste debate ao precisar se manifestar quanto a estes dois ícones modernos do debate bioético. Basta ver a convocação de audiência pública feita pelo Supre-mo Tribunal Federal, que aconteceu em 29 de maio de 2007, com o objetivo de ouvir cientistas renomados quanto à intricada questão do momento em que de fato se inicia a vida. Mais do que conotação moral, religiosa e científica neste debate se insere a norma jurídica propriamente dita. O Supremo Tribunal Federal buscou essa ajuda em face de duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 3.510 e ADI 3.526) que questionam dispositivos da Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/05) quanto ao quesito pesquisa com células-tronco e transgênicos. As duas ações (ADI 3.510 e 3.526) foram propostas pelo ex-Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles. Na primeira, proposta em maio de 2005, Fonteles questionava o artigo 5º da lei que libera o uso de células-tronco embrionárias obti-das de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, para fins de pesquisa e terapia. Fonteles argumentava que a vida começa na fecundação e, por isso, a

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destruição de um embrião humano vai contra o artigo 5º da Constituição, que garante a todos o direito à vida. Já na segunda ação, o ex-Procurador-Geral da República contestava mais de 20 dispositivos da lei que estabelecem normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados e seus derivados.

Evidencia-se o fato de que esta área do conhecimento humano se apresenta diante de todos nós, operadores do direito, de maneira extremamente convidativa. Muitas são as possibilidades de estudo e atuação profissional. Ainda que incipiente, o biodireito é umas áreas jurídicas que mais avança nos dias atuais.

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2 BARBOSA, Vilmar. Bioética: um ponto de encontro, história, ciência e saúde. Scielo. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php.>. Acesso em: 01.10.2006.

3 REICH, [s.d] apud PESSINI; BARCHIFONTAINE, Problemas atuais de Bioética, 4. ed, São Paulo: Loyola, 1997, p. 18.

4 GARRAFA, Volnei, et al, Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998, p. 15.5 DINIZ, Débora; GUILHEM, Dirce, O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 10. 6 BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Bioética e o início da vida: alguns desafios, Aparecida:

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13 PESSINI, Leo. Um grito por dignidade de viver. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 13.

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14 BARCHIFONTAINE, op. cit., p. 82.15 PESSINI; BARCHIFONTAINE, op. cit., p. 18.16 Ibid., p. 23.17 Ibid., p. 51-52.18 DINIZ, GUILHEM, op. cit., p. 25.19 ROSAS, Cristião Fernando. Cadernos Cremesp: Ética em Ginecologia e Obstetrícia. São Paulo: Conselho

Regional de Medicina, 2004, p. 18.20 JOSÉ, Jorge; AVARES, Juan Carlos. Para Fundamentar a Bioética. São Paulo: Loyola, 2005, p. 39. 21 GARRAFA, op. cit., p. 57.22 JUNGES, op. cit., p. 43.23 PESSINI; BARCHIFONTAINE, op. cit., p. 58.24 DRUMOND, José Geraldo de Freitas. I Simpósio Iberoamericano de Direito Médico. Montevidéu, 2000.

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BIOLAW: INSTRUMENT FOR PROMOTING THOUGHTS ON THE ETHICS OF LIFE

ABSTRACT

This paper intends to promote among Law professionals and students the understanding that Law is a necessary and essential instrument to the debate and deeper study of a new branch of knowledge, namely Biolaw. With this purpose, the author highlights the notion and the path previously followed by bioethics studies, its basic principles and issues of interest for Juridical Sciences.

Keywords : Law. Bioethics . Human Dignity. Biotechnological progress.

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A responsAbilidAde penAl dA pessoA jurídicA no direito frAncês

sérgio Bruno Araújo Rebouças*

1 Introdução. 2 Breve histórico do instituto no Direito Francês. 3 Os pressupostos e as condições da responsabilidade. 3.1 As pessoas jurídicas imputáveis. 3.2 As condições de aplicação – princípios. 3.2.1 O princípio da especialidade. 3.2.2 O princípio da pertinência do ato à pessoa jurídica. 3.3 A cumulação de responsabilidades. 3.4 Os efeitos da responsabilidade – as san-ções penais aplicáveis à pessoa moral. 3.4.1 As penas criminais e correcionais. 3.4.2 As penas contravencionais. 3.4.3 Outras observações referentes às penas. 3.5 Breves dados estatísticos da aplicação prática em França. 4 Conclusão. 5 Referências.

RESUMOA responsabilidade penal da pessoa jurídica, tradicionalmente rejeitada nos sistemas romano-germânicos, teve consagração no Código Penal Francês, publicado em 1994, como resposta ao fenômeno da “macrocriminalidade” econômica, protagonizado por grandes corporações, o qual tem suscitado discussões e respostas em vários níveis. O sistema francês baseia-se essen-cialmente nos princípios da especialidade e da ligação do ato à pessoa jurídica e estabelece uma responsabilidade indireta (responsabilidade por ato de órgão ou representante do ente). Todas as pessoas jurídicas, excepcionados o Estado e, em certas hipóteses, as “coletividades territoriais”, são imputáveis. As sanções penais aplicáveis são: dissolução, multa, interdição de-finitiva ou temporária de direitos etc. Acendem-se atualmente em França, superando (ou acreditando superar) o debate da possibilidade ou não da responsabilização criminal de entes coletivos, propostas de extensão da responsabilidade penal da pessoa jurídica, apesar da resistência jurisprudencial.

Palavras-Chave: Responsabilidade Penal. Pessoas Jurídicas. Código Penal Francês.

* Mestrando em Ordem Jurídica Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Advogado Criminalista.

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Sérgio Bruno Araújo Rebouças

1 INTRODUÇÃOA responsabilidade penal da pessoa jurídica, que teve sua afirmação na

Idade Média, é fenômeno jurídico de grande complexidade, tendo sido objeto de controvérsias doutrinárias que se avolumam em nosso tempo, ante a presen-ça marcante e indisfarçável de uma nova forma de criminalidade, qual seja, a perpetrada sob o amparo e a proteção de potentes corporações econômicas.

Nesse contexto, vários Estados introduziram em suas legislações a pos-sibilidade de responsabilização criminal da pessoa jurídica, como é o caso da Inglaterra, da França, da Holanda, dos Estados Unidos da América do Norte, da Dinamarca e da Noruega. Outros Estados reagiram de forma diversa a essa nova feição da criminalidade econômica, com a adoção de soluções alternativas, consistentes na imposição de medidas administrativas e sanções econômicas, sem que se possa falar em uma responsabilidade criminal da pessoa jurídica. É o caso da Espanha, da Alemanha e da Itália. A tendência atual na Europa, todavia, é a admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica.

No Brasil, não parece estar sedimentado um debate à altura da complexi-dade do tema, sendo a legislação imprecisa e incompleta, e nossos juspenalistas, orientados marcantemente pela doutrina espanhola, rejeitam a hipótese com vigor, sem embargo de a Constituição da República e a Lei n. 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais) admitirem o fenômeno em referência.

Traz-se à análise, na oportunidade, um sistema europeu cuja singularidade reside no fato de veicular um fenômeno estranho à tradição a que pertence (romano-germânica) e que parece vir logrando apreciável sucesso prático, apesar de todos os obstáculos ainda opostos pela dogmática penal. Trata-se de uma notável experimentação prática de algumas das diversas propostas da idéia de uma responsabilização penal de entes coletivos.

2 BREVE HISTÓRICO DO INSTITUTO NO DIREITO FRANCÊSA jurisprudência da Cour de Cassassion (Corte de Cassação) francesa é,

por tradição, hostil à teoria da ficção, tendo consagrado a teoria da realidade da pessoa jurídica ou pessoa moral1. Em aresto da 2ª Câmara Civil, datado de 28 de janeiro de 1954, lê-se o seguinte, in verbis: “la personalité civile n’est pas une création de la loi; elle apartient à tout groupement pourvu d’une possibilité d’expression”2.

Os agrupamentos, portanto, segundo a concepção da Corte, têm per-sonalidade jurídica se são dotados de interesses coletivos distintos do de seus membros, de uma vontade coletiva que lhes permita a defesa de seus interesses, e de uma organização coletiva que lhes assegure a expressão dessa vontade.

A aceitação da teoria da realidade criou modernamente, em França, um ambiente favorável à admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica, que viria a se tornar princípio a partir do Código Penal de 1992, que entrou em

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vigor em 1º de março de 1994.

Nem sempre foi assim, entretanto. Se na Idade Média a responsabilidade penal existia para a Igreja e para os Reis da França, e se a Ordonnance criminelle de 1670, do ministro Colbert, tornou o fenômeno um princípio, com a Revolução Francesa, que suprimiu todas as pessoas morais em nome do individualismo (em 1792), a hostilidade à idéia da responsabilização dos entes coletivos se instalou. O Código Penal Francês de 1810, então, firmou como regra geral o princípio da irresponsabilidade penal da pessoa jurídica.

Os partidários da responsabilidade penal da pessoa moral e seus opositores afrontaram-se em 1929, no Congresso Internacional de Direito Penal de Buca-rest, no qual surgiu uma proposição para a repressão penal das pessoas morais. Tendo em conta essa proposição, houve uma tentativa de se introduzir um sistema de incriminação da pessoa jurídica no Projeto de Código Penal Francês de 1934. Multiplicaram-se então os projetos prevendo a responsabilidade penal da pessoa moral, mas nenhum deles vingou3.

Foi apenas em 1992 que a França logrou implantar um sistema de res-ponsabilidade penal da pessoa moral. O Código Penal veio a entrar em vigor em março de 1994, e resultou de proposta da Comissão de Revisão do Código Penal, criada em 1974 pelo Ministério da Justiça. Pela primeira vez um país pertencente à tradição romano-germânica consagrava a responsabilidade penal da pessoa jurídica.

3 OS PRESSUPOSTOS E AS CONDIÇÕES DA RESPONSABILIDADE A matéria vem disciplinada, no art. 121-2 do Novo Código Penal Francês,

da seguinte forma:

Art. 121-2. Les personnes morales, à l’exclusion de l’État, sont responsables pénalement, selon les distinctions des articles 121-4 à 121-7 et dans les cas prévus par la loi ou le règlement, des infractions commises, pour leur compte, par leurs organes ou réprésentants4.

A redação da segunda alínea do mesmo art. 121-2 é a seguinte:

Art. 121-2. Toutefois, les collectivités territoriales et leurs grou-pements ne sont responsables pénalement que des infractions commises dans l’exercice d’activités susceptibles de faire l’objet de conventions de délégation de service public5.

A terceira e última alínea do artigo, por sua vez, assim dispõe:

Art. 121-2. La responsabilité pénale des personnes morales

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n’exclut pas celle des personnes physiques auteurs ou complices des mêmes faits, sous réserve des dispositions du quatrième alinéa de l’article 121-36.

Analisem-se, a partir dessas disposições, os pressupostos e as condições da responsabilidade penal, segundo as pessoas jurídicas passíveis de responsa-bilização e os requisitos legais para a imputação.

3.1 As pessoas jurídicas imputáveisPelo princípio inserto na primeira alínea do art. 121-2, as pessoas morais

são em geral responsáveis penalmente, excepcionado apenas o Estado. A segunda parte, entretanto, ressalva também a hipótese das coletividades territoriais, que só podem ser penalmente responsabilizadas se cometerem infração suscetível de ser objeto de delegação de serviço público.

Assim sendo, tem-se que as pessoas jurídicas de direito privado (asso-ciações, sindicatos profissionais, fundações) são penalmente responsáveis e que, quanto às pessoas jurídicas de direito público, há a imposição legal de alguns limites à responsabilização. No que se refere às pessoas jurídicas de direito pú-blico, são penalmente responsáveis as sociedades de economia mista, as empresas nacionalizadas e os estabelecimentos públicos. São irresponsáveis, em contrapartida, o Estado e, em algumas hipóteses, as coletividades territoriais.

A exclusão do Estado da repressão penal tem um fundamento lógico-jurídico evidente. Com efeito, se o Estado detém o monopólio da repressão penal (sendo o titular privativo do chamado jus puniendi), claro está que não poderia punir a si próprio. Ademais, o princípio da separação dos poderes constitui mais um impedimento à admissão da hipótese.

No que diz respeito às coletividades territoriais, cabem aqui algumas re-flexões. Observou-se acima que as coletividades territoriais francesas só podem ser responsabilizadas se a conduta for praticada em atividade suscetível de ser objeto de delegação de serviço público.

Pois bem, a delegação de serviço público é definida nos seguintes termos pelo art. L.1411-1 do Código geral das coletividades territoriais:

[...] un contrat par lequel une personne morale de droit public confie la gestion d’un service public dont elle a la responsabilité à un délégataire public ou privé, dont la rémunération est substan-ciellement liée au résultat de l’exploitation du service7.

Os contratos podem ser de concessions (concessões), de régies intéressées (empresas confiadas pelo Estado a um estabelecimento que o represente), de affermages (arrendamentos) ou de gérances (gerências)8. As atividades não

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delegáveis são aquelas que necessitam do exercício de prerrogativas do Poder Público, isto é, das atividades do serviço público administrativo, enquanto que as atividades delegáveis dizem respeito a atividades do serviço público industrial ou comercial.

A limitação da responsabilidade penal das coletividades territoriais tem a nítida finalidade de proteção a essas entidades públicas, evitando-se uma distorção da concorrência nos domínios de atividades relevantes do setor pri-vado9. Nesse sentido, não estranha que a Corte de Cassação Francesa seja tão exigente para que a responsabilidade penal das coletividades se configure, tendo sido recentemente articulada – em aresto da Câmara Criminal, de 06 de abril de 2004 – a diferenciação entre serviço público de transporte, que é delegável, de sua organização, que não o é. Transcreva-se parte do teor do julgado, que cassou o acórdão da Corte de Apelação de Caen, datado de 26 de fevereiro de 2003, que condenava o departamento de Orne ao pagamento de multa de 5.000 euros, por prática de “homicídios involuntários” (arts. 121-2 e 221-6 do Código Penal):

[...] si l’exploitation du service des transports scolaires est suscep-tible de faire l’objet d’une convention de délégation de service public, il n’en va pas de même de son organisation, qui est confiée au département en application de l’article 29 de la loi du 22 juillet 1983, devenu l’article L. 213-11 du Code de l’éducation, et qui comprend notamment la détermination des itinéraires à suivre et des points d’arrêt à desservir, la cour d’appel a méconnu le sens et la portée du texte susvisé et du principe ci-dessus rappelé [...] (Court de Cassation, Chambre Criminelle, audience publique 06 avril 2004, pourvoi n. 03-82394, publié au Bulletin Criminel n. 89, p. 338)10

Quanto às pessoas morais estrangeiras, reina a incerteza e a imprecisão legislativa e jurisprudencial. Como ensina Fabrice Belghoul, “tout d’abord, la loi française s’appliquerait lorsque l’infraction est commise sur notre territoire. Ensuite, lorsque la victime de l’infraction est française et si l’infraction est pu-nie de l’emprisonnement”11. São as disposições constantes dos artigos 113-2 e 113-7 do Código Penal Francês, in verbis:

Art. 113-2. La loi pénale française est applicable aux infractions commises sur le territoire de la République12 (primeira alínea).

Art . 113-7. La loi pénal est applicable à tout crime, ainsi qu’à tout délit puni d’emprisonnement, commis par un Français ou par un étranger hors du territoire de la République lorsque la victime est de nationalité française au moment de l’infraction13.

Assim sendo, e na lição de Fabrice Belghoul, a pena em que incorrer a

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pessoa natural, órgão ou representante da pessoa jurídica, será levada em conta para decidir se à pessoa moral pode ser aplicado o Direito Francês14. Uma vez que, de acordo com o princípio da territorialidade (art. 113-2), é aplicada a lei francesa quando a infração for cometida no território da República Francesa, não há razão para excluir do âmbito da repressão penal as pessoas morais estrangeiras que ali estejam situadas. Do mesmo modo, se a vítima for francesa, e a infração, cometida fora do território da República, apenada com prisão relativamente à pessoa natural. Nesse último caso, toma-se em consideração a pena da pessoa física, órgão ou representante da pessoa moral.

Não se pode deixar de observar ainda que, iniciando-se a existência jurí-dica da pessoa moral somente a partir da matrícula (correspondente ao registro dos atos constitutivos do Direito Brasileiro) da sociedade, tem-se que somente poderá haver a responsabilidade penal de sociedades devidamente matriculadas. Assim sendo, as sociedades de fato não estão sujeitas à responsabilização penal.

3.2 As condições de aplicação - princípiosOs requisitos gerais para a configuração da responsabilidade penal

da pessoa jurídica estão enunciados no próprio art. 121-2, acima transcrito. Colacione-se, mais uma vez, a redação da primeira alínea desse dispositivo:

Art. 121-2. Les personnes morales, à l’exclusion de l’État, sont responsables pénalement, selon les distinctions des articles 121-4 à 121-7 et dans les cas prévus par la loi ou le règlement, des infractions commises, pour leur compte, par leurs organes ou réprésentants.15 (grifo nosso).

Identificam-se, nessa disposição, os dois princípios da responsabilidade penal da pessoa jurídica no sistema francês, a saber: o princípio da especialidade e o princípio da pertinência do ato à pessoa moral. Analisemos cada um deles, em separado.

3.2.1 O princípio da especialidadeConforme o princípio da especialidade, somente uma disposição textual

definindo a incriminação da pessoa moral pode engajar a responsabilidade penal desta. É o que se contém no trecho “dans les cas prévus par la loi ou le règlement” (nos casos previstos em lei ou regulamento).

Fabrice Belghoul, que defende uma responsabilidade mais ampla da pessoa moral, afirma que, se a responsabilidade penal é limitada a certas infrações, a regra geral continua a ser a irresponsabilidade das pessoas morais, como antes do Código Penal de 1º de março de 1994. Aduz, ainda, que o aumento dos casos

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previstos em lei representa uma tendência ao alargamento do campo de aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica, referindo que a França é o único país da Comunidade Européia que consagra um princípio da especialidade, uma vez que nos outros países ou as pessoas morais são totalmente irresponsáveis, ou sua responsabilidade é geral16.

Pensamos que a cautela legal justifica-se no contexto da entrada em vigor do Código Penal de 1994, em que a França ingressava na experimentação de um sistema cujos pressupostos dogmáticos não estavam ainda suficiente-mente amadurecidos. Com o desenvolvimento dos estudos em torno do tema, entretanto, emergiu a tendência à extensão da responsabilidade penal da pessoa jurídica, com o alargamento da responsabilidade. Sobre o assunto, a excelente monografia de Fabrice Belghoul é sintomática. Mais uma vez, são as exigências de ordem prática ativando novas propostas e novos estudos no afã de um mais eficaz sistema de combate à criminalidade contemporânea.

Na jurisprudência, porém, ainda reina uma resistência às hipóteses de responsabilidade penal da pessoa jurídica fora dos casos previstos em lei, o que é, diga-se de passagem, orientação sensata e bastante elogiável. Refira-se, por exemplo, aresto da Câmara Criminal da Corte de Cassação, datado de 09 de maio de 2001, do qual destacamos o seguinte excerto:

Attendu qu’il résulte de ce texte que les personnes morales ne sont responsables pénalement des infractions commises, pour leur compte, par leurs organes ou représentants, que dans les cas prévus par la loi ou le règlement ; Attendu que la cour d’appel a déclaré le Syndicat national in-dépendant et professionnel des Z... coupable de diffamation non publique sur le fondement de l’article R. 621-1 du Code pénal et l’a condamné de ce chef à 250 francs d’amende ; Mais attendu qu’en prononçant ainsi, alors qu’aucune disposition légale ou règlementaire ne prévoit que la responsabilité pénale des personnes morales puisse être engagée pour cette contravention, la cour d’appel a méconnu le texte susvisé et le principe ci-dessus énoncé (Cour de Cassation, Chambre Criminelle, audience pu-blique du 09 mai 2001, pourvoi n. 00-85662).17

Trata-se de um princípio da reserva legal especial, com referência à pessoa moral. Belghoul considera, sem embargo, que o princípio em questão é fundado mais no princípio da responsabilidade pessoal que no princípio da legalidade. A idéia subjacente a essa afirmação, segundo as próprias palavras do ilustre jurista francês, é a de que, se as pessoas jurídicas são responsáveis por conduta de seus agentes (responsabilidade indireta), trata-se de uma responsabilidade por fato de outrem, que não pode ser, por essa razão, geral, mas unicamente excepcional18. A responsabilidade geral só poderia, nessa ordem de idéias, ser pessoal; a responsabilidade indireta, apenas por via de exceção.

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Por fim, informe-se que o Código Penal e diversas leis especiais francesas prevêem uma série de infrações penais, afirmando a responsabilidade penal da pessoa jurídica nos moldes do princípio geral em comento. A título de exemplo, refira-se a hipótese do crime contra a humanidade, tipificado no art. 212-1, sendo que o art. 213-3 dispõe o seguinte, tornando possível a incriminação das pessoas morais:

Art. 213-3. Les personnes morales peuvent être déclarées respon-sables pénalement de crimes contre l’humanité dans les conditions prévues par l’article 121-2.Les peines encourues par les personnes morales sont :1º Les peines mentionnées à l’article 131-39 ;2º La confiscation de tout ou partie de leurs biens19.

A mesma técnica é utilizada em vários delitos e contravenções, como, por exemplo: homicídio culposo (art. 221-7 do Código Penal); tráfico de entorpecen-tes (art. 222-42); racismo (art. 225-4); estelionato (art. 313-9); direito autoral (art. 335-8 do Código da Propriedade Intelectual); trabalho clandestino (art. L. 364-6 do Código do Trabalho); infrações econômicas em forma de concorrência e de preço (art. 52-2 da Ordenação n. 86-1243); poluição hídrica (art. 28-1 da Lei n. 92-3); infrações em matéria de pesquisa médica (art. L. 209-19-1 do Código da Saúde Pública); dentre várias outras hipóteses.

3.2.2 O princípio da pertinência do ato à pessoa jurídica Em consonância com o princípio da pertinência ou da ligação do ato à

pessoa jurídica, a infração penal deve ser cometida por um órgão ou represen-tante da pessoa jurídica, agindo no quadro de suas funções, por conta da pessoa moral. O princípio em questão está expresso na parte “pour leur compte, par leurs organes ou représentants” (por sua conta, pelos seus órgãos ou representantes) do art. 121-2 do Código Penal.

Identificam-se aqui duas condições legais. A primeira é a de que a infra-ção penal deve ser praticada por um órgão ou representante da pessoa moral; a segunda é a de que a infração deve ser cometida por conta da pessoa moral.

A primeira condição refere-se ao substrato humano (órgão ou represen-tante) da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Conforme já salientado, a responsabilidade da pessoa jurídica, no Direito Francês, é indireta, operando-se por via dos órgãos ou representantes do ente.

O órgão da pessoa moral pode ser constituído por uma ou várias pessoas investidas pela lei ou pelos estatutos de um poder de direção e de gestão (por exemplo, o diretor geral e o Conselho de Administração). Há dois tipos de órgãos: os órgãos que detêm poder de direção, responsáveis pela elaboração da

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vontade social, sendo normalmente órgãos coletivos, como é o caso do Con-selho de Administração e da Diretoria; e os órgãos de representação, que são os dirigentes, com funções de execução nas relações com terceiros. Saliente-se que o órgão não é um mandatário. Ele faz parte da sociedade, identifica-se a esta, sendo designado pelo próprio estatuto social20.

A noção de representante, por sua vez, é mais problemática que a de órgão. Para alguns doutrinadores (por exemplo, Barbieri), o conceito de repre-sentante envolve todas as pessoas dotadas de poder de representação; nesse sentido, alguns órgãos são também representantes, como é o caso do gerente. Para outros (por exemplo, Mireille Delmas-Marty21 e Couret), no entanto, o representante seria um mandatário especial da sociedade. Essa concepção é afinada com a teoria do órgão, que distingue, de um lado, os órgãos de decisão e de execução e, de outro, os terceiros que podem vir a ser chamados a represen-tar a pessoa moral, como é o caso do advogado, do administrador provisório, do liquidante etc. Não se trata, portanto, de um mandatário social, mas de um mandatário especial.

Ainda no que diz respeito ao representante, parte da doutrina france-sa considera que nem um assalariado nem um dirigente de fato inserem-se nessa categoria. A Corte de Cassação, sem embargo, conferiu à noção de representante uma interpretação extensiva no sentido de considerar enqua-drada no conceito toda pessoa que, de direito ou de fato, disponha de um poder de direção. Assim sendo, o mandatário substituto (assim entendida a pessoa que recebe uma delegação de poderes de um mandatário social) e o mandatário tácito (ou seja, o representante da pessoa moral que não satisfaz as exigências impostas pela lei para o mandatário social) também fazem parte do conceito.

Quanto ao assalariado com delegação de poderes, assim já decidiu a Corte de Cassação Francesa: “le salarié d’une société, titulaire d’une délégation de pouvoirs en matière d’hygiène et de sécurité, est un représentant de la personne morale au sens de l’article 121-2 du Code Pénal”22.

De acordo com esse primeiro condicionante legal, tem-se por fim que, se a infração não for cometida por um órgão ou por um representante da pessoa moral, a responsabilidade penal do ente não poderá ser engajada.

Fabrice Belghoul, ainda na esteira de ampliação do âmbito da responsabi-lidade penal das pessoas morais, propõe e sustenta uma interpretação extensiva do conceito de representante, além de criticar a limitação legal de que a infração deve ser cometida por um órgão ou representante.

O segundo condicionante legal é a exigência de que a infração seja co-metida por conta da pessoa jurídica. Assim sendo, o órgão ou o representante deve agir no proveito e consoante os interesses da pessoa moral.

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3.3 A cumulação de responsabilidadesA terceira alínea do art. 121-2 do Código Penal dispõe o seguinte:

Art. 121-2. La responsabilité pénale des personnes morales n’exclut pas celle des personnes physiques auteurs ou complices des mêmes faits, sous réserve des dispositions du quatrième alinéa de l’article 121-323.

Assim sendo, a responsabilidade da pessoa moral não exclui a da pessoa física, em havendo culpa lato sensu desta no fato punível. Não há, portanto, presunção de responsabilidade relativamente à pessoa física. Reconhecida a responsabilidade da pessoa moral, a incriminação da pessoa física que por ela atuou condiciona-se à prova de uma culpa pessoal sua, seja por dolo ou por culpa stricto sensu. Isso porque o art. 121-3 dispõe que a intenção, a negligência ou a imprudência e a criação do risco são essenciais à configuração do delito.

A cumulação de responsabilidades pode ocorrer nos casos em que o dirigen-te apareça como um co-autor ou reúna os elementos materiais e/ou intelectuais da infração penal.

Impende destacar, nesse ponto, que a responsabilidade penal da pes-soa jurídica é independente da responsabilidade da pessoa física que por ela atue. Assim sendo, mesmo que não haja a incriminação de qualquer pessoa física, é plenamente possível o engajamento da responsabilidade do ente. A propósito, conforme o disposto na Exposição de Motivos (Circular de 14 de maio de 1993),

[...] a responsabilidade penal de uma pessoa jurídica, como autor ou partícipe, supõe que seja estabelecida a responsabilidade pe-nal, como autor ou partícipe, de uma ou de várias pessoas físicas representando a pessoa moral. Entretanto, em determinados casos e muito particularmente quando se trata de infrações de omissão, culposas ou materiais, que são formadas na falta seja de intenção delituosa, seja de um ato material de comissão, a responsabilidade penal de uma pessoa jurídica poderá ser deduzida mesmo que não tenha sido estabelecida a responsabilidade penal de uma pessoa física [...]

A Circular de aplicação de 11 de outubro de 2001, por sua vez, precisa que o comportamento da pessoa física, órgão ou representante da pessoa moral, pode ensejar a responsabilidade desta última, sem que a pessoa física seja ela mesma penalmente responsável.

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A responsabilidade penal da pessoa jurídica no Direito francês

3.4 Os efeitos da responsabilidade – as sanções penais aplicáveis à pessoa moralO Código Penal Francês, em sua parte geral (Seção 02 do Título III),

prevê uma série de penas aplicáveis às pessoas morais. Em matéria criminal e correcional, pode-se indicar a pena de multa e as penas complementares enu-meradas no art. 135-39 (estas últimas somente aplicáveis se houver previsão legal). São previstas também, no art. 131-40, penas contravencionais (multa e penas complementares privativas ou restritivas de direitos).

O art. 131-37 dispõe o seguinte, in verbis:

Art. 131-37. Les peines criminelles ou correctionelles encourus par les personnes morales sont:1º L’amende ;2º Dans les cas prévus par la loi, les peines énumérées à l’article 131-3924.

Quanto às penas contravencionais, reza o art. 131-40:

Art. 131-40. Les peines contraventionnelles encourues par les personnes morales sont:1º L’amende ;2º Les peines privatives ou restrictives de droits prévues à l’article 131-42.Ces peines ne sont pas exclusives d’une ou de plusieurs des peines complémentaires prévues à l’article 131-4325.

3.4.1 As penas criminais e correcionaisA pena criminal de multa, de acordo com o art. 131-38, tem o seu valor

máximo fixado como o quíntuplo do previsto para a pessoa física. Quando se tratar de crime para o qual a lei não preveja nenhuma pena desta natureza, o valor da multa para as pessoas morais é de 1.000.000 de euros.

As penas enumeradas no art. 131-39, aplicáveis apenas quando houver previsão legal, são as seguintes: a dissolução, aplicável quando a pessoa moral fora constituída desviada de seu objeto para cometer os fatos incriminados, sendo essa sanção reservada às infrações penais de maior gravidade, como os crimes contra a humanidade, o tráfico de drogas e o terrorismo; a interdição definitiva ou temporária (duração de 05 anos ou mais) de exercício de uma ou várias atividades profissionais ou sociais; o controle judiciário, por 05 (cinco) anos ou mais; o fechamento definitivo ou temporário (duração de 05 anos ou mais) dos estabelecimentos ou de um ou vários estabelecimentos da empresa utilizados para a prática do fato punível; a exclusão definitiva ou temporária (duração de 05 anos ou mais) dos mercados públicos; a interdição definitiva ou temporária (duração de 05 anos ou mais) de fazer apelo público à poupança; a interdição definitiva ou temporária (duração de 05 anos ou mais) de emitir

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cheques; a confiscação do objeto ou do produto do crime; a publicação da decisão judicial.

3.4.2 As penas contravencionais As penas contravencionais, além da multa (correspondente a no máximo

o quíntuplo da aplicável à pessoa física), têm-se as penas privativas e restritivas de direitos enumeradas no art. 131-42, que são as que se aplicam em substi-tuição à pena de multa: a interdição, por um ano ou mais, de emitir cheques, nas condições especificadas na alínea; a confiscação do objeto ou do produto da infração.

3.4.3 Outras observações referentes às penasDe acordo com o art. 132-60, o juiz ou a Corte podem declarar culpada

a pessoa moral e postergar a aplicação da pena em alguns casos. As pessoas morais de direito público, os partidos políticos e os sindicatos profissionais não estão sujeitos às penas de dissolução e de controle judiciário.

É possível a aplicação da suspensão condicional da pena (sursis), quando houver previsão legal, nos termos do art. 132-4, sendo que uma nova condenação no prazo de 05 anos (para o crime) e de 02 anos (para a contravenção) importa em revogação automática do benefício.

3.5 Breves dados estatísticos da aplicação prática em FrançaEm circular datada de 26 de janeiro de 1998, a Chancelaria francesa fez

um balanço da aplicação prática da reforma implementada pelo Código de 1994, analisando as cem primeiras condenações dirigidas a pessoas morais. A maioria das condenações diz respeito a pessoas morais de direito privado (34 SARL e 26 sociedades anônimas). As condenações mais freqüentes concernem a delitos de trabalho clandestino (35), de lesões involuntárias (19), de faturamentos irregulares (13) e de atentados ao meio ambiente (11).

As pessoas morais foram condenadas unicamente a penas de multa fixadas em torno de 6.905 euros em média, para aquelas que possuíam fim lucrativo. As outras sanções foram excepcionalmente pronunciadas (13 afixações, 05 pu-blicações e 04 confiscações). Em trinta de oito processos, uma pessoa física foi condenada ao mesmo tempo em que a pessoa moral, de acordo com o princípio da cumulação de responsabilidades, o que significa que nos outros 62 casos não houve responsabilidade das pessoas físicas.

A aplicação jurisprudencial do fenômeno vai se alastrando aos poucos, havendo certa tendência à extensão crescente da responsabilidade penal da pessoa moral nos meios doutrinários e jurisprudenciais franceses.

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A responsabilidade penal da pessoa jurídica no Direito francês

4 CONCLUSÃO

O modelo francês é uma das propostas que vêm surgindo nos sistemas penais contemporâneos para o combate a um fenômeno criminológico conhecido como “macrocriminalidade econômica”, caracterizado pelo recrudescimento da criminalidade corporativa, que tem como robustos personagens as pessoas jurídicas.

Nesse quadro, do aperfeiçoamento da repressão civil ou administrativa à responsabilização penal, encontra-se variada gama de sistemas no Direito Comparado. Uma análise desses sistemas demandaria um estudo à parte. Na oportunidade, elegeu-se a proposta francesa por ser a mais ousada numa tradição romano-germânica, que tem oposto sólidos obstáculos dogmáticos à idéia da responsabilização de entes coletivos, e por ter efetivado a proposta pela experi-mentação, a par das dificuldades científicas. Lastimável ter não servido de bom exemplo para o Brasil, em que apenas se engatilhou a idéia, anestesiada depois por uma legislação desastrada.

Mas a ampla aceitação do fenômeno, mesmo em França, ainda esbarra em muitas dificuldades. A esse respeito, é sintomática a referida resistência que ainda impera no que respeita à proposta de extensão da responsabilidade penal de entes coletivos, num momento em que a própria admissibilidade da idéia ainda é objeto de contínua discussão.

Por fim, não se negue à França o mérito da experimentação de um sis-tema estruturado para fazer frente a um fenômeno criminológico que reclama tratamento diferenciado. Se não logrou o sistema francês implantar um exem-plo de aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica – para muitos, dogmaticamente impossível –, é inegável que criou um modelo diferenciado de repressão a um quadro de criminalidade que se avoluma, designe-se ou não essa repressão com o qualificativo “penal”.

5 REFERÊNCIAS

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BELGHOUL, Fabrice. L’extension de la responsabilité pénale des personnes mo-rales. Orléans: Mémoire du DEA de droit économique et des affaires d’Órléans, 2003. Village-justice. Disponível em: <village-justice.com.>.

DELMAS-MARTY, Mireille et GUIDICELLI-DELAGE, Guyon. Droit pénal des affaires. Paris : PUF, 2000.

FRANÇA. Código Penal (1994). Code pénal français. Legifrance – Le service publique de la diffusion du droit: Legifrance.gouv. Disponível em: <www.legifrance.gouv.fr>. Acesso em: 2005.

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FRANÇA. Corte de Cassação. Câmara Criminal, audiência pública de 09 de maio de 2001, processo n. 00-85662. Legifrance.gouv. Disponível em: <www.legifrance.gouv.fr>.

FRANÇA. Corte de Cassação. Câmara Criminal, Câmara Criminal, audiência pública de 06 de abril de 2004, processo n. 03-82394, publicação no Boletim Criminal 2004, n. 89, p. 338. Legifrance.gouv. Disponível em: <www.legifrance.gouv.fr>.

REGIS PRADO, Luiz. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: o modelo francês. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 46, set. 1996, p. 3.

STEFANI, G., LEVASSEUR, G. et BOULOC, B. Droit pénal général. 18. ed. France: Précis Dalloz, 2003.

TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas en el derecho comparado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 11, p. 21-35, jul./set., 1995.

1 Em França, é mais corrente a utilização da expressão “pessoa moral”.2 No vernáculo: “A personalidade civil não é uma criação da lei; ela pertence a todo agrupamento dotado

de uma possibilidade de expressão”.3 BELGHOUL, Fabrice. L’extension de la responsabilité pénale des personnes morales. Orléans: Mémoire

du DEA de droit économique et des affaires d’Órléans, 2003. Village-justice. Disponível em: <village-justice.com.>. p. 09.

4 No idioma vernáculo: “As pessoas morais, à exceção do Estado, são responsáveis penalmente, segundo as distinções dos artigos 121-4 a 121-7 e nos casos previstos em lei ou regulamento, pelas infrações cometidas, por sua conta, pelos seus órgãos ou representantes”.

5 Todavia, as coletividades territoriais e seus agrupamentos não são responsáveis penalmente senão pelas infrações cometidas no exercício de atividades suscetíveis de ser objeto de convenções de delegação de serviço público.

6 A responsabilidade penal das pessoas morais não exclui a das pessoas físicas autoras ou cúmplices dos mesmos fatos, ressalvadas as disposições da quarta alínea do artigo 121-3.

7 No vernáculo: “[...] um contrato pelo qual uma pessoa moral confia a gestão de um serviço público de sua responsabilidade a um delegatário público ou privado, cuja remuneração é substancialmente ligada ao resultado da exploração do serviço”.

8 BELGHOUL, Fabrice. op. cit., p. 06.9 Ibidem.10 [...] se a exploração do serviço dos transportes escolares é suscetível de ser objeto de delegação de serviço

público, o mesmo não ocorre com sua organização, que é confiada ao departamento por aplicação do artigo 29 da lei de 22 de julho de 1983, tornado artigo L. 213-11 do Código da educação, e que compreende notadamente a determinação dos itinerários e dos pontos de chegada, a Corte de Apelação desconheceu o sentido e o alcance do texto apontado e do princípio acima lembrado [...] (FRANÇA. Corte de Cassação. Câmara Criminal, Câmara Criminal, audiência pública de 06 de abril de 2004, processo n. 03-82394, publicação no Boletim Criminal 2004, n. 89, p. 338. Legifrance.gouv. Disponível em: <www.legifrance.gouv.fr>.)

11 [...] a princípio, a lei francesa se aplicará quando a infração for cometida sobre nosso território. Em seguida, quando a vítima da infração for francesa e se a infração for punida com a prisão.

12 A lei penal francesa é aplicável às infrações cometidas sobre o território da República.13 A lei penal francesa é aplicável a todo crime, assim como a todo delito punido com prisão, cometido por

um Francês ou por um estrangeiro fora do território da República quando a vítima é de nacionalidade francesa no momento da infração.

14 BELGHOUL, Fabrice. op. cit.., p. 07.15 As pessoas morais, à exceção do Estado, são responsáveis penalmente, segundo as distinções dos artigos

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A responsabilidade penal da pessoa jurídica no Direito francês

121-4 a 121-7 e nos casos previstos em lei ou regulamento, pelas infrações cometidas, por sua conta, pelos seus órgãos ou representantes.

16 BELGHOUL, Fabrice. op. cit., p. 54.17 Considerando que resulta desse texto [art. 121-2 do Código Penal] que as pessoas morais não são

responsáveis penalmente pelas infrações cometidas, por seus órgãos ou representantes, senão nos casos previstos pela lei ou regulamento / Considerando que a corte de apelação declarou o Sindicato nacional independente e profissional dos Z... culpado por difamação não pública com fundamento no artigo R. 621-1 do Código Penal e o condenou desta forma a 250 francos de multa / Mas considerando que, em se pronunciando assim, sem que nenhuma disposição legal ou regulamentar preveja que a responsabilidade penal das pessoas morais possa ser engajada por essa contravenção, a corte de apelação desconheceu o texto e o princípio acima enunciados (FRANÇA. Corte de Cassação. Câmara Criminal, Câmara Criminal, audiência pública de 06 de abril de 2004, processo n. 03-82394, publicação no Boletim Criminal 2004, n. 89, p. 338. Legifrance.gouv. Disponível em: <www.legifrance.gouv.fr>.).

18 BELGHOUL, Fabrice. op. cit., p. 65.19 As pessoas morais podem ser declaradas responsáveis penalmente pelos crimes contra a humanidade na

condições previstas pelo art. 121-2.“As penas em que incorrem as pessoas morais são:1 – as penas mencionadas no art. 131-39;2 – A confiscação de todos ou de parte de seus bens”.20 BELGHOUL, Fabrice. op. cit., p. 17.21 Vide a excelente obra DELMAS-MARTY, Mireille et GUIDICELLI-DELAGE, Guyon. Droit pénal des

affaires. Paris: PUF, 2000.22 BELGHOUL, Fabrice. op. cit., p. 17.23 A responsabilidade penal das pessoas morais não exclui a das pessoas físicas autoras ou cúmplices dos

mesmos fatos, ressalvadas as disposições da quarta alínea do artigo 121-3.24 As penas criminais e correcionais em que incorrem as pessoas morais são: 1º a multa; 2º nos casos previstos

em lei, as penas enumeradas no artigo 131-39.25 As penas contravencionais em que incorrem as pessoas morais são: 1º a multa; 2º as penas privativas e

restritivas de direitos previstas no artigo 131-42. Essas penas não são exclusivas de uma ou de várias das penas complementares previstas no artigo 131-43.

BIOLAW: INSTRUMENT FOR PROMOTING THOUGHTS ON THE ETHICS OF LIFE

ABSTRACTThe criminal liability of corporations, traditionally rejected in the legal systems of countries related to Roman and German laws, appeared in the French Criminal Code enacted in 1994, as an answer to the phenomenon of the so-called “economic macro-crime”, carried out by large corporations. The new rules regarding the issue of criminal liability of corporate bodies provoked controversy in many different levels of society, starting a process which, however, opened the possibility to outline some answers to the questions proposed. The French system is essentially based upon the principles of the specialty and of the direct link of the illicit act to the corporation and creates the notion of indirect liability (responsibility for the act of an organ or of a representative of the corporate entity).

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Sérgio Bruno Araújo Rebouças

All corporations, except the State and, in certain cases, the so-called “territorial collectivities”, are imputable. The applicable penalties are: dissolution, fine, definitive or temporary loss of rights and so on. Furthermore, as the possibility of making corporations criminally liable in France is apparently clear, a new dispute arises, as some proposals for extending the hypotheses of criminal liability of corporate bodies appear, despite the resistance found in higher courts.

Keywords: Criminal liability. Corporate bodies. Criminal Code of France.

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A reclAmAção constitucionAl

trycia Alexandre Carneiro de Melo Jorge**

nagibe de Melo Jorge neto****

1 Introdução. 2 Breve histórico. 3 Da natureza jurídica da re-clamação. 4 Do procedimento. 5 Expansão do efeito vinculante no controle concentrado e ampliação dos legitimados para propositura da reclamação. 6 Análise prática das consequên-cias da ampliação dos legitimados para propor a reclamação. 7 Conclusão. 8 Referências

RESUMONa circunstância jurídica atual, o instituto da reclamação figura como garantia constitucional. Além de estar presente na Constituição Federal, no artigo 102, inciso I, alínea l, a reclamação também se encontra disciplinada nos regimentos dos tribunais superiores e na Lei nº 8.038/90. Recente jurispru-dência do Supremo Tribunal Federal deu nova interpretação à aplicabilidade do citado instituto e, com isso, a reclamação passou a ter maior utilidade, funcionando como importante instrumento garantidor da aplicação do princípio da isonomia, indispensável ao ideal democrático. Este texto apresenta breve estudo sobre a reclamação constitucional, com o objetivo de analisar a evolução deste instituto no ordenamento jurídico brasileiro como instrumento de ampliação da competência do STF, estabelecida pela Constituição Federal de 1988. Para desenvolver este trabalho, foram utilizadas pesquisa biblio-gráfica, consulta a livros, periódicos, bem como visitas a sítios eletrônicos, análises de jurisprudência de tribunais superiores, principalmente do Supremo Tribunal Federal. Inicialmente foram abordados temas pertinentes e mais amplos, porém ne-cessários para a real compreensão do objeto em estudo, como a supremacia constitucional e o controle de constitucionali-dade. Restaram avaliados o conceito, a natureza jurídica da reclamação, o cabimento, o procedimento e a ampliação dos legitimados sua propositura após a expansão do efeito vincu-lante no controle concentrado de normas, o que acresceu a demanda do STF. Por fim, fez-se uma avaliação a respeito do aumento do poder político da Corte Suprema e do crescimento do número de reclamações intentadas nos últimos anos perante esta Corte. Apontou-se que o aumento na competência do STF,

* Aluna concludente do curso de Direito da Faculdade Christus.** Mestre, professor e orientador de Direito Constitucional da Faculdade Christus.

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Trycia Alexandre Carneiro de Melo Jorge e Nagibe de Melo Jorge Neto

que ocorreu para garantir aos jurisdicionados a realização do direito, acarreta maior concentração de poder político para o Excelso Pretório, afastando-a, porém, da sua função precípua de guardar a Constituição.

Palavras-chave: Supremacia Constitucional. Controle de Constitucionalidade. Tribunais Superiores. Reclamação Constitucional.

1 INTRODUÇÃOA Constituição Federal, a fim de garantir a existência do Estado, conferiu ao

Poder Judiciário a função jurisdicional. Para que o Poder Judiciário exercesse sua fun-ção de forma eficaz, os atos emanados desse Poder deveriam ter força suficiente para alcançar os fins para os quais foram concebidos. Sabe-se, porém, que, na prática, as decisões judiciais nem sempre possuem força suficiente para que sejam cumpridas.1

A reclamação, em uma de suas modalidades, existe exatamente como um remédio para combater o descumprimento das decisões judiciais. Nas palavras de Leonardo Morato, “é, a reclamação, um instrumento que dá força ao Poder Judiciário, mais precisamente aos Tribunais Superiores”2.

Seguindo o pensamento do mesmo autor, a reclamação é consequência das necessidades da sociedade. Ao lado de outros remédios, ela serve para tentar atingir a finalidade do processo, a imposição da lei e da ordem, a realização do direito, a paz social.

2 BREVE HISTÓRICOConforme nos ensina Gilmar Mendes3, o instituto da reclamação no

Direito brasileiro para preservar competência do Supremo Tribunal Federal ou garantir suas decisões é fruto de criação jurisprudencial. Ela decorre da ideia dos implied powers deferidos ao Tribunal. O Supremo Tribunal Federal passou a adotar essa doutrina para a solução de problemas operacionais diversos. A falta de contornos definidos sobre o instituto da reclamação fez, portanto, com que a sua constituição inicial repousasse sobre a teoria dos poderes implícitos. Em 1957, aprovou-se a incorporação da Reclamação no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. A Constituição Federal de 1967, que autorizou o STF a estabelecer a disciplina processual dos feitos sob sua competência, conferindo força de lei federal às disposições do Regimento Interno sobre seus processos, acabou por legitimar definitivamente o instituto da reclamação, agora fundamentada em dispositivo constitucional. Com o advento da Carta de 1988, o instituto adquiriu, finalmente, status de competência constitucional (art. 102, I, “l”). A Constituição consignou, ainda, o cabimento da reclamação perante o Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, “f”), igualmente destinada à preservação da competência da Corte e à garantia da autoridade das decisões

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A reclamação constitucional

por ela exaradas. Com o desenvolvimento dos processos de índole objetiva em sede de controle de constitucionalidade no plano federal e estadual (inicialmente representação de inconstitucionalidade e, posteriormente, ADI, ADIO, ADC e ADPF), a reclamação, na qualidade de ação especial, adquiriu contornos dife-renciados na garantia da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal ou na preservação de sua competência. Ressalte-se, ainda, que a EC n° 45/2004 consagrou a súmula vinculante, no âmbito da competência do Supremo Tribunal, e previu que a sua observância seria assegurada pela reclamação (art. 103-A, § 3º – “Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicá-vel ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso”.

Portanto, a reclamação, como se pode observar, vem adquirindo contornos diferenciados no seu conceito e, atualmente, ocupa importante papel, por ter sido alçada a dispositivo constitucional. A grande quantidade de reclamações propostas nos últimos anos indica o significativo relevo que vem ganhando o ins-tituto. Na ordem constitucional vigente, a reclamação representa garantia para a aplicação do princípio da isonomia, indispensável ao ideal democrático.

3 DA NATUREZA JURÍDICA DA RECLAMAÇÃOA natureza jurídica da reclamação tem sido objeto de muita discussão

doutrinária. As opiniões fundamentadas de renomados juristas variam entre remédio processual, garantia processual, recurso, incidente processual e ação, sendo esta última a de maior aceitação entre os autores.

Gisele Góes defende a ideia de que a nomenclatura de remédio processual constitucional, embora expresse bem o fenômeno em análise, não é adequada, e prefere concluir que é uma garantia constitucional processual, porquanto não basta enunciar o direito, devendo-se ter meios eficientes de assegurá-lo perante qualquer forma de abuso, seja in casu pelo descumprimento de decisão ou súmula vinculante ou por invasão de competência.4

Já o Ministro Celso de Mello, pelo teor do seu voto proferido na reclama-ção nº 336/DF, DJU, de 15.03.1991, repetido na reclamação nº 511/PB, DJU, de 15.09.1995, tem posicionamento diverso a respeito do instituto ora estudado. Para o referido autor a natureza jurídica da reclamação é de instrumento de extração constitucional.

Para Ada Pelegrini Grinover, o instituto da reclamação não é ação, uma vez que não se vai rediscutir a causa com um terceiro; não se trata de recurso, pois a relação processual já está encerrada, nem se pretende reformar decisão, mas antes garanti-la; não se trata de incidente processual, porquanto o processo já se encerrou. Cuida-se simplesmente de postular perante o próprio órgão que proferiu uma decisão o seu exato e integral cumprimento.5

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Trycia Alexandre Carneiro de Melo Jorge e Nagibe de Melo Jorge Neto

Entendimento semelhante já foi consagrado pelo STF, conforme se ob-serva pela ementa da ADI 2.212, no qual a relatora Min. Ellen Gracie aceitou a previsão da reclamação também para o controle de constitucionalidade estadual e com previsão na Constituição Estadual.

Por sua vez, Pedro Lenza destaca que a reclamação “é provimento man-damental de natureza constitucional”.6

Mesmo ainda havendo posições discordantes, entretanto, o entendimento mais aceito atualmente é de que a reclamação é mesmo ação.

Assim assevera Marcelo Navarro em importante obra específica sobre o assunto: “a reclamação constitucional consiste numa ação, ajuizada originaria-mente no tribunal superior, com vistas a obter a preservação de sua competência para garantir a autoridade dos seus julgados.”7

No mesmo sentido, Freddie Didier acrescenta que a reclamação contém, inclusive, os elementos da ação, a saber: partes, causa de pedir e pedido; ou seja, há o reclamante e o reclamado, contendo a formulação de um pedido e a demonstração de uma causa de pedir, consistente na invasão de competência ou na desobediência à decisão da Corte.8

Mais recentemente, no julgamento da Rcl 5470/PA, o relator ministro Gilmar Mendes destaca a natureza jurídica e processual da Reclamação, su-mariando sua origem e evolução jurisprudencial, concordando com a posição dominante da doutrina, verbis:

A reclamação, tal como prevista no art. 102, I, “l”, da Constituição, e regulada nos artigos 13 a 18 da Lei n° 8.038/90, e nos artigos 156 a 162 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, constitui ação de rito essencialmente célere, cuja estrutura proce-dimental, bastante singela, coincide com o processo do mandado de segurança e de outras ações constitucionais de rito abreviado. A adoção de uma forma de procedimento sumário especial para a reclamação tem como razão a própria natureza desse tipo de ação constitucional, destinada à salvaguarda da competência e da autoridade das decisões do Tribunal, assim como da ordem constitucional como um todo.”9

Portanto, no panorama atual, tanto doutrina quanto jurisprudência en-tendem que a reclamação é ação, ação autônoma de impugnação de ato judicial, provocando, então, o exercício de jurisdição contenciosa.

4 DO PROCEDIMENTOO procedimento adotado para a reclamação está descrito nos artigos 156

a 162 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e nos artigos 13 a 18 da Lei 8.038/199010.

Ao ajuizar a reclamatória no Tribunal, a petição inicial deve preencher

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A reclamação constitucional

os requisitos do art. 282, do CPC, assim como deve estar dirigida ao presidente, sendo instruída com as provas documentais das suas alegações, não se admitin-do a produção de provas no curso do processo. A prova documental é o único meio de prova admitido neste processo (RISTF, art. 156 e parágrafo único; Lei 8.038/1990, art. 13 e parágrafo único). O STF já se posicionou no sentido de que, quando a decisão descumprida tiver sido prolatada em sede de controle abstrato de constitucionalidade, ainda que se trate de medida liminar, a juntada da decisão cuja autoridade se quer preservar é desnecessária.

A petição endereçada ao presidente do Tribunal será por ele autuada e encaminhada à distribuição. Quando a reclamação é para a preservação da autoridade de decisão do Tribunal, o processo é distribuído por prevenção ao relator da causa principal, sempre que possível (RISTF, art. 70); se, porém, a re-clamação não é feita por quem era parte naquela ação, a distribuição é livre.

Quando a competência usurpada for do próprio presidente do Tribunal, ele deverá funcionar como relator.

Recebendo a reclamação, o relator requisitará informações do órgão ou autoridade a quem foi imputada a prática do ato e a autoridade reclamada de-verá prestar informação no prazo de dez dias (Lei nº 8038, art. 14, I). Ordenará, ainda, se necessário, para evitar dano irreparável, a suspensão do processo ou do ato impugnado (Lei nº 8038, art. 14, II), ou determinará a remessa dos autos ao STF (RISTF, art. 158), mesmo que não haja pedido da parte. O pedido do reclamante poderá ser impugnado por qualquer interessado (RISTF, art. 159). Na ocasião do despacho da inicial, o relator poderá ordenar, se necessária, a suspensão do processo ou do ato impugnado (art. 14 da Lei 8.038/90).

Da decisão que conceder ou negar liminar caberá agravo regimental no prazo de cinco dias ao órgão colegiado competente para julgar a reclamação (art. 39 da Lei 8.038/90). Da decisão que nega ou concede a liminar cabe agravo regimental (RISTF, art. 317). Para Gisele Góes11, essa decisão tem natureza de antecipação dos efeitos da tutela.

Nas reclamações não formuladas pelo Procurador Geral da República, será concedida vista ao chefe do Ministério Público após as informações (RIS-TF, art. 160). Nos termos do art. 16 da Lei 8.038/90, a ausência da intimação do membro do Ministério Público enseja nulidade dos atos praticados desde o momento que deveria ter oficiado no pleito.

Das decisões adotadas pelo relator, caberá agravo regimental.

Se julgada procedente a reclamação, poderá o Tribunal ou a Turma, se for o caso (RISTF, art. 161): avocar o conhecimento do processo em que se verifique usurpação de sua competência; ordenar que lhe sejam remetidos, com urgência, os autos do recurso para ele interposto; e cassar a decisão exorbitante de seu julgado ou determinar medida adequada à observância de sua jurisdição.

No caso de situações repetitivas ou idênticas, objeto de jurisprudência

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Trycia Alexandre Carneiro de Melo Jorge e Nagibe de Melo Jorge Neto

consolidada do Tribunal, a Emenda Regimental nº 13, de 2004, autorizou o relator a decidir monocraticamente (RISTF, art. 161, parágrafo único).

Finalmente, considerando-se a natureza jurídica da reclamação como ação, a decisão definitiva de mérito faz coisa julgada formal e material.

Nesse sentido, o entendimento do Supremo Tribunal Federal vem con-siderando que, após o trânsito em julgado da decisão, esta somente poderá ser modificada por meio de rescisória, revisão criminal ou habeas corpus12.

5 EXPANSÃO DO EFEITO VINCULANTE NO CONTROLE CONCEN-TRADO E AMPLIAÇÃO DOS LEGITIMADOS PARA PROPOSITURA DA RECLAMAÇÃO

De acordo com o artigo 13, parágrafo único, da Lei 8.038/1990, o sujeito ativo para interpor a reclamação é a parte interessada ou o Ministério Público, ou seja, o Procurador Geral da República. Não são poucos, contudo, os casos em que as reclamações são interpostas e não são conhecidas por ausência de legitimidade ativa para sua interposição13.

É que a expressão “parte interessada”, constante na Lei 8.038/90, as-sume conteúdo amplo no âmbito do processo subjetivo, o que não ocorre nos processos objetivos14, como no caso da ação direta de inconstitucionalidade. Nesta, onde o processo é objetivo, não há partes, nem há litígio referente a situação individual.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal não admitia a possibilidade de reclamação no controle abstrato de normas, porque, a rigor, nos processos objetivos, não há parte interessada. São muitas as manifestações do referido Tribunal neste sentido, porém, vejamos a decisão da RCL-AgReg 354, que teve como relator o Ministro Celso de Mello:

AGRAVO REGIMENTAL – RECLAMAÇÃO QUE BUSCA GARANTIR A AUTORIDADE DE DECISÃO TOMADA EM PROCESSO DE CONTROLE CONCENTRADO DE CONS-TITUCIONALIDADE – INADMISSIBILIDADE – RECURSO IMPROVIDO – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido do não cabimento da reclamação na hipótese de descumprimento de decisão tomada em sede de controle con-centrado de constitucionalidade, dada a natureza eminentemente objetiva do processo de ação direta. Precedentes da Corte.15

Como bem observa Cláudia Oliveira Pachú, no entanto, o Direito não pode permanecer estanque quando se encontra em jogo o valor segurança ju-rídica, princípio tão caro para a realização da ordem jurídica16. Então, em fase seguinte, o mesmo Tribunal passou a admitir a propositura de reclamação em sede de ADIn, desde que ajuizada por qualquer dos legitimados do art. 103 da Constituição Federal e que tivesse o mesmo objeto. Assim, o próprio Min. Celso

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A reclamação constitucional

de Mello, também como relator, proferiu a seguinte decisão denegando o pedido via reclamação, por não se tratar de sujeito ativo que fora parte na ADIn, e ainda por não ser o sujeito ativo legitimado de acordo com o art. 103 da Constituição Federal. Considerou, portanto, impertinente o meio processual adotado.

Após esse último posicionamento, outra vez o Min. Celso de Mello ino-vou, ao expressar a necessidade de que o entendimento jurisprudencial fosse revisto, o que ocorreu no julgamento da RCL (QO) MC 397. De acordo com esse novo entendimento, haveria a possibilidade de se admitir a reclamação para atacar desobediência às decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado por aqueles entes e órgãos que não foram parte na ADIn, mas que fossem titulares de legitimidade concorrente para requerer ação idêntica:

EMENTA: RECLAMAÇÃO - GARANTIA DA AUTORIDADE DE DECISÃO PROFERIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONA-LIDADE - EXCEPCIONALIDADE DO SEU CABIMENTO - AUSÊNCIA DE LEGITIMIDADE ATIVA - PEDIDO NÃO CONHECIDO. - O ajuizamento de ação direta de inconstitu-cionalidade, perante o Supremo Tribunal Federal, faz instaurar processo objetivo, sem partes, no qual inexiste litígio referente a situações concretas ou individuais. A natureza eminentemente objetiva do controle normativo abstrato afasta o cabimento do instituto da reclamação por inobservância de decisão proferida em ação direta (Rcl 354, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Coloca-se, contudo, a questão da conveniência de que se atenue o rigor dessa vedação jurisprudencial, notadamente em face da notória insubmissão de alguns Tribunais judiciários as teses jurídicas consagradas nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Fe-deral em ações diretas de inconstitucionalidade. - A expressão “parte interessada”, constante da Lei n. 8.038/90, embora assuma conteúdo amplo no âmbito do processo subjetivo, abrangendo, inclusive, os terceiros juridicamente interessados, deverá no pro-cesso objetivo de fiscalização normativa abstrata, limitar-se apenas aos órgãos ativa ou passivamente legitimados a sua instauração (CF, art. 103). Reclamação que não há de ser conhecida, eis que formulada por magistrados, estranhos ao rol taxativo do art. 103 da Constituição17. (Grifo nosso).

Posteriormente, no julgamento da Rcl 399, houve mais um avanço no uso da reclamação em sede de controle concentrado. Na referida decisão, passou-se a admitir a reclamação quando o próprio órgão responsável pela edição da lei declarada inconstitucional persistisse em prática de atos concretos que pressu-ponham a validade da norma declarada inconstitucional.

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Trycia Alexandre Carneiro de Melo Jorge e Nagibe de Melo Jorge Neto

Com a Emenda Constitucional nº 3/93, houve a introdução da ação decla-ratória de constitucionalidade (ADC) no ordenamento jurídico, com admissão expressa da reclamação para preservar decisão do Supremo Tribunal em sede de controle concentrado. Em voto proferido na ADC 1-1/DF, o entendimento sustentado pelo Min. Moreira Alves foi de que, em razão da força vinculante da ação declaratória de constitucionalidade, os concretamente prejudicados com o desrespeito dessa decisão pelos demais órgãos do Poder Judiciário poderiam se valer da reclamação ao Supremo Tribunal Federal para desconstituir esse desrespeito.

O Texto Constitucional, entretanto, não foi expresso quanto ao cabimen-to de reclamação para descumprimento de decisões em sede de ação direta de inconstitucionalidade. Nesses casos, como explicitado anteriormente, a juris-prudência do Supremo Tribunal Federal anterior à promulgação da Lei 9.868/99 era pacífica no sentido de que a reclamação somente era admissível excepcio-nalmente para assegurar a autoridade da decisão proferida naquele processo quando “o mesmo órgão de que emanara a norma declarada inconstitucional persiste na prática de atos concretos que lhe pressuporiam a validade”18.

No julgamento de questão de ordem na Rcl 1880, o Pleno do Supremo Tribunal Federal declarou constitucional o art. 28 da Lei 9.868/99, revendo a jurisprudência anterior e considerando que as decisões proferidas em ação direta de inconstitucionalidade também teriam efeito vinculante em face de qualquer órgão do Poder Judiciário e do Poder Executivo. Assim foi a ementa da decisão:

QUESTÃO DE ORDEM – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITU-CIONALIDADE – JULGAMENTO DE MÉRITO – PARÁGRA-FO ÚNICO DO ART. 28 DA LEI Nº 9.868/1999: CONSTITU-CIONALIDADE – EFICÁCIA VINCULANTE DA DECISÃO – REFLEXOS – RECLAMAÇÃO – LEGITIMIDADE ATIVA. 1. É constitucional lei ordinária que define como de eficácia vinculante os julgamentos definitivos de mérito proferidos pelo Supremo Tribu-nal Federal em ação direta de inconstitucionalidade (Lei 9868/99, artigo 28, parágrafo único). 2. Para efeito de controle abstrato de constitucionalidade de lei ou ato normativo, há similitude substan-cial de objetos nas ações declaratória de constitucionalidade e direta de inconstitucionalidade. Enquanto a primeira destina-se à aferição positiva de constitucionalidade a segunda traz pretensão negativa. Espécies de fiscalização objetiva que, em ambas, traduzem manifes-tação definitiva do Tribunal quanto à conformação da norma com a Constituição Federal. 3. A eficácia vinculante da ação declaratória de constitucionalidade, fixada pelo § 2º do artigo 102 da Carta da República, não se distingue, em essência, dos efeitos das decisões de mérito proferidas nas ações diretas de inconstitucionalidade. 4. Reclamação. Reconhecimento de legitimidade ativa ad causam de todos que comprovem prejuízo oriundo de decisões dos órgãos do Poder Judiciário, bem como da Administração Pública de todos os

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A reclamação constitucional

níveis, contrárias ao julgado do Tribunal. Ampliação do conceito de parte interessada (Lei 8038/90, artigo 13). Reflexos processuais da eficácia vinculante do acórdão a ser preservado. 5. Apreciado o mérito da ADI 1662-SP (DJ de 30.08.01), está o Município legitimado para propor reclamação. Agravo regimental provido19. (Grifo nosso).

Dessa forma, houve ainda maior ampliação dos legitimados para propor a reclamação, pois qualquer pessoa afetada ou atingida pelo ato contrário à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal dispunha de legitimidade para promover a reclamação.

Esse fato ensejou controvérsias, até que houve a Emenda Constitucional nº 45, que introduziu o instituto do efeito vinculante nas decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, cabendo pois a reclamação para os casos de descumprimento dessas decisões.

A reforma do Judiciário promovida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 também trouxe expressiva novidade quanto à reclamação para garan-tir a autoridade da decisão do Supremo Tribunal, consagrada no instituto da súmula vinculante.

Vale dizer, então, que o modelo constitucional adotado consagra a ad-missibilidade da reclamação contra ato da Administração ou contra ato judicial em desconformidade com a súmula dotada de efeito vinculante.20

Como se percebe, o efeito vinculante nas decisões proferidas pelo Tri-bunal ou Corte Constitucional funciona como garantia do próprio Estado De-mocrático, proporcionando aos jurisdicionados a mesma decisão com todas as consequências jurídicas daí decorrentes. Assim sendo, havendo decisão dotada de efeito vinculante, do seu descumprimento caberá reclamação. Isso, sem dú-vida, fortaleceu o instituto da reclamação, concedendo-lhe lugar de destaque no panorama jurídico nacional.

6 ANÁLISE PRÁTICA DAS CONSEQUÊNCIAS DA AMPLIAÇÃO DOS LEGITIMADOS PARA PROPOR A RECLAMAÇÃO

De acordo com a tradição jurídica brasileira, o Supremo Tribunal Federal apresenta um modelo jurídico próprio. É o órgão institucional responsável pela guarda da Constituição. Cabe a ele fazer o juízo de conformação de leis e atos políticos com o ordenamento pátrio; e é dele a última palavra na interpretação, aplicação e garantia da Constituição. Essa tarefa é desempenhada por meio dos controles de constitucionalidade concentrado e difuso.

Ocorre que a própria Constituição reservou ao Supremo Tribunal Federal uma série de outras competências além desta, fazendo com que esse Tribunal tenha que conciliar as duas funções: a de cúpula do Poder Judiciário e a de

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Trycia Alexandre Carneiro de Melo Jorge e Nagibe de Melo Jorge Neto

Corte Constitucional.

Então, tanto ficam a cargo da Corte Constitucional matérias de eleva-da repercussão política e jurídica, de cunho puramente constitucional, como também questões consideradas de pouca relevância para os padrões das cortes constitucionais. Com isso, observa-se é que este Tribunal se vê sufocado pelo grande número de competências, o que, ao nosso ver, prejudica tanto a quan-tidade como a qualidade das suas decisões. Este também é o pensamento do mestre Oscar Vilhena Vieira, ao acentuar que “o Supremo Tribunal Federal, é encarregado de diversas questões que se afastam de sua função precípua de ‘guarda da Constituição’ (Constituição Federal, art. 102, caput), o que, em certa medida, acaba prejudicando o bom desempenho desta atribuição”21.

Com a reforma do Judiciário que aconteceu com a Emenda Constitucional n° 45/2004, houve inovações significativas que aumentaram as funções e respon-sabilidades do Supremo Tribunal Federal, dando com isso lugar a uma série de transformações de ordem processual, que situaram o Judiciário e os juízes como importantes atores do processo de avanço social. O Supremo Tribunal Federal teve ao seu favor a inclusão de mecanismos que o auxiliam numa diminuição do volume de questões de menor relevância, – tendo sido a súmula vinculante o de maior repercussão. O problema, no entanto, persiste, até porque, com a mesma reforma, foram trazidas novas competências para aquela Corte. Foi o que ocorreu com a inclusão do instituto do efeito vinculante em algumas das decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Com a atual interpretação do conceito da reclamação, que é garantia para fazer valer decisão de Tribunal Superior que tem caráter vinculante, sem dúvida, houve mais um acréscimo na demanda da citada Corte.

Ora, de acordo com o artigo 13, parágrafo único, da Lei 8.038/1990, o sujeito ativo é a parte interessada ou o Ministério Público; porém, “em face da notória insubmissão de alguns tribunais judiciários às teses jurídicas con-sagradas nas decisões proferidas pelo STF”22, e, assim, para garantir os efeitos da autoridade das suas decisões, o Supremo Tribunal Federal passou a admitir o emprego da reclamação em sede de ação direta no controle concentrado. Com o advento do instituto do efeito vinculante, a reclamação passou a ser o remédio contra qualquer desrespeito às decisões dotadas desse efeito. Isso re-percutiu diretamente no movimento de reclamações intentadas nesta Corte, já que qualquer pessoa que se ache prejudicada em virtude de descumprimento de decisão proferida pelos tribunais superiores, poderá usar da reclamatória junto ao Supremo Tribunal Federal.

Além desse efeito de aumentar a demanda de decisões a cargo do Su-premo Tribunal Federal, o efeito vinculante das decisões em sede de controle concentrado, que tem a reclamação como garantia para cumprimento dessa decisão, no nosso modo de entender, trouxe maior concentração de poder político para a Suprema Corte.

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A reclamação constitucional

Isso nos leva a outra questão, que é o caráter político do Supremo Tribunal Federal. Seus membros, além de serem eleitos, são vitalícios, estão imersos na dinâ-mica política do Estado. As instituições políticas, para terem seus atos legitimados perante a sociedade, precisam ter sua atuação comprometida com os ideais do Estado, ideais estes presentes na própria Constituição, documento que deve ser protegido pela Corte Constitucional do País, em função da sociedade que assim espera.

Portanto, a reforma do Judiciário, que introduziu no nosso ordenamento jurídico o instituto da súmula vinculante, trouxe à tona o questionamento da legitimidade da Suprema Corte ante o poder destinado a esta. Em contrapartida, a liberdade de interpretação do juízo monocrático, característica importante da estruturação da democracia, restou prejudicada. Isso porque, em nome da celeridade processual, foi dispensada ou minorada a atenção ao amadurecimento das questões debatidas nas primeiras instâncias.

Ora, se o juiz decide, sentencia com suporte nos argumentos levados pelas partes ao processo, na verdade, a decisão judicial seria uma mediação entre os vários argumentos levados ao processo. Se a efetiva participação no processo judicial é que legitimaria a decisão pela argumentação jurídica sem a devida participação das partes no processo, a legitimidade das decisões perante os jurisdicionados se torna, muitas vezes, questionável. Além disso, notáveis doutrinadores, como Ingo Sarlet, preocupado com a manutenção do Estado Democrático de Direito, ressalta que “as medidas reformadoras já realizadas e propostas, em verdade estão contribuindo para erosão e distorção das instituições democráticas entre nós”23.

A questão é complexa. A concentração de poderes na cúpula do Judici-ário, embora, a priori, possamos pensar que fortalece o Poder Judiciário, ao con-trário, o enfraquece. O Poder Judiciário para ser forte precisa ser independente do Poder Executivo. A nossa Corte, como já expresso, tem seu caráter político, é escolhida pelo chefe do Poder Executivo, com mandato vitalício. Fica fácil perceber que, em alguns momentos, a atuação da citada Corte pode se tornar fragilizada, comprometida, pois a vontade dos membros da Corte poderá estar devidamente alinhada à vontade política do chefe do Poder Executivo.

Para conseguir legitimação perante a sociedade, acreditamos que o Su-premo Tribunal Federal deva equilibrar a preservação da segurança jurídica, mas atentando para os fundamentos constitucionais da democracia. Como observa o professor Jânio Vidal, “na jurisdição constitucional, o judiciário deve assumir uma postura de permanente preocupação com os valores de uma sociedade pluralista, atuando em consonância com os princípios democráticos”24.

Se por um lado, institutos como a reclamação se fazem necessários para garantir uma decisão equânime para todos que por ela sejam atingidos, de outra parte, para que essas decisões sejam legítimas, devem atender aos ideais demo-cráticos que, no processo, se concretizam por meio da argumentação jurídica de todos os participantes, sejam advogados, membros do Ministério Público,

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defensores públicos, partes e, finalmente, na sentença, pela fundamentação dos juízes.

É preciso ficar demonstrado que os magistrados estão atrelados a me-canismos sociais que os vinculem eticamente. Dessa forma, mediante uma atuação firme e comprometida com os ideais do Estado, é que ocorrerá o êxito do processo democrático.

7 CONCLUSÃOO Estado brasileiro está submetido à lei constitucional. Na atual apresen-

tação, o Estado democrático constitucional exige a divisão das funções estatais entre o Poder Executivo, Legislativo e Judiciário para que fiquem resguardados os direitos e as garantias enunciadas na própria Constituição Federal.

Ao Poder Judiciário foi conferido o dever de guardar a Constituição e seus preceitos – é a chamada jurisdição constitucional. Dentro da jurisdi-ção constitucional desempenhada por todo o Judiciário está o controle de constitucionalidade das leis. O controle constitucional é tarefa da mais alta corte judiciária, o Supremo Tribunal Federal. O Superior Tribunal de Justiça, também como corte superior, tem o dever de zelar pelas leis federais. Em ra-zão da importância das tarefas desempenhadas por estas duas cortes dentro do nosso sistema jurídico, e para que suas funções sejam exercidas de forma eficaz, os atos emanados dessas cortes deveriam ter força suficiente para alcançar os fins para os quais foram concebidos. Sabe-se, no entanto, que, na prática, as decisões judiciais nem sempre possuem força suficiente para se fazerem cumprir.

Assim, da necessidade de se garantir a eficácia das decisões emanadas destas cortes surge o fortalecimento do instituto da reclamação, o que ocorreu com a introdução do instituto do efeito vinculante das decisões judiciais defi-nitivas de mérito no nosso ordenamento, por meio da Emenda Constitucional n° 45/2004.

A reclamação passou a estar expressa na Constituição para resguardar as decisões daqueles tribunais, funcionando como garantia à eficácia do siste-ma. Na verdade, a reclamação vem a ser garantia de outra garantia do Estado constitucional que é a jurisdição constitucional. Nos últimos anos, a reclamação perante o Supremo Tribunal Federal vem passando por uma transformação radical, em decorrência da ampliação da competência deste Tribunal em sede de controle concentrado de normas.

Quanto à natureza jurídica da reclamação, a jurisprudência e a doutrina não tinham se definido claramente a respeito, se ação, recurso ou incidente processual. Mais recentemente, ao proferir voto no julgamento da Rcl 5470/PA, o ministro Gilmar Mendes fez uma digressão histórica, sumariando a origem e evolução juris-prudencial da reclamação, assim como a sua natureza jurídica e processual. Desde

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A reclamação constitucional

então, jurisprudência e parte da doutrina têm pensamento convergente no sentido de ser a reclamação uma ação constitucional, com rito célere, semelhante ao mandado de segurança, e o único pressuposto para seu cabimento é a existência de ato ou omissão de órgão judicial ou administrativo (no caso de decisão com efeito vinculante ao Poder Executivo), que seja de usurpação de competência ou contra autoridade de decisão do Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça.

Em análise processual, para que seja intentada a reclamação, o documento é o único meio de prova admitido, sendo imperativa a sua juntada à petição inicial. Como a reclamação é considerada ação constitucional, a decisão defi-nitiva de mérito proferida produz coisa julgada formal e material. Dessa forma, após o trânsito em julgado, só poderá ser desconstituída por meio de rescisória, revisão criminal ou habeas corpus.

Quanto às partes legitimadas para ajuizar a reclamação, após a atribuição do efeito vinculante às decisões definitivas de mérito do Supremo Tribunal Fede-ral, que, como já comentado, ocorreu com a Emenda Constitucional n°45/2004, a parte ou qualquer pessoa juridicamente afetada pela prática de qualquer ato judicial ou administrativo que contrarie decisão proferida em ação direta de constitucionalidade ou em ação direta de inconstitucionalidade poderá ajuizar a ação reclamatória no sentido de assegurar a autoridade da decisão, uma vez que tal descumprimento é afronta à eficácia de efeito vinculante.

Como consequência desse alargamento dos legitimados para reclamar diretamente na Corte Superior, houve um aumento significativo do número de reclamações tramitando no Supremo Tribunal Federal. Este fato talvez possa contribuir para uma certa desordem no andamento da Suprema Corte do nosso País, pois, compromete a qualidade dos julgados que chegam ao Supremo Tri-bunal Federal, que são os de maior importância para o desenvolvimento social e político da nação.

A reclamação é instituto que guarda relação com um valor também incluído na atual Constituição, que é a celeridade processual – a celeridade processual como necessidade para a obtenção da justiça. Por meio da Emenda Constitucional n° 45/2004, houve a inclusão do inciso LXXLVIII, no art. 5° da Constituição Federal, com a seguinte redação: “A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Este dispositivo constitucional revela a preocupação do legislador quanto à questão da demora na duração no processo, tanto que elevou a garantia da razoável duração do processo ao status de direito fundamental. Consequentemente, a reclamação se relaciona com a efetividade da justiça, funcionando como mais um meio para se atingir a paz social.

A questão da demora na prestação jurisdicional é fator preocupante, principalmente quando se analisam os mais variados efeitos decorrentes do fator tempo. Ao se considerar que o Poder Judiciário é quem decide os confli-tos ocorridos dentro da sociedade, desse Poder se espera o máximo possível de

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eficiência na prestação da sua função. O grande desafio, porém, não é apenas atingir a celeridade nos processos, mas, juntamente com este objetivo, garantir a manutenção de todos os outros princípios essenciais à ordem jurídica justa. Do contrário, haveria prestação célere, mas não a ordem justa, o que não interessa ao Estado democrático.

Com o intuito de garantir maior agilidade ao processo, diversos mecanis-mos foram introduzidos na ordem jurídica brasileira, e alguns foram inseridos com a reforma do Poder Judiciário, dentre os quais estão a súmula vinculante e a nova conformação do instituto da reclamação constitucional.

De acordo com a nova interpretação desse instituto, os jurisdicionados têm a possibilidade de alcançar com maior rapidez a prestação jurisdicional das questões já abstratamente decididas pelo Supremo Tribunal Federal, sem a necessidade de perpassar por todo o processo, via recurso extraordinário. A matéria é levada diretamente à Suprema Corte. Faz-se necessário ressaltar, contudo, que um detalhado conhecimento das decisões dos tribunais superiores em sede de controle concentrado, como também de seus fundamentos, é de importância crucial para os operadores do Direito, pois tais decisões passaram a ostentar caráter vinculante.

Acerca do questionamento feito por parte da doutrina em relação à mitigação da análise dos juízos de primeiro grau e da ausência da oportunidade de argumentação das partes ante a rapidez processual de alcançar de imediato o Supremo Tribunal Federal, acreditamos que devemos considerar o meio-termo. Perante valores que têm importâncias pares, tanto o debate, que é instrumento de legitimação da decisão judicial, quanto o fator tempo, têm suas influências sobre o resultado final das decisões judiciais. Portanto, as decisões proferidas sem o verdadeiro debate, acessível nas fases processuais, em certa medida, carecem de legitimidade, contudo, atendem com maior presteza aos clamores sociais.

Finalmente, observando o caráter político de todo esse processo, verifica-mos que, mais do que nunca, a Suprema Corte passa a assumir papel de grande relevância na dinâmica do Estado. Com isso, cada vez mais, até para conseguir legitimação perante a sociedade, acreditamos que o Supremo Tribunal Federal deva manter uma atuação reta, sem se deixar influenciar por quaisquer interesses que se afastem da proteção dos valores contidos na Constituição Federal. Enten-demos que somente dessa forma, mediante uma atuação firme e comprometida com os ideais do Estado, é que ocorrerá o fortalecimento da democracia.

7 REFERÊNCIAS

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1 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação constitucional no Direito brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000, p. 510.

2 MORATO, Leonardo Lins. A reclamação constitucional e a sua importância para o Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, abr./jun. 2005, v. 13, n. 51, p-175

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3 MENDES, Gilmar Ferreira. A reclamação constitucional no Supremo Tribunal Federal: algumas notas. Direito Público, Brasília, n. 12, p. 21-23, abr/ jun, 2006.

4 GÓES, Gisele Santos Fernandes. Reclamação constitucional. In: DIDIER, Fredie (org.). Ações Consti-tucionais. Salvador: Jus Podivm, 2007, p. 560.

5 GRINOVER, Ada Pellegrini. Da Reclamação. Revista brasileira de ciências criminais. São Paulo, v. 10, n. 38, p. 75-83, abr./jun. 2002.

6 LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 249.7 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação constitucional no Direito brasileiro. Porto Alegre:

Sergio Antonio Fabris Editor, 2000, p. 459-461.8 DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual civil. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2008, v. 3, p. 432.9 STF, Rcl. 5470/PA, Rel. Ministro Gilmar Mendes, julgado em 29.02.2008, DJU de 10.08.2008.10 MENDES, op. cit., p. 46.11 GÓES, op. cit., p. 476.12 SANTOS, Alexandre Moreira Tavares dos. Da reclamação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 92, jan/

fev 2003, p. 162.13 PACHÚ, Cláudia Oliveira. Da reclamação perante o Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito

Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 14, p. 236, abr./jun., 2006.14 Ibid., p. 237.15 STF, Ag. Reg. na Rcl 354/DF, Rel. Ministro Celso de Mello, Pleno, julgado em 16.05.1991, DJU de

28.06.1991, p. 23.16 PACHÚ, op. cit., p. 237-238.17 STF, Rcl 397 MC-QO/RJ, Rel. Ministro Celso de Mello, Pleno, julgado em 25.11.1992, DJU 21.05.1993,

p.197.18 STF, Rcl 399/PE, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, Pleno, julgado em 07.10.1993, DJU de 21.05.1995,

p. 135. 19 STF, Ag. Reg. na Rcl 1880/SP, Rel. Ministro Maurício Corrêa, Pleno, julgado em 07.11.2002, DJU de

19.03.2004, p. 17.20 MENDES, op. cit., p. 3421 VIEIRA, Oscar Vilhena. O Supremo Tribunal Federal: jurisprudência política. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1994, p. 85.22 STF, Rcl. 397 MC-QO/RJ, Rel. Ministro Celso de Mello, Pleno, julgado em 25.11.92, DJU de 21.05.1993,

p. 197.23 SARLET, Ingo Wolfgang. Efeito Vinculante e Reforma do Judiciário. Revista da Academia Brasileira de

Direito Constitucional, Curitiba, v. 2, p. 14-24, 2002.24 VIDAL, Jânio Nunes. Elementos de teoria constitucional contemporânea. Salvador: Jus Podivm, 2009,

p. 180-181.

CONSTITUTIONAL COMPLAINT

ABSTRACTIn the current legal circumstances, the Office of the complaint attached as constitutional guarantee. Besides being present in the Federal Constitution, in Article 102, section I, paragraph l, the complaint is also disciplined regiments in the higher courts and in Law No. 8.038/90. Recent jurisprudence of the Supreme Court gave new interpretation to the applicability of that institute and, therefore, the complaint came to have greater usefulness, functioning as an important instrument guaranteeing the principle of equality, essential to the democratic ideal.

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A reclamação constitucional

This text presents a brief study on the constitutional complaint, with the aim of analyzing the evolution of this institute in the Brazilian legal system as a means of expanding the jurisdiction of the Supreme Court, established by the Constitution of 1988. To develop this work, we used literature search, consulting books, journals, and visits to their websites, analysis of case law from higher courts, especially the Supreme Court. Were initially discussed relevant issues and more extensive, but necessary for real understanding of the object under study, as the constitutional supremacy and judicial review. We must evaluate the concept, the legal nature of the complaint, the relevancy, the procedure and the expansion of its commencement legitimized after the expansion of the binding effect of concentrated control standards, which added to the demand of the STF. Finally, an assessment was made about the increasing political power of the Supreme Court and the growing number of complaints in recent years brought before this Court. It was pointed out that the increase in the competence of the STF, which took place under jurisdiction to ensure the realization of the right, causing a greater concentration of political power to the lofty hall, and away from it, however, its primary function to save the Constitution.

Keywords: Constitutional Supremacy. Judicial Review. Courts. Constitutional Complaint.

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inexigibilidAde de multAs tributáriAs do contribuinte nA suA fAlênciA

Vinícius José Marques Gontijo*

1. Introdução. 2. Escorço histórico do tema proposto. 3. Pano-rama geral da nova sistemática legal dos créditos na falência: concursais e extraconcursais. 4. As multas fiscais do falido e da massa falida. 5. Conclusões. 6. Referências bibliográficas.

RESUMONo artigo é feita a análise histórica da inexigibilidade de multa fiscal do devedor que tem a sua falência declarada, fazendo a interligação da legislação anterior (Decreto-lei n. 7.661/1945) com a nova Lei de Falências (Lei n. 11.101/2005), a fim de demonstrar que, mesmo com a novel legislação, as multas tri-butárias continuam sendo inexigíveis, concluindo que apenas a cobrança de eventuais multas devidas pela massa falida são exigíveis na falência.

Palavras-chave: Falência. Multa tributária do falido. Inexi-gibilidade em face da massa falida. Multa tributária da massa falida. Exigibilidade como crédito concursal.

1 INTRODUÇÃOCom o advento da Lei n. 11.101 em 9 de fevereiro de 2005, que editou

a chamada nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas (LF), diversos questionamentos vêm sendo propostos pela doutrina que, certamente, refletirão em discussões jurisprudenciais.

Neste sentido, parece-nos que um dos questionamentos que deve ser formulado diz respeito à inclusão no inciso VII do art. 83 da Lei a exigibilidade das “penas pecuniárias por infração das leis penais e administrativas, inclusive as multas tributárias” na classe sub-quirografária.

Com este nosso trabalho, temos a pretensão de responder às seguintes perguntas: seria mesmo válida a exigência das multas tributárias devidas pelo falido, após a declaração da falência? Pode a massa falida ser chamada a honrar esta obrigação tribu-tária assessória? São exigíveis as multas tributárias devidas pela

* Doutor e Mestre em Direito Comercial pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor no curso de mestrado stricto sensu da Faculdade de Direito Milton Campos. Professor nos cursos de graduação e de pós-graduação lato sensu da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Ex-professor substituto na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade Federal de Ouro Preto. Advogado.

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Inexibilidade de multas tributárias do contribuinte na sua falência

massa falida? Como harmonizar o inciso VII do art. 83 da Lei n. 11.101/2005 com o sistema falimentar, fazendo uma interpretação conforme os preceitos constitucionais?

As respostas aos questionamentos propostos é o objeto deste nosso arti-culado, buscando-se, para tanto, fazer uso do método jus-positivista Kelseniano, segundo o qual:

Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação – menos evidente – de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou conseqüência, ou – por outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas.1

2 ESCORÇO HISTÓRICO DO TEMA PROPOSTOEm que pese o processo falimentar representar modalidade de execução

coletiva, existem, por diversas razões que extrapolam o objeto deste trabalho, obrigações e créditos que não podem ser reclamados na falência, estando pos-tos fora do juízo universal.2 Dentre estes créditos, na antiga Lei de Falências (Decreto-lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945), estavam as penas pecuniárias por infração das leis penais e administrativas (art. 23, parágrafo único, III do Decreto Falimentar – DF), isto sim relevante para o tema aqui proposto.

Com efeito, com a declaração da falência, surge a massa falida objetiva e a subjetiva,3 que são diversas do falido. Ora, sendo entidades que não se con-fundem, “como terceiro, a massa defende os seus próprios direitos, seja contra o devedor, seja, contra qualquer interessado”,4 e, assim, a sanção atribuída ao falido não poderá passar do agente infrator da norma, se estendendo à massa falida que, reitere-se, é terceira em relação ao falido.5

Desde a Constituição Imperial, o preceito da não-transferência da sanção é previsto e reconhecido. Nesse sentido, colha-se:

A Constituição Imperial de 1824 (art. 179, n. 20) preceitua: ‘Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente. Portanto, não haverá, em caso algum, confiscação de bens; nem a infâmia do réu se transmitirá aos parentes em qualquer grau que seja’. As Constituições de 1891 e 1946 seguiram a mesma linha, e nada preceituou a respeito a Carta de 1937.6

Naturalmente, em que pese não haver expressa prescrição na Cons-tituição de 1937 (vigente à época da edição do Decreto Falimentar de 1945), este era um preceito tacitamente reconhecido, tanto que nosso legislador expressamente excluiu do processo falimentar as sanções por ilícitos penais e administrativos praticados pelo falido.

n. 10 - 2008166

Vinícius José Marques Gontijo

Ocorre que, antes do advento do Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966) havia uma discussão que envolvia a natureza jurídica da multa tributária. À época, imaginava-se que a multa tributária poderia ter dupla natureza jurídica: sanção (= inibitória da reiteração do ato por receio da pena) ou remuneratória (= remuneração pela indisponibilidade do numerário pelo fisco).

Esta discussão acerca da natureza jurídica da multa tributária fez com que o Supremo Tribunal Federal editasse duas súmulas, na primeira (Súmula n. 191), a Corte Excelsa fixou o entendimento de que a “multa fiscal simplesmente moratória” (= remuneratória) seria exigível da massa falida, enquanto que, na segunda (Súmula n. 192), consolidou o entendimento de que não se incluiria na falência a multa fiscal com natureza de pena administrativa, ou seja, com natureza jurídica de sanção.

De fato, tendo a multa natureza de sanção por infração decorrente de ação ou omissão de responsabilidade do falido, ela não poderia ser exigida da massa falida, sob pena de se sancionar agente diverso do infrator da norma tributária, qual seja, a comunidade de credores do falido (= massa falida subjetiva), que deixaria de perceber seus direitos creditórios que se transfeririam ao fisco em pagamento da sanção imposta ao terceiro: falido.7

Com a entrada em vigor do Código Tributário Nacional, a discussão que envolvia a natureza jurídica de multa tributária foi superada, doutrinária e jurisprudencialmente.8 A multa tributária passa a ter uma única natureza jurídica: sanção! Portanto, pena administrativa.

Sobre a natureza da multa tributária, vale transcrever a lição de Sacha Calmon Navarro Coêlho, literis:

Caracterizada a infração deve ser a sanção. Vimos de ver que a hipótese de incidência das normas sancionantes é precisamente o ilícito. Com a realização da infração in concretu incide o man-damento da norma sancionante. Vale dizer: realizado o ‘suposto’ advém a ‘conseqüência’, no caso da sanção, conforme prevista e nos exatos termos dessa mesma previsão.As sanções tributárias mais difundidas são as multas (sanções pecuniárias). Sancionam tanto a infração tributária substancial quanto a formal. As multas que punem a quem descumpriu obri-gação principal são chamadas de ‘moratórias’ ou ‘de revalidação’; e as que sancionam aos que desobedecem obrigação acessória respondem pelo apelido de ‘formais’ ou ‘isoladas’.Ambas, para citar Carnelutti, possuem a característica de ser ‘um evento danoso imposto a quem não cumpre o preceito’ e, à seme-lhança da sanção penal, comportam duplo efeito: ‘o intimidativo, (psicológico) que visa a evitar a violação do direito, e o repressivo, que se verifica após perpetrado o desrespeito à norma fiscal’, no magistério de festejado autor brasileiro.

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Inexibilidade de multas tributárias do contribuinte na sua falência

A hipótese de incidência da norma sancionante que pune o descumprimento de obrigação principal é não ter o contribuinte – destinatário da multa – pago o tributo, tê-lo feito a destempo ou insuficientemente. As situações descritas se equivalem. A hi-pótese de incidência da norma sancionante, que aplica multa por descumprimento de obrigação acessória, é ter o contribuinte feito o que era proibido fazer ou não ter feito o que era obrigatório.No primeiro caso, há que constatar a mora ou a insuficiência do pagamento. No segundo caso é mister certificar a inexistência do ato obrigatório ou a inexistência do ato vedado, em contraste com a lei, por isso que nullum tributo nulla poena sine lege. A função básica da sanção tributária é a de tutelar o direito do Estado de receber tributos e de impor deveres secundários, visando a evitar o periculum in mora, sem necessidade de recorrer à lei penal.9

Diante da compreensão da natureza jurídica da multa tributária unificada: sanção; o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula n. 565, cujo texto não deixa margens para dúvidas: “A multa fiscal moratória constitui pena administrativa, não se incluindo no crédito habilitado em falência”.10 Com isso, restou superada a Súmula n. 191 do STF.11

Destarte, a jurisprudência nacional se consolidou no sentido de que, a declaração da falência geraria a inexigibilidade de quaisquer multas tributárias por atos ou omissões do falido (Súmulas n. 192 e 565 do STF). Não poderia mesmo ser diferente, pois, em que pese o fisco não se sujeitar às normas pro-cessuais da falência, ele se sujeita às normas materiais do concurso falimentar, uma vez que “a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso” (caput do art. 186 do CTN)12; portanto, ao processo. Materialmente, o fisco deve se sujeitar a todos os efeitos da quebra do contribuinte.

PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS DO DEVEDOR. MASSA FALIDA. PENHORA POSTERIOR À DECRETAÇÃO DA FALÊNCIA. MULTA E JUROS. SÚ-MULAS 192, 565 E PRECEDENTES DO STF.1. Decretada a falência em 15.12.93, antes da realização da pe-nhora no executivo fiscal, é indevida a multa administrativa após aquela data e os juros ficam condicionados à suficiência do ativo apurado para atender ao principal no Juízo da Falência.2. Recurso especial conhecido, porém, improvido.13

Não cabe, é claro, ao juiz excluir, por ato de ofício, as multas tributá-rias:

EXECUÇÃO FISCAL – FALÊNCIA – MULTA MORATÓRIA – EXCLUSÃO DE OFÍCIO – INADMISSIBILIDADE.

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Multa fiscal moratória – Falência – Exclusão de ofício – Impos-sibilidade.1. Embora o entendimento majoritário da turma, na esteira deste tribunal, com base nas súmulas 192 e 565 do STF, seja de que a multa fiscal moratória ou punitiva não se inclui no crédito ha-bilitado na falência e, da mesma forma, é indevida na cobrança judicial do crédito tributário, que não está sujeito à habilitação em falência, certo é que o juiz não pode excluí-la de ofício. Pre-cedentes da turma.2. Agravo provido.14

Observe-se que, inconformada com a inexigibilidade das multas ficais da massa falida, a Fazenda Pública do Estado do Rio Grande do Sul argüiu a não-recepção pela Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 tanto do art. 23, parágrafo único, III do Decreto-lei n. 7.661/1945 quanto das Súmulas n. 192 e 565 do STF. Contudo, a Suprema Corte entendeu pela recepção. Nesse sentido, tem-se:

EXECUÇÃO FISCAL – MASSA FALIDA – DÉBITO FISCAL – JUROS E MULTA.Massa falida – Débito fiscal – Juros e multa.O afastamento dos juros e da multa, previsto no Decreto-Lei no 7.661/45, não conflita os artigos 150, § 6o e 151, inciso III da Constituição Federal. Descabe confundir o tributo com possíveis acessórios decorrentes do inadimplemento.15

O argumento favorável à inexigibilidade das multas fiscais de massa falida não se pautava exclusivamente em seu aspecto legal (art. 23, parágrafo único, III do Decreto-lei n. 7.661/1945), mas, segundo entendemos, principalmente no constitucional (art. 5o, XLV da Carta de 1988).

Ora, sendo a sanção uma pena, e sendo a multa uma sanção, tem-se que a multa é uma pena e, como tal, ela não pode passar do agente infrator da norma, sob pena de se violar frontalmente o preceito constitucional estatuído no inciso XLV do art. 5o da Constituição Federal de 1988:

Sanção é pena, castigo, restrição ao homem, seus bens ou direitos. A norma jurídica estatuidora de sanção tem por hipótese a prática de um ato ilícito violador de dever legal ou contratual. Por hipótese uma infração, por conseqüência uma restrição à vida, liberdade ou direitos outros do homem. No caso da subespécie multa, a norma sancionante tem por hipótese a prática de um ilícito – o descumprimento de algum dever legal ou contratual – e, por conseqüência, preceito que obriga o infrator a dar dinheiro a título de castigo (sanção). O titular da percepção, o sujeito ativo, pode

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ser particular ou pessoa política. no caso da multa legal, é sempre o Estado ou pessoa sua. É o que ocorre com a multa tributária e também com a multa penal.16

Portanto, na vigência do Decreto-lei n. 7.661/1945 (antiga Lei de Falên-cias), as multas tributárias originadas de fatos decorrentes de atos ou omissões do falido eram inexigíveis da massa falida não apenas por prescrição legal, mas principalmente por preceito constitucional.

Observe-se que, por outro lado, em se tratando de concordata, se tivesse havido a infração tributária, a sanção seria exigível na forma da Súmula n. 250 do STJ.17 Isso porque, não apenas não existia amparo legal para o afastamento de sua exigibilidade, mas também porque não haveria amparo constitucional a suportar tal privilégio, na medida em que seria o próprio infrator quem estaria sendo sancionado. De fato, o infrator da norma (= concordatário) teria de pagar a eventual multa pela infração que viesse ele mesmo a cometer.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já externava que o critério para aferir se a multa tributária seria devida, ou não, estava intimamente ligado à imputação da pena ao agente infrator da norma:

AÇÃO RESCISÓRIA. ACÓRDÃO QUE EXCLUI MULTA FISCAL DA RESPONSABILIDADE DA CONCORDATÁRIA, MEDIANTE INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA NORMA DO ART. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, INC. III, DO DECRETO-LEI N. 7.661/45. ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 97, INC. VI; 111 E 112, INC. II, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIO-NAL E DO ART. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, INC. III, DA LEI DE FALÊNCIAS.A norma do art. 23, parágrafo único, inc. III, da Lei [sic] n. 7.661/45, que exclui da falência as multas penais e administrati-vas, não tem aplicação na concordata, que não sujeita a empresa ao regime de liquidação, razão pela qual o pagamento de ditas penalidades não se reflete senão sobre o próprio concordatário, não alterando os índices fixados para o saldo das contas de seus credores quirografários. Caso em que a decisão impugnada aplicou normas jurídicas que a espécie não comportava. Configuração da hipótese do art. 485, V, do CPC. Procedência da ação.18

A exigibilidade da multa tributária das concordatárias servia, inclusive, como inibidor da prática do ilícito que, em última análise, poderia redundar em concorrência desleal, uma vez que o devedor empresário poderia se sentir estimulado a não cumprir fielmente suas obrigações fiscais antes do pedido da concordata na medida em que, depois, simplesmente, gozaria da sua inexigibi-lidade sem qualquer fundamento técnico-legal.

Por tudo o quanto foi exposto até aqui, podemos concluir que a inexi-

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gibilidade das multas tributárias (como também seria das multas penais) é um corolário lógico do preceito constitucional de que a sanção não passa da pessoa do infrator da norma.

3 PANORAMA GERAL DA NOVA SISTEMÁTICA LEGAL DOS CRÉ-DITOS NA FALÊNCIA: CONCURSAIS E EXTRACONCURSAIS

Como se sabe, a Lei Complementar n. 118, de 9 de fevereiro de 2005, modificou o Código Tributário Nacional (CTN) a fim de implementar vários preceitos da nova Lei de Falências que necessitavam ser validados por via de lei complementar porque refletiam sobre as normas gerais da legislação tributária (art. 146, III, CF/1988).

Nessa perspectiva, fixou-se que os créditos tributários decorrentes de fatos geradores in concreto havidos no curso da ação de falência são extraconcursais19 (art. 188, CTN) – nada tendo sido fixado acerca de eventuais acessórios desses créditos, que, conforme já vimos, com eles não se confundem.20

Foram, ainda, alteradas as preferências do crédito tributário do falido, prescrevendo-se que, na falência, o crédito tributário não prefere aos créditos extraconcursais ou às importâncias passíveis de restituição, nem aos créditos com garantia real até o limite do bem dado em garantia (art. 186, parágrafo único, I, do CTN).21

Finalmente, prescreveu-se que “multa tributária prefere apenas aos cré-ditos subordinados” (art. 186, parágrafo único, III do CTN) – nada tendo sido fixado sobre a origem da sanção que estaria na classe sub-quirografária, ou seja, se a infração sancionada seria do falido ou da massa falida.

Portanto, é necessário que, inicialmente, se constate a existência de duas situações completamente diversas: 1a) os tributos e acessórios devidos pelo falido (fatos geradores in concreto havidos antes da sentença de falência, bem como infrações por ela cometidas); e 2a) os tributos e acessórios devidos pela massa falida (tais como aqueles havidos em decorrência da continuação do negócio até que se implemente a realização do ativo arrecadado – art. 99, XI da Lei n. 11.101/2005). Com efeito, não se podem confundir as obrigações assumidas pelo falido e aquelas assumidas pela massa falida,22 outrossim, o crédito tributário e os acessórios daí emergentes.

Compreendida a situação fático-jurídica que envolve a falência no que se refere ao falido e à massa falida, temos agora que examinar a natureza dos créditos concursais (art. 83 da LF) e dos extraconcursais (art. 84 da LF).

Em uma leitura que pensamos ser precipitada da nova Lei de Falências, poder-se-ia, inadvertidamente, imaginar que créditos extraconcursais seriam aqueles decorrentes de encargos da gestão da massa falida.23 No entanto, não é bem assim, uma vez que o inciso V do art. 84 da Lei n. 11.101/200524 determina que serão consideradas crédito extraconcursal as obrigações resultantes de atos

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jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, nos termos do art. 67 da novel legislação falimentar. Portanto, temos aí um caso que não se trata de obrigações emergentes da gestão da massa, mas sim do devedor recuperando e anteriores à convolação em falência que, ainda assim, são extraconcursais.

Com efeito, nosso legislador, com a finalidade de manter as relações jurídicas havidas entre os fornecedores e o devedor em recuperação judicial, determina duplo benefício para aqueles que não suspenderem suas transações com o devedor em recuperação judicial:25 1o) os créditos emergentes de obri-gações surgidas no curso da ação de recuperação, em caso de convolação em falência, são extraconcursais; 2o) se classe superior já não detiverem, aqueles créditos que estavam sujeitos aos termos da recuperação ascenderão à classe com privilégio geral em caso de convolação da ação de recuperação judicial em ação de falência (art. 67 da LF).

Evidentemente, a primeira modalidade de crédito extraconcursal acima mencionada nada tem em comum com os encargos da gestão da massa falida, demonstrando à toda evidência que nem todos os créditos extraconcursais dizem respeito à essa gestão.

Em verdade, o elemento que orientou a fixação dos créditos extracon-cursais é o benefício da própria comunidade de credores do devedor, e não os encargos da gestão da massa falida.

São créditos extraconcursais aqueles que permitiriam à comunidade de credores auferir vantagens (ou mesmo conservação) dos ativos do devedor comum. Diz-se do devedor e, não, do falido, porque a recuperação é, em regra, melhor que a falência para os credores – e não há recuperação possível sem a preservação das relações dos fornecedores com o devedor (daí porque este crédito é extraconcursal na forma do inciso V do art. 84 da LF) –, da mesma maneira, após a falência, a conservação da empresa com a gestão da massa falida e o afastamento do devedor na falência é do interesse de todos, com isso se implementando também o princípio da preservação da empresa que foi insculpido no art. 75 da nova Lei de Falências.

Logo, ao se analisar com profundidade os incisos do art. 84 da Lei n. 11.101/2005, constata-se que o elemento teleológico de nosso legislador foi proteger a própria comunidade de credores do devedor, e não simplesmente, facilitar a gestão da massa falida (ou mesmo privilegiar os créditos daí decor-rentes). Isso somente se compreenderia tutelado indiretamente, enquanto, na falência, tutelada a própria massa falida subjetiva (e, claro, também a massa objetiva).

De modo semelhante, os chamados créditos concursais nem sempre se referem a relações jurídicas havidas com o falido ou decorrentes de atos ou omissões que ele implementou. Pode-se perceber a existência de obrigações que seriam da massa falida (surgidas em função de sua gestão), mas sujeitas ao rateio de credores. De fato, são obrigações que não implicam tutela direta

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dos interesses da massa falida subjetiva, mas, quanto muito, da massa falida objetiva e, por isso mesmo, constantes do elenco do art. 83 da LF e, como tais, créditos concursais.

Nessa linha de raciocínio, observe-se que, ao teor do que prescrevem os arts. 117 e 118 da Lei n. 11.101/2005, o administrador judicial da massa falida, mediante autorização do Comitê de Credores (acaso existente) poderá, ou não, cumprir os contratos bilaterais e unilaterais. Para tanto, ele avaliará os interesses objetivos da massa, ou seja, se honrar os contratos significará reduzir o passivo da massa ou mesmo evitar o seu aumento ou, ainda, se forem necessários à manutenção e preservação dos ativos da entidade.

Destarte, na gestão da massa falida, ao administrador judicial é faculta-do rescindir os contratos e, com sua atitude, poderá gerar despesas, tais como multas contratuais e indenizações civis (art. 117, § 2o, da LF), que são créditos concursais. Observe-se que estas multas serão devidas porque a sanção estará se dando em relação ao agente infrator, qual seja: a própria massa falida que exerceu sua prerrogativa de rescindir os contratos celebrados pelo falido:

Dessa forma, como regra geral, os contratos continuam intactos, mesmo após a declaração da falência de uma das partes contratan-tes, não se extinguindo as obrigações assumidas pelo falido perante terceiros, que são transmissíveis à massa, sucessora daquele.Caso o administrador judicial considere que o cumprimento do contrato não é conveniente para a massa, poderá resolvê-lo, extinguindo a relação contratual.Todavia, nesta hipótese, estaríamos diante de uma resolução voluntá-ria, uma vez que, como visto, a falência per se não autoriza o término da relação contratual. Por ser voluntária a resolução, cabe ao terceiro contratante o direito a uma indenização perante a massa.Observe-se que caberá ao administrador judicial a decisão quanto ao cumprimento ou quanto à rescisão do contrato bilateral, ouvido o Comitê. 26

Nessa mesma linha, temos ainda:

O contratante interpelará o administrador judicial para que este diga se cumpre ou não o contrato. Se a deliberação for no sentido de não cumprir – ou se não houver manifestação expressa pelo cumprimento – restará à outra parte contratante demandar, ‘em processo ordinário’, o direito à indenização, cujo montante cons-tituirá crédito quirografário.27

Esses encargos gerados na gestão da massa falida não são extraconcusais e estão sujeitos ao rateio normal do crédito. Portanto, eles deverão ser habilitados pelo credor, por serem considerados, repita-se, créditos concursais, mesmo as

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multas contratuais (art. 83, VII da Lei n. 11.101/2005). Tudo isso em que pese decorrentes da gestão da massa falida pelo administrador judicial:

É comum a inserção de cláusula contratual prevendo a obriga-toriedade do pagamento de multa em caso de rescisão contra-tual por culpa de uma das partes contratantes, portanto, caso a resolução do contrato seja voluntária. Caso o contrato preveja multa por infração contratual, será exigível caso, falida uma das partes contratantes, deixe o administrador judicial de cumprir o contrato.28

Diante de tudo o quanto expusemos até aqui, constatamos que, no pa-norama geral da nova sistemática da Lei de Falências, não é possível confundir as obrigações do falido e da massa falida. Tanto há obrigações de uma e de outra que são concursais e extraconcursais, não sendo a origem da assunção da obrigação o vetor que norteou nosso legislador ao prescrever a dicotomia estudada dos créditos na falência: concursais e extraconcursais, mas sim os interesses da própria comunidade de credores do devedor comum (falido e/ou massa falida).

4 AS MULTAS FISCAIS DO FALIDO E DA MASSA FALIDAIniciamos este trabalho indagando se seria mesmo válida a exigência das

multas tributárias devidas pelo falido, após a declaração de sua falência e, diante de tudo que examinamos, somente podemos concluir que não.

A sanção não poderá passar do agente infrator da norma e, sendo o infrator o falido e, não, a massa falida, esta não poderia ser sancionada por causa de infração de outrem, sancionando, por linhas travessas, os credores subordinados que deixariam de receber seu crédito. Até mesmo o pagamento dos juros devidos a todos os credores poderia se perder com o pagamento das multas, quando eventualmente a massa viesse a suportar o pagamento (art. 124 da LF), uma vez que a quantia seria vertida no pagamento das sanções penais e administrativas do falido. Estas multas, quando muito, somente poderiam ser exigidas do próprio falido após o trânsito em julgado da sentença de encerra-mento do processo falimentar e desde que sua exigibilidade não esteja extinta por qualquer razão jurídica.

De fato, a multa é uma obrigação acessória do crédito tributário que se caracteriza como pena e que não teria como ser imputada senão ao próprio in-frator da norma. Portanto, a multa devida pelo falido é inexigível da massa falida mesmo na vigência da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Naturalmente, outros acessórios que não tenham natureza jurídica de sanção poderiam ser exigíveis, tais como: juros e correção monetária, sempre em conjugação com a lógica e as regras de cunho material constantes da nova Lei de Falências.

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Por outro lado, não há qualquer impedimento de se exigir da massa falida as multas tributárias por ações ou omissões imputáveis a esta entidade, sancionan-do-a. Muito pelo contrário, a lei é expressa. Como, aliás, são exigíveis as multas contratuais por ato ou omissão imputáveis à massa falida.29

O inciso III do parágrafo único do art. 186 do Código Tributário Nacional determina a exigibilidade da multa tributária que deverá preferir apenas aos créditos subordinados.30 Foi, nessa linha, que a nova Lei de Falências prescreveu no inciso VII do art. 83 a exigibilidade desta sanção exatamente preferindo aos créditos subordinados, tais como as debêntures subordinadas (art. 58, § 4o da Lei n. 6.404/1976). Obviamente, isso não quer dizer que as multas tributárias imputáveis ao falido sejam exigíveis, mas apenas aquelas cujo infrator esteja sendo pessoalmente sancionado.

Note-se que todas as multas (= sanções) imputáveis à massa falida (con-tratuais, penais e administrativas – inclusive as tributárias) foram alocadas em uma mesma classe sub-quirografária que prefere apenas aos créditos subordina-dos (art. 83, VII da Lei n. 11.101/2005) externando, também por interpretação lógico-sistemática, que as multas exigíveis na falência são sempre do mesmo nível e apenas aquelas de responsabilidade da própria massa falida.

Portanto, as multas tributárias exigíveis em caso de falência são apenas aquelas imputáveis à própria massa falida e, reitere-se à exaustão, nunca aquelas imputáveis ao falido, na medida em que a pena não pode passar do agente infra-tor da norma (art. 5o, XLV da Carta de 1988). Veja-se que a Lei n. 11.101/2005 tanto teve isso em mente que não distinguiu entre a multa por crime e a multa de ordem administrativa (art. 83, VII da LF) porque todas são sanções e, portanto, não transferíveis a terceiros.

Somente uma interpretação conforme a Constituição Federal é possível, sendo esta exatamente aquela que propormos neste nosso trabalho, pois, do con-trário, a exigibilidade da multa fixada no inciso VII do art. 83 da Lei n. 11.101/2005 seria inconstitucional por transferir sanção (multa) imputável a alguém (falido) para agente diverso do infrator (massa falida).

Destarte, fazendo uma interpretação conforme a Constituição Federal de 1988, temos que concluir que as multas tributárias (como as multas penais) por infrações do falido são inexigíveis da massa falida e as multas tributárias por infrações da massa falida são exigíveis como crédito concursal que prefere apenas aos créditos subordinados.

5 CONCLUSÕESAnte tudo o quanto expusemos neste nosso articulado e tendo respondido

às indagações propostas na introdução, podemos concluir:

a) As multas tributárias (como também as penais) por ação ou omissão imputáveis ao devedor, em caso de sua falência, por terem natureza jurídica de

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sanção, são inexigíveis da massa falida em qualquer circunstância.

a.1) Suas cobranças se caracterizariam como inconstitucionais por violarem o prescrito pelo inciso XLV do artigo 5o da Constituição Federal/1988, transferindo a sanção a agente diverso do infrator da norma.

b) O inciso VII do artigo 83 da Lei n. 11.101/2005 determina a exigibilidade das “penas pecuniárias por infração das leis penais e administrativas, inclusive as multas tributárias” na classe sub-quirografária, antes dos subordinados, por ações ou omissões imputáveis à massa falida.

b.1) Portanto, as multas tributárias exigíveis na falência serão apenas aquelas havidas por ações ou omissões da massa falida e, repita-se, nunca do falido.

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1 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 79.2 Na Lei n. 11.101/2005 se tem, por exemplo, aqueles créditos prescritos pelo art. 5o.3 Tendo em vista o processo de falência ser uma execução coletiva, sujeito ao princípio da par condicio

creditorum, que proporciona tratamento igualitário a todos os credores da mesma categoria, devem todos eles concorrer ao juízo indivisível da falência, sejam comerciantes ou civis. São reunidos, em conseqüência, numa coletividade, conhecida por massa falida subjetiva. Como expõe o Prof. Otávio Mendes, é integrada pelos sujeitos dos direitos que compõem a comunhão dos credores, formada paralelamente à massa falida objetiva, que constitui o patrimônio do falido. (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 137.)

4 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. 2. ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 284.

5 PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO RECORRI-DO. EXECUÇÃO FISCAL. MASSA FALIDA. MULTA MORATÓRIA. NÃO-INCIDÊNCIA. ART. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO III, DA LEI DE FALÊNCIAS. SÚMULAS 192 E 565 DO STF.

I – Não ocorreu na hipótese a alegada ofensa ao art. 535 do CPC apontada pelo Município recorrente, eis que o Tribunal a quo julgou satisfatoriamente a lide, solucionando a questão dita controvertida tal qual esta lhe foi apresentada. As questões trazidas a debate foram analisadas pelo Tribunal, que emitiu julgamento fundado nos preceitos legais que entendeu cabíveis à espécie.

II – Destarte, não há que se falar em embargos de declaração cabíveis, por omissão, haja vista não ser o julga-dor obrigado a rebater um a um todos os argumentos trazidos pelas partes, visando à defesa da teoria que apresentaram, podendo decidir a controvérsia observando as questões relevantes e imprescindíveis à sua resolução.

III – O acórdão atacado encontra-se em consonância tanto com a jurisprudência do Pretório Excelso quanto com a deste Superior Tribunal de Justiça, no sentido de ser afastada a exigência da multa moratória em execução fiscal contra a massa falida. Isso porque se deve evitar que a penalidade em questão recaia sobre os credores habilitados no processo falimentar, que figuram como terceiros alheios à infração. Nesse sentido, as Súmulas 192 e 565 do Supremo Tribunal Federal.

IV – Agravo regimental improvido. STJ, AgRg REsp. 750.063/MG, Rel. Min. Francisco Falcão, 1. T., DJ de 21.11.2005, p. 157. (Grifo acrescido ao original.)

6 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989, v. 1, p. 160.7 AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL

CONTRA MASSA FALIDA. INCLUSÃO DO CRÉDITO HABILITADO EM FALÊNCIA DA MULTA FISCAL COM EFEITO DE PENA ADMINISTRATIVA. INVIABILIDADE DA SUA COBRANÇA. ART. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, III DA LEI DE FALÊNCIAS. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. A falência tem a natureza de medida preventiva do prejuízo, para impedir a dissipação dos bens do devedor, que são a garantia comum dos seus credores. É também processo de execução extraordinária e coletiva, sobre a generalidade daqueles bens, com o objetivo de circunscrever o desastre econômico do devedor e igualar os credores quirografários [sic].

2. Inexigibilidade da multa administrativa, que refletiria no montante da massa a ser partilhado pelos credo-res.

3. Agravo regimental não provido. (STF, AgRg RE 212.839/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa, 2. T., DJ de 14.11.1997, p. 58.783). (Grifo acrescido ao original.)

8 Multa moratória. Sua inexigibilidade em falência, art. 23, § único, III, da Lei de Falências. A partir do Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25/10/1966, não há como se distinguir entre multa moratória e administrativa. Para a indenização da mora são previstos juros e correção monetária. (STF, RE 79.945/SP, Rel. Min. Cordeiro Guerra, T. P., julgado em 08 jul. 1976, DJ de 08.07.1976, p. 5.123.)

9 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e prática das multas tributárias: infrações tributárias; sanções tributárias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 39-40.

10 Sobre a natureza de sanção da multa não há dúvida, uma vez que a própria antiga Lei de Falências equipa-rava a “pena pecuniária” à infração de leis penais e administrativas. Portanto, a sanção penal pecuniária é equivalente à administrativa. A prática de uma conduta criminal ou administrativa que gerasse uma sanção de ordem econômica (= multa) em ambos os casos não poderia extrapolar o agente infrator da norma: o

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Inexibilidade de multas tributárias do contribuinte na sua falência

falido. Razão da inexigibilidade de multa tributária da massa falida por infração cometida pelo falido.11 Multa moratória. Sua inexigibilidade em falência. Art. 23, § único, III, da Lei de Falências. A partir do Código Tributário Nacional, Lei n.º 5.172, de 25.10.966, não há como se distinguir entre multa

moratória e administrativa. Para a indenização da mora são previstos juros e correção monetária. RE não conhecido. (STF, RE 79.625/SP, Rel. Min. Cordeiro Guerra, T. P. julgado em 14 ago. 1975, DJ de 08.07.1976, in RTJ 80-01/104.)

”Multa fiscal moratória não se inclui no crédito habilitado em falência, divergência superada pelo julgamento, em Plenário, do RE 79.625, a 14.08.75, quando foi cancelada a Súmula 191. Embargos não conhecidos.” (STF, Embargos no RE 80.098/SP, Tribunal Pleno, v.u., rel. Min. Xavier de Albuquerque, DJ de 26/09/1975.)

“Em 14.08.75, ao julgar o RE n. 79.625, o Plenário do STF decidiu cancelar o verbete 191 e manter o 192, ambos da Súmula, e, assim, firmou o entendimento de que a multa fiscal que tenha caráter de pena pecuniária não se inclui em crédito habilitado na falência, isso por causa do que exprime o art. 23, parágrafo único, III, do DL 7.661-45”. (STF, AgRg RE 80.517/SP, 1a T., v.u., j. 18/11/1975, rel. Min. Antônio Neder, DJ de 26/12/1975.)

12 Grifo acrescido ao original.13 STJ, REsp. 235.396/SC, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins , 2. T., julgado em 05 jun. 2001, DJ de

08.10.2001, p. 196.14 TRF 4a Região, AI 2000.04.01.065618-2/RS, Rel. Juiz José Luiz B. Germano da Silva, 1. T., julgado em 05

set. 2000, DJU de 11.10.2000, p. 208. In Repertório IOB de Jurisprudência, 1a quinzena de dezembro/2000, n. 23/2000, caderno 1, p. 592, RJIOB 1/15.405.

15 STF, AgRg em AI 181.245-1/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, 2. T., julgado em 29 set. 1997, DJU de 21.11.1997, p. 60.591, In Repertório IOB de Jurisprudência, 2a quinzena de janeiro/1998, n. 02/1998, caderno 1, p. 37, RJIOB 1/11.850.

16 DERZI, Misabel Abreu Machado; COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Direito Tributário aplicado. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 129.

17 Em que pese haver respeitáveis entendimentos contrários, tanto na doutrina (DERZI, Misabel Abreu Machado; COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Direito tributário aplicado. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 121 et seq.), quanto na jurisprudência, antes da edição da Súmula (STJ, AgRg no REsp. 235.037/SP, Rel. Min. José Delgado; 1. T., julgado em 17 fev. 2000, DJ de 29.05.2000. p. 123.)

18 STF, Ação Rescisória n. 1.316/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão; T. P., julgado em 05 mar. 1993, DJ de 07.05.1993, p. 8.328.

19 A esses créditos [extraconcursais] o legislador atribui preferência sobre os constantes da classificação do artigo 83, de forma que serão pagos na ordem em que dispostos nos incisos do artigo 84, antes de qualquer outro classificado no artigo antecedente (83). (JUNQUEIRA, Palmyrita Sammarco. In: MACHADO, Ru-bens Approbato (Coord.) Comentários à nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 236)

Não precisam eles de habilitação e não se submetem a pagamento junto com os credores da falência, ou seja, aqueles que constam do quadro-geral de credores.

Eles devem ser pagos imediatamente, conforme vá entrando o dinheiro em caixa. (ROQUE, Sebastião José. Direito de recuperação de empresas. São Paulo: Ícone, 2005. p. 60 e 61.)

20 Como já reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal, não há como se confundir a natureza do crédito tributário com a de eventuais acessórios dele: “EXECUÇÃO FISCAL. FALÊNCIA. MULTA MO-RATÓRIA. SÚMULA 565 DO STF. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS ARTS. 1.º; 150, § 6.º; E 155, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Decisão que está em consonância com precedentes desta Corte no sentido de que, sendo de natureza ad-ministrativa a multa a que se refere o art. 23, III, da Lei de Falências (Súmula 565 do STF) e não de débito tributário, é incabível a alegada afronta ao art. 150, § 6º, da Constituição Federal. Incidência, ainda, da Súmula 282 e 356 desta Corte. Agravo desprovido.” (STF, AgRg AI 388.247/MG, Rel. Min. Ilmar Galvão, 1. T., DJ de 11.04.2003, p. 29.)

21 Naturalmente, os créditos decorrentes da legislação do trabalho e dos acidentes de trabalho preferem aos tributários ainda que não haja falência do devedor (caput do art. 186 do CTN), sendo que, havendo falência (art. 186, parágrafo único, II, CTN), é possível limitar o privilégio do crédito trabalhista, e efetivamente há limitação: cento e cinqüenta salários mínimos (art. 83, I da Lei n. 11.101/2005.)

22 Nesse sentido, bem observava José Xavier Carvalho de Mendonça quando lecionava: “Daí se conclui que a massa é capaz de contrair obrigações ativas e passivas. Surgem, assim, duas ordens de credores: credores concorrentes, que constituem a massa, credores na massa, e credores da massa.” (MENDONÇA, J. X.

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Vinícius José Marques Gontijo

Carvalho de. Tratado de Direito Comercial brasileiro. Campinas: Russell Editores, 2005, v. 5, p. 372.)23 Nesse sentido é, por exemplo, a doutrina de Bezerra Filho, quando afirma: “Esta figura de crédito extracon-

cursal inexistia na lei anterior, sem embargo de criação pretoriana que permitia o reembolso imediato das despesas necessárias à administração da massa falida. Do exame de cada um dos incisos abaixo, verifica-se que a Lei preocupou-se em determinar o pagamento preferencial dos valores despendidos com a administra-ção prestada após o decreto da falência, por serviços prestados à massa ou por despesas decorrentes destes serviços.” (BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova Lei de Recuperação e Falências comentada. 3. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 211.)

24 Duplo enfoque a dicção normativa, o primeiro diante das obrigações emergentes da recuperação judicial, e o segundo concernente aos atos praticados depois da quebra realizada, abrangendo ainda os fatos geradores dos tributos. Bem assim, guarnece o legislador maior segurança com os credores que mantiveram suas linhas de fornecimento – produtos ou serviços, na consecução da recuperação, para que tenham natureza extraconcursal.

De modo parelho, os tributos posteriores à quebra se consideram preferenciais e se coadunam com a regra geral do art. 83, privilegiando o Fisco, mas na graduação geral estabelecida no mencionado dispositivo legal. (ABRÃO, Carlos Henrique. In: TOLEDO, Paulo F. C. Sales de (Coord.) Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 217-218.)

25 Naturalmente, aqueles fornecedores de bens ou serviços que não continuarem a prover normalmente o devedor em recuperação judicial não gozarão dos privilégios mencionados.

26 PERIN JÚNIOR, Ecio. Curso de Direito Falimentar e recuperação de empresas. 3. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 298-299.

27 FRONTINI, Paulo Salvador. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes (Coords.) Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: RT, 2005, p. 436-437.

28 PERIN JÚNIOR, op. cit., p. 300. Este autor, em nota de roda-pé, na mesma página citada, apresenta curioso precedente: “RtJ 4/302: ‘as multas moratórias adicionais, decorrentes de atraso nos pagamentos devidos, são inconfundíveis com as penas pecuniárias que não podem ser reclamadas da massa falida. A multa por infração contratual deve ser computada na dívida do falido.”

29 Observe-se que, ao analisar o § 3o do art. 83 da nova Lei de Falências, Celso Marcelo de Oliveira registra que “as cláusulas penais dos contratos unilaterais não serão atendidas se as obrigações neles estipuladas se vencerem em virtude da falência” (OLIVEIRA, op. cit., p. 357). Por outras palavras: se não houve ação ou omissão imputável à massa falida, a multa é inexigível.

30 Naturalmente, aquela imputável ao próprio infrator, in casu, a massa falida.

THE IMPOSSIBILITY OF CHARGING TAX FINES IN CASE OF BANKRUPTCY

ABSTRACT

In this paper, the author explores the historical background of the impossibility of charging tax fines of taxpayers whose bankruptcy is declared, relating the previous legislation (Decree-Law 7.661/1945) with the new Law on Bankruptcies (Law 11.101/2005), in order to demonstrate that, even in the new legal background set after 2005, tax fines continue not to be included among the debts of the taxpayer, taking to the conclusion that only the collection of eventual fines due by the bankruptcy estate are demandable in the bankruptcy.

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Inexibilidade de multas tributárias do contribuinte na sua falência

Keywords: Bankruptcy. Tax fine of the taxpayer. Impossibility of charging the bankrupt´s creditors claims for the fines of the taxpayer. Tax fine of the bankruptcy estate. Tax fines as credits included in the bankrupt´s creditors claims.

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por umA poéticA do direito: introdução A umA teoriA imAgináriA do direito

(e dA totAlidAde)*

Willis santiago Guerra Filho**

Introdução. 1 Natureza ficcional do Direito. 2 O Direito como parte do mundo criado pelo desejo. 3 O Direito posto (positivo) poetica-mente concebido como Direito possível. 4 Crítica fenomenológica do formalismo científico. 5 Proposta de reordenação das formas de conhecimento legitimando aquelas de natureza poético-normativa ou “escatológicas”. 6 Interlúdio Metafísico-Teológico. Conclusão.

RESUMO O artigo propõe a retomada de estudos do direito situados em um quadro mais amplo, tal como idealizado e, a seu tempo, em parte, também realizado pelo italiano Giambattista Vico, no século XVIII, quando contrapôs ao racionalismo de matriz cartesiana uma abordagem calcada no que se pode denominar a utilização poética da linguagem, o que converge para os estudos contemporâneos em filosofia, quando se vê na linguagem o que há de mais fundamental a ser perquirido, bem como com propostas as mais diversas, oriundas igualmente das ciências humanas, no sentido de apontar para o caráter fundante que tem a imaginação no esforço humano de entender qualquer manifestação mundana ou consciencial.

Palavras-chave: Teoria do Direito. Epistemologia. Imaginação. Poética.

* Versão originalmente publicada no periódico eletrônico Panóptica, disponível em : <www.panoptica.org>, com republicação autorizada pelo autor.

** Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e da Faculdade Farias Brito (FFB-CE). Professor Efetivo do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Candido Mendes (UCAM-RJ). Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Paulista (UNIP). Doutor em Ciência Jurídica pela Universidade de Bielefeld (Alemanha). Pós-Doutor em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Livre-Docente em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Por uma poética do Direito: introdução a uma teoria imaginária do Direito (e da totalidade)

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INTRODUÇÃOA expressão “Teoria Imaginária do Direito” apresenta uma postulação

epistemológica e uma outra, ontológica. A primeira, referente à natureza da teoria do direito e, antes, à de toda teoria, aponta para o seu caráter imaginário. A segunda, referente à natureza do próprio direito, objeto de uma tal teoria, também aponta para o seu caráter imaginário.

No que tange à postulação epistemológica, ela se põe em confronto com uma tradição racionalista, que tem na filosofia cartesiana sua mais conhecida representante, a qual reverbera até a contemporaneidade, por exemplo na concepção sartreana sobre o imaginário, quando ele trata o produto da ativi-dade imaginativa, a imagem,1 como um símbolo deficiente, ontologicamente esvaziado, a ser superado pelo conceito, correlato da atividade racional (ou talvez melhor dizer racionalizadora), o “pensamento retificado”, como bem o denomina Gilbert Durand.2

Juntamente com este último, na esteira de outros, anteriores, como Bachelard e Minkowski, vamos entender o pensamento lógico-racional, do encadeamento linear, como um caso particular e, enquanto particularização, também uma limitação, da forma originária e fundamental de pensamento, que é aquela por imagens, do imaginário. E entendemos que foi o próprio avanço da investigação teórica, onde ela é mais reconhecida como científica, ou seja, na matemática e na ciência natural, sobretudo a física, que trouxe uma tal compreensão, tornando a geometria euclidiana uma das possibilidades de elaboração de uma axiomática rigorosa sobre as propriedades do traçado de figuras em um plano que não podemos esquecer ser imaginado, logo, imaginário, assim como a lógica formal aristotélica, bivalente (que usa apenas os valores da falsidade e verdade), também é uma dentre muitas lógicas possíveis. O avanço da matemática, que é de se considerar como o avanço da própria imaginação humana criativa em um de seus setores, terminou impulsionando o avanço da investigação da matéria e do espaço físicos, permitindo que se forjasse a cosmologia relativística e a microfísica quântica. Nesta última, por exemplo, já se sabe que a idéia de “átomo” é uma abstração, não havendo esta partícula última indivisível, um “ponto”, tal como concebido na geometria euclidiana, tornada padrão de racionalidade pelo cartesianismo da (primeira ou mais recu-ada) modernidade. Imaginemos então que esse ponto na verdade é um círculo, reduzido a proporções infinitesimais, e consideremos que uma reta é formada por uma série de pontos, assim como em cada ponto da reta se pode conceber o cruzamento com ela de uma outra reta, sendo o que estabelece o sistema de coordenadas cartesianas, mas cada ponto é, na verdade, o lugar de um corte, que em matemática se denomina “corte de Dedekind”.3 A imagem que agora se tem desse sistema de coordenadas é totalmente diferente, e ela expressa bem uma outra percepção da realidade que a partir daí se pode obter, diversa daquela linear, cartesiana, a qual se mostra como uma abstração redutora diante dela. Retomaremos adiante estas colocações.

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Com relação à postulação ontológica, sobre o caráter imaginário do próprio direito, enquanto objeto de estudos teóricos, para entendê-la, basta que se atente para a circunstância de que o direito é também uma forma de conhecimento, sendo um modo como numa sociedade se dá a conhecer aos seus membros o comportamento que é esperado de cada um, pelos demais. Eis que, como era de se esperar, a postulação epistemológica e aquela ontológica convergem, mostrando-se como “os dois lados de uma mesma moeda”, “moeda” esta que o jurista e filósofo Miguel Reale, por influência (neo)kantiana, muito bem denominou “ontognosiologia”. O que aqui se quer então destacar é o caráter fundamentalmente “po(i)ético”, criativo, imaginativo de toda obra humana, aí incluídos tanto o direito como o conhecimento que se produz, a seu respeito, e também em geral, a totalidade do que se conhece, enquanto dependente de alguma forma de decodificação - ou signatura, para utilizar a expressão alquímica de Paracelso, amplamente empregada por Jacob Boehme, retomada de há pouco por Giorgio Agamben -, para ser por nós percebida significativamente, numa articulação simbólica.

1 NATUREZA FICCIONAL DO DIREITO

Partindo da consideração do Direito como uma criação humana, coleti-va, é que de último jusfilósofos dentre os mais acatados, a exemplo de Ronald Dworkin, professor de filosofia do direito em Oxford e em Nova Iorque, vêm propondo uma compreensão do universo jurídico em aproximação com aque-le da ficção e, mais especificamente, da literatura. Outro teórico do direito contemporâneo, de expressão, que se pode referir, em sintonia com uma tal concepção, é o também nova-iorquino Richard Posner, que assim como a pro-fessora de filosofia do direito em Harvard, Martha Nusbaum, encontra-se na origem do que veio a se chamar o movimento do direito e literatura (Law & Literature Movimment). Contudo, não se faz necessário recorrer ao pensamento anglo-saxão a fim de encontrar apoio para quanto aqui se pretende sustentar a respeito da natureza ficcional do Direito, pois em nossa própria tradição, originária da matriz continental européia, houve quem fizesse indicação nesse sentido, e com precedência, sendo autor de obra que se tornou paradigmática, a saber, Hans Kelsen. É certo que o pensamento kelseniano oficial não costuma destacar esse aspecto da elaboração teórica de seu autor referencial, posterior à segunda edição da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre), em 1960, concebida para se tornar canônica. Insiste-se, portanto, em referir à norma que seria o próprio fundamento de validade e, logo, de existência positiva do Direito, por isso mesmo dita norma fundamental ou básica (Grundnorm), como sendo uma norma hipotética, quando o próprio Kelsen, comprometido ao máximo como sempre esteve com a coerência do pensamento, percebeu que não poderia en-tender como sendo uma hipótese uma norma jurídica, pois hipóteses são asser-tivas feitas na forma de um juízo lógico, que podem ser verdadeiras ou falsas, a

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depender da correspondência de quanto ali se assevera com o que se comprova empiricamente, experimentalmente. Ora, isso significaria ultrapassar o limite entre o mundo do ser (sein), onde se situam os fatos reais (tatsache), e aquele do dever ser (sollen), onde se encontram os fatos possíveis (sachverhalt) que forem (juridicamente) selecionados para fornecer a base de uma imputação do Direito, a chamada fattispecie, da doutrina italiana, que corresponde ao “suporte fático” (tatbestand), da doutrina germânica. E tal limite, como é sabido, foi rigidamente estabelecido como um pressuposto de toda a teoria do direito kelseneana, a fim de evitar a chamada “falácia naturalista”, denunciada já por David Hume e, na esteira dele, por Immanuel Kant, principal referência filosófica para Kelsen. Essa falácia ou falso raciocínio ocorre quando se pretende fazer uma dedução do que deve ser a partir do que é, minando assim a autonomia da moral, do Direito, da estética e de tudo quanto estabelece o ser humano como critério de avaliação de sua conduta, por em assim procedendo fazer depender de uma determinação prévia do que seja o bom, o justo ou o belo a possibilidade de se estabelecer parâmetros de julgamento do que quer que se venha a fazer com a intenção de atingir tais ideais.

A qualificação de uma norma jurídica, portanto, não pode ser a de que é verdadeira ou falsa, ou seja, a de que corresponda ou não a fatos reais, do mundo do ser, daí dependendo sua existência, mas sim a de que é válida ou inválida, em se verificando sua correspondência com os fatos de ocorrência possível, do mundo do dever ser, instituído juridicamente. Na origem lógica – e não, pro-priamente, histórica – do universo jurídico que temos posto, positivado, diante de nós, Kelsen “pre(s)su-pôs” uma norma primeira, esvaziada de conteúdo, uma forma pura, puramente jurídica, como uma mera indicação da existência de um mundo de normas a ser entendido como Direito, juridicamente vincu-lante, mas sem uma vontade que (im)pusesse uma tal norma, a tornasse posta, positiva, e ela é que seria o fundamento de validade, a justificativa (lógica) de existência, de todas as normas efetivamente postas, positivas. Essa norma, na 2ª. ed. da Teoria Pura do Direito é considerada, kantianamente, uma condição transcendental de possibilidade do conhecimento jurídico, ou seja, algo como as categorias de tempo e espaço, enquanto necessárias para o conhecimento do mundo físico, mas depois Kelsen se deu conta de que, justamente por ser uma categoria, ou seja, literalmente, um “modo de falar” (do grego kat’ gorein) – no caso, sobre o Direito -, não poderia ser uma norma, jurídica, que na sua própria definição é o que confere um sentido, jurídico-positivo, a um ato de vontade, criando Direito a partir de Direito previamente estabelecido. A norma fundamental cumpriria a função de evitar o regressum ad infinitum, o círculo vicioso, do Direito que é criado a partir do Direito, mas atribuindo-se a ela o caráter hipotético e a natureza de uma categoria, ela restava descaracterizada como norma, não podendo assim ser a primeira de uma série – é como, mal comparando, se considerasse que o primeiro dos números da série de números naturais, o zero, não fosse um número, fosse um “não-número”, por ser zero, o que restou definitivamente superado pelas investigações de Frege sobre os

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fundamentos da aritmética, que demonstraram como a definição de todos os demais números da série dos cardeais pressupunha a existência de um primeiro número “n”, diverso do número 1 e diverso também de si mesmo, para validar a fórmula definidora de todos os x-números dessa série numérica. Ocorre que um tal objeto, contraditório (igual e diverso de si mesmo), não-existente, mas dotado ainda assim de existência, pois dele depende a existência, racionalmente justificada, de outros, “normais” (ou, no caso dos números, “naturais”), em matemática, já adquire o estatuto do que aqui se entende como “imaginário”, remetendo-nos à transcendência – só sobre a divindade é que se produziu, em outros contextos, afirmações como esta, demarcando tão radical diferença com o que habitualmente nos deparamos.

A solução encontrada por Kelsen, similar à que se proporia em matemá-tica, diante de um tal impasse, quando se criou os números imaginários – mas esse não é o momento de adentrar em considerações desse gênero, de resto expendidas em nossa “Teoria da Ciência Jurídica” e em outras oportunidades -,4 foi a de considerar sua norma fundamental como uma norma fictícia, norma em sentido figurado (fingierte), um “como se”, no sentido da filosofia do “como se” de Hans Vaihinger.5 O propósito maior da obra,6 como reconhece ao final seu A. - em sua auto-proclamada teoria “idealístico(-crítica)-positivista”, de matriz, a um só tempo, kantiana e nietzscheana -, é diferenciar ficções de hi-póteses, enquanto recursos heurísticos. No capítulo próprio, a respeito (Parte I, Cap. XXI, p. 87 ss. da ed. cit.), as primeiras são apresentadas como cons-cientemente inventadas, sem pretensão de serem verdadeiras, no sentido de corresponderem à realidade, tal como as hipóteses, que devem ser prováveis (e comprováveis), enquanto as ficções, por seu turno, devem ser úteis para fazer avançar o conhecimento, dando como resolvidas questões que se apresentam como obstáculos para este avanço. Daí que, ao final da obra, o A. apresente como exemplo típico de ficção os dogmas da teologia – em passagem que será lembrada por Freud, em sua apreciação psicanalítica da religião, no texto “O Futuro de uma Ilusão” - , assim como antes apontara o direito e a matemática como as disciplinas que mais se valem do recurso para resolver seus problemas, por meio de uma formalização que as tornaria muito similares, estruturalmente - Vaihinger se refere a um “parentesco fundamental (prinzipielle Verwandschaft)” -, na medida em que abstraem especificidades dos objetos reais para subsumi-los a proposições generalizantes (abstrakte Verallgemeinerunge – id. ib., Cap. XI, p. 56 ss.), a fim de equipará-los por analogia e realizar cadeias dedutivas (ib., Cap. V, p. 32 s.). Tratar uma assertiva como do domínio da ficção, portanto, é vedar de antemão a sua possibilidade de corresponder à realidade, enquanto a hipótese implica a pretensão de, possivelmente, se confirmar.7

2 O DIREITO COMO PARTE DO MUNDO CRIADO PELO DESEJOO mundo da ficção é um mundo de possibilidades reduzidas, onde não

se pode saber sobre o que não nos é dado a conhecer pelos responsáveis por sua

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criação. Existir como uma ficção é existir menos do que o que existe realmente, pois é nesta última forma de existência, e não naquela, em que logicamente tudo pode acontecer, desde que não implique em contradição com o que já existe, enquanto a coerência narrativa, a consistência entre o ocorrido antes e depois - que segundo Dworkin é o que se deve esperar encontrar e, logo, cobrar, no Direito -, seria a um só tempo, mais vaga e mais constringente, para determinar o que pode acontecer. Daí se poder falar, com o importante fenomenólogo polo-nês Roman Ingarden, de uma “incompletude ontológica” do universo ficcional, do qual só se pode saber o que nos informa o seu “demiurgo”, que no caso da literatura são os autores das obras ficcionais. 8 Assim, os juízos realizados no âmbito deste universo ficcional diferem daqueles feitos a respeito da realidade propriamente dita, a ponto de se poder denominá-los, como o fez Roman Ingar-den, “quase-juízos”, inaptos a serem considerados “verdadeiros” ou “falsos”, pois a “realidade” da ficção é uma simulação da realidade, enquanto ficcional, mas o mesmo não se pode dizer dos juízos em outros âmbitos, como em Direito, que se referem a um possível “estado de coisas” (state of affairs, sachverhalte). Este não é de se considerar uma simulação da realidade, mas uma outra realidade, de uma outra natureza – deontológica, no caso do Direito, do âmbito do dever ser, e não puramente ontológica, do ser (ontos, em grego antigo) -, humanamente construída, sim, tal como a ficção, mas de modo coletivo, difuso, e dotada de um caráter vinculante, que a impõe a nós COMO SE realidade fosse, na qual devemos acreditar – e não apenas podemos, se quisermos -, e isso para evitar que, em razão do descrédito, se venha a sofrer conseqüências, bem reais, como são as sanções jurídicas.

O Direito, então, disponibiliza aos que a ele se encontram sujeitos, e que em face dele se tornam sujeitos passíveis da aquisição de direitos e obrigações correlatas, meios de produzir uma história, vinculante para os que nela tomarem parte, e vinculando-os a partir da obediência ao que se encontre previamente estabelecido pelo Direito, enquanto apto a desempenhar a função no enredo que nele pretendam os envolvidos adotar, a fim de atingirem suas finalidades e propósitos, com respaldo jurídico. Aqui é elucidativa a analogia com o jogo, como o xadrez, com suas possibilidades virtualmente infinitas de jogadas, a partir da estipulação de como podem se mover no tabuleiro suas peças, sendo a definição prévia do que pode fazer qual peça absolutamente essencial para que se possa avaliar, ao longo de um jogo, se ainda se continua jogando xadrez ou se, por atribuir, ainda que seja a uma só peça, funções outras, imprevistas, não se descaracterizaria, com ela, o próprio jogo, restando apenas a aparência do jogo original, pela permanência de figuras que não se pode mais considerar como, efetivamente, aquelas de um verdadeiro jogo de xadrez, de acordo com suas definições estipulatórias. Essa dependência do jogo em relação às suas regras constitutivas foi mostrada em uma passagem bem conhecida de suas “Investigações Filosóficas” por Ludwig Wittgenstein, sendo transposta para a reflexão jusfilosófica por um seu discípulo, Herbert Hart, ao considerar a norma jurídica uma prática social, em tudo e por tudo similar àquelas dos jogos. Aliás, o

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jogo é também uma ficção, um combate fictício, engendrado para dar vazão aos anseios lúdicos, agônicos, do ser humano, tão bem estudados por Huizinga em seu clássico “Homo Ludens”. Entende-se, assim, a proposta feita recentemente por Giorgio Agamben,9 no sentido de que aos filósofos, como às crianças – e, de nossa parte, acrescentaríamos os poetas -, caberia a descoberta de novas dimensões para os usos comuns dos meios que se encontram a disposição para atingir certos fins - jurídicos, econômicos, políticos etc. -, tornando-os inúteis para tais finalidades, no mesmo gesto em que os utilizam para outras finalidades, mais diretamente prazerosas, como jogar.

O direito é, portanto, parte desse universo lúdico, criação do desejo huma-no, um modo de imaginar o real em descrições que façam sentido, como diria o antropólogo Cliford Geertz.10 Ora, em um mundo concebido (nietzscheanamen-te) como sonho (de deidades que são o aspecto subjetivo do cosmo, entendido como uma diacosmese, uma epifania dessas diversas divindades em que cada uma a seu modo, de múltiplas formas, expressa o cosmo em sua totalidade, como nos explica em sua “Mitologia” o grande sábio luso-brasileiro Eudoro de Sousa) pode acontecer muito mais e com maior facilidade do que na realidade fixada por nossos hábitos, pois ele não só varia muito mais no tempo e no espaço reais, como também dispõe de um tempo e espaço próprios, a ponto de se poder vir a realizar uma cosmologia, filosófica, totalmente diversa daquela astronômica, que é como se pode conceber, por exemplo, os esforços da psicanálise.11 É certo que nisso a filosofia, assim como a ficção e, com anterioridade, o mito, seja na magia, seja na religião,12 demonstra-se “constituinte de mundo” (weltbildend), mas se não é propriamente ficcional o modo de existência originário do mundo, a ser captado pela filosofia, e vazado nos moldes cunhados pelo Direito, qual seria o seu estatuto? A proposta que aqui se avança é a de que ele é da ordem do desejo, considerando-se a expressão como formulada utilizando o genitivo em sentido subjectivus e também objectivus, ou seja, como sendo o mundo ao mesmo tempo causa e efeito, ou função, do desejo, do que é mais propriamente humano, e não da vontade ou de necessidades, que geram interesses, como defende o utilitarismo tecnicista hoje predominante.

Ao considerarmos o mundo, tal como o concebemos, representamos, imaginamos, como um produto do desejo lhe conferimos o mesmo estatuto dos sonhos, isto é, um caráter onírico, imaginário. Tratar-se-ia, então, de algo como um sonho coletivo, construído a partir do que já é dado como sendo o mundo, a realidade, sim, mas sempre in fieri, nunca devendo ser tido como já pronto e acabado, ou seja, objetivo, pois além de depender de sujeitos, desejantes, que o tenha posto, no passado, visando uma previsão e controle do futuro, contingente, depende também de sujeitos que o “re-ponha”, no presente, atualizando o que há de ser visto como potencialidades, realizando possibilidades.13

Nesse contexto, é de um saber prático que se trata, mas do tipo po(i)ético, “criador” de mundo, produtivo, ao invés daquele seu outro tipo, o técnico, reprodutivo, “explorador” de mundo. Aquele pode ser caracterizado como o que

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indica como algo pode ser feito, uma vez que se decidiu fazê-lo, estabelecendo uma verdade onde se faz uma questão. A teologia, por exemplo, foi considerada um saber prático já por John Duns Scot (1266 – 1308),14 mesma época em que os Glosadores da escola de Bolonha estarão abordando desta maneira o Direito. Também como ele - e antes dele, influenciando-o, Avicena ou Ibn Sînâ -,15 pode-se defender que do Ser de Deus, o criador, ser-em-si, deve-se falar como do ser dos entes, as criaturas, em um sentido unívoco e não, por exemplo, como em Tomás de Aquino, em sentido análogo, tal como demonstrou seu su-cessor na cátedra dominicana de Paris, o místico Mestre Eckhart, que também tanta influência teve em Heidegger, com sua afirmação da absoluta diferença (ontológica), estranheza,16 do Ser - logo, também de Deus, que é enquanto ser, e não enquanto ente, ainda que supremo, e maximamente superior, donde podermos dizer que Ele, ao contrário de nós, não ex(ks)iste,17 pois não “está (iste) fora (ex ou εζ)” e, sim, além, do mundo e de toda conceitualização, por ser transcendente:18 como já afirmavam os medievais, na esteira de Duns Scot, e esse com base em Avicena, n’Ele coincidem a essência e a existência, ser e realidade, enquanto nossa essência de entes humanos é a possibilidade - de ser, e também de não ser.19

3 O DIREITO POSTO (POSITIVO) POETICAMENTE CONCEBIDO COMO DIREITO POSSÍVEL

É a partir de tais colocações que também se abre uma perspectiva para o desenvolvimento, em teoria da ciência jurídica, em um sentido próprio e atual, isto é, falibilista, porque humana e, logo, “possibilista”, imaginária. O direito, então, ao invés de positivo, positum, dado, objetivamente, há de ser concebido antes como possível, imaginário, pois a ficção é a verdade do direito, e o direito é a camuflagem do poder, apropriado e exercido pelos “autores-intérpretes” desta grande montagem, que é a sociedade. Isso porque o que é verdadeiro e falso, em direito, como na política e setores afins, se determina pela “coerência da narra-tiva” (Dworkin, MacCormick), tendo toda verdade a estrutura de uma ficção, de montagem teatral – fictio figura veritatis, conforme a máxima dos glosadores, lembrada por Ernst H. Kantorowicz e, na esteira deste, Pierre Legendre.20

Daí ser o tipo de discurso que é desenvolvido no âmbito da teoria jurídica de se considerar, em um sentido amplo, um discurso ficcional, poético, ou me-lhor, “poiético” (do grego poiésis, “fazer”, “produzir”, “criar”), já por podermos imaginar várias versões para a história da origem do humano, permanecendo sempre o mesmo desfecho, a saber, o de sermos um ser produzido pelas proibições que se nos impõem e, logo, também, nos impomos.

Na atual concepção epistemológica, em lógica e matemática, assim como na física e ciências em geral, “encontra-se o real como um caso particular do possível”.21 É certo que foi o avanço mesmo da pesquisa em microfísica ou física quântica, como indicado acima, que instaurou a possibilidade (ou a “indeter-minação”) no próprio cerne dos fenômenos estudados nesse nível, pois uma

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molécula ativada por um quantum de luz tanto pode integrá-lo em seu material, como pode reemitir o seu ganho de energia sob a forma de radiação, ou ainda entrar em reação química com outras moléculas, bem como romper o quantum, transformando-o em energia.22

Com isso, as ciências vão ao encontro daquela antropologia fundamental, que a partir de poetas-filósofos como Novalis, para quem o homem é o autor de sua realidade, ou teólogos-filósofos, como Kiergegaard, para quem o homem é aquele ser que deve educar-se no possível, podendo se remontar ainda a Ortega y Gasset e Heidegger, bem como, antes deles, Nietzsche, para que chegue a nos caracterizar nosso Vicente Ferreira da Silva - lamentavelmente falecido antes dos cinqüenta anos, em fins da década de 1960 -, em confronto com as coisas (ta onta), da seguinte maneira: “Enquanto a coisa vive cerrada em si mesma numa compressão infinita e limitante, o homem como subjetividade está envolto num horizonte de possibilidades, abre-se para o possível e somente através deste possível pode ser profundamente compreendido”.23

Isso não quer de modo algum significar que iremos apelar para uma espécie de fabulação, para a invencionice. O discurso, para ser verossímil e persuasivo, para nos agradar, deve ser construído tomando elementos da realidade, do que compartilhamos de mais elementar, completando-os e, por assim dizer, cimentando-os com a argamassa de nossos sonhos, os que temos dormindo ou acordados, pois são a expressão de nossos maiores desejos, os desejos de saber. “Tampouco isto foi descoberto pela razão”, podemos dizer com Kierkegaard,24 “posto que esta fala pela boca do paradoxo se diz a si mesma: as comédias, as novelas e as mentiras têm de ser verossímeis [...]” – caso se queira que elas atinjam seus objetivos.

Daí podermos postular a produção de um discurso puramente imaginativo, e bastante revelador. Neste sentido, me parece que um dos objetivos seria o de realizar, no campo do pensamento, o que no campo puramente ficcional certos autores realizam quando fazem o que Deleuze/Guattari chamam de “literatura menor”,25 que é a literatura sempre política e necessariamente revolucionária daqueles que estão à margem, “desterritorializados”, a ponto de empregarem para fazer literatura a linguagem do “colonizador”, dos que exercem o domínio político e lingüístico no território em que habita o povo dominado – lembre-mos, aqui, que em sua origem romano, o territorium é o local onde se demarca o dominium pelo exercício do terror. Entende-se, assim, porque aquilo de mais destaque que se tem produzido em nosso País, em termos culturais, é de se con-siderar, em sentido amplo, como literatura – e aqui não estou pensando apenas na literatura em um sentido mais tradicional, mas também em gêneros como a música popular e as telenovelas. Aqui pode-se falar em uma “hermenêutica imaginativa”, tal como é preconizada por Márcia Sá Cavalcante Schuback,26 a fim de termos melhor acesso a autores marcados pela uma visão teologia, com são os medievais, dos quais também nos ocuparemos, ao longo do presente estudo, em que se busca recuperar uma unidade perdida na tradição do pensamento

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desde suas origens filosóficas até o presente – “tradição” aqui entendida como propõe Husserl no manuscrito sobre a origem da geometria escrito em 1936,27 nos seguintes termos:

A geometria que está pronta, por assim dizer, a partir da qual o inquérito regressivo começa, é uma tradição. Nossa existência humana se move dentro de inumeráveis tradições. O mundo cul-tural todo, em todas as suas formas, existe por meio da tradição. Estas formas surgiram como tal não apenas casualmente; também já sabemos que tradição é precisamente tradição, tendo surgido dentro do nosso espaço humano através da atividade humana, isto é, espiritualmente, mesmo embora geralmente nada saibamos, ou quase nada, da proveniência particular e da origem espiritual que as trouxeram. E ainda lá jaz nesta falta de conhecimento, em qualquer lugar e essencialmente, um conhecimento implícito que pode, assim também, ser tornado explícito, um conhecimento da evidência inacessível. Começa com lugares comuns superficiais, tais como: que tudo tradicional surgiu da atividade humana, que de acordo com isto homens passados e civilizações humanas existiram, e entre elas seus primeiros inventores, que modelaram o novo a partir de materiais à mão, quer fossem brutos ou já modelados espiritualmente. Da superfície, contudo, é–se levado às profundezas. A tradição é aberta deste modo geral a inquérito contínuo; e se se mantiver consistentemente a direção do inqué-rito, uma infinidade de questões que ainda está presente para nós, e ainda está sendo elaborada num desenvolvimento vivo, se descortinam questões que levam a respostas definidas de acordo com o seu sentido.28

Do que se trata, então, é verdadeiramente de realizar um trabalho imaginativo, conscientemente ficcional, que se avalia – e avaliza - por seus efeitos. É assim que, dessa perspectiva, mitologia, filosofia, direito ou religião e mesmo as ciências são literatura, ficções, pois o que se pretende fazer é contar uma história o melhor possível, para torná-la verossímil, dando um sentido às nossas vidas, mesmo quando se diz, como o jurista romano do século II, depois teólogo cristão, o primeiro, além de filósofo, Tertuliano: creio, ainda que pareça - ou mesmo porque parece - absurdo. Nesse contexto, vale recordar palavras de Gilles Deleuze, em sua última publicação:29

Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagens da vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado. [...] por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto de sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: [...] A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. [...] Embora remeta sem-

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pre a agentes singulares, a literatura é agenciamento coletivo de enunciação. [...] Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por este povo que falta...[...] ‘Cada escritor é obrigado a fabricar para si sua língua...’ [...] O escritor como vidente e ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Idéias.

Cabe agora distinguir as implicações políticas, epistemológicas e metafísi-cas do possibilismo da Teoria Imaginária do Direito, em confronto com aquelas do positivismo. O positivismo, como não se costuma salientar, tem diversos sentidos, conforme se apresente como uma ideologia de obediência ao que de-terminam as normas jurídicas, sem consideração quanto ao seu conteúdo, pelo simples fato de terem emanado de um poder soberano, posição que se encontra associada à figura de Thomas Hobbes,30 assim como em termos epistemológicos a referência é o cientificismo mecanicista e anti-metafísico de Augusto Comte, com suas variantes mais recentes, como são aquelas do Círculo de Viena. Tanto em um caso como no outro, porém, a matriz é metafísica, e pode ser caracteri-zada como sendo um formalismo, que teve na filosofia transcendental de Kant a sua culminância.

O sentido comum do termo “formalismo” é o de importância desmedida concedida às formalidades, ao que é exterior, em detrimento do que é substancial e realmente importa. Daí já se extrai uma indicação valiosa do que seria o sentido filosófico, que consiste em negar a existência real do conteúdo, para reconhecer somente a da forma – ou, em uma versão menos radical, mas próxima daquela defendida pelo grande patrocinador da chamada “distinção formal”, na Baixa Idade Média, John Duns Scot,31 simplesmente a possibilidade da existência independente da forma em relação ao conteúdo de um objeto.

Diferentes serão os sentidos do formalismo, segundo o contexto de apli-cação seja a lógica, a filosofia da matemática, a gnosiologia, a ética ou a estética, mas sempre com a idéia de preponderância da forma sobre a matéria.

Bastante impulsionado por Immanuel Kant, o formalismo lógico atribui um caráter puramente formal aos princípios e leis da lógica, e portanto tende a tomá-los como meras convenções. O conjunto das proposições e predicações ló-gicas formariam uma totalidade autônoma, radicalmente separada das conexões reais entre os seres ou as partes do ser, os entes, marcando uma oposição à lógica metafísica dos escolásticos, inspirada em Aristóteles, para a qual os princípios lógicos têm intrinsecamente um alcance ontológico, isto é, não valem só para as conexões de idéias, mas também para as coisas reais. É essa mesma ênfase na forma que será aplicada para estabelecer as leis matemáticas e operações delas derivadas. Um certo formalismo é inerente a todo pensamento matemático: uma expressão (tautológica) como a + b = b + a é puramente formal, pois se aplica a quaisquer números ou objetos e não tem matéria determinada. O formalismo estende esse caráter puramente formal a todas as relações matemá-

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ticas e toma os números como formas convencionais. Estabelece-se assim uma fronteira rigorosa entre as matemáticas e a filosofia da matemática: a redução dos sistemas matemáticos a meras construções formais permite evitar questões filosóficas complicadas, de corte metafísico, como a natureza dos números e o significado do “verdadeiro” e “falso” em matemática. Por essa razão, muitos matemáticos adotam o formalismo como mero expediente prático, sem aderir a ele expressamente. Na verdade, segundo o formalismo, não existem objetos matemáticos. A Matemática consiste apenas em axiomas, definições e teore-mas, ou seja, em fórmulas. No limite, existem regras pelas quais se deduz uma fórmula a partir de uma outra. Mas as fórmulas não são acerca de coisa alguma: são apenas combinações de símbolos. É claro que os formalistas sabem que as fórmulas matemáticas se aplicam por vezes a problemas físicos. Quando se dá a uma fórmula uma interpretação física, ela ganha um significado, e pode en-tão ser verdadeira ou falsa. Mas esta veracidade ou falsidade tem a ver com a própria interpretação física. Enquanto fórmula puramente matemática ela não tem significado nem valor lógico. Contra uma tal concepção, pelo que tem de nefasto para o pensamento, insurgiu-se Husserl em seu último grande esforço filosófico, consubstanciado na obra “A Crise da Ciência Européia e a Fenome-nologia Transcendental” (abrev.: “Krisis”). 32

4 CRÍTICA FENOMENOLÓGICA DO FORMALISMO CIENTÍFICOEm linhas gerais, pode-se dizer quanto ao pensamento husserliano que

irá partir de uma crítica aos limites impostos ao conhecimento pela filosofia de Descartes, Kant e Hegel, ao afirmar que o pensamento dos citados filósofos não era “rigoroso”, já que não consideravam devidamente em suas construções a subjetividade humana, focalizando apenas o objeto. Eles não se atinham ao fato de que as considerações acerca do objeto eram, elas mesmas, “construções mentais”. A subjetividade, enquanto consciência intencional, dirigida aos objetos, para Husserl, seria “a primeira verdade indubitável para se começar a pensar corretamente.” Daí ter ele defendido que, no processo de consideração da subjetividade humana, é necessário assumir uma “atitude fenomenológica”: já que o homem é um “ser no mundo” e, portanto, participante dele, deve as-sumir essa postura e se contrapor a uma “atitude natural”, que é aquela de ser “possuído pelo mundo”, desconfiando de toda e qualquer evidência ou obvie-dade, sejam aquelas do senso comum, sejam as das ciências, sendo essa a tarefa própria da filosofia. Não existe, portanto, para a fenomenologia, uma relação pura do sujeito com o objeto, visto que a relação entre o sujeito e o objeto é sempre intencional: o objeto se torna tal a partir do olhar do sujeito, um olhar que, para além da existência contingente de objetos em particular, capta sua essência, o que necessariamente lhe constitui, donde se falar em Wesenschau – literalmente, “visão da essência” ou, no sentido fenomenológico, intuição. Assim, para a Fenomenologia, o ser é um ser de relação, e não uma substância, como tradicionalmente vinha sendo pensado, desde os antigos gregos. Dessa forma, para ele, tanto o ser quanto o mundo só existem na relação ser-mundo,

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não fazendo sentido, portanto, como ressalta aquele que seria o maior dentre os seus muitos discípulos, caso não tivesse estabelecido uma dissidência, a saber, Martin Heidegger, no § 9 de prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriff,33 entender-se o fenômeno estudado pela fenomenologia husserliana como uma aparência que oculta uma essência ininteligível, pois esse fenômeno é caracteri-zado pelo encontro mesmo entre uma consciência com o que para ela se revela do mundo, enquanto doadora de sentido e, logo, dá consistência de objeto a essas “revelações”.

O texto da “Krisis”, de 1936, vai apontar a rebeldia de Galileu frente ao intuicionismo espontâneo como a origem mesma das modernas ciências da natureza, por ele ter sido alguém que teve a idéia de aplicar à natureza física o mesmo método de objetivação aplicado na geometria, cujos traços fundamentais, segundo Husserl, são (1) a idealização e (2) a construção.

Husserl (“Krisis”, § 9a), opõe o objeto intuitivamente dado aos objetos ideais da geometria, sendo que os primeiros são dados em um mundo circun-dante intuitivo, inexato, avesso à objetivação, ao contrário daquele mundo matemático, em que são objetivados, como verdades em si, “irrelativas”, ou seja, absolutas, por não serem relativas a algo, de que seriam a representação aproximada. No “mundo real” temos a experiência de corpos, com forma e conteúdo constituídos pelas qualidades sensíveis, quer dizer, pensáveis em uma certa gradação, como mais ou menos planos, retos ou circulares, e assim por diante – longe, portanto, da exatidão de uma forma geométrica. Essas coisas, reais, em todas as suas propriedades, estão sujeitas a uma certa oscilação, donde sua igualdade, postulada em uma função, tanto a si mesma como a outra coisa, ser puramente aproximativa, valendo o mesmo para as figuras, relações etc. O que significa esse caráter meramente aproximativo do mundo intuitivo? Ser ele subjetivo-relativo: o que parece reto a Pedro pode não sê-lo para Paulo. Essa subjetividade implica na inexatidão inscrita nesse mundo, onde nunca haverá verdade em si, válida para todos, objetivamente válida. Logo, a geometria lida com um método idealizante, para operar com idéias, e não com coisas, o que requer a passagem das formas reais para as ideais, formas-limites, contruídas: no lugar de qualquer práxis real tem-se uma práxis ideal, do pensamento puro. O movimento de um ponto, por exemplo, produz uma reta, e o movimento circular da reta produz o círculo e assim por diante. Desse modo, consegue-se a exatidão que não há na práxis empírica, determinando aquelas formas em sua identidade absoluta, com propriedades absolutamente idênticas, determináveis de modo unívoco. Dadas as formas elementares, por uma operação sobre elas se constrói novas formas de maneira metódica, com um método que garante verdades para todos os que o praticarem. Ora, a estrutura literalmente circular desta forma de pensamento fica evidenciada quando propomos que se conceba o ponto como um círculo diminuto, tal como feito de início, na tentativa de forjar uma concepção geométrica mais fidedigna em relação às pesquisas da física quântica sobre a estrutura do real.

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Quanto a saber se haveria continuidade entre os dois mundos, aquele real e o ideal, Husserl entende que de maneira alguma – são domínios separados por um abismo, visto que o ideal não é um dos possíveis do real, obtidos pela variação imaginária das formas sensíveis (cf. “Krisis”, § 9, passim). Por isso que a reta será melhor representada como uma continuidade imaginária dos pontos em que se tocam a série de círculos que são os pontos, postos lado a lado, pois assim fica evidenciada a verdadeira descontinuidade, o “corte de Dedekind”, que a imagem da reta nos oculta.

Com a ciência moderna, surge a idéia de uma natureza construtivamente determinada em todos os seus aspectos. Agora não se trata de aplicar a matemá-tica à empiria, como já Platão – ou, antes dele, Pitágoras - o preconizara, mas sim idealizar a natureza, transformando-a em si em uma idéia, onde ela própria é idealizada, sob a direção da norma matemática, tornado-se ela mesma um múltiplo da matemática. E com isso, o mundo da vida intuitiva é substituído por um mundo matemático de idealidades, começando uma história de sobreposição deste à natureza pré-científica. As ciências exatas – que em “Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica” (abrev.: “Ideen”), III, § 18, Husserl qualifica de “dogmáticas” – mascaram a trivialidade de que na vida cotidiana não encontramos correspondência com a idealidade, existentes em um espaço geométrico e em um tempo matematizado. Daí decorre a “alienação técnica das ciências”, a que se refere Husserl no § 9 lets. f, g, do texto da “Kri-sis”, com a busca desenfreada por fórmulas que nos permitam chegar a ver o ser verdadeiro da natureza, já anteriormente idealizada, fórmulas essa submetidas a uma algebrização, a qual, inicialmente, amplia as possibilidades do pensamento, tornando-o livre e purificado de qualquer referência intuitiva, com o que o desconecta do fundamento de validade, fonte originária de toda verdade.

Nesse contexto, de fabricação da ciência, o cientista é mero operário ou, quando muito, um engenheiro, tal como já consta em “Ideen”, III – já o filósofo é caracterizado em “Krisis” como um “funcionário da humanidade”. Aos cientistas é que se referia Husserl, ao dizer que operam segundo regras de um jogo, enquanto o pensamento originário, o que confere sentido e verdade, “simbolizante”, imaginativo, fica excluído, em face do simbolismo formalista. Afastar tal alienação técnica, saindo dos signos exteriores para os conceitos, partindo da intuição, como preconiza Husserl, é acabar o “jogo” das operações meramente computacionais, com seu formalismo estéril.

Com Hilbert, deu-se o impulso maior ao formalismo, em filosofia da arit-mética, a qual ele pretendia demonstrar ser a base de toda a matemática, uma vez encontrada uma técnica por meio da qual se pudesse clarificar, de uma vez por todas, que a matemática estava livre de contradições, o que foi posto por terra pelo célebre teorema da incompletude de Gödel.34

Segundo Kant, as formas de cognição próprias ao ser humano predeter-minam o conteúdo de nossos conhecimentos possíveis. Estamos presos a elas e delas não podemos sair para apreender “as coisas em si”. Por exemplo, espaço e

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tempo não são “realidades”, mas formas, internas (e inatas) à mente humana, nas quais enquadramos os dados que recebemos do real, de modo que nada per-cebemos fora do quadro espaço-temporal que nos é próprio. Do mesmo modo, há formas de pensamento lógico (categorias como “existência” e “inexistência”) que também funcionam como filtros - e sabemos por antecipação que nada chegará a nosso conhecimento sem passar por esses filtros.

Ainda segundo Kant, a ética deve limitar-se a emitir regras formais, sem matéria definida. Por “matéria” de um juízo ético Kant entende os bens ou males determinados, que ele recomenda ou proíbe. Uma “ética material” teria de provar logicamente a superioridade de certos bens sobre outros, o que para Kant é impossível. Regra ética formal é a que vale para quaisquer bens indeter-minados. E se isso pode ser contestado em tema de ética, como efetivamente o tem sido, entre outros, por Max Scheler, com seu enfoque fenomenológico, assim como, em termos de ciência do direito, da perspectiva tão difundida de Hans Kelsen, que propõe a consideração dita científica (positivista) do Direito apenas como um conjunto de normas já dadas, a ser estudado por um sistema consistente de objetos puramente formais, sem discussão de seus conteúdos, é que se atingiria a possibilidade do conhecimento científico.

Justamente contra essa perspectiva é que nos insurgimos, verberando argumentos como os que defendem, em filosofia da matemática, os intuicionista, Luitzen Brouwer a frente, tendo ao lado Henri Poncaré, e também Husserl, como antes dele o seu mestre, Weierstraß. A prática da matemática, para Brouwer, como explica Jairo José da Silva,35 “não se constituía na derivação de teore-mas, no interior de uma lógica determinada a priori, como para os logicistas e formalistas, mas no exercício criativo de uma consciência matemática, limitada apenas ao princípio formal a que está sujeita toda construção, o tempo”. Assim, para o intuicionismo, enquanto vivência de uma consciência moldada pelo sen-tido interno, que é o tempo, a investigação matemática se dá em um processo temporal finito, mas que não é aprioristicamente limitado ou universalmente pré-determinado. Toda construção que extrapole a intuição fundamental é inexistente, mera forma fantasmagórica, concebida no espaço imaginário da consciência. Assim ocorre com os conjuntos infinitos, dos quais a matemática usa e abusa, sem que deles possa oferecer um verdadeiro conhecimento, posto que nenhuma totalidade de fato infinita pode ser efetivamente construída numa seqüência finita de momentos – e também por vivermos, até onde nos é dado perceber, em um mundo materialmente finito, oriundo de um evento singularíssimo, o assim chamado “big bang”.

A subjetividade transcendental, por seu turno, como bem demonstra Alexandre Fradique Morujão,36 é quem vai pôr o mundo “entre parênteses”, por meio da redução fenomenológico-transcendental (a epoché do ceticismo pirrônico, com o significado que lhe atribuiu Husserl), depurando, assim, desse mundo (natural) o eu que é seu correlato intencional, visto que “(N)o sentido fenomenológico só há mundo para mim e só há eu na correlação mundana

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intencional”.37 Isso porque o fenômeno, para a fenomenologia husserliana, é esse “correlato real ou possível de determinados modos de doação intencio-nais” (id. ib., p. 116), modo esses que são modos de doação do mundo – o qual, parafraseando a passagem bíblica, se precisa inicialmente perder para depois recuperá-lo, “ganhando-o”. Escapando do mundo pela epoché, seguida da redu-ção fenomenológica, o eu, agora (mais) livre, pode lhe atribuir sentido, o que já exige que ele saia do solipsismo, de seu estado de mônada (como diria Leibniz), irredutivelmente fechada em si, abrindo-se para o “nós” ou pluralidade de “eus” que há em si, em cada um de nós.38 Por essa via, a reflexão fenomenológica, tal como atestam trabalhos ainda inéditos de Husserl,39 chega a uma “totalidade absoluta das mônadas”, denominada “personalidade total” (na “Krisis”, § 55, pp. 191/192, linhas 39/01, há referência a “personalidades de ordens superiores”, com sentido crescentemente transcendental e, assim, absoluto), fundamento mais íntimo do eu transcendental, que é também um “eu”, só que de um tipo todo especial, por ser Deus, “intuível reflexivamente como uma ultra-realidade, supra-verdade e ultra em si”.40

Ora, o conjunto de mônadas, que é uma “super-mônada”, a qual se pode se indicar com a denominação de “Deus”, há de ser concebido como este círculo, que foi reduzido ao “ponto” da geometria clássica, formado por uma infinidade de outros círculos ou “pontos”, as “rei” (plural de res, em latim, a causa jurídica, o litígio, que se traduz também por coisa) ou coisas que compõem a assim chamada re(i)alidade, todas passíveis de serem concebidas abstratamente como círculos que são abrangidos por um círculo maior, no qual, portanto, são imanentes, mas que, por este círculo maior a eles não se reduzir, ele seria, em relação aos círculos menores, transcendente.41

5 PROPOSTA DE REORDENAÇÃO DAS FORMAS DE CONHECI-MENTO LEGITIMANDO AQUELAS DE NATUREZA POÉTICO-NORMATIVA OU “ESCATOLÓGICAS”.

Eis que assim nos pomos em condição de propor os vetores de investi-gação da totalidade do real, como uma parte do imaginário, dividido por um eixo horizontal atravessado por um outro, vertical, onde na parte superior está o transcendente, assim como na parte inferior está o imanente. Já na parte anterior, do eixo horizontal, tem-se a investigação causal-explicativa, praticada pelas ciências naturais, e que também pode ser dita arqueológica, no sentido em que Michel Foucault propôs uma arqueologia do saber,42 ou também “arcôntica” (archontisch), como refere Heidegger,43 desde que praticada no plano histórico, transcendente (parte superior esquerda do diagrama proposto), ao invés daquele natural, imanente (parte inferior esquerda o mesmo). E na parte posterior deste mesmo eixo (portanto, à direita do diagrama) é que se tem localizada a inves-tigação ou elaboração mais puramente imaginativa, voltada não para a busca retrospectiva de causas originárias, as “archai” (do grego arché, que quer dizer “causa”, sendo termo originário do vocabulário jurídico-político, pois significa

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também o poder de decidir do arc[h]onte), mas sim para a formulação prospec-tiva, escatológica,44 do sentido, tal como se faz no âmbito da poética, seja ela artística, ou (também) teológica, tal como refere Giambattista Vico, com uma conotação igualmente jurídica, ou jurídico-política, “civil”,45 sendo esta última de se considerar como imanente (parte inferior à direita do diagrama proposto), enquanto aquelas são transcendentes (parte superior à direita).

Em meados do século XX, a obra de Theodor Viehweg, “Tópica e Ju-risprudência” (melhor traduzindo topik und Juriprudenz: Tópica e Ciência do Direito) teve grande impacto na filosofia jurídica e, mesmo, na filosofia em geral, ao postular um retorno a Vico para resgatar a racionalidade argumentativa ínsita a disciplinas, como a tópica e a retórica, desacreditadas pelo racionalismo cien-tificista da (primeira) modernidade, então caído ele próprio em descrédito, em face dos horrores das duas grandes guerras mundiais, impulsionadas pelo avanço do conhecimento, que ao invés de trazer a esperada melhoria das condições da humanidade a estava, então como ainda agora, ameaçando com a extinção. É preciso que se retorne mais uma vez a Vico e aos que, tanto antes, como depois dele, postularam uma defesa da racionalidade contemplando o solo mesmo de onde ela brota, o húmus da cultura donde emerge o humano: a capacidade simbolizadora presente na linguagem, em suas mais diversas formas (sendo o direito uma delas), enquanto produtora (e produto) do esforço de produção de um sentido para a existência desse ser em aberto, livre, que somos.

Do que faz falta, então, é de promover uma (re)aproximação da teoria a um modo antes poético, do que científico e mesmo filosófico (ou religioso), de desenvolver a reflexão e sua exposição. Com isso não se pretende invalidar os esforços que em geral fazem os estudiosos de filosofia, quando se dedicam à exe-gese do que escreveram os filósofos, normalmente aqueles do passado e, em raros casos, alguns poucos contemporâneos, que ousaram, ou ainda ousam, elaborar um pensamento (mais) próprio. “Próprio”, aqui, entenda-se no duplo sentido da palavra, em que este pensamento tanto aparece como original, originário do próprio sujeito, como apropriado ao que se pode considerar assunto da filosofia. Ocorre que, no modo de ver aqui proposto, realizar um trabalho teórico que mais se aproxima de parâmetros científicos, sejam das ciências humanas, sejam de ciências naturais ou formais, como se dá, comumente, no âmbito da filosofia de corte analítico, entendemos que significa desviar-se do que mais direta e imediatamente interessa tratar em filosofia, desviando-se para um caminho técnico, no qual se exaure o modo mais originário de questionamento filosófico, que é metafísico ou, como acima referido, “archôntico”, enquanto imanente, e escatológico, quando aberto ao transcendente, à discussão do sentido da existência de si, ou seja da vida e da morte, bem como dos demais e do próprio mundo, tal como normalmente é feito pelo simbolismo “mitopoético” de religiões e artes em geral. De certa maneira, estaremos assim retomando uma perspectiva suscitada ainda na passagem do séc. XIX para o seguinte pelo filósofo cearense Farias Brito, que entendia deveriam filosofia, ciência e poesia fundirem-se em uma só, enquanto princípio ativo (e regenerador) do pensamento, dirigindo-o,

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respectivamente, para o bem, o verdadeiro e o belo.46

Assim, mesmo sendo da filosofia que resultou a postura científica de tra-tar as questões (sua epistéme, para dizer em grego, empregando expressão hoje consagrada no jargão filosófico), aquilo que se pretenda conhecer/saber pela filosofia sobre este aspecto de último referido, é justamente o que não interessa às ciências, do que elas não se ocupam, até porque as põe em questão: elas próprias, seus objetivos, para além do conhecimento que fornecem e das possibilidades de ação/interação/alteração do que estudam. Mesmo uma “ciência da ciência” não levaria a uma tal filosofia, pois não se voltaria para pensar o que aqui se propõe deva acolher uma nova teoria, metafilosófica, (mito)poética, aqui qualificada de “imaginária”, por imaginativa – situada naquele plano que Henry Courbin denominou de “imaginal” -, havendo urgência nesse acolhimento, perfeitamen-te factível, tendo em vista que a filosofia já esteve voltada para esse modo de pensar e o levava em conta – aliás, em alta conta, como atesta, por exemplo, o que nos restou de obras como a poética de Aristóteles, a partir da qual Olavo de Carvalho propõe se deva (re)ler o conjunto desta obra fundadora do pensa-mento ocidental,47 ou já na chamada época moderna colocações como aquelas antes referidas de Vico -, antes de se perder e exaurir nas ciências. Inclusive, a própria palavra “filosofia, etimologicamente, fora utilizada de maneira esparsa por “Pré-Socráticos” como Heráclito de Éfeso e Pitágoras (membros da Escola dita Pitagórica, localizada na região da atual Sicília), mas só foi efetivamente difundida a partir de Atenas, graças a Sócrates e seus seguidores, havendo nela a philia, referência a um anelo, uma aspiração, por uma forma extra-ordinária de saber, a sophia, que não é da ordem natural apenas, como aquele dos que, a exemplo de Thales, Parmênides, Zenão, Leucipo, Demócrito, investigavam o fundamento (arché) ou fundamentos (archai) da physis, sobre ela elaborando um discurso logos – em geral, da maneira que então se entendia ser a mais adequada para a transmissão e fixação do saber,ou seja,em versos, quer dizer, poeticamen-te -, donde serem melhor denominados, como o fez Aristóteles na Metafísica, “fisiólogos”, physiologoi (de physis + logos, pl. logoi), até porque dentre eles se tem contemporâneos e pósteros de Sócrates.

A urgência desse pensamento em nosso tempo se explica justamente em razão do que nele vem-se produzindo, sob a influência do predomínio do pensamento técnico-científico – e o pensamento técnico, vale destacar, desde sempre e cada vez mais remete ao pensamento que a filosofia tornou científico, e vice-versa. Antes da ciência se tornar o que hoje – e desde já há algum tem-po – ela se tornou, ela existiu embrionariamente enquanto técnica, faltando apenas o encontro histórico com a filosofia, primeiro, e, depois, com a religião monoteísta e personalista, de Deus onipotente feito homem, o cristianismo, para que se verificassem os pressupostos mais importantes, no plano ideológico, imaginário, de seu completo desenvolvimento – eis que se tem uma origem metafísica teológica da ciência e de sua(s) técnica(s).48

Para Platão, por exemplo, a filosofia seria “epistéme epistemés”, “ciência

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da ciência”, enquanto Aristóteles, na “Metafísica” (Livro VII ou zetha, 1), a define como “epistéme ton próton arkhôn kaì aítion theoretiké”, conhecimento dos primeiros princípios e causas explicativos de tudo. Comentando essa passagem, Heidegger, no texto “Que é isto, a filosofia?”, recorda que epistéme deriva de epistámenos, que seria aquela pessoa vocacionada e competente para uma deter-minada atividade - no caso da filosofia, a atividade de teorizar, sendo a theoria o que os gregos considerariam propriamente a ciência, saber contemplativo das verdades universais, eternas e transcendentes, que, no princípio do livro ape-nas citado de Aristóteles, é considerado um conhecimento através do qual os homens se ombreariam com os deuses, devendo, por isso, temer a inveja deles. Uma outra forma de conhecimento, mais próprio das contingências da vida, é aquele que os gregos denominavam techné, a técnica, um conhecimento ope-rativo, instrumental e produtivo, limitado e finito, por voltado ao atendimento de finalidades específicas, mas sempre revelador de potencialidades, donde sua tradução para o latim como ars. Então, a epistéme seria algo intermediário entre essas duas formas de conhecimento, por referir-se à atividade de conhecer a partir das necessidades de um certo tipo de explicação, isto é, não as explicações que se fazem necessárias e úteis à manutenção da vida, inclusive no convívio social e político, mas sim aquelas que, a rigor, são desnecessárias, inúteis, embora sejam elas o que desejamos, anelamos, quando nos maravilhamos e, no duplo sentido dessas palavras, negativo e positivo, nos espantamos e assombramos diante do universo ao nosso redor e em nós mesmos, o cosmos, sendo desse sentimento (pathos) que, segundo os dois filósofos gregos citados - mestre e discípulo, de certa forma os primeiros e até hoje maiores entre todos - nasceria a filosofia: Platão, no seu diálogo “teeteto” (155 d), e Aristóteles, na já citada “Metafísica” (Livro I ou alfa, 2). Temos que retornar sempre a esse momento espantoso, em que o ser se mostra, o qual nos levou a falar e a nos pormos a caminho de uma busca de explicações, como que para nos assegurarmos na vida, tentando aprisionar o que, na verdade, nos fez prisioneiros, sem percebermos, pois assim entramos em uma fantasia de permanência, impedindo-nos de aproveitar bem a oportunidade que temos de, simplesmente, sermos (experiências do ser).

É certo que antes do saber científico afirmar sua superioridade, em termos pragmáticos, frente aos demais, inclusive a filosofia – o saber justamente de onde as ciências em geral foram colher seu mais forte impulso inicial, adotando postulados como este apenas mencionado, da contingência e falibilidade do conhecimento -, foi necessário superar o predomínio de um tipo de conheci-mento que mesmo tendo se aproveitado bastante da filosofia, até o ponto de tê-la como sua “serva”, veio a abandoná-la nos momentos cruciais, indo buscar apoio além da razão, na fé. Este saber é o da teologia, ou o conhecimento de natureza religiosa amparado teo-logicamente, que irá por muito tempo cercear o desenvolvimento da perspectiva relativista e imanentista, própria da ciência. Contudo, a ruptura que a modernidade trará com a supremacia do pensamento teológico, no Ocidente, foi preparada no contexto desse mesmo pensamento, por teólogos mal-compreendidos em seu tempo, como Roger Bacon (séc. XIII), com

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sua insistência no valor da experimentação para desenvolver o conhecimento, e um outro, franciscano e britânico como ele, de quem já tivemos oportunidade de vai destacar alguns aspectos mais salientes de seu pensamento, que foi Guilherme de Ockham (séc. XIV), sendo que entre ambos avulta a figura do antes referido John Duns Scot, a quem se pode conceder os maiores créditos pela introdução de uma perspectiva, mais que transcendente, verdadeiramente transcenden-tal – e, logo, moderna –,49 a ser desenvolvida posteriormente, sem os vínculos dogmáticos com a teologia, por Descartes, Kant e, já na contemporaneidade, Husserl, para citar apenas três dos maiores responsáveis pelo aprofundamento do que se pode denominar uma “metafísica do possível”, oriunda já de pensadores árabes, com destaque para Avicena (Ibn-Sina).50

6 INTERLÚDIO METAFÍSICO-TEOLÓGICOA teologia (judaico-)cristã da onipotência divina, ao postular um Deus

que é pura onipotência para além da razão e do mundo, o maximamente real passa a ser a soberana potência divina, superior a toda razão e a toda criação. Em outras palavras, se Deus é o maximamente real será porque Sua vontade contém em si toda a realidade possível. Deste modo, a hipótese ockhamista, enquanto implica em identificar a onipotência divina com a realidade de Deus, acaba por identificar o maximamente real com o maximamente possível. Dito em outros termos, a mencionada hipótese leva a identificar o real com o possível por via da absorção do primeiro pelo segundo, e a esvaziar de sentido a noção de realidade em beneficio da noção de possibilidade, de tal modo que esta última se faz co-extensível à de ser. A existência fica, então relegada à condição ou estatuto de um mero caso fático, isto é, a não ser mais que uma determinação acidental do ser, quem, por sua parte, se identifica pura e simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir uma realidade puramente hipotética. E, assim como no caso grego o ser teria que se dizer de muitas maneiras, para contemplar seus diferentes modos de exercício, assim também, no regime definido pela redução teológica do real ao possível só será concebível um único e exclusivo modo de ser, aquele que emana da possibilidade, quer dizer, aquele cuja realidade está já contida de antemão em sua possibilidade. No caso grego nos achamos, portanto, frente à lógica da analogia: diversos modos de ser, linguagem essencialmente polissêmica, sempre inexata, em certo sentido submetida e também superior ao princípio de não-contradição. Na hipótese teológica da vontade onipotente, ao contrário, frente à lógica da univocidade: um único modo de ser, linguagem exata e precisa, drasticamente submetida ao princípio de não-contradição. A univocidade lógica se converte, deste modo, no reverso da onipotência absoluta de Deus e expressa a natureza hipotética de todo ser, enquanto seu principio constitutivo, o de não-contradição, alcança, coerentemente, o estatuto de paradigma de toda verdade possível.

A identificação do ser de Deus com seu poder absoluto conduz, então, à identificação da realidade com a possibilidade no seio de uma racionalidade

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unívoca. Daí que aquela “ciência primeira”, que se ocuparia do ser enquanto ser, aquela ciência, de estatuto epistemológico tão contestado, da que dizíamos que não pode estar no mesmo nível que as demais, mas sim que deve induzir seus conteúdos a partir das outras ciências, tenha de adotar necessariamente a forma – se pretende corresponder ao panorama doutrinal inaugurado e presidido pela hipótese da onipotência absoluta de Deus – de uma metafísica do possível, que é também uma teologia,51 mas sem a referência dogmática a um credo religioso qualquer, ambas com um caráter falibilista, tal como recentemente se reconhece às próprias ciências, o que a torna possível em um outro sentido, agora epistemológico, aquele adotado modernamente pelas ciências: essa possibilidade mostra-se atualmente uma verdadeira necessidade, pela urgência que temos em estabelecer bases para um entendimento mútuo entre os humanos, assentado numa compreensão que seja aceitável como são os resultados científicos, a respeito de nosso significado cósmico – que se produza, então, uma teologia esvaziada de qualquer conteúdo religioso específico, para ser a teologia adequada a nossos tempos de predomínio tecnocientífico, que seja capaz de superar esse predomínio, salvando a humanidade de si mesma, enquanto o saber salvífico, soteriológico, que sempre desde a origem se propôs a ser a filosofia, como as religiões,52 e não só teórico mas, sobretudo, prático - logo, eficaz também.53 busca das estruturas fundamentais de toda realidade inteligível, que não seriam, entretanto, consideradas como estruturas transcendentais, enquanto condição mesma da inteligibilidade, nem tampouco estruturas transcendentes, tidas como originárias de algum plano meta-físico ou teológico.

Centrando-nos no entendimento do que seriam tais estruturas, tem-se que a estruturalidade implica a negação do simples ou da falta de conexão e, neste sentido intuitivo, estrutura constitui o conceito originário ou o fator primeiro de qualquer empreendimento teórico, sua arkhé, para referir a noção fundamental – e fundante – da filosofia.

No horizonte de uma tal elaboração, verifica-se a ausência de uma dis-tinção clara entre metafísica e teologia, até por estarem ambas voltadas para o estudo da realidade como uma totalidade (de sentido), o que teria contribuído para obscurecer, na modernidade, os pressupostos dogmático-teológicos ou “dog-matológicos” nela estruturalmente operantes, retomados de maneira também indevidamente explicitada no que se pode considerar tentativas contemporâ-neas de refundação da ontologia enquanto “ciência primeira” (protê epistéme) na fenomenologia, com Husserl e, principalmente, em Heidegger, com o sua virada para a “hermenêutica da facticidade”, conforme se pretende demons-trar, como também no modo de desenvolvimento das “ciências derivadas”, ou ciências propriamente ditas.

Para tanto, faz-se necessário proceder, como o próprio Heidegger, um retorno às origens gregas da metafísica, tal como nos foi ela transmitida atra-vés da obra de Aristóteles, o qual concebeu a continuidade entre a razão e a natureza como reunidas em uma unidade dinâmica, finita e ordenada, expressa

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pela linguagem. Neste sentido, pode-se dizer que aí culmina a visão grega dos problemas filosóficos, na medida em que inventa um saber racional, capaz de dar uma resposta unitária aos problemas suscitados pela tradição anterior, pro-blemas concernentes tanto ao dinamismo da natureza como ao da própria razão humana. O irredutível de tais problemas, afirmará Aristóteles, é a realidade do ser, tão imediata de captar como difícil de definir, algo que parece sempre querer escapar a todo intento de delimitação e que, precisamente por isso, só podemos designar como o comum a tudo, e, particularmente, como o comum à realidade do mundo frente ao homem e à realidade do pensamento no homem, isto é, como o comum à natureza e à razão. Por causa da impossibilidade de sua delimitação, a realidade do ser não pode ser objeto de nenhuma ciência particular, mas sim de uma ciência primeira, enquanto se ocupa do que é prévio e pressuposto em todas as demais, que são os fundamentos mesmo de sua realidade como ciências e da realidade de seus objetos, enquanto as diversas determinações do ser no que é dado: a realidade irredutível do ser.

Essa ciência primeira é, então, também “única”, por ser ciência em um sentido totalmente diverso de qualquer outra, sendo a ela que Aristóteles e os gregos de sua época chamavam “teologia” - e por serem os livros que tratavam a respeito reunidos por Teofrasto, na organização do corpus essencial da obra aristotélica, o organon, “após (os livros d)a física” (meta ta physika), fez com que se denominasse metafísica sua matéria -, definida como a ciência que trata do ser enquanto ser, i. e., que trata de sua realidade mesma - cf. Aristóteles, Metafísica, 1003 a 20-25.

Daí que, ao tematizar a continuidade grega entre a razão e a natureza, unidade bifronte de um único dinamismo dado em sua finitude, Aristóteles funde a ciência da realidade do ser, inaugurando o que se pode denominar uma metafísica do real.

O pensamento medieval cristão, ao partir da noção de um Deus infini-to, iria ter sérios problemas na hora de confrontar o racionalismo natural da metafísica aristotélica com a perspectiva teológica da infinitude, pois um Deus infinito é tudo menos algo dado, e se esse Deus infinito é tido como o maxima-mente real ou o real por antonomásia, o real em si, é evidente que a realidade do binômio natureza/razão será seriamente ameaçada. As grandes sínteses teológicas medievais, especialmente aquela mais característica e acatada, a de Tomás de Aquino, resolveriam esta dificuldade recorrendo ao escalonamento dos graus metafísicos da realidade, onde Deus possuiria um grau máximo, in-finito, absoluto, enquanto a realidade das coisas criadas seria finita, relativa e Dele dependente. Isto supunha, em contrapartida, a abertura de um certo, ainda que bastante limitado, acesso do homem ao conhecimento da realidade de Deus, pelo qual, em princípio, seria possível ter uma noção aproximada dela mediante o procedimento de elevar ao infinito as perfeições da natureza (idéias) e os valores da razão (fins), obtendo assim um vislumbre de quais poderiam ser os atributos da divindade. Esta solução, que implicava em atribuir a Deus

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caracteres próprios do binômio natureza-razão, particularmente os arquétipos naturais (idéias divinas) e os valores racionais (fins divinos), permitiu a Tomás de Aquino salvar o essencial da metafísica aristotélica e, ao mesmo tempo, conceber um Deus cujos atributos fossem parcialmente acessíveis para aquela ciência primeira que era a metafísica do ser real.

Os teólogos críticos da escolástica tardia, principalmente Duns Scot e, de uma maneira ainda mais radical, Guilherme de Ockham, rechaçaram aberta-mente este procedimento por considerarem que, tratando de evitar o desprezo que a realidade de Deus supunha para com o binômio natureza/razão, incorria no defeito oposto, quer dizer, desprezava a infinitude própria da divindade, atribuindo-lhe idéias (naturais) e fins (racionais) que só podiam limitar Sua liber-dade infinita, isto é, sua onipotência absoluta. Assim, Duns Scot iria desvirtuar a doutrina dos graus metafísicos ao interpretá-la em um sentido formalista, que excluía expressamente sua aplicação à existência, com o que cortava todo aceso racional à divindade, já que, por esta consideração, deixava de haver qualquer coisa em comum entre Deus e criaturas caracterizadas agora por sua condição de objetos mentais do pensamento divino, i. e., por sua completa indiferença tanto para com o ser como o não-ser. Posteriormente, Guilherme de Ockham iria ainda mais longe, ao pretender para Deus uma transcendência tão absoluta que O situava mais além de qualquer exigência racional e O definia como pura onipotência infinita, para além de toda razão e toda natureza, consolidando desse modo a fratura escotista entre Deus e o binômio razão/natureza, que abriria estruturalmente o campo inteiro da filosofia moderna. Com efeito, o pensamento moderno se ergue sobre o pressuposto ockhamista, segundo o qual nada há de impossível para a vontade divina, situada para além de todo rasgo de racionalidade e de toda sabedoria mundana. Isto porque, sendo a vontade divina absolutamente livre, não há nada na ordem atual da criação que possa indicar de um modo ou outro a essência de seu Criador. Ao contrário, a ordem criada, isto é, a ordem da natureza racional, não é mais que uma ordem qualquer entre as infinitas ordens possíveis, nem têm nada em comum com a essência divina do que pudera ter qualquer outra, imaginável ou não por nós. Por isso, se no presente mundo o homem foi criado à imagem de Deus, não será na razão humana onde se pode achar o fundamento dessa semelhança, mas sim no mais recôndito da alma interior, ali onde habita a vontade livre do homem, tão livre como a vontade divina frente a qualquer constrição racional que pudesse em-panar ou limitar sua opção fundamental entre o bem e o mal, entre a aceitação e a renúncia a Deus. O ato da vontade humana pelo qual escolhe salvar-se ou condenar-se - o mais transcendente, portanto, na vida do homem -, se exerce, pois, à margem de qualquer instância racional ou natural, e já não tem lugar no processo comum do diálogo entre os homens (Igreja), mas sim no isolamento interior da privacidade de cada um (consciência). Em outros termos, esta escolha não pode encontrar apoio na razão, pois Deus é inacessível para a racionalidade, e só poderá de agora em diante ser questão de fé, onde a fé – como a graça – já não implicará um reforço salvífico da natureza criada, mas sim a abdicação

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expressa por parte do homem de sua própria razão e de sua essência humana. Deste modo, tanto Duns Scot como, sobretudo, Guilherme de Ockham, ins-tauram uma concepção de um Deus infinitamente transcendente que se situa radicalmente para além de um mundo criado, com o qual deixa de ter qualquer coisa em comum, abrindo assim um abismo insalvável entre ambos, como se fossem conjuntos infinitamente disjuntos. Impossível, por tanto, qualquer co-nhecimento racional desse Deus infinitamente não racional por parte da razão humana. O único laço entre o mundo e Deus se encontra – fora da natureza e da razão – na recôndita consciência espiritual do ser humano, sob a forma de uma vontade absolutamente não constrangível por qualquer valor racional em seu ato de aceitação ou renúncia à salvação ofertada, e que se denomina fé. A relação do homem com Deus, daí em diante, deverá se desenvolver nesse âm-bito irracional – e, logo, privado –, enquanto a razão comum humana deverá renunciar a todo intento de aproximação da essência ou do desígnio divinos e aplicar-se a seu objeto imediato, isto é, o mundo criado que se acha frente a si e que carece de toda relação com seu Criador.

A teologia da onipotência divina implica, como parece evidente, uma revisão drástica dos pressupostos filosóficos precedentes, ou seja, da metafísica do real de caráter aristotélico, que se baseava, como vimos, na continuidade do binômio razão/natureza (no caso de Aristóteles), ou do trinômio razão/natureza/Deus (no caso de Tomás de Aquino). A partir de Ockham, Deus, o ser realíssimo, deixa de fazer parte desse trinômio e escapa por inteiro do binô-mio restante, cujo estatuto ontológico se reduz, então, ao de mero caso fático entre uma infinitude de mundos possíveis, e cuja realidade se vê condenada à precariedade irremissível de não ter outro fundamento para sua existência que não a pura arbitrariedade divina, a qual escolheu criá-lo sem motivos evidentes que O impeçam de criar outros quaisquer dentre os infinitamente imagináveis. Assim, ao postular um Deus que é pura onipotência para além da razão e do mundo, o maximamente real passa a ser a soberana potência divina, superior a toda razão e a toda criação. Em outras palavras, se Deus é o maximamente real será porque Sua vontade contém em si toda a realidade possível. Deste modo, a hipótese ockhamista, enquanto implica em identificar a onipotência divina com a realidade de Deus, acaba por identificar o maximamente real com o maximamente possível. Dito em outros termos, a mencionada hipótese leva a identificar o real com o possível por via da absorção do primeiro pelo segundo, e a esvaziar de sentido a noção de realidade em beneficio da noção de possibilidade, de tal modo que esta última se faz co-extensível à de ser. A existência fica, então relegada à condição ou estatuto de um mero caso fático, isto é, a não ser mais que uma determinação acidental do ser, quem, por sua parte, se identifica pura e simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir uma realidade puramente hipotética. E, assim como no caso grego o ser teria que se dizer de muitas maneiras, para contemplar seus diferentes modos de exercício, assim também, no regime definido pela redução teológica do real ao possível só será concebível um único e exclusivo modo de ser, aquele que

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emana da possibilidade, quer dizer, aquele cuja realidade está já contida de antemão em sua possibilidade. No caso grego nos achamos, portanto, frente à lógica da analogia: diversos modos de ser, linguagem essencialmente polissêmica, sempre inexata, em certo sentido submetida e também superior ao princípio de não-contradição.

Na hipótese teológica da vontade onipotente, ao contrário, frente à lógica da univocidade: um único modo de ser, linguagem exata e precisa, dras-ticamente submetida ao princípio de não-contradição. A univocidade lógica se converte, deste modo, no reverso da onipotência absoluta de Deus e expressa a natureza hipotética de todo ser, enquanto seu principio constitutivo, o de não-contradição, alcança, coerentemente, o estatuto de paradigma de toda verdade possível.

A identificação do ser de Deus com seu poder absoluto conduz, então, à identificação da realidade com a possibilidade no seio de uma racionalidade unívoca. Daí que aquela “ciência primeira”, que se ocuparia do ser enquanto ser, aquela ciência, de estatuto epistemológico tão contestado, da que dizíamos que não pode estar no mesmo nível que as demais, mas sim que deve induzir seus conteúdos a partir das outras ciências, tenha de adotar necessariamente a forma – se pretende corresponder ao panorama doutrinal inaugurado e presidido pela hipótese da onipotência absoluta de Deus – de uma metafísica do possível, que é (ou contém) também uma teologia, mas sem a referência dogmática a um credo religioso qualquer, o que a torna possível em um outro sentido, agora epistemológico, aquele adotado modernamente pelas ciências: essa possibilidade mostra-se atualmente uma verdadeira necessidade, pela urgência que temos em estabelecer bases para um entendimento mútuo entre os humanos, assentado numa compreensão que seja aceitável como são os resultados científicos, a respeito de nosso significado cósmico.

Pelo exposto se pode compreender porque Guilherme de Ockham é con-siderado um dos introdutores do que em sua época já se chamava via moderna, que conduz o pensamento filosófico para além da Escolástica medieval, direta-mente na ambiência moderna. Dele vamos retomar aqui a noção de unidade do saber, o que propomos que se denomine “perspectiva integradora”, sendo aquela que vem predominando em epistemologia, à medida que se vai superando os últimos resquícios metafísicos e teológicos. Tais resquícios se fariam presentes na perspectiva que é própria das ciências modernas em seus primórdios, quando davam margem a que se difundisse, de maneira triunfalista, a crença na defini-tividade dos conhecimentos por meio dela obtidos, por baseados na observação de regularidades na ocorrência de fatos que permitiam elaborar leis gerais ex-plicativas. Isso por que tais fatos eram recortados, do conjunto da realidade, de maneira a permitir um tratamento analítico, que os tornava objetos reduzidos à sua localização espaço-temporal, de acordo com o procedimento preconizado exemplarmente por Descartes. A derrocada do resultado principal da aplicação deste modelo epistemológico, a física mecanicista (copérnico-kepler-galileico-)

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newtoniana, com a emergência da física quântica e relativista foi, sem dúvida, um marco. A partir daí as ciências voltam a ter história, a ser um conhecimento em evolução, melhorando à medida em que se abre para aprender com os erros, ao invés de, precipitadamente, inferir leis definitivas de padrões observados em escala limitada. Por outro lado, pode-se perfeitamente supor que os avanços no conhecimento da matéria viva, chamaram a atenção para uma descontinuidade nos níveis de explicação, apontando um limite para a capacidade de previsão, tomando como referência a uniformidade de fenômenos observados no âmbito físico e químico, tal como se fossem partes de um grande mecanismo.

É assim que Versalius, o pai da anatomia, na obra “Fábrica do Corpo Humano” (De humani corporis fabrica), obra publicada no mesmo ano daquela, literalmente, revolucionária, de Copérnico, a saber, 1542, irá - em sentido, de certa forma, oposto a este, que deslocou o homem e sua habitação do centro do universo -, postular uma distinção radical do ser humano em relação a outros se-res vivos e à ordem cósmica, tal como preconizava a medicina, desde Hipócrates e Galeno, donde a necessidade de se praticar o estudo da anatomia assim como nos humanos ela se apresenta, ao invés de tentar compreendê-la por analogia com outros seres, nos quais se praticava a dissecação. Em seguida, com Harvey, a anatomia se torna “animata”, ou seja, fisiologia (ou anátomo-fisiologia), sendo o próximo passo importante, em termos epistemológicos, aquele que foi dado por aqueles estudiosos, mais recentes, que passaram a enfatizar a importância do estudo das patologias, isto é, dos estados disfuncionais, para entender o funcio-namento e as funções normais dos organismos. Dentre esses, vale destacar, com o autor de “O Normal e o Patológico”, Georges Canguilhem, os estudos sobre a diabete, para entender o funcionamento das glândulas supra-renais.

Com o desenvolvimento da fisiologia, impulsionado pelo conhecimento das patologias, algo literalmente vital para nós, como é a saúde, passa a ser tra-tado de maneira anti-metafísica, não-ontológica, pois agora a doença não é um ser (mal) que invade o doente, mas um estado alterado em relação ao normal, que é uma das possibilidades contidas nesse estado normal, quando ocorre algum desgaste ou ineficiência em seu funcionamento - a rigor, não chegaria nem a ser, em sentido literal, um estado anormal, no sentido de “anômalo”, o estado pato-lógico, pois esse estado também segue um “nomos”, uma norma, só que diversa daquela que rege o estado dito “normal”, ou são, sendo mesmo por esse motivo que se investiga a anomalia, buscando enquadrá-la em regras explicativas, a um só tempo, da anormalidade e da normalidade. De todo modo, ao contrário do que ocorre com a matéria inanimada, há uma oscilação constante na matéria viva, entre estados de excesso, carência e equilíbrio, ainda que instável, sendo daí que se extrai a noção de patologia, de disfunção, por considerarmos, nós os que vivemos e somos conscientes disso, ao estudarmos-nos, ser funcional o que nos mantém vivos e sem sofrimento, não havendo estados patológicos da matéria inanimada, pelo simples fato de que ela não pode, como nós, morrer.

Só assumindo uma perspectiva externa - e aí fazendo retornar, sub-

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repticiamente, à postura metafísica e teológica, com o seu ponto de vista do absoluto - é que se pode afirmar a continuidade entre os estados físicos, químicos, físico-químicos, e aqueles biológicos ou, mesmo, bioquímicos, moleculares. Dessa perspectiva, a diferença entre a saúde e a doença, e mesmo entre a vida e morte, é meramente quantitativa, sendo em todos os casos estados da matéria de que se trata, com maior ou menor complexidade, abordando sua organização. Esta é uma perspectiva inorgânica e mecanicista da vida. Pode-se, entretanto, adotar uma concepção inversa, vitalista, não só do que é vivo como do próprio universo, ou seja, concebê-lo da perspectiva da vida que nele se formou e que, em certo momento, gera a consciência, graças a uma certa maneira de operar um tipo de células, aquelas nervosas, que nos permitem uma forma de acoplamento com o meio circundante extremamente favorável à nossa manutenção nele.

Nesta última perspectiva, há sentido no universo e esse sentido é a vida, não havendo sentido na vida para além de si mesma – pelo menos, para os seres vivos. A filosofia, então, pode ser posta a serviço da vida, nesse ser vivo que somos nós, conscientes do fim da vida, o que pode nos tornar a vida sem senti-do, cabendo à filosofia velar pela continuidade da vida nesse ser que a altera e questiona, altera-se questionando-a, tendo desenvolvido um conhecimento tal e uma organização social de tamanha complexidade e poderio que pode destruí-lo, rápida ou lentamente. E na base desse conhecimento está uma epistemologia, havendo ainda uma base biológica, vitalista, para a epistemologia, pois ela, como todo conhecimento, é uma função vital dos seres humanos.

Para investigar as bases biológicas do conhecimento, segundo o neurofi-siólogo mineiro Nelson Vaz,54 na esteira de Gregory Bateson, Francisco Varela, Humberto Maturana e outros, precisa-se incrementar o estudo de uma dimen-são intermediária entre a fisiologia e a filogênese. No caso da primeira, se tem um estudo em nível celular e molecular, numa escala temporal extremamente rápida, variando de milisegundos, na transmissão neuronal a alguns poucos dias, na cicatrização, passando por algumas horas, na digestão. Já os fenômenos da filogênese são medidos em milhões ou centenas de milhões de anos, como a “explosão” de vida do Período Cambriano, em que surgiram nossos antepassados mais remotos, metazoários, ou as extinções em massa de seres vivos, entre os Períodos Permiano e Triássico. Entre esse dois extremos, muito lentos e muito rápidos, encontra-se o nível que agora precisaria ser melhor explorado, e que é o nosso nível ou escala mais próxima, aquela da chamada ontogênese, em que se tem os fenômenos com duração de semanas, meses e anos, a começar pela constituição do zigoto, passando pelo desenvolvimento embrionário com sua organogênese, até a reprodução, envelhecimento e morte. E o interessante é que o avanço científico em biologia, especialmente em genética, vem demonstrando que seres vivos aparentemente tão distantes, como os mamíferos e os insetos, compartilham muitos mecanismos morfogênicos na formação do embrião, valendo-se, muitas vezes, de células muito similares, sem falar na similitude genética entre seres tão diversos como seres humanos e ratos: se antes nos espantávamos e maravilhávamos com a aparente diversidade da vida, hoje é a

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sua uniformidade em um nível mais profundo o que nos intriga. E assim, somos levados novamente à disposição que motivou os primeiros filósofos, bem como impulsionados a pensar sobre o que já se encontra desde a origem escondido no interior do código genético, e se revela em toda sua diversidade no contato com o exterior, alterando-o e alterando-se, continuamente, enquanto puder.

Há, então, necessidade de que se pratique de forma tão intensa quanto possível a interdisciplinaridade, o que exige, então, que tenhamos um paradigma unificador, uma perspectiva integradora em epistemologia, capaz de articular explicações de natureza sociológica, econômica, jurídica, biológica, filosófica e, até, teológica. Um paradigma com essa característica “uni-totalizante” (Ein- und Allheit, para empregar expressão que remonta a Schelling, filósofo idealista alemão do séc. XIX) é o que se vem desenvolvendo por aqueles, como Edgar Morin, na esteira de Ilya Prigogine, que defendem a superação do tradicional paradigma simplificador das ciências clássicas, modernas, em favor de um paradigma da complexidade, em que se inserem “ciências transclássicas”, pós-modernas, como são a cibernética e a teoria de sistemas. Tratam-se de teorias holísticas, de aplicação generalizada no âmbito de ciências formais e empíricas, tanto naturais como sociais, e que toma como distinção fundamental não mais aquela entre sujeito-do-conhecimento-como-observador-objetivo e objeto-do-conhecimento-observado-independentemente, mas sim outras, como aquela entre “sistema” e seu “meio ambiente”, para explicar tudo a partir dessa distin-ção, entre o que pertence a determinado sistema e o que está fora, no ambiente circundante, embora circule dentro do sistema – que não é fechado “para” e sim “com” o ambiente.

É de todo conveniente o emprego de novas categorias em estudos que levam em conta a complexidade da realidade estudada, considerando que a mesma não existe para nós independentemente de nossa observação dela. Só assim poderemos, igualmente, enfrentar melhor as questões éticas e jurídicas com que nos defrontamos em um mundo que a ciência vem, ao mesmo tem-po, revelando e tornando mais complexo. Um aspecto, porém, que traz certo desconforto, quando propomos a adoção de um paradigma novo, sistêmico, para melhor estudar o mundo complexo em que nos encontramos, é a suspeita que esse tipo de abordagem suscita, da perspectiva normativa de teorias ditas “críticas”, como é (ou foi) aquela habermasiana. Uma teoria sistêmica, efeti-vamente, não se propõe a avaliar aquilo que estuda, mas fornecer, a partir de suas observações - e observações não só do que se observa, mas também dos observadores, que são “observadores/concebedores” de “objetos/concebidos”, nos termos expressivos empregados por Morin -,55 descrições mais acuradas e explicações do mundo e das teorias que construirmos para observá-lo/”construi-lo”, o que, afinal de contas, deve anteceder o momento da crítica valorativa, para propor alternativas à (re)construção do mundo pelo direito, a ética, e também a economia, a política e, sobretudo, a própria ciência. O que buscamos, então, é o que Husserl denominava “princípio dos princípios”, uma idéia regulativa, no sentido kantiano, a qual, como esclarece Manfredo Araújo de Oliveira, com

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apoio no filósofo frankfurtiano K.-O. Apel, “quer ser efetivada, o que significa dizer que para isso é necessário que a razão ética entre em contato com outras ‘formas de racionalidade’. Numa palavra, a dimensão ética, na medida em que se efetiva historicamente, tem que entrar em combinação com a racionalidade sistêmico-funcional dos sistemas sociais e das instituições e com a racionalidade estratégica”.56

Entretanto, há um problema bastante grave que se pode apontar, em concepções normativas da racionalidade, como é aquela hoje tão difundida e apreciada, de Habermas, por mais que endosse e pratique a recomendação que acabamos de referir, sem que evite um certo maniqueísmo, quando distingue uma “boa” e uma “má” razão - a comunicativa e a estratégica: é que elas são formuladas de uma perspectiva transcendental, ainda que se diga pragmática, de “fora da realidade”, donde terminarem resvalando numa postura irracional, pois não são capazes de perceberem a unidade subjacente às diversas formas de pensar e agir racionalmente. É por isso que, filosoficamente, a postura dialética do “idealismo objetivo” (Dilthey), tal como foi adotada na modernidade por Hegel - e, contemporaneamente, por Vittorio Hösle, Carlos V. Cirne Lima, Manfredo A. de Oliveira, dentre outros -, apresenta-se como mais frutífera e conseqüente, apesar de sua “fé”, que não se assume como tal, na possibilidade de uma fundamentação última de nosso conhecimento da realidade – e, logo, na possibilidade de conhecermos verdadeira e definitivamente o que as coisas são, seu ser, sem garantia de que este seja o ser, pura e simplesmente.

Habermas adota uma postura que denomina “pós-metafísica”, de acordo com a qual só as ciências estão aptas a elaborar assertivas com valor heurístico sobre os diversos objetos de conhecimento, ficando a filosofia restrita ao estudo de segunda mão, que tem as ciências - ou, mais precisamente, o seu procedimento cognitivo - como sentido e objeto. Com tal postura, Habermas não escapa da metafísica, pois termina ficando preso ao que Heidegger denominou “metafísica da subjetividade”, a qual dá sustentação ao projeto de domínio técnico-científico da realidade, responsável maior pelos problemas éticos, jurídicos, políticos, so-ciais, econômicos e ecológicos - em sentido amplo, para envolver o que Edgar Morin denomina “ecologia da ação”,57 a qual já se coloca no plano da sociedade, em que não podemos prever as conseqüências de nossas próprias ações - com que nos deparamos atualmente.

É preciso, então, para abordar corretamente a problemática aqui delineada, que se supere tal postura, tipicamente moderna - e, portanto, ultrapassada -, o que, em termos epistemológicos, requer a substituição do paradigma formalista, baseado na distinção entre sujeito e objeto(s) do conhecimento, e, em termos filosoficamente mais gerais, a ultrapassagem do humanismo, tal como indicado por Heidegger em sua célebre carta a Jean Beaufret a esse respeito, a “Carta sobre o Humanismo”. Que as indicações aqui fornecidas possam servir para a elaboração desse caminho para o pensamento, tão dificultoso quanto urgente.

Com isso, pretendemos minorar os efeitos desastrosos do esquecimento

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metafísico do ser que somos na operação meramente técnica de uma engrenagem em que somos as peças, pensando sermos meros operadores, no que se mostra de fundamental importância a crítica que a perspectiva fenomenológica de Husserl e também aquela de seu genial discípulo Martin Heidegger permite que se empreenda ao formalismo instalado no pensamento moderno, pelo exarce-bamento do modo conceitualista e objetificante de lidar com o conhecimento, em geral, sendo de se apontar o exemplo bem característico do que se dá no campo do Direito.58 Fica, assim, estabelecido o desafio, a ser enfrentado aqui de maneira decidida, de saber em que medida algo como um retorno à situação concreta, fática, proposta por Heidegger - no que se pode denominar, antes que uma “fenomenologia da liberdade” (Günter Figal), com mais precisão, uma “fenomenologia da(s) possibilidade(s existenciais)” -, pode dar ensejo a uma recuperação de um saber apto a fornecer uma orientação, ou re-orientação, na busca de sentido para as ações humanas a serem, então, devidamente reguladas pelo Direito, com uma pretensão justificada de obediência generalizada, nas condições adversas da atualidade. Cabe a todos os que nos preocupamos com o que pode resulta da quadra histórica de crise que estamos vivendo, já há bastante tempo – sabe-se lá por quanto tempo ainda -, assumir uma parte de tal tarefa, de proporções gigantesca, percebendo o quanto é urgente e necessária e, se é assim, há de ser também possível dela nos desincumbirmos.

Trata-se, portanto, de questionar a concepção clássica, típica da metafísica do real, de que o conhecimento é uma cópia da realidade e será verdadeiro na medida em seja uma representação fiel dela - a crítica dessa metafísica é feita por autores do lado de cá e de lá o Oceano Atlântico, como se pode exemplificar, no primeiro caso, com Richard Rorty, e no segundo caso, com os chamados “filósofos da diferença”, a começar por Heidegger, e seguindo-se com Deleuze, Derrida etc.59 É uma tal concepção de metafísica, enquanto metafísica do real, com sua ontologia substancialista, que vem rejeitada em posições epistemológi-cas positivistas e outras, como as materialistas e fenomenológicas, assim como permanece aceita naquela outra importante tradição filosófica, mais antiga que estas outras, mas que ainda hoje tem seus representantes, a saber, aquela oriunda do tomismo, embora as demais posições filosóficas, inevitavelmente, tenham de dar alguma respostas às incontornáveis questões metafísicas, tal como aqui se as concebe, considerando que evitá-las, adotando uma forma de suspensão do juízo ceticista, é também uma das respostas possíveis. E. J. Lowe diz-nos que,60 ao contrário das ciências, que se ocupam de estabelecer o que é, não o que tem de ser ou o que pode ser (mas não é), a metafísica lida com possi-bilidades. Daí que, é preciso, de alguma maneira, delimitar o escopo do possível, para podemos, ao menos, esperar que consigamos determinar empiricamente o que é efetivamente real, da maneira tentativa e aproximada que é própria da ciência, tal como entendida contemporaneamente. A tese do autor apenas re-ferido é a de que a metafísica será possível na medida em que se atenha a lidar com possibilidades – seja, portanto, possibilista, tal como aqui preconizado. Um apanhado didático dos desenvolvimentos recentes em metafísica encontra-se

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em Cynthia Macdonald.61 Sua abordagem se situa no âmbito da recuperação da metafísica em uma chave analítica, na qual é bastante representativa a con-tribuição do oxfordiano contemporâneo Peter Strawson.62 Já um representante proeminente da vertente materialista contemporânea é Alain Badiou.63 Por fim, na perspectiva neotomista, podemos referir o pensamento do brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz, o (justamente) festejado (e pranteado) Pe. Vaz, que deu ensejo à formação de verdadeira Escola, a partir de seu longo professorado em Belo Horizonte (MG).64

Eis que nos defrontamos aqui com uma questão que, tradicionalmente, pertence ao campo que se designou, com base em uma classificação de certas obras de Aristóteles, metafísica. Como é corrente, o termo “metafísica” é oriun-do de uma classificação de obras de Aristóteles versando sobre sua temática, posicionadas depois dos livros da física, donde a denominação metá, isto é, “após”, ta physika, ou seja, “da física”. Já Kant, porém, questionou se seria uma mera coincidência que uma tal denominação se adequasse tão bem ao sentido mesmo da investigação metafísica, voltada para questões que se situam para além daquelas tratadas no plano da realidade palpável, física. E, de fato, há trabalhos que demonstram estar presente no pensamento aristotélico, se não o termo, a idéia a que ele corresponde.65

A metafísica trata de questões das quais não se ocupam as ciências, enquanto formas de conhecimento que ora se voltam para a construção de um saber com base em experiências feitas no contato com a realidade, com o que existe, e que por isso são ditas “empíricas”; ora elaboram o conhecimento advindo da consistência de suas proposições entre si mesmas, sem referência a quaisquer objetos reais, mas apenas àqueles abstratos, como na(s) lógica(s) e matemática(s), donde justamente serem qualificadas de “formais”. Na realida-de, estes “tipos puros” de conhecimentos científicos se mesclam em maior ou menor medida, restando ainda a possibilidade e, mesmo, necessidade (termos, a rigor, intercambiáveis, pois o possível é necessariamente possível, assim como o necessário sempre é possivelmente necessário, já que esta é a condição do que existe sem ser em si mesmo, o que só é o ser que não depende de nenhuma causa para existir, o qual se pode denominar de Absoluto, Deus etc.) de outros conhecimentos, meta-científicos, que seriam a epistemologia, para discutir as condições de possibilidade de um conhecimento científico ou de uma outra natu-reza, e a metafísica, para discutir as categorias, determinações ou, simplesmente, os conceitos dos conceitos empregados pelas demais formas de conhecimento, como são os conceitos de realidade, possibilidade, necessidade, causalidade, tempo, espaço, existência, número, contradição, identidade, sujeito, objeto, mundo, experiência, indivíduo, infinito, nada, Deus, valores como o bem e a justiça, mas também o mal, etc. Para efeitos mais didático do que por razões substanciais pode-se dividir em diversas (sub)áreas do conhecimento a metafí-sica, conforme privilegie alguns desses temas, de forma que do estudo de Deus se ocuparia a teologia (racional, e não aquelas dogmáticas, vinculadas a alguma religião positiva), assim como dos valores a axiologia, dos deveres ou obrigações

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– aí incluído temas como o das promessas, dádivas ou realidades deônticas mais habitualmente estudadas, como aquela jurídica -, das questões pertinentes ao(s) mundo(s) a cosmologia e daquelas sobre o(s) ser(es) a ontologia, enquanto temas relacionados ao conhecimento em si seriam objetos da gnosiologia. A estreita conexão entre todas essas matérias, em que cada uma remete às demais, torna de todo relativas tais divisões, ao mesmo tempo em que suscita o interesse em promover a interdisciplinariedade “holística” dos estudos por meio da metafísica tal com aqui entendida. Quanto às denominações atribuídas às suas sub-divisões, são oriundas mais da etimologia, em correspondência com seu objeto, do que de qualquer outro significado que possam ter, a depender do contexto em que apareçam empregados os respectivos termos. Uma tal investigação há de ser feita racionalmente, empregando até, o quanto possível, um instrumental oriundo de ciências (formais) lógicas e computacionais.66

Após o surgimento da filosofia – pelo menos, com essa denominação - na Grécia antiga, ela iria se mesclar com o senso prático, político-jurídico mais eficiente, do antigos romanos e, posteriormente, com uma versão (ou versões) muito particular(es) da religião monoteísta judaica, como é o cristianismo, resultando na afirmação da capacidade humana de se impor ao mundo, mais do que apenas contemplá-lo e, por diversas formas, “imitá-lo”.

A teoria a que se busca aqui uma via de acesso, introduzindo-a, então, precisa estar, por exemplo, fora do círculo em que os cultores da filosofia a aprisionaram e ali a mantém, quando trabalham “tecnicamente”, pondo-se a serviço do desenvolvimento de um saber cada vez maior, no menor espaço de tempo, sem parar e se perguntar do por quê, para quê. E é essa escalada desenfreada para o saber que é um saber-fazer (know how), característica da (tecno)ciência, que tantos problemas vem solucionando, ao mesmo tempo em que muitos outros vai criando e, principalmente, deixando de enfrentar a brutalidade da existência - o chamado “absolutismo da realidade” mencionado por Hans Blumenberg (na obra “Arbeit am Mythos”, ou “Trabalhar o Mito”), insensível ao sofrimento consciente dos humanos -, por promover mais e mais o afastamento dela, evitando que com ela nos confrontemos, o que exige um tipo de saber mais próximo da mitologia, das artes e da religião, em suma, do imaginário, da imaginação - portanto, mais distanciado daquele “puramente” científico, formalista, positivista -, e isso sem que entre essas formas antípodas de saber se estabeleça propriamente um conflito, pois estão situadas em “qua-drantes” diferentes daquele diagrama acima proposto, com o fito de auxiliar no mapeamento das formas de conhecimento da totalidade, nela situando, em posição de igual legitimidade que a das ciências, saberes como o da poética (mi-tológica, religiosa, artística, jurídica etc.): surgem, assim, questões que colocam em questão a própria ciência e o modo de organização social (também política, jurídica e, sobretudo, econômica, utilitário-capitalista) que a criou, sustenta e nela se sustenta, sem que dela possa obter a devida sustentação. Não é de estranhar, portanto, que tais questões não sejam tratadas e sejam mesmo, de certa forma, descartadas, pelo pensamento classicamente tido por científico,

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causando grande instabilidade, de ordem psicológica, ética e também política, jurídica, econômica, em suma, social, neste ser em aberto, carente de orientação e fixação de um sentido para sua existência, que somos os humanos. De tais questões, tradicionalmente, se ocupam as religiões, com sua forma (mito)poética de explicar o mundo, dando-lhe (e dando-nos) também algum sentido, e não há lugar para elas, tanto as religiões e os mitos - com sua força simbólica, que sempre deu sustentação à ordem social, através do direito e outros meios, os quais sem esta força não têm como bem desempenhar este papel crucial -, como para tais questões, na sociedade mundial tecnocientífica contemporânea, que tem na secularização um dos pressupostos de seu aparecimento e manutenção, tratando como falso o que não é para ser avaliado por este registro, pois uma metáfora não é mesmo para ser levada ao pé da letra. É para elas, então, que se volta a teoria aqui proposta, a partir do estudo do direito, sim, mas situando-o na totalidade das formas de conhecer e ordenar a realidade,67 sejam aquelas mais propriamente normativas, acima qualificadas de “escatológicas”, como é o direito enquanto ordenamento da conduta humana, sejam aquelas “nomológicas”, como são as teorias, inclusive do direito. E ao assim proceder, pode-se esperar a obtenção de esclarecimentos também sobre essa totalidade mesma e sobre nós, que dela fazemos parte, como um seu “subconjunto próprio”, sendo ela um conjunto infinito - logo, um subconjunto que pode não ser menor que ela.68

CONCLUSÃOEis que chegamos à conclusão de que a filosofia, já tendo servido à te-

ologia, durante o período medieval, depois à ciência, e também à política, na modernidade, deveria ainda, em seus estertores, ser posta a serviço da arte, ou melhor, da poética, em uma última tentativa de salvar um mundo que ela, mais do que o expansionismo político-jurídico romano e o monoteísmo personalista cristão, serviu para criar, quando deixou de ser dialética, inconclusiva, sofística, para tornar-se exigência da verdade, filosofia propriamente. Aqui, a descrição da filosofia a aproxima da situação trágica em que se viu envolvido o famoso personagem da tragédia de Sófocles, Édipo. E tal como Édipo, a insistência da filosofia em perseguir a verdade, uma única verdade, em ser “alética”, portanto, e não mais, di-alética – ou “pluri-alética”, e, positivamente, “lética”, lembrando que lethein, em grego antigo, remete também ao esquecimento, sendo a-lethein o desvelamento, mas também, o “desesquecimento”, o rememoramento – é que a teria levado (ou estaria levando) ao encontro de seu fim, trágico. Filosofia, então, estaria bem se não servisse para nada, como postulava já Aristóteles, no início de sua “Metafísica”, mas ela terminou sendo empregada para os mais diversos fins, e agora parece estar a serviço do nada que nos assola, individual e coletivamente. A pulsão auto-destruidora que se manifesta na filosofia também se mostra, por todo lado, nessa Civilização Ocidental, que se tornou mundial - e, logo, não apenas ocidental -, e traz já em seu próprio nome o occido, étimo latino da queda, da ruína, da morte, do assassínio, da chacina. A “Civilização da Razão” é a “Civilização da Destruição”, destruição que pode atingir todas as

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outras civilizações e, até, o próprio mundo, físico.

As coisas inorgânicas, por exemplo, como destaca Türcke,69 “não sentem a contradição, mas fazem parte dela”. Sim, claro, não sentem por não terem sensibilidade, mas são a própria contradição, com a sua simples existência, já que sua densidade ontológica faz-se positividade, contrastando com a negatividade do nada. Já os seres orgânicos, animados, estes sentem, sim, a contradição, a que damos o nome de “dor”. E será contra o sofrimento que se mobilizará o “ser de pensamento”, o ser humano, linguajeiro, constantemente aterrorizado, perseguido pelo saber de que pode sofrer e, até, morrer. Se a dor é o mal e o bem ausência de dor, então temos que estes seres que nós somos percebemos como negatividade o bem, e positividade o mal. Para afastar essa idéia se desenvolve-rão religiões, sendo as mais eficazes aquelas monoteístas, que deslocam o bem supremo, todo o bem, para a divindade, supra-terrena, espírito puro, deixando o mal no mundo, na terra, na matéria impura, enquanto nós, humanos, “húmus da terra”, ficamos presos nessa contradição, oscilando entre os dois extremos. Tal contradição se desdobra em uma série de outras, inclusive naquelas conceituais, próprias da filosofia.

E então, internalizamos as contradições, existentes na realidade e, so-bretudo, no contraste da realidade com seu duplo, que fabricamos para melhor enfrentá-la, a linguagem, sendo o modo como as resolvemos que fará de nós o que somos – embora pareça contraditório, e é mesmo, o melhor para nós, indi-vidualmente, e para os que convivem conosco, é que adotemos a estratégia da dialética negativa com essas contradições, evitando tanto resolvê-las, superá-las definitivamente, de forma absoluta, como também desconsiderá-las, pretender cancelá-las, por uma cisão analítica entre o certo, positivo, e o errado, negativo, pois a negatividade é positiva e a positividade é negativa, a verdade é parcial e, conforme a famosa afirmação adorniana, contante da obra “Minima Moralia”, “o todo é o falso”, contrapondo-se frontalmente à máxima hegeliana, de que o todo é a verdade, assim como o real é racional e vice-versa.

Pode-se, então, falar em uma “negatividade dúplice”, sendo uma positiva e outra negativa, o que se expressa exemplarmente na arte, como bem explica um teórico contemporâneo que se costuma catalogar bem distante de Adorno, em um espectro ideológico das teorias sociais, mas que muito provavelmente com o assentimento dele o substituiu em Frankfurt, nas aulas interrompidas durante as manifestações estudantis de fins da década de 1960: Niklas Luhmann, autor de uma vigorosa teoria social sistêmica.70 Em ambos, na verdade, para utilizar uma distinção do enciclopedista d’Alembert, resgatada por Adorno, está presente um “esprit systematique”, antes que o “esprit de système”, de um Hegel. Em “Die Kunst der Gesellschaft” (p. 473), Luhmann refere que na teoria estética de Adorno a arte aparece como uma negatividade a um só tempo positiva e, propriamente, negativa, ao se contrapor à falta de liberdade na realidade social com seu exercício de liberdade na sociedade, que, por isso, dela se beneficia, tornando-a positiva, valorizada socialmente, por expandir os

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limites dessa sociedade, ao alterar a subjetividade dos que a possibilitam, sem com ela se confundirem: os indivíduos.

É assim que a estética se põe no lugar da ética, ou, pelo menos, do lugar tradicionalmente ocupado por ela. Ocorre que em ética, ou nas éticas em geral, já se dá por resolvida a questão de saber se apenas viver é bom, buscando o bom viver, o viver bem ou o viver para o bem, associando-se a vida ao bem e a morte ao mal, pois ser é que é bom e não ser, ruim. A tais éticas, afirmativas, porém, podemos contrapor um outro tipo de ética, negativa,71 que ao evitar uma valoração positiva prévia do que é, em detrimento do que não é, pode tornar melhor vivida a vida de um ser, como nós, que a rigor não somos – no sentido em que, conforme defendemos em outro local, só Deus pode ser -, mas apenas existimos – enquanto Deus, porque é, não existe -, ocasionalmente. Facilmen-te se percebe que a ética, ou seja, o saber sobre o que devemos fazer, do qual depende toda filosofia jurídica que não se reduza à esterilidade do formalismo positivista – negando-se, portanto, como filosofia para se tornar, na melhor das hipóteses, uma teoria do direito -, por seu turno depende fundamentalmente de respostas a outras questões, quer sejam de natureza metafísica, sobre o que é o ser, quer sejam de natureza teológica, ou melhor, religiosa, sobre o que podemos esperar do desfecho da vida. Dito de outra forma, e sinteticamente: a definição do modo como devemos nos comportar nessa vida depende da concepção que temos de seus limites – da morte, portanto. Os pressupostos de que necessitamos para desenvolver a filosofia, de um modo geral e também sobre aspectos particulares – como, por exemplo, aqueles referentes ao direito -, deve possibilitar um entendimento de como nos situarmos em face de nossa finitude, individual, abrindo um horizonte, metafísico, de compreensão e supe-ração de certos modos de relacionamento com tal questão que incita a ações e reações violentas. O melhor modo de enfrentar tais questões, transcendentais, é mobilizando os resultados obtidos no campo aqui qualificado de poético, onde encontramos as diversas formas de lidar com a imaginação, desde aquelas mais antigas, como a mitologia e as religiões, até outras, mais recentes, como a psicanálise, passando pelas diversas artes, a teologia e a própria filosofia, sem esquecer o direito, enquanto forma de responder aos reclamos de convivência entre os humanos que dispõe de um vasto repertório de soluções, necessitando de uma melhor apresentação, para assim recuperar seu poder de convencimento e vinculação intersubjetiva.

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1 Cf. J.-P. SARTRE, L’Imaginaire, Paris: Gallimard, 1940, p. 148 e s. Bem diferente em relação ao tema da imagem e sua importância é a postura de autor anterior a Sartre, que em seu tempo teve a mesma importância que ele, no cenário filosófico francês – e, logo, também mundial. Estou a me referir a Henri Bergson, cujo pensamento será retomado por aquele que sucederá Sartre, no centro das atenções do grand monde filosófico: Gilles Deleuze.

2 Las Estruturas Antropológicas del Imaginário, México (D.F.): Fondo de Cultura Económica, 2004 [1992], p. 35.

3 Devo a referência ao “corte de Dedekind” a diálogo mantido com José Dantas (em 21.01.2010), que em manuscrito inédito sobre matemática a ele se refere, em um outro contexto, i.e., para definir número irracional, como “uma fenda existente em uma seqüência de racionais que o cercam sem nunca chegar lá”.

4 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO. Teoria da Ciência Jurídica. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 200, sobre os números imaginários, e a nota 348, p. 198, sobre o que se vem de referir a respeito das

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investigações de Frege. v. tb. id., “Significado filosófico da matemática”, in: Revista Filosofia, n. 43, São Paulo: Escala, 2010.

5 Cf. KELSEN, Teoria Geral das Normas, trad. José Florentino Duarte, Porto Alegre: Fabris, 1986 p. 328 e seg.: “Em obras anteriores falei de normas que não são o conteúdo significativo de um ato de vontade. Em minha doutrina, a norma fundamental foi sempre concebida como uma norma que não era entendida como o conteúdo significativo de um ato de vontade, mas que estava pressuposta por nosso pensamento. Devo agora confessar que não posso continuar mantendo essa doutrina, que tenho de abandoná-la. Podem crer-me, não foi fácil renunciar a uma doutrina que defendi durante décadas: a abandonei ao comprovar que uma norma (Sollen) deve ser o correlato de uma vontade (Wollen). Minha norma fundamental é uma norma fictícia, baseada em um ato de vontade fictício. Na norma fundamental se concebe um ato de vontade fictício, que realmente não existe”.

6 Cf. HANS VAIHINGER, Die Philosophie des Als-Ob, 1ª. ed. 1911, ed. popular (Volksausgabe), resumida, Leipzig: Felix Meiner, 1923

7 Para uma exposição do intenso debate contemporâneo sobre o valor heurístico da ficção, inclusive no âmbito da filosofia analítica, cf. GOTTFRIED GABRIEL, “Sobre o Significado na Literatura e o Valor Cognitivo da Ficção”, in: O que nos faz pensar: Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, n. 7, 1993, p. 63 ss.; MARIO ANTONIO DE LACERDA GUERREIRO, O problema da ficção na filosofia analítica, Londrina: UEL, 1999.

8 Cf. BARRY SMITH, “Meinong vs. Ingarden on the logic of fiction”, in: Philosophy and Phenomenological Research, 1978, p. 93 s., disponível em http://ontology.buffalo.edu/smith; Id. e JOSEF SEIFERT, “The truth about fiction”, in: Kunst und Ontologie. Für Roman Ingarden zum 100. Geburtstag, W. GALEWICZ et al. (Hrsg.), Amsterdam/Atlanta: Rodopi, 1994, p. 97 s.

9 Cf. Profanazioni, Roma: Nottetempo, 2005, p. 87.10 Citado em Teoria da Ciência Jurídica, cit., p. 238.11 Disso se mostram perfeitamente conscientes aqueles estudiosos de psicanálise da vertente londrina,

kleiniana. No Brasil, cf., v.g., PAULO CESAR SANDLER, A Apreensão da Realidade Psíquica. Vol. VII, Hegel e Klein: A tolerância de paradoxos, Rio de Janeiro: Imago, 2003.

12 Esta é a posição de VICENTE FERREIRA DA SILVA, em “Para uma etnogonia filosófica”, in: Revista Brasileira de Filosofia, 1954. V. tb. id., Filosofia da Mitologia e da Religião, in: Obras Completas, vol. I., São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1964, p. 299 ss.

13 Aqui cabe suscitar a contribuição que pode ser dada pela “poética dos sonhos (rêverie)” de Bachelard, para quem “Um mundo se forma em nossos sonhos, um mundo que é nosso mundo. E esse mundo so-nhado nos ensina possibilidades de crescimento de nosso ser nesse universo que é nosso”. La Poética de la Ensoñación, trad.: IDA VITALE, México: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 20. Essa é também a poética modernista proposta para as artes, desde Baudelaire e, mais radicalmente, por Apollinaire - cf., v.g., SILVANA VIEIRA DA SILVA AMORIM, Guillaume Apollinaire: Fábula e Lírica, São Paulo: UNESP, 2003 -, que se engaja na produção de um mundo que revele possibilidades desapercebidas do real. Bache-lard será reivindicado pelo “pai” do Surrealismo, André Breton, que se insere nessa tradição modernista, como ele próprio reconhece – cf. ANDRÉ BRETON, Conversaciones (1913 – 1952), trad.: LETÍCIA PICCONE, México: F.C.E., 1987. E Gilbert Durand irá se colocar nessa linha, junto ao “surrealismo contemporâneo”, bem como dos “grandes românticos alemães” (Novalis, Hölderlin etc.), pela superação do que Piaget denominou de “adultocentrismo”, para assim recuperar a matriz metafórica, imaginária, de onde emana todo a atividade mental humana, inclusive aquela mais redutora, a que aqui denominamos racionalizadora, dita racional - cf. ob. cit., p. 35. Nesse aspecto, vale lembrar a elaboração convergente da psicanálise kleiniana e de seus herdeiros intelectuais, da chamada Escola de Londres – cf., a propósito, RONALD BRITTON, Crença e Imaginação, trad.: LIANA PINTO CHAVES, Rio de Janeiro: Imago, 2003.

14 Cf., v.g., o “Prólogo” da Ordinatio, quinta (e última) Parte.15 Cf. MIGUEL ATTIÊ FILHO, Os Sentidos internos em Ibn Sînâ (Avicena), Porto Alegre: EDIPUCRS,

2000, p. 31.16 Daí não ser nenhuma surpresa a afinidade heideggeriana de estudiosos do gnosticismo, como Henry

Courbin, o primeiro tradutor de Heidegger na França, seu aluno Hans Jonas e, mais recentemente, Peter Sloterdejk. Como para Heidegger, também para os gnósticos cristãos dos primeiros séculos, estando o homem “estranhado” de sua origem divina em um corpo e um mundo criados pelo demiurgo, divindade inferior e invejosa do Deus verdadeiro e supremo – note-se aí um outro traço heideggeriano, na concep-ção de uma pluralidade de deidades -, não procede a definição corrente de que se trata de um animal,

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ainda que racional. Isso mesmo que em Heidegger, como em um seu coetâneo com tantas afinidades, como o espanhol injustamente menosprezado Ortega y Gasset, não se suscite uma origem divina do humano, nem tampouco meramente natural, dada a distância do ser formador de mundo em relação ao que dele são desprovidos ou pobres – cf. Martin Heidegger, Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: mundo, finitude, solidão, trad.: Marco Antônio Casanova, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, 2a. Parte, 2o. cap., §§ 43 ss., p. 204 ss.; Antonio Regalado García, El laberinto de la razón: Ortega y Heidegger, Madrid: Alianza, 1990, p. 288 ss. Sobre o papel na elaboração do pensamento heideggeriano da estranheza-familiar, o Unheimlich, o qual Heidegger encontraria antes em Hölderlin que em Freud, v. ainda ERNILDO STEIN, Introdução ao Pensamento de Martin Heidegger, Porto Alegre: Ithaca, 1966, p. 100 s.

17 Cf. MARTIN HEIDEGGER, Metafísica de Aristóteles IX, 1-3, trad.: E. P. GIACHINI, São Paulo: Vozes, 2007, p. 52.

18 Para esse duplo sentido da palavra “transcendência” cf. JOSEPH CAMPBELL, Isto és tu. Redimensio-nando a metáfora religiosa, EUGENE KENNEDY (org.), trad.: EDSON BINI, São Paulo: Landy, 2002, p. 181 s.

19 Daqui se origina a idéia de uma renovação da filosofia a partir da investigação do que somos na situação concreta, fática, da vida, proposta por Heidegger - no que se pode denominar, antes que uma “fenome-nologia da liberdade” (Günter Figal) ou, com mais precisão, uma “fenomenologia da(s) possibilidade(s existenciais)”, pois para Heidegger, “acima da realidade está a possibilidade”. M. HEIDEGGER, Meu Caminho para a Fenomenologia, in: col. Os Pensadores, trad.: ERNILDO STEIN, São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 302; id. Sein und Zeit, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, vv. eds., p. 52.

20 Cf. ERNST H. KANTOROWICZ, Os Dois Corpos do Rei. Um Estudo sobre Teologia Política Medieval, trad.: CID KNIPEL MOREIRA, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 181 ss., passim; PIERRE LEGENDRE, Leçons II: L’Empire de la Véritè. Introduction aux espaces dogmatiques industriels, Paris: Fayard, 1983, p. 109.

21 GASTON BACHELARD, O novo espírito científico, trad.: REMBERTO FRANCISCO KUHNEN, São Paulo: Abril, 1978, p.119 (penúltimo parágrafo do cap. II).

22 Cf. id., “Luz e Substância”, in: Estudos, trad. ESTELA DOS SANTOS ABREU, Rio de Janeiro: Contra-ponto, 2008, p. 63

23 VICENTE FERREIRA DA SILVA, em “Reflexões sobre a ocultação do ser”, in: Ensaios Filosóficos, São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948, p. 45 e s., tb. in: Obras Completas, vol. I., cit., p. 37.

24 Migajas Filosóficas o un poco de filosofía, trad. Rafael Larrañeta, Trotta, Madri, 1997, p. 64,25 Em Kafka. Por uma literatura menor, Rio de Janeiro: Imago, 1977. Para uma extensão do conceito de

“literatura menor” de Deleuze/Guattari para com ele abranger – e explicar – a teologia, cf. WINQUIST, Desiring Theology, Chicago/Londres: University of Chicago Press, 1995.

26 Para ler os medievais. Ensaio de hermenêutica imaginativa, Petrópolis: Vozes, 2000.27 editado e publicado (começando com o terceiro parágrafo) por Eugen Fink na Revue Internationale de

Philosophie, vol. 1, n º 2 (1939), sob o título “Der Ursprung der Geometrie als intentional-historisches Problem”, que aparece em Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänome-nologie (abrev.: Krisis) como “Beilage III”, W. BIEMEL (ed.), La Haya: Martinus Nijhoff, col. Husserliana, vol. 6, 1962, p. 365-386.

28 Trad. do inglês para o português por MARIA APARECIDA VIGGIANI BICUDO. Departamento de Matemática e Estatística, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, UNESP, 1980, disponível na página da SE&PQ – Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativos em http://www.sepq.org.br/ maria.htm.

29 Crítica e Clínica, São Paulo: 34, 1997, p. 13 s.30 Mas que bem se pode remontar a GUILHERME DE OCKHAM. Cf., v.g., LOUIS DUMONT, O In-

dividualismo. Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna, trad.: ÁLVARO CABRAL, Rio de Janeiro, Rocco, 1993, p. 76 s.; WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Lei, Direito e Poder em Guilherme de Ockham”, in: Direito e Poder. Estudos em Homenagem a Nelson Saldanha, HELENO TAVEIRA TORRES (coord.), Barueri (SP): Manole, 2005, p. 188 s.

31 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Sobre a estrutura medieval do pensamento filosófico e jurídico” in: Revista Opinião Jurídica, n. 3, Fortaleza: Faculdade Christus, 2004, p. 9 s., e, mais amplamente, ANDRÉ DE MURALT, L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes, scotistes occaniennes et grégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.: 1993; Néoplatonisme et aristotélisme dans la métaphysique médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenome-

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nológico, trad.: PAULA MARTINS, São Paulo: 34, 1998; La estructura de la filosofia política moderna. Sus Orígenes medievales em Escoto, Ockham y Suárez, trad.: VALENTÍN FERNÁNDEZ POLANCO, Madri: Istmo, 2002.

32 Para uma discussão desta obra, em conexão com o direito, cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Por uma crítica fenomenológica ao formalismo da ciência dogmático-jurídica” in: Revista Opinião Jurídica, n. 5, Fortaleza: Faculdade Christus, 2005, p. 311 s.

33 “Prolegômenos à História do Conceito de Tempo”, Seminário do Verão de 1925, Gesamtausgabe, vol. XX.

34 Sobre esse desenvolvimento em filosofia da matemática, cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Por que não é lógica a dialética, se é dialética a matemática?” in: id., Para uma Filosofia da Filosofia, Fortaleza: Casa de José de Alencar, 1999, p. 39 s.; tb. id., Teoria da Ciência Jurídica, loc. ult. cit.

35 Cf. Filosofias da Matemática, São Paulo: UNESP/FAPESP, 2007, p.152.36 Cf. “Sobre a fenomenologia husserliana”, in: Id., “Subjectividade e História”, Coimbra: Universidade de

Coimbra, 1969, p. 105 s. 37 Cf. ob. loc. ult. cit., p. 115.38 Cf. HUSSERL, Erste Philosophie, 1923/1924”, 2a. parte, Husserliana, vol. VIII, 1959, p. 173, passim. 39 V., p. ex., o “Manuscrito” EIII 4, 1930, p. 62, referido por Morujão, ob. cit., p. 135.40 Husserl, apud Morujão, ob. loc. ult. cit.41 Assim como nos parece os números seriam entendidos, se definidos como “conjuntos de conjuntos”, na

esteira das colocações de Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, em Principia Mathematica, quando então o zero, por exemplo, dessa perspectiva, seria definido como “o conjunto cujos elementos são todos os conjuntos vazios” – cf. JOSÉ DANTAS, ms., cit., p. 1.

42 Cf., para uma retomada recente da contribuição de Foucault, com grande vigor, GIORGIO AGAMBEN, Signatura Rerum. Turim: Bollati Berlinghieri, 2008.

43 Cf. Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in die phänomenologische Fors-chung, Gesamtausgabe, vol. 61, WALTER BRÖCKER e KÄTE BRÖCKER-OLTMANNS (eds.), 2a. ed., Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 26. Também Husserl reporta-se a uma “metodologia arqueológica” no Manuscrito C 16 IV, como nos reporta Nicoletta Ghigi, da Universidade de Perúgia (Itália), especialista em fenomenologia husserliana que vem desenvolvendo pesquisas sobre os manuscritos inéditos do Arquivo Husserl (Louvain, Bélgica) - cf. http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/artigos04/ghigi01.htm, consultado em 1o./10/2006. V. tb. ANGELA ALES BELLO, Culturas e Religiões. Uma leitura fenomenológica, trad.: Antonio Angonese, Bauru (SP): EDUSC, 1998; Id., Fenomenologia e Ciências Humanas, org. e trad.: MIGUEL MAHFOUD e MARINA MASSIMI, Bauru (SP): EDUSC, 2004, cap. 2, p. 187 s.

44 No sentido em que Paul Ricouer se refere às duas formas de hermenêutica, em seu texto fundamental sobre a simbólica do mal, contida em sua obra “O Conflito das Interpretações”, a saber, aquelas redutoras, voltadas para uma reconstituição do passado, ditas arqueológicas, em contraposição àquelas amplificadoras da imaginação simbólica (sinnbildende, como se diz em alemão, ou seja, literalmente, “construtora de sentido”), que se relacionam com o passado no registro do que chamamos em língua galego-portuguesa (e/ou luso-brasileira) de maneira singular de “saudade”, um anelo de voltar a viver com maior intensi-dade, no futuro, algo já vivenciado, em geral na in-fância feliz da existência, do que escapa às palavras mas se preserva nas imagens. A essa segunda forma de hermenêutica Ricouer denomina “escatológica”. Cf., especificamente, P. RICOUER, “Le conflit des herméneutiques, épistémologie des interprétations”, in: Cahiers Internationaux de Symbolisme, Paris, 1963, n. I, pp. 179 ss.; v. tb. GILBERT DURAND, A Imaginação Simbólica, São Paulo: CULTRIX/EDUSP, 1988, p. 93 s.

45 Para Vico, os primeiros poetas foram teólogos que com a sua teologia estabeleceram os fundamentos da organização política, inicialmente republicana, expressando-se através de “imagines humanae maiorum”, antes que por conceitos, como se faz em teologia natural ou racional. Cf. VICO, “Sinopsi del diritto universale”, in: Id., Il diritto universale, a cura di FAUSTO NICOLINI, Bari: Laterza, 1936, pp. 6, 7, 10 e 17. Daí ser para ele a poética uma sabedoria (sapientia), a se diferençar tanto das ciências, como a matemática, enquanto um emprego da razão com finalidade demonstrativa, como das “técnicas” (ars), de natureza preceptiva – e também daquelas disciplinas que, segundo ele, são em parte demonstrativas e em parte preceptivas, dando como exemplo a Medicina e o Direito, e preceptivas em um sentido mais amplo do que seria a retórica (oratoria) ou uma outra disciplina, que denomina imperatoria, designação que aponta para algo assim como o que outros chamariam “arte de governar”, pois aquelas prescrevem na forma do aconselhamento (consilia) combinado com demonstrações, enquanto esta últimas combinam

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os conselhos (consilia) com os preceitos propriamente ditos (praeceptis). Merece transcrição integral as passagens concernentes, nomeadamente, os “capítulos” (capita) XXXVI e XXXVII do Livro primeiro da obra acima referida, “O Direito Universal”, intitulado “De uno universi iuris principio et fine uno”, in: loc ult. cit, p. 50: “CAPUT XXXVI – DE VIRTUTE: Ab hac vi veri, quae est humana ratio, virtus existit et appellatur. CAPUT XXXVII [VIRTUS DIANOETICA ET VIRTUS ETHICA] – Virtus dianoetica: scientia, ars, sapientia.: Vis veri, quae errorem vincit, est virtus dianoetica, seu virtus cognitionis. Quae, si tota demonstratione constat, est scientia, ut mathesis; si tota praeceptis, est ars, ut grammatica, frenaria; si partim demonstratione partim consilio, ut medicina, iurisprudentia, vel partim praeceptis partim consilio, ut imperatória,oratória, poética, proprie ‘sapientia’ est appellanada”.

46 Cf. FARIAS BRITO, Finalidade do Mundo, vol. I - “A Filosofia como Atividade Permanente do Espírito Humano”, publicado originalmente na Cidade de Fortaleza, em 1895 -, 2a. ed., Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957p. 128.

47 Aristóteles em nova Perspectiva, Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.48 Aqui estamos diante do que Herman Dooyoweerd, jusfilósofo e também pensador da totalidade - de uma

perspectiva neocalvinista, reformada -, qualifica, em seu opus magnum, De Wijsbegeerte der Wetsidee (disponibliizado para download na rede mundial pelo governo holandês), como a priori religioso de todo pensamento, inclusive o científico. Embora na versão para o inglês desta obra, posterior, o A. tenha retirado da noção de a priori, tal como empregada na expressão, o sentido transcendental kantiano, o próprio cerne “ideonômico” de seu pensamento implica a idéia de ordenação de tudo quanto se possa conceber e transmitir a partir de pressuposições sobre o sentido, qu em si têm natureza religiosa ou, como preferimos denominar, “mitopoética”, por abranger todo o campo do simbolismo, no qual se pode situar as religiões, como também as elaborações mitológicas, de natureza antes mágica do que religiosa, as artes, o próprio direito etc. Remonta a Platão a concepção de uma estrutura ideonômica do universo dos símbolos coroado, na visão platônica, pela Idéia do Bem (Rep., VI) – cf. Henrique de Lima Vaz, Ética e Direito, São Paulo: Landy/Loyola, 2002, p. 328. O termo é o que entendemos deva ser utilizado para traduzir a expressão-guia do pensamento dooyeweerdiano: wetsidee (vertido para o inglês como Law-Idea e para o alemão como Gesetzesidee).

49 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Lei, direito e poder em Guilherme de Ockham”,cit.; Id., “Sobre a cisão medieval de estruturas do pensamento filosófico segundo André de Muralt”, in: Crítica. Revista de Filosofia, vol. 9, números 29/30, Londrina:UEL/CEFIL, 2004, p. 251 s.

50 Cf. VALENTÍN FERNÁNDEZ POLANCO, “Los precedentes medievales del criticismo kantiano”, in: Revista de Filosofía, vol. 28, núm. 2, Madrid, 2003.

51 A teologia metafísica do possível vai repercutir no pensamento daquele filósofo que, no século XX, irá patrocinar o enxerto, da hermenêutica no solo da fenomenologia husserliana, que foi Martin Heidegger, enxerto tão fértil, tal como resta uma vez mais demonstrado no trabalho que aqui se apresenta. Como é sabido, os estudos de filosofia de Heidegger foram antecedidos pelo estudo da teologia, e sua tese de livre-docência versou sobre Duns Scot – ou melhor, sobre obra que depois se revelou da autoria de Tho-mas de Erfurt, mas que deu margem a que se pensasse ser de Scot justamente pela estrita observância scotiana nela apresentada. Uma outra influência, talvez ainda mais decisiva, foi a do pensador religioso, cristão, Sǿren Kierkegaard, para que em Heidegger se encontre esse pensamento da abertura para as possibilidades do ser (Sein) que ante si mesmo, aí (Da), pro-jetado, no mundo, tanto se mostra, do ponto de vista ôntico, enqunto ente, temporal e materialmente finito, como também, do ponto de vista ontológico, essencial e espiritualmente infinito, por encarnar a liberdade, donde um intérprete recente do pensamento heideggeriano tê-lo qualificado com uma “fenomenologia da liberdade” - cf. GÜNTER FIGAL, Fenomenogia da Liberdade, trad. MARCO ANTÔNIO CASANOVA, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, esp, p. 36 e s. E como diria o pensador dinamarquês, em sua obra clássica sobre o conceito de angústia (Angst), a realidade, antes de tudo, é por nós experimentada - aperceptivamente, diria Husserl – como um possível ser, que se toma com real porque nele se crê. A crença no mundo, em um mundo, portanto, é um a priori para o conhecermos, e também para transformá-lo, o que não se pode obter sem antes - ainda que aperceptivamente -, interpretá-lo (ao contrário do que sugere Marx, em sua conhecida tese contra Feuerbach). Portanto, a transformação almejada, seja qual for, é resultado de uma prática orientada teoricamente, i. e., de um saber prático, sim, mas produtivo, logo, “poiético” -, e não de uma ação enquanto mera práxis ou de uma “téc(h)n[(ét)ica]”, reprodutiva. Um saber prático pode ser caracterizado como aquele que indica como algo pode ser feito, uma vez que se decidiu (ética, política e/ou juridicamente) fazê-lo, e como fazê-lo.

52 Neste sentido, LUC FERRY, O que é uma vida bem sucedida?, trad.: KARINA JANNINI, Rio de Janeiro:

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DIFEL, 2004. 53 Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “(Im)possibilidade e Necessidade da Teologia”, in: Nós e

o Absoluto. Festschrift em homenagem a Manfredo Araújo de Oliveira, Carlos Cirne-Lima e Custódio Almeida (orgs.), São Paulo/ Fortaleza: Loyola/UFC, 2001. Também disponível em http://serbal.pntic.mec.es/AParteRei/ núm 12: http://serbal.pntic.mec.es/~cmunoz11/willis.pdf. Aqui se apresenta uma perspectiva da teologia que se pode qualificar como “narrativa”, à semelhança daquela derivada da filosofia hermenêu-tico-fenomenológica de Paul Ricouer. Esta é uma perspectiva que se mostra estruturalmente compatível com as ciências, ou com o direito, concebido – e concebidas - como ficções de mundos possíveis, a partir dos dados fornecidos pelos objetos estudados e, no mesmo processo, construídos. Interessa diferenciar tal perspectiva de uma outra, que consideramos foi tentada por autores como Alfred North Whitehead, Hedwig Conrad-Martius e, mais recentemente, Richard Swinburne, em que a teologia se aproxima dos conteúdos mesmos das ciências, se fazendo com tais elementos e, eventualmente, mostrando-se compa-tível com religiões – sintomaticamente, aquelas professadas por tais autores, de derivação judaico-cristã, o que nos parece algo a ser evitado ou, pelo menos, desnecessário, pois traz o inconveniente de dificultar o diálogo intercultural.

54 Cf. “Autopoiese: a criação do que vive”, in: Um novo paradigma em ciências humanas, físicas e biológicas, CÉLIO GARCIA [org.], Belo Horizonte, 1987.

55 Cf. Ciência com Consciência, 3a. ed., revista e modificada pelo A., trad. MARIA D. ALEXANDRE e MARIA ALICE SAMPAIO DÓRIA, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, cap. 10, n. 8, p. 333.

56 Ética e Economia, São Paulo: Ática, p. 33.57 Cf. ob. cit., cap. 6, p. 128 ss.58 Neste sentido, v. AQUILES CÔRTES GUIMARÃES, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2005, bem como nosso verbete “Fenomenologia Jurídica”, in: Dicionário de Filosofia do Direito, VICENTE DE PAULO BARRETTO (coord.), Rio de Janeiro/São Leopoldo (RS): Renovar/UNISINOS, 2006, pp. 316/322.

59 Cf., no âmbito da teoria do direito, por exemplo, o trabalho do holandês BERT VAN ROERMUND, Derecho, Relato y Realidad, trad. HANS LINDAHL, Madrid: Tecnos, 1997.

60 Em The Possibility of Metaphysics, Oxford: Oxford University Press, 2001, logo na introdução.61 Varieties of Things, Oxford: Blackwell, 2005.62 Cf. Análise e Metafísica, trad. ARMANDO MORA DE OLIVEIRA, São Paulo: Discurso, 2002.63 Cf., v.g., O Ser e o Evento, trad.: MARIA LUÍZA X. DE A. BORGES, Rio de Janeiro, Zahar/UFRJ, 1996.

Para um desenvolvimento recente da concepção de Badiou, cf. MEHDI BELHAJ KACEM, L´esprit du nihilisme. Une ontologie de l´Histoire, Paris: Fayard, 2009.

64 Para uma primeira aproximação a este pensamento, bem como quanto às possibilidades de se estabelecer conexões entre ele e contribuições modernas, como as de Kant e Hegel, bem como aquelas contemporâneas, de Heidegger ou Apel, particularmente recomendável se nos afigura o livro editado em sua homenagem, Saber filosófico, história e transcendência, JOÃO A. MAC DOWELL (coord.), São Paulo: Loyola, 2002. Uma introdução “biobliográfica” encontra-se em MARCELO PERINE, Ensaio de iniciação ao filosofar, São Paulo: Loyola, 2007, p. 117 s.

65 Cf. HANS REINER, “O surgimento e o significado original do nome Metafísica”, in: Sobre a Metafísica de Aristóteles (Textos Selecionados), MARCO ZINGANO (org.), São Paulo: Odysseus, 2005, p. 93 ss.

66 A propósito, v. trabalhos recentes como Steps Toward a Computational Metaphysics, de BRANDEN FITELSON (University of California–Berkeley) e EDWARD N. ZALTA (Stanford University), bem como, deste último, Principia Metaphysica, disponíveis em http://mally.stanford.edu/publications.html.

67 No sentido referido por Werner Heisenberg em A Ordenação da Realidade, trad.: MARCO ANTÔNIO CASANOVA, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009 [1942], em que vemos uma convergência, ao que parece ainda inexplorada, com o pensamento de Herman Dooyoweerd, há pouco referido.

68 Aqui, novamente, beneficiei-me do ms. antes referido de José Dantas, na parte sobre teoria dos conjuntos, bem como de contato pessoal com o A., na data registrada acima.

69 Cf. Pronto-Socorro para Adorno: Fragmentos Introdutórios à Dialética Negativa, Mimeo., Departamento de Filosofia: UNICAMP, 2001, in: www.filosofia.pro.br, “Escola de Frankfurt”.

70 Para uma introdução a esta teoria v. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Teoria da Ciência Jurídica, cit., p. 193 e s.

71 Nesse sentido, JULIO CABRERA et al. Ética Negativa: Discussões e Problemas. Goiânia: EdUFG, 2008. V. tb. http://e-groups.unb.br/ih/fil/cabrera/portugues/etica.html.

Por uma poética do Direito: introdução a uma teoria imaginária do Direito (e da totalidade)

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FOR A POETIC OF LAW: AN INTRODUCTION TO A IMAGINARY THEORY OF LAW (AND OF TOTALITY)

ABSTRACT

The paper proposes a return to the legal studies located in a broader framework, such as idealized and in his times also practiced by the Italian Giambattista Vico in the 18th. Century, which opposes the Cartesian like rationalism with an approach based on what we may call a poetic use of language. To this converges also contemporary studies in the field of philosophy, when language is envisaged as the ultimately reality to be reached, as well as the efforts that can be found in humanities, in order to point out to the founding nature of imagination in all the human features to comprehend worldly and consciences manifestations.

Keywords: Legal theory. Epistemology. Imagination. Poetics.

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positivismo*

Friedrich Müller**

1 El concepto. 2 Discusión del positivismo metódico del De-recho. 3 Tareas.

RESUMOO Positivismo buscou resumir todo o saber humano por meio de uma metodologia exata, apartada de qualquer metafísica. Da Filosofia e Ciência, o Positivismo chegou ao Direito, com destaque para o positivismo estatal legislativo que identifica o Direito com a legislação, alheando considerações axiomáticas próprias do Direito Natural e qualquer dignidade supra-empírica do fenômeno jurídico. Apesar de um breve retorno ao Direito Natural, especialmente após a Segunda Grande Guerra, é o positivismo metódico do Direito a atitude básica predominan-te dos juristas. Falha essa atitude pela carência em relação à realidade, fixando-se apenas na análise lingüística das normas. Em contraponto, se propõe a Jurisprudência estruturante do Di-reito, como um modelo teórico-prático que engloba dogmática, metodologia, teoria do Direito e teoria constitucional, ao não reduzir Direito à norma e por levar em conta tanto o programa normativo quanto o âmbito normativo.

Palavras-chave: Positivismo. Norma. Metodologia. Jurispru-dência estruturante.

* Texto originalmente publicado na Espanha, com republicação autorizada pelo autor. Extraído de: Müller, Friedrich. Positivismo. In: Postpositivismo. Trad. Luís-Quintín Villacorta Mancebo. Cantabria: Ediciones TGD, 2008, p. 171 – 195.

** Friedrich Müller nasceu em 1938. Estudou Direito e Filosofia em Erlangen-Nurembergue e Friburgo-em-Brisgau (Alemanha). Em 1964, doutorou-se em Direito pela Universidade de Friburgo-em-Brisgau e, em 1968, obteve o título de livre-docente e a licença para assumir cátedras nas áreas de Direito do Estado, Direito Administrativo, Direito Eclesiástico, Filosofia do Direito e do Estado, bem como Teoria do Direito. De 1968 a 1971, lecionou na Universidade de Friburgo-em-Brisgau. Em 1971, assumiu uma cátedra na Faculdade de Direito da Universidade de Heidelbergue, onde coordenou o Núcleo de Direito Público de 1973 a 1975. A partir de 1975, e novamente a partir de 1979, foi diretor daquela Faculdade de Direito. Desde 1989, vem-se destacando nas áreas de pesquisa e de publicações científicas. Também tem atuado como professor-visitante e pesquisador em diversas universidades estrangeiras, sobretudo na África do Sul e no Brasil. Além de sua carreira jurídica, Friedrich Müller também se destaca como literato (poesia e prosa), tradutor e cineasta.

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Positivismo

1 EL CONCEPTOEl término <<Positivismo>> fue creado por Auguste Comte, cuyo

<<Cours de La philosophie positive>> se publicó entre 1830 y 1842. Ante el trasfondo del progreso de las Ciencias naturales, el positivismo reivindicó resumir todo el saber humano a través de una metodología empírica exacta, liberada de todas las interpretaciones metafísicas. La Ciencia debe partir exclusivamente de los fenómenos reales. La filosofía estudia únicamente las relaciones entre las ciencias individuales y sus métodos, y elabora leyes (La <<Ley de los tres estados>> de Auguste Comte). Los hechos surgidos de las experiencias ya no tienen por qué justificarse ante la instancia de la razón. La última instancia es todo lo que es real, lo que existe por antonomasia; en consecuencia, ha de quedar bloqueada la crítica científica de lo real.

Con ello, los autores positivistas del siglo XIX (además de Auguste Comte, a modo de ejemplo, Hippolyte-Adolphe taine, John stuart Mill, Harvey spencer, Ernst Mach, Richard Avenarius) retomaron unas tesis importantes de los enciclo-pedistas franceses (Jean-Baptiste le Rond d’Alembert, Anne-Robert-Jacques turgot, Marie-Jean-Antoine nicolas de Caritat –marqués de Concordet–), y de los empiristas ingleses de los siglos XVII y XVIII (John Locke, David Hume). En la antigüedad ya existen asimismo modelos, en parte formalistas en parte sensualistas (por ejemplo protágoras). El recurso a la sofística griega, sin embargo, es ambiguo, en el sentido de que ésta, al mismo tiempo, había introducido el pensamiento noempirístico, metafísico, del Derecho natural.

El neopositivismo del siglo XX tiene su origen en el empirocriticismo, y queda reforzado por el efecto del denominado Círculo Vienés (Moritz schlick, Rudolf Carnap, Hans Reichenbach y otros), que se dedicaba sobre todo a la crítica de conceptos científicos.

Este positivismo de la postura científica, en el fondo de carácter filosófico, visto particularmente desde la Ciencia del Derecho, y al mismo tiempo en unión con el positivismo filosófico, constituye un punto de vista que puede denominarse <<positivismo de la validez del Derecho>>. También se inicia en la antigüedad (sofística), nunca desaparece del todo de la discusión (nominalismo), y asimismo empieza a imponerse ampliamente a mediados del siglo XIX en un empuje histórico. En este caso enlaza también con algo indiscutiblemente real, la <<realidad positiva>>. La cuestión central es en qué ha de consistir la positividad del Derecho. En este aspecto se distingue entre el positivismo psicológico (por ejemplo, Rudolf-Ernst Bierling, Adolf Merkel, Georg Jellinek, Ernst von Beling), el positivismo sociológico (Eugen Ehrlich, Max Weber, theodor-Julius Geiger), y el positivismo estatista legislativo.

Este último ve el positivismo del Derecho en el hecho de que se legisla, y de que cuenta con la garantía de un soporte forzoso por parte de una instancia del poder del Estado. El Derecho es idéntico a las leyes estatales, suponiendo que las mismas hayan sido producidas correctamente. Las cuestiones relacionadas con los contenidos no han de ser relevantes para este concepto

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Friedrich Müller

de Derecho positivo; las normas naturales o éticas carecen de interés. Esta despedida rigurosa del Derecho natural la formuló el Reichsgericht, en 1928, de la siguiente manera: <<El Estado es soberano y no está sujeto a otras barreras que las que se hubiere impuesto a sí mismo en la Constitución o en otras leyes>>. También Hans Kelsen descarta de la Ciencia del Derecho cualquier valoración y cualquier concepto correctivo, en cuanto científicamente inoportunos. Según Hans Kelsen, únicamente puede convertirse en Ciencia una teoría de las <<formas puras>> del Derecho; por lo tanto, <<cualquier contenido puede ser Derecho>>. Con la desaparición de la axiomática propia del Derecho natural y, por ende, de cualquier dignidad supraempírica del Derecho positivo, se incrementó por completo, sobre todo en el círculo de los juristas prácticos, <<la obediencia fáctica ante la violencia, valorada ya solo utilitariamente, del poder que se comporte legítimamente>> (Max Weber).

El positivismo filosófico debe ser objeto de debate por la teoría de la ciencia y por la Historia de ciencia. El positivismo de la validez del Derecho ha conti-nuado siendo la actitud básica predominante de los juristas; el supuestamente <<eterno regreso del Derecho natural>>, se limitó a los años posteriores a la Segunda Guerra Mundial y a un breve centello que, prácticamente no ha dejado huella. En cambio, el <<positivismo metódico del Derecho>> sigue siendo un problema por resolver de las Ciencias jurídicas, y será a éste al que vamos a denominar en lo sucesivo <<Positivismo>>.

2 DISCUSIÓN DEL POSITIVISMO METÓDICO DEL DERECHOEl positivismo, al igual que el derecho racionalista contra el que se dirige,

respecto a la cuestión de la razón de su validez, piensa en términos axiomáti-cos, al pretender concebir la codificación como un sistema cerrado al que se debe proporcionar unidad, y una armonía de conjunto, de modo que sea un todo completo exento de contradicciones. A partir del conjunto sin fisuras del sistema legal, se practican deducciones lógicas; en esto y no otra cosa ha de consistir la aplicación del Derecho. Al <Derecho de la razón>> aún le parecía normalizable y predecible cualquier comportamiento social humano. La Ciencia pandectística, el positivismo y la jurisprudencia de conceptos, ya no concebían ingenuamente por más tiempo el derecho positivo –aunque sí su proprio sistema conceptual– como un conjunto armonioso, capaz de ser base de deducciones, y libre de contradicciones. Les parecía que todos los casos jurídicos podían resolverse por subsunción silogística, pues los conceptos jurí-dicos debían proporcionar un número redondo de axiomas. La genealogía de los conceptos de Georg-Friedrich puchta y su <<pirámide de los conceptos>>, ya anticipaba la idea de sistema, en el sentido de que las normas existentes po-dían ser completadas mediante principios y conceptos científicos. Tanto estos conceptos como las normas positivas, se confunden con realidades inmediatas, en tanto que cosas naturales. Lo que únicamente puede ser el resultado del pensamiento abstracto, se convierte –de modo involuntario– en ontología dis-

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Positivismo

torsionada, en una suposición ficticia del Derecho natural. El supuesto sistema jurídico cerrado, sin lagunas, armónico, abstractamente cosificado, solo podrá ser manejado de manera autosuficiente y formalista, desatendiendo sus premisas y funciones históricas y políticas. La función legitimista del positivismo en pro de la restauración política, y de una reacción antiliberal después de 1848/49, se ha manifestado nítidamente a través del Derecho del Estado. Carl-Friedrich von Gerber ha hablado de una manera muy clara de la garantía segura de lo política-mente existente, como finalidad de una forma positivista-constructiva de tratar el Derecho del Estado. También para determinados autores como Heinrich-Albert Zachariae, Robert von Mohl y Johann-Gaspar Bluntschli, el <<método jurídico>> es tanto expresión como instrumento de una determinada posición respecto a los contenidos. Después de 1870, esta posición consistía, sobre todo, en blindar contra toda posible crítica la forma monárquico-conservadora de entender el Estado, la política antiliberal y, en general, la situación política y social. Así, como también manifestara paul Laband, no pueden surgir cuestiones jurídicas pendientes. Cada nuevo problema ya ha sido resuelto por el sistema. Las lagunas en la regulación expresa –más exactamente las lagunas normativas– deberán colmarse por necesidad seudojurídico-natural mediante una construcción jurídi-ca compuesta de principios rectores. No se discuten las circunstancias sociales, porque la Ciencia jurídica las aparta como carentes de interés. La dogmática ha de desembarazarse de la Historia, la Filosofía, la Política y la Economía, es decir, de todos los <<elementos extrajurídicos>>. Este resultado es la respuesta a la pregunta de partida del positivismo: ¿cómo puede ser la Jurisprudencia una Ciencia autónoma?. Según el mismo, las normas jurídicas no han de tratarse en cuanto relacionadas con las realidades sociales. Se considera suprimido y apartado todo aquello por lo que realmente se necesita y funciona, esto es, la causa de toda actividad jurídica. La <<autonomía científica>> de la Juris-prudencia debía demostrarse a través de su característica de <<proporcionar la base de una deducción jurídica segura>> (Carl-Friedrich von Gerber). Nadie se percataba que con ello solo se abarcaban textos normativos, únicamente datos lingüísticos, pero no normas. La insistencia del positivismo en la materia jurídico-positiva, se estrella, ya de entrada, por su carencia de relación con la realidad, cuando lo que es accesible como <<materia jurídico-positiva>> es únicamente la configuración lingüística de las normas, pero no las propias normas como entes estructurados complejos. Aquello que partía del plantea-miento antijurídico-natural del positivismo filosófico, se vuelve a convertir subreptíciamente en el dudoso Derecho natural burgués, porque el cúmulo de postulados positivistas (unidad, sistema, ausencia de lagunas, ausencia de contradicciones del Derecho) <<está por encima del derecho legislado y del legislador>> (Walter Burckhardt).

La crítica tradicional desde la escuela de la Jurisprudencia libre y de la Jurisprudencia de intereses, no se refería a la aporía fundamental del positivismo, se limitada solo a los detalles. En contra del dogma del carácter integral del sistema jurídico, hacía hincapié en su carácter fragmentario, <<sus contornos

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Friedrich Müller

fluctuantes>>, el <<halo conceptual>> (philipp Heck) de los conceptos jurídicos. A los jueces se les atestiguaba la competencia de colmar las lagunas mediante decisiones valorativas. La tesis del Derecho judicial afecta al posi-tivismo, aunque solo superficialmente. Tiene más bien relación con el hecho de que parece <<subalterna la situación del autómata jurídico dedicado a la mera interpretación del articulado y de los contratos, en el que arriba se echan los hechos además de costas, para que, por abajo, salgan el fallo y los conside-randos>> (Max Weber). Y es que la reivindicación de <<actividad jurídica creativa>> para el juez, incurre inmediatamente en las mismas contradicciones que la concepción de las normas que ya condenaran al fracaso al positivismo. Éste, con su insistencia en la <<positividad>> depurada de la realidad, aceptaba la pérdida de la normatividad jurídica. El ideal metodológico de una Ciencia natural que aún no se consideraba a sí misma como problemática, se trasladaba acríticamente al Derecho, interpretando mal este ente, reposante en sí mismo, y a las normas jurídicas como mandato, como fallo hipotético, como voluntad vacía de objetividad y premisa mayor formalizada de modo lógico-formal. El Derecho y la realidad, la Norma y el segmento normativizado de la realidad <<en sí>> no guardan relación se les opone al rigorismo de la separación neokantiana del << ser>> y <<Deber ser>>, y se pretende que únicamente se encuentren por la vía de una subsunción de los hechos bajo una premisa normativa mayor. Todo ello tiene su origen en que aún se confunden las normas con sus textos. En consecuencia, la metodología tampoco se considera otra cosa distinta del método de la interpretación de formulas lingüísticas. Se entiende metajurídico lo que hubiera de elaborarse fuera del texto normativo. Se pretende que el estudio de las palabras solo lleva a obtener informaciones sobre la <<esencia jurídica>> de, por ejemplo, un instituto jurídico. Sin embargo, la pregunta por la función a desarrollar por la realidad en el Derecho, no se resuelve eliminándola. Para una mirada realista, en cambio, las normas jurídicas se presentan como una estructura compuesta del resultado de la interpretación de datos lingüísticos (programa normativo) y de la cantidad de los datos básicos (ámbito normativo) conformes con el programa normativo; estructura en la cual forman un conjunto objetivo el ordenador y lo ordenado. El texto normativo, por tanto, no constituye una parte conceptual integrante de las normas jurídicas, sino el dato inicial más importante del proceso individual de concreción junto al caso que se trata de resolver jurídicamente.

3 TAREASHoy, el positivismo clásico apenas se defiende ya como posición progra-

mática. Sin embargo, sin ser pregonado, y con algunos errores fundamentales, y un sinnúmero de factores individuales, sigue imperando de manera muy irreflexiva tanto en la práctica jurídica como en las aporías arrastradas de la teoría normativa y metodológica. La escuela de la Jurisprudencia libre, la de la Jurisprudencia de intereses y sociológica, la tópica, la Hermenéutica, la teoría de la integración y otros antipositivismos, se han esforzado en vano por <<superar>> el

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Positivismo

positivismo. Parece más acertado, sin embargo, no quedar en estos esfuerzos de espaldas al positivismo, no perder su estándar de tecnicidad. De lo que se trata es de retomar todo lo que ha suprimido y apartado el positivismo elaborándolo, para que sea capaz de ser generalizado en cuanto a dogmática, metodología y teoría. Los objetivos del positivismo de convertir la Jurisprudencia, a poder ser, en Ciencia, y lograr realizar una dogmática racional, no merecen caer en el olvido en pro de exigencias inferiores respecto a racionalidad y honradez metodológica. La <<superación>> del positivismo de ninguna manera es un fin en sí mismo. En tanto que concepto sistemáticamente postpositivista, la Jurisprudencia estructurante no solo se ha despedido de reducir la Norma a su texto, el orden jurídico positivo a una ficción artificial, la resolución de casos a un proceso lógicamente concluible por medio de un silogismo, sino que, partiendo del trabajo de estructuración de normas jurídicas, ha desarrollado la propuesta de un modelo de teoría y práctica que abarca dogmática, metodología, teoría del derecho y teoría constitucional, y que ya no dejará de ofrecer una adecuada respuesta al positivismo.

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POSITIVISM

ABSTRACTPositivism tried to organize all human knowledge through an accurate methodology, which excluded any kind of metaphysical speculation. From Philosophy to Science, Positivism finally reached Law, especially through legal positivism, which recognizes Law only as the body of laws created in State organs, setting apart axiomatic references inherent to Natual Law and any notion of supraempirical dignity of the juridical phenomenon. Event after Natural Law briefly returned to juridical thought, especially after the Second World War, systematic legal positivism remains as the basic attitude among professionals involved in Law-related affairs. Such behaviour is clearly faulty, as it loses reality as a reference, being restricted to the sheer analysis of the linguistic aspect of principles and rules. On the other hand, however, another theoretical and practical model is proposed, the so-called “Structuring Jurisprudence”, which comprises dogmatics, methodology, Law theory and constitutional theory and which does not reduce Law to legislation, taking into account not only the normative program, but also the normative scope.

Keywords: Positivism. Principles and rules. Methodology. Structuring Jurisprudence.

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les droits et libertes fondAmentAux en frAnce : genese d’une quAlificAtion

Véronique Champeil-Desplats*

RÉSUMÉ

Il s’agit ici d’analyser le caractère « fondamental » de certains droits et libertés et de découvrir les nuances et enjeux de cette qualification. Pour cela, il a fallu parcourir la doctrine, la juris-prudence et le droit positif français.

Mots-clés: Qualification. Fondamental. Droit. Liberté.

Le recours à l’adjectif « fondamental » pour qualifier des droits et libertés s’est profondément développé, en France, ces dix dernières années. Le constat est indéniable au sein des différentes formes de méta-discours juridiques qu’ils soient théoriques, dogmatiques ou tournés vers les prétoires. En revanche, il mérite d’être nuancé s’agissant des discours des producteurs de normes ju-ridiques. En d’autres termes, il existe un décalage sensible entre les discours méta-juridiques souvent séduits par le « chic » des droits fondamentaux, et les discours des acteurs juridiques plus timides et, sans doute, plus prudents à l’égard d’une notion, qui contrairement à d’autres systèmes juridiques, n’est pas d’usage traditionnel en droit positif français.

L’observation suscite plusieurs interrogations. Comment comprendre ce décalage ? Pourquoi des droits et libertés longtemps appréhendés par les catégories de « libertés publiques » ou de « droits de l’homme » l’ont progres-sivement été par celle des « droits fondamentaux » ?, Autrement dit, pourquoi des droits et libertés ont été qualifiés de fondamentaux alors qu’ils ne l’avaient pas été jusqu’à présent?

La première question peut être abordée sous l’angle de l’autonomie des méta-discours sur leur discours-objet. La construction d’un méta-discours exige de ne pas s’en tenir aux mots du langage-objet et, ainsi, de forger des concepts spécifiques qui s’expriment par des termes dont l’usage ne coïncide pas toujours avec celui du langage-objet. L’existence d’un décalage de dé-nomination entre les niveaux de langage est donc un phénomène normal. Aussi, comme le souligne O. Pfersmann1, « la présence des mots «droits fon-damentaux» ne constitue […] pas un test suffisant pour révéler la présence ou l’absence de l’objet droits fondamentaux ». Il est donc possible que certains phénomènes correspondent à un concept « de droits fondamentaux » sans * Professeur à l’Université Paris X – Nanterre.

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Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

être ainsi dénommés dans les discours des acteurs juridiques. Réciproque-ment, certains droits ou libertés peuvent être qualifiés de fondamentaux par le langage-objet sans qu’ils entrent dans un concept prédéterminé de droit fondamental2.

Il reste que le décalage observé concernant les références faites aux droits et libertés fondamentaux appelle des attentions particulières. En effet, bien souvent cette référence intervient dans les méta-discours sans définition explicite et il peut y être procédé au sein d’un même discours dans des sens différents. Une appréciation intuitive de l’adjectif « fondamental » n’est sans doute pas étrangère à cela : ce qui est fondamental n’a pas besoin d’être défini. Chacun présuppose une connaissance partagée de ce qui constitue, « au fond », le fonds commun du fondamental. Le locuteur peut éprouver de l’indécence à devoir spécifier ce qui est fondamental et, l’interlocuteur, à avouer l’ignorer. Des réserves sont alors possibles concernant le degré de contrôle du décalage des références aux droits et libertés fondamentaux dans les méta-discours et les discours juridiques. Le risque encouru par ce décalage incontrôlé est de méconnaître les ressorts et les conceptions propres des références effectuées dans les discours des acteurs juridiques. Aussi, après avoir pris la mesure du décalage entre les méta-discours et les discours juridiques (I), ce contexte d’usages ni homogènes, ni stabilisés rend nécessaire de mettre en évidence la pluralité des conceptions véhiculées par la qualification de « fondamental » afin de confronter leurs mobilisations respectives dans les différents types de discours (II).

Demeure la seconde interrogation : pourquoi des droits et libertés ont été qualifiés de fondamentaux alors qu’ils ne l’avaient pas été jusqu’alors ? Un premier niveau de réponse peut être trouvé sur le terrain de l’évolution idé-ologique et du changement de contexte socio-historique. Comme D. Lochak le rappelle, « les mots ne sont, on le sait, jamais neutres, et il est difficile de faire abstraction des symboles et des connotations qui leur sont attachés. Les ‘droits de l’homme’ renvoient à une tradition, à des idéaux, à des combats politiques […] ; les droits de l’homme ne sont ne sont ni éternels, ni immu-ables »3. Autre époque, autre terminologie, les « droits fondamentaux », en tant qu’ils renvoient à un fondement, à un caractère inhérent et structurel symboliseraient une pacification et une consolidation (illusoires ?) des droits, effaceraient les combats. Aux luttes politiques et collectives pour la recon-naissance des droits de l’homme répondrait l’invocation communautariste4 ou individualiste5 de la garantie d’exercice des droits fondamentaux de la personne devant les prétoires. Un second niveau de réponse peut, dans le cadre d’une décomposition analytique du recours à la qualification du carac-tère fondamental des droits ou libertés, être recherché dans les spécificités des effets et des fonctions de ce recours. Ceux-ci varient selon les types de discours et peuvent offrir une clé de compréhension de l’engouement des uns et de la prudence des autres (III).

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Véronique Champeil-Desplats

I DECALAGE L’expression « droits et libertés fondamentaux » s’est diffusée avec en-

gouement ces quinze dernières années dans les discours méta-juridiques (A). Celle-ci demeure, en revanche, d’usage variable et prudent dans les discours constituant le droit positif (B).

L’ENGOUEMENT POUR LES DROITS FONDAMENTAUX AU SEIN DES DISCOURS META-JURIDIQUES

Bien que tardive, la diffusion de l’adjectif fondamental pour qualifier des droits et libertés dans les discours méta-juridiques ne s’en est pas moins généralisée rapidement. Presque inexistante des articles, manuels ou essais jusqu’au milieu des années 1980, les auteurs adoptant plus volontiers les notions de « droits de l’homme », de « libertés publiques », ou de « droits individuels ou sociaux constitutionnels », la référence à des droits ou libertés fondamen-taux gagne progressivement les discours à la fin des années 1980. Elle connaît une diffusion accélérée à partir du milieu des années 1990. Plusieurs éléments illustrent cette évolution.

Tout d’abord, les traditionnels cours de « Libertés publiques » dispensés en Licence sont progressivement rebaptisés « Libertés Fondamentale ». Pa-rallèlement, depuis l’art. 8 al. 2, 1°) de l’arrêté du 29 janvier 1998, l’épreuve d’exposé-discussion de l’examen d’entrée aux Centres régionaux de formation professionnelle d’avocats est constituée d’un sujet relatif à la protection des libertés et droits fondamentaux. Les titres des ouvrages relatifs à la matière impriment le mouvement, aux récalcitrants de justifier leur résistance6. Puis, l’expression « droits fondamentaux » devient une catégorie éditoriale de clas-sification des articles de doctrine et de la jurisprudence. La revue A.J.D.A., par exemple, y intègre ce qui auparavant apparaissait sous les rubriques autonomes de « libertés publiques », de « convention européenne de sauvegarde droits de l’homme et des libertés fondamentales » ou de « droit des étrangers ». De même, l’expression « droit fondamental » constitue un mot-clé pour atteindre certains arrêts de la Cour de Cassation et du Conseil d’Etat sur leur site respectif de ces juridictions, alors même que les références expresses au caractère fondamental de droits et libertés dans les textes jurisprudentiels restent mesurées (infra). Enfin, les thèses de doctorat dédiées aux aspects les plus divers des droits fondamen-taux abondent depuis la fin des années 1990 ; elles produisent une nouvelle génération de discours sur et, surtout, avec les droits fondamentaux.

Ces références aux droits et libertés fondamentaux sont d’une grande variété. Aux discours initiaux très largement dogmatiques et louangeurs se sont adjoints, de façon plus tardive et moins nombreux que dans d’autres Etats7, des discours théoriques d‘ordre aussi bien descriptif et explicatif de la présence et des fonctions des droits et libertés fondamentaux dans les systèmes juridiques8, qu’évaluatif et critique9.

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Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

LES USAGES VARIABLES ET PRUDENTS DU DROIT POSITIFLe recours à l’adjectif fondamental pour qualifier des droits et libertés

est, en droit positif, plus tardif et moins systématisé que dans les discours méta-juridiques. Contrairement aux Etats qui disposent d’une liste de libertés et droits expressément qualifiés de fondamentaux dans les constitutions (Allemagne, Espagne, Portugal, Brésil…) ou dans des lois (Italie), aucune qualification de ce genre n’existe en droit français. La qualification a émergé au début des années 1990 dans des contextes discursifs variés. Il est possible d’en distinguer cinq.

LES « DROITS FONDAMENTAUX » ET LA CONSTITUTION Aucun droit ou liberté n’est qualifié de fondamental dans la Constitution

du 4 octobre 1958, ni dans le préambule de la Constitution du 27 octobre 1946 auquel elle renvoie. En 1946, on peut en rechercher l’explication dans le contex-te de l’élaboration du préambule. Les préoccupations des constituants portent sur la nécessité de compléter la Déclaration de 1789 par des droits collectifs et sociaux. Les droits sont ainsi abordés dans une terminologie classique - droits individuels et droits sociaux - sous la forme de catégories d’inspiration idéolo-gique distincte mais auxquels il s’agit de conférer une consécration juridique semblable. La référence à des « droits fondamentaux » demeurait dès lors très improbable. Non seulement, une telle expression était extrêmement peu usitée à l’époque, mais surtout, les constituants n’avaient aucune raison déterminante pour distinguer l’une des deux catégories et reléguer l’autre à un second rang ou, à l’inverse, les unifier sous le label commun « droits fondamentaux » et gommer ainsi leurs spécificités historiques et idéologiques. En 1958, le choix de se re-porter au préambule de 1946 a donné peu de place à un éventuel changement de dénomination des droits et libertés. Hors l’hexagone, la qualification n’avait d’ailleurs que faiblement gagner le vocabulaire des constitutions nationales (Allemagne) et du droit international (Convention européenne de sauvegarde des Droits de l’Homme et des libertés fondamentales adoptée le 4 novembre 1950, non encore ratifiée à cette époque par la France).

La référence à des droits fondamentaux aurait pu faire son entrée dans notre ordre constitutionnel au moins à deux occasions : la première, en 1990, avec la tentative avortée d’introduire une exception d’inconstitutionnalité pour « les dispositions de loi qui concernent les droits fondamentaux reconnus à toute personne par la Constitution » ; la seconde lors de la dernière révi-sion constitutionnelle du 18 mars 2003. Dans ce dernier cas, les constituants auraient pu se référer à des « droits fondamentaux » pour limiter le pouvoir expérimental accordé aux collectivités territoriales, comme l’avait fait la loi du 17 janvier 2002 relative à la Corse qui exige que la collectivité territoriale de Corse respecte dans la mise en œuvre des pouvoirs qui lui ont été dévolus « l’exercice d’une liberté individuelle ou d’un droit fondamental » (actuel art. L. 4422-16 du Code général des collectivités territoriales). Le texte retenu préfère interdire que l’exercice du pouvoir des collectivités territoriales remette

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Véronique Champeil-Desplats

en cause « les conditions essentielles d’exercice d’une liberté publique ou d’un droit constitutionnellement garanti » (art. 72 et 73 révisés).

Bien que la référence aux droits fondamentaux n’ait pas fait école auprès des constituants, elle a été ensuite effectuée par les soixante sénateurs qui ont demandé au Conseil constitutionnel d’examiner la loi de révision constitution-nelle. Ils faisaient en l’occurrence valoir que « la réserve classiquement fixées en matière de libertés publiques et de droits fondamentaux »10 n’était pas rappelé à l’art. 37-1 nouveau de la Constitution ; celui-ci se borne à préciser que « la loi et le règlement peuvent comporter, pour un objet et une durée limités des dispositions à caractère expérimental ». Se déclarant incompétent pour contrôler les lois de révision constitutionnelle, le Conseil constitutionnel n’a livré aucune considération particulière sur la formule.

LES « DROITS FONDAMENTAUX CONSTITUTIONNELS » DANS LA JURISPRUDENCE DU CONSEIL CONSTITUTIONNEL

Les références à des droits ou libertés fondamentaux se sont effectuées progressivement dans la jurisprudence du Conseil constitutionnel. La première apparaît dans la décision n° 81-132 DC du 16 janvier 1982 sur les nationalisa-tions qui affirme «le caractère fondamental du droit de la propriété». En 1984, est qualifiée de « liberté fondamentale » la liberté de communication des pensées et des opinions (décision n° 84-181 DC, 10 et 11 octobre 1984) puis, en 1994, les libertés d’écrire, d’imprimer et de parler (décision n° 94-345 DC, 29 juillet 1994). Dans le prolongement de ces décisions, le Conseil bâtit une catégorie spécifique de normes constitutionnelles, celle des « droits fondamentaux cons-titutionnels »11, qui se singularise par le fait que les droits et libertés concernés bénéficient d’un régime spécial de protection : le législateur ne peut réduire leur niveau de garantie. Les droits fondamentaux constitutionnels se présentent comme une catégorie ouverte dont le Conseil constitutionnel livre le contenu au cas par cas. Après avoir fait référence aux «libertés et droits fondamentaux de valeur constitutionnelle reconnus à tous ceux qui résident sur le territoire de la République» sans préciser les libertés et droits dont il s’agit (décision n° 89-259 DC du 22 janvier 1990), le Conseil y a inclus les droits de la défense, le droit d’asile, la liberté individuelle et la sûreté, la liberté d’aller et venir, la liberté du mariage, le droit de mener une vie familiale normale, (décision n° 93-325 DC du 13 août 1993), puis les droits et libertés fondamentaux reconnus aux employeurs et aux salariés parmi lesquels figurent notamment, la liberté proclamée par l’art. 4 de la Déclaration de 1789, dont découle « la liberté d’entreprendre, l’égalité devant la loi et les charges publiques, le droit à l’emploi, le droit syndical, ainsi que le droit reconnu aux travailleurs de participer à la détermination collective des conditions de travail et à la gestion des entreprises » (décision du n° 98-401 DC du 10 juin 1998 relative à la loi d’orientation et d’incitation à la réduction du temps de travail).

Cette dernière décision appelle quelques observations. Elle consacre le

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Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

caractère fondamental de droits sociaux et prend ainsi parti dans le débat qui s’était posé, surtout au niveau international, sur la possibilité de conférer un tel caractère à ces droits. Toutefois, la consécration ne semble qu’indirecte. Les droits évoqués sont présentés comme découlant de la liberté proclamée par l’art. 4 de la Déclaration de 1789 seule à bénéficier directement de la qualification de fondamental. En outre, le Conseil consacre des droits et libertés fondamentaux, non pas de toute personne, mais d’employeurs et de salariés. Il cède ainsi à une tendance à la catégorisation des titulaires de ces droits et libertés (infra). Enfin, le Conseil constitutionnel se réfère aux « droits fondamentaux appartenant à toute personne humaine » dans le contexte particulier de la décision exami-nant la constitutionnalité du traité qui institue la Cour pénale internationale (décision n° 98-408 du 22 janvier 1999). L’expression constitue ici une reprise terminologique de la fonction assignée par le traité à cette Cour.

Au total, les références faites par le Conseil constitutionnel aux droits ou libertés fondamentaux sont peu nombreuses au regard, d’une part, de la diffu-sion de la notion dans le vocabulaire des constitutionnalistes et, d‘autre part, des références de plus en plus fréquentes par les auteurs des saisines ces cinq dernières années. Les modalités d‘invocation de l’expression par ces derniers sont diverses. L’invocation peut s’effectuer de façon générique, en contestant en toute généralité les atteintes susceptible d‘être portées « aux droits et libertés fondamentaux »12, de façon particulière pour conférer cette qualité à un droit, comme la dignité13, ou encore de façon catégorielle pour demander la protection des droits fondamentaux de groupes d’individus, comme les contribuables14. Elle peut servir à revendiquer le bénéfice de l’effet cliquet spécifiquement accordé par le Conseil constitutionnel aux « droits et libertés fondamentaux consti-tutionnels »15. Elle peut également servir à justifier une égalité de traitement. Ainsi au cours de la saisine contestant la loi relative à l’élection des conseillers régionaux et des représentants au Parlement européen d’avril 200316, les séna-teurs ont soutenu que « s’agissant d’un droit fondamental, il est tout simplement impossible d’envisager que les femmes soient moins bien traitées en Corse que dans les autres régions françaises ». Autrement dit, les droits fondamentaux doivent être appliqués de façon identique. De même, concernant la loi relative à la sécurité intérieure de mars 2003, les députés mettaient en garde contre le fait que les certains délits ne concerneraient que des prostituées d’un genre « nouveau » de nationalité étrangère et non les prostituées « classiques» de nationalité française. Or, cette situation « se heurte au principe d’égalité aux termes duquel on ne saurait discriminer entre les français et les étrangers lorsque sont en cause les droits et libertés fondamentaux »17.

LA PROCLAMATION LEGISLATIVE DE DROITS ET LIBERTES FONDAMENTAUX

Six lois font jusqu’à ce jour référence à des droits fondamentaux, selon deux modalités. La première consiste à proclamer « fondamental » un droit

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Véronique Champeil-Desplats

précis, le plus souvent dans les premiers articles, exprimant ainsi une volonté politique de conférer au droit en question une distinction particulière. Tel est le cas de la loi du 6 juillet 1989 tendant à améliorer les rapports locatifs en vertu de laquelle « le droit au logement est un droit fondamental » (art. 1er), de la loi du 21 janvier 1995 d’orientation et de programmation relative à la sécurité selon laquelle « la sécurité est droit fondamental, et l’une des conditions de l’exercice des libertés individuelle et collective » (art. 1er), et de la loi du 4 mars 2002 relative aux droits des malades et à la qualité du système de santé qui proclame « le droit fondamental à la protection de la santé doit être mis en œuvre par tous les moyens disponibles au bénéfice de la personne » (art. 3).

La seconde modalité consiste à faire référence à des droits ou libertés fondamentaux de façon générique, c’est-à-dire en tant que dénomination d‘une catégorie d’objets non préalablement identifiés. Les références génériques effec-tuées jusqu’à présent orientent vers des extensions différentes de la catégorie.

En premier lieu, l’art. L. 521-2 Code de Justice administrative issu de loi 30 juin 2000 reformant les procédures d’urgence devant les juridictions administratives prévoit que «le juge des référés peut ordonner toutes mesures nécessaires à la sauvegarde d’une liberté fondamentale…». Saluée quant à l’objectif visé, cette référence n’a pas tardé à susciter des interrogations sur les libertés concernées. Son caractère épineux ou délicat18 tient, d’une part, à ce que la notion de liberté fondamentale ne correspond littéralement à aucune dénomination de catégorie utilisée jusque là par le droit positif et, d’autre part, à ce que le caractère opératoire de la catégorie se révèle étroitement lié à sa signification et son contenu. Comme le souligne les commentateurs des Grands Arrêts de la Jurisprudence Administrative, « une conception trop stricte limiterait » la protection des libertés fondamentales ; « une acception trop large risquerait de dénaturer, voire d’engorger la nouvelle procédure »19. La signification qu’il est invité à donner à l’expression dépend donc moins d’une interprétation littérale, qui s’avère délicate, que d’une interprétation fonctionnelle présidée par des considérations opératoires : il faut protéger les libertés mais, l’efficacité du mécanisme en dépend, sans démesure20.

En deuxième lieu, l’art. L. 4422-16 du Code général des collectivités territoriales issu de la loi du 22 janvier 2002 relative à la Corse prévoit que : « sans préjudice des dispositions qui précèdent, dans le respect de l’art. 21 de la Constitution, et pour la mise en œuvre des compétences qui lui sont dévolues en vertu de la partie législative du présent code, la collectivité territoriale de Corse peut demander à être habilitée par le législateur à fixer des règles adaptées aux spécificités de l’île, sauf lorsque est en cause l’exercice d’une liberté indi-viduelle ou d’un droit fondamental ». De quels droits fondamentaux s’agit-il ? La formulation oriente vers une réponse différente de celle apportée s’agissant de la référence faite à la « liberté fondamentale » à l’art. L. 521-2 du Code de Justice administrative. Tandis que cet article laisse en suspens la question de l’extension de la notion de liberté (inclut-elle ou exclut-elle la notion de droit?),

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Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

la rédaction de l’art. L. 4422-16 du Code général des collectivités territoriales dissocie au moins un type de libertés de la notion de droit fondamental, à savoir les libertés individuelles. Certes, « libertés individuelles » et « droits fonda-mentaux » remplissent une même fonction juridique, et cela est sans doute le plus important au regard de l’objectif visé par l’article. Il n’en demeure pas moins que ces notions sont appelées à désigner des ensembles distincts, ou alors l’art. L. 4422-16 comporte une redondance. Par conséquent, s’il reste possible de se demander si, conceptuellement, le droit fondamental du Code général des collectivités territoriales inclut ou non la notion de liberté (de la même façon que, symétriquement, la notion de liberté fondamentale du Code de Justice ad-ministrative inclurait celle de droit), à s’en tenir à la structure du texte, il existe un type de libertés qu’il n’inclut pas : les libertés individuelles.

Enfin, la dernière référence aux droits fondamentaux est offerte par l’article premier de la loi du 29 juillet 1998 d’orientation relative à la lutte contre les exclusions, selon lequel cette loi « tend à garantir sur l’ensemble du territoire l’accès effectif de tous les droits fondamentaux dans les domaines de l’emploi, du logement, de la protection de la santé, de la justice, de l’éducation, de la formation et de la culture ». Dans ce cas, comme dans les cas précédents, les droits dont il s’agit restent indéfinis. La référence aux droits fondamentaux a toutefois pour singularité de présenter des droits relatifs à des domaines dé-terminés. Elle invite donc à prendre en considération la dimension structurelle de la référence au fondamental (infra).

LA REFERENCE AUX DROITS ET LIBERTES FONDAMENTAUX PAR LES JUGES JUDICIAIRES 21

Il existe une indéniable ascension des références faites à des droits et libertés fondamentaux dans le texte des arrêts et des jugements des juridictions judiciaires. Celle-ci n’est toutefois significative que depuis la toute fin des années 1990, et se trouve bien davantage dans les moyens soulevés par les parties que dans l’argumentation des motivations des juridictions.

Du côté des parties, la qualification de fondamental intervient en s’appuyant sur les termes de textes juridiques, ou en procédant par auto-qualification. Les textes juridiques qui servent le plus fréquemment de support à la qualification sont la Convention européenne de sauvegarde des droits de l’homme et des libertés fondamentales, en particulier en matière de procédure pénale22, et l’art. 1er de la loi du 6 juillet 1989 proclamant le caractère fonda-mental du droit au logement23. En outre, la récente affaire du port du bermuda dans l’entreprise a introduit une référence textuelle inédite car le texte invoqué ne comportait pas de mention expresse à des droits ou libertés fondamentales. Ainsi, pour justifier le caractère fondamental de la liberté de se vêtir à sa guise, le requérant a pris appui sur l’art. L. 120-2 du Code du travail selon lequel « Nul ne peut apporter aux droits des personnes et aux libertés individuelles et collectives de restriction qui ne seraient pas justifiées par la nature de la tâche à

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Véronique Champeil-Desplats

accomplir, ni proportionnées au but recherchés »24. Hormis ces cas, le caractère fondamental d’un droit ou d’un liberté est invoqué spontanément, c’est-à-dire sans référence à un texte précis, ce qui ne saurait surprendre compte tenu du faible nombre de textes consacrant l’expression. L’auto-qualification intervient soit au bénéfice d’un droit ou d’une liberté spécifique de la personne ou du citoyen (liberté de manifestation25, droit de réponse26, droit à la sûreté27, droit au travail28), soit de façon générique (droits fondamentaux de la personne)29, soit encore dans le but de désigner des droits de catégories de personnes : droits fondamentaux des consommateurs30 ou des salariés31.

Il est rare que les juges reprennent à leur compte la qualification invo-quée par les parties exceptées, d’une part, les références faites aux droits et libertés protégés par la Convention Européenne des Droits de l’Homme pour lesquels la qualification de « fondamental » est désormais consacrée (droit à un procès équitable, principe du contradictoire, présomption d’innocence, droit de la défense, respect de la vie privée32), et, d‘autre part, l’intégration de réponses à un renvoi préjudiciel adressé à la Cour de Justice des Communautés Européennes se référant aux « droits fondamentaux comme partie intégrante des principes généraux du droit »33. Dans les autres cas, les références au ca-ractère fondamental de droit ou liberté s’effectuent soit à l’appui d’un texte, soit spontanément. Puisque les textes nationaux n’abondent pas, ces références demeurent exceptionnelles. Elles ont longtemps concerné uniquement le droit au logement, dans des termes qui révèle une faible considération pour la quali-fication de « fondamental ». En effet, d‘un côté, les formations de jugement la reprennent rarement dans leur motivation lorsqu’elle a été invoquée à l’appui de la loi du 6 juillet 1989; de l’autre, lorsqu’elles la reprennent, elles donnent peu satisfaction à la partie qui s’en prévaut34. Un arrêt récent de la Cour de cassation pourrait augurer une évolution en la matière. Jusqu’à présent, la Cour n’avait jamais expressément reconnu le caractère fondamental du droit au logement.35. La troisième chambre civile, le 22 octobre 2003 l’effectue dans un arrêt de cassation partielle. Toutefois, cette qualification n’intervient que sous la forme d‘un obiter dictum, et ne joue aucune fonction particulière au sein des motifs qui ont conduit à la cassation, fondés sur l’absence de contrôle de l’intention des bailleurs délivrant un congé à des locataires36.

Depuis le 28 mai 2003, la Chambre sociale de la Cour de cassation ajoute un nouveau contexte de référence à des libertés fondamentales par les juridic-tions. Si elle ne donne pas satisfaction au requérant sur le fond en estimant que « la liberté de se vêtir à sa guise au temps et au lieu du travail n’entre pas dans la catégorie des libertés fondamentales »37, elle consacre la terminologie que celui-ci avait introduit (supra). Elle augure la formation d’une nouvelle catégorie juridique dont le contenu se précisera très vraisemblablement au cas par cas, à l’instar de l’attitude qu’adopte le Conseil d’Etat à l’égard de la catégorie des libertés fondamentales instituées par l’art. L. 521-2 du Code de Justice administrative (infra).

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Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

A côté de ces rares références faites à l’appui de textes, les formations judiciaires ont fait également usage de l’expression « droits et libertés fonda-mentaux » par auto-qualification. Souvent la référence est générique. Ainsi la Cour d’appel de Paris a pu estimer que le pouvoir de sanction de la Commission des Opérations de Bourse respecte la sauvegarde des droits et libertés fonda-mentales38 et la Cour de cassation que « la possibilité dont dispose les personnes auxquelles l’ordonnance du juge-commissaire doit être notifiée d’offrir un prix supérieur permettant un meilleur apurement du passif » ne porte atteinte « à aucun droit fondamental »39. Plus occasionnellement, les formations judiciaires font référence à des droits plus précis relatifs à certains champs juridiques : droits fondamentaux des familles40, droit fondamental de l’accusé à recourir à recourir à un détective privé pour mettre en cause les accusations portées les parties civiles41, droits fondamentaux du mineur lors de sa garde à vue42.

LA REFERENCE AUX DROITS ET LIBERTES FONDAMENTAUX LES JUGES ADMINISTRATIFS 43

De façon comparable aux juridictions judiciaires, la mention faite à des droits ou libertés fondamentaux est davantage l’œuvre des parties que des formations de jugement. Les parties procèdent parfois par qualification spontanée. Dans ce cas, elles peuvent alléguer la violation de droits et liber-tés fondamentaux de façon générique44, ou qualifier comme tels des droits et libertés spécifiques : droits fondamentaux des administrés au nombre desquels figureraient le droit de propriété, la vie privée, le respect de la dignité humaine, le droit à un procès équitable, la santé45, droit fondamental de la personne à être inscrite sur une liste électorale46, droits et libertés fondamentaux de la personne en matière d’extradition47. Les références aux droits et libertés fondamentaux peuvent également prendre appui sur des textes internationaux (cas fréquent de la Convention Européenne des droits de l’Homme48 et des conventions bi-latérales relatives à l’extradition et à la circulation des personnes49), ou sur des textes nationaux, tout particulièrement depuis l’adoption de la réforme sur les procédures d’urgence instituant le référé-liberté.

Les juridictions évoquent des droits ou libertés fondamentaux soit par auto-qualification, soit à l’appui de textes. Le premier cas est peu fréquent. Le Conseil d’Etat y a procédé jusqu’à présent de façon générique. Ainsi, à l’encontre de l’argumentation d’un requérant qui estimait que le film « Que la vie est amère » portait atteinte à sa personne, le Conseil d’Etat valide l’accord ministériel concernant le visa d’exploitation de film au motif qu’il n’y décèle aucune atteinte des « droits fondamentaux des personnes mises en causes dans le film »50.). Ou encore, le Conseil d’Etat a pu estimer que, contrairement aux allégations des requérants, le système judiciaire des Etats-Unis respecte les droits et libertés fondamentaux de la personne humaine »51. Mais, le plus souvent, le Conseil d’Etat se réfère à des droits et libertés fondamentaux en prenant appui sur un texte.

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Véronique Champeil-Desplats

Pendant longtemps, ce texte avait exclusivement une origine interna-tionale : la Convention Européenne des droits de l’Homme, des conventions bilatérales ou, beaucoup plus occasionnellement, l’article 6§2 du Traité de l’Union Européenne. Depuis l’institution du référé-liberté par la loi du 30 juin 2000 (précité), les références aux libertés fondamentales sont beaucoup plus nombreuses. La détermination des libertés fondamentales s’effectue au cas par cas, et s’exprime aussi bien dans le langage des libertés (liberté d’aller et venir52) que des droits (droit de propriété53, droit d’asile54). Les juges des référés ne se montrent liés ni par les qualifications de « droits fondamentaux constitution-nels » opérées par le Conseil constitutionnel -bien que, sur ce point, aucune di-vergence n’ait pu être relevée –, ni par les qualifications législatives55. Le Conseil d’Etat a ainsi refusé par deux fois de considérer comme liberté fondamentale des droits qualifiés de fondamentaux par le législateur. Ainsi, alors que la loi du 21 janvier 1995 affirme que « la sécurité est droit fondamental », le Conseil d’Etat a, pour sa part, estimé que « si l’autorité a pour obligation d’assurer la sécurité publique, la méconnaissance de cette obligation ne constitue pas par elle-même une atteinte grave à une liberté fondamentale »56. La Haute juridiction ne con-damne pas totalement le caractère fondamental de la sécurité publique mais le relativise, en considérant que la méconnaissance de la sécurité publique n’est pas en « elle-même » contraire à une liberté fondamentale.

La qualification du droit au logement offre un exemple plus intéressant encore. Alors que la loi du 6 juillet 1989 proclame solennellement le caractère fondamental de ce droit, le Conseil d’Etat prend appui sur la jurisprudence du Conseil constitutionnel pour considérer qu’au niveau constitutionnel, ce droit n’est pas un droit mais un simple objectif en vertu duquel toute personne a la possibilité d’accéder à un logement décent. Puis en se référant à son statut inter-national, il tire la conséquence que le droit au logement n’est pas « une liberté fondamentale au sens de l’art. L. 521-2 du code de justice administrative »57. D’un point de vue matériel, il existe une contradiction patente entre la loi de 1989 et l’interprétation donnée à l’art. L. 521-2 du code de justice adminis-trative par le Conseil d’Etat. La contradiction ne peut être surmontée qu’en adoptant certains présupposés. Le raisonnement du Conseil d’Etat se fonde sur une indépendance stricte des législations : ce qui est un droit fondamental pour le législateur de 1989, n’est pas une liberté fondamentale pour celui de 2000. Toutefois, s’il établit une étanchéité « horizontale » des qualifications législatives, le juge des référés consacre une perméabilité « verticale » selon laquelle ce qui n’est pas garanti au plus haut niveau de la hiérarchie des normes ne l’est pas non plus au plus bas. Le droit au logement n’existe pas constitutionnellement, il n’a aucun effet direct en droit international, donc il n’est pas fondamental au niveau législatif. Le Conseil d‘Etat livre ainsi des éléments d’identification de ce qu’il considère être « fondamental » au sens du Code de Justice administrative : un statut constitutionnel et un degré de protection internationale.

Cette ordonnance du Conseil d’Etat permet de tirer des conséquences précieuses sur le caractère fondamental des droits et libertés au sein des dis-

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Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

cours juridiques français. Celui-ci est relatif, contextuel, polysémique et pluri-fonctionnel. Si ce qui est fondamental pour le législateur de juillet 1989, ne l’est pas pour le Conseil d’Etat de mai 2002 interprétant une loi de juin 2000, l’explication tient à ce que les qualifications ont des significations et des fonctions différentes. A l’approche essentiellement axiologique du législateur de 1989 répond la prévalence de considérations formelles de la part du Conseil d’Etat.

II PLURALITE DES CONCEPTIONS Si le caractère fondamental prêté à certains droits ou libertés devient

peu à peu explicité dans les discours méta-juridiques58, nombre de références s’effectuent encore de façon péremptoire. On peut toutefois dégager quatre types essentiels de conceptions de la fondamentalité : les conceptions axiologique, formelle, structurelle et commune59. Ces conceptions ne sont ni entièrement compatibles entre elles, ni, à l’inverse, exclusives les unes des autres : certains usages peuvent en mêler plusieurs ou prendre appui sur l’une d’entre elle pour revendiquer les attributs et conséquences d’une autre. Enfin, chacune d’elles se retrouve à intensité variable dans les discours méta-juridiques et juridiques.

LA CONCEPTION AXIOLOGIQUEQualifier un droit ou une liberté de « fondamental » le ou la situe parmi

les valeurs inhérentes à l’humanité60, à «l’homme en tant qu’il est homme»61, qu’il soit citoyen ou étranger. La fondamentalité est ici liée à l’universalité : les droits fondamentaux appartiennent et bénéficient à tous sinon ils ne sont pas fondamentaux. A ce titre, ils s’opposent tout particulièrement aux pouvoirs publics qui doivent les respecter (dimension libérale négative) et assurer leur garantie (dimension solidaire positive).

Cette conception axiologique est extrêmement répandue dans les dis-cours dogmatiques, théoriques ainsi que dans celui des parties au procès. Elle est davantage mobilisée dans un registre prescriptif que descriptif. Il s’agit en effet moins de constater que cette conception préside la reconnaissance du caractère fondamental de certains droits et libertés dans un ordre juridique particulier que de préconiser que ceux auxquels les auteurs ou les parties sont attachés, bénéficient d’une statut particulier en droit positif. Cette approche présente une dimension jusnaturaliste en vertu de laquelle « la fondamentalité ne s’épuise dans aucune norme formelle »62. Ce qui est fondamental selon une approche axiologique l’est donc indépendamment de sa reconnaissance comme tel dans le droit positif.

Bien que très peu explicites sur les motifs de leurs références aux droits et libertés fondamentaux, les discours juridiques véhiculent également fréquem-ment cette conception. Celle-ci sous-tend les débats législatifs qui ont conduit à proclamer le caractère fondamental du droit au logement (la loi du 6 juillet

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1989), du droit à la protection de la santé (loi du 4 mars 2002) ou les plaidoyers des parties en faveur de tel ou tel droit. Elle ne semble pas étrangère au refus de la Chambre sociale de la Cour de cassation de consacrer la liberté de se vêtir à sa guise dans l’entreprise. Ce refus laisse présager, qu’implicitement, pour la Cour de cassation, il existe des libertés qui occupent une place importante dans une échelle présupposée de valeur pour lesquelles il ne peut y avoir de restriction d’exercice, et des libertés subalternes ou accessoires pour lesquelles des arrangements et des compromis sont permis.

LA CONCEPTION FORMELLE Des droits et libertés peuvent être qualifiés de «fondamentaux» en con-

sidération de leur position dans la hiérarchie des normes ou au sein des sources du droit. Pour certains, le caractère fondamental de droits et libertés est lié à leur inscription dans un droit naturel63. Toutefois, le plus souvent, les auteurs cantonnent leur appréciation au droit positif. Les droits fondamentaux sont alors ceux qui expriment des normes du plus haut degré d’un système juridique ou qui font l’objet de mécanismes de garanties spéciales : majorité qualifiée pour les modifier ou les supprimer, voire impossibilité de les abolir, bénéfice de recours spéciaux, interdiction d’abaisser leur niveau de garantie ou d’effectivité.

La conception formelle de la fondamentalité se développe principalement sur un mode descriptif : les auteurs apprécient la qualité d’un droit ou d’une liberté à partir d’un critère préétabli d’identification des droits fondamentaux, fondé sur le degré et les mécanismes de protection. Toutefois, cette concep-tion n’interdit pas toute considération normative ou prescriptive, notamment lorsqu’elle est liée à une dimension axiologique. Parce que les auteurs ou les parties sont attachés à certains droits et les situent parmi les valeurs fondatrices de l’humanité, ceux-ci doivent être reconnus et garantis par les normes les plus solennelles de la hiérarchie d’un ordre juridique.

Qu’elle soit utilisée de façon descriptive ou prescriptive, la conception formelle des droits fondamentaux est très présente dans les discours méta-juridiques. Beaucoup d’auteurs désignent sous le label « droits fondamentaux » tous les droits et libertés de valeur constitutionnelle (tendance des «constitu-tionnalistes »)64. Certains y incluent, non sans discussion, des droits ou libertés issus de textes internationaux ou législatifs (tendances des privatistes et des auteurs de manuels autrefois baptisés « libertés publiques »). En revanche, la conception formelle est très épisodiquement mobilisée dans les moyens de par-ties au procès et se manifeste de façon variée en droit positif. La jurisprudence du Conseil constitutionnel invite à distinguer parmi les droits constitutionnels ceux qui sont fondamentaux, de ceux qui ne le sont pas, sinon la dénomi-nation de la catégorie des « droits fondamentaux constitutionnels » serait redondante. « Droits fondamentaux » et « droits de valeur constitutionnelle » ne sont donc pas synonymes65 dans les décisions du Conseil (supra). Du côté des juges judiciaires, la conception formelle apparaît essentiellement lors des

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références aux droits et libertés issues de la Convention Européenne des Droits de l’Homme Convention. Les formations judiciaires ne semblent pas avoir en-core eu l’occasion d’invoquer d’autres critères formels (statut constitutionnel, protection internationale hors Convention) pour justifier le caractère fonda-mental d’un droit. La situation diffère quelque peu s’agissant des juridictions administratives en raison du développement de la jurisprudence en matière de référé-liberté. Pour le moment, les juges administratifs n’ont refusé la qualité de liberté fondamentale à aucun droit ou liberté de valeur constitutionnelle. Par ailleurs, au regard de la motivation de l’Ordonnance précitée du 3 mai 2002, Association de réinsertion sociale du Limousin et autres, le statut constitutionnel et international d’un droit ou d’une liberté apparaît comme un élément impor-tant d’appréciation. En revanche, la proclamation législative du droit n’est pas déterminante (supra).

LA CONCEPTION STRUCTURELLELes droits et libertés fondamentaux sont ici ceux sans lesquels un système

juridique, un sous-système ou un élément du système perdrait ou changerait substantiellement son identité, sa cohérence ou son mode de fonctionne-ment. Les droits ou libertés fondamentaux sont constitutifs et au fondement d’un système ou d’un ensemble organisé. Ils sont ce sur quoi tout est édifié et de quoi tout est dérivé ou déduit. Ils sont fondateurs de l’existence et de la validité des éléments ou des normes qui leur sont rattachés66, mais ce qui est fon damental ne repose sur rien67. Cette conception suppose que les énoncés qualifiés de fondamentaux soient formulés avec un certain degré de généralité et d’abstraction. Elle ne peut, par ailleurs, totalement faire l’économie d’une appréciation du contenu du droit ou de la liberté considéré(e). Tandis que l’approche formelle déployée de façon descriptive permet une qualification sans égard à ce que prescrit matériellement la norme (il suffit, par exemple, que le droit soit constitutionnel pour être fondamental), la conception structurelle suppose une détermination de la signification sémantique du droit ou de la liberté pour conclure à son caractère fondateur.

Lorsque le point de référence est l’homme, la conception structurelle du « fondamental » entretient un lien étroit avec la conception axiologique. Toutefois, ces deux conceptions peuvent aussi se dissocier. D’un côté, il n’est en effet pas nécessaire de prendre appui sur des valeurs pour décrire ou évaluer la qualité structurellement fondamentale d’un droit ou d’une liberté : cette qualité s’apprécie relativement à un système ou un ensemble organisé. D’un autre côté, la conception structurelle est susceptible de heurter l’exigence d’universalité dont est porteuse la conception axiologique, car elle peut être associée à des catégorisations de sujets de droits et libertés et être relative à certains domaines d’un système juridique68.

Cette tendance à invoquer des droits et libertés fondamentaux propres à des catégories de sujets est assez forte au sein des moyens soulevés par les parties

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: droits fondamentaux des consommateurs, des fonctionnaires, des salariés, des mineurs, des accusés et prévenus, des contribuables69. Les discours formant le droit positif n’y échappent pas même si les références demeurent plus marginales. Le Conseil constitutionnel s’est ainsi référé aux droits et libertés fondamentaux reconnus aux employeurs et aux salariés (Décision précitée du 10 juin 1998) ; la Cour d’appel de Douai a reconnu l’existence de droits fondamentaux des famil-les70. Particularisant non plus les sujets de droit mais des domaines juridiques, la loi du 29 juillet 1998 d’orientation relative à la lutte contre les exclusions se donne pour objectif de garantir « les droits fondamentaux dans les domaines de l’emploi, du logement, de la protection de la santé, de la justice, de l’éducation, de la formation et de la culture ».

On peut objecter que ces catégorisations ne produisent une réelle contra-diction entre la conception axiologique et la conception structurelle que si on les conçoit de manière ontologique, c’est-à-dire si on les rapporte à une qualité intrinsèque et non à un état contingent. Les deux conceptions ne s’opposent plus si l’on admet que le sujet de droit reste la personne humaine en tant qu’elle se situe dans un contexte ou dans un ensemble de relations (état et non qualité) susceptibles d’être éprouvés par tous.

LA CONCEPTION COMMUNE Le caractère fondamental des droits et liberté est ici dérivé des similitudes

de qualification ou de statut dans plusieurs systèmes juridiques nationaux ou interna tionaux, par exemple ceux de l’Espagne, la France, l’Allemagne ou du Conseil de l’Europe. L’approche de la fondamentalité s’inscrit dans une démarche constructive : elle prend essentiellement appui sur les deux dernières conceptions précédentes des droits fondamentaux pour extraire des systèmes juridiques un ensemble de valeurs communes constitutif d’un jus commune européen ou univer-sel. Cette conception est en France essentiellement développée dans les discours méta-juridiques, tout particulièrement dans le cadre de la promotion des droits et libertés au sein de l’Union71. Les juges peuvent être conduits à l’adopter pour identifier les droits fondamentaux mentionnés à l’art. 6§2 du traité de l’Union, définis comme étant ceux « garantis par la convention européenne de sauvegar-de des droits de l’homme et des libertés fondamentales » (…) et résultant « des traditions constitutionnelles communes aux Etats membres, en tant que principes généraux du droit communautaire ». Toutefois on connaît les réticences des juges français pour développer une jurisprudence autonome en la matière.

La présentation de ces conceptions conduit à formuler quelques observa-tions conclusives sur les spécificités de ce que peuvent désigner ou conceptualiser les termes « droits fondamentaux » par rapport à la terminologie classique des « droits de l’homme » ou des « libertés publiques ». Ces spécificités apparaissent différemment selon les conceptions. S’agissant de la conception axiologique, la principale distinction concerne l’étendue des droits visés. La catégorie des droits fondamentaux peut apparaître plus restrictive que celles des droits de l’homme

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Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

ou des libertés publiques car elle invite à procéder à un tri au sein ces dernières. Pour le reste, les catégories de « droits de l’homme » et « droits fondamentaux » reposent sur une même approche « externe » ou « hétéro-intégrative »72 des droits et libertés : elles désignent des droits et libertés qui sont supposés appar-tenir aux êtres humains indépendamment de leur reconnaissance par le droit positif ; celui-ci n’est qu’un réceptacle, certes précieux, permettant d’obtenir une garantie particulière des droits. On rejoint ici l’analyse idéologique des choix terminologiques suggérée par D. Lochak (supra) selon laquelle les « droits de l’homme » se sont battis par combat politique : le combat des « droits de l’homme » est d’obtenir l’intégration et la garantie, dans les systèmes juridiques, de « droits » attribués aux êtres humains, indépendamment de ces systèmes, au nom de valeurs libérales ou jusnaturalistes.

A l’inverse les trois dernières conceptions de la fondamentalité creusent la différence entre les « droits de l’homme » et les « droits fondamentaux » car ces derniers s’apprécient par rapport à des systèmes ou des sous-systèmes posés. Ils s’inscrivent dans une approche interne ou « auto-intégrative » des droits. Ils ne s’agit pas d’intégrer de nouveaux droits mais d’octroyer des garanties spécifiques à des droits déjà reconnus par les systèmes juridiques, puisque c’est cette recon-naissance préalable qui est à la base de l’appréciation du caractère fondamental. L’appréciation du « fondamental » s’effectue au sein de droits qui bénéficient déjà d’un statut juridique consolidé. En ce sens, le combat s’est déplacé.

PARTICULARITES DES FONCTIONS ET DES EFFETS La séduction née d’un registre de discours proposant de revitaliser la

thématique des droits de l’homme et des justifications de l’action publique73 ne saurait suffire pour expliquer de façon précise la variété des contextes et des formes de diffusion de la référence au caractère fondamental des droits et libertés. Les explications peuvent alors être orientées vers la spécificité de la façon dont la référence remplit certaines fonctions et produits certains effets dans les discours juridiques. Trois principaux types d‘effets et de fonctions peuvent être évoqués : la justification d’un régime juridique distinctif, l’octroi et la légitimation d’un pouvoir, la persuasion du bien-fondé de prétentions ou de décisions.

Ces fonctions peuvent opérer séparément ou simultanément, et varient selon les contextes discursifs. Tandis que l’invocation du caractère fondamental des droits et libertés se situe principalement dans des registres de persuasion et de justification d’un régime distinctif pour les avocats, elle revêt cette dernière fonction éventuellement associée à celle de légitimation ou d’octroi d’un pouvoir pour les organes juridictionnels. L’arrêt de la Cour de cassation de juin 2003 se référant à la notion de liberté fondamentale pour refuser cette qualité au port du bermuda dans l’entreprise l’illustre particulièrement. Enfin, ces fonctions et effets ne marquent pas forcément une instrumentalisation de la qualification. Ils opèrent que l’on croit ou non sincèrement au caractère fondamental des droits et libertés, quel que soit le sens donné à l’adjectif.

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DROITS FONDAMENTAUX ET JUSTIFICATION D’UN REGIME DISTINCTIF

De la même manière que la création de toute catégorie juridique est destinée à le produire, celle des droits et libertés fondamentaux a un effet « dis-criminatoire » : la référence nouvelle et spécifique à de tels droits et libertés invite à les distinguer d’autres qui deviennent « ordinaires » ou « accessoires ». Cette distinction permet alors de justifier des différences de régime entre les droits et libertés, ce qui peut paraître problématique d’un point de vue libéral, d’autant plus que la détermination de ce qui est fondamental reste mouvant74 et grandement lié à l’appréciation discrétionnaire des juges. Les régimes distinctifs sont de plusieurs sortes.

L’IDENTITE DE TRAITEMENT DES DROITS FONDAMENTAUXLa référence au caractère fondamental de certains droits et libertés peut,

tout d’abord, permettre d’exiger, en leur seul bénéfice, une identité de traitement, et donc, a contrario, d’en priver les droits et libertés non fondamentaux. L’art. L. 4422-16 du Code général des collectivités territoriales en fournit une première illustration en refusant que la collectivité territoriale de Corse fixe des règles adaptées aux spécificités de l’île lorsque est en cause l’exercice d’une liberté individuelle ou d’un droit fondamental. Une visée semblable préside également la saisine contre la loi relative à l’élection des conseillers régionaux et des repré-sentants au Parlement européen d’avril 2003 qui relève que s’agissant d’un droit fondamental, il est impossible que « les femmes soient moins bien traitées en Corse qu’ailleurs » 75; a contrario, on peut l’admettre des droits non fondamentaux. Il en va de même lorsque les auteurs de la saisine contre la loi de sécurité intérieure de mars 2003 conteste la distinction entre prostituées « classiques, évidemment de nationalité française » et les prostituées d’un genre « nouveaux de nationalité étrangère ». Une telle distinction heurte le « principe d’égalité aux termes duquel on ne saurait discriminer entre les français et les étrangers lorsque sont en cause les droits et libertés fondamentaux »76. A contrario, pour les droits et libertés non fondamentaux, une discrimination est envisageable.

LA RESERVE DE PROTECTIONS SPECIFIQUESLa réserve de protection spécifique peut consister en l’institution de

procédures juridictionnelles destinées à protéger exclusivement des droits ou libertés considérés comme fondamentaux. Cette fonction constitue l’objet même de l’art. L. 521-2 Code de Justice administrative qui prévoit que «le juge des référés peut ordonner toutes mesures nécessaires à la sauvegarde d’une liberté fondamentale…». Le Conseil d’Etat n’a pas manqué de le rappeler en évoquant dans l’arrêt du 18 janvier 2001 précité, Commune de Venelles, les « libertés fondamentales auxquelles le législateur a entendu accorder une protection juridictionnelle particulière ».

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Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

L’invocation du caractère fondamental des droits et libertés peut éga-lement soutenir une demande de protection exceptionnelle lorsque ces droits et libertés sont en cause. Les parties ont ainsi pu demander à la Chambre cri-minelle de la Cour de cassation d’exonérer de toute responsabilité pénale «la dénonciation par une déléguée du personnel de faits susceptibles de recevoir une qualification pénale lorsqu’ils portent atteinte aux droits fondamentaux des salariés et spécialement le harcèlement sexuel»77.

Enfin, l’invocation du caractère fondamental peut avoir pour fonction de protéger spécifiquement des droits et libertés contre les restrictions apportées à leur niveau de garantie. Cette fonction préside nettement la création de la catégorie des « droits constitutionnels fondamentaux » à laquelle le Conseil constitutionnel accorde le bénéfice de « l’effet cliquet ». Si, selon le Conseil, les droits fondamentaux ne sont pas absolus parce qu’ils peuvent être conciliés avec d’autres principes constitutionnels et avec l’ordre public, le législateur ne saurait intervenir que pour les rendre plus effectifs78. Les droits et libertés constitutionnels ordinaires peuvent, à l’inverse, voir leur degré de protection affaibli.

Cette fonction ressort également de l’évocation de libertés fondamen-tales par la chambre sociale de la Cour de cassation dans son arrêt précité du 28 mai 2003. La Chambre sociale établit une distinction entre des libertés fon-damentales et de libertés accessoires ou ordinaires qui lui permet de réserver des protections spécifiques au bénéfice des premières. Tandis que les libertés ordinaires se trouvent soumises à un contrôle de la proportionnalité et doivent être conciliées avec les intérêts de l’entreprise, les libertés fondamentales bé-néficient d’une protection absolue79. La Cour de cassation paraît ici s’écarter du Conseil constitutionnel ou des juges administratifs qui admettent, pour le premier, que les droits fondamentaux constitutionnels, pour les seconds que « les libertés fondamentales » fassent l’objet d’une conciliation80. En outre, l’atteinte à une liberté fondamentale « permettra d’ordonner la réintégration des salariés »81 et donc de prononcer la nullité du licenciement, ce qui n’est pas le cas pour les libertés ordinaires.

LA JUSTIFICATION D’UNE PRIORITE DE MISE EN ŒUVRELa référence au caractère fondamental de certains droits et libertés permet

de justifier une priorité de mise en œuvre, notamment au sein des politiques publiques. Cela ressort par exemple des travaux préparatoires de la loi du 4 mars 2002 au bénéfice du droit de la santé - « le droit fondamental à la protection de la santé doit être mis en œuvre par tous les moyens disponibles au bénéfice de la personne » - ainsi que de ceux de la loi du 21 janvier 1995 d’orientation et de programmation relative à la sécurité et collectives proclamant la sécurité comme « droit fondamental ».

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DROITS FONDAMENTAUX ET POUVOIRLa référence au caractère fondamental de droits et libertés peut s’analyser

à la fois comme une manifestation, un accroissement et une légitimation d’un pouvoir normatif.

Elle manifeste tout d’abord un pouvoir normatif comme toute création de catégorie juridique ou toute opération de qualification par un acteur du droit. Quand bien même on refuserait de concevoir l’interprétation comme un pur acte de volonté, on ne peut mésestimer le caractère constructif de la référence à une catégorie qui n’apparaît explicitement ni, s’agissant du Conseil constitutionnel, dans la Constitution, ni, s’agissant de la Cour de cassation dans l’art. L. 120-2 du Code travail. De même, qualifier tel droit ou telle liberté de fondamental et, inversement refuser cette qualité à d’autres, ne constitue rien de moins que l’expression d’un pouvoir d’appréciation.

Produire une catégorie nouvelle de droit ou liberté fondamentale est également de nature à octroyer voire, le cas échéant, s’auto-octroyer du pou-voir. Lorsque le législateur fait référence sans précision à des droits ou libertés fondamentaux pourvus d’un régime de protection spécifique, il confère aux interprètes futurs le pouvoir de décider les droits ou libertés à considérer comme tel. Lorsque la catégorie est produite par les instances de type juridictionnel, celles-ci s’octroient le pouvoir d’identifier les droits et libertés en question et d’opposer le régime qu’elle leur assortit. Ainsi, la catégorie des droits et libertés fondamentaux constitutionnels permet au Conseil constitutionnel d’imposer un nouveau régime de protection au bénéfice des droits qu’il qualifie de fonda-mentaux, contre la volonté qu’aurait le Parlement d’en restreindre l’exercice. De même, lorsque la Chambre sociale de la Cour de cassation distingue des libertés fondamentales au sein des libertés individuelles et collectives protégées par l’art. L120-2 du Code du travail, elle s’octroie un pouvoir nouveau de sélec-tion qu’elle impose aux formations juridictionnelles qui lui sont subordonnées ainsi qu’aux employeurs et salariés.

Enfin, la référence au « fondamental » remplit une fonction de légiti-mation du pouvoir qui peut s’apprécier sous deux aspects. En premier lieu, la référence à des droits et libertés fondamentaux s’inscrit dans le cadre d’un rapprochement terminologique avec les principaux ordres juridiques européens et avec la Convention Européenne des Droits de l’Homme. Ceci prend un relief particulier dans le contexte européen d‘harmonisation des systèmes juridi-ques. Ce rapprochement est en effet très précieux notamment pour le Conseil constitutionnel qui peut ainsi se prévaloir de catégories de référence utilisées par des juridictions nationales (Allemagne, Espagne, Portugal) ou européenne dont l’existence a pu susciter plus d’adhésion que lui. Surtout, en second lieu, dans les Etats de droit, s’ériger en protecteur de droits et libertés fondamen-taux constitue un but légitime en soi. Opposer le caractère fondamental de certains droits ou libertés à ceux qui tenteraient d’y porter atteinte renforce inévitablement l’image légitime de gardien des droits et libertés. L’audace de la

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Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

production de catégories juridiques nouvelles se trouve justifiée par l’appel à des valeurs suprêmes et objectives, constitutives du « Pacte social », dont le juge se présente comme que le relais, le garant et le serviteur. Les droits fondamentaux légitiment un pouvoir qui ne vient pas de celui qui l’exerce, mais d’ailleurs. Ils perpétuent l’idée selon laquelle « veritas non auctoritas facit jus »82. Cette vérité ne provient plus seulement d’un ordre de valeurs extérieures au droit comme cela serait le cas d’un point de vue strictement axiologique ; elle s’appuie aussi sur les hiérarchies établies à l’intérieur même des systèmes juridiques (approche formelle, structurelle, commune).

L’EFFET RHETORIQUE DE LA REFERENCE AU FONDAMENTALS’il apparaît que la référence au caractère fondamental de droits et li-

bertés remplit d’indéniables fonctions de justification et légitimation, on peut s’interroger sur les raisons de cette aptitude. Pourquoi l’appel au « fondamental » est-il susceptible de persuader ou d’emporter la conviction ? Il semble que la force rhétorique du qualificatif est qu’il opère sur le double registre de valeurs supposées partagées et du fondement ultime. Ce qui est fondamental n’a pas besoin d’être justifié ni expliqué83. La qualification est donc auto-justificative ; elle arrête un cadre commun de discussion et de débats au-delà duquel il n’est plus nécessaire d’aller, ni même, implicitement, possible d‘aller. Ainsi, invoqué de façon péremptoire, l’appel au fondamental fait office d’argument de clôture des débats et d’argument d’autorité : il n’existe (encore) rien de plus fonda-mental que le fondamental .

Il n’est alors pas étonnant que l’invocation du « fondamental » émerge tout particulièrement dans les situations de controverses et de revendications de prétention. Les argumentaires des parties au procès comportent de plus en plus fréquemment de références, péremptoires, au caractère fondamental de droits et libertés, en comptant sur l’effet d’annonce et d’autorité propre à cette qualification. En effet, dans les contextes de controverses, les acteurs sont contraints de faire appel à des formulations qui font référence à des or-dres de grandeurs plus élevés que leurs contradicteurs. L’enjeu devient alors de trouver des méta-arguments qui emportent la conviction sans sortir du champ d’argumentation acceptable par les autres acteurs du système juridique. L’appel au « fondamental » prend place dans cette logique ascensionnelle de l’argumentation84. Lorsque la qualification est consacrée par un producteur de norme juridique, elle permet de modifier le statut des droits en cause (niveau de protection, priorité d’application….), sans nécessairement leur conférer une valeur supérieure dans la hiérarchie des normes. Le Conseil constitutionnel, on le sait, ne confère pas aux droits fondamentaux constitutionnels une valeur hiérarchique supérieure, ni n’interdit que ceux-ci soient conciliés avec des droits constitutionnels « ordinaires ». La seule exigence à respecter est que le processus de conciliation ne conduise pas à réduire le niveau de garantie d’exercice des droits fondamentaux. De même, si la Chambre sociale de la Cour de cassation

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dans l’arrêt précité du 28 mai 2003 semble s’opposer au Conseil constitutionnel en exemptant du contrôle de proportionnalité les libertés fondamentales, elle ne confère pas, formellement, à celles-ci une valeur juridique supérieure aux libertés ordinaires.

Pour conclure, il semble que les fonctions et les effets de la référence à l’adjectif fondamental pour qualifier certains droits et libertés fournissent des facteurs explicatifs de leur diffusion, mais portent également en germe les bornes de celle-ci. Que l’on croit sincèrement à la qualité fondamentale des droits et libertés ou qu’on l’instrumentalise, et quelle que soit la signification qu’on attribue à l’adjectif, le caractère opératoire de son invocation reste lié à un usage modéré et contrôlé supposant la préservation d’une réserve conséquente de droits et libertés ordinaires. En cela, cette qualification peut, d’un point de vue libéral, être aussi bien promue que critiquée. Elle peut être saluée car elle renforce la protection des certains droits et libertés ; elle peut être décriée car ce surcroît de protection se réalise aux détriments d’autres droits et libertés, au terme d’une sélection délicate à justifier.

Ainsi, pour parodier un adage célèbre cher aux fiscalistes, « trop de fondamental tue le fondamental ». L’affirmation vaut certes pour beaucoup de qualifications mais elle se manifeste de façon toute particulière pour l’adjectif « fondamental ». Toutefois, elle mérite quelques nuances selon les effets et les fonctions envisagées, ainsi que les types de discours dans lesquels l’adjectif est mobilisé.

Concernant, tout d‘abord, la justification d’un régime spécifique, si la qualification de fondamental s’ouvre à tous les droits, on peut se réjouir d’un niveau de protection renforcé, mais la qualification ne remplit plus sa fonction de sélection. Lorsqu’elle justifie une priorité, la qualification généralisée devient absurde : tous les droits ne peuvent être prioritaires. Ensuite, un surcroît de qualification réduit aussi nombre d’effets relatifs au pouvoir. Si tous les droits et libertés sont fondamentaux, cette référence ne manifeste, ni n’octroie aucun pouvoir nouveau ; elle épuise sa fonction. En revanche, le pouvoir continue d’opérer à l’égard des acteurs auxquels les droits et libertés fondamentaux parti-culiers sont opposés. De même, l’effet de légitimation peut résister à l’extension de la qualification car celui-ci repose essentiellement sur l’adhésion à des valeurs. Il importe peu (et il peut même paraître préférable) que ses valeurs soient très étendues ; la seule limite proviendrait d’un effet de banalisation d’une invocation répétée des arguments légitimes. Enfin, les effets attendus d’un usage rhétorique de la qualification de fondamental présentent le risque d’être atténués au fur et à mesure que le nombre de droits et libertés qui en bénéficient s’accroît et que les références se multiplient. Si tout est fondamental, l’invocation de l’adjectif ne produit plus d‘effet spécifique.

La préservation de la majeure partie des effets et des fonctions liés à l’invocation du caractère « fondamental » des droits et libertés exige de résister à ses charmes. A défaut, il deviendrait nécessaire de quitter l’ordre du fondamental

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Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

et d’en appeler à un nouveau superlatif ou adjectif exprimant la dimension du « plus fondamental que fondamental »85. La référence au caractère fondamental des droits et libertés s’analyse alors comme la trace historique d’un déplacement terminologique du vocabulaire juridique résultant de la capacité d’un adjectif à exprimer des valeurs dominantes d‘un moment (sans doute long), et de répondre aux ressorts et aux contraintes de l’argumentation juridique.

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2 Le « droit au logement » offre un bon exemple des décalages possibles entre les méta-discours et les discours-objet. Ce droit se trouve dans la situation paradoxale d’être l’un des premiers et rares à avoir été expressément qualifiés de « fondamental » par le législateur (art. 1 de la loi du 6 juillet 1989), et, pourtant, de se voir refuser cette qualité par le Conseil d’Etat, au motif que le droit au logement n’a ni valeur constitutionnelle - constitutionnellement, il n’existe qu’un « objectif » d‘accès à un logement décent -, ni de protection suffisante en droit international. (Conseil d’Etat, 3 mai 2002, Association de réinsertion sociale du Limousin et autres, A.J.D.A., 2002, n° 11, p. 818). Par conséquent, si ce droit peut être considéré comme fondamental d‘un point de vue axiologique ou structurel en faisant valoir qu’il conditionne la mise en œuvre d’autres droits comme la santé ou l’accès à l’éducation, en revanche, il ne peut l’être d’un point de vue formel que si l’on adopte une conception large de la notion de « droit fondamental » qui inclut les droits à simple statut légal. Or cela est l’objet de débats. Une conception restrictive, adoptée en l’occurrence par le Conseil d‘Etat, réservant la qualité de droits fondamentaux à ceux de valeur constitutionnelle ou bénéficiant de garanties internationales particulières exclut le droit au logement. Un arrêt récent de la Cour de cassation renforce les divergences d’appréciation sur ce droit puisque, après avoir visé la loi, la Cour affirme explicitement pour la première fois, sous la forme d‘un obiter dictum, sa qualité de droit fondamental sans autre justification toutefois que le visa effectué à la loi, Cass. civ. 3ème, 22 octobre 2003, req. 02-14702 : « Vu l’article 15-I, ensemble les articles 1er et 2 de la loi du 6 juillet 1989 - Attendu que, lorsque le bailleur donne congé à son locataire, ce congé doit être justifié soit par sa décision de reprendre ou de vendre le logement, soit par un motif légitime et sérieux ; que le droit au logement est un droit fondamental ; que les dispositions d’ordre public de la loi s’appliquent aux locations de locaux à usage d’habitation principale ou à usage mixte professionnel et d’habitation principale ».

3 D. Lochak, Les droits de l’homme, Editions La Découverte, collection Repères, 2002, p. 6. Sur l’historicité des droits de l’homme, voir également, N. Bobbio, L’età dei diritti, Einaudi, 1990.

4 Voir par exemple, A. Troianiello, « Les droits fondamentaux fossoyeurs du constitutionnalisme ? », Débats, n° 124, mars-avril 2003, p. 58. Selon l’auteur « alors que les droits de l’homme et, dans leur sillage les libertés

R E V I S T A O P I N I Ã O J U R Í D I C A 257

Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

publiques véhiculaient un imaginaire collectif, un projet politique auquel tous pouvaient souscrire, les droits fondamentaux font saillir les intérêts contradictoires et les dissensions inhérents à toute société ».

5 On peut interpréter en ce sens l’analyse d’I. Meyrat sur le recours à la catégorie des droits fondamentaux en droit du travail. I. Meyrat, « Droits fondamentaux et droit du travail : réflexions autour d’une pro-blématique ambivalente », Droit Ouvrier, juillet 2002, p. 343. L’auteur fait valoir que « l’invocation des droits fondamentaux vise moins l’obtention ou la consécration de droits sociaux nouveaux au profit des travailleurs que la garantie du respect de la personne au travail face aux pratiques de flexibilisation des conditions d’emploi de la main d’œuvre » (p. 345) ; elle ajoute plus loin « Dans un contexte ou l’on est pressé d‘abandonner ‘les rassurantes catégories grâces auxquelles le droit social a construit sa description du monde’, il convient de partir à la quête d’autres repères normatifs. Les droits fondamentaux sont-ils aptes à assumer cette fonction ? On peut en douter ».

6 Voir D. Lochak, op. cit, p. 5 ; P. Wachsmann, Libertés publiques, Dalloz, 3ème édition, 2000, p. 3. Les raisons des choix de chaque auteur diffèrent. D. Lochak préfère « les droits de l’homme » en hommage aux com-bats politiques dont ils marquent l’héritage ; par ailleurs, l’expression « droits fondamentaux » introduit une distinction peu saisissable entre les droits ainsi qualifiés et ceux qui ne le sont pas. P. Wachsmann écarte l’intitulé de « Libertés fondamentales » au profit de celui de « Libertés publiques » car ce premier anticipe « le développement de la justice constitutionnelle » et « laisse dans l’ombre tous les droits ne bénéficiant pas (ou pas encore) de la constitutionnalisation. Les ‘droits fondamentaux’ ne constituent donc qu’une partie des libertés publiques ».

7 Voir notamment le numéro spécial dédié à la discussion italienne de la théorie des droits fondamentaux de L. Ferrajoli, International Journal for the semiotics of Law, vol. 14, n° 1, 2001 et l’ouvrage L. Ferrajoli, Diritti fondamentali. Un dibattito teorico, Editori Laterza, 2001. Voir, en Allemagne, l’ouvrage de R. Alexy, theorie der Grundrechte, publié en 1986 et traduit en espagnol par E. Garzon Valdés, teoria de los derechos fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales, 1997 ; cf en Espagne, G. Peces-Barba, Curso de derechos fundamentales. teoria general, Eudema, 1991.

8 Voir par exemple E. Picard, « L’émergence des droits fondamentaux en France », in Les droits fondamentaux : une nouvelle catégorie juridique ?, A.J.D.A., 1998, n° spécial, p. 6 ; O. Pfersmann, op. cit., pp. 97 et s.

9 Voir notamment A. Troianiello, « Les droits fondamentaux fossoyeurs du constitutionnalisme ? », op.cit ; I. Meyrat, « Droits fondamentaux et droit du travail : réflexions autour d’une problématique ambivalente », Droit Ouvrier, op. cit.

10 Saisine du 19 mars 2003, www.conseil-constitutionnel.fr. Toutes les références faites aux décisions du Conseil constitutionnel, aux saisines et aux conclusions du secrétariat général du gouvernement sont accessibles sur ce site.

11 Voir V. Champeil-Desplats, « La notion de droit ‘fondamental’ et le droit constitutionnel fran çais », D., 1995, chr. 323 ; J. Favre, B. Tardivel, « Recherches sur la catégorie jurisprudentielle de ‘libertés et droits fondamentaux de valeur constitutionnelle ‘ », R.D.p., n° 5, 2000, p. 1420.

12 Voir par exemple les saisines précitées relatives à la loi sur la sécurité intérieure de mars 2003 ou à la loi constitutionnelle sur la décentralisation de mars 2003

13 Saisine précitée contre la loi relative à la diversité de l’habitat14 Les droits fondamentaux des contribuables ont été invoqués non par les auteurs de saisine mais par le

secrétariat général du gouvernement (27 décembre 1999) à propos de la loi de finances rectificative pour 1999.

15 Saisine des députés du 13 décembre 1994 qui invoque le caractère fondamental de la dignité de la per-sonne humaine contre la loi relative à la diversité de l’habitat de janvier 1995 (décision n° 94-359, 19 janvier 1995).

16 Saisine du 3 avril 2003.17 Saisine des députés du 19 février 2003. 18 Voir les conclusions L. Touvet, sous CE 18 janvier 2001, Commune de Venelles et CE 19 janvier 2001,

Confédération nationale des radios libres, R.F.D.A., 2001, (2), p. 378 au cours desquelles le commissaire du gouvernement reconnaît que « la notion de liberté fondamental inscrite à l’art. L. 521-2 du code est une des plus délicates de celles issues de la loi du 30 juin 2000 ».

19 Dalloz, 13ème édition, 2001, p. 87720 Pour l’interprétation des juges des référés, voir infra. 21 Les conclusions suivantes sont tirées à partir d’une recherche systématique des occurrences « droit(s) »,

« liberté(s) », « fondamental(e)(s) », « fondamentaux » sur le site « Légifrance ». 22 Voir par exemple Cass. Crim. 22 janvier 2002, req. 01-87452 ; Cass. Crim. 19 mars 2002, req. 01-82598

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Véronique Champeil-Desplats

23 Cour d’appel d’Aix-en-Provence, 20 septembre 2001, req. n° 01-01833 ; Cass. civ. 3, 2 octobre 2002, req. 01-00589; Cass. Civ. 3, 19 mars 2003, req. n° 01-03730.

24 Cass. Soc. 28 mai 2003, D., jur. 2718, commentaire F. Guiomard ; P. Lokiec, « Tenue correcte exigée . Des limites de la liberté de se vêtir à sa guise », Droit social, 2004, p. 132. Un tel usage de l’art. L. 120-2 avait été suggéré par J.-M. Verdier dans un article portant « Sur la protection spécifique des droits fondamen-taux en droit du travail. En marge de Cass. Soc. 10 juillet 2001, SPPTERP c./EDF… », Droit social, 2001, p. 1038. L’auteur estimait qu’ « il y a donc là pour les juges une occasion à saisir : exploiter les notions de ‘droits de personnes’ et de ‘libertés individuelles ou collectives’, c’est-à-dire de droits fondamentaux, pour attacher à cette qualification, dès qu’elle peut être retenue pour un droit lésé, l’application de la sanction civile de la nullité ».

25 Cass. Crim., 3 avril 2001, req. 00-86515. 26 Cass. Civ. 2ème, 14 décembre 2000, req. 98-22427.27 Cass. Crim., 7 juin 2000, req. 00-81791.28 Cass. Crim., 26 mars 2002, req. 02-80211.29 Cass. Crim., 15 juin 2000, req. 99-50030.30 Cass. Crim., 23 oct. 2001, req. 00-97385.31 Cass. Crim. 22 mai 2002, req. 99-46306.32 Par exemple Cass. Crim., 22 janvier 2002, req. 01-87452 ; Cass. Crim. 19 mars 2002, req. 01-8259833 Cass. Com., 7 mars 2000, req. 98-30389.34 Cour d’appel d’Aix-en-Provence, 20 septembre 2001, req. 01-01833. Le droit au logement est un droit

fondamental au terme de la loi de 1989, mais il ne justifie pas les squats : « Les occupants sans titres ne peuvent se prévaloir du droit au logement dès lors que, bien qu’étant un droit fondamental, il ne peut dispenser ses titulaires des règles posées pour son exercice dans l’intérêt collectif… »

35 Cass. Civ. 3ème, 2 oct. 2002, req. 01-00589 : le droit fondamental au logement est invoqué, en vain pour que Mme Y, femme, malade, à faible ressources et solitaire, mais causant des troubles excessifs de voisinages, ne soit pas congédiée ; Cass. Civ. 3ème, 19 mars 2003, req. 01-03730, à propos d’un étranger qui estimait faire l’objet d’une discrimination après le rejet de sa demande d’accès à un logement.

36 Cass. civ. 3ème, 22 octobre 2003, req. 02-14702, voir supra note 2.37 Arrêt précité.38 Cour d’Appel de Paris, 7 mars 2000, req. 1999/15862.39 Cass. Com., 20 mars 2001, req. 98-14125. 40 Cour d’appel de Douai, 19 septembre 2000, req. 2000-3585.41 Cass. Crim., 25 juillet 2001, req. 01-83400.42 Cass. Crim., 23 octobre 2002, req. 02-85147.43 Les conclusions suivantes sont tirées à partir d’une recherche systématique des occurrences « droit(s) »,

« liberté(s) », « fondamental(e)(s) », « fondamentaux » sur le site « Légifrance ». 44 Cour administrative d’Appel de Lyon 14 juin 2001, Mme Chalabi, req. 99LY02010. La requérante conteste

son éventuelle extradition en raison de « l’atteinte aux droits fondamentaux » dont elle pourrait être la victime dans son pays d‘origine.

45 Cour administrative d‘appel de Bordeaux, 14 février 2002, Mme Doucède et Mlle Missonie, req. 01BX02441

46 Conseil d’Etat, 20 mai 1997, M. Bonansea, req. 96-LYO167647 Conseil d’Etat, 27 octobre 1989, M. picabea Burunza, req. n° 107711; Conseil d’Etat, 10 mars 1989, M.

Aldazabal Goizueta, n° 9722648 Voir parmi de très nombreux exemples, Conseil d’Etat, 10 mars 1989, M. Aldazabal Goizueta, précité.49 Par exemple, Conseil d’Etat, 10 novembre 1997, Mme Kagni, req. n° 172400 (invocation des accords sur

les droits fondamentaux des nationaux et sur la circulation des personnes passés les 1er janvier 1974 et 17 juin 1978 entre la République française et la République populaire du Congo).

50 Conseil d’Etat, 9 mai 1990, M. de Bénouville, req. n° 7368151 Conseil d’Etat, 6 novembre 2000, M. nivette, req. n° 21477752 Conseil d’Etat, 9 janvier 2001, Deperthes, A.J.D.A., 2001, p. 58953 Conseil d’Etat, 23 mars 2001, Lidl, rec. 15454 Conseil d’Etat, 12 janvier 2001, Hyacinthe, A.J.D.A., p. 58955 Pour une étude concernant la difficulté d’établir des critères d’identification, voir G. Glénard, « Les critères

d’identification d’une liberté fondamentale au sens de l’art. L.521-12 du Code de justice administrative », A.J.D.A., 2003, n°38, p. 2008

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Les droits et libertés fondamentaux en France: genèse d’une qualification

56 Conseil d’Etat, 20 juillet 2001, Commune de Mandelieu-La-napoule, req. 23619657 Conseil d’Etat, 3 mai 2002, Association de réinsertion sociale du Limousin et autres, A.J.D.A., 2002, n° 11,

p. 81858 Voir par exemple, E. Picard, op. cit., O. Pfersmann, op. cit. ; I. Meyrat, Droits fondamentaux et droit du

travail, thèse, Paris X-Nanterre, 1998 ; A. Lyon-Caen, I. Vacarie, Droits fondamentaux et droit du tra-vail, Mélanges Verdier, Dalloz, 2001, p. 421 ou concernant le droit particulier de l’aide juridictionnelle, G. Marchesini, Droit à l’aide juridictionnelle. Réflexions sur l’effectivité d’un droit fondamental, R.R.J., 2003-1, p. 77

59 Pour des développements complémentaires sur ces conceptions, voir V. Champeil-Desplats, op. cit. 60 Au sujet du droit à l’environnement et à l’existence, voir M. Dejeant-Pons, « L’insertion du droit de

l’homme à l’environnement dans les systèmes régionaux de protection des droits de l’homme », Revue Universelle des Droits de l’Homme, 30 novembre 1991, p. 461 : « il ne semble pas contestable que le droit à l’environnement soit un des droits de l’homme majeur du XXIè siècle, dans la mesure où l’humanité se voit menacée dans le plus fondamental de ses droits, celui à l’existence ».

61 R. Goguel, “Objet et portée de la protection des droits fondamentaux”, Cours constitutionnelles et droits fondamentaux, Aix-Marseille, Economica, 1982, p. 236

62 E. Picard, op. cit., p. 1063 A propos du droit de propriété, C. Mouly, « La propriété, droit fondamental », Droits et libertés fondamen-

taux, Paris, Dalloz, 1994, p. 19564 Sur ce point, très caractéristiques sont les manuels de L. Favoreu et alii. Droit des libertés fondamentales, Dalloz,

2000 et de M. Mathieu, M. Verpeaux, Contentieux constitutionnel des droits fondamentaux, L.G.D.J. , 200265 V. Champeil-Desplats, op. cit. ; J. Favre, B. Tardivel, op. cit.66 Voir P. Picard, op. cit., p. 37 : « Les droits fondamentaux sont fondateurs de ce que nous connaissons

déjà, l’Etat de droit », p. 37. 67 R. Guastini, “I principî di diritto”, Il diritto dei nuovi mondi, atti del Convegno promosso dall’Istituto di Diritto

Privato delle Facoltà di Giurisprudenza, Genova, 5-7 novembre 1992, Padova, CEDAM, 1994, p. 19568 Voir A. Troianiello qui dénie même toute prétention universaliste à la notion de droit fondamental. Il

estime que « le communautarisme et les droits fondamentaux (…) sont en définitive les produits dérivés du même phénomènes», op. cit., pp. 64 et s.

69 Références récitées.70 Arrêt précité.71 Voir par exemple, M. Delmas-Marty, pour un droit commun, Seuil 199472 Selon la terminologie de N. Bobbio concernant les conceptions des principes généraux du droit, Contributi

ad un dizionario giuridico, Torino, Giappichelli, 1994, p. 26673 Voir A. Lyon-Caen, V. Champeil-Desplats (ed.), services publics et droits fondamentaux dans la construction

européenne, Dalloz, Coll. Thèmes et commentaires, 2001. 74 D. Lochak, Les droits de l’homme, op. cit., p. 575 Précitée.76 Précitée.77 Cass. Crim., 3 avril 2002, req. n° 01-8673078 Décision 84-181 DC, 10 et 11 octobre 1984 ; décision 93-325 DC, 13 août 1993 ; décision 94-345 DC,

29 juillet 1994. Voir V. Champeil-Desplats, op. cit.79 Voir F. Guiomard, op. cit. ; P. Lokiec, op. cit.80 Tribunal administratif de Châlon-en-Champagne, 28 janvier 2004, M. Ahmed B. contre Office public d’HLM

de saint-Dizier, l’A.J.D.A., 2004, n° 5, p. 237. Tout en reconnaissant le caractère fondamental de la liberté de culte et l’atteinte grave que constitue le refus d’une autorisation d’absence par l’employeur pour la pratiquer, le tribunal relève que l’octroi de cette autorisation doit être compatible, et donc conciliée, avec les nécessités de fonctionnement normal du service public. « Le refus d’autorisation d’absence pour se rendre à la mosquée, fondé sur les règles d’organisation définies dans l’intérêt du service public, n’est dès lors, pas manifestement illégal ». Solution confirmée en appel par ordonnance du Conseil d’Etat, 16 février 2004, M. Ahmed B., n° 264314, www.ajda.fr

81 F. Guiomard, op. cit., p. 272182 Voir en ce sens, A. Troianiello, op. cit.83 Illustre parfaitement ces effets attendus de l’invocation du caractère fondamental des droits et libertés, la

conclusion de J.-M. Verdier, dans son article « Sur la protection spécifique des droits fondamentaux en droit du travail. En marge de Cass. Soc. 10 juillet 2001, SPPTERP c./EDF… », op. cit., p. 1038. L’auteur

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Véronique Champeil-Desplats

fait ainsi valoir que « La qualification ‘fondamentaliste’ justifierait à elle seule l’annulation des actes ou mesures contraires ».

84 Parmi de nombreux exemples, peut être relevée la présentation par les avocats du Club de l’Horloge du droit de réponse comme droit fondamental ; général et absolu afin de répondre à l’affirmation selon laquelle figureraient au sein de ce Club des membres de l’extrême droite, Cass. Civ. 2, 14 décembre 2000, précité.

85 Procède peut-être déjà d’une telle démarche l’arrêt de la Chambre criminelle de la Cour de cassation qui fait allusion en matière de procédure pénale « aux droits les plus fondamentaux de Philippe X… », Cass. Crim., 25 sept. 2002, req. n° 02-84738.

O S D I R E I T O S E L I B E R D A D E S FUNDAMENTAIS NA FRANÇA : GÊNESE DE UMA QUALIFICAÇÃO

RESUMOTrata-se de artigo acerca da qualificação de “funda-mental” atribuída a determinados direitos e liberdades. Percorre-se a doutrina, a jurisprudência e o direito posi-tivo franceses na busca da justificativa de tal adjetivo.

Palavras-chaves: Qualificação. Fundamental. Direito. Liberté.

FUNDAMENTAL RIGHTS AND LIBERTIES IN FRANCE: ORIGINS OF A QUALIFICATION

ABSTRACTThis paper examines the qualification of “fundamental” assigned to certain rights and liberties. For explaining the birth of such qualification, the author resorts to doctrine, case law and French positive law.

Keywords: Qualification. Fundamental. Right. Liberty.

R E V I S T A O P I N I Ã O J U R Í D I C A 261

reflexões filosóficAs do direito: resenhA do livro “A constituição como simulAcro”, de luiz moreirA

Gretha Leite Maia*

O professor Luiz Moreira publicou, pela editora Lumen Juris, livro inti-tulado A Constituição como simulacro, obra resultante da pulsante formação filosófica de um estudioso do Direito, graduado pela UFC, Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais e Doutor em Direito também pela Universidade Federal de Minas Gerais. Trata-se de leitura obrigatória pela sua coragem e ousadia intelectual.

Luiz Moreira alinha-se, com este livro, com os pensadores deste início de milênio que mantêm uma postura de perplexidade diante dos dilemas do Homem e da precariedade das respostas propostas pela modernidade ou, como diz o autor, pela sociedade da ciência e da técnica. Sua leitura é mais um alerta de que a esfera normativa está esvaziada de fundamentação filosófica, ética e política. Já na introdução, temos que a negativa da modernidade em aceitar a dimensão simbólica, a transcendência, confunde em nós a clássica divisão do mundo natural e do mundo cultural, pondo em marcha uma dominação totalizante fundada na recusa da concepção de direitos universais – Direitos do Homem. A sociedade moderna se nos apresenta então em sua busca pela fragmentação e segmentação, aliada a uma busca pela homogeneidade, o que alimenta a cultura da intolerância com o que não reconhecemos como semelhante.

Pontuando desde o início o tratamento epistemológico que permeia todo o texto, Luiz Moreira nos introduz na gênese do conceito – instrumento para o logos/conhecimento – como sendo o resultado derivado da captura, pelo homem, do tempo cronológico (o movimento, objeto de investigação da física), para domá-lo e torná-lo tempo histórico (sucessão de fatos, objeto cultural). O homem, rebento, cria então um novo mobiliário para o mundo: as normas. É na tentativa de fazer-se um só que está o embuste da modernidade: não é possível ao homem coincidir o que é transcendente com o que é imanente. Assim, a mo-dernidade nos conduz a uma armadilha: a tentativa de associação entre Estado e Direito, ou a pretensão de fazer coincidir o jurídico com o democrático, na clássica designação da fórmula Estado Democrático de Direito. Nos alerta o autor para a necessidade de percorrer o itinerário de formação do Estado moderno, aferindo se a construção das formas jurídicas tem sido realmente o resultado de um processo político de inclusão e reconhecimento, que logrou transformar em cidadãos aqueles que eram súditos1.

Tem lugar então a corajosa proposta do filósofo Luiz Moreira: a afirmação * Mestre em Direito pela UFC. Professora Universitária.

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da deificação da constituição, como meio de nublar as verdadeiras questões de autonomia e liberdade do Homem. A leitura que se segue desconstrói o discurso legitimador da constituição enquanto documento meramente jurídico, uma vez que a premissa para a construção de um documento efetivamente democrático nunca se constituiu: a formação de uma comunidade política, de um corpo social au-tônomo, pois o projeto da modernidade-racionalidade gera a seguinte aporia: em seu compromisso com o homem como unidade produtora, nunca realmente alcançaremos o homem autônomo, sujeito de direitos, plenipotenciário.

Carregando ainda marcas indeléveis dos preceitos religiosos medievos, o homem da racionalidade facilmente converte em dogma todo um conjunto de instituições sociais, que são objetos culturais, criação do homem e, portanto, inapropriáveis numa esfera dogmática – sistema fechado – posto que deve estar sempre sujeito a alterações – num sistema aberto onde floresça a transcendência, o imaginário autônomo. A este fenômeno, no campo do discurso jurídico, corres-ponde a chamada reserva intocável das constituições – vide as cláusulas pétreas e a rigidez no processo de alteração de uma constituição. A constituição então passa a ser uma instância de adoração, substituindo o altar e o trono medievais, como instância de seqüestro de um projeto de autonomia do sujeito.

O capítulo 1 trata do Direito e sua relação com a liberdade, uma vez que na modernidade o direito recebe a incumbência do ordenar as condutas – e ordenar condutas não é outra coisa senão gerar normatividade. Tal tarefa só se concebe se esquecermos que a conduta se orienta por um complexo enorme de orientações: a cultura, o pensamento religioso e a ordem econômica, por exemplo. Merece destaque o item 1.2 deste capítulo – A Ética moderna. Os termos em que são postas as questões do papel do direito, sua relação com o Estado, o modo de introjeção das instituições que modelam o comportamento, são claros e bastante elucidativos das discussões que se seguem. Revela-se en-tão a intimidade do autor com pensadores fundamentais da ética, como Kant, Hegel e, especialmente, Habermas. A seguir, apresenta-se a transformação do Direito através do pensamento de Habermas, num projeto intelectual pontuado pela necessidade de superação do normativismo jurídico, isto é, a negação da concepção de que existe um modelo para o ordenamento jurídico.2

Presente na formação do pensamento de Luiz Moreira, o item 1.5 – normatividade moral e jurídica – tem como aporte teórico as teses de Klaus Gunther que, por meio da distinção entre justificação (esfera da moralidade) e aplicação (esfera da juridicidade) pretende elucidar o problema da normatividade que seja ao mesmo tempo eficaz e legítima. O texto que se segue encerra um interessantíssimo diálogo do autor com Gunther e Habermas acerca de questões de legitimação e normatividade3.

A densidade filosófica que permeia todo o capítulo 1, na discussão da legitimação ou do conteúdo do direito, se mantém no capítulo 2 quando o foco da discussão passa a ser a operacionalização do Direito matriciada na linguagem e na metalinguagem, sendo então uma função conferida ao Direito

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Reflexões filosóficas do Direito: resenha do livro A constituição como simulacro, de Luiz Moreira

a de estabilizador da tensão entre fato e norma, ou seja, o elemento integrador destas duas dimensões do mundo cultural. O Direito se mostra então como sistema legiferante e judicante, dentro de um contexto histórico de formação do estado moderno. Na racionalidade da modernidade, o poder vira institucional (do Rei à Lei). As páginas que se seguem veiculam questões fundamentais para a questão do futuro do Estado. O item que aborda a transcendência, ou seja, a aptidão do Homem para ultrapassar suas limitações por meio da construção de um universo simbólico (instituições imaginárias), constituidor de sentido, é de leitura obrigatória para os iniciantes nas intrincadas discussões de filosofia do Direito.

No capítulo 3, encontrando-se o leitor atento já conduzido pelo fio do pensamento de Luiz Moreira, pressentem-se as razões do autor pela escolha do título da obra ora resenhada: a constituição como simulacro, afirmação suportada pela ausência de um verdadeiro projeto de autonomia do sujeito de direito da modernidade.

Par conceitual que compõe a estrutura jurídica do Estado Democrático de Direito, obrigatoriedade e legitimidade são identificados como os garantidores das relações fundadas na dominação-submissão, uma vez que a normatividade é a proposta da modernidade para justificar o uso do poder pelo Estado. A teoria assume contornos de brincadeira tautológica, expondo a fragilidade do critério: as normas são obrigatórias porque são válidas; são válidas, por sua vez, porque nascem de um processo democrático; como são legitimadas pela origem, devem ser obrigatórias. Para normas válidas e obrigatórias, estrutura-se um aparelho burocrático que garanta a efetividade de tais ordenações, que são as únicas que podem pretender exigibilidade. Sujeito e predicado coincidem, tal como na estranha afirmação de que o povo é o titular – dono – do poder e é o elemento pessoal que sofre este poder. Ou seja, o discurso político da modernidade busca conferir a legitimidade pelo processo legiferante, deslocando a aferição da legi-timidade de qualquer outra instância, tornando aqueles que seriam sujeitos de direito em meros “sofredores” do poder soberano de modo que, como nos diz o autor, a necessária legitimidade para obter vigência converte-se em necessária adesão para obter legitimidade.4 A lógica da legitimidade tal como se apresenta nas teorias políticas contemporâneas depende de uma soberania apenas para se fazer representar: a efetividade do poder soberano limita-se a uma duplicação abstrata na idéia de representação.

O capítulo 3 é o grande fechamento do livro, onde o autor encerra seu pensamento na conclusão da constituição como um simulacro da modernidade. O poder constituinte, identificado como momento máximo do processo civiliza-tório, cultural e organizatório de um povo, último recurso a ser seguido por uma comunidade política que chegou ao clímax de seu amadurecimento associativo, é o conceito nuclear das teorias constitucionais modernas a ser prioritariamente questionado, pois propicia o simulacro da afirmação de fechamento do sistema político – depois deste clímax, capturada esta a autonomia... Nas palavras de

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Luiz Moreira

o simulacro consiste na justificação de um ato fundante que põe a constituição como ato extraordinário de soberania popular, quando o poder constituinte e a assembléia por ele instalada se revestem de caráter ordinário. Por tanto o simulacro é o ato de outorga que uma assembléia dá a si mesma com o propósito de restringir, regular e prescrever os direitos atinentes à soberana manifestação dos sujeitos de direito.5

O autor examina ainda o termo poder constituinte, desdobramento ne-cessário do conceito de poder constituído – simulação de autonomia. O livro conclui, de maneira magistral, revisitando teorias constitucionais dispostas nos diversos manuais de direito constitucional, presentes na formação de nossa atual comunidade acadêmica, provocando discussões que alcançam o embuste conceitual firmado a partir da distinção entre princípios e regras, dialogando Luiz Moreira – à altura – com Alexy e Dworkin.

Trata-se, portanto, de um livro que deve ter seu ingresso saudado pela comunidade acadêmica. Compõe-se de uma crítica muito bem fundamentada à teoria da constituição tal como se apresenta hodiernamente, e de uma proposta de revitalização das múltiplas perspectivas de ordenação, na qual o Direito é um dentre os muitos elementos. Há grandes méritos na obra de Luiz Moreira, mas o maior deles será, talvez, o de trazer para a discussão do Direito, de maneira segura, os temas da filosofia que insistem em importunar a quietude quase apática a que nos conduz a dogmática racional moderna. Leitura obrigatória para os que rumam no sentido da autonomia do Homem como sujeito plenipotenciário.

1 Vide p.132 Vide p.283 Luiz Moreira publicou também, como organizador e em parceria com Jean-Christophe Merle, a

coletânea de artigos Direito e Legitimidade, pela editora Landy, que reúne artigos de Habermas e outros importantes filósofos do Direito da contemporaneidade.

4 Vide p.865 Vide p. 93 e 94.

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o pApel dAs disciplinAs propedêuticAs no ensino jurídico:

desAfios e perspectivAs

EntREVIstA COM ROBERtO FRAGALE FILHO*

por Fayga silveira Bedê**

1) Com a emergência da pós-modernidade, as sociedades têm se tornado hipercomplexificadas, sujeitas a inúmeras variáveis relevantes, em contínua interação, em arranjos que se fazem e se refazem de forma cada vez mais volátil. Como o senhor avalia o papel das disciplinas propedêuticas para o ensino jurídico no contexto pós-moderno?

A formulação da pergunta é contraditória, pois ela articula a carac-terização de uma sociedade pós-moderna, marcada por traços intensos de fragmentação e volatilidade, associados à crescente complexificação da vida, com a atribuição de um papel às disciplinas propedêuticas no âmbito do ensino jurídico. Ora, na medida em que falar em conhecimento propedêutico remete ao seu caráter introdutório, preliminar, preparatório, adjetivar alguns conteú-dos do curso jurídico como propedêuticos significa falar em um saber auxiliar, que alavanca o conhecimento jurídico. Ou seja, estes conteúdos revelam-se acessórios ao “verdadeiro” objeto do conhecimento jurídico. Esse caráter auxi-liar, preparatório para o conhecimento mais completo e aprofundado é, aliás, reforçado pela oferta “intermediária” desses conteúdos. É como se eles consti-tuíssem uma etapa entre o “não-saber” ou o “saber vulgar” e o “saber jurídico”, que seria transmitido quase exclusivamente mediante o estudo da dogmática, cujo objeto diria respeito ao “verdadeiro” Direito. Essa percepção de um saber auxiliar, ao reforçar o caráter disciplinar desse mesmo ensino, termina por fazer pouco caso das possibilidades interdisciplinares presentes em uma oferta mais plural nas faculdades de Direito. Adjetivações à parte, para que servem, então, os conteúdos propedêuticos? Creio que eles são fundamentais para instaurar um diálogo do Direito com outros saberes, para evidenciar os limites das res-

* Roberto Fragale Filho é doutor em Ciência Política pela Université de Montpellier I (1997). Atualmente, é Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF), do Mestrado Profissional em Poder Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) e Juiz do Trabalho Titular da 1ª Vara do Trabalho de São João de Meriti (RJ). Foi Professor Visitante na University of Illinois at Urbana-Champaign (2006) e na Université Paul Valéry (2009 e 2010). É Coordenador Pedagógico da Escola Judicial do TRT-RJ e Presidente do Conselho Nacional das Escolas de Magistratura do Trabalho (CONEMATRA). É membro do conselho editorial do Comparative Labor Law & Policy Journal. Atua na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho, Sociologia Jurídica, Ensino Jurídico e Ensino Superior.

** Doutoranda em Sociologia pela UFC. Mestre em direito pela UFPR. Professora universitária. Editora responsavel pela Revista Opinião Jurídica

Entrevista com Roberto Fragale FIlho

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postas normativas. Enfim, esses conteúdos possibilitam evidenciar o processo de hipercomplexificação mencionado em sua pergunta.

2) Professor Fragale, realizei uma pesquisa qualitativa junto a professores de disciplinas propedêuticas em cursos jurídicos, no Ceará e em outros Estados da Federação. A quase totalidade dos informantes pressentia a necessidade de “legitimar” a disciplina durante as primeiras aulas de um novo curso. O senhor também confirma uma maior predisposição dos alunos quanto às disciplinas “dogmáticas” e uma maior refração da parte deles em relação às propedêuticas? Em caso afirmativo, a que fatores o senhor atribui essa tendência?

Não creio que a necessidade de “legitimação” expressada pela pergunta seja uma exclusividade dos professores dos conteúdos propedêuticos. Penso que ela está presente em toda ação docente, que corresponde a um processo con-tínuo, cujo alcance se estende desde o conteúdo até o próprio docente. Nesse sentido, a legitimação referida por sua pergunta traduz, na verdade, um equívoco de percepção, pois ela é a mais completa tradução de uma tentativa docente de ver seu objeto de estudo ser reconhecido pela comunidade acadêmica como um saber auxiliar, porém legítimo, assim como de não ser visto nas faculdades de direito como um meteco, um intruso nas faculdades de direito. Quanto aos alunos, não vislumbro uma maior predisposição ao conteúdo dogmático, mas, tão somente, uma visão equivocada do que pode ser o conhecimento jurídico. Como disse antes, a percepção do conteúdo interdisciplinar como uma etapa inútil, porém necessária para se chegar ao “verdadeiro” conhecimento é reforçada por essa oferta segmentada e introdutória de outros saberes com pouca ou nenhuma conexão com o universo jurídico. Assim, ao invés da oferta disciplinar contribuir para a ruptura da “visão hegemônica do Direito”, ela termina por reforçá-la. É preciso, portanto, romper com esse padrão de oferta e institucionalizar um consistente diálogo de saberes no interior dos cursos jurídicos. Não se trata, contudo, de reforçar ou instituir uma espécie de babel científica. O diálogo requer método e deve, antes de tudo, explicitar que seu ponto de partida é o mundo do ser, ou seja, como as coisas ocorrem. Estudar o receituário normativo, sem olhar para o mundo, é incentivar o desenvolvimento de um autismo jurídico com o qual não podemos, definitivamente, concordar.

3) Metodologicamente falando, que soluções podem ser empregadas para estetizar o espaço da sala de aula, a fim de capturar a atenção dos alunos, dando às disciplinas propedêuticas um novo papel no imaginário dos nossos alunos?

O papel das disciplinas propedêuticas no ensino jurídico: desafios e perspectivas

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Há algum tempo, contaram-me a história de um professor desesperado com a introdução do e-mail em seu cotidiano docente, argumentando que mal tivera tempo de se adaptar ao fax! Embora engraçada, a história mostra como o tempo vem sendo comprimido pela inovação tecnológica, que não nos possibilita sequer construir um conjunto de experiências passadas que possam informar os processos contemporâneos. Em outras palavras, a velocidade com que a tecnologia vem interferindo com nossas práticas docentes cotidianas é gigantesca e, por conta disso, práticas e experiências sequer consolidadas tornam-se obsoletas em um curtíssimo tempo. O efêmero impõe-se como regra. Assim, o trabalho docente torna-se cada vez mais complexo e desafiador. No âmbito do conteúdo propedêutico, o desafio é ainda mais complicado, pois, além da superação comunicativa, é preciso ainda construir mecanismos de compreen-são em torno de uma gramática totalmente diferente. O que, então, introduzir na sala de aula de sorte a capturar a atenção dos alunos? Não tenho respostas inequívocas, mas creio que um primeiro e fundamental elemento consiste em uma prática de diálogo, em dar voz aos alunos e respeitar sua compreensão dos fatos. Não há um certo e um errado para cada resposta ou comentário. É preciso enfatizar a alteridade, introduzindo uma ampla dimensão de respeito pelo outro. A estética de fomento aqui demandada é, na verdade, uma postura epistemológica, o desenvolvimento seguro de uma prática dialógica, despida de respostas certas ou erradas e pautada por um enorme respeito pelo outro. Como agenda educacional, não parece ser pouco... E não é, mesmo!

4) Temos nos deparado, cada vez mais, com alunos forjados pela era digital, em que o conhecimento é formado num ambiente interativo, multidirecio-nal, compartilhado, dessacralizado, e, portanto, muito mais autônomo do que o modus operandi do ensino jurídico convencional, ainda muito calcado em métodos arcaicos e impregnados de violência simbólica. Que soluções o senhor apontaria para reduzir a incomunicabilidade crescente entre as tradicionais salas de aula da academia jurídica e o ambiente empático, co-munitarista e tribal das redes de conhecimento digital?

O impacto das novas tecnologias da informação e comunicação na sala de aula é imenso. Naturalmente, o trabalho acadêmico é afetado e uma nova rou-pagem é emprestada a velhos problemas. Assim, pode-se indagar, por exemplo, como pensar a autoria individual em um ambiente cada vez mais colaborativo. Muitos estudantes apresentam trabalhos integralmente extraídos da Internet e parecem não ver qualquer problema em tal tipo de prática. É como se, no atual universo 2.0, a autoria coletiva tivesse uma dimensão de não-autoria total, despida de qualquer restrição de uso. Nesse sentido, é preciso recuperar uma dimensão de responsabilidade, fazendo com que o compartilhamento e a

Entrevista com Roberto Fragale FIlho

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interação não se transformem em uma espécie de alforria individual do processo acadêmico. Mas, como ampliar a comunicação? Ora, para além de uma even-tual simplificação da linguagem, creio ser necessário um esforço docente para integrar as novas tecnologias em seu cotidiano. Montar um blog, aliás, não é uma operação tão complicada assim. Difícil é mantê-lo atualizado, repleto de postagens recentes... O uso de outras estratégias comunicativas é também uma boa pista para se pensar o impacto das novas tecnologias. Redes sociais começam a incorporar profissionais acadêmicos e constituem uma importante alavanca para aperfeiçoar a comunicação. Enfim, tecnologicamente, o céu parece ser o limite. Mas, como ele está longe de ser atingido, um bom começo consiste em entender as possibilidades que cada vez mais se fazem disponíveis para a comu-nidade acadêmica e os usos deles q que ela acaba por realizar. Afinal, conhecer nossas práticas – antigas e contemporâneas – é, sem dúvida, o primeiro passo para melhorar o processo comunicativo desenvolvido em nossas salas de aula.

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normAs de publicAção

1 LINHAS DE PESQUISA

Os temas poderão receber abordagens variadas, tanto de natureza mais dogmática, quanto teorética. São admissíveis leituras históricas, políticas, jurídicas, metodológicas e interdisciplinares. É facultado aos autores abordar apenas aspectos específicos no contexto maior da linha de pesquisa escolhida. São elas:

Constituição, Estado e Sociedade1)

Direitos Humanos e Fundamentais2)

Teoria Política e do Direito3)

Estado Democrático de Direito4)

2 DO ARTIGO CIENTÍFICO ( 15 a 30 PÁGINAS)

Elementos pré-textuais:

1 Título e subtítulo (se houver), separado por dois pontos;

2 Nome do autor (e do co-autor, se houver), acompanhado de breve currículo que o qualifique na área de conhecimento do artigo, com a respectiva titulação acadêmica e endereço eletrônico (em nota de rodapé);*

3 Sumário, com a indicação de itens e subitens em que se divide o trabalho;

4 Resumo na língua do texto: sequência de frases concisas e objetivas, e não uma simples enumeração de tópicos, de 150 a 250 palavras, espacejamento entre linhas simples. Seguem-se as palavras-chave, representativas do conteúdo do trabalho, separadas por ponto e finalizadas por ponto (de 3 a 5 palavras).

* A submissão do artigo, sem qualquer menção de autoria, para os pareceristas, ficará a cargo da Editora-responsável.

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Elementos textuais**:

1 Introdução

2 Referencial Teórico

3 Metodologia da Pesquisa

4 Análise dos Resultados (deve conter a análise dos dados obtidos)

5 Conclusão

Elementos pós-textuais:

1 Agradecimento (não é obrigatório)

2 Referências

3 Notas explicativas e notas de fim, em Times Nem Roman 10

2.1 Formatação do artigoO título deve estar centralizado, em negrito e em caixa alta, sendo

escrito em tamanho 14.

Logo abaixo do título do trabalho devem constar o(s) nome(s) completo(s) do autor, do(s) co-autor(es) recuados à direita, acompanhados de breve currículo que os qualifiquem na área de conhecimento do artigo, com a respectiva titulação acadêmica e endereço eletrônico (em nota de rodapé identificada com asterisco).

Exemplo:

TÍTULO DO ARTIGOJoão J. João***

Pedro P. Pedro****

Maria M. Maria*****

O texto deve ser digitado com letra Times New Roman, tamanho 12, usando espaço entrelinhas 1,5 e espaçamento entre parágrafos de 0 pt antes e 06pt depois. O espaço da primeira linha dos parágrafos é de 1cm. As citações de mais de três linhas, as notas de rodapé, as referências e os resumos em vernáculo e em língua estrangeira devem ser digitados em espaço simples.

O formato do papel a ser utilizado, tanto na versão eletrônica quanto na ** Serão dispensados os itens 2, 3 e 4, dos Elementos textuais, caso não tenha havido pesquisa de campo.*** Breve currículo**** Breve currículo***** Breve currículo

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impressa, deve ter formato A4 (210 mm x 297 mm), com as seguintes margens: superior e esquerda - 3,0cm; inferior e direita - 2,0 cm.

O trabalho deve estar obrigatoriamente digitalizado em Word.

2.2 ResumoDeve conter as principais palavras do texto. O resumo deve ter uma

contextualização do tema, ressaltar o objetivo, o método, os resultados e as conclusões. Deve ser composto de uma seqüência de frases concisas, afirmativas e não de numeração de tópicos e deve ter um parágrafo único. O verbo deve ser na voz ativa e na terceira pessoa do singular. O número de palavras do resumo é de 150 a 250 palavras. As Palavras-chave, em número de 3 a 5, devem ser separadas entre si por ponto e finalizadas também por ponto.

2.3 Introdução Deve constar a delimitação do assunto tratado, a problematização, os

objetivos geral e específicos e a justificativa.

2.4 Referencial Teórico O Referencial Teórico é uma revisão da literatura. Consiste em analisar

e citar as obras de autores que escreveram sobre o tema, em seus diversos ângulos. É a pesquisa que é realizada em livros, sites, documentos e artigos. De acordo com o tema poderá ser descrito na forma de tópicos, por exemplo: 2.1, 2.2, 2.3

2.5 Metodologia da PesquisaA metodologia define os procedimentos e instrumentos necessários à

coleta e à análise dos dados. Na metodologia, o autor deve indicar o método científico utilizado, a natureza da pesquisa, o tipo de pesquisa, o universo (população e amostra) e o processo de coleta de dados (instrumentos), quando necessário.

2.6 Análise dos Resultados Deve conter os registros de todos os dados obtidos durante a pesquisa,

bem como a interpretação dos autores do artigo em consonância com o referencial teórico e/ou realidade estudada.

2.7 ConclusãoNão deve ser muito longa e trata de recompor, objetivamente, o resultado

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da pesquisa. A conclusão poderá ser considerada uma espécie de avaliação dos esforços empreendidos na elaboração do trabalho.

2.8 ReferênciasAs referências devem ser constituídas por todas as obras citadas no

artigo e devem ser listadas de acordo com a norma ABNT-NBR-6023/2002, conforme exemplos abaixo:

LivrosALVES, Roque de Brito. Ciência Criminal. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

BANDEIRA, Manuel (Org). Gonçalves Dias: poesia. 11. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1983.

Artigos em periódicosMONTEIRO, Agostinho dos Reis. O pão do direito à educação... Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 24, n. 84, p. 763-789, set. 2003.

O MELHOR de dois mundos. Após, São Paulo, ano 1, p. 24-25, fev. 2003.

Artigos em revistas, jornais etc.MONTEIRO NETO, Armando. Desoneração da folha salarial. Estado de Minas, Belo Horizonte, n. 22.368, p. 9, 26 mar. 2003.

SitesCONY, Carlos Heitor. O frágil lenho. Folha online, São Paulo, 19 jan. 2004. Disponível em: <www.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult505u135.shtml>. Acesso em: 19 jan. 2004.

FREIRE, José Bessa. O patrimônio cultural indígena. In: WELFORT, Francisco; SOUZA, Márcio (Org.). Um olhar sobre a cultura brasileira. Brasília: Ministério da Cultura, 1998. Disponível em: <http: // www.minc.gov.br/textos/olhar/patrimonioindigena>. Acesso em: 20 jan. 2004.

2.9 CitaçõesAs citações deverão ser feitas da seguinte forma (NBR 10520): citações

de até três linhas devem estar contidas entre aspas duplas; as citações de mais de três linhas devem ser destacadas com recuo de 4cm da margem esquerda, em Times New Roman 10, sem aspas.

Para enfatizar trechos da citação, deve-se destacá-los indicando essa alteração com a expressão “grifo nosso” entre parênteses após a chamada da citação ou “grifo do autor”, caso o destaque já faça parte da obre consultada.

A referência da citação será feita em nota de fim, após as referências do texto.

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2.10 Abstract e KeywordsApós as referências, seguem-se as notas de fim; após as notas de fim,

culminando todo o trabalho, deve-se fazer constar o título do artigo, o resumo e as palavras-chave em versão para o inglês, com recuo de 4cm, em espaço simples.

Este número da revista foi composto na fonte GoudyOlSt BT, corpo 11. O miolo foi impresso em papel AP 75 g/m2 e a capa em cartão supremo 250 g/m2.

Impresso pela Gráfica LCR.