revista luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · gerson luis linden professores acir...

184
IGREJA LUTERANA Revista Semestral de Teologia

Upload: vanngoc

Post on 01-Sep-2018

248 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

1

IGREJA LUTERANARevista Semestral de Teologia

Page 2: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

2

DiretorGerson Luis Linden

ProfessoresAcir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,Leopoldo Heimann, Norberto Heine (CAAPP), Paulo Gerhard Pietzsch, PauloProske Weirich, Paulo Wille Buss, Raul Blum, Vilson Scholz

Professores EméritosDonaldo Schüler, Paulo F. Flor

SEMINÁRIOCONCÓRDIA

IGREJA LUTERANAISSN 0103-779XRevista semestral de Teologia publicada em junho e novembro pela Faculdadede Teologia do Seminário Concórdia, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil(IELB), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.

Conselho EditorialPaulo Wille Buss (Editor), Paulo Proske Weirich (Editor Homilético)

Assistência AdministrativaNara Coelho

A Revista Igreja Luterana está indexada em Bibliografia Bíblica Latino-Ameri-cana e Old Testament Abstracts.

Os originais dos artigos serão devolvidos quando acompanhados de envelopecom endereço e selado.

Solicita-se permutaWe request exchangeWir erbitten Austausch

CORRESPONDÊNCIARevista Igreja LuteranaSeminário Concórdia

Caixa Postal 20293001-970 – São Leopoldo/RSTelefone: (0xx)51 3592 9035

e-mail: [email protected]

Page 3: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

3

ARTIGOS

DONDE VEM E O QUE FICA DO BEST-SELLER DE DAN BROWN? 5Vilson Scholz

RÉSTIA NA ESCURIDÃO: UMA ANÁLISE DE Jó 19.23-27 13Lademir Renato Petrich e Acir Raymann

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ: EXPOSIÇÃO 31DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Charles Arand. Trad. Fábio Werner e Clóvis Prunzel

PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA COMPARTILHAR O EVANGELHO 57Trad. Anselmo Ernesto Graff

PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA CRESCIMENTO ESPIRITUAL 63Trad. Anselmo Ernesto Graff

AUXÍLIOS HOMILÉTICOS 73

LIVROS 181

IGREJA LUTERANA

Volume 65 – Novembro de 2006 – Número 2

ÍNDICE

Page 4: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

4

Page 5: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

5

Quanto a O Código da Vinci, de Dan Brown, lançado em 2003,existem vários grupos de leitores e espectadores:

1. Aqueles que leram o livro e, depois, em 2006, viram o filme.Provavelmente gostaram de ambos.

2. Aqueles que, por um motivo ou outro, leram o livro e nãoviram o filme. É o meu caso. Se, como se diz, errar é humano,repetir o erro seria falta de inteligência ou, neste caso, incentivoàquilo que, talvez, não mereça tanto destaque.

3. Existem aqueles que não leram o livro, mas viram o filme. Sãoos filhos da “segunda oralidade”, que preferem ver e ouvir, mas nãotêm muita paciência para ler.

4. Dentre todos esses, muitos foram arrastados pelo fluxo danarrativa e não ligaram nem um pouco para uma possível agendateológica oculta na obra.

5. Outros concordam que o autor pode dizer o que bem lhe derna telha, mas que o grande problema do livro é que o mesmo “nãotem nenhum significado”.1

6. Muitos, especialmente teólogos, “sofreram” a leitura, saben-do que, cedo ou tarde, chegariam naquela parte em que, avisadospor terceiros, teriam que discordar e protestar.

7. Por fim, existem aqueles que não leram o livro nem viram ofilme. Alguns gostaram; outros, nem tanto.

Qualquer que seja o seu caso – e não houve intenção de des-crever todas as possibilidades – acho que, passada, em parte2, acoqueluche do livro e do filme, talvez seja o momento oportuno

DONDE VEM E O QUE FICADO BEST-SELLER DE DAN BROWN?

Vilson Scholz*

*O Rev. Dr. Vilson Scholz é professor de Teologia Exegética (Novo Testamento) no Semi-nário Concórdia e na Ulbra e Consultor de Traduções da Sociedade Bíblica do Brasil.

1 Assim se expressou o eminente Dr. Donaldo Schüler.2 Ao final de 2006, segundo a Revista Veja (Edição 1988, de 27 de dezembro de 2006),o livro continuava em terceiro lugar entre os mais vendidos na categoria de ficção. Estavahavia 130 semanas, ainda que não consecutivas, na lista dos mais vendidos!

ARTIGOS

Page 6: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

6

para refletir sobre o entorno do livro: donde ele vem e aonde querchegar, e, em especial, o que ele ajudou a revelar.

DONDE VEM E AONDE QUER CHEGAR

O livro de Dan Brown não surgiu num vácuo. A rigor, toda e qual-quer obra revela certo grau de intertextualidade. No caso de O Códigoda Vinci, vários analistas apontaram para a influência da obra O SantoGraal e a Linhagem Sagrada, em que Dan Brown, supostamente, seinspirou. Mas existe uma atmosfera ou um ambiente cultural maisamplo, que inclui um componente teológico. Dan Brown é caudatário,também, dos efeitos da assim chamada teologia moderna. Esta nostrouxe, entre outras coisas, a obliteração dos limites do cânone e abusca do Jesus histórico. Desde que se passou a postular, no século18, uma leitura da Bíblia igual à de qualquer outro livro (ou seja, o fimda hermenêutica especial), todos os documentos antigos entraramna fila. Hoje, quando se trata de “reconstruir” uma imagem de Jesus,os Evangelhos gnósticos (alguns mais, outros menos) são vistos comotendo o mesmo valor dos Evangelhos canônicos. Ao mesmo tempo,obras como a de Dan Brown devem muito à assim chamada busca doJesus histórico, que sempre resulta num Jesus diferente e “menosdivino” do que o Jesus dos Evangelhos canônicos.3

Brown entende, equivocadamente, que os Evangelhos canônicosforam promovidos na Igreja e até canonizados porque vendem aimagem de um Jesus divino. Em contrapartida, os Evangelhosgnósticos teriam sido suprimidos porque trazem a imagem de umJesus humano, que até teria sido casado com Maria Madalena.Parece evidente que Brown pouco sabe a respeito dos Evangelhoscanônicos e, pelo que parece, nunca leu um evangelho gnóstico.Tivesse lido os textos gnósticos, teria notado suas propensões aodocetismo – que é tudo menos promoção da humanidade de Jesus!

Afora uma pletora de erros históricos, seria possível afirmar queo texto de Brown é totalmente inocente ou neutro? Ou seria, tam-

3 No dia em que escrevo isto, no início de 2007, a mídia veicula uma matéria intitulada“Papa adverte contra um ‘Jesus modernizado’”. Trata-se de uma reação contra a “apresen-tação de um Jesus moderno, ou melhor, pós-moderno. Um Jesus homem, reduzido asimples mestre de sabedoria e privado de sua divindade”. Para quem não lembra, esseJesus “mestre de sabedoria” foi a grande “redescoberta” do Jesus Seminar, famoso nadécada de 1990. Na visão dos representantes desse grupo de pesquisa, Jesus estavamais para filósofo cínico, pregando uma vida despreocupada (“não vos preocupeis com odia de amanhã”) e o amor ao próximo (o bom samaritano passou pelo crivo e consta entreas “palavras autênticas” de Jesus), do que para Filho de Deus.

Page 7: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

7

bém, um texto teológico? Aparentemente o texto não é teológico.No entanto, é uma obra de teologia popular.4 Sua teologia, ouinterpretação teológica da história da Igreja, é elemento funda-mental que ajuda a explicar seu sucesso. Defende a visão de que ahistória da Igreja é, de fato, a história de uma conspiração, na qualos líderes conseguiram esconder a revelação original, colocandoem lugar dela o seu próprio projeto de poder. Dito de forma direta:a história da Igreja, como tradicionalmente vem sendo ensinada, éuma mentira.

Embora não diga isso com todas as letras, o livro de DanBrown defende a tese de que é nossa tarefa, hoje, desmascararessa conspiração e recuperar o santo graal da revelação origi-nal. Isso não é nada fácil, segundo se argumenta, pois tudo foimuito bem camuflado e quase todos tomam o simulacro pelooriginal. Quase todos, pois sempre houve, e ainda há, algumasalmas iluminadas que conseguiram e conseguem passar a verda-de adiante. Entre eles, o renascentista Leonardo da Vinci. Comoele fez isso? Através do quadro da Última Ceia. No cerne do livrose encontra, portanto, uma interpretação do quadro da ÚltimaCeia.

Segundo Brown, a genialidade de da Vinci está em conseguirretratar a repressão da verdade de tal forma que a verdade repri-mida fica patente a todos os que têm olhos para ver. Que verdadeseria essa?

É a suposta verdade de que o santo graal é uma mulher e queele (ou ela) aparece no quadro da Última Ceia. Leonardo o (ou,melhor, “a”) teria incluído com destaque. Trata-se da figura logo àdireita de Jesus, tradicionalmente identificada com o discípulo ama-do. “Aquela pessoa tinha longos cabelos ruivos ondulados, delica-das mãos entrelaçadas e o peito era levemente arredondado, su-gerindo a presença de seios. Era sem dúvida ... feminina” (OCódigo da Vinci, capítulo 58, p. 230). Aquela é, pois, a figura deMaria Madalena. “A Última Ceia praticamente proclama àquelesque a contemplam que Jesus e Maria Madalena eram um casal”(Ibid., p. 231). Afastando-se um do outro, criam um espaço emforma de V que forma um símbolo representativo do cálice e doútero feminino (p. 232).

DONDE VEM E O QUE FICA DO BEST-SELLER DE DAN BROWN?

4 Francis Watson, “Are There Still Four Gospels?: A Study in Theological Hermeneutics”,in Reading Scripture with the Church: Toward a Hermeneutic for Theological Interpretation(Grand Rapids: Baker Academic, 2006), p. 98.

Page 8: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

8

Há outro detalhe que Brown julga significativo. Pedro inclina-seameaçadoramente na direção de Maria Madalena e passa a mão,como se empunhasse uma faca, diante do pescoço dela (p.235).Portanto, no quadro estariam todos os protagonistas: Jesus, MariaMadalena, e o repressor Pedro, símbolo daqueles que eliminaram ofeminino da vida da Igreja. Afinal, como explica um dos persona-gens de Dan Brown, “Jesus foi o feminista original. Pretendia que ofuturo de sua Igreja ficasse nas mãos de Maria Madalena”. (Brown,capítulo 58, p. 235). Se isto não aconteceu, é porque o supostoprojeto original de Jesus foi seqüestrado pela Igreja antiga, repre-sentada, simbolicamente, no quadro da Última Ceia pelo apóstoloPedro. Com o passar do tempo, a Madalena foi até transformadaem prostituta.5

Tudo isso parece novo, mas ao mesmo tempo não é. Quemconhece leituras feministas dos textos bíblicos sabe que está pi-sando em terreno familiar. Quem já não ouviu dizer que a história éescrita pelos vencedores e que os perdedores foram suprimidos eperderam o direito de falar? Diante disso, os modernos, que reco-nhecem e deploram essa situação, precisam reescrever a história,resgatando aqueles e, principalmente, aquelas que não tiveramchance de se manifestar ao longo dos séculos.

Só que afirmar que Jesus era um feminista é impor um padrão doséculo 21 às evidências do primeiro século.6 E ler aqueles docu-mentos gnósticos como se estivessem preocupados com uma guerrade sexos, é lê-los de forma equivocada. O que está em jogo na-queles textos gnósticos não é tanto quem tem o poder, o homemou a mulher, mas quem recebeu a revelação de Deus e quem pode-ria falar em nome do cristianismo.7

Quem acompanhou esse relato até aqui pode até pensar quetudo que Brown tem em vista é desconstruir. Não é o caso. Eletem, também, algo a propor. Dito de forma direta, ele propõe apauta do paganismo e do hedonismo. Ou, se preferirmos um termomais brando, naturalismo. Numa época “liberada”, a permissividadeque o paganismo oferece é um prato cheio. Num tempo em quemuito se preza a “independência”, ninguém gosta de ouvir que

5 Essa associação de Maria Madalena com prostituição só viria a acontecer em 591,com o papa Gregório, o Grande. Bock, Darrell L. Quebrando o Código da Vinci: Respostasàs perguntas que todos estão fazendo. Osasco: Novo Século Editora, 2004, p. 154.6 Bock, p. 153. Isto não anula o fato de que, em muitos aspectos, a atitude de Jesus paracom as mulheres foi contracultural e antecipou parte daquilo que, namodernidade, se aceita como ponto pacífico.7 Bock, p. 160.

Page 9: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

9

alguém lhe diga em que deva crer. E, como disse G. K. Chesterton,“quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, elas não passama acreditar em nada: elas acreditam em tudo”.8 Segundo MichaelGreen, o livro será esquecido, mas a visão naturalista que incorpo-ra é perene.9

O QUE O LIVRO DE BROWN AJUDOU A REVELAR

Certamente, não é porque propõe essas idéias que o livro deDan Brown vende tanto. É, sem dúvida, uma narrativa que cativa oleitor e se desenvolve num ritmo quase alucinante, recheada desurpresas. Ao mesmo tempo, ajuda a mostrar uma série de coisas,especialmente se levarmos em conta a recepção da obra.

Mostrou que uma teoria de conspiração, especialmente quandoenvolve a Igreja Católica Romana, sempre se mostra plausível ouverossímil. Há quem diga que isto é assim, especialmente, desde oséculo 16.

Mostrou como uma geração que se opõe a tudo que é auto-ritário simpatiza com “rebeldes” gnósticos que se colocam contra oestablishment eclesiástico.

Mostrou que, aparentemente, Nietzsche tinha razão: Não háfatos, apenas interpretações.10 O papel aceita tudo, e cada um dizo que quer dizer.

Mostrou o índice de “sucesso” das autoridades acadêmicasno campo da interpretação bíblica para desfazer propostasinterpretativas distorcidas: zero. Quanto mais os biblistas protes-tavam, mais o livro vendia. E os protestos soavam, por vezes,como tentativas tardias de ainda tentar conter o dique que seajudou a romper.

Revelou também o poder criativo do leitor ou espectador. Aleitura inusitada do quadro de da Vinci é o melhor exemplo disso. Averdade está expressa, literalmente, na margem, não no centro. Aspessoas são levadas a olhar para o espaço vazio que fica entre Jesuse o discípulo amado, retratado à sua direita, e se esquecem de verifi-car o que Leonardo da Vinci de fato conseguiu colocar no seu quadro.

8 Citado por Michael Green, The Books the Church Suppressed: Fiction and Truth in The DaVinci Code (Oxford: Monarch Books, 2006), p. 162.9 Green, p. 177.10 Kevin J. Vanhoozer, “Imprisoned or Free?”, in Reading Scripture with the Church: Toward aHermeneutic for Theological Interpretation (Grand Rapids: Baker Academic, 2006), p.57.

DONDE VEM E O QUE FICA DO BEST-SELLER DE DAN BROWN?

Page 10: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

10

O QUE DAN BROWN NÃO CONSEGUIU ENXERGAR

É raro encontrar análises do quadro da Última Ceia sob a pers-pectiva da exegese do Novo Testamento. Normalmente, o que sedestaca é o caráter renascentista do quadro, que é evidente atodos. Ali aparece uma anacrônica mesa, sem falar que o pintorpediu que todos fizessem pose para a fotografia, ou seja, quetodos se colocassem atrás da mesa, para que ninguém ficasse decostas!11

O quadro retrata o momento em que os discípulos reagem aoanúncio da traição. Em Mateus e Marcos, os discípulos, um após ooutro, se dirigem a Jesus, perguntando: “Porventura, sou eu, Se-nhor?” (Mt 26.22; Mc 14.19). Esses evangelistas também chamama atenção para a tristeza dos discípulos. Em Lucas e João, poroutro lado, os discípulos conversam entre si ou olham uns para osoutros, perguntando quem seria o traidor (Lc 22.23; Jo 13.22). Eem João, embora não em Lucas, o discípulo amado, instigado porPedro, pergunta: “Senhor, quem é?” (Jo 13.25).

Da Vinci harmoniza essas divergências entre os Evangelhoscanônicos, dividindo os apóstolos em quatro grupos de três.12 Noprimeiro grupo, bem à esquerda no quadro, e no terceiro grupo, imedi-atamente à esquerda de Jesus, os apóstolos aparecem olhando paraJesus e perguntando: “Porventura, sou eu”? (Eles são Bartolomeu,Tiago, filho de Alfeu e André, no grupo 1; Tomé, Tiago, filho deZebedeu e Filipe, no grupo 3.) Sua atitude é de tristeza e incredulida-de. Esses discípulos correspondem ao relato de Mateus e Marcos.

Bem à direita da pintura aparecem os três apóstolos que for-mam o grupo 4 (Mateus, Tadeu e Simão). Estes olham, não paraJesus, mas uns para os outros. Isso está de acordo com o relatode Lucas e João.

Imediatamente à direita de Jesus, Pedro conversa com o discí-pulo amado, ao passo que Judas aparece solitário e em silêncio.Esses três formam o segundo grupo. João se inclina na direção dePedro, que colocou sua mão sobre o ombro de João, puxando-o emsua direção, para perguntar, baixinho, a respeito de quem Jesusestaria falando. Esse detalhe da pintura é a contribuição exclusivado Evangelho de João.

11 Filmes que recriam o contexto do primeiro século, como Jesus de Nazaré, de FrancoZefirelli, mostram Jesus e os apóstolos reclinados sobre almofadões - nada, portanto,de mesa e cadeiras – colocados no chão e dispostos ao redor de uma pequena mesa decentro.12 A interpretação que segue é de Francis Watson, op. cit., p. 99-100.

Page 11: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

11

Portanto, num golpe de mestre, Leonardo da Vinci, dividindo osDoze em quatro grupos de três, conseguiu harmonizar os relatosdos quatro Evangelhos. Da Vinci é, pois, uma testemunha do Evan-gelho quadriforme. Sua pintura é uma reprodução teologicamenteortodoxa do texto canônico quadriforme! Isto está ali para todosverem. No entanto, pouca gente sabe por que isso é assim. E, éclaro, nada disso interessa a Dan Brown.

DONDE VEM E O QUE FICA DO BEST-SELLER DE DAN BROWN?

Page 12: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

12

Page 13: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

13

Biografias de grandes personagens fascinam e muitas vezes ser-vem como protótipos e modelos a serem seguidos. A biografia de Jóé fascinante, mas dificilmente será escolhida como modelo a serimitado. Imitamos o diferente, o inusitado, o exótico. Jó é um ho-mem reto e íntegro; não obstante, é um homem que sofre e sofremuito. E sofrimento não é padrão humano a ser imitado.

Na terra de Uz onde está, Jó é conduzido por Satanás de umasituação privilegiada de abundância e bem-estar, para uma situa-ção de total miséria e abandono. Em meio a tamanho desespero,ele expressa uma confissão de conteúdo instigante: “quanto amim, eu sei que o meu Redentor está vivo e por fim se levantarásobre o pó” (19.25). Essa réstia de esperança, num contexto ines-perado e adverso, tem gerado variadas interpretações entre osestudiosos. O que Jó pretende com tais palavras? Quem é este seuRedentor? Quando ele irá agir - antes ou depois da morte de Jó?Tais questões serão os pontos norteadores deste estudo. Paratanto, a pesquisa tratará brevemente do contexto histórico, daanálise da estrutura do livro e as devidas considerações herme-nêuticas. Num segundo momento, faremos um estudo exegético daperícope com ênfase especial no versículo 25.

I. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS

Contexto“Tendes ouvido da perseverança (u`pomonh,) de Jó e vistes que

fim o Senhor lhe deu; porque o Senhor é cheio de terna misericór-dia e compassivo.” Essas são palavras de Tiago (5.11), onde eleaponta para o exemplo que Jó representa para os cristãos. Semdúvida, poucas histórias que constam na literatura da experiência

RÉSTIA NA ESCURIDÃO:UMA ANÁLISE DE JÓ 19.23-27

Lademir Renato Petrich*Acir Raymann*

*Rev. Lademir Renato Petrich é pastor em Juiz de Fora, MG.*Dr. Acir Raymann é professor de Teologia Exegética do Antigo Testamento no SeminárioConcórdia, São Leopoldo, RS e na Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS.

Page 14: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

14

humana têm tamanho poder de alargar a mente, cobrar a consci-ência e expandir a visão como Jó.1 O livro esmiúça o problemamilenar do sofrimento; mas não se restringe a isso, caracteriza-setambém por direcionar a esperança humana e desocultar a miseri-córdia divina.

Jó, como se disse, é apresentado como um homem justo a quemDeus permite ser tentado por Satanás. Três de seus amigos, Elifaz,Bildade e Zofar se esforçam em convencê-lo de que ele sofre porter cometido pecado aviltante – uma compreensão da relação dohomem com Deus como religião de retribuição. Como ocorre emvárias tendências sectárias hoje, “o problema da concepção dosamigos de Jó é que eles argumentam do efeito para a causa”.2 Areação dos amigos à situação despadronizada é um exemplo clássi-co da aplicação equivocada entre Lei e Evangelho. A Escrituramostra com clareza que Deus castiga o pecado no ser humano,mas este castigo acontece nos descrentes. Os sofrimentos queafligem os filhos de Deus não são decorrentes de punição pelospecados deles porque tais pecados já foram punidos. Jó não é umdescrente, mas um homem de fé.3 Por isso, Jó, com veemência,rejeita as invectivas de seus interlocutores. Eliú, um quarto perso-nagem, pretende resolver o enigma aludindo ao poder pedagógicodo sofrimento. Enfim, o SENHOR aparece e convence a Jó de pos-suir uma visão obtusa de Deus, apontando para as maravilhas dacriação. O livro se fecha com a recriminação de Deus aos trêsamigos de Jó e o restabelecimento da sorte do justo, provado eabençoado.

1 William S. Lasor; David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento.Trad. por Lucy Yamakami (São Paulo: Vida Nova, 1999), p.513.2 Paul R. Raabe, “Human Suffering in Biblical Context,” Concordia Journal 15 (April 1989):144.3 L. Fuerbringer, The Book of Job: Significance to Ministers and Church-members (St. Louis:Concordia Publishing House, 1927), p. 54-55 afirma: “É precisamente este o nossopensamento natural: doença, miséria, desgraça e aflição são punições por pecados eaflições específicas são indicações de pecados específicos. Isto é verdadeiro no casodos filhos deste mundo, os descrentes. A Escritura diz: ‘A tua malícia te castigará, e astuas infidelidades te repreenderão; sabe, pois, e vê quão mau e quão amargo é deixares oSENHOR, teu Deus, e não teres temor de mim, diz o Senhor, o SENHOR dos Exércitos’ (Jr2.19). No que respeita a cristãos, entretanto, a situação é diferente. Cristo carregou todaa punição pelo pecado. ‘O castigo da nossa paz estava sobre ele’ (Is 53.5). ‘Ele mesmotomou as nossas enfermidades e carregou com as nossas doenças.’ (Mt 8.17); e Deusnão pune duas vezes. Os sofrimentos com os quais Deus aflige os cristãos – esta é adoutrina clara das Escrituras – não são enviadas como punição divina. Mas, embora nóscristãos saibamos disso muito bem e em dias de saúde e prosperidade saibamos falar demaneira bonita sobre esta verdade tão confortadora, contudo, quando nós próprios temosde carregar a cruz ou temos de administrar a situação quando afligidos, então já não é tãofácil crer e confessar.”

Page 15: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

15

I Prólogo 1-2II Diálogo 3-31III Discursos de Eliú 32-37IV Teofania 38-42.6V Epílogo 42.7-17

4 Samuel Terrien, Jó. Trad. por Benôni Lemos (São Paulo: Paulus, 1994), p. 38. Cf. Ward S.Miller, “The Structure and Meaning of Job,” Concordia Journal, 15 (April 1989): 103 que,ao citar E. Goodheart por empregar a mesma expressão, questiona os motivos pelos quaiso livro bíblico recebe tal designação.5 Adam Clarke, Comentario de la Santa Bíblia. Vol II. Version Castelhana por Lúcia C. G. deCosta e Adam Sosa. (Kansas City, Missouri: Casa Nazerena de Publicaciones, 1980), 1.6 Terrien, op. cit., p. 170.7 Marvin H. Pope. Job. In The Anchor Bible. (Garden City, New York: Doubleday Company,Inc., 1965), p.XIII - XIV.8 Francis I. Andersen, Jó: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica (São Paulo:Edições Vida Nova e Mundo Cristão, 1989), p. 20.

Lutero diz que Jó é magnífico e sublime como nenhum outro livroda Bíblia. Devido à estilística e dramaticidade profética, o autortem sido considerado por alguns como o “Shakespeare da Bíblia”.4

Clarke lembra que, apesar de Jó ter sido escrito sob a mesmainspiração e com a mesma finalidade - a salvação dos homens - étão distinto de qualquer outro livro da Escritura que parece não ternada em comum com eles.5

Estrutura do LivroO livro tem uma estrutura onde, excetuando-se a prosa do

prólogo e epílogo, todo o resto é poesia. Assim, a forma geral é A-B-A, ou seja, “prosa-poesia-prosa”. A maioria dos críticos aceita aunidade literária da narração em prosa, mas está dividida na ques-tão da relação com a parte poética.6 O livro apresenta cinco par-tes desproporcionais, que se dividem da seguinte maneira: 7

O diálogo de Jó com seus três amigos acontece em três ciclos.Embora Jó fale alternadamente com cada um dos amigos, os trêsciclos não são idênticos e apresentam a seguinte distribuição:8

Ciclo I Ciclo II Ciclo IIIElifaz 4-5 15 22Jó 6-7 16-17 23-24Bildade 8 18 25Jó 9-10 19 26Zofar 11 20Jó 12-14 21 27

RÉSTIA NA ESCURIDÃO: UMA ANÁLISE DE JÓ 19.23-27

Page 16: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

16

A perícope a ser estudada encontra-se no segundo ciclo dediálogo de Jó com seus três amigos, fazendo parte da segundaresposta dada a Bildade. Neste segundo ciclo os amigos suspeitamque Jó, por estar sofrendo de tal maneira, cometera grave pecado.A tentativa deles é incitar Jó a uma confissão de pecado específicoestimulada pela narrativa detalhada sobre o destino dos perversos.A posição deles reflete-se em seus discursos com a presença dedois elementos: acusações (15.2-6; 18.2-4; 20.2-3) e ameaçasimplícitas na descrição do destino dos perversos (15.17-35; 18.5-21; 20.4-29). Apenas Elifaz acrescenta uma instrução de sabedo-ria. Jó termina este segundo ciclo discordando das conclusões bá-sicas de seus amigos, pois muitos ímpios prosperam, gozam a vidade forma plena, recebem sepultamento honroso e são respeitadosem face do seu sucesso.

Considerações hermenêuticasUtilizando a imagem proposta por Honsey, a Bíblia pode ser com-

parada a um oceano. Em determinados lugares as águas são tãorasas que até uma criança pode sentar-se e brincar sem medo deafundar; mas em outros lugares as águas são tão profundas queaté mesmo um grande navio pode submergir. Nesses casos, para sebuscar a correta interpretação, é preciso um cuidadoso estudo daocasião, contexto e o texto em si, incluindo vocabulário e sintaxe.9

Jó, muito apropriadamente, pode ser comparado a águas profun-das. Tradutores concordam que o livro apresenta mais problemasno texto hebraico do que a maioria das demais partes do AntigoTestamento.10 Nele freqüentemente ocorrem palavras raras e sen-tenças curtas; a sintaxe constantemente se caracteriza pela omissãode preposições.11

Tornam-se, pois, inevitáveis as dificuldades de tradução em Jó19.23-27. No entanto, apesar disso, a perícope tem o seu sentidoteológico, na tradução, bastante ligado à hermenêutica, ou seja,aos pressupostos teológicos do tradutor. Neste sentido, Stalde-mann diz que as divergentes traduções do texto bíblico em ques-tão são decorrentes de uma diversidade que provém não de umproblema literário, inerente ao texto hebraico, mas do modo deinterpretação do seu teor.12

9 Rudolph E. Honsey, “Exegetical Paper on Job 19:23-27" Wisconsin Lutheran Quarterly 67(July 1970): 153.10 Andersen, op.cit., p. 20.11 Honsey, op.cit., p. 154.12 Luís I. J. Staldemann, Itinerário Espiritual de Jó (São Paulo: Loyola, 1997), p. 99, n. 2.

Page 17: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

17

Se os pressupostos teológicos são indispensáveis na traduçãoda perícope, quanto mais o são no seu corolário, a saber, na análi-se exegética. Em virtude disto precisamos lembrar de Agostinho,que diz: “Novum Testamentum in vetere latet; Vetus Testamen-tum in novum patet”, ou seja, “O Novo Testamento no Antigo écamuflado; o Antigo Testamento no Novo é revelado”. Portanto, aporta de entrada para o Antigo Testamento deve ser o Novo, e oconteúdo central de ambos é a justificação pela fé. Scholz lembraque a chave da Escritura não é algo que a abre de fora paradentro, mas a chave é o próprio centro da Escritura, ou seja, JesusCristo se irradiando por ela toda.13

Faz-se necessária a consideração das ênfases dadas por Luteroquanto ao processo de interpretação da Bíblia. Segundo ele, naEscritura há um só sentido (sensus literalis). A Escritura deve sermantida em seu significado mais simples possível e compreendidade acordo com seu sentido gramatical e literal, a menos que ocontexto claramente o impeça. Passagens obscuras devem ser en-tendidas com base nas de sentido nítido; assim o texto bíblicointerpreta a si próprio (Scriptura Scripturam interpretatur). Essemétodo de interpretação compara passagem bíblica com passagembíblica. Lutero deixa claro que a abordagem gramatical e históricanão tem um fim em si mesma, mas seu objetivo é apontar paraCristo.14

Jó 19.23-27 deve ser visto, primeiramente, com relação ao con-texto do livro como um todo. Mas não há como negligenciar opropósito geral para o qual Deus concedeu a Sua palavra à huma-nidade, que é a salvação do ser humano. Assim, o contexto detoda a Escritura deve ser observado, o que necessariamente colo-ca Cristo no centro.

II. ASPECTOS EXEGÉTICOS

A perícope 19.23-27 faz parte da segunda resposta de Jó aBildade. No capítulo 18 vê-se a incisiva e constante tentativa deBildade em convencer Jó de que o destino dos perversos é a cala-

13 Vilson Scholz, “A Teologia como Empreendimento Hermenêutico” Igreja Luterana 49(1990): 144. Cf. também Princípios de Interpretação Bíblica: Introdução à Hermenêuticacom Ênfase em Gêneros Literários (Canoas: Editora da ULBRA, 2006), p. 78-80.14 Para uma breve síntese sobre tais ênfases, cf. Roy B. Zuck, A Interpretação Bíblica: Meiosde Descobrir a Verdade Bíblica. Trad. por César de F. A. Bueno Vieira (São Paulo: EdiçõesVida nova, 1994), p. 50-54.

RÉSTIA NA ESCURIDÃO: UMA ANÁLISE DE JÓ 19.23-27

Page 18: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

18

midade e o sofrimento. Torna-se evidente a intenção de relacionaro sofrimento de Jó com o fato de ser pecador. Jó responde à alturadas acusações de Bildade. À primeira vista parece que o discursode Jó não difere muito do pronunciado por Bildade, pois ele confir-ma o seu estado deplorável. No entanto, com o clímax do capítulo19 no versículo 25, Jó difere o seu destino do destino dos perver-sos, apontando para vindicação que provém de algo externo a ele.Mas a quem Jó está se referindo? Quem é este laeGO e quando ele vaiagir? Como lembra Leveque, toda a interpretação da perícope éorientada por estas perguntas.15

V. 23: “Quem me dera fossem agora escritas as minhas pala-vras! Quem me dera fossem gravadas em pergaminho! Que, comestilete de ferro e com bronze para sempre fossem esculpidas narocha”.

A expressão !TeyI-ymi pode ser tanto um imperfeito como uma for-ma imperativa da terceira pessoa, ou seja, o jussivo. Honsey dizque ela é uma expressão idiomática, representando um desejo e,portanto, um jussivo.16 Uma dificuldade inicial se apresenta comyL;mi “minhas falas”, “meus discursos”. É uma palavra incomum. Deri-va-se de ll;m que significa “falar”, “pronunciar”. Encontra-se 38vezes no Antigo Testamento, das quais 34 em Jó, todas no ciclopoético.17 Mas a que Jó está se referindo: às palavras que pronun-ciou em sua defesa contra a acusação dos seus amigos? Às pala-vras que ele estaria para pronunciar, sobre a esperança em seuRedentor? Ou faz menção a todas as palavras que tem dito?

Entre os defensores da primeira posição encontra-se Delitzsch,que liga o desejo de Jó ao contexto anterior, no qual ele procurademonstrar sua inocência em oposição à opinião de seus amigos.Como seus amigos não ouviram as suas palavras, ele deseja queelas sejam gravadas em pergaminho para a posteridade.18 Driver eGray compartilham desta posição. Afirmam que o desejo de Jó énão passar para a posteridade como um pecador, e esse desejo éexpresso no versículo 23a, e alcança seu clímax com detalhes em

15 Jean Leveque, Jó: O Livro e a Mensagem (São Paulo: Paulinas, 1987), p. 47.16 Honsey, op.cit., p. 156.17 Cf. Abraham Eben-Shoshan, hvdx] hyc.n>D:r>wOqn>wOq (Jerusalém: Sivan Press, 1981), p. 660.18 Apesar de Delitzsch conectar “minhas falas” ao contexto anterior, ele não desconecta osentido dos versículos que seguem. Isso porque o testemunho da inocência não passarápara a posteridade sem Jó ser justificado pelo Deus vivo. F. Delitzsch. Biblical Commen-tary on the Book of Job. Vol I. (Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans PublishingCompany, 1949), p. 351.

Page 19: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

19

23b e 24. Assim, mesmo depois da morte, Jó continuará a defendersua integridade. Consideram que as palavras não podem se referirao versículo 25 e seguintes porque ficaria estranho a conjunçãovav no início do versículo 25.19 Sommer, por sua vez, entende queo desejo de Jó se deve ao fato de estar consciente do grau deimportância das palavras que iria pronunciar. São palavras que ex-pressam verdades infalíveis. Jó sabe que as palavras que iria pro-nunciar não provêm de si próprio, mas de Deus.20 A terceira posi-ção parece ser a preferida, por exemplo, de John Wesley. Ele dizque as palavras que Jó desejou estarem gravadas, estão escritasno livro de Deus. Assim que em qualquer lugar onde este livro forlido, lá estas palavras devem ser declaradas para o seu memorial.21

Outro desafio que o texto oferece é rp,se. Pope, com razão,comenta que essa palavra usualmente significa “livro” ou “rolo depergaminho”. O verbo qq;x entretanto, significa “gravar, esculpir”.Desta maneira, dificilmente o material deste livro pode ser couro oupapiro. Isso possibilitaria tomar a palavra rp,se num sentido geral de“registro” ou “documento”, sem considerar o material em que sefaz a inscrição.22 Andersen considera que o emprego da palavra“gravar” sugere a entalhadura nalguma substância durável, talveznum monumento. Sendo assim, a rocha esculpida do versículo 24faz parte da mesma figura de linguagem.23 Clarke considera quenos versículos 23 e 24 Jó faz referência aos três recursos de escri-ta praticadas na sua época: 1) Escrever em pergaminho; 2) Gravarcom estilete de ferro em lâminas de chumbo; e 3) Esculpir sobregrandes pedras ou rochas, muitas das quais ainda se encontramem partes distintas na Arábia.24 Pope diz que pode haver relaçãoda palavra rp,se com o Acadiano siparru, que significa “cobre”. O usode bronze e cobre como material de escrita não é incomum naantiguidade.25

A primeira palavra do versículo 24, j[e, ocorre somente quatrovezes no Antigo Testamento.26 Significa ponteiro ou estilete para

19 Samuel Rolles Driver e George Buchanan Gray. Job. In The International Critical Commen-tary. S.R. Driver; A. Plummer; e G.A. Briggs, ed. (Edinburgh T.& T. Clark, 1964), p. 170.20 Martim S. Sommer , “Job 19:23-27" Concordia Theological Monthly XIV (1943): 282.21 John Wesley. John Wesley’s Explanatory Notes on the Whole Bible (Bible Study Tools,1754), p .2. Pode ser encontrado no site: http://bible.crosswalk.com/commentaries/wes-leysexplatorynotes/ wes.cgi?book=job&chapter=01922 Pope, op. cit., p. 133.23 Andersen, op. cit., p. 193.24 Clarke, op. cit., p. 19.25 Pope, op. cit., p. 133.26 O termo aparece também no Sl 45.2, em Jr 8.8, e Jr 17.1.

RÉSTIA NA ESCURIDÃO: UMA ANÁLISE DE JÓ 19.23-27

Page 20: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

20

escrever. Em conexão com a palavra seguinte vemos que o estileteera feito de ferro, lz<r>B;. É intrigante o uso de tr<p[o “chumbo”.27

Seria a caneta, ou ponteira, feita de ferro e chumbo? Uma ponteirade chumbo não poderia ser usada para esculpir na rocha; logo, ochumbo seria usado para preencher as incisões das letras.28 Ape-sar de não haver comprovações sobre o uso desta técnica naantiguidade, a imagem é plausível. Como se sabe, Uz se localizaprovavelmente no lado oriental da Palestina, entre Damasco e Edom,local relacionado ao horreus.29 Pesquisas arqueológicas recentestêm demonstrado que nessa região, em Edom especialmente, aprodução de cobre tem sido muito rica desde o período do BronzeAnterior (ca. de 3600-2000 a.C.).30 O emprego de técnica tãoavançada para celebrar um evento tão significativo só encontraparalelo no Antigo Testamento no “outdoor” que o SENHOR solicitaa Habacuque para anunciar a “justificação pela fé” (Hc 2.2-4).

Jó deseja que as suas palavras sejam gravadas para sempre,d[;l Essa é uma palavra que surge da combinação da preposição l,“para”, e d[e, “eternidade, futuro, perpetuidade”. O desejo de que“fossem esculpidos na rocha”, mostra a intenção de se estabelecerum monumento, algo durável que possa ser visto e lido pela poste-ridade. Tal desejo ajuda a clarear o sentido dos versículos seguin-tes. Andersen lembra que não haveria necessidade de Jó depositarum testemunho escrito, se ele esperasse ser vindicado antes damorte.31 Jó parece estar dizendo que perdeu a esperança na vidaterrena, por isso a necessidade de um memorial para as geraçõesfuturas.

V. 25: Quanto a mim, eu sei que o meu Redentor está vivo epor fim se levantará sobre o pó.

O pronome ynIa] está em posição enfática. ARA traduz “porque eusei”, enquanto a NTLH apresenta “pois eu sei”. Vê-se que ambassão similares à proposta da LXX, que traduz ga.r, por “pois”, “por-

27 Embora os editores da BHS criativamente sugiram !r<Pociw>, “ponta com diamante”, não háapoio de versões para sustentar a sugestão.28 Pope, op.cit., p. 134. Bem antes, Lange já defendia que as letras eram esculpidas napedra por meio de uma ponteira de ferro, ou cinzel, e então preenchidas com chumbo, deforma que se tornassem imperecíveis.Cf. John Peter Lange. Job. In Commentary on the Holy Scriptures (Grand Rapids 2, Michi-gan: Zondervan Publishing House, 1874), p. 455.29 B. D. Napier. Uz. In Interpreter’s Dictionary of the Bible. George Arthur Buttrick, ed.(Nashville: Abingdon Press, 1963), p. 741.30 Thomas E. Levy e Mohammad Najjar. “Edom and Copper: The Emergence of AncientIsrael’s Rival” Biblical Archaeology Review 32 (July-August 2006): 35.31 Andersen, op. cit., p. 193.

Page 21: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

21

que”. Sintaticamente, o vav pode ser traduzido pela simples con-junção, por uma opção adversativa ou como um vav disjuntivo,que indica “uma ruptura na seqüência narrativa”.32 Com esta últimaalternativa, fica estabelecido um contraste com o contexto anteri-or. Com isso, Jó quer dizer que é ele, que se encontra em umasituação de miséria, que sofre dores angustiantes, que está priva-do dos filhos e dos meios de vida, que está em situação de aban-dono - é este Jó que faz uma inesperada e paradoxal confissão.33

Por isso, a nossa opção de tradução destaca este contraste: “Quan-to a mim, eu sei que o meu Redentor está vivo”.

O termo laeGO aparece oitenta vezes no Antigo Testamento. Éparticípio do Qal de la;G, “resgatar”. “redimir”. A forma participial doverbo tornou-se praticamente um substantivo comum e freqüenteno texto bíblico.34 A raiz la;G” é usada em dois sentidos no AntigoTestamento: de um lado, em conexão com a vida social e legal e,de outro, com respeito a atos redentores de Deus.35 Harris diz quehá quatro situações onde a raiz é usada, no sentido do que umhomem bom e veraz faria por seu parente: (1) Resgate de umcampo que fora vendido em tempos de necessidade (Lv 25.25ss);libertação de um escravo israelita que se vendera em tempos demiséria (Lv 25.48ss), tarefas estas de responsabilidade do parentemais próximo. (2) “Redenção” da propriedade ou de animais nãosacrificáveis dedicados ao Senhor, ou ainda do primogênito dosanimais imundos (Lv 27.11ss) - nestes casos o redentor é o donoda propriedade. (3) O parente mais próximo torna-se um “vingadorde sangue” em caso de um ser humano assassinado; (4) O usomais comum, bastante proeminente nos Salmos e nos profetas, é ode Deus como o Redentor de Israel, que se levantará em favor doseu povo para o vindicar.36

O verbo la;G e a figura do laeGO têm no seu aspecto “secular” olocus classicus no livro de Rute. A moabita acompanha sua noraNoemi para a cidade natal desta, Belém. Ambas estão destituídas

32 Andrew H. Bartelt. Gramática do Hebraico Bíblico: Fundamentos. Trad. por Acir Raymann(Canoas: Editora da ULBRA, 2006), p. 204-205.33 Th. Reuter, “Jó 19.25-27”. Igreja Luterana VI (Janeiro - Fevereiro1945): 9.34 R. Laird Harris, Gleason L. Archer Jr. e Bruce K. Waltke, “laeegO” In Dicionário Internacionalde Teologia do Antigo Testamento. Tradução de Márcio Loureiro Redondo, Luís Alberto T.Saião, Carlos Osvaldo C. Pinto (São Paulo: Vida, 1998), p. 235.35 Helmer Ringgren. “la;G ga’al; laeG go’el; hLauG> ge’ullah”. G. Johannes Botterweck e HelmerRinggren, ed. In Theological Dictionary of the Old Testament. Vol. II (Grand Rapids, MI:William B. Eerdmans Publishing Company, 1975), p. 35.36 Harris, op.cit., p. 235-236.

RÉSTIA NA ESCURIDÃO: UMA ANÁLISE DE JÓ 19.23-27

Page 22: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

22

de tudo, o que leva Rute a respigar no campo de Boaz, um parenteseu (Rt 3.3). Seguindo o conselho de Noemi, Rute vai até Boaz. Boaznão resgata Rute imediatamente porque há um parente ainda maispróximo. Quando o resgatador se recusa diante dos anciãos a tomarRute, Boaz a toma, comprando um campo da mão de Noemi (Rt 4.5).Nos demais livros do Antigo Testamento a imagem do go’el é aplica-da num sentido mais amplo da redenção de Deus a seu povo, parti-cularmente no livro de Êxodo. Não resta dúvida de que no caso deJó, a perspectiva do go’el, embora em literatura sapiencial, estámais próxima deste último conceito.

Como chama a atenção Honsey, laeGO apresenta a maior dificul-dade da perícope; não de tradução, mas de interpretação. 37 Essaforma da palavra, ou seja, como adjetivo ou um verbo substantiva-do, aparece 44 vezes no Antigo Testamento.38 O termo é seguidopor yx que, apesar de na maioria das versões, ser traduzido porverbo, pode também ser traduzido por uma frase nominal, ou seja,“o meu Redentor [está] vivo”.

Quem é este laeGO e quando ele vai agir? Antes ou depois damorte de Jó? Storniolo acredita que Jó está dizendo que nadamais lhe interessa. Não lhe importa mais a vida nem a morte, oque ele quer é a justiça ou, em outras palavras, a vingança desua honra. Nesse caso, Jó de maneira alguma está pensando emvida após a morte, o que ele espera é para esta vida mesmo.39

Seguindo esta linha de pensamento, devemos concluir que Jó de-sejava ver a Deus ainda em sua vida terrena, de forma visionáriaou teofânica. Nesse caso, a visão seria ante-mortem, e não post-mortem. No entanto, essa interpretação é contrária à seqüênciasimples de elementos do versículo 26. O texto sugere que, primei-ramente, haveria a destruição da carne; então Jó teria a visãobeatífica. Podemos adicionar o fato de que Jó espera que suaspalavras permaneçam como um monumento para a posteridade.Isso demonstra que a sua inocência e justiça não serão estabele-cidas enquanto ainda vive.

Teólogos que defendem a intervenção divina ante-mortem li-

37 Honsey, op. cit., p. 163.38 Além desta única vez em Jó, ela aparece 13 vezes em Isaías, 9 em Rute, 8 em Neemias,3 em Josué, 2 em Levítico, Deuteronômio e Salmos, e 1 vez em 2 Samuel, 1 Reis, Jeremiase Provérbios.39 Ivo Storniolo. Como Ler o livro de Jó: O desafio da Verdadeira Religião (São Paulo:Paulinas, 1992), p.34. Esta também é a opinião de outros críticos como Leveque, que dizestar plenamente de acordo com os dados do Antigo Testamento, e com os do livro de Jó,a esperança na intervenção de Deus enquanto Jó ainda vive. Cf. Leveque, op. cit., p.47.

Page 23: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

23

gam o laegO diretamente ao próprio Deus.40 Porém ao se conectaresta passagem ao contexto de todo o livro, problemas aparecem.Pixlei afirma que o próprio contexto exclui esta possibilidade. Nomesmo discurso Jó apresenta Deus como seu inimigo (v. 11). Aexpressão está numa série de textos que falam de seu Mediador. Jáantes, Jó se lamenta por não haver um árbitro que pusesse a mãosobre ambos e os trouxesse ao juízo (9.33).41 Hummel lembra queJó pinta Deus como um grande tirano, diante do qual nenhum dosseus esforços tem qualquer valor. Assim, mesmo podendo ir à cortecom Deus, nada lhe adiantaria. Tudo o que Jó espera é realmentepor um “árbitro”. No capítulo 14, pela primeira vez, a solução alémdo túmulo parece entrar no pensamento de Jó. A idéia aparecenovamente em 16.18-22 onde Jó afirma que “minha testemunhaestá no céu” (v.19). Essa “testemunha”, assim como o “árbitro”,seria uma terceira parte, um mediador, que atuaria junto a Deus. Aconjunção de “árbitro-testemunha-mediador” reaparece, mais umavez, nos discursos de Eliú (33.23).42 Mitchell concorda com estemovimento ondulante e diz que 19.25 não apresenta uma esperan-ça isolada do restante do livro, mas ela é semelhante a um piconuma cadeia de montanhas.43

Neste movimento do livro pode-se ver 19.25 como o ponto cli-mático do processo. A função do “redentor” é, portanto, seme-lhante à função do árbitro, x;ykiwOm. Ele advoga a justiça de Jó diantede Deus. Jó afirma nesta passagem que está convicto na sua vidapost-mortem, sabendo que na sua morte o Redentor pleiteará suacausa diante do próprio Deus - e o justificará.44 É oportuno lem-brar que goel, no contexto da perícope, não pode designar um serhumano porque os filhos de Jó estão mortos e todos os seus pa-rentes e amigos o abominam e abandonam (cf. vv. 13-19). Emrazão disso, Jó “rompe os limites de seu isolamento e passa dodesejo estéril à convicção. Seu redentor sobreviverá à sua mor-te”.45 Sommer lembra um fato que muitos teólogos parecem negli-genciar: o conhecimento que Jó tinha da promessa messiânica fei-

40 W. Visher, “God’s Truth and Man’s Lie,” Interpretation 15 (1961): 138.41 Jorge Pixlei. El Libro de Job. In Comentário Bíblico Latinoamericano (San José, Costa Rica:Ediciones Sibila, 1982), p.105.42 Horace D. Hummel, The Word Becoming Flesh: An Introduction to the Origin, Purpose, andMeaning of the Old Testament (St. Louis: Concordia Publishing House, 1979), p.476-478.43 Christopher Mitchell, “Job and the Theology of the Cross” Concordia Journal 15 (April 1989):p. 163.44 Acir Raymann, “Jó: tensão entre Justiça e Sofrimento” Igreja Luterana 18 (I Trimestre 1978),p.15.45 Terrien, op. cit., p. 170.

RÉSTIA NA ESCURIDÃO: UMA ANÁLISE DE JÓ 19.23-27

Page 24: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

24

ta aos primeiros pais (Gn 3.15). Jó não vê o cumprimento dasprofecias como nós as vemos; mas ele tem a Palavra de Deus, enela espera. Esta Palavra declara que este Redentor vive, e Jóconfessa o que a Palavra de Deus lhe assegura.46 Habel, na suaopus magnum, argumenta que “não há razão teológica válida por-que Jó, que considera Deus como seu inimigo, não poderia pensarnuma figura que se levante na corte e persuada Deus a realizar suaopus proprium de vindicação de Jó”.47 Assim sendo, Hummel con-clui que, olhando para o texto no seu contexto canônico amplo, aimplicação só poderá cair na pessoa de Cristo.48

A segunda parte do versículo apresenta !wOrx]a;w> cuja traduçãonão encontra unanimidade entre os estudiosos. A Vulgata traz “innovissimo”, que pode ser traduzido por “no último” ou “no derradei-ro”. A LXX traduz por me,llwn, que carrega a idéia do futuro, do que“está por vir”. Levando em conta a linguagem poética do livro,Reuter considera que a palavra deve ser traduzida como conecta-da diretamente a “redentor”. O hebreu tem o modo de apresentar ovencedor como o “derradeiro”, o “remanescente”, aquele que ficasó no campo de batalha.49 Pope chama a atenção para o uso queIsaías faz do termo: “Assim diz o SENHOR, Rei de Israel, seu Reden-tor, o SENHOR dos Exércitos: Eu sou o primeiro, e eu sou o último,e além de mim não há Deus” (Is 44.6). O termo “último” é usado deforma paralela com “Redentor”. Por essa via, a palavra pode sertomada como um substantivo paralelo a laegO. E mesmo que o termoseja traduzido por um advérbio (“finalmente”, como algumas ver-sões propõem) ou um substantivo, não faz grande diferença vistoque o vindicador não é Deus, mas antes um mediador, um árbitro,que intercederá por Jó diante de Deus.50

O termo rp[, “pó”, refere-se ao inimigo que será derrotado peloRedentor de Jó. É claro que “pó” é a matéria da qual Deus fez o serhumano (Gn 2.7); mas designa também a imagem da corrupçãohumana (Gn 3.19) bem como o destino dessa corrupção (Is 26.19).Jó vê que o “pó” vencerá sobre o seu corpo. Mas haverá aqueleque será o “derradeiro”, o “último” sobre o “pó” - Aquele que esma-gará a cabeça da Serpente (Gn 3.15).51

A Vulgata liga à pessoa de Jó o verbo ~Wqy. Ela afirma: “e que no

46 Sommer, op. cit., p. 283.47 Norman C. Habel, The Book of Job (Philadelphia: Westminster, 1985), p. 306.48 Hummel, op. cit., p. 478.49 Reuter, op. cit., p. 10.50 Pope, op. cit., p. 1 35.51 Reuter, op. cit., p. 10

Page 25: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

25

último dia eu surgirei da terra”.52 Contudo o texto hebraico nãocorrobora esta versão. Honsey lembra que para que tal traduçãofosse possível, seria necessário que o verbo estivesse no hiphil,~yqiy , com yod no lugar do vav. Mas não há nenhuma indicaçãopara tal no aparato crítico. Há, sim, uma forte relação deste verboà ressurreição, porém não diretamente à ressurreição de Jó. Estarelação acontece em conseqüência do “Redentor” que “se levan-tará” – uma menção clara à dimensão escatológica.53

V. 26: E depois, minha pele circundará isto e em minha carneverei a Deus.

O versículo 26 é considerado por alguns como uma crux inter-pretum.54 Realmente, aqui há uma gama de tradução e interpreta-ção. A palavra rx;a;w> não pode ser traduzida por “e depois de”, vistoque ela tem relação direta com o futuro do verbo WpQ.nI. A traduçãomais adequada seria “e depois”.55 A LXX não traz correspondentepara esta palavra, e a Vulgata traduz por rursum, “novamente”. Aforma WpQ.nI encontra-se no Piel, o que exprime uma intensidade,podendo-se traduzir a forma por “circundar”. O pronome demons-trativo tazO não pode estar ligado a ydIwO[, que é uma palavra mascu-lina, por ser tazO feminina. tazO não precisa ter seu correlato, poden-do ser subentendido, como em Juízes 13.23. A tradução propostapela Vulgata nesta parte do versículo é: “E novamente circundadocom minha pele...”.56 Assim, a tradução seria: “minha pele circun-dará isto”, supondo que Jó aponta para seu corpo ao pronunciarestas palavras.

A palavra yrIfB.mi é interpretada de maneira distinta pelos teólo-gos. Ela tem a combinação da preposição, “de”, e rfB “carne”. Adecisão está atrelada ao sentido de !mi, ou seja, se é privativo ouindica origem. Lange sugere que a tradução deva ser “e livre daminha carne”.57 Honsey sugere algo semelhante: “e fora da minha

52 No original: “et in novissimo de terra surrecturus sim”.53 Honsey, op. cit., p. 173-74. Sommer, op.,cit., p. 283 liga o verbo ~Wqy;( à ressurreição deJesus. David C. Devel, “Job 19.25 and Job 23.10 – Revisited an Exegetical Note” TheMaster’s Seminary Journal l5 (1994): 97-100 observa que é interessante notar que, noOratório “O Messias”, de Georg Friedrich Haendel, os sopranos cantam Jó 19.25,26juntamente com 1Co 15.20. O texto de Coríntios fala de Cristo como “as primícias dosque dormem”. Isso deixa claro que Haendel também ligou Jó 19.25b à ressurreição deJesus.54 George V. Schick “The RSV and the Small Catechism” Concordia Theological MonthlyXXVII (March 1956): 178.55 Reuter, op. cit., p.10.56 No original: “et rursum circumdabor pelle mea”. A NTLH traz um sentido diferente:“Mesmo que a minha pele seja toda comida pela doença...”.57 Lange, op. cit., p. 457.

RÉSTIA NA ESCURIDÃO: UMA ANÁLISE DE JÓ 19.23-27

Page 26: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

26

carne”.58 Mas, como argumenta Reuter, a preposição !mi tem comosentido principal “de”, “de dentro” (cf. 1.21). Neste caso, a herme-nêutica requer que se mantenha o sentido primário da palavra,visto que o “todo” da Escritura apóia tal posicionamento. Logo, “euverei a Deus” H;wOla>, hz<x/a significa ver de dentro da carne.59 Concor-da-se, assim, com Lutero, que traduz: “na minha carne verei aDeus”.60 A Vulgata se assemelha: “et in carne mea videbo Deummeum”. Assim sendo, entende-se que Jó estava pensando em suavindicação como acontecendo numa realidade corpórea.

Apesar das dificuldades que se apresentam na tradução do ver-sículo 26, torna-se clara a esperança que Jó tem na ressurreição.Alguns estudiosos como Leveque,61 Stornido,62 entre outros, afir-mam que Jó de maneira alguma está pensando em ressurreição e arazão para isso é que descartam a possibilidade de que na épocapatriarcal em que Jó teria vivido tal conceito não havia sido desen-volvido. A narrativa bíblica, no entanto, recorda que o sacrifício deIsaque (Gn 22) é um episódio que o autor de Hebreus enaltecerelacionando-o à ressurreição (Hb 11.17-19).

Aos cristãos as palavras de Jó ganham uma profundidade ini-gualável quando evidencia-se que a ressurreição expressa estáintimamente ligada ao laegO. É Cristo, o Mediador de Jó, que tornapossível “ver a Deus” depois da morte dentro da “própria carne”.Segundo Reuter, Jó indica ao mesmo tempo a bem-aventurançadeste novo estado do seu corpo e de sua alma. Um ser humanonão pode contemplar o esplendor da glória da majestade divinaenquanto se encontra nesta vida (Êx 33.2). Olhos humanos sópodem suportar o reflexo da glória divina quando transformados porDeus na eternidade, de modo que possam olhar sem cegar comoera no contexto pré-lapsariano.63

V. 27: Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e nãooutros; de saudade me desfalecem os rins dentro de mim.

No versículo 27 novamente Jó demonstra ênfase ao utilizar opronome pessoal yniia;>. Andersen explica que Jó emprega “eu” trêsvezes no versículo, ou seja, uma vez oculto no verbo, segunda vezcomo sujeito pronominal enfático, “mim mesmo”, e depois como o

58 Honsey, op.cit., p. 184.59 Reuter, op. cit., p. 11.60 No iriginal: “Und werde in meinem Fleisch Gott sehen”.61 Leveque, op. cit., p. 48.62 Storniolo, op. cit., p. 34.63 Reuter, op. cit., p. 11, 12.

Page 27: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

27

“dativo ético”: “Vê-lo-ei por mim mesmo”.64 A forma War, depois dofuturo hz<x,>a,, é o perfeito de certeza, ou de futuridade. Ambos osverbos significam “ver”, com a diferença de que hzx é uma formamais poética.65

A palavra rz significa “estranho”, “estrangeiro”. ARA traduz: “osmeus olhos o verão, e não outros”. Driver e Gray comentam umaalternativa de tradução: “e meus olhos e não (estes de) um es-trangeiro, verão”. Mas, no contexto esta possibilidade parece pou-co provável.66 Uma das versões que mais difere é a da Bíblia deJerusalém, que traz: “Aquele que meus olhos contemplarem nãoserá um estranho”.

A seqüência do versículo significa, literalmente: “meus rins [são]consumidos dentro de meu seio”. Honsey diz que Jó está usandopalavras concretas para expressar suas emoções.67 A Bíblia de Je-rusalém traz algo parecido: “Dentro de mim consomem-se os meusrins”. A Vulgata sugere: “Esta minha esperança está depositada nomeu peito”.68 O que se evidencia no texto é a alegria hiperbólica deJó pela materialização das suas palavras. Quando o Redentor oressuscitar e Jó puder ver a Deus com os próprios olhos, em suacarne, a sua alegria será indescritível, a ponto de “se consumiremos rins”.

De fato, a grande questão dos versículos 26 e 27 é a ressurrei-ção. Não há como negligenciar o contexto anterior, quando Jó emuma situação de miséria total apóia-se em seu Mediador. É neces-sário ligar a ressurreição ao seu Redentor. Como afirma Honsey,não há como considerar esta porção da Escritura de outra maneira,a não ser como evidência de que aqui se fala em ressurreição dosmortos.69 Assim também pensa Hummel, argumentando que a vidaapós a morte é inegável nestes versículos. A menção de “pele”,“olhos” e “rins” mostra que Jó pensa na ressurreição em termoscorporais.70 Jó fala de uma imortalidade individual e pessoal. Ohomem, após a ressurreição, continua com identidade pessoal earguta consciência.

Schökel, por outro lado, diz que a doutrina da ressurreição nãose lê no texto nem no sentido do livro, mas é fruto de uma teologia

64 Andersen, op. cit., p. 192.65 Reuter, op. cit., p. 12.66 Driver, op. cit.., p.175.67 Honsey, op. cit., p. 193.68 No Original: “Reposita est haec spes mea in sinu meo”.69 Honsey, op. cit., p. 193.70 Hummel, op. cit., p. 479.

RÉSTIA NA ESCURIDÃO: UMA ANÁLISE DE JÓ 19.23-27

Page 28: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

28

posterior.71 Nesta linha seguem vários teólogos, como Leveque,Storniolo, Pixlei e outros. Porém quando se dá a devida atenção àspalavras de Jó, só se pode negar a ressurreição caso se desconsi-derar o sentido primeiro destas palavras.

Reuter considera que esta passagem é uma sedes doctrinae dadoutrina da ressurreição da carne e de que a fé dos crentes doAntigo Testamento tinha o mesmo objetivo que a dos crentes doNovo Testamento.72 Honsey conclui que Jó faz uma confissão defé, de forma confiante, esperando que o seu laeGO o ressuscite noúltimo dia, quando esse Redentor, que também ressuscitou dentreos mortos, o restaure em vida perpétua.73 De fato, Jó reflete aspalavras de Jesus, o próprio laeGO: “porque vem a hora em que todosos que se acham nos túmulos ouvirão a voz do Filho de Deus; e osque a ouvirem viverão” (Jo 5.28).

CONCLUSÃO

Helmut Thielicke, num contexto de dizimação que só uma guerrapode proporcionar, afirmou que “uma biografia não deveria iniciarcom o nascimento da pessoa, mas com sua morte. Deveria serescrita à luz do fim porque apenas a partir deste ponto podemoscontemplar a vida na sua plenitude”.74 A biografia de Jó fascinapela fé, pela persistência e pela convicção da presença de Deus.Certamente por esta via ela precisa ser imitada (Hb 13.7). Comoleitores oniscientes, conhecemos detalhes e razões da história deJó que ele não conhecia e talvez jamais conheceu. Sabemos quena sua vida, como na nossa, parece que “por um pouco” Deus seoculta e “mais um pouco” a sua misericórdia se revela. Contudopermanece a certeza e a fé de que Deus sempre está presente eno controle da situação por mais adversa que ela possa ser. DissoJó nunca duvidou, mesmo que por vezes não quisesse deixar Deusser Deus.

A confissão cristológica: “quanto a mim, eu sei que o meu Re-dentor está vivo e por fim se levantará sobre o pó” soaria naturalcaso saísse dos lábios de um cristão do Novo Testamento. Pode

71 Luis Alonso Schökel. Libros Sagrados: Job (Madrid: Ediciones Cristandad, 1971), p. 93.72 Reuter, op. cit., p.12,13.73 Honsey, op. cit., p. 195.74 Helmut Thielicke, Out of the Depths. Trad. por G. W. Bromiley (Grand Rapids, MI: WilliamB. Eerdmans Publishing Company, 1962), p. 78.

Page 29: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

29

causar estranheza, entretanto, o fato que um cristão vivendo an-tes de Cristo expresse igual confissão. Será isso realmente umproblema? Talvez este texto nos leve a refletir sobre a questão dacristocentricidade e mais especificamente sobre a pré-encarnaçãodo Filho no Antigo Testamento e bem assim na própria fides qua (efides quae) do povo de Deus de então. Mas este é assunto paraoutro momento.75

Diante do estudo feito pode-se chegar a algumas conclusões: (1)O livro de Jó apresenta um crescendo na perspectiva cristocêntrica.O clamor por um “árbitro” (9.33), um “Mediador” (16.19) chega a seuponto culminante em 19.25. Esta perícope não é um cume isolado,mas o monte mais alto numa cadeia de montanhas; (2) O movimentoque há no livro indica que o “Redentor” esperado por Jó não pode serDeus, o Pai. Jó imagina uma disputa entre ele e Deus, apontando paraa necessidade de uma terceira parte, um “mediador”, que pleiteará asua causa e o justificará; (3) O desejo de Jó em ter as suas palavrasgravadas para a posteridade demonstra que sua esperança vai alémde sua vida terrena. Também se torna evidente este fato com aseqüência dos elementos apresentados pela perícope. Está implícitanas suas palavras a iminente destruição de sua carne antes da suavindicação final; (4) O “mediador” de Jó será o “Derradeiro”, o “Últi-mo”, o “Vencedor”. Ele será vitorioso sobre o “pó”, ou seja, sobre amorte. Por isso este Redentor também o ressuscitará; (5) A ressurrei-ção acontece em termos corporais. As palavras “olhos”, “rins” e “eumesmo” indicam uma restauração post-mortem do seu ser e suaidentidade; (6) Jó tem conhecimento das profecias messiânicas. Eleestá ciente de que Deus prometera o “descendente da mulher” queferiria a “cabeça da serpente”. Este conhecimento permite a Jó, emmeio a aflições, confessar que o seu “Redentor está vivo”. A expres-são “vivo”, e não “viverá”, mostra que Jó sabe da dupla natureza do“Redentor”. O descendente da mulher que viria já existe. Nas palavrasdo próprio Jesus: “antes que Abraão existisse, EU SOU” (Jo 8.58).

É inevitável, pois, no estudo de Jó 19.23-27 que se coloque acentralidade na pessoa de Jesus Cristo. Ele é o Redentor: o únicocapaz de vencer a morte e dar a Jó a restauração do seu corpo,que esmaga a “cabeça da serpente” e o “pó”. Este é o testemunhoque Jó deseja ver gravado em bronze, na rocha. E o que se gravaem bronze, se eterniza.

75 Para uma retomada histórica e reveladora sobre a presença real de Cristo no AntigoTestamento, cf. Charles A. Gieschen “The Real Presence of the Son Before Christ: Revi-siting an Old Approach to Old Testament Christology” Concordia Theological Quarterly 68(April 2004): 105-26.

RÉSTIA NA ESCURIDÃO: UMA ANÁLISE DE JÓ 19.23-27

Page 30: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

30

Page 31: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

31

O Pai Nosso é, sem dúvida alguma, a oração mais freqüentementefalada na Cristandade. É uma das primeiras orações que os cristãosaprendem de cor e pode muito bem ser a última oração que elespronunciarão antes de fecharem os olhos no que se refere ao fin-dar a vida. E exatamente aqui reside um problema potencial. Mui-tos de nós o pronunciamos com tanta freqüência de forma que elanão mais nos conforte ou console. Para alguns o Pai Nosso perdeuo fio da meada, por assim dizer. Isto não é nada novo. Em seutempo, Lutero lamentou que foi uma grandíssima pena que a ora-ção dada a nós pelo Senhor “seja tagarelada e falada a esmo tãoirreverentemente pelo mundo! Quantos oram o Pai Nosso milharesde vezes no curso de um ano, e se fosse para manterem destaforma por milhares de anos eles não teriam provado de nem oradoum iota! Em uma palavra, o Pai Nosso é o maior mártir na terra(como o são o nome e a palavra de Deus). Todos torturam e abu-sam dele; pouquíssimos tomam do conforto e da alegria que o seubom uso proporciona” (LW 42: 200).2

Certamente ninguém quer orar desta forma. Parte do problemaé que nós sabemos o Pai Nosso de tal forma que podemos pronun-ciar as palavras automaticamente, sem pensar naquilo que estamospedindo a Deus. Orar suas petições pode se tornar pouco mais doque um reflexo instintivo ou hábito cultivado. Ao mesmo tempo, talorar irrefletido pode ocorrer devido ao que conhecemos do PaiNosso, o que é muito pouco! Suas palavras têm se tornado tãofamiliares que nós falhamos ao perceber como cada petição podeabrir um mundo inteiro de significado e providenciar uma ordemtanto para o orar quanto para o viver.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ:EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSONOS CATECISMOS1

Charles Arand

1 Publicado originalmente em inglês sob o título The Batle Cry of Faith: The Catechism’sExposition of the Lords Prayer. In Concordia Journal, January 1995, pp. 42-65. TraduçãoFábio Werner e Clóvis Prunzel.2 Referências às Obras de Lutero se fazem a partir das obras em inglês, Edição Americana,daqui por diante sob a abreviatura LW (Luthers Works).

Page 32: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

32

No intuito de remediar esta situação, Lutero sondou a pro-fundidade do Pai Nosso como poucos o fizeram antes dele. Defato, onde muitos hoje encontram uma teologia da oração emslogans e frases feitas como “a oração modifica as coisas” e “opoder da oração”, Lutero em seus dias voltou-se para o PaiNosso como sendo o melhor ponto de partida para a reflexãoquanto à natureza e propósito da oração. Sempre de novo, quandoele trata do Pai Nosso, Lutero discute a teologia da oração.Quando quer que ele faça um discurso sobre a natureza da ora-ção, ele invariavelmente retorna ao Pai Nosso. Não só faz do PaiNosso o papel central em sua teologia da oração, mas sob váriasnuances essa oração nos leva ao cerne da teologia de Lutero.De fato, Albrecht Peters afirmara, “a oração do Pai Nosso é oponto no qual os insights espirituais de Lutero são cristaliza-dos”.3

A apreciação de Lutero pelo Pai Nosso não terminou com umareflexão quanto ao pensar; ela se estende para a própria vida deoração. Para ele, a fé não tem interesse em uma teologia daoração à parte da prática da oração.4 E ao relacionar o Pai Nos-so como sendo o melhor mestre do orar, Lutero se dirige a elecomo o modelo ideal com relação a todas as nossas outras ora-ções. Onde muitos hoje insistem em usar um acróstico como Ad/C/Ag/S (adoração, confissão, agradecimento e súplicas) comoesboço para orar, Lutero em seus dias ensinava a prática daoração à base daquilo que o Senhor deu aos Seus discípulos.5 Aesperança de Lutero era a de que o Pai Nosso guiasse o povocristão numa vida toda de oração6 e provesse “uma ocasião paramodelar como os crentes deviam orar à parte do Pai Nosso”.7

Lutero praticava o que pregava. Muitas de suas próprias ora-ções foram formuladas à base das petições do Pai Nosso, como

3 Albrecht Peters, “Die Vaterunser-Auslegung in Luthers Katechismen,” Lutherische Theo-logie und Kirche 3 (1979): 69.4 Friedemann Hebart, “The Role of the Lord’s Prayer in Luther’s Theology of Prayer,” Luthe-ran Theological Journal 10 (1984): 10.5 Isto parece ter importantes implicações para o ensino do Pai Nosso na confirmação. Ocatequista não apenas ensinaria a teologia da oração e estaria expondo as petições doPai Nosso, mas ensinaria as crianças a como orar ao utilizar o Pai Nosso como modelo.6 Friedemann Hebart, Luther’s Large Catechism: Anniversary Translation and IntroductoryEssay (Adelaide: Lutheran Publishing House, 1983), p. 6.7 Robert Kolb, Teaching God’s Children God’s Teaching, (Hutchinson, MN: CrownPublishing, 1992), p. 54.

Page 33: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

33

pode ser visto em Um Guia Pessoal de Oração, de 1522, e UmaManeira Simples de Orar, de 1538.8

O PAI NOSSO NOS CATECISMOS

A teologia e prática do Pai Nosso vêm aglutinado nos Catecis-mos como em nenhum outro lugar. Pondo à parte a obra de AlbrechtPeters, as exposições catequéticas de Lutero quanto ao Pai Nossotêm recebido escassa atenção. Mas a pouca atenção que tem sidoprestada é inteiramente favorável. Johann Michael Reu, por exem-plo, manteve que o Pai Nosso foi a parte menos original da explica-ção de Lutero.9 Outros, contudo, tomaram, mais recentemente,uma visão oposta. James Nestingen se refere a ela como a “obraprima” de todo o Catecismo.10 De um viés similar, James Voelz su-geriu que ela é “o trecho mais importante” do Catecismo Menor etalvez a parte “mais querida aos leitores”.11

Servindo como a porta pela qual a teologia penetra na vida, oCatecismo abastece o pastor com uma ponte natural do semináriopara a congregação. Os textos do Catecismo não valem apenaspara serem aprendidos e relembrados; eles valem para ser ponde-rados e para a prática da oração. Isto não está querendo sugerirque os Catecismos ofereçam uma exaustiva e compreensiva teolo-gia da oração. Os Catecismos foram escritos, acima de tudo, parapastores e paroquianos que tinham pouco entendimento de ora-ção, e menos ainda prática quanto a ela. E, contudo e ao mesmotempo, nisto reside sua força. Ao se concentrar sobre a base daoração, o ABC da oração, os Catecismos nos levam ao âmagocentral de uma compreensão cristã da oração. Eles munem os con-

8 Este é, em poucas palavras, o modo que eu uso o Pai Nosso quando o oro. Para este dia[1538] eu me amamentei do Pai Nosso como uma criança, e como um homem velho comie bebi a partir dele e nunca fiquei tão preenchido. É a melhor oração, até mesmo acima doSaltério, que me é tão querido. Está claro e evidente que um verdadeiro mestre o compôse ensinou (LW 34: 200).9 Johann Michael Reu, Dr. Martin Luthers Small Catechism: A History of lts Origin, ItsDistribution and Its Use. A Jubilee Offering (Chicago: Wartburg Publishing House,1929), p. 145.10 James Arne Nestingen, “Preaching the Catechism,” Word and World 10.1 (1990): 33-41.11 James W. Voelz, “Luther’s Use of Scripture in the Small Catechism,”Luthers Catechisms-450 Years: Essays Commemorating the Small and Large Catechismsof Dr. Martin Luther, ed. David P. Scaer and Robert D. Preus (Fort Wayne, IN: ConcordiaTheological Seminary Press, 1979), p. 61.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ: EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 34: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

34

tornos básicos da oração e mostram como a oração se relacionacom o todo do ensino e vida cristã.

A importância do Pai Nosso é refletida nos Catecismos primeiropela sua localização, e segundo, por sua exposição. Se Luterocoloca o Primeiro Mandamento como a pedra angular dos Catecis-mos, ele também coloca o Pai Nosso como sendo o auge, por assimdizer, das três primeiras partes principais. A fé, requerida nos DezMandamentos e outorgada no Credo, vem à expressão no Pai Nos-so. No Primeiro Mandamento, Deus requer que olhemos para Elesomente, com relação a cada dádiva; no Pai Nosso oramos, “PaiNosso” e procuramos tudo o que é bom a partir de Deus apenas. OCredo provê a ponte entre os Dez Mandamentos e o Pai Nosso aonos mostrar que espécie de Deus nós temos de forma que naoração ecoe “a prioridade de Deus é nos falar em sua graça”.12 Aoração, portanto, é a reação às promessas de Deus ao expressar aatitude receptiva da fé se apropriando da generosidade e bondadedivina. De fato, “a fé não pode auxiliar, exceto que expressar a simesma na oração ao Senhor, em quem nossas vidas descansam – edevem encontrar descanso”.13

A oração não somente expressa a atividade da fé, ela incorpo-ra o clamor de batalha da fé. Lutero apresenta o Pai Nosso dentrode um contexto de conflito entre descrença e fé. A oração colocao cristão na linha de batalha entre Deus e Satã. Os parágrafosiniciais na discussão da oração no Catecismo Maior jogam luzesna oposição de Satã com relação à fé. Junto com sua coorte,Satã continuamente importuna e assalta o crente a fim de impos-sibilitar a recepção das dádivas de Deus. A luta da oração torna-se a luta da própria fé. Nós oramos, apesar do mal e do mundo.Por esta razão, Martin Marty se referiu ao Pai Nosso como o hinode combate na vida cristã.14 Enquanto expressão de fé, o PaiNosso declara guerra à descrença e declara automaticamente asua independência do poder do pecado e de Satã. Desta formaLutero coloca, “nossa segurança e proteção residem unicamentena oração” (Catecismo Maior III 30). Tudo isto quer significarinvariavelmente que a teologia da cruz em Lutero encontra ex-pressão aqui no Pai Nosso.

Um exame da introdução e conclusão da exposição de Luterosobre o Pai Nosso assim como sua explicação das petições de-

12 Hebart, “Role,” p. 7.13 Kolb, p. 53.14 Martin E. Marty, The Hidden Discipline, (St. Louis: Concordia, 1962), p. 108.

Page 35: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

35

monstrarão que os Catecismos consideram o Pai Nosso enquantoambos, isto é, o clamor da fé e, ao mesmo tempo, o clamor pelafé. Em ambos os casos, a oração é centralizada completamente naPalavra de Deus do início ao fim.15

INTRODUÇÃO E CONCLUSÃO: “PAI NOSSO...” E “AMÉM”

Lutero identifica o comando e a promessa de Deus como oponto de partida básico para todas as orações. Ambos estão en-cerrados dentro da abertura, “Pai Nosso que estás nos céus”. Emsua exposição do Sermão do Monte (1532), Lutero explica que comas palavras “Pai Nosso”, Deus “nos previne ao lembrar tanto de seucomando quando de sua promessa” (LW 21: 146). No CatecismoMaior, bem como nos assim chamados Dez Sermões (1528), Luterodiscute o mandamento e a promessa profundamente em benefíciode uma exposição explícita da introdução. Em sua explanação daintrodução, que ele inserira no Catecismo Menor em 1531, o man-damento para orar não é aparente a menos que se olhe para osollen (dever-se-ia pedir). A promessa, contudo, está clara comoum cristal: “Deus, carinhosamente, nos convida a crermos...”. Am-bos, mandamento e promessa, são encontrados na explicação deLutero sobre o “Amém” para o Pai Nosso. Lá ele afirma que nossoPai “mesmo nos mandou orar desta forma e prometeu nos escutar”.Como podemos ver, a concentração de Lutero no mandamento epromessa como a base para a oração integra o Pai Nosso de formaextrínseca com as duas primeiras partes principais do Catecismo,os Dez Mandamentos e o Credo, respectivamente.

Por que são o mandamento e a promessa tão importantes? ParaLutero, Satã e o pecado ativamente procuram nos distrair e desfocarao buscarmos toda nossa ajuda e bem em Deus. Lutero encontra,no mandamento e na promessa, muito mais uma base teocêntrica(orientação da fé) do que uma perspectiva egocêntrica (sem fé)para a oração. Ao invés de considerar a oração como pedido lan-çado aos céus na esperança de que a resposta cairá de lá, aoração se origina e reside na iniciativa de Deus, que busca nossaspetições suscetíveis. Se localizássemos as bases para a oraçãodentro de nós mesmos, nossas orações estariam tanto além quan-to aquém. Mas o mandamento e a promessa de Deus permanecem

15 John Kleinig, “The Kindled Heart: Luther on Meditation,” Lutheran Theological Journal 19-20 (1985-86): 142-154.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ: EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 36: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

36

firmes. Considere-os não de si mesmo. Elas sozinhas podem subju-gar a oposição, a reserva e a incapacidade para orar (CatecismoMaior III 2). E desta forma, para Lutero, a oração cristã começa,não conosco, mas com Deus. “Assim como Deus estava em Cristoreconciliando o mundo consigo mesmo, assim na oração Deus con-descende no mundo do homem pedindo e agradecendo e atrai ohomem ao seu próprio mundo”.16

A ORAÇÃO É BASEADA NO MANDAMENTO DE DEUS

Segundo o Catecismo Maior, os obstáculos para orar provêm deduas direções. Por outro lado, há as objeções levantadas por aquelesque são “vulgares” ou “ignorantes” (Catecismo Maior III 6). Elastitubeiam ao relacionar a oração enquanto um assunto de escolhapessoal. De um modo um tanto quanto pio, elas acabam asseve-rando que se elas não podem orar com significado (propósito),caso elas estiverem apenas sendo levadas pelas emoções, entãoseria melhor não orar, em absoluto. Seria melhor evitar a oração detodo do que orar de forma hipócrita. Em tais casos, a oração éoração apenas se ela emergir como o clamor espontâneo do cora-ção ou enquanto a efusão de um coração pesado. A oração éiniciada pelo nosso impulso. Oramos, portanto, quando temos opor-tunidade, tempo, necessidade ou se as circunstâncias externasnos forçam a considerar nossa necessidade pela oração. E entãonossas orações são escassas. Por outro lado, há aqueles a quemLutero chama de “pecadores”. Eles parecem ter consciência sensi-tiva que, quando caem por terra pela lei, não são dignos de orar.Eles mantêm que apenas aqueles que são santos, ou o povo espe-cial de Deus, ou então os pastores é que podem verdadeiramenteorar de uma forma que Deus escute.

Em ambas as objeções, Lutero detecta uma compreensãoantropocêntrica atuando. Em cada uma das circunstâncias, a ora-ção origina e tem como ponto de partida em nós mesmos. Luterodirigiria ambos, o “ignorante” e o “pecador” para fora de uma con-sideração de si mesmos, ou seja, de procurarem em si mesmos umabase ou razão no orar, e os aconselharia a “considerarem o manda-mento de Deus”! Deus não “sugere” que quando nós tivermos ummomento, ele nos escutaria. Tampouco Deus convida à oraçãoquando estivermos preparados por nós mesmos e estivermos, por-

16 Marty, pp. 65-66.

Page 37: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

37

tanto, prontos para orar propriamente. A oração acarreta um “de-veria”. Aqui Lutero avança com vigor. “Considere o mandamento deDeus (Catecismo Maior III 17)! Somos como que limitados ao deverde orar (Catecismo Maior III. 5). Não é opcional (Catecismo MaiorIII 6).17 A oração tem valor e validade não porque oramos ou somosdignos de orar, mas porque Deus nos mandou assim fazer (Catecis-mo Maior III 13). É sobre esta base, em obediência ao mandamentoque todos os santos têm constantemente orado.

Lutero encontra o dever de orar, de forma proeminente, noSegundo Mandamento, que nos conclama a “invocá-lo em todas asnecessidades, orar, louvar e agradecer”. Ao basear a oração naobediência aos Dez Mandamentos, Lutero visualiza o dever de orarà mesma luz enquanto deveres que nós temos em honrar nossospais, amar o cônjuge, pagar nossos impostos e ajudar o nossopróximo quando em necessidade. É um dever da criatura motivadoem nossa natureza como criaturas humanas. E então, o PrimeiroArtigo conclui, “pelo qual é minha tarefa agradecer e louvar...”. Aatividade criativa de Deus procura as reações apropriadas de ora-ção e louvor.18 Assim como todos os mandamentos, o SegundoMandamento, em última análise, nos leva de volta ao Primeiro Man-damento. E assim o faz de duas formas: primeiro, as ameaças epromessas do Segundo Mandamento revelam a determinação deDeus em permanecer nosso Deus (Primeiro Mandamento); e segun-do, a oração expressa a fé requerida pelo Primeiro Mandamento.

A ORAÇÃO E AS DUAS OBRAS DE DEUS

Não passa despercebido que Lutero aplica o mandamento fa-zendo com que ele tome um caráter diferente quando é dirigido apessoas diferentes.19 Em determinado momento, o mandamentotoma a força de uma ameaça: “o mandamento está lá, deves orar”!Ele continua, “eu deveria orar ou me expor à raiva e o desfavor deDeus”. Em outro lugar, no entanto, o mandamento toma a força deum insistente encorajamento: “por este mandamento, ele tornaclaro o suficiente que ele não quer nos afastar ou afugentar, mes-

17 Primeiro, no mandamento, Deus “demanda esta glória de nós para que possamos elevarnossas petições a ele, como uma criança o faz com relação ao seu pai” (LW 21: 146).18 Gunnar Wertelius, Oratio Continua: Das Verhältnis zwischen Glaube und Gebet in derTheologie Martin Luthers, Studia Tlieologica Lundensia (Lund: CWK Gleerup, 1970), p. 67.19 Cf. a discussão de Wertelius sobre a tese de Prenter, segundo a qual aqui a Lei étransformada em Evangelho, pp. 107-112.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ: EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 38: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

38

mo que sejamos pecadores. Ao invés disto, Ele deseja aproximar-nos de Si mesmo de forma que venhamos a nos submeter à suapresença, contando a Ele todos os nossos percalços e problemas,e pedir a Ele por Seu favor e ajuda” (Catecismo Maior III 11). Nestecaso, o mandamento mostra que Deus é verdadeiramente sério obastante no intuito de querer nos amparar. O mandamento évisualizado enquanto um chamariz ou encorajamento. Em outraspalavras, Deus não concederia um mandamento para orar se Elenão se propusesse a ajudar.

Em cada um destes casos, o mandamento para orar parece serusado por Lutero como sendo uma forma de estenografia paraincluir não apenas a palavra rudimentar do mandamento, mas asbases para o mandamento assim como o propósito do mandamen-to. Em outras palavras, Lutero mostra que a Lei nunca pode serdespersonalizada ou abstraída de seu autor. Como ela não pode serseparada de Deus, ela não pode ser separada tanto de seu caráterquanto de sua obra, tanto de Sua ira quanto de Sua graça. Colo-cada positivamente, a Lei deve ser compreendida pessoalmente.Deve ser vista com relação a Deus mesmo e, conseqüentemente,em relação tanto à sua obra própria quanto à sua obra estranha. Edesta forma, assim como ele faz em sua exposição dos Dez Manda-mentos, Lutero coloca o mandamento de Deus no contexto deSuas promessas e ameaças.

Deus não terá seu mandamento tratado como pilhéria sem quefique irado e nos puna se não pedirmos a Ele o que necessitamos,assim como Ele pune todas as outras espécies de desobediência.Tampouco Ele deixará nossas orações ser algo vazio ou ser apenaspalavras desperdiçadas. Pois se Ele não quisesse responder nossasorações, Ele não pediria ao ser humano que orasse, e não tornariatal assunto em um estrito mandamento (Catecismo Maior III 18).

Estas duas palavras diferentes são causadas pelos modos dife-rentes nos quais o mandamento é ouvido. Como um mandamentonão pode ser abstraído do doador da Lei, então ele não pode serabstraído do Sitz im Leben do ouvinte. Para a pessoa piedosa quenão ora a menos que ela possa orar com sentido, Lutero declara,orar ou arriscar-se no desfavor de Deus. Mas ao “pecador” que foijogado ao chão pela Lei, Lutero usa a Lei contra a Lei. ‘Por estemandamento, ele deixa claro o suficiente que ele não quer nosafastar ou afugentar, mesmo que sejamos pecadores” (CatecismoMaior III 11). O “mandamento” nesta sentença é estenografadopelo “Deus quer auxiliar e portanto insiste que peçamos a ele poramparo”.

Page 39: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

39

Em ambos os casos, o mandamento prende nossa atenção nozelo de Deus em ser nosso Deus. Por um lado, Ele adverte contra obuscar auxílio em algo ou alguém mais senão que Ele mesmo. Poroutro lado, Ele encoraja e insiste que venhamos a Ele em toda equalquer necessidade.

A ORAÇÃO E O PRIMEIRO MANDAMENTO

O mandamento para orar (Segundo Mandamento) em última ins-tância reside no mandamento pela fé (Primeiro Mandamento). Omandamento de pedir a Deus por todas as coisas contém dentro desi mesmo a demanda por uma fé que não espera nada senão que asboas coisas a partir de Deus. “A oração, para Lutero, não é umaoração dos lábios, mas a oração interna do coração. É esta oraçãodo coração, mediante a qual pode-se esperar todas as boas coisasde Deus”.20 Do mesmo modo que o coração e a boca estão relacio-nados, assim o estão a fé e a oração atreladas.21 Como Luterodenota, as primeiras coisas a transbordarem do coração e chega-rem à borda são as palavras. O coração que se apega a Deusentão identifica Deus com um nome. Esta mesma seqüência de fé –oração/nome se aplica à ordenação do Terceiro Artigo – Pai Nossoassim como à explanação de Lutero na Introdução: Deus nos con-vida a crermos de forma que possamos pedir. Do contrário, a faltade oração resulta de um olhar para algo mais, para outras “divinda-des”.

A oração, desta forma, coloca o Primeiro Mandamento em práti-ca. É o modo prático pelo qual vivemos do Primeiro Mandamento. Avida de oração cultiva o hábito de “colocar a nós mesmos, nossocorpo e alma, esposa, filhos, servos, e tudo que nós temos, nasmãos de Deus cada dia, e pedir a Ele para proteger-nos quandoalguma dificuldade nos atacar” (Catecismo Maior I 73). Lutero su-gere que isto se encontra nas orações à mesa, assim como nasorações da manhã e noite, uma vez iniciado e tendo continuidadeno dia. As orações da manhã e noite refletem este pensamentoquando a criança ou o adulto ora, “em suas mãos eu recomendo amim mesmo, meu corpo e alma, e todas as coisas”. E então Luteroadmoesta que nós ensinemos as crianças a relacionar Deus como

20 Wertelius, p. 27. Cf. LW 42: 24-26.21 Desta forma, onde “o coração dá a Deus sua honra mediante a fé, a boca concede suahonra através da confissão” (BKS 578, 1-3; Peters, p. 156).

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ: EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 40: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

40

sendo Deus, como o único que provê e protege em cada necessi-dade. Para este fim, ele encoraja os pais a ensinarem as crianças apronunciar orações curtas e diretas, tais como “Senhor Deus, pro-tege-me”! Desta forma, o Primeiro e o Segundo Mandamentos tor-nam-se rotinas constantes e práticas para com as crianças. Emparte alguma isto é mais verdade do que no Pai Nosso. Nota-se suaproeminente localização nas orações de Lutero quanto à manhã enoite, bem como as à mesa.

A conexão entre o Primeiro e Segundo Mandamentos, em últimaanálise, mostra que na oração, a hegemonia de Deus está em riscoem nossas vidas. Seu lugar e permanência enquanto Deus em nos-sas vidas é exposto aos quatro ventos pela oração. Se Deus éDeus, nós oramos. Caso contrário, “aquele que não chamar porDeus ou orar a Ele quando em dificuldades certamente não O con-sidera Deus”.22 No mandamento, Deus insiste em Seu senhorio so-bre toda a criação. Suas ameaças e promessas carregam a deter-minação de Deus em permanecer o Deus a quem procura-se todo obem e chama-se em toda necessidade.

A ORAÇÃO É EVOCADA PELA PROMESSADE DEUS E RESIDE NELAS

A ênfase de Lutero numa perspectiva teocêntrica na oração,em conjunto à sua conexão entre fé e oração, continua quandoele volta sua atenção para a promessa de que Deus escuta aoração. Se o fato de que a hegemonia de Deus esteve em riscono mandamento, a natureza da hegemonia de Deus, a saber, suabondade paternal, persiste em disputa aqui. Se a oração não éum assunto de escolha pessoal, também não é um ato de desesperoou o resultado de uma resignação fatalista: já tentei de tudo, porque não isto? No que poderia piorar? Lutero denomina tal orar deoração “na possibilidade de”. Tal oração considera Deusinconstante, digno de desconfiança, também incapaz de manterSuas promessas. Novamente, é orar sem fé. Na oração verdadeira,contudo, Deus “quer que tenhamos a confiança de que Ele nosconcederá amavelmente o que necessitamos (LW 21: 146). Eledeseja que nos aproximemos dele em alegria e confiança. “Apenastal orar é aceitável, é a oração que exala uma firme confiança de

22 “Comentário sobre o Salmo 118” (1530), LW 14: 61.

Page 41: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

41

que será ouvida”.23 Mesmo se Deus não responder sua oração damaneira precisa que esperavas, não duvide de que Ele não tenhaouvido ela.

Uma vez mais, Lutero nos pede que consideremos a palavraexterna de Deus, neste caso, Sua promessa de que Ele seráatencioso para com as nossas necessidades. Com as palavras,“Pai Nosso que estás nos céus”, “Deus quer nos atrair de formacarinhosa para crermos que ele é o nosso verdadeiro Pai e nós,os seus verdadeiros filhos, para que lhe roguemos sem temor,com toda a confiança, como filhos amados ao querido pai”. Aofalar-se de Deus enquanto nosso Pai celestial, isto quer signifi-car que Ele é nosso verdadeiro Pai. Em seu Um Guia Pessoal deOração Lutero orava: “Visto que Tu não és um pai físico aqui naterra, mas um Pai espiritual no céu, não semelhante a um paimortal e terreno, que nem sempre é digno de confiança e nãopode ser prestativo por si mesmo, Tu nos mostras quãoimensuravelmente melhor Pai tu és e nos ensinas a relacionar apaternidade terrena, a pátria, amigos, possessões, corpo e san-gue tão menores em valor se comparados a ti” (LW 43: 30). Eentão, “com esta espécie de Pai nos é dado o privilégio da peti-ção, e não devemos ser temerosos no exercitar deste privilé-gio”.24 Onde o mandamento quanto a orar se volta para oDecálogo, a promessa de que Deus ouve a oração e é, de fato,“nosso querido Pai”, tal mandamento encontra sua base no Cre-do. Em seus três artigos, “Deus tem se mostrado e aberto pro-fundamente seu coração paternal e seu incrível e absoluto amor”.Isto enfatiza a “extravagância e generosidade” de Deus. Mostraque “Deus é mais ávido no conceder; ele não precisa ser impor-tunado: não há necessidade de você persuadi-lo com suas pala-vras ou entrar em instruções detalhadas...” (ou de barganharcom ele: “vamos fazer um trato”). O que quer que ele nos con-ceda, será em excesso com relação a nossa compreensão eesperança (LW 21: 144; Catecismo Maior III 56). De forma simi-lar, em suas Conversas à mesa (Table Talks, Tischreden), Luteroexpressa, “Nosso Senhor Deus sempre nos concede além do quepedimos: se pedirmos verdadeiramente por um pedaço de pãoele nos concederá um campo inteiro”.25 Em adição a toda a cria-

23 Hebart, “Role,” p. 10.24 Voelz, p. 62.25 WATR 4: 568 = No. 4885; cf. Vier trostliche Psalmen an die Konigen zu Ungarn, 1526,WA 19: 578, 13-24.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ. EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 42: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

42

ção, Deus nos concede dons inexpressivelmente eternos, SeuFilho e Espírito. E então isto nos ensina o que receber e esperar,em suma, conhecer Deus perfeitamente (LC 11.68-9).

O Segundo Artigo nos dá o direito e privilégio de orar. E este é umponto vital. Deus pode requerer a oração nos mandamentos, mascomo uma criatura perdida e condenada se atreve aproximar-se dele?Em sua Exposição do Pai Nosso ao Homem Simples, 1519, Luteroindicou em termos vívidos que a confiança que nós podemos colocarsomente em Deus enquanto nosso Pai está baseada no Filho do Ho-mem: “em sua pele e sobre suas costas devemos nos apoiar” (LW42:23). E então Lutero poderia orar, “Ó Poderoso Deus, em sua imere-cida bondade para conosco e mediante os méritos e mediação de seuúnico e amado Filho, Jesus Cristo, tu tens permitido, e até mesmomandado e nos ensinado a nos relacionarmos contigo e a clamar a tienquanto Pai de todos nós. Tens feito tanto embora e ao invés distopoderias com justiça e propriamente ser um severo juiz sobre ospecadores visto que temos agido tão freqüentemente contra suadivina e boa vontade e temos também despertado sua ira” (LW 43:29).

No Catecismo Maior, Lutero descreve Cristo enquanto o espelhodo coração do Pai, sem ele, não vemos nada exceto que um terrí-vel e irado juiz. A promessa da graça e vitória em Cristo torna aoração possível. Que “nosso Pai” é nosso “querido Pai” encontrasuas bases na morte e ressurreição de Cristo. Orar “Pai Nosso” é,portanto, orar em nome de Jesus Cristo.

Se o Segundo Artigo nos concede o direito e privilégio de orar, oTerceiro Artigo nos abastece com a força e confiança no orar. Alémdo mais, se eu não posso por minha própria razão ou força crer emJesus Cristo, tampouco posso por minha própria razão ou força meaproximar de Deus em oração. Enquanto conhecemos o Pai doPrimeiro Artigo mediante o Cristo do Segundo Artigo, não podemosconhecer o Cristo exceto que pelo Espírito Santo do Terceiro Arti-go. Quando Deus nos convida no Evangelho a crermos que Ele énosso verdadeiro e amado Pai, o Espírito Santo adentra em nossoscorações e clama “Abba Pai”. E desta forma nós nos movemos doTerceiro Artigo para o Pai Nosso. Esta seqüência ecoa na explana-ção de Lutero quanto à Introdução ao Pai Nosso. No CatecismoMenor, Deus nos convida a crermos de forma que com “toda ousa-dia e confiança” nós podemos pedir a Deus como filhos amadospedem ao seu querido Pai. Em outra parte Lutero ora, “agora,mediante sua misericórdia implanta em nossos corações uma confi-ança confortadora em seu paternal amor, e deixe-nos experimentaro doce e agradável sabor da certeza (qual a de criança) de que

Page 43: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

43

podemos alegremente pedir a ti, Pai, te conhecendo e amando eclamando a ti em toda tribulação. Guarda-nos para que possamospermanecer seus filhos e nunca tornarmo-nos culpados de fazer deti, queridíssimo Pai, nosso temeroso juiz, quando passaríamos en-tão de seus filhos para seus inimigos” (LW 43:29).

O cristão então corre para o Pai como as crianças correm esaltam para os braços do pai, sabendo que ele cessa de fazerqualquer coisa para pegá-las e ouvi-las.

Lutero acentua a importância do aproximar-se de Deus em confi-ança e ousadia em sua exposição a respeito do “Amém” bem como emsua introdução. Lá ele enfatiza “que deveríamos estar certos que taispetições são aceitáveis e ouvidas por nosso Pai nos céus...”. “Estapalavra [amém] não é nada mais que uma afirmação inquestionávelde fé da parte daquele que não ora como uma forma de casualidade epossibilidade, mas sabe que Deus não mente visto ter prometido con-ceder às súplicas” (LC III 120). De forma similar, após a oração damanhã, Lutero encoraja, “portanto vá para o trabalho alegremen-te...”. E depois da oração noturna: “podes dormir de uma e em bomânimo”. Em outras palavras, não fique acordado, agitando-se e viran-do-se no travesseiro, temendo pelos eventos do amanhã.

AS PETIÇÕES DO PAI NOSSO: ORAR É PEDIR

Quando nos voltamos para as petições do Pai Nosso chegamos nanatureza, forma e conteúdo da oração em si. Para Lutero, a oraçãoque flui da fé vem de um coração peticionário. Este tema já emergena introdução: “Deus carinhosamente nos convida a crermos que Eleé nosso verdadeiro Pai e nós, os seus verdadeiros filhos de forma quecom ousadia e confiança possamos pedir a ele enquanto filhos ama-dos ao querido Pai”. Orar (beten) é pedir (bitten). O Catecismo Maioro coloca desta forma, “uma pessoa que deseja orar deve apresentaruma petição, nomeando e pedindo por algo que ela deseja” (Catecis-mo Maior III 24).26 À primeira vista, isto pode parecer como umaaproximação notavelmente autocentrada de orar. Nossa concen-tração está mais propriamente voltada no conseguir do que no dar.Parece aumentar o perigo “de que critérios egoístas tornar-se-ãodeterminantes e a questão primordial será: O que tudo isto contri-

26 Isto não quer dizer que Lutero não veja outras espécies de oração como inválidas, taiscomo confissão, agradecimento e louvor. Porém, estas também devem ser orientadaspara a recepção das dádivas divinas. De “A Simple Way to Pray”.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ. EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 44: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

44

buirá a mim e a nós”?27 Porém a oração para Lutero não éeudemonista (ética a qual tem por fim supremo a felicidade), masteocêntrica. Numa reflexão mais profunda será visto que sua com-preensão de oração de fato corresponde à nossa relação atualcom Deus: Ele concede, nós recebemos. Ou seja, assim como vi-mos no Credo, a natureza de Deus em conceder. Quando não bus-camos de Deus tudo aquilo que Ele prometeu, estamos negandoque Ele é Deus. Quando a fé recebe, assim na oração, devemosdesejar receber algo de Deus (Catecismo Maior III 25). A oraçãodeve ser primeiramente petição visto que neste éon ela não podeser nada além disto. Nossa situação sempre será de “alçar ao Painossas necessidades interiores e exteriores”.28 Quer permaneça-mos diante de Deus como criaturas no Primeiro Artigo ou comopecadores ante Deus no Segundo e Terceiro Artigos, “sempre so-mos os receptores”!29

Então, pelo que deveríamos orar? Oramos por aquilo de quenecessitamos. O que precisamos? Novamente, Lutero dá início apartir da palavra de Deus. O Pai Nosso mostra que Deus está tãointeressado pelas nossas necessidades que Ele não apenas prome-te ouvir nossa oração, mas Ele toma a iniciativa de colocar aspalavras certas em nossas bocas com as quais oraremos (Catecis-mo Maior III 22). Isto por si só faz do Pai Nosso, de longe, a oraçãosuperior com relação a qualquer oração que possamos idealizar pornós mesmos (Catecismo Maior III 23). Onde e quando os Dez Man-damentos ensinam o que Deus requer, o Credo o que Deus conce-de, assim o Pai Nosso ensina pelo que pedir. O Pai Nosso primeiro setorna a Palavra de Deus para mim e então se torna minha palavraem direção a Deus. Isto torna a oração certeira e nos dá confiançade que é aceitável. Aquilo pelo que orarmos (no Pai Nosso, obvia-mente) é precisamente aquilo que Deus quer que oremos e desejanos conceder.

Através deste ponto, Lutero desenvolve a excepcional idéia deque o Pai Nosso é o ideal em oração “não somente porque articulanossas necessidades conhecidas ou ‘sentidas’, mas porque na ver-dade abre nossos olhos para nossas reais carências” ou situaçãoatual.30 Em seu comentário sobre o Sermão do Monte, 1530-1532,

27 Kolb, p. 255.28 Robert Jenson, A Large Catechism (Delhi, NY: ALPB), p. 39.29 Herbert Girgensohn, Teaching Luther’s Catechism (Philadelphia: Muhlenberg Press, 1959),pp. 52-53.30 Hebart, “Role,” p. 9.

Page 45: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

45

Lutero louvava o Pai Nosso visto que “inclui toda sorte de necessi-dades que devem nos impelir a orar e das quais podemos diaria-mente nos lembrar com estas breves palavras” (LW 21: 145; Cate-cismo Maior III 34, 119).31

Oratio dominica, o Pai Nosso, é uma oratio orationum, umaoração acima de todas as orações; a mais excelente oração ensi-nada pelo mais excelso Mestre. Nela contém todo amparo físico eespiritual; e é o conforto mais excelente nas tribulações e angústi-as, assim como na hora derradeira (WATR 5: 582, No. 6288; cf.WATR 1: 34, No. 88).

Pelos idos de 1519, em sua Exposição do Pai Nosso ao Leigo,Lutero falava das petições como “sete lembretes de nossa misériae pobreza pelo meio das quais, levados ao conhecimento de nósmesmos, possamos ver que vida miserável e perigosa levamos naterra” (LW 42: 27; Catecismo Maior 111. 24, 27; cf. CatecismoMaior 111. 119).

Dada a função reveladora do Pai Nosso, pode-se perguntar se aoração não é um pouco mais do que uma auto-reflexão e umaauto-introspecção.32 O Catecismo, contudo, não tem interesse naoração enquanto terapia ou catarse. Focaliza-se em nossa relaçãocom Deus. O Pai Nosso nos instrui quanto às nossas necessidadesde forma que aprendamos o que esperar e receber de Deus. Ao nosensinar sobre nossas necessidades, o Pai Nosso nos mostra comoabrir nossos recipientes a fim de recebermos Seus dons: “Estaoração é, portanto, uma expressão de clamor ao Pai, buscandoSua misericórdia em todos os tempos. Por conseqüência, as ne-cessidades ‘mencionadas com freqüência o suficiente no Pai Nosso’nos levam a dirigir nossas inquietações a Deus, “não porque elenão sabia nada sobre elas, mas porque assim tu serás inspirado apedires por coisas maiores e mais altas, e abrires seu sobretudo eenvergá-lo para receber muitos dons” (Catecismo Maior 111. 27,144). Aqui novamente é a convicção do reformador quanto à pro-messa graciosa de Deus que determina sua mudança de “foco naoração de uma apresentação de nossas necessidades a Deus, paraa oração como o lembrete a nós de nossas necessidades e bên-çãos que Deus concede”.33 O Pai Nosso torna-se um instrumentodo Evangelho e mostra que a oração vem a ser centrada nos meiosda graça.

31 Wertelius, pp. 94-95.32 Hebart, “Role,” p. 9.33 Ibid.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ. EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 46: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

46

Então, por quais necessidades e dons temos orado no Pai Nos-so? Com respeito à forma, a ordenação e agrupamento das peti-ções há algo significante. Elas se adaptam em dois grupos, cadaum deles “muito bem amarrados”.34 Com a tradição cristã ocidentalante ele, Lutero juntou as petições em torno das assim chamadasTUAS petições35 (as três primeiras) e NOSSAS petições36 (as últi-mas quatro). As três primeiras diferem das últimas quatro em doismodos. Em termos de forma, elas não são colocadas enquantosúplicas diretas ou como imperativos. Ao invés disto, elas tomam aforma de uma oração desejável e, portanto, uma “forma reservadade petição, mais indireta”.37 Oramos, “santificado seja o teu nome”.As quatro últimas petições são construídas enquanto mandatos ouimperativos diretos. Por exemplo, “o pão nosso de cada dia nos dáhoje”. Com respeito às suas explanações, Lutero distinguiu as trêsprimeiras das quatro restantes mediante o uso de duas questões,“o que isto significa”? seguida por “como isto é feito”?

Quanto ao conteúdo, as três “TUAS petições” centram-se emDeus. Em certo sentido, pode-se dizer que primeiramente oramospor Deus: por seu nome, por seu reino, e por sua vontade. Ou comoLutero o coloca, estas petições estão relacionadas não com nossosassuntos, mas com os de Deus, com seus grandiosos atos, com suaobra.38 Como resultado, “a primeira, segunda e terceira petiçõestratam dos mais altos benefícios que recebemos dele” (LW 21: 146).Todas as três das TUAS petições desenvolvem a intervenção dogoverno espiritual de Deus neste mundo de morte que está passandode forma efêmera.39 A partir delas buscamos a intervenção einterferência de Deus em nossas vidas, tanto no tempo quanto naeternidade. Após termos orado pelos tesouros eternos indizíveis,então oramos por aquelas que tratam de nossa vida aqui na terra. Oconteúdo das quatro “NOSSAS petições” se concentram em nossasnecessidades do “por enquanto”: nosso alimento, nossos erros, nossomal etc... Enquanto as “TUAS petições” se focalizam na intervençãode Deus em nossas vidas, as NOSSAS petições se estendem emdireção ao futuro escatológico de Deus”.40

Quando Lutero expõe estas sete petições, dois interesses do-

34 Jenson, p. 57.35 Numa tradução literal, “suas petições”.36 “Nossas petições”.37 Girgensohn, p. 232.38 Ibid.39 Albrecht Peters, Die Zuordnung der drei zentralen Hauptsücke, vol. 1: Die Zehn Gebote,(Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1991), p. 47.40 Ibid., p. 48.

Page 47: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

47

minantes ocupam sua atenção, os quais por sua vez se tornam ostemas implícitos em cada petição: 1) o preeminente dom pelo qualse ora é a fé, ou seja, Deus. O cristão ora por fé para recebertodas as dádivas de Deus enquanto dádivas, como realidades navida; e 2) ele ora contra a descrença, isto é, descrença enquantoo poder de Satã que nos afasta de Cristo. De fato, segundo oCatecismo Maior, todas as nossas orações são essencialmentedirigidas contra o diabo e nosso velho Adão. Em certo sentido,oramos por nós mesmos e contra nós mesmos. Lutero dirige nossaatenção para as forças espirituais que estão ataviadas em oposi-ção a nós e que tentam frustrar o senhorio de Deus; tambémtentam impedir que a sua vontade seja feita: o diabo, o mundo enossa carne juntos resistem.41 Como uma atitude de fé, a oraçãoentão declara guerra contra a descrença, razão pela qual ela bus-ca a fé contra os ataques de Satã. Ao orar, uma pessoa coloca a simesma do lado de Deus na batalha contra o diabo e, por conse-guinte, vence as investidas do diabo.42 Em última instância, a féolha para a vitória final e o regozijo livre do reino de Deus.

ORAR POR FÉ: APROPRIAR-SEDAS DÁDIVAS DE DEUS PRO NOBIS

Quando Lutero procede a partir de cada lição, ele denota queoramos para nos apropriar dos dons prometidos por Deus comorealmente nossos. Isto é evidente a partir de várias considera-ções. Primeiro, em cada petição no Catecismo Menor, Lutero res-ponde a questão, “o que isto significa?” ao admitir que aquelascoisas virão, quer oremos ou não. “O nome de Deus é certamentesanto em si mesmo; o reino de Deus vem seguramente por si mes-mo, sem nossa oração; a boa e graciosa vontade de Deus é feitasem a nossa prece; e Deus seguramente concede o pão de cadadia a cada um sem as nossas orações, até mesmo às pessoasmás...”. No Catecismo Maior, Lutero continua este tema até a QuintaPetição, “não que Deus não perdoe o pecado até mesmo sem ouantes de nosso orar; ele nos dá o Evangelho, no qual não há nadaexceto perdão, antes mesmo que venhamos a orar ou pensar arespeito” (Catecismo Maior III. 89). Estas coisas não são depen-dentes de nossa oração. De acordo com a exposição de Lutero

41 Catecismo Maior III. 2, 51.42 Wertelius, p. 76.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ. EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 48: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

48

sobre o Pai Nosso nos Catecismos, a oração não cria, em primeirainstância, a santidade do nome de Deus, nossas orações não efe-tuam a vinda do seu reino ou traz o cumprimento de sua vontade,etc... O mesmo também se aplica ao pão de cada dia. Estas coisasDeus prometeu fazer e continuará a realizar.

Então, por que orar? Lutero toca no ponto da questão em suaexposição de Mateus 6.8, “nosso Pai celestial sabe do que precisa-mos antes mesmo de pedirmos”; visto que ele conhece e vê todasas nossas necessidades muito melhor do que nós mesmos as ve-mos e conhecemos, por que ele faz com que venhamos a trazernossas petições e apresentar nossas necessidades, ao invés dedá-las a nós sem o nosso pedir? Afinal de contas, ele concedelivremente ao mundo inteiro todo o bem necessário a cada dia,como o sol, chuva, colheita e dinheiro, corpo e vida, coisas asquais ninguém pede ou agradece. Ele sabe que ninguém vai muitolonge, ou mesmo por um dia, vive sem luz, alimento e bebida.Então, por que ele nos diz para pedir por tais coisas (LW 21: 144)?Duas razões permanecem no pensamento de Lutero – e ambascontinuam sob o prisma do Primeiro Mandamento. Primeiro, a ora-ção busca tornar seu mesmo tudo aquilo que Deus prometera.Segundo, somos incapazes de realizar isto por nós mesmos.

Oramos para que isto possa ser “feito entre nós também”, Vistoque a oração busca receber enquanto dádivas tudo aquilo que Deusconcede até mesmo sem o nosso pedir. Deus nos quer orando por fépara recebermos suas dádivas. Este é justamente o caso na segundametade da resposta de Lutero à questão, “o que isto significa”? Naoração, a fé busca ter Deus e suas dádivas como realmente nossas,pro nobis. Por fim, a oração vem a ser algo que nos conscientiza denossas necessidades de forma que “pedimos aquilo que podemos terem Deus, e todas as coisas boas que ele tem, enquanto nossas defato” (Catecismo Maior 111. 60). Então oramos para que o nome deDeus possa ser mantido santo entre nós; que o Reino de Deus possavir também a nós; que sua vontade possa ser feita entre nós; e maisimportante e evidente, “que Deus nos encaminhe a percebermos istoe recebermos o pão nosso de cada dia com gratidão”. E desta forma,a Quarta Petição não é uma oração por alimento; Deus já fez todo onecessário para a provisão de alimento. Lutero responde que Deusnos convida a orar “a fim de que tenhamos o conhecimento e confes-semos que ele já está concedendo muitas bênçãos sobre nós e queele pode e nos dará ainda mais” (LW 21: 144).

De fato, diz Lutero, podemos orar apenas por coisas que já sãoconcedidas! “A fé não ora no escuro. A oração não procura uma

Page 49: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

49

dádiva desconhecida”.43 E isto ocorre precisamente porque Luteropressupõe a bondade e generosidade de Deus de forma que ele vêno orar uma radical expressão de fé que tem conhecimento dasdádivas que recebe até mesmo sem oração”.44 No orar, a fé avançapara uma consciência crescente e para uma apropriação das dádi-vas de Deus. A oração faz em mim uma reviravolta, afastando-mede mim mesmo, e reconhecendo Deus como Deus:

“Quando meu coração é voltado a Ele e é despertado nestecaminho, então eu O louvo, agradeço-lhe, tenho refúgio nele emminhas necessidades, e espero ajuda dele. Como conseqüênciadisto tudo, aprendo mais e mais a reconhecer que espécie de DeusEle é” (LW 21: 144).

O ser humano não cria as condições da existência humana e domundo, ele os descobre já ali – antes que ele ore. Mas mediantenosso orar esta realidade, existente antes enquanto “sem o nossoorar” nos concede uma dádiva, entrando em nossa própria existên-cia. Através da oração podemos perceber o que já está ali.45

Vilmos Vajta percebe o fato de que na compreensão em Lutero,“a oração individual é em si mesma levada à realidade de Deusenquanto uma realidade aceita por aquele que ora com fé”.46

Então a oração, para Lutero, torna-se “a expressão mais pro-funda da fé, visto que visualiza em Deus cada uma das coisasboas”.47 A oração busca tudo somente em Deus ao reagir ao seumandamento – uma expressão prática de obediência ao PrimeiroMandamento (Catecismo Maior III. 117 e 1.1-3, 15, 26) – e à basede Sua promessa. Alguém que pede genuinamente sabe que o queele tem é uma dádiva de Deus, e a partir do seu coração ele diz:“Senhor, eu sei que por mim mesmo não posso produzir ou preser-var nem mesmo um pedaço do pão de cada dia; tampouco possome defender contra qualquer espécie de dificuldade ou desgraça.Portanto, volto-me para ti e suplico com relação a elas, visto quetu mandas assim fazer ao prometeres concedê-los a mim, podendoantecipares a mim mesmo em cada pensamento e simpatizarescomo cada uma das minhas necessidades” (LW 21: 145).

Esta oração encontra sua base no Primeiro Artigo da Fé que

43 Hebart, “Role,” p. 11.44 Ibid., p. 10.45 Vilmos Vajta, “Luther als Beter,” Leben und Werk Martin Luthers von 1526 bis 1546.Festgabe zu seinem 500. Geburtstag, ed. Helmar Junghans. (Gottingen: Vandenhoeck &Ruprecht, 1983) 1: 85.Citado em: Hebart, “Role,” p. 1046 Vajta, p. 285. Citado em: Hebart, “Role,” p. 11.47 Hebart, “Role,” p. 9.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ. EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 50: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

50

trata da generosidade de Deus e de nossa reação (Catecismo Mai-or 11.19, 23, 24). Não ter outras divindades é buscar somente emDeus cada uma das coisas boas. E é exatamente isto que a oraçãofaz! (LW 21: 145). A oração é o ato decisivo de ser um cristão, deobedecer o Primeiro bem como o Segundo Mandamento.48

Buscar aquilo que necessito em Deus significa que não busco acoisa em mim mesmo. A oração, conseqüentemente, reconhecenossa necessidade e desamparo. Isto se vincula ao Terceiro Artigodo Credo. Enquanto não puder por minha própria razão ou forçacrer em Jesus Cristo, assim também não posso por minha própriarazão ou força santificar o nome de Deus, receber seu reino, cum-prir sua vontade, receber o pão de cada dia com gratidão, que elenos concede sem a nossa oração, i.e, mediante o trabalho (noteque tudo isto tem a ver com a perspectiva coram deo), e portantooro e clamo em minha NECESSIDADE! Ainda que clamar em minhanecessidade seja para morrer, ou para confessar minha incapacida-de e buscar ajuda em Deus. Veja que em todas estas petições,oramos por aquilo que não podemos cumprir por nós mesmos, ouatravés de nosso agir. E então assim como o Espírito Santo mechama pelo Evangelho, assim Deus santifica o seu nome, traz o seureino e cumpre sua vontade.

Com a segunda questão, “como isto é feito?”, Lutero rompecom a tradição e suplica por uma interpretação distintivamente apartir do Evangelho. Onde muitos na alta Idade Média iriam apelarna primeira questão com exortações a respeito de como realizar avontade de Deus, etc..., Lutero se focaliza em Deus santificandoSeu nome, Deus anunciando Seu reino, Deus realizando Sua vonta-de entre nós. Então, a Primeira Petição: “concede-nos isto queridoPai do céu... guarda-nos disso, ó Pai celeste!”; Segunda Petição:“quando nosso Pai celeste nos dá o seu Espírito Santo...” TerceiraPetição: “quando Deus desfaz e impede...” As Thy Petitions (TUASpetições), portanto, mais provavelmente querem significar que aDeus está sendo pedido que santifique seu nome no mundo e rea-lize a sua vontade, assim como é requerido que traga o seu Reino.Se esta interpretação estiver correta, isto quer dizer que estetrecho da oração se refere mais propriamente à graça de Deus doque qualquer atividade humana.49

48 Martin E. Schild, “Praying the Catechism and Defrocking the Devil: Aspects of Luther’sSpirituality,” Lutheran Theological Journal 10 (1976): 55. Cf. nota de rodapé 15.49 Bonnie Bowman Thurston, “Matthew...” Interpretation 41 (April 1987): 177.

Page 51: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

51

ORAÇÃO POR FÉ CONTRA AS INVESTIDAS DE SATÃ

Como uma expressão de fé que busca a intervenção de Deus eum envolvimento ativo em nossas vidas, a oração declara guerracontra cada forma de descrença onde quer que possa ser encon-trada. E então em adição a orarmos por nós mesmos, simultanea-mente oramos contra nós mesmos. Descrença e o velho Adão sãodespertados a fazerem oposição à fé e oração. Como resultado, avida aqui é “vivida sob a cruz, sob as investidas de Satã e suastentações”.50 O cristão está constantemente sujeito a ataques,provas e tentações. A oração do cristão sempre expressa esteconflito. O cristão ora apesar de toda a oposição. Apesar de é umaexpressão chave. Pois quando quer que um cristão ore, ‘Paicelestial, seja feita tua vontade’, Deus replica lá do alto, ‘Sim,querido filho, de fato será feita apesar do diabo e de todo omundo’, e poderíamos adicionar, apesar de todas as aparências.Satã não pode se opor à palavra de Deus que funciona na fé (LW43: 232). O cristão vive neste combate entre fé e descrença,entre Deus e Satã. A compreensão do Catecismo sobre a luta docristão se opõe em agudo contraste à compreensão usual dotempo e locus da batalha por fé. “Em nosso próprio tempo, abatalha da fé é vista primariamente como a luta com o mal antesda conversão. Para Lutero, é mais decididamente a batalha da féem si mesma na vida que segue do cristão”.51 Como resultado, oconflito da batalha domina enquanto o tema da exposição deLutero quanto ao Pai Nosso no Catecismo Maior quase que desdeo princípio (Catecismo Maior III. 2)”.52

Do início ao fim, o diabo nos acusa “não dos pecados insignifi-cantes, nem de óbvios, mas precisamente de idolatria” - o rompi-mento com o Primeiro Mandamento!53 Como o Catecismo Maior ocoloca, “a humanidade está em tal situação que ninguém podecumprir os Dez Mandamentos perfeitamente, ainda que tenha co-meçado a CRER”. Além disto, “somos tão fracos no que tange aestarmos à altura do diabo, de todo seu poder e toda sua forçaque se ergue contra nós, tentando nos pisotear sob seus pés

50 Kolb, p. 54.51 Hebart, Large Catechism, p. 32.52 Albrecht Peters, “Die Vaterunser-Auslegung in Luthers Katechismen,”Lutherische Theologic und Kirche 3 (1979): 76-78. Veja Anfecthung. Olhe também Cate-cismo Maior III. 30.53 Hebart, “Role,” p. 12.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ. EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 52: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

52

(Catecismo Maior III. 30)”. O diabo nos faz sentirmos culpados (LW16: 310). Ele clama vir em nome de Deus e procura nos levar aodesespero. Selecione suas armas com cuidado. O que tem suprimi-do os conselhos e conspirações de nossos inimigos e refreado seudesígnio assassino e sedicioso pelo qual o diabo esperava nos des-truir e também ao Evangelho como também espera que as oraçõesde poucos... (Catecismo Maior III. 31). Pela oração somente pode-remos diligentemente desafiar ao diabo (Catecismo Maior III. 32).Aqui, “devemos nos refugiar na Oração do Senhor para que Satãnão nos tente além de nossas forças” (LW 16: 311; 21: 139, 149,cf. p. 229 em Mt 7.7).

Deixe-me primeiro dar uma olhada através das TUAS petiçõespara trazer à tona esta dimensão da batalha. Na Primeira Petição,Lutero adverte contra a maléfica doutrina e a perseguição do Evan-gelho (Catecismo Maior III. 47). Na Segunda Petição, ele ora que oreino de Cristo possa “prevalecer entre nós mediante a Palavra e oEspírito, e o reino do diabo seja derrotado de forma que ele nãotenha mais poder sobre nós, e que o reino do diabo possa serdestruído em companhia do pecado, morte e inferno, todos exter-minados (Catecismo Maior III. 54). Na Terceira Petição, ele alertacomo o diabo se opõe e obstrui o cumprimento das duas primeiraspetições (Catecismo Maior III. 62). “Como um inimigo furioso, eleruge e fica encolerizado com todo seu poder e força, ordenandotodos os sujeitos a ele e até mesmo recrutando o mundo e nossaprópria carne como seus aliados (Catecismo Maior III. 62).

Em termos de NOSSAS petições, primeiro oramos contra tudoque interfere em saborearmos o pão nosso de cada dia (CatecismoMaior III. 72). A Quarta Petição “é especialmente dirigida contranosso principal inimigo, o diabo, cuja proposta e desejo total éimpedir ou interferir em tudo que temos recebido de Deus. Dói-lheque alguém receba um bocado de pão de Deus e coma em paz”(Catecismo Maior III. 81). Na Quinta Petição, Lutero adverte: “Satãestá ao nosso encalço, assediando-nos de todos os lados e, con-forme ouvimos, dirigindo seus ataques contra todas as petiçõesanteriores, de forma que nem sempre é possível permanecer firmeem tal conflito incessante” (Catecismo Maior III. 87). A Sexta Peti-ção, uma vez mais encontra os assaltos de Satã, do pecado emorte, mas de uma perspectiva diferente. Lutero devota um amploespaço descrevendo detalhadamente as três espécies de tenta-ções ou investidas que os cristãos encontram, ou seja, nossa car-ne (Catecismo Maior III. 102), o mundo que nos intenta (Catecis-mo Maior III. 103) e o diabo que nos persegue e importuna de

Page 53: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

53

todos os lados (Catecismo Maior III. 104). Deve-se esperar ata-ques e suprimi-los.

Então, cada uma das explanações do Pai Nosso reconhece oconflito enquanto busca a ajuda de Deus. Ainda que o tema dabatalha seja evidente em todas as petições, ele alcança o apogeunas assim chamadas NOSSAS petições. Em particular, a última peti-ção destoa das seis primeiras no que a oração por proteção contrao mal é seu tema explícito. Ela é a conditio sine qua non para ocumprimento de todas as outras. É o diabo que frustra e nos ata-ca. Ele “luta contra estas petições e resiste a elas” (CatecismoMaior III. 62, 62-67). Portanto, para Lutero, a oração contra o malé a oração decisiva; pois o diabo é aquele que pode causar a nossaqueda na descrença (Catecismo Maior III. 105) impossibilitando-nos de apropriarmo-nos das dádivas de Deus enquanto nossas defato. A última petição condensa “tudo na idéia de que o sumo totalde todas nossas orações deveria ser no intuito de afugentar estenosso inimigo”. Esta petição é dirigida contra todo infortúnio – todomal que recai sobre nós a partir do reino do diabo, toda misériatrágica e dor no coração... “Nada há para se fazer na terra excetoque orar constantemente contra este arquiinimigo” (Catecismo MaiorIII. 116). E então o Pai Nosso vai ao coração de nossas necessida-des mais profundas. Esta petição vem por último porque se é parasermos protegidos e livres de todo o mal, o nome de Deus deveprimeiro ser santificado... (Catecismo Maior III. 118). Aqui todas asaflições podem nos cercar a fim de que nunca tenhamos nós umadesculpa ao negligenciar a oração (Catecismo Maior III. 119).

Na compreensão de Lutero a respeito do Pai Nosso, o cristãotem se tornado, através da fé em Cristo, o motivo da batalha paraa luta entre vida e morte.54 Agora, tudo na vida dele ou dela édirigida à batalha – espiritual e física, a externa e interna. Isto éparticularmente evidenciado na Terceira e Sexta petições. Na Ter-ceira, os ataques sobre o cristão na tríade de Satã, pecado emorte vêm de fora. Provém dos governantes ou pessoas que per-seguem o Evangelho. Na Sexta Petição, os ataques têm origemdentro do cristão. Peters vê a Terceira Petição em linhas de umentendimento mais tradicional de Anfechtungen do cristão e o Sex-to como um aprofundamento dele ao mostrar uma vez mais que abatalha, em última análise, é inserida como tópico do Primeiro Man-damento. Relaciona-se a si mesmo com assuntos de descrença edesespero. O Catecismo vê a batalha empregada por Satã como

54 Regin Prenter, Creation and Redemption, (Philadelphia: Fortress, 1967), p. 210.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ. EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 54: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

54

fúria a partir de aliciamento e sedução a investidas e ataquesmanifestos. Em ambos os casos, não se pode pensar deles comoalgo de fácil identificação. “E, contudo, este combate continua e édecidido em um sentido bem real entre Cristo e Deus. Em Cristoocorre o encontro e interseção crucial de todas estas forças queafetam o pecador”.55

Nisto reside uma resposta para uma das questões com as quaiso catequista pode lutar, a saber, como ensinar as petições do PaiNosso distintivamente dos Dez Mandamentos. Afinal de contas,eles tratam de tópicos muito semelhantes (Segundo Mandamento= Primeira Petição). Mas onde Lutero acena para as ameaças epromessas de Deus mediante os Dez Mandamentos e o PrimeiroArtigo do Credo (cf. Catecismo Maior), no Segundo Artigo a dialéticadas ameaças e promessas retrocedem a um patamar com umaênfase maior. Neste lugar, Lutero introduz e realça as Anfechtungen,as investidas de Satã, pecado e morte. Tendo sido libertos de Satãpara Deus, Satã agora empreende uma batalha implacável para nosreaver para si. O Terceiro Artigo continua este tema, a tensãoentre descrença e fé: Creio que não posso “viver no contexto dalei [Dez Mandamentos], mas sob o poder do evangelho [Credo], ocrente é simultaneamente descrente”.56 Deste modo a exposiçãodo Pai Nosso aprofunda o significado dos Dez Mandamentos.57

EXCURSUS: PERSUADINDO A DEUS

Como mencionado anteriormente, as exposições do Pai Nossono Catecismo não providenciam uma exaustiva teologia da oraçãobem como não fornecem respostas para todas as questões quepossam ser levantadas. Elas, no entanto, providenciam um pontode partida para o pensar mediante algumas questões que possamsurgir. Por exemplo, há lugar na exposição de Lutero para a idéia deque “a oração modifica as coisas”? Sua concepção de oração en-quanto súplica de que reconhecemos e nos apropriamos daquiloque Deus promete exclui o prevalecer sobre Deus de um tal modoque altere nossa situação ou modifique Sua mente? Não. Mas quandoLutero ora, ele o faz de acordo com os temas do Pai Nosso. Doispontos podem ser ressaltados. Primeiro, Deus limita-se ao que pro-

55 Schild, p. 51.56 Nestingen, Preaching, p. 38.57 Peters, “Zuordnung,” p. 47.

Page 55: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

55

metera. Segundo, “a oração cristã não faz referência ou apelo àabscondicidade de Deus ou vontade secreta fora de Sua Palavraem promessa”.58 Ao mesmo tempo, dentro do plano e propósito deDeus há, para Lutero, “uma elasticidade de acordo com a qual, emcertas ocasiões, ele responde nossas orações importunas até mesmoquando ele mantém em prosseguir com sua vontade”.59 Dentro destesparâmetros, Deus faz a vontade daqueles que o temem e, portan-to, escuta suas orações (LW 31: 355).

Lutero aponta que foi um assunto de relato bíblico “que Deusfaz a vontade daqueles que temem a ele e subordina sua vontadeàs nossas, com a condição de que continuemos a temê-lo”. Porexemplo, Ló orou para que pudesse ser permitido fugir para Zoar aoinvés de ir às montanhas onde Deus o tinha ordenado. Como Luterodenota, “tal relato serve para despertar e incentivar-nos a orar emtodos os perigos, uma vez que Deus quer fazer o que queremos,contanto que nos prostremos humildemente ante ele e oremos...”Deus permite-se ser persuadido (LW 3: 289).

Lutero também experimentou isto pessoalmente. Em suas con-versas à mesa, ele relatava quando sua esposa se encontravano leito de morte, “eu implorei a Deus para que deixasse minhaKatie viver, e restaurando ela, ele concedeu um bom ano aindapor cima” (WATR 4: 568 no. 4885). Melanchthon, abatido com abigamia do Landgrave Filipe de Hesse, ficou seriamente doenteem Weimar nos idos de junho de 1540. Lutero conta, “naquelacircunstância, Deus tinha de me ouvir, pois eu lancei todo ofardo a seus pés e me mantive martelando em seus ouvidostodas as suas promessas as quais eu era capaz de enumerar apartir da Escritura”.60 Finalmente, em 1537, sofrendo de um se-vero ataque na bílis em Esmalcalde, Lutero atribuíra sua subse-qüente melhora às intercessões de crentes que oraram com re-lação ao seu problema.

É importante reconhecer como Lutero orava quando persuadiaa Deus. Ele assim o fazia de um modo harmônico com a exposiçãodas três primeiras petições do Pai Nosso e contra o poder de Satã.Por exemplo, em seu Apelo para que se ore contra os Turcos,1540, ele orou: “Portanto levanta, ó Senhor Deus, e santifica teunome mesmo que eles o profanem. Fortaleça em nós o teu reinoainda que eles tentem destruir ele. Deixa tua vontade ser feita

58 Lehmann, p. 144.59 lbid., p. 145.60 Ibid., p. 131.

O CLAMOR DE BATALHA DA FÉ. EXPOSIÇÃO DO PAI NOSSO NOS CATECISMOS

Page 56: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

56

mesmo que eles queiram suprimi-la. Conceda que teu nome nãoseja pisoteado por causa de nossos pecados que desejam apenasdestruir em nós o conhecimento da tua santa Palavra, do teu nome,e de tua obra, a fim de que eles possam destronar e roubar de tium povo que proclama, confessa e acredita em ti. Amém” (LW 43:233).

Lutero comenta que isto demonstra como o Pai Nosso, correta-mente compreendido, dá elevação a tais pensamentos. Ele con-clui: “Desta forma, tu deves incluir tais pensamentos quando ora-res o Pai Nosso” (LW 43: 233).

Lutero reconhece que os turcos poderiam ser o cálice da ira deDeus contra o povo alemão. Por esta razão, ele inicialmente parececomo que relutar em orar por auxílio: “Tu não podes e não devesusá-los contra nós como o cálice da tua ira, nós que temos pecadocontra ti e merecido toda esta tribulação” (LW 43: 232). Mas naoração, o cristão coloca a si mesmo ao lado de Deus. Qualquerataque ao cristão pelos turcos equivale a um ataque de Deus mes-mo. E então Lutero argumenta que os turcos vêm para punir nãoporque temos pecado contra eles, mas porque cremos e confessa-mos a palavra de Deus. Pois certamente não cometemos pecadocontra eles para que eles nos punissem (e fossem justificados). Dequalquer modo, eles desejam a oposição. Nosso único pecado con-tra eles é a proclamação da Palavra. Como resultado, são maisinimigos de si mesmos do que nossos” (LW 43: 232). E desta formaLutero leva o caso ante Deus.

CONCLUSÃO

A teologia da oração em Lutero inicia, é centrada e finalizacom a palavra de Deus. Nos Catecismos, a oração é primeiro eacima de tudo palavra de Deus a nós. Vem em forma de manda-mento e promessa contendo as próprias palavras para orarmos.Segundo, a teologia da oração exposta nos Catecismos realça acorrelação com a palavra de Deus, a saber, a fé. E então a oraçãose torna a reação da fé quando busca todas as boas coisas emDeus somente. Fé que tem recebido as dádivas de Deus pela fé, epara que possa receber durante toda a vida como reais dádivasdivinas! Posto que a oração vem a ser um brado da fé, ela nãoocorre sem uma batalha. E então, em adição à oração pela perse-verança da fé, também oramos contra a descrença.

Page 57: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

57

UMA ATITUDE EVANGELÍSTICA

Esta série é dirigida especificamente para pastores que pregamnos cultos regulares de uma congregação. Duas clarificações sãonecessárias.

Primeira, o alvo do sermão não é o pastor falar e a congregaçãoescutar. Isso é o que acontece quando oradores falam em auditó-rios. No culto quem fala e os que ouvem estão unidos em torno daPalavra. Aqueles que falam e aqueles que escutam devem todosouvir a Palavra.

A segunda clarificação é que o sermão é uma parte do culto eeste está relacionado a todas as atividades da congregação. Oque acontece no culto vai proporcionar a energia, definir metas erecrutar cooperadores para todas as atividades congregacionais.Há uma relação direta entre o que acontece no culto e o queacontece nas reuniões de diretoria, programas de ensino, ativida-des sociais e outras áreas do Ministério na congregação.

NÓS PRECISAMOS UNS DOS OUTROS

Evangelização no seu melhor sentido é por esta razão uma par-te da vida de todas as pessoas e de todas as atividades da con-gregação. Tanto as pessoas especiais como os programas especi-ais devem ajudar a congregação inteira a evangelizar e não fazerevangelização pela congregação.

Isto significa que o culto, incluindo o sermão, deve ser pla-nejado para fazer evangelização. O argumento não está entre pla-nejar um culto para suprir as necessidades dos membros e atenderaos interesses dos visitantes. Antes, a idéia deve ser em desen-

PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARACOMPARTILHAR O EVANGELHO1

1 “Evangelistic Preaching to Share the Gospel”.O terceiro artigo de uma série de seis, sobre Pregação Evangelística.Fonte: Concordia Pulpit Resources, Volume 2/Part 1, December 1, 1991 – March 1, 1992,pp.7-8. Saint Louis, USA: Concordia Publishing House. Used with permission. All RightsReserved. Traduzido por Anselmo Ernesto Graff, professor de Missiologia no SeminárioConcórdia de São Leopoldo e ULBRA, Canoas/RS

Page 58: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

58

volver nos membros o desejo de compartilhar o evangelho compessoas que ainda não freqüentam a igreja. Quando isso aconte-cer, então eles desejarão que o culto seja formatado para ajudá-los a fazer isto.

UMA OFERTA PACÍFICA

Sermões podem ir ao encontro das necessidades das pessoas etambém ajudá-las a se preocupar com as necessidades de outros.Uma maneira é ensinar as pessoas uma versão neo-testamentáriada oferta pacífica do Antigo Testamento.

O Antigo Testamento tem uma variedade de sacrifícios – cadaum com seu propósito. Um deles é o sacrifício pacífico ou as ofer-tas de paz e que afirmam a comunhão do ofertante com Deus ecom o sacerdote (Lv 3). Este sacrifício é designado para ajudar acriar e manter a comunidade. Alguém não poderia oferecer sacrifí-cios pacíficos sozinho ou somente por si mesmo. Seu objetivo eradesfrutar da comunhão com Deus e das outras pessoas. Uma ofer-ta pacífica ou de comunhão no Novo Testamento poderia funcionarassim:

1. Peça às pessoas para identificar partes do culto que elas nãoapreciam tanto;

2. Peça-lhes para identificar no culto aquilo que atende a seusgostos pessoais;

3. Peça para se pensar sobre aquilo que elas não admiram tan-to, como sendo oferta pacífica por outros. Ao invés de se tornarchateados com aquilo que elas não gostam e acabar destruindo oque lhes é estimável, considere essa ação que o ofende, como umadádiva a Deus para o benefício de outros. Ao invés disso, alegre-secom a alegria de alguém outro por aquilo que você não olha tanto.Esta atitude ajuda as pessoas a crescer em sua apreciação doculto e ter uma melhor visão de outras pessoas.

QUEM ASSINA PELOS SERMÕES?

Quando uma encomenda importante é registrada e enviada pelocorreio, alguém deve assinar por ela. A assinatura é exigida paramostrar que a pessoa que a está recebendo aceita a responsabili-dade de recebê-la. O sermão contém uma mensagem importante.Ela deve ser entregue e alguém deve assinar por ela.

Page 59: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

59

O SERMÃO ÀS PESSOAS

Aqueles que ouvem o sermão devem saber que este foi endere-çado a eles. Eles não são como carteiros que recebem uma carta esimplesmente a entregam para o endereçado. Elas são pessoasque recebem a mensagem, se alegram com ela e reagem dizendo,“eu não vejo a hora de falar isso para alguém”.

Para isto acontecer, a mensagem deve ser dirigida para indiví-duos. Eles devem saber que Deus está falando com eles através dotexto. A mensagem não está baseada na autoridade, habilidade,treinamento ou personalidade do pregador. Ela é uma mensagem deCristo, dada através de quem proclama a mensagem.

Depois de um sermão realmente bom, seus ouvintes deveriamestar aptos a dizer o que os samaritanos disseram para a mulherque havia lhes falado de Jesus: “e diziam à mulher: já agora não épelo que disseste que nós cremos; mas porque nós mesmos temosouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mun-do” (Jo 4.42). Aquelas pessoas haviam assinado pela mensagem.

O SERMÃO PARA PESSOAS

A fim de falar para as pessoas, você deve conhecer a agendadelas. Conhecer suas famílias, trabalho, vida social, sentimentospolíticos, medos, alegrias e todas as outras coisas que fazem partede suas vidas. Elas devem sentir que você as entende, da mesmaforma como um membro que certa vez cumprimentou o pastor pelamensagem dizendo: “Você esteve na minha casa de novo”.

Quando uma mensagem fala para e às pessoas, elas se sentemanimadas a trazer seus amigos à igreja. Elas até podem dizer paraalguém: “eu nem sempre estou apto a dizer o que sinto, mas vempara a igreja comigo e você vai entender”.

O SERMÃO ATRAVÉS DAS PESSOAS

O alvo final da pregação evangelística – para compartilhar Cris-to com outros – vem da habilidade de pregar através das pessoas.Se 100 indivíduos ouvem seu sermão e cada um compartilha amensagem com outros três, você alcançou 400 pessoas.

Pessoas precisam ser treinadas a ouvir a um sermão do mesmo

PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA COMPARTILHAR O EVANGELHO

Page 60: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

60

jeito que o pastor o prepara. Como um pastor, primeiro eu o aplicoa mim mesmo, depois para os outros. Como um membro da igreja,primeiro eu ouço e aplico a mensagem para mim, depois eu voupassar a mensagem adiante. Um sermão não está no fim quando opastor termina de falar, também não termina quando a congrega-ção diz amém. Ele está completo quando aquele que o pregou eaqueles que o ouviram o compartilham com outros.

Não há como oferecer suficiente graça àqueles que ouvem oEvangelho pela primeira vez. Graça vem do abundante amor e mi-sericórdia de Deus em Jesus Cristo. Essa abundância pode encheros corações dos ouvintes e dar-lhes um grande excedente paracompartilhar com outros. É parecido com o milagre da multiplicaçãodos pães. Jesus alimentou 5.000 pessoas e ainda sobraram 12cestos de pães.

Quando aqueles que ouvem o sermão assinam por ele, eles es-tão dizendo que o ouviram e vão passá-lo adiante. Quando elesassinam, eles aceitam a responsabilidade de ter alguém outro re-cebendo e também assinando pela mensagem.

PREGAR UM VOCABULÁRIO QUE AS PESSOAS USAM

Muitas vezes os membros de igrejas não conseguem articularsua fé ou orar em público porque os exemplos que eles ouvem sãoem palavras que, até podem fazer parte do seu vocabulário, masnão fazem parte da sua linguagem diária de comunicação com osoutros. É mais fácil entender do que falar uma linguagem.

É necessário entender certos conceitos para apreender a fécristã. Graça, fé, expiação, arrependimento, justificação, santifi-cação, Lei, Evangelho, bem como outras palavras que devem serusadas, definidas e reusadas. Contudo, elas devem ser usadascom ilustrações e explicações, que mostram como elas fazem parteda vida dos ouvintes – e da vida daqueles com os quais eles convi-vem.

Falar às pessoas de um modo compreensível, a fim de que elaspossam passar a mensagem adiante, não significa usar gíria, portu-guês pobre ou vocabulário infantil. O ponto é você entender sufici-entemente bem o que você está falando, para que você estejaapto a expressar a mensagem numa variedade de formas. Pensa-mentos valiosos e profundos podem ser expressos através de ma-neiras, que podem ser facilmente entendidos. Somente um pensa-mento vazio deve ser escondido por palavras obscuras.

Page 61: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

61

PREGAR PENSAMENTOS QUE OS OUVINTES PODEM SEGUIR

Pastores vivem, trabalham, lêem, falam e vivem num mundoeclesial. Nosso jeito de pensar, falar e agir pode tornar-se macro-eclesial a ponto de não nos fazermos entender, tanto para os quenão são da igreja, e até para os que fazem parte dela. Aqui háalgumas maneiras para expandir seus modelos ou padrões de pen-samento:

1. Ler autores de fora do círculo da igreja. Prestar atençãonaqueles que têm grande habilidade de falar para você. Tambémobservar os maus exemplos e aprender a não cometer os mesmoserros.

2. Ouvir oradores de fora da igreja. Aprender a ouvir atenta-mente a fim de repetir a mensagem depois de ouvi-los uma vez.

3. Ouvir as conversações com um ouvido para detectar padrõesde pensamento. A habilidade para falar a outras pessoas está dire-tamente ligada à habilidade de ouvir as pessoas. Prestar atençãoespecialmente naqueles que ouvem seus sermões.

4. Observar reações em seus sermões. Os ouvintes estão en-tendendo? Eles podem absorver suas idéias o suficiente para queeles recebam mais do que você está lhes oferecendo?

5. Quando você planeja seu sermão, pense em você própriosentado ao redor da mesa com seus membros. Fale para eles comovocê falaria num grupo maior de conversação.

6. Entender a diferença entre uma comunicação escrita e fala-da. Um sermão é oral, mas muitas vezes é elaborado como se fosseentregue impresso. Assim como o tom de púlpito destrói a voznatural, uma atitude de púlpito pode destruir a habilidade naturalde comunicação de alguém.

DAR AOS SEUS OUVINTES UM RECIPIENTE EXTRA

Quando pessoas se dão conta que elas colocaram mais comidado que estão aptas a consumir, elas pedem por um recipiente extrapara levar para casa o que sobrou. Os ouvintes no banco da igrejaprecisam se dar conta que eles recebem mais graça, amor e perdãode Cristo do que eles necessitam.

O recipiente espiritual extra é algo que ajuda os ouvintes areunir os pensamentos do sermão a fim de que eles possam levá-lopara casa e repetir a mensagem para outras pessoas. O recipienteextra pode ser uma boa introdução, que vez por outra surge du-

PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA COMPARTILHAR O EVANGELHO

Page 62: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

62

rante o sermão e que aparece outra vez no final. Pode ser umailustração, um fato ou um auxílio visual.

O Evangelho de Jesus Cristo é o poder de Deus para a nossasalvação – e o poder que proporciona crescimento espiritual. Apren-der a compartilhar o Evangelho com outros é uma parte importantedo crescimento espiritual. Mas isto não é tudo. O próximo artigosobre pregação evangelística irá oferecer meios para lidar com opecado, que ainda faz parte da vida do santo, usando, para tanto,o Evangelho.

Page 63: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

63

Os primeiros três artigos desta série podem ser assim resumi-dos:

1. PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA E O CULTOPregação evangelística é a aplicação do Evangelho a indivíduos

e grupos específicos. Um sermão evangelístico tem um sentido deurgência porque ele oferece o único poder para salvar. Isto inclui averificação de que o convite do Evangelho foi aceito. Um sermãoevangelístico está baseado sobre a autoridade de Jesus Cristo.

2. PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA A CONVERSÃOUm sermão evangelístico com o propósito de conversão é preci-

so numa congregação de crentes. [A]: Para relembrar os cristãosde sua conversão a fim de que eles louvem a Deus por sua fé – e ouso desta fé. [B]: Oferecer Cristo o Salvador àqueles que aindanão crêem, mas podem estar na igreja por uma série de razões.[C]: E finalmente, dar aos cristãos um modelo de como comparti-lhar o Evangelho com aqueles que ainda não estão na fé salvadora.Para os descrentes a mensagem de conversão seria o fim do ser-mão; para os cristãos deve ser o começo.

3. PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA COMPARTILHAR O EVANGE-LHO COM OUTROS

O sermão é dirigido a pessoas na congregação, mas também épregado para elas. O pastor fala para aqueles que o chamaram. Oalvo da pregação evangelística – para compartilhar o Evangelhocom outros – vem da pregação através das pessoas. Aqueles queouvem o Evangelho o compartilham com outros. Eles o passamadiante.

PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA CRESCIMENTO ESPIRITUALA quarta parte desta série sobre pregação evangelística focali-

za sobre a pregação visando crescimento espiritual. Quando a pre-

PREGAÇÃO EVANGELÍSTICAPARA CRESCIMENTO ESPIRITUAL1

1 “Evangelistic Preaching for Spiritual Growth”. O quarto artigo de uma série de seis, sobrepregação Evangelística. Fonte: Concordia Pulpit Resources, Volume 2/Part 2, March 4,1992 – June 7, 1992, pp.2-5. Saint Louis, USA: Concordia Publishing House. Used withpermission. All Rights Reserved. Traduzido por Anselmo Ernesto Graff, professor de Mis-siologia no Seminário Concórdia de São Leopoldo e ULBRA, Canoas/RS.

Page 64: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

64

gação evangelística tem a conversão como seu único alvo, orenascimento espiritual é ponto alto na vida cristã. Na realidade,nascimento espiritual é um grande e importante evento não so-mente porque aconteceu, mas pelo que segue depois, o cresci-mento espiritual. São acontecimentos conectados. “Se vivemos noEspírito, andemos também no Espírito” (Gl 5.25).

NASCIMENTO É SÓ O COMEÇO

Quando Jesus diz às pessoas que é preciso nascer de novo (Jo3), ele nos fala que a nossa vida espiritual não é uma parte donascimento físico. Nós precisamos algo novo – a vida que JesusCristo nos dá em nosso Batismo.

O nascimento espiritual é o começo da vida cristã. Alguns cris-tãos não entendem bem o conceito de nascimento e pensam queeles têm participação na decisão de nascer de novo. Eles enfatizamo batismo de adultos depois de uma pessoa ter tomado uma deci-são para aceitar a Cristo ou tenha sido convertido. Sua tendênciaé basear sua esperança na experiência da conversão e não noBatismo e na Palavra. Nós, entretanto, vemos o Batismo como aobra de Deus e no qual ele cria a nova vida, um “nascer de novo”como Jesus contou a Nicodemos (Jo 3.5). No Batismo Deus conce-de o Espírito Santo, que proporciona a nova vida e que continuanutrir aquela vida através da Palavra e da Ceia do Senhor. Assim oBatismo não é o fim, mas o começo. Nós não estamos contentespor ter somente um nascimento espiritual – nós também necessita-mos uma contínua vida espiritual.

EXISTE MORTE ESPIRITUAL?

A conversão é garantia de salvação? Se a resposta for sim,crescimento espiritual é luxúria, não uma necessidade e nós caímosna idéia daqueles que afirmam “uma vez na graça, sempre na gra-ça”. Para alguns isto é uma doutrina; para outros isto é um sonho.Esta doutrina diz que renascimento garante a salvação. Ela fala àspessoas olhar para trás e depender de sua experiência no passadoe não continuar a confiar na graça de Jesus Cristo oferecida naPalavra e Sacramentos.

A Bíblia dá exemplos daqueles que caíram da salvação – desdeos anjos que se rebelaram a Judas, que traiu a Jesus. Na parábolado semeador, Jesus diz que a semente que caiu sobre a pedra sãoos que “crêem apenas por um algum tempo, e na hora da provação

Page 65: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

65

se desviam” (Lc 8.13). Uma passagem um pouco mais complicadadiz: “É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminadose provaram o dom celestial e se tornaram participantes do EspíritoSanto, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundovindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los paraarrependimento, visto que de novo estão crucificando para si mes-mos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia” (Hb 6.4-6).

Mas a Escritura diz que nós podemos ter a garantia da salva-ção. Isto mantém a responsabilidade desta garantia sobre Deus enão sobre nós. Deus começa uma relação salvadora conosco noBatismo e mantém essa relação por continuamente nos dar o amore a graça de Cristo através da Palavra e Sacramentos. O fato quealguns têm – e todos podem – deixado a Deus, é um aviso de que anossa fé necessita de cuidado e crescimento diário. Para aquelesque pregam, esta é uma lembrança de que nós temos que nutrir aspessoas com o mesmo Evangelho que as trouxe à fé. Os alvos detrazer Cristo às pessoas e mantê-las em Cristo não podem serseparados.

O pregador evangelístico prega Lei e Evangelho. O seu objetivoé primeiro advertir com a Lei, avisando do julgamento contra opecado. Então ele fala do Evangelho – a libertação através deCristo – e encaminha o cristão aos meios da graça que o mantém edesenvolvem sua vida espiritual. Cada sermão deve comunicar opoder do Evangelho para aqueles que o ouvem.

CRESCIMENTO ATROFIADO

Um segundo perigo em ver a conversão como algo completo davida cristã é o que poderíamos chamar de “crescimento espiritualatrofiado”. Uma pessoa não cresce, matura e vive diariamente pelafé. Em certo sentido todos os cristãos são espiritualmente imatu-ros. Nós nunca alcançaremos maturação completa nesta vida, sempreestaremos “prosseguindo para o alvo”. Nós estamos diariamenteem necessidade do julgamento da Lei, que nos conduz ao arrepen-dimento e diariamente em necessidade da Palavra da Graça deDeus no Evangelho, a fim de que o novo homem ressurja e vivadiante de Deus em justiça (Catecismo Menor, Batismo, Parte IV).Não importa o quanto somos maduros, há sempre espaço para maiscrescimento. Nós nunca podemos pensar que chegamos à maturi-dade a não ser quando chegarmos ao céu. Não deveríamos pensarque existem duas categorias de cristãos – os imaturos e os madu-ros – mas de todos os cristãos necessitando crescer e lutar contra

PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA CRESCIMENTO ESPIRITUAL

Page 66: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

66

o Diabo, o mundo e a nossa carne, os quais atrofiam nosso cresci-mento.

Por causa da natureza pecaminosa – o velho homem em nós –que trabalha para limitar o crescimento espiritual, nós precisamosdos meios da graça, bem como o amor e o cuidado de irmãoscristãos. Nós fazemos tudo que é possível para ajudar nossos ir-mãos e irmãs em Cristo a crescer e contribuir para a vida de ou-tros. O quanto mais maduro formos, melhor capacitados estaremospara cuidar de outros. Nosso cuidado por outros não os deve en-corajar a depender deles mesmos ou de nós, mas do amor deCristo. Paulo escreve, “e o Senhor vos faça crescer e aumentar noamor uns para com os outros e para com todos”(1 Ts 3.12).

Pode haver pessoas que estão na lista de membros de suacongregação que estão tão atrofiados espiritualmente que sua féparece estar morta. Existem aqueles que não freqüentam a igrejanem participam da Santa Ceia e por isso não dão evidência de suavida cristã. Eles podem estar além da possibilidade de serem alcan-çados por um sermão evangelístico, porque eles nunca ouvem dire-tamente. Mas o culto pode despertar nos que estão presentes aconsciência de que estas pessoas precisam do Evangelho.

Primeiro, aqueles que são inativos agora podem ter sido umavez ativos na igreja. Isto significa que aqueles que agora são ati-vos podem se juntar à lista daqueles que estão sendo referidostristemente como inertes. O Evangelho não é só uma cura para opecado e a morte, mas também é medicina preventiva. Pode atésoar mais dramático dizer que nossa missão é resgatar o descren-te, mas é igualmente necessário ajudar o crente a ser mantido nafé. Aqueles que estão nos bancos da igreja precisam ouvir sermõesque exigem deles um check-up de seus pulsos espirituais a ver seeles ainda estão vivos, checar se eles estão crescendo espiritual-mente e que nutrem esse crescimento. Isto é pregação evangelísticapara crescimento.

Segundo, os sermões dos cultos do fim de semana influenciamas atitudes daqueles que estão lá sobre aqueles que não estão.Um sermão evangelístico não reprova as pessoas por não estaremna igreja, já que eles estão ausentes e não ouvirão o sermão. Epara aqueles que estão presentes não está sendo oferecida justiçaprópria sobre uma bandeja de prata. Ao invés disso, o sermão deveajudar aqueles que estão presentes a se alegrar na graça de Deuse serem conscientizados que eles compartilham da responsabilida-de de ajudar aqueles que estão atrofiados ou mortos espiritual-mente em sua congregação. O sermão evangelístico dos cultos do

Page 67: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

67

fim de semana não somente ajuda àqueles que crêem a crescer emsua fé, mas também lhes dá uma mensagem de crescimento espiri-tual a ser compartilhada com outros. Aqueles que são bem alimen-tados poderão alimentar melhor os outros.

O COMEÇO É O COMPROMETIMENTO

Talvez você já tenha visto documentários sobre a natureza e,mais especificamente, como os gansinhos seguem à sua mãe. De-pois de serem chocados, vêem a mãe ganso, se identificam comela e a seguem por onde quer que ela ande. Esse processo échamado de comprometimento. Contudo, se os gansinhos são cho-cados em uma casa, eles vão se identificar com uma pessoa esegui-la como se ela fosse sua mãe.

Quando cristãos “são chocados” - quando eles nascem de novoatravés do Batismo – eles ficam comprometidos com Jesus Cristo,porque ele é a fonte de sua nova vida. Porém, cristãos tambémestão compromissados a outras pessoas e aspectos da igreja. Mui-tos crescem pensando que todas as igrejas são – ou deveriam ser– idênticas ao seu próprio estilo. Esse tipo de união pode atrofiar ocrescimento, se cristãos estão centrados em outras coisas e nãonos meios da graça. O pregador evangelístico deve estar consci-ente da experiência do comprometimento espiritual por duas ra-zões: primeiro, ajudar cristãos a seguir seu Salvador e nele perma-necer por toda a sua vida e, segundo, ajudar a mudar as ligaçõesdaqueles que estão compromissados com guias errados.

COMPROMETIDOS COM A LEI

Muitos cristãos são orientados pela Lei ao invés do Evangelho.Eles estão comprometidos com a mensagem da Lei. Isto não signi-fica que eles não são crentes. Isto significa que seu desenvolvi-mento espiritual está algemado e sua habilidade de ajudar outrosestá limitada, caso eles exclusivamente aplicam a Lei para elespróprios e outros, ao invés de aplicar corretamente a Lei e o Evan-gelho.

Aqueles que estão comprometidos com a Lei ouvem o Evange-lho e dizem: “Sim, mas...” e voltam à Lei. Eles sempre lembrampregadores e professores que nós precisamos de mais Lei, e rara-mente falam do Evangelho para as outras pessoas. Para eles, a Leise tornou um fim em si mesmo e não a mensagem de Deus quemostra nossos pecados e nos prepara para nosso Salvador. Eles

PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA CRESCIMENTO ESPIRITUAL

Page 68: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

68

não podem crescer no Evangelho até que os compromissos com aLei são quebrados e eles sejam libertados e vivam pela graça. Umadas maiores razões para pregar evangelisticamente é quebrar essecomprometimento com a Lei que limita o crescimento espiritual.

COMPROMETIDOS COM A INSTITUIÇÃO

Alguns cristãos se tornam comprometidos a aspectos institucionaisda igreja. Eles se cimentam a uma particular congregação, à pessoado pastor, à forma do culto ou ao estilo da música. Este tipo decomprometimento pode atrofiar o crescimento se a ênfase está naforma exterior e não no propósito e mensagem do culto cristão.Aqueles que têm esse tipo de comprometimento podem limitar suaprópria vida espiritual numa pequena caixa – e compartilhar sua fésomente com aqueles que vão se juntar com eles nessa caixa.

O sermão evangelístico não contesta as funções institucionaisda igreja. Antes, ele as identifica como instrumentos e não comometas. Nós precisamos da instituição. Nós precisamos forma e or-ganização. Nós precisamos de programas. Mas não estamos com-prometidos com eles. Nós estamos comprometidos a Cristo e osmeios pelos quais ele vem até nós. Nós necessitamos reconhecerque pessoas podem pertencer à organização e se submeter a ritu-ais sem serem cristãos. Quando nós seguimos a Cristo nós usare-mos a organização, programas e rituais que nos ajudam a crescerna fé e compartilhá-la com outros.

COMPROMETIDOS COM UMA EXPERIÊNCIA

Alguns cristãos se tornam comprometidos com uma experiênciaespiritual. Isto pode acontecer especialmente com aqueles quesão convertidos mais tarde em suas vidas, ou com aqueles que têmum repente no crescimento espiritual. Muitas experiências são gran-des bênçãos de Deus: uma cura física, a descoberta de um domespiritual, uma oportunidade para servir a Cristo ou a restauraçãode uma relação entre irmãos. Todas são respostas às orações.Cada experiência pode ser uma evidência da presença de Deus navida das pessoas.

Contudo, se essas experiências se tornam o agente de compro-metimento principal entre o crente e Deus, elas limitam e atrofiamo crescimento adicional da pessoa – e sua habilidade de comparti-lhar a fé com outros. Pessoas que estão comprometidas com taisexperiências sentem que todos os outros cristãos devem ter as

Page 69: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

69

mesmas experiências. Se eu for curado, você deve ser curado domesmo jeito.

O sermão evangelístico expande e não limita nossa visão dopoder de Cristo. As grandes bênçãos na minha vida me auxiliam aajudar outros. As grandes bênçãos dadas aos outros auxiliam-nosa nos socorrer.

COMPROMETIDOS COM CRISTO

Como sempre, as possibilidades de maus exemplos são ilimita-das. Esses equivocados comprometimentos sugeridos acima sãodados para ilustrar o problema. Pode haver muitos outros jeitospelos quais cristãos estão comprometidos com coisas erradas. Po-rém, há somente um comprometimento que conduz ao crescimentoespiritual: comprometer-se com Cristo. Cristo deu sua vida em sa-crifício pelo pecado do mundo inteiro. Através de nosso Batismonós estamos em união com Cristo – ligados a ele e somos recipien-tes do perdão de Deus. Nosso Batismo em Cristo não é só umacontecimento passado. Ele é uma parte do que somos agora e ofundamento de nosso futuro.

O CRESCIMENTO NÃO PÁRA

O corpo físico necessita reproduzir constantemente novas cé-lulas, caso contrário ele morre. Nossa vida espiritual também ne-cessita constante crescimento. A Escritura diz: “Por isso, pondode parte os princípios elementares da doutrina de Cristo, deixemo-nos levar para o que é perfeito, não lançando de novo a base doarrependimento de obras mortas e da fé em Deus, e o ensino debatismos e da imposição de mãos, da ressurreição dos mortos e dojuízo eterno. Isso fa-remos, se Deus permi-tir” (Hb 6.1-3). O san-to escritor nos dá umadeclaração concisa dafé cristã. Ele não nosfala em abandonar ouesquecer o fundamen-to, mas construir so-bre esta base.

PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA CRESCIMENTO ESPIRITUAL

Page 70: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

70

CRESCENDO EM DIFERENTES ÁREAS

É muito fácil para pastores tratar os membros da congregaçãomais como membros do que como pessoas. Este é o seu ponto decontato. É assim que cada um se apresenta ao outro. Na verdade, ofato de ser membro em uma congregação é apenas uma parte muitopequena da vida – mesmo para os membros mais ativos e mesmo paraalguns que têm dedicação exclusiva na igreja. Olhe para um gráficoque tenta expor em termos visuais o uso do tempo por uma pessoa[isso evidentemente pode variar muito de pessoa para pessoa].

Algumas pessoas consideram a parte marcada como igreja comosagrada e o restante da vida como secular. O tempo que elas usampara a igreja, o dinheiro que elas ofertam e os amigos que elas têmna igreja fazem parte de uma fatia estreita. Sermões, publicaçõesda igreja e materiais de estudo muitas vezes são preocupaçõessomente daquela parte da vida.

Porém, o Evangelho de Cristo derrubou as paredes que separamo sagrado do secular. Cristo veio como um carpinteiro, não comoum sacerdote, e numa manjedoura, não no templo. Mais tarde eleserviu como um sacerdote e foi ao templo, mas ele é o Salvador detodo o mundo e de todos os nossos mundos, não apenas uma partedeles. Ele salva nossa vida inteira, não somente as nossas almas.

Um sermão evangelístico aplica o Evangelho de Cristo para cadafatia da pizza acima. A grande mensagem da igreja é que o pecadoestá perdoado. A morte está destruída. Cristo fez isto. Aquelaação de Deus venceu a batalha espiritual. E nós continuamos coma operação quando nós aplicamos aquela vitória a todas as áreasda vida. Nós precisamos proclamar o Evangelho como o poder deDeus que é aplicado às relações familiares, à escola, vocação,hobbies, lazer e a cada uma das áreas da vida.

Administração é uma questão de evangelismo. Nossos talões decheque e cartões de crédito devem ser tocados pelo Evangelho.Nós não podemos olhar para o dinheiro que ofertamos na igrejacomo pertencente a Deus e o restante como nosso. Ao invés dis-so, tudo isto é uma parte de nossas vidas em Cristo.

Educação é uma questão de evangelismo. Nós estamosevangelizando crianças ao dar-lhes os recursos do Evangelho paraseu futuro em todas as áreas de suas vidas. Nós evangelizamosadultos para crescerem na certeza ou segurança da presença deCristo em tudo o que eles fazem. Eles aprendem a se ver nashistórias bíblicas – e a ver a Cristo nos acontecimentos de suaspróprias vidas.

Page 71: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

71

Faça seu próprio gráfico da vida das pessoas a quem vocêprega. Peça-lhes que elas façam o mesmo e o compartilhem comvocê. Reconheça as áreas de suas vidas que necessitam serevangelizadas. Faça uma lista de suas mágoas e dores e aplique oEvangelho a estas áreas. Lembre também que suas virtudes e ta-lentos precisam ser “evangelizados”. Esta lista das mágoas, dorese frutos da fé servem como iniciadores: saúde, dinheiro, família,sexualidade, intelecto, temperamento, competição, ambição, status,relacionamentos, comprometimento, depressão, insegurança, víci-os, dependência, sucesso, falhas, celebração.

A necessidade para o evangelismo é muitas vezes ilustrada porum mapa do mundo. Jesus enviou-nos para todas as nações com oEvangelho. Nós podemos continuar trabalhando em conjunto parapregar o Evangelho para todo o mundo. Mas nós precisamos tam-bém ver uma outra espécie de mapa. Nós precisamos pregar oEvangelho a todo o mundo dentro de nossas próprias congrega-ções.

CRESCENDO NO COMPROMETIMENTO

O crescimento continua, não somente em novas áreas de nos-sas vidas, mas também de maneira mais profunda em todas aspartes de nosso viver. Paulo escreve: “Finalmente irmãos, nós vosrogamos e exortamos no Senhor Jesus que, como de nós recebestes,quanto à maneira por que deveis viver e agradar a Deus e efetiva-mente estais fazendo, continueis, progredindo cada vez mais” (1Ts 4.1).

Notem que Paulo diz que aqueles cristãos tinham aprendido aviver e a agradar a Deus. Eles já o estavam praticando. Ele lhespede a fazer mais “no Senhor Jesus”, que os converteu e os cha-mou para lhe servir. Eles precisam saber que Deus tem mais cresci-mento para dar e para eles é possível mais crescimento.

PREGAÇÃO EVANGELÍSTICA PARA CRESCIMENTO ESPIRITUAL

Page 72: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

72

Page 73: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

73

INTRODUÇÃO

Moisés antecipa o momento da entrada do povo na terra pro-metida. A euforia do momento poderia fazer o povo esquecer osignificado do acontecimento. Era preciso parar um pouco pararefletir sobre o passado com vistas ao planejamento do futuro. Erapreciso que, naquele momento, o povo tivesse uma clara percep-ção e consciência de sua identidade como povo do único Deusverdadeiro. Os israelitas deveriam saber que, se haviam chegadoaté ali, isso se devia exclusivamente à ação graciosa de Deus aseu favor. Tudo isso deveria ficar assinalado não apenas em suasmentes, mas também por meio de ações (rituais) e objetos exter-nos. Eles deveriam erguer grandes pedras, caiá-las e inscrevernelas as estipulações da lei de Deus.

Erguer pedras com inscrições para serem lembradas era umaprática comum no Antigo Oriente Próximo. Por exemplo, no século18 a.C., todo o código legal de Hamurábi, com quase trezentosparágrafos, foi gravado numa tábua de pedra. As pedras que opovo de Israel deveria erguer não deveriam ser apenas um monu-mento histórico qualquer para servir de recordação de uma faça-nha épica do povo. Elas seriam erguidas num contexto cúltico einscritas com a lei de Deus. No livro de Josué, há registros daexecução desta ordem dada ao povo por Moisés: Js 4; 8. 24-35.

TEXTO

Quando a aliança entre Deus e seu povo é concluída, ela preci-sa ser registrada (como em uma ata). O que Deus estabelece (eoferece) em sua aliança não está sujeito a flutuações de humor deDeus, mas é permanente. Por isso ela deve ser escrita. O fato deser escrita mostra que Deus leva a aliança a sério, e que, por outro

DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE

(PRIMEIRO DOMINGO DE PENTECOSTES)DEUTERONÔMIO 27.1-10

Hoje vieste a ser povo do Senhor teu Deus

AUXÍLIO HOMILÉTICO

Page 74: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

74

lado, a obediência do povo deve ser igualmente levada a sério.As pedras deveriam ser caiadas para que a escrita ficasse bem

nítida (v. 8). Nelas deveriam ser escritas “todas as palavras destalei”. Isso seria, no mínimo, o conteúdo dos capítulos 5-26 (veja4.44 e Js 8.32). Outros pensam que se trata de um resumo doDeuteronômio. É interessante lembrar que Deus já fizera a primeirainscrição de sua lei em tábuas de pedra (Êx 31.18; 34).

Além da colocação das pedras, deveria, também, ser erguidoum altar. Holocaustos e sacrifícios deveriam ser oferecidos sobre oaltar num ambiente alegre e festivo pelo povo que acabara decelebrar aliança com Deus. Tudo isso sublinha que a aliança ébênção para o povo. É feita a seu favor.

A aliança é estabelecida por Deus. Israel reunido precisa tomarconhecimento disso em silêncio (v. 9). “Hoje vieste a ser povo doSenhor teu Deus”, a linguagem é de renovação da aliança cujostermos são: Eu sou o teu Deus; Tu és o meu povo.

SUGESTÕES HOMILÉTICAS

Temos a tendência de esquecer. Esquecemos, até mesmo, decoisas muito importantes. Para não esquecermos e, sim, lembrar-mos sempre de novo os eventos importantes da história de nossasalvação, a igreja organizou o calendário eclesiástico. Uma dasdatas mais importantes deste calendário é o Dia da SantíssimaTrindade. Este dia tem a finalidade de nos revelar sempre de novoa identidade de nosso Deus. Temos um Deus maravilhoso — umDeus que se preocupa conosco e que quer relacionar-se conosco,mesmo depois de termos voltado as costas para ele. Portanto,refletir sobre este Deus é também refletir sobre a nossa própriaidentidade de filhos de Deus.

O povo do Antigo Testamento recebeu diversas instruções, emvárias ocasiões, para observar datas especiais e para erguer mar-cos ou monumentos para recordar as grandes ações libertadorasde Deus a seu favor. Em nosso texto, o povo é orientado a erguergrandes pedras com a inscrição das estipulações da aliança queDeus fizera com eles. Essas pedras deveriam servir para lembrarconstantemente ao povo que eles eram povo do único Deus verda-deiro. O seu Deus era aquele que os havia libertado da escravidãodo Egito e os havia presenteado com uma pátria maravilhosa.

Nós, povo de Deus do Novo Testamento, podemos fazer usode um dia como o da Santíssima Trindade para refletirmos sobre a

Page 75: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

75

nossa identidade cristã. Fomos libertados por Deus de uma escra-vidão muito pior do que a escravidão egípcia. Cristo derramou seupróprio sangue para nos resgatar do diabo, do pecado, da morte.Fomos conduzidos a uma nova vida e estamos a caminho da futurae eterna pátria que é a nossa herança graciosa. Somos o povo deuma nova aliança, muito superior, muito mais gloriosa do que aaliança do Antigo Testamento (veja: Jr 31.33; 2 Co 3.1-3; 1 Pe2.9).

Temos muito a lembrar e comemorar neste dia. Com o objetivode lembrar e explicar a ação de cada pessoa da Trindade a nossofavor, podemos fazer uso dos três artigos do Credo cristão. Umbom auxílio para isso são as explicações de Lutero nos seus doiscatecismos.

Tema: O Domingo da Santíssima Trindade nos conduz a umareflexão sobre identidades

I. Quem somos nós?- Por natureza: Escravos do pecado e do diabo, sob a ira de

Deus, sem esperança- Por graça: Libertados pelo sangue de Cristo, filhos amados,

aguardando, alegres, a vida eterna com DeusII.Quem é nosso Deus?- O único Deus verdadeiro: Pai, Filho e Espírito Santo- O Deus que fez, faz e fará grandes coisas por nós.

Paulo Wille BussSão Leopoldo, RS

DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE

Page 76: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

76

Quando Jesus foi contestado pelos teólogos do seu tempo, umdos argumentos usados era o da exclusividade da aliança entreDeus e Abraão, da qual eles se julgavam os únicos e legítimosherdeiros.

Ao lermos o discurso de Moisés confirmando a aliança sobretodo o povo em detalhes, só se pode dizer: Deus está fechado comeles. Moisés cita todas as classes e categorias de pessoas, desdeos cabeças de tribo até os servos de mais simples e rudimentarestarefas, “os vossos rachadores de lenha até o vosso tirador deágua, para que entres na aliança do Senhor, teu Deus, e no jura-mento que, hoje, o Senhor, teu Deus, faz contigo”.

Baseado em que, o povo deveria prestar atenção nesta alian-ça? Normalmente a resposta a esta pergunta seria: “Ora, mas nãoé palavra de Deus? Não é Deus que está afirmando a aliança? Aopovo somente resta crer quando Deus fala!” Mas não. Moisés,antes de reafirmar a aliança, reconta toda a bondade de Deus queo povo tinha como sua experiência pessoal. Que experiência eraesta? “Tendes visto tudo quanto o Senhor fez na terra do Egito,perante vós, a Faraó”. O que o povo de Israel fizera para merecerque Deus desse novo rumo à história do mundo no reino do Egito?Nada. A aliança é uma ação unilateral e radical e definitiva de Deusque decidiu salvar Israel.

O povo está plenamente assegurado da vontade de Deus favo-rável a eles. Mas, esta aliança, sendo de salvação, é ainda maisdo que isto: ela é o sinal da presença de Deus no mundo. E Moiséspronuncia as palavras que tornam o povo de Deus o sinal de Deuspara o mundo: “Não é somente com vocês que faço esta aliança eeste juramento. Porém com aquele que, hoje, aqui, está conoscoperante o Senhor, nosso Deus, e também com aquele que nãoestá aqui, hoje, conosco”.

Hoje, aqui. Tempo e espaço. Deus não é Deus vago e impreciso.É Deus cuja presença é perceptível de infinitas maneiras, mas es-pecialmente quando Moisés pode dizer: aqui, hoje e no futuro,onde o povo de Deus manifestar seu louvor e fidelidade a esteDeus.

Mas esta moeda tem duas faces. A aliança precisa ser contada

SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTESDEUTERONÔMIO 29

“Não é somente convosco que faço esta aliança” (29.14).

Page 77: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

77

e recontada. As ações de Deus ontem, aqui e hoje, precisam serreconhecidas e apontadas como obras de Deus. Para quê? Paraque os povos apontem Israel e nele reconheçam o Deus que ama,que salva e que protege.

Jesus vai repetir este compromisso de testemunhas do amor deDeus pelo perdido em tantas parábolas e pronunciamentos. É delembrar o que disse: “Qualquer, porém, que fizer tropeçar a umdestes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhependurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e fosse afo-gado na profundeza do mar” (Mt 18.6).

Se Israel se afastar da aliança, o vazio de testemunho que seformar, emudecerá a palavra de Deus. E isto Deus não pode permi-tir. O que então terá de acontecer? Deus terá de chamar a aten-ção do mundo sobre a perdição que paira no juízo sobre a idolatria.E o povo de Israel servirá de sinal do juízo de Deus: “Todas asnações dirão: Por que fez o Senhor assim com esta terra? Qual foia causa do furor de tamanha ira?”

O mundo de hoje, e especialmente muitos púlpitos, pouco falamdas maravilhas de Deus que se vêem diariamente na vida das pes-soas, aqui e hoje. Desaprendeu-se, ou pouco foi ensinado e vivido,de viver em permanente ação de graças e êxtase diante da mara-vilha de termos sido chamados à existência e de sermos chamadosfilhos de Deus.

Mas isto não é fenômeno exclusivo do nosso tempo. Moisésaponta: “para que, entre vós, não haja ... ninguém que, ouvindoas palavras desta maldição, se abençoe no seu íntimo, dizendo:Terei paz ...” A falsa e perigosa segurança de quem pensa queseja natural a vida, a criação, ter família, estar em comunhão,considerar-se salvo. O cristianismo morno de quem parece já enjo-ado de tanta Bíblia e culto, ou vive como quem tem tudo de Deuspor direito adquirido no batismo.

Deus nos cobre de suas bênçãos exatamente para que, emlouvando a Deus, sirvamos de testemunho vivo das obras que Deusrealizou e realiza por nós aqui e hoje. Não é somente convoscoque faço esta aliança e este juramento (v. 14). Deus está dizendoaos crentes que, através deles, a aliança e o juramento de Deus seestendem ao mundo como notícia e testemunho.

Infelizmente a natureza humana quer chamar a atenção sobresi própria. O fariseu no templo aparentemente faz a oração corre-ta. Ele rende graças a Deus por não ser como os demais, que sãopecadores visíveis e escandalosos. Este, provavelmente, seria umrepresentante da auto-ajuda de hoje que recomenda: “Ponha-se

SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 78: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

78

diante do espelho e diga: Eu estou de bem com a vida. Tenho oque preciso” e outras frases semelhantes.

Faltou ao fariseu o que faltou ao povo de Israel e também anós, de não esquecermos e sermos lembrados constantemente deque somos sempre pecadores em tudo que fazemos. Lutero abreas teses afixadas afirmando que a vida cristã consiste de diário econstante arrependimento. Isto nada mais é do que reconhecerque se preservamos alguma honra e dignidade diante do próximo ediante de nós próprios, se não pecamos “como os demais”, isto éação de Deus que nos protege e livra do mal e da tentação, impe-dindo-nos de pecar, tal como nossa natureza gostaria de fazer.

A arrogância do fariseu no templo é a arrogância de quem sepõe a si próprio em posição de julgar o próximo ao invés de seaproximar dele na condição de um pecador que reconhece quetoda sua dignidade pessoal é resultado da ação graciosa de Deusem sua vida desde a infância.

Neste sentido precisamos constantemente ser lembrados danossa verdadeira condição pessoal que nunca se esgota em nós.Precisamos ser lembrados de que o pecado em nós, mesmo quenão seja manifesto em palavras e ações, é pecado que condenadiante de Deus.

Também precisamos abrir os olhos da fé para a obra estranha deDeus, a sua disciplina, ira e castigo, pelos quais abate a arrogânciahumana e leva ao necessário arrependimento diário. Assim comoDeus agiu sobre Faraó e o Egito em defesa do seu povo e porafirmação da sua aliança e juramento feito a Abraão, assim tam-bém Deus retém bênçãos, pune e castiga o seu povo que se tornaarrogante e indiferente, presumido, ostentando como sua virtudeaquilo que veio como bênção de Deus.

Os sinais do juízo de Deus que se manifestam aqui e hoje ne-cessitam ser identificados pela igreja e assim anunciados ao mundocomo tais. As desgraças, os acidentes, guerras, crimes e catás-trofes não podem ser ignorados nem atribuídos ao acaso, ou àsforças da natureza, ou à má gestão dos homens. Eles também nãopodem ser revertidos simplesmente pela vontade humana. É de seperguntar com a determinação de quem sabe que Deus é o Senhorque governa, salva e disciplina tal como anunciou.

Portanto, a ascensão e a queda das instituições humanas, asenchentes e destruições vistas na natureza, desastres e mortes, nãosão meras decorrências da natureza. A natureza também obedece aDeus. Através dela e com ela Deus dá sinais da sua presença nomundo aqui e hoje, apontando para a interpretação que ele dá às

Page 79: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

79

suas ações na Escritura.E quando Deus permite que nações se levan-tem contra nações, que a criminalidade avance sobre uma sociedade,é necessário ler na Escritura o que Deus disse para Adão e Eva, pelosseus servos e profetas ao longo da história a respeito da maldadehumana e da perdição humana, para que hoje, aqui, as pessoas bus-quem a salvação que vem de Deus segundo o evangelho.

A insistência de Moisés em sublinhar que a aliança e o juramen-to de Deus acontecem hoje pode nos dar indicativos de que aurgência missionária, especialmente da coerência entre doutrina epráxis, seja sublinhada a cada dia como se nunca antes se houves-se falado disto. A palavra de Deus é nova todos os dias. Ela nãopode ter o gosto do pão de ontem ou de café requentado. O horrordiante da dimensão do pecado e do juízo não podem ser diminuídospor metáforas de efeito suavizado nem empacotados como notíci-as e histórias de um passado que já nada nos diga. Deus deve servisto atuando hoje, aqui, como por várias vezes Moisés sublinha.Somente assim o evangelho pode ser sentido com o deslumbra-mento de que é acolhido sem mérito ou dignidade próprios.

SUGESTÃO HOMILÉTICA

Introdução: Sorte. Acaso. Faz parte. São expressões pelas quaisas pessoas se habituaram a passar adiante e não pensar no porque das coisas e dos fatos do dia-a-dia. No texto de hoje Moiséselimina estas expressões do nosso vocabulário ao dizer:

Tema: Hoje e aqui estamos perante o Senhor (vv. 10, 15).1. Reconhecemos as grandes provas que os nossos olhos viram2. Pedimos a Deus que não nos permita desviar dos seus cami-

nhos3. Testemunhamos esta aliança para que seja vista e amada

pelos que não estão conosco hoje e aqui.Conclusão: Deus é o mesmo hoje e sempre. A aliança que fez

conosco no batismo permanece: somos os seus filhos. A cadanovo dia estes filhos e filhas erguem os seus olhos para dizer aomundo: Hoje e aqui estamos perante o Senhor.

Paulo P. WeirichSão Leopoldo, RS

SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 80: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

80

CONTEXTO

No livro de Deuteronômio estão os discursos que Moisés fez nofinal de sua vida. O povo de Israel estava na terra de Moabe,diante do rio Jordão, esperando entrar na Terra Prometida. Nosseus discursos, Moisés faz o povo se lembrar de que Deus os livrarada escravidão egípcia.

Quarenta anos haviam se passado no deserto. Uma geraçãotoda viveu no deserto e nenhum dos que havia saído do Egitoentraria na Terra Prometida. Somente os filhos, a nova geração,estava, agora, diante da Terra Prometida. Agora Deus faz umanova aliança com esta nova geração. Deuteronômio significa, emgrego, “segunda lei”, ou seja, é a repetição da lei que Deus já haviadado ao povo, através de Moisés, no monte Horebe (Sinai).

A espinha dorsal de todos os discursos de Moisés é: “Amarás,pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tuaalma e de toda a tua força” (Dt 6.5). Jesus mesmo ressaltou que oamor a Deus é o que de mais importante havia para o povo fazerperante Deus (Mc 12.30).

O SENHOR é o criador de tudo e escolhera o povo de Israel paraser o seu povo. Antes disso já escolhera os patriarcas Abraão,Isaque e Jacó para deles formar este povo. A libertação do povode Israel da escravidão egípcia mostra que Deus não esqueceraseu povo e, agora, o traz para junto da Terra Prometida.

Mas o povo precisaria corresponder a este amor de Deus emostrar-se como povo de Deus através de uma vida que expres-sasse o amor a Deus. Eles deveriam seguir, obedecer e amar so-mente a Deus o SENHOR, sem se prostituir com a adoração dedeuses falsos.

TEXTO

O capítulo 30 de Deuteronômio faz parte do quarto discurso deMoisés. Enfatiza as promessas de Deus para um futuro promissorcaso os israelitas se arrependam de seus pecados. Deus pede que

TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTESDEUTERONÔMIO 30

“A palavra está mui perto de ti” (v. 14)

Page 81: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

81

o seu povo se converta a ele e lhe assegura que este mandamentonão é demasiado difícil para ser cumprido (v. 11), pois não estálonge, senão bem perto, no coração e na boca (v. 14).

Deus mesmo garante que o seu mandamento não é difícil deobedecer, porque ele mesmo, o SENHOR, daria corações dispostosao seu povo para que o amassem e o obedecessem e assim conti-nuassem a viver naquela terra (v. 6). Por isso, o povo, agora,deveria escolher entre o bem e o mal, entre a vida e a morte. Vidasignificaria seguir o SENHOR Deus; morte significaria servir outrosdeuses. Mas pede enfaticamente que se decidam pela vida paraque pudessem viver muito tempo na terra que o próprio SENHORDeus havia jurado dar aos seus antepassados Abraão, Isaque eJacó.

APLICAÇÕES

Durante quarenta anos Deus conduziu um povo pelo desertoa fim de preparar uma nova geração que confiasse nele e quepudesse ser luz para o mundo descrente no Deus verdadeiro. Umageração toda teve que peregrinar no deserto para sentir e se con-vencer de que Deus estava no comando da História.

Deus prometeu bênçãos ao povo se este o obedecesse e cum-prisse seus mandamentos. Os mandamentos não seriam difíceis decumprir porque não dependia deles a força para cumpri-los, mas “oSENHOR, nosso Deus, dará a vocês e aos seus descendentes cora-ções dispostos a obedecer, a fim de que o amem com todo ocoração e com toda a alma e assim continuem a viver naquelaterra” (v. 6 – NTLH).

Não é difícil de entender os mandamentos de Deus e nem decumpri-los, uma vez que Deus mesmo nos dá disposição para cum-pri-los. Eles não estão longe de nós. Não estão lá longe no céunem do outro lado do mar. Os mandamentos de Deus estão emnosso coração e podemos até recitá-los e, por isso, devemos cum-pri-los. Deus colocou sua lei em nossos corações (v. 14).

Estamos constantemente diante de escolhas. Moisés, no finaldo seu terceiro discurso, solicita ao povo que faça escolhas. Deve-riam escolher entre o bem e o mal, entre a vida e a morte. Emnossa vida diária constantemente precisamos decidir entre o bem eo mal quando estamos entre a turma da escola, do trabalho ou deoutras companhias. Talvez até precisemos sair da turma para es-colhermos o bem, correndo o risco de até sermos desprezados pela

TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 82: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

82

turma. Ou precisamos escolher entre a vida e a morte se certasdecisões nos levarem ao afastamento da vontade de Deus.

PROPOSTA HOMILÉTICA

A palavra de Deus está muito perto de nós

I. Deus colocou sua lei em nossos corações1. Ele nos conduz a fazermos a sua vontade2. Ele tem pena de nós quando nos arrependemos.

II. Deus nos orienta a escolhermos entre o bem e o mal, entre avida e a morte

1. Ele nos deu sua palavra para esclarecer a sua vontade2. Ele nos orienta para escolhermos a vida para que vivamos

para sempre com sua bênção.

Raul BlumSão Leopoldo, RS

Page 83: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

83

As palavras revelam o toque suave, confortador e refrescanteda palavra de Deus: “Goteje como chuva, destile como o orvalho,chuvisco sobre a relva, gotas de água sobre a relva” (v. 2). Este éo sentido da comunicação de Deus ao ser humano e é também apostura do seu mensageiro, Moisés.

O povo está no deserto. Sentem o calor do sol, os ventosabafados e, à noite, o vento que resseca o chão. A metáfora queMoisés foi buscar é de extrema sensibilidade e mostra o efeito dapalavra de Deus sobre a humanidade.

Por quê? Porque Deus é fidelidade, suas obras, que resultam dasua presença e da sua palavra, são obras perfeitas. O ponto decomparação para tudo é Deus. Ele é o prumo e a régua pelo quetudo é medido e classificado. O bem e o mal são assim determina-dos a partir da presença de Deus.

Tendo este Deus, cuja presença e palavra são consolo e alentopara o sedento, Moisés agora olha para o povo de Israel. O que elevê? Moisés vê a vida da humanidade como resultado do desvelo ecuidado diário e permanente de Deus. “Lembra-te dos dias daantigüidade, pergunta aos antigos” (v. 7). A marcha de Israel,desde o tempo dos patriarcas, é a marcha que só existiu e foipossível porque Deus cuidou de cada israelita “como a águia des-perta a sua ninhada ... estende as sua asas e ... os leva sobreelas”. Deste cuidado resultou que Israel teve colheitas, mel, azei-te, leite, gorduras, pão e vinho (11-14).

Israel fez algo para merecer este tratamento? A resposta éóbvia. Deus achou Israel numa terra árida, sem condições de so-brevivência. A condição natural de Israel é de mendicância e es-cravidão. Sem as asas de Deus para levá-lo aos lugares em que hácomida e abrigo, sem a providência de Deus preparando comida eabrigo, Israel é um povo morto que não tem retorno da morte.

Talvez seja esta a palavra que esteja faltando ser ouvida emtempos de relativismo moral e esfriamento espiritual. É necessáriover com clareza que aqui se fala em esfriamento em relação aDeus. Porque Israel estava “espiritualmente ativo” atrás de deusesque não lhe lembrassem a sua natureza verdadeira, a morta. Deu-

QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTESDEUTERONÔMIO 32. 1-43

Goteje a minha doutrina como a chuva

Page 84: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

84

ses que lhe prometessem tudo e que lhes alimentassem a suahipocrisia em relação a Deus.

O povo não quer ser lembrado da sua condição original. Rapida-mente esquecem que todos os bens e a própria vida são um pre-sente que Deus renova a cada segundo da nossa existência. Rapi-damente o ser humano se convence que a vida lhe pertence e tudoque a ela está agregado. Age como se fosse merecedor do que teme corre atrás de qualquer deus que lhe diga que ele, ser humano,ainda é merecedor de bens maiores, os quais deus tem a obrigaçãode lhe dar como resposta à sua oração/reivindicação. (D)eusesque se espalham em templos suntuosos e em pequenas capelasque gritam que se a fé for boa a bênção material é certa. Taisdeuses entram nos lares pelas janelas da mídia. E o povo esperaque também nos templos luteranos estes deuses e suas pregaçõesestejam presentes.

Israel estava gordo e dava coices em quem lhe lembrasse deque a nada tinha direito. Deus tanto pode visitar o crente como onão crente com limitações e chamados ao arrependimento. Moisésafirma que cada vez que Israel foi confrontado com a ira de Deus esofreu, tempos em que Deus escondeu o seu rosto, isto é, reteveas suas bênçãos e permitiu o sofrimento em Israel, este estava naverdade sendo levado por Deus a encarar a sua verdadeira e pró-pria identidade sobre a qual Deus é Juiz e Salvador.

Sem o juízo de Deus sobre a terra, a palavra do amor, o evange-lho, deixa de fazer sentido e o ser humano se julga merecedor deDeus. Israel se apropria da graça e da proteção de Deus como setivesse direito próprio a isso. Hoje, é comum ouvir em pregaçõesditas evangélicas de que o crente em Cristo adquiriu direitos sobreos benefícios de Deus. Ao cumprir o que dele se exige (ofertar,jejuar) prova-se a fé e se passa a pertencer aos que seguramentevão receber de Deus o que pedem. Estes são os deuses denuncia-dos por Moisés. Eles existem no coração humano desde que Adão eEva prestaram atenção a Satanás, que lhes insuflava esta conver-sa de que teriam direito a mais do que aquilo que já usufruíam. Estatentação é aquela que ruge ao redor dos pregadores e seus reba-nhos procurando alguém para devorar.

Mas ainda que visitados pelo furor de Deus e tendo descobertoque era a seus próprios deuses que serviam daquela maneira, aindaentão, derrotados e sem rumo, Deus ainda procura Israel e, emIsrael, os seus servos (v.36). Sim, porque nem todos que seguirama proposta satânica o fizeram com o desejo e a intenção de nãomais servirem a Deus. Entre o povo, muitos foram enganados pelos

Page 85: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

85

seus guias e líderes. No versículo 43 parece haver indicativo deque Deus saberá, ao final, distinguir entre os que abusaram da suagraça e aqueles que foram induzidos por falsos pregadores ou pre-gadores que não souberam ou não quiseram ser testemunhas daverdade.

Moisés começou a sua pregação dizendo que a palavra de Deusé refresco no deserto. À primeira vista ele parece ter enganado aspessoas ao afirmar isto. Entretanto, esta é exatamente a funçãodo pregador. A lei não se limita ao moralismo, senão os fariseusseriam mestres de Deus na lei. A pregação somente pode refrescara consciência que é lembrada da real condição em que estamosdiante de Deus em nossa natureza humana. “Nada merecemos,senão castigo” é o que aprendemos a dizer com Lutero. Esta frasenão foi escrita para não ter efeito. Ela é a única verdade queaprendemos diante da morte, que é o castigo mais visível ao olhohumano. A morte, e mesmo a morte temporal, é sinal de que nãopodemos ter nenhuma ilusão a respeito da nossa humanidade. Tudoque fazemos tem a marca do egoísmo, da autopreservação, davida centrada em nós próprios, na qual Deus e o próximo só encon-tram espaço na medida em que satisfazem necessidades nossas. Eisto nos condena diante de um e de outro.

A vida funciona, as relações se estabelecem, vivemos em famí-lia e comunidade somente e enquanto as asas de Deus nos carre-gam, subsidiando o que pensamos e fazemos com o seu perdãosobre o que somos realmente, sua graça, que faz com que pesso-as nos amem e respeitem, e sua proteção contra o mal que elesufoca dentro de nós para que possamos tentar ser úteis nestavida de alguma forma. O que merecemos além disto? Nada. Razãoporque tudo que fizermos em nada compensa o que Deus faz pornós. Por mais que fizermos, por mais que quisermos provar a Deuso nosso valor pessoal, “somos servos inúteis, porque nunca pode-mos fazer mais do que aquilo que de nós se esperava”. Entretanto,se o reconhecemos e buscamos viver em gratidão a Deus por tudoque vamos aprendendo a respeito do seu amor infinito, ele vaicarregar a nossa vida sobre as suas asas e se alegrar com a confi-ança com que agimos em seu nome neste mundo, buscando apon-tar com nossa vida e palavras para ele, doador de todas as coisasboas.

Paulo P. WeirichSão Leopoldo, RS

QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 86: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

86

CONTEXTO

Deuteronômio relata os três últimos discursos de Moisés, nasCampinas de Moabe, proferidos ao povo de Israel. É um resumo dasprincipais orientações que norteariam Israel na nova terra. As pa-lavras do texto em estudo fazem parte da conclusão do livro, quandoele estava prestes a subir ao monte Nebo, onde morreu. Ele estavacom 120 anos de idade, porém com perfeito vigor físico e mental(34.7). Havia liderado Israel pelo deserto ao longo de 40 anos.Sabia que seu encontro definitivo e eterno com Deus era iminente.Seu sucessor, que deveria liderar Israel na entrada e tomada daTerra Prometida, já havia sido indicado – Josué, filho de Num.

TEXTO

V. 44: “... todas as palavras deste cântico”. Refere-se ao cânticodo capítulo 33, no qual são exaltados o poder, o amor e as bênçãosdo Deus de Israel; mas se refere também a tudo que Moisés haviaproferido nos três discursos ao longo de todo o Deuteronômio. “...aos ouvidos do povo”. Aqui Moisés deixa um pouco o carátersermônico evidenciado em seus discursos ao longo do livro deDeuteronômio e passa a aconselhar pastoralmente. Poderíamos di-zer que ele desce do púlpito e vai aos israelitas para lhes falar noouvido uma mensagem de fundamental importância para seu futu-ro. “...ele e Josué, filho de Num”. Moisés sabia que deixaria o povo.Sabia também o quanto era importe que o povo tivesse um líderque o conduzisse pelo caminho do Senhor. Por isso, fez questão deque Josué, seu sucessor, estivesse ao seu lado ao proferir estasúltimas palavras. Podemos perceber aqui o quanto Moisés conside-rava importante o Ofício Sacerdotal e Profético na vida futura dopovo. Igualmente importante é o Ofício Pastoral, o Ministério, parao povo de nossos dias, pois é através dele que Deus nos visita e,em Cristo, nos oferece suas bênçãos.

V. 46: “... aplicai o coração a todas as palavras que, hoje,

QUINTO DOMINGO APÓS PENTECOSTESDEUTERONÔMIO 32.44-52

Esta Palavra é a nossa vida (v. 47)

Page 87: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

87

testifico entre vós”. Embora ditas “aos ouvidos do povo”, estaspalavras deveriam ser guardadas no coração e, sobretudo, serpraticadas por cada israelita no seu dia a dia. É uma reafirmaçãode Dt 6.6: “Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teucoração”. “... para que ordeneis a vossos filhos que cuidem decumprir todas as palavras desta lei”. Além de guardar e praticaresta palavra, cada israelita tinha o sagrado dever de passá-laadiante, especialmente aos seus filhos, conforme Moisés já haviadito em Dt 6.7ss: “... tu as inculcarás a teus filhos, e delas fala-rás...”.

V. 47: “Porque esta palavra não é para vós outros coisa vã”. Apalavra que estava sendo anunciada por Moisés não era uma coisainútil, sem valor. Era a palavra de Deus, que não volta vazia (Is55.10,11). Ela oferece a salvação ao que nela crê e anuncia acondenação ao que a rejeita. “... antes, é a vossa vida”. Estaafirmação não pode ser interpretada de forma sinergista. Moisésnão está afirmando que o ser humano promove a sua própria vidaatravés da obediência. Aqui precisa ser levado em consideraçãoque, ao longo do livro de Deuteronômio, Moisés menciona noventavezes o Messias Prometido, o Cristo. Moisés tinha, portanto, umavisão essencialmente cristocêntrica, na qual não há possibilidadede vida sem Cristo. Por outro lado, convém lembrar aqui a promes-sa feita por Deus na conclusão dos mandamentos: “... e faço mise-ricórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam osmeus mandamentos” (Êx 20.6). Aqui, e em outros textos, Deuspromete bênçãos para aqueles que guardam e cumprem seus man-damentos. No entanto, é preciso frisar que a obediência é conse-qüência da fé, que é obra do Espírito Santo, e a vida provém deCristo, a quem estamos unidos pela fé, e a quem seguimos emobediência. “... e, por esta mesma palavra, prolongareis os diasna terra à qual, passando o Jordão, ides para possuir”. Isto podeser facilmente comprovado no livro de Juízes. Sempre que o povoconfiou nas promessas de Deus, e nesta fé o obedeceu, teve vidatranqüila, experimentou longos momentos de paz e de prosperida-de. Por outro lado, sempre que agiu de forma contrária, depositan-do sua confiança nos deuses dos povos vizinhos e, conseqüente-mente, desobedecendo a Deus, viveu dias de dificuldades e escas-sez, tendo seu território invadido por outros povos, pagando tribu-tos a estes povos, sofrendo as conseqüências das pestes e dasestiagens, etc. Aqui também precisamos ter um cuidado muitogrande para não pregarmos, inconscientemente, a tão badalada

QUINTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 88: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

88

teologia da prosperidade. Moisés não atribui o prolongar da vida ouas bênçãos a algum ato humano, mas à palavra de Deus, que eleestava anunciando aos israelitas (e, por esta palavra, prolongareisos dias na terra). Se é pela palavra que se obtêm as bênçãos deDeus, então elas não são meritórias, mas são manifestações dagraça e da misericórdia de Deus, pois a palavra não é de homens esim de Deus. As bênçãos aqui prometidas não são para aqueles quefazem barganha com Deus, mas para aqueles que, na fé, dizem:“se for da tua vontade, Senhor!”. “... terra”. Evidentemente que serefere à terra de Canaã. Mas ela sempre tipifica a Nova Canaã, océu. O que dá a este texto a correta perspectiva escatológica,sem a qual o povo de Deus fica sem rumo na sua marcha. “...passando o Jordão”. A passagem do povo pelo rio Jordão tem umsignificado diferente da passagem pelo mar Vermelho. A passagempelo mar Vermelho tipifica nossa justificação, quando Deus noslibertou do pecado, do diabo e da morte. Já a passagem pelo Jordãotipifica a nossa entrada no céu, quando desta vida formos chama-dos por Deus.

Vv. 49 e 52: “... e vê a terra de Canaã, que aos filhos de Israeldou em possessão”. Deus concede a Moisés o privilégio de ver comos seus próprios olhos a terra que ele havia prometido a Abraão,Isaque e Jacó; promessa que havia sido reafirmada a Moisés e aopovo de Israel, através de Moisés.

V. 50: “Morrerás no monte”. Está aí a conseqüência do pecadode Moisés. “E te recolherás ao teu povo”. Numa leitura superficialpoderíamos entender que Moisés seria sepultado junto aos seusantepassados, na caverna de Macpela (Gn 23). Mas não foi issoque ocorreu, Moisés não foi sepultado naquela caverna. Portanto,aqui nós temos uma referência clara do reencontro ou do encontroque Moisés teve com os do seu povo no céu. Assim, poderíamosafirmar a partir deste texto que a morte dos filhos de Deus nãosignifica uma separação, mas um reencontro definitivo e eterno.

V. 51: “... porquanto prevaricastes contra mim no meio dosfilhos de Israel, nas águas de Meribá de Cades...”. Mostra queDeus perdoa os nossos pecados, mas há determinadas conseqüên-cias pelas quais ele nos responsabiliza e nos cobra no momento doacerto de contas. O que, no entanto, não nos fecha as portas docéu, pois, como diz Paulo, onde abundou o pecado, superabundoua graça de Deus (Rm 5.20).

Page 89: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

89

PROPOSTA HOMILÉTICA

Esta Palavra é Nossa Vida (Por quê?)

IntroduçãoProlongar a vida. Viver por muito tempo e com qualidade. Com

esta finalidade os cientistas têm pesquisado há muitos séculos.Muito dinheiro tem sido investido e os resultados nem sempre têmsido satisfatórios. Em Dt 32.46 e 47, Deus nos apresenta umamaneira pela qual ele quer nos dar uma vida longa e feliz. Ele diz:“Aplicai ...”. Fundamentados nesta passagem bíblica, meditaremoshoje sobre o tema: ESTA PALAVRA É NOSSA VIDA!

I. Porque através dela Deus nos abençoa:- “Prolongareis os dias na terra...” Dt 32.47;- Conclusão dos Mandamentos: “... e faço misericórdia até mil

gerações daqueles que amam e guardam os meus mandamentos”.Êx 20.6;

- Quarto Mandamento: “Para que te vá bem, e sejas de longavida sobre a terra” Ef 6.2,3.

Moléstia (Lei): O desprezo à palavra de Deus tem conseqüênci-as que podem abreviar a vida, tirar a qualidade da vida, impossibi-litar a vida eterna.

Meio (Evangelho): Jesus cumpriu integralmente a Lei de Deusem nosso lugar. Pela fé nele somos perdoados e capacitados agostar de ouvir, estudar e praticar a santa Palavra de Deus e,assim, Deus, graciosamente, nos abençoará nesta vida e na eter-nidade. Jesus nos garante que veio nos dar vida, e vida em abun-dância.

II. Porque através dela é o próprio Cristo que nos visita:Moléstia (Lei): A prática de transformar a palavra de Deus numa

espécie de manual que nos ensine a promover a nossa própria vida.- Frustração de não poder cumpri-la integralmente;- Hipocrisia, muito presente nas religiões que transformam a

palavra de Deus em manual de “boa conduta”;- Religião das obras que aos olhos de Deus não passam de

trapos de imundícias;- O caminho das obras é semelhante a uma estrada interrompi-

da: não leva ao céu, e sim, à condenação eterna.Meio (Evangelho): Jesus é o caminho, a verdade e a vida (Jo

14.6). Ele é a Palavra encarnada (Jo 1.14). Através da Palavra ele

QUINTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 90: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

90

nos visita e compartilha conosco o perdão e a vida eterna con-quistados por ele na cruz do Calvário

- Através da sua santa Palavra, Jesus nos visita assim comovisitou Zaqueu: “Hoje, houve salvação nesta casa... Porque o Filhodo Homem veio buscar e salvar o perdido” Lc 19.9,10.

ConclusãoPortanto, Deus nos apresenta uma maneira pela qual ele quer

nos dar uma vida longa e feliz. Em Cristo ele quer estar conosco,nos acompanhando em nossa jornada e nos dando vida em abun-dância. E ele nos visita e nos abençoa através da sua santa Pala-vra. Por isto, ESTA PALAVRA É NOSSA VIDA. Permaneçamos nestaPalavra! Amém.

Geraldo Walmir SchülerCacoal, RO

Page 91: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

91

APONTAMENTOS EXEGÉTICOS (GRAMATICAIS E LÓGICOS)

Vv. 1-5: “O homem de Deus”. Moisés segue a linhagem de seusancestrais. Assim como Abraão, Isaque e Jacó abençoaram seusfilhos, agora Moisés, ao se despedir, dá sua bênção. Posteriormen-te, o “homem de Deus” será chamado de profeta, como podemosver em 1 Sm 2.27, 9.6-10. A bênção descreve a santidade deDeus, a qual Israel conhecera ao longo de sua estada no deserto.A santidade de Deus está relacionada com seu poder, sua nature-za, o que faz dele – e somente dele – Deus. Deus não é igual aIsrael. Ele é “fogo consumidor” (Hb 12.29) e Israel aprendeu. Umdos incidentes que mostra isso é quando os filhos de Arão foramdestruídos (Lv 10.1-3), pois violaram a santidade de Deus. Porcausa da santidade de Deus, Israel aprendeu a necessidade de umMediador, que sem pecado cobre todos os pecados com seu san-gue, por meio do qual se pode ter acesso ao trono de Deus (Hb 8 e9). Se por um lado Israel aprendeu o que significa a santidade deDeus, Israel também sabe que Deus “ama o seu povo e protege osque são dele” (v.3). Deus é como um Leão não domesticado. Ele ésoberano, ele é livre e sua liberdade não tem limite. Ele faz o quebem entende. Não se pode entender seus caminhos (Rm 11.33,34).Seu Espírito Santo é como o vento que “sopra onde quer” (Jo 3.8).Essa é a fera não domada que Israel aprendeu a conhecer.

Vv. 6-25: As tribos são distribuídas de acordo com sua voca-ção/chamado. Interessante observar que o chamado não tem ori-gem nas tribos, mas sempre na ação de Deus por elas.

Vv. 26-29: O discurso tem seu desfecho retomando as palavrasiniciais. Moisés é um bom retórico porque sabe que tudo tem origemna ação de Deus. A descrição da ação trinitária de Deus. Os vv. 26-28 descrevem o Primeiro Artigo do Credo: Deus tem controle sobretudo e todos; sua providência não deixa escapar nada. QuandoLutero conclui sua explicação dos Mandamentos, ele nos lembracomo Deus está conosco com sua bênção até mil gerações. Viverseguro e em paz é o que Deus propõe para Israel ao entrar na TerraPrometida, onde não faltará o necessário para a vida, que está nasmãos do próprio Deus. Ver Mt 6.24-34 e os desafios para nossa vidano dia a dia. Mas não é só o dia a dia que é abençoado por Deus.“Israel... é feliz” porque Deus o salvou; Deus é o escudo e a espada

SEXTO DOMINGO APÓS PENTECOSTESDEUTERONÔMIO 33. 1-29

Page 92: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

92

para proteger e dar vitória a Israel. O dia a dia é abençoado, mastambém é acompanhado por Deus. A vitória se dá na pessoa e obrade Cristo; a proteção vem da ação do Espírito de Deus, que colocatodos os inimigos aos pés de Israel. Esta passagem nos remete àspalavras de Paulo em Ef 6.10-20, que nos mostra um quadro seme-lhante a este que Moisés está pré-anunciando a Israel.

APONTAMENTOS HOMILÉTICOS (RETÓRICOS)

Quando começa a semana para o cristão? Segunda-feira? Não,no domingo. Isto Israel aprendeu muito bem na sua caminhada pelodeserto, onde Deus preparou de forma litúrgica o povo para entrarna terra prometida. Algo semelhante aconteceu conosco quando odomingo nos prepara para a segunda, ou melhor, quando somosconvidados a viver a nossa vocação.

A sugestão retórica é a correlação entre o domingo e a segun-da-feira, entre a liturgia do culto, a ação de Deus, e a interação deDeus conosco na segunda-feira. A vocação cristã é fruto da liturgiado Culto. Lutero tinha isto em mente quando construiu sua liturgiae colocou na oração pós-comunhão a responsabilidade cristã doamor, da caridade, da vocação.

Para ampliar e ajudar na reflexão homilética, transcrevo algunstrechos da obra de Gustav Wingren, “A vocação segundo Lutero”(Canoas: Editora da ULBRA, 2006). O número ao final da citaçãoindica a página.

Lutero usa Beruf na maioria das vezes como posição ou ocupa-ção externa. Este uso é novo com Lutero (p.9). Todos os sereshumanos têm posição (Stand), mas só o cristão tem Beruf. Este“chamado” não é particular, mas sempre se estende ao próximo.“Se eu me vejo como ocupando algumas dessas categorias de vidaque sirva para o bem-estar dos outros, não devo alimentar a míni-ma dúvida no que respeita ao agrado de Deus, mas crer no evan-gelho. O ponto significativo não é se entro em tal posição comoalguém pecador e indigno. A questão é se o “estado” em si épecaminoso, ou não. O pecado da pessoa é julgado e perdoado nocéu, onde não há nenhum questionamento quanto à vocação, es-tado ou ofício, mas tão somente ao coração. Na terra, por outrolado, é necessário dar atenção ao ofício e estado, não ao pecadodo coração” (p.20).

Para Lutero, as vocações se estendem desde as ordens biológi-cas pessoais (ser pai, mãe, filho, filha) até as ordens impessoais

Page 93: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

93

(ser patrão, empregado, governante, professor, aluno). “Em tudo oque envolve ação, em tudo o que diz respeito ao mundo ou ao meurelacionamento com o próximo, em tudo isso, portanto, Lutero sus-tenta, não há nada que caia numa esfera puramente privada fican-do fora do estado, ofício ou vocação. É tão-só perante Deus, issoé, no céu, que o indivíduo está só. No reino terreno, o homem estásempre in relatione, sempre vinculado ao outro. Disso é claro quetodo cristão ocupa uma grande variedade de ofícios ou estados aomesmo tempo e não apenas um: um mesmo homem, por exemplo, épai de seus filhos, marido de sua mulher, senhor de seus servos econselheiro da câmara municipal” (p.21).

As vocações não produzem qualquer alteração no coração dohomem. O coração só é mudado diante de Deus, no céu, quando oser humano está individualmente perante Deus; esta mudança ocorreatravés do evangelho de Cristo. “Ali o ser humano é uma pessoasozinha”. “Na terra e em relação ao próximo, ele despenha um“ofício”; aí, o ponto principal é ser mantida a criação, ou seja, queos filhos recebam alimentação, vestes, cuidados. A obra do amor,Deus a efetua na terra através das “ordens” – a ordem do casa-mento, do professor e dos alunos, do governo, etc. Até as pessoasque não tomaram o evangelho em seus corações servem à missãode Deus mesmo sendo ignorantes quanto a isso, pela própria razãode estarem desempenhando as funções exteriores dos seus res-pectivos estados” (p.23).

“A idéia de Lutero quanto ao ofício constitui um elemento impor-tante no seu farto conceito de criação, que é peculiarmente con-creto e vital. Os pássaros a cantar, embora não saibam o que irãocomer, são para nós um exemplo. Deus espalha seus dons, semen-tes, ervas e criaturas comestíveis. Nosso cuidado único deveriaser, então, o que devemos fazer com todo esse bem que Deusproduziu de modo que ele possa beneficiar nosso próximo. Em lugardisso, porém, nos preocupamos em como pegar o máximo possívelpara nós mesmos; e assim nos colocamos de modo contrário àgenerosa corrente da criação” (p.24).

Há uma direta conexão entre a obra de Deus na criação e a suaobra nesses ofícios ... Deus cria os bebês no corpo da mãe – sendoo homem apenas um instrumento na mão de Deus – e então ele ossustenta com seus dons, entregues aos filhos mediante o labor depai e mãe no seu ofício paternal (p.25).

“Deus mesmo vai ordenhar as vacas através daquele cuja vo-cação é essa. Quem se engaja na humildade do seu trabalho reali-za a obra de Deus, seja ele um jovem ou um rei. Dar a atenção

SEXTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 94: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

94

devida ao ofício não é egoísmo. Devoção ao ofício é devoção aoamor porque é pelo próprio ordenamento de Deus que seja semprea obra do ofício dedicada ao bem-estar do próximo. O cuidado peloofício de alguém é, no seu próprio quadro de referência na terra,participação no próprio cuidado de Deus pelos seres humanos” (p.26).

Portanto, a vocação pertence à esfera terrena e não celestial.“Na sua vocação, o homem não está se elevando para Deus, mas,ao contrário, abaixando-se em direção ao mundo. Quando alguémfaz isso, a obra criativa de Deus é levada adiante. A obra do amorde Deus toma forma sobre a terra, constituindo-se nos testemu-nhos externos do seu amor. Se notarmos com atenção quanto bemDeus nos outorga tanto pela sua criação direta quanto pelas suasordens criadas, conheceremos a verdade de que ele nos perdoa ospecados” (p.26).

Na vocação, as obras são constrangidas a moverem-se em di-reção ao próximo, em direção à terra; e a fé somente, a confiança,a oração, todas sem obras, sobem em direitura ao céu. Em tudoisso, a pessoa é incorporada a Cristo; a cruz na vocação é a suacruz; e a fé, que rompe dessa cruz na vocação, é a ressurreição(p.48).

Mas como nas ordens, além de Deus, Satanás também estáativo, Lutero observa que pode acontecer que o homem se desviedo próximo, sentindo-se tão confortável nesta posição que nemmais perceba a necessidade da fé em Deus. Observações comoessa levaram Lutero a fazer propostas concretas para reformas davida em sociedade, na qual, por exemplo, certas formas de comér-cio são condenadas (p.49).

Quando uma pessoa dedica alegremente os seus esforços paraas suas tarefas preenchendo as necessidades do seu próximo eatendendo a sua vocação, então o amor de Deus e de Cristo setorna ativo, então o Espírito se faz presente. Descobrir o amor é,assim, a mesma coisa que descobrir serem o próximo e a vocaçãouma circunstância na qual alguém pode viver com alegria. Nossointeresse não está em nosso amor; é para o nosso próximo e voca-ção para os quais o nosso interesse está voltado (p.58).

“É na fé que todos são iguais face a Deus ou no céu, onde nãose encontra o homem na dependência de nenhuma obra de suaprópria feitura. Mas há enormes diferenças nas obras voltadas parao próximo na terra”. [...] “As diferenças entre as pessoas acham-setodas nas coisas que elas podem fazer em suas múltiplas formas,na capacidade ou no trabalho” (p.186).

“Quando o objetivo dos esforços humanos é servir os outros,

Page 95: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

95

servir a todas as pessoas, seguem-se naturalmente que suas obrasdiferirão em larga escala. São as diferenciações desejadas pelopróprio Deus, como a riqueza dos dons, que são espalhados mundoafora através do sistema das vocações terrenas. Para expressarisso, tem Lutero uma especial predileção pela figura paulina docorpo e seus membros (Rm 12 e 1 Co 12)” (p.190).

“[...] é de particular importância que nenhum membro do corpodirija seu esforço no senso de se tornar um membro ou de partici-par do corpo. Eu já sou um membro! Isso é feito mediante a obrade Cristo; conseqüentemente, meu esforço pode agora ser dirigidona sua totalidade para servir o corpo e seus membros” (p.191).

“A ação do homem é instrumento para o amor de Deus atingir asoutras pessoas. A vida do corpo como um todo está envolvida naatuação de cada membro. No exercício da sua vocação, o homemse torna uma máscara para Deus. É digno de nota que o juízo deLutero sobre a imitatio é negativo; ninguém deve colocar a suaconfiança em algo externo, mas agir imparcialmente face a todasas aparências humanas” (p.192).

“À medida que seu trabalho se dirige para fora, é ele uma más-cara de Deus; mas, ao mesmo tempo, nenhum valor é atribuído aesse trabalho devido à confiança da consciência no evangelho, e oservidor se recusa a confiar em qualquer das suas boas obras. Nãoparece ao cristão que devam todos os outros cristãos fazer exata-mente como ele faz, dar exatamente como ele dá, sofrer como elesofre. Cada qual tem de prestar o seu próprio serviço” (p.193).

“Deus é Criador e ele sempre traz à luz novas criações dandoformas novas ao exercício das vocações dos homens. Por isso,deve o homem sempre deixar a porta aberta para Deus à medidaque, na hesitação e desespero, procura conselho de Deus median-te a prece” (p.196).

Clóvis Jair PrunzelSão Leopoldo, RS

SEXTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 96: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

96

O TEXTO E SUAS SURPRESAS

Deuteronômio 34 encerra o Pentateuco. Não é, a rigor, um finalbem apoteótico, pois fala da morte de Moisés, seu sepultamento edo luto do povo de Israel. No entanto, mesmo assim traz umaavaliação da figura de Moisés (vv. 10-12), que cabe muito bem naconclusão dessa divisão bíblica conhecida como os Livros de Moisés.

Alguns detalhes do texto passam por óbvias, mas deveriam nossurpreender. E nem é tanto o fato de no Quinto Livro de Moisésaparecer um relato da morte de Moisés (fato este, aliás, que levoumuitos antigos a dizer que também nisto se confirma o caráterprofético de Moisés: escreveu antecipadamente a respeito de seupróprio funeral!). Também não é o fato de Moisés enxergar a terraprometida, com os limites e as divisões territoriais que só se confi-gurariam mais tarde. Tampouco o fato de se afirmar que ele aindaenxergava bem (afinal, viu a terra prometida) e que seu vigor nãose lhe abateu (afinal, com 120 anos de idade conseguiu escalar omonte Nebo!).

O que surpreende, em parte, é que se confirma o “interdito”anterior: “Também tu lá não entrarás” (Dt 1.37; cf. Nm 20.12;27.12-14). Surpreende porque, no momento em que a terra prome-tida é mostrada a Moisés, é apresentada como a terra que Deusprometeu, em juramento, a Abraão, Isaque e Jacó. Essa terra seriadada aos descendentes dos patriarcas. Moisés, porém, ficou nolimiar daquela terra. E a explicitação da promessa apenas acentuao fato de que Moisés ficou do lado de fora.

Surpreende que Deus sepultou Moisés; surpreende que ninguémsabe onde fica a sepultura dele (um lugar de peregrinação a me-nos!), mas surpreende mais ainda que Moisés morreu na terra deMoabe (v.5). Não seria de esperar que ele ao menos fosse sepulta-do na terra santa?! (Esses “editores deuteronomistas” poderiamter dado uma caprichada e melhorado a ‘sorte’ de Moisés ... Nãoteria sido tão difícil ‘maquiar’ a história ... Claro, trata-se de umaironia).

Terminado o tempo de luto, entra em cena Josué, filho de Num.Foi o “sucessor” escolhido por Moisés. Mas quem era Josué? Verifi-

SÉTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTESDEUTERONÔMIO 34

“Nunca mais se levantou em Israel profeta como Moisés” (v.10).

Page 97: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

97

car o que se diz dele no texto ajuda a ressaltar a singularidade deMoisés. Josué foi um líder a quem o povo de Israel deu ouvidos. Eleestava cheio do espírito de sabedoria (ruah hokma). Poderíamosdizer que Josué foi um sábio líder e bom administrador. Não estavaentre os profetas. Também não foi legislador. Ele apenas transmitiuas leis de Moisés.

Moisés é “servo do SENHOR”. (Essa expressão “Moisés, servodo SENHOR” aparece, aqui, a primeira vez em toda a Bíblia. Aotodo, são 18 ocorrências, a grande maioria delas no livro de Josué).E embora esse termo (no hebraico, ebed) possa, também, ser tra-duzido por “escravo”, certamente não é este o sentido da palavranesse contexto. (O mesmo vale para muitos outros contextos,incluindo os do NT.) Os súditos de um rei são os seus “servos” (Êx7.28), assim como seus oficiais (2Rs 22.12) e seus embaixadores(Nm 22.18).

Entretanto, o que mais bem caracteriza Moisés é que “nuncamais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, com quemo SENHOR houvesse tratado face a face” (v.10). Moisés foi, por-tanto, profeta. Em que sentido? No sentido de que ele foi o porta-voz do SENHOR. (Esse sentido de porta-voz fica claro em Êx 7.1,onde Arão é o “profeta” [nabi] de Moisés). Detalhando um poucomais, pode-se dizer que Moisés foi profeta porque Deus o chamou(Êx 2-3) e lhe deu do seu Espírito (Nm 11.17) para falar a suapalavra.

Moisés foi um profeta sem igual. Certamente, dirá alguém, por-que ele teve um acesso a Deus que ninguém outro teve ou, então,percebeu o que ninguém outro foi capaz de perceber. Em outraspalavras, um “sensitivo” sem igual. Mas o texto diz exatamente ocontrário. A perspectiva é teocêntrica, não antropocêntrica. Nãofoi Moisés quem tratou com o SENHOR face a face, mas o SENHORtratava com ele face a face (ver Êx 33.11; Nm 12.6-8). Não foiMoisés quem descobriu o SENHOR; foi o SENHOR que se valeu deMoisés, seu servo, e se revelou a ele. Na verdade, o texto hebraicodiz que o SENHOR “conhecia” (verbo yada) Moisés face a face. Éclaro, esse conhecer conota, por assim dizer, intimidade, algo quefica claramente expresso no “face a face” ou “cara a cara”.

O destaque final, em Dt 34, fica para aquilo que Moisés, pormando do SENHOR, fez na terra do Egito à vista de todo o Israel.Em outras palavras, os sinais e maravilhas, os grandes e terríveisfeitos que operou (v.12) são mais importantes do que, por exem-plo, o fato de ter entregue aquilo que veio a ser conhecido como “alegislação mosaica”.

SÉTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 98: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

98

O TEXTO E SUA RECEPÇÃO POSTERIOR

Moisés morreu, mas aquele não foi o fim de sua trajetória. Claro,alguém vai imediatamente lembrar o incidente da Transfiguração (Mt17). Mas não podemos restringir o “legado” de Moisés àquele inci-dente. Moisés teve uma “sobrevida”. Valeria a pena examinar o im-pacto de Moisés no restante do AT. Limitamo-nos, porém, a registrarque ele é mencionado 767 vezes na Bíblia Hebraica. Afora oPentateuco, seu nome aparece em Js, Jz, 1Sm, 2Sm, 1Rs, 2Rs, 1Cr,2Cr, Ed, Ne, Sl, Is, Jr, Dn, Mq, Ml. Em Os 12.13, o nome de Moisésnão aparece, mas ele é chamado de profeta. Além disso, haveria umfarto campo de pesquisa em escritos judaicos não-canônicos. Noentanto, vamos nos ater mais de perto à figura de Moisés no NT.

Para o judaísmo, Moisés é antes de mais nada o legislador, comotambém o confirma João 1.17. E, embora se possa argumentar que,no Evangelho de Mateus, Moisés aparece como um tipo de Cristo,o que faria de Jesus uma espécie de “segundo Moisés”, o fato éque, no NT, não se dá grande destaque a Moisés como legislador.Em Jo 7.19, Jesus reconhece que Moisés deu a lei. E, em Gl 3.19,se fala a respeito de um mediador, mas o nome de Moisés nãoaparece.

O NT confirma o papel profético de Moisés. No Evangelho deJoão, dois acontecimentos da vida de Moisés prefiguram aspectosda vida e obra de Jesus: a serpente de bronze (Nm 21.8-9) e omaná no deserto (Jo 6). Em Jo 1.45, os discípulos confessam queMoisés anunciou a vinda do Messias. Além disso, Jesus afirma queMoisés escreveu a respeito dele (Jo 5.45-46). Em Jo 9.28-29, osfariseus atestam que Deus falou a Moisés.

Passando aos Sinópticos, o relato da transfiguração apresentaJesus, ainda que de forma indireta, como aquele profeta semelhan-te a Moisés prometido em Dt 18.14-19. Moisés aparece tambémcomo profeta em Lucas 24.25,27. O que chama a atenção é que,no Pentateuco, não existe nenhuma profecia explícita a respeitodo sofrimento do Cristo. Entretanto, é possível que a rejeição deMoisés (At 7.35-39) tipifique a rejeição que Jesus teve que suportar.No mais, o livro de Atos dos Apóstolos atesta que a promessa deDt 18 se cumpre na pessoa de Jesus (At 3.22-23 e At 7.37).

Paulo confirma que Deus falou a Moisés (Rm 9.15). No entanto,mais comum é que Moisés apareça como exemplo (2Tm 3.1-9; 1Co10.1-22; 2Co 3.15-17). No caso de 2Co 3, trata-se de um exemploantitético, num contexto em que aparecem algumas das afirma-ções mais contundentes a respeito da ruptura fundamental entre

Page 99: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

99

cristianismo e judaísmo. No geral, Paulo jamais apresenta Moiséscomo tipo de Cristo. (Em Hebreus, este papel está reservado aJosué). No entanto, a geração do deserto é um tipo da igreja (1Co10.6).

Detalhes da vida de Moisés aparecem em Atos 7 e Hb 11.23-28.Nesta última passagem, Moisés é um exemplo de fé e discipulado.

A passagem de Judas 8-10 é importante porque pressupõe amorte de Moisés. Isto contrasta com uma tradição judaica, segun-do a qual Moisés nunca teria morrido.

Embora, no NT, nunca se afirme com todas as letras que, emJesus, havia chegado alguém maior do que Moisés, isto fica claroao longo de suas páginas. O fato de Jesus ser superior a Moisésfica claro em João (1.17-18 e 6.32-33) e em Hebreus (3.1-6).Enquanto Moisés é servo, Cristo é Filho. O interessante é que, emHebreus, se defende a superioridade de Jesus em relação a Moisésdepois que já se provou a superioridade de Jesus em relação aosanjos. Parece estar implícito que alguém poderia ser maior do queos anjos e, ainda assim, não ser superior a Moisés. Claro, o autoraos Hebreus afirma que Jesus é superior tanto a uns quanto aoutro.

PISTAS PARA A APLICAÇÃO

Outro dia apareceu na seção de curiosidades de um jornal aseguinte observação a respeito dos cinco judeus mais influentesdo mundo: “Moisés – tudo é lei; Jesus – tudo é amor; Marx – tudoé matéria; Freud – tudo é eros; Einstein – tudo é relativo”. De fato,tudo é relativo, especialmente em se tratando de simplificações. E,assim sendo, em Moisés nem tudo é lei. Segundo o NT, Moisés temmuito de profeta. Confirma-se Dt 34: Nunca mais se levantou emIsrael profeta como Moisés. Mas, com certeza, maior do que Moisésé aquele que cumpriu o que Moisés profetizou.

Em todos os tempos, o povo de Deus se encaminha para oeschaton com um olhar voltado para o seu passado. Especialmenteo povo de Deus do Novo Testamento se define em relação à nuvemde testemunhas (Hb 12.1) que o cerca. Uma dessas testemunhasé Moisés. Facilmente formulamos estereótipos e rotulamos Moiséscomo legislador. Dt 34.10 nos surpreende e desestrutura ao apre-sentar Moisés como o maior de todos os profetas. Mas o NT confir-ma esse veredicto. Moisés foi servo do SENHOR (e, à luz do NT,SENHOR é também um título cristológico). Moisés foi servo acima

SÉTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 100: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

100

de tudo na medida em que profetizou a respeito de Jesus. E aovermos Moisés como maior dos profetas poderemos melhor apreciarquem é e também o que fez, faz e fará o Senhor e Salvador JesusCristo.

Vilson ScholzSão Leopoldo, RS

Page 101: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

101

JOSUÉ 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO

O texto específico para a meditação vem do primeiro capítulode Josué, no versículo cinco, nas palavras: “não te deixarei, nemte desampararei”. Sendo este o primeiro de dez domingos em que olivro de Josué será utilizado, oferecemos uma breve exposição ge-ral a respeito do sexto livro do Antigo Testamento (baseada emHorace Hummel, The Word Becoming Flesh. St. Louis: ConcordiaPublishing House, p. 103,4).

O título do livro é muito próprio, pois do começo ao fim Josué,“ajudante de Moisés” (1.1 - NTLH), é o personagem central. Napessoa e atuação de Josué, porém, encontramos mais do que abiografia de um personagem do povo de Deus. Trata-se de um livroque apresenta um cumprimento imediato da promessafreqüentemente feita no Pentateuco, a respeito da terra que Deusdaria ao seu povo. E neste cumprimento a atuação de Josué, comoinstrumento de Deus, é decisiva. No entanto, olhando a questãode um ponto de vista mais amplo, levando em conta todo o cânonebíblico, observa-se que este cumprimento ainda não é o último,que virá somente em Cristo.

O livro de Josué oferece duas fortes referências tipológicas paraa Igreja do Novo Testamento. A primeira trata-se da própria pes-soa de Josué (na Septuaginta - vIhsou/j. que é um tipo de Jesus.Também a atuação de Josué, como o guia do povo de Israel rumo àterra prometida por Deus, tipifica a obra futura de Cristo, queconduz seu povo, por meio do sacrifício da cruz, à glória do Pai. Asegunda referência tipológica do livro é a própria terra prometida,que tipifica os benefícios da obra de Cristo. Trata-se do lugar dodescanso do povo de Deus, tema que repetidamente aparece noAntigo e Novo Testamentos (Dt 3.20; Js 1.15; Sl 95.11; Mt 11.28-30; Hb 3.11-4.11). Pelo batismo temos o descanso de Deus, vivendoem seu reino, sob sua graça. Ainda assim, aguardamos aconcretização deste repouso (Ap 14.13) na glória do Pai.

O livro de Josué é um belo referencial para a vida da Igrejaneste mundo, pois mesmo após o cumprimento em Cristo, nósestamos em um tempo de aguardar a plena realização do reino deDeus, já inaugurado na obra do Salvador. O cumprimento das pro-messas aconteceu na morte e ressurreição de Cristo. Ainda assim,

OITAVO DOMINGO APÓS PENTECOSTESJOSUÉ 1.5

Page 102: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

102

estamos na expectativa. Percorremos este mundo como nosso pe-núltimo lar, assim como Israel o fazia “no outro lado do Jordão”.Temos uma “cidade” que nos está preparada!

O primeiro capítulo do livro prepara o caminho para a conquistada terra por Israel, sob a liderança de Josué. Trata-se de um pre-paro, antes de tudo, do próprio Josué. Por três vezes ele ouve, daparte de Deus e do próprio povo, as palavras: “Sê forte e corajoso”(1.6,9,18). São palavras que o próprio Moisés havia dirigido a Josué(Dt 31.7). Em cada uma destas ocasiões, há uma correlação entreo imperativo e a garantia dada pelo próprio Deus e testemunhadapor Moisés e pelo povo: “Eu [o Senhor] serei contigo” (Dt 31.8; Js1.5,9,17). A presença graciosa de Deus com o líder do seu povo éa base única para o trabalho que está à frente.

JOSUÉ 1.5

O versículo cinco, base específica para a mensagem, traz umaafirmação: “Ninguém te poderá resistir todos os dias da tua vida”;e a promessa: “como fui com Moisés, assim serei contigo: não tedeixarei nem te desampararei”.

Ambas as palavras ditas a Josué repetem o que Deus já haviaanunciado a todo o povo. Ao dizer a Israel que a conquista futurada terra era certa, Moisés afirmou: “Ninguém vos poderá resistir”(Dt 11.25). A promessa da presença de Deus e do seu amparo,dirigida a Josué, foi feita com as mesmas palavras também ao povo(Dt 31.6).

“Não te deixarei” (^P.r.a: aOl) O verbo (raiz: hpr) usado no Hifilevoca a figura de alguém retirar-se, por exemplo na situação emque outra pessoa depende de sua presença (Js 10.6); ou então aação de “retirar a mão” no sentido de deixar de fazer algo queestava previsto (1 Cr 21.15; cf. Ne 6.3). Tendo Deus como sujeito,o mesmo verbo também é encontrado em Dt 4.31; 31.6,8; 1 Cr28.20; Sl 138.8. “Deixar”, por isso, traz à mente a idéia de abster-se de agir conforme originalmente planejado. Deus garante a Josuéque não o deixará, ou seja, não voltará atrás na ação que estavaprevista. Deus não se retira do palco de ação dos seus escolhidos.Positivamente significa: Deus irá manter-se ao lado de Josué, paraprotegê-lo de seus inimigos e abençoá-lo na obra que virá. Apresença de Deus é dinâmica; ele não apenas vê a história acontecer,mas está por detrás dela, seja para castigar em sua justa ira, sejapara amparar e dirigir os seus amados (que é sua vontade principal).

Page 103: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

103

“Nem te desampararei” (&b,z.[,a, aOl) – o verbo (raiz bz[) tem largaocorrência no Antigo Testamento, significando “deixar, abandonar”,sendo que um dos sentidos é “desamparar” (por exemplo, deixaralguém para trás, à própria sorte – 1 Cr 10.7; 1 Sm 30.13). Deushavia alertado Israel que se Ele os desamparasse, todo mal lhessobreviria (Dt 31.17). Na fraqueza de fé do povo, por vezes lhesparece que Deus os desamparou, mas firmado em sua aliança Deusnão se esquece deles (Is 49.14). Em alguns textos (por ex., Ed9.9; Is 54.7,8) fica expresso que a misericórdia de Deus é a causadele não os abandonar. A firme confiança do povo de Deus é queEle jamais desampara aos que confiam no seu nome e o buscam (Sl9.10). Talvez uma das ocorrências mais desafiadoras do verbo noAntigo Testamento está no Sl 22.1, especialmente porque sãopalavras usadas por Jesus, na crucificação (Mt 27.46; Mc 15.34).A promessa de Deus de não desamparar a Josué (vIhsou/j na LXX) setorna assim ainda mais significativa, pelo fato do mesmo Deus maistarde desamparar a um outro vIhsou/j , Seu próprio e único Filho. Osfatos estão conectados. A razão de Deus ter desamparado o Filhona cruz, para sofrer o castigo eterno, é não ter de desampararseus filhos adotivos, mas garantir-lhes sua presença graciosa nes-te mundo e na eternidade.

Há quem sugira que as palavras seguintes – “Sê forte e corajo-so” (v. 6) – seriam as condições sob as quais a promessa poderiaser cumprida. No contexto, porém, elas são uma conseqüência doque foi prometido: “eu estou contigo e não te deixarei nem aban-donarei; portanto, tu podes ser forte e corajoso!”.

APLICAÇÃO HOMILÉTICA

Como observado acima, o primeiro capítulo de Josué acentua apreparação do líder que conduzirá o povo de Deus. Esta prepara-ção (de fato já iniciada bem antes, sob a liderança de Moisés) éconstituída, resumidamente, de promessa e desafio. Assim comoJosué, o próprio povo de Deus é desafiado a seguir em frente, acumprir com a obra designada por Deus. Mas nisto não está sozi-nho: “Eu serei contigo”.

A Igreja de Deus no Novo Testamento está em jornada. Sua“conquista” da terra se dá pela fé no Salvador. A terra futura foiconquistada; o reino é herança e, portanto, dádiva (Mt 25.34).Mas a vida do povo com Deus não começará apenas no retornoglorioso do Senhor. Ela começa no batismo, na caminhada neste

OITAVO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 104: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

104

mundo. Esta terra pertence a Deus (não ao diabo, como sugeremalguns). Cristo é o herdeiro de toda a criação e, com Ele, todos osque crêem. A Igreja está no mundo como peregrina, pois não temaqui pátria permanente. Mas nem por isso despreza esta vida e asoportunidades de seguir em frente, com a bandeira de Cristo, es-perança única para o mundo. A “conquista” da terra hoje, portan-to, não se dá com armas que trazem morte, mas com o testemu-nho e proclamação do evangelho, que gera vida onde há morte.

Como evitar uma abordagem que sugira uma teologia da pros-peridade a partir do paradigma de Josué e do povo de Israel? Épreciso continuar acompanhando a jornada do povo (como seráfeito nos próximos estudos homiléticos). Será uma caminhada soba graciosa direção de Deus, mas será a caminhada de um povocujo pecado e fragilidade se farão presentes em todos os momen-tos. É preciso sempre lembrar que a ênfase não está na terra comopropriedade permanente, mas como dádiva da graça de Deus. Eesta pode ser perdida através da infidelidade. A história futura(com o clímax no exílio babilônico) comprovará tristemente isto.Por isso a jornada do povo de Deus, seja no Antigo Testamento,seja nos tempos de hoje, é uma jornada de fé, não de orgulho. Odesfrutar pleno virá quando do retorno de Cristo. Até lá o pecadocontinuará sendo uma realidade. E a caminhada será sempre apartir do perdão e da presença graciosa de Deus com seu povo.

Gerson Luis LindenSão Leopoldo, RS

Page 105: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

105

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

É muito importante, fundamental até, que de vez em quandonos recordemos de que Deus é o começo e o fim de tudo. Tambéme principalmente de nossa conversão e conseqüente salvação. Eque, nesse processo, estão completamente excluídos esforços pes-soais, moralistas ou posicionamentos preconceituosos e farisaicos.O apóstolo Paulo é singelo, simples e claro quando lembra que:“Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, eaquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de queninguém se vanglorie na presença de Deus” (1 Coríntios 1.28,29).

O texto em foco é atualíssimo nesse sentido e testemunha aesse respeito. A prostituta Raabe abandona seu negócio pecami-noso, é apontada como exemplo de fé (Hebreus 11.31) e participana genealogia de Jesus (Mateus 1.5). É dela a segura confissão:“O Senhor, vosso Deus, é Deus em cima nos céus e embaixo naterra (v.11).

TEXTO

Vv. 1-8: “De Sitim enviou Josué, filho de Num, dois homens,secretamente, como espias, dizendo: Andai e observai a terra eJericó. Foram, pois, e entraram na casa de uma mulher prostitu-ta, cujo nome era Raabe, e pousaram ali[...]. Foram-se aqueleshomens [...] e, havendo saído os que iam após eles, fechou-se aporta”.

De Sitim, terra moabita, onde instalara o quartel general, Josuéestrategicamente envia dois homens para observar a cidade deJericó e sua circunvizinhança. Jericó estava localizada num valebonito e fértil distante umas seis a oito milhas do rio Jordão, numaregião densamente povoada. Tentaram não chamar atenção e nãoprovocar suspeitas, ao hospedarem-se na casa de uma mulherprostituta de nome Raabe. Provavelmente sentinelas relataram aorei esse fato e a conclusão natural era de que eram espias da parte

NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTESJOSUÉ 2

“O Senhor, vosso Deus, é Deusem cima nos céus e embaixo na terra” (v.11).

Page 106: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

106

de Israel e que deveriam ser expulsos o mais depressa possível.Após um bem sucedido plano de proteção dos dois enviados deJosué, ela os esconde com segurança no eirado de sua casa e,antes que se deitassem para descansar, ela foi ter com eles uminteressante e profundo diálogo existencial.

Vv. 9-11: “ e lhes disse: Bem sei que o Senhor vos deu essaterra... secou as águas do mar Vermelho diante de vós ... etambém o que fizestes aos dois reis dos amorreus [...] os quaisdestruístes. Ouvindo isto, desmaiou-nos o coração, e em ninguémhá mais ânimo algum, por causa da vossa presença; porque oSenhor, vosso Deus, é Deus em cima nos céus e embaixo naterra”.

A princípio Raabe revela um medo reverencial ao Senhor, a sa-ber, o medo de que ela e todos os demais poderiam ser extermina-dos por Israel. Esse medo desencorajava qualquer reação porcausa dos fatos e acontecimentos que ela ouviu e recorda comperplexidade. Raabe e seus concidadãos estão desanimados e como coração desmaiado, sem ânimo para reagir, pensar, elaborar umplano de ação ou reação. Dessa forma ela conclui confessando suafé no Senhor, o verdadeiro Deus. Chama a atenção que os milagresdo poder todo-poderoso de Deus que forjaram a fé no coraçãodessa grande pecadora não foram suficientes para quebrar osendurecidos corações infiéis dos outros cananitas que foram con-denados à morte e ao extermínio.

Vv. 12-22: “Agora, pois, jurai-me, vos peço, pelo Senhor que[...]. Então lhe disseram os homens [...], se tu denunciares estanossa missão, seremos desobrigados do juramento que nos fizes-te jurar. E ela disse: Segundo as vossas palavras, assim seja.Então os despediu; e eles se foram[...]”.

Raabe e os homens de Israel estabeleceram um contrato que,em síntese, desejava preservar a vida de todos os envolvidos.Raabe exige um solene juramento de que “conservareis a vida ameu pai e a minha mãe, como também a meus irmãos e a minhasirmãs, com tudo o que tem, e de que livrareis a nossa vida damorte”. E os homens garantiram que se ela “não denunciar estanossa missão[...], dando-nos o Senhor essa terra, usaremos con-tigo de misericórdia e fidelidade”. As promessas e juramentos fo-ram reafirmados, os planos e estratégias foram rememorados etudo foi colocado em prática. “E foram-se, pois, e chegaram [...]”.

Page 107: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

107

Vv. 23,24: “Assim, os dois homens voltaram, e desceram domonte, e passaram, e vieram a Josué [...], e lhe contaram tudoquanto lhes acontecera; e disseram a Josué: Certamente, o Se-nhor nos deu toda esta terra nas nossas mãos, e todos seusmoradores estão desmaiados diante de nós”.

Depois de três dias e após atravessarem o rio Jordão, os doishomens estão de volta. A missão fora cumprida e agora eles pres-tam minucioso relatório a Josué.

PENSAMENTOS HOMILÉTICOS

- Até hoje, Deus, segundo seus inescrutáveis e insondáveiscaminhos e sabedoria, pode usar as coisas consideradas fracas edesprezíveis para realizar seus propósitos e planos.

- A prostituta Raabe é um exemplo de fé (Hebreus 11.31). Foium ato de fé de sua parte proteger os representantes do povo deIsrael, o povo de Deus. Chama a atenção que o Senhor a elegeuem meio a uma nação completamente descrente, fazendo-a, inclu-sive, ancestral na genealogia de Jesus (Mateus 1.5).

- Fé verdadeira sempre é ativa e se manifesta em direção aopróximo e suas necessidades.

Norberto Ernesto HeinePorto Alegre, RS

NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 108: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

108

CONTEXTO

O capítulo 3 de Josué sintetiza o tema introduzido pelas pala-vras do SENHOR em 1.2: “Dispõe-te, passa este Jordão”. Todo ocapítulo fala sobre a preparação para esta passagem. Israel per-manecera em Sitim, nas campinas de Moabe, desde a narrativa deNúmeros 22 e 25. Nosso texto demarca o último estágio da longajornada de 40 anos pelo deserto (Nm 33.49). Daqui por diante, nãotem retorno. Tem que acreditar, tem que confiar. Isso implica le-vantar acampamento. Embrulhar as barracas, empacotar os per-tences, reunir os rebanhos de gado e ovelhas. Sacerdotes têm deaprontar a arca da Aliança para viagem (Nm 4.5-6) e levitas têmde desarmar o tabernáculo (Nm 4.24-28). O trecho de Sitim àsmargens do rio Jordão é de cerca de 12 quilômetros. Ali Israelpermanece por mais 3 dias (3.2). A cena relembra a história deJacó junto ao rio Jaboque, um tributário do Jordão, mais ao norte.Ali Jacó lutara com Deus por uma bênção depois de obter a liberda-de de Labão em Padã-Arã e antes do seu reencontro esperado mastenso com seu irmão Esaú, em Canaã (Gn 31). Alguns séculosdepois, “os filhos de Israel (Jacó)” (3.1) estão para receber bên-çãos do SENHOR junto ao Jordão depois de obterem liberdade daescravidão no Egito e antes de se defrontarem com a atraente masdestrutiva idolatria dos cananeus. Poderíamos dizer que o povo deIsrael, como povo de Deus, está num ponto crucial da sua viageme da sua história.

Como se aparelhar para essa nova vida? Deus vai atravessar oJordão como atravessara o mar Vermelho; e como fez lá, tambémaqui convida Israel a segui-lo. Israel fora “batizado” no Egito, tor-nando-se filho de Deus pela aliança de Deus. No Sinai o povo fora“confirmado” no seu batismo. Agora é um povo “adulto”, “maduro”para viver seu cristianismo num mundo hostil, agressivo epersecutório à mensagem e povo divinos. Mesmo assim, Israel nãodeve odiar esse povo. Cristianismo sobrevive em meio a contextosde hostilidade. Para conquistar pessoas inamistosas para o Reino épreciso que o povo de Deus, antes de tudo, as ame. O inimigo deveser amado; e só hostilizado quando este se propõe a destruir oReino e, mesmo assim, com a expressa ordem de Deus. Atravessaro Jordão é preciso. Penetrar no mundo com a missão de Deus é

DÉCIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTESJOSUÉ 3

Page 109: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

109

vital. É em meio à hostilidade, perseguição e questionamento queIsrael se revela como povo de Deus. O estudo abaixo é uma mesclada análise do texto com idéias e sugestões que podem ser amplia-das para a elaboração do sermão.

SUGESTÃO DE TEMA

“Santifica-nos, SENHOR, para que possamos te ver, seguir efazer a tua missão.”

TEXTO E SUGESTÕES DE APLICAÇÃO

William Faulkner, prêmio Nobel da Literatura, em certa ocasiãoafirmou: “Um monumento diz: Até aqui eu cheguei!”; uma pegadadiz: “Até aqui eu cheguei, quando segui em frente”. Para Faulkner,um monumento é uma história parada, concluída e marcada poruma pedra, seja uma escultura, uma estátua, uma sepultura. Umapegada, por outro lado, é um sinal, uma prova, um vestígio quemostra que eu estive neste lugar, mas estou seguindo adiante.

I. Monumento ou pegada? Que decisão Israel deve tomar? Cons-truir um monumento ou deixar uma pegada? Deus dá a orientaçãopara o povo. Os oficiais ordenam ao povo que observem o movi-mento da arca carregada pelos sacerdotes. A arca é a referência.Mencionada cerca, de 195 vezes no AT, a arca da Aliança é oponto focal das maravilhas que acontecem nos capítulos 3 e 4. Aarca determina a presença invisível de Deus, visível no meio do Seupovo. A arca é a presença “sacramental” de Deus. Em, com e sob aarca Deus está visível e sacramentalmente presente no meio doSeu povo. A arca acompanha o povo de Deus como referencialdesde o estabelecimento da aliança. No deserto, Deus empregaraa arca para orientar os movimentos do povo durante a peregrina-ção. Quando a arca iniciava a cada jornada, Moisés, num atolitúrgico, conclamava: “Levanta-te, SENHOR, e dissipados sejamos teus inimigos, e fujam diante de ti os que te odeiam”. Ao repou-sar a arca no final da jornada, Moisés, de novo, cantava o refrão:“Volta, ó SENHOR, para os milhares de milhares de Israel” (Nm10.35,36). O SENHOR escolhe a arca, apropria-se dela e nela seencarna. Logo, o movimento da arca indicava o movimento dopróprio SENHOR. Como foi com Moisés, assim com Josué: o SENHOR

DÉCIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 110: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

110

orienta Seu povo por meio da arca. Seguir a arca é seguir o SE-NHOR. Ele mesmo clareia o caminho para Israel como “fogodevorador” (Dt 9.3). Pela sua presença à frente do povo, os inimi-gos são fragorosamente derrotados. Israel deve reconhecer e se-guir a sua presença manifestada pela arca em termos de Lei eEvangelho: juízo para os inimigos, mas para Israel promessa e sal-vação. Enquanto “vêem a arca da Aliança” (3.3), seus coraçõesestarão inclinados para Aquele que os libertou e agora os conduzao cumprimento da promessa.

A arca da Aliança tipifica, antecipa, prefigura a encarnação deJesus Cristo: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14).Jesus é a manifestação visível de Deus. “Nele habita corporalmentetoda a plenitude da divindade” (Gl 2.9). Embora morto, ressusci-tou, subiu aos céus e está presente com o Seu povo no Pentecos-tes para que este povo continue a obra do Seu Reino neste mundo.A arca da Aliança nos relaciona com o Cristo humanado e a Suapresença contínua entre nós na Palavra e Sacramentos. Da mesmaforma como a arca não é mágica com relação à presença de Deus,também os sacramentos não são mágicos, mas eficazes porqueatrelados à palavra, presença e poder de Deus. É verdade que maistarde Israel olhará para a arca como um talismã e os resultadosserão desastrosos (1Sm 4-6). Da mesma forma, os sacramentosnão podem ser usufruídos ex opere operato, mas devem ser admi-nistrados com reverência e ao serem recebidos com fé, outorgamvida e bênção. A presença de Deus afasta o povo de Deus, nósinclusive. No acampamento no Sinai, Deus, ao entregar o Decálogopara o Seu povo, manda Moisés construir uma cerca ao redor domonte para que ninguém do povo Dele se aproxime (Êx 19.21-24).Deus é santo, nós pecadores. Se alguém quiser de aproximar deDeus a seu modo, aproxima-se da morte. Por isso Deus providenciameios de proteger o povo do próprio Deus. Deus continua santo, oshomens continuam pecadores. Não há como aproximar-se de Deussenão pelos meios que o próprio Deus determina.

Voltemos ao texto. Por que os oficiais devem manter o povo aum quilômetro da arca? Ao contrário de certas procissões hoje,onde a imagem é tocada, beijada e venerada, a arca da Aliança eraum elemento santo exatamente por causa da presença divina. De-veria ser carregada pelos varais nas argolas sobre os ombros doslevitas. A arca não podia ser tocada por ninguém, nem mesmo porlevitas ou sacerdotes (Êx 25. 12-15; Nm 4.5-6, 15). Fosse ou nãolevita, Uzá não poderia tê-la tocado. Errado era também a arca sercarregada em carro puxado por bois. Depois do incidente, Davi

Page 111: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

111

parece que voltou a reler o manual bíblico sobre o assunto (2Sm6.13; 1Cr 15.2; 13-15).

II. No nosso texto há uma razão específica para que o povoolhe para a arca. O povo de Deus deve manter os olhos na arca àdistância “para que conheçais o caminho pelo qual haveis de pas-sar” (3.4). Os olhos na arca determinavam a direção para o povono meio do deserto. Sem a arca, ou seja, sem a confiança napresença visível de Deus, o povo certamente iria se desgarrar poroutro que não “o caminho” - com artigo (3.4). Por isso tambémconvida o autor de Hebreus a que corramos “olhando firmementepara o Autor e Consumador da fé, Jesus” (12.2). Ele é o caminho.Neste período de Pentecostes é oportuno lembrar que Cristo seidentifica com a Igreja. Perseguir a Igreja é perseguir a Cristo.

O v. 5 claramente mostra que a espera junto ao rio Jordão tinhacomo propósito uma preparação Espiritual. Josué diz ao povo:“Santificai-vos”. A forma é Hithpael de vdq. Antigamente se diziaque o verbo significava “separar” mas não se pode comprovar esteuso secular no texto bíblico. Dicionários modernos mostram que nocognato ugarítico o verbo relaciona-se a “santo”. O Hithpael podeter um sentido reflexivo, como também passivo: “sede santificados”.Atos de santificação fluem dum coração que foi purificado peloEspírito de Deus e que, portanto, separam-se do profano para fixarseus olhos nas coisas santas e buscar nelas a correta direção paraa vida. No monte Sinai, Deus dera orientação específica quanto àsantificação do povo (Êx 19.10, 14, 15). Aqui, às margens do Jordão,nenhuma ação externa é determinada. O evento que requer asantificação deve acontecer “amanhã”. Porque “amanhã” o SENHOR“fará maravilhas”. Quais são elas? O verbo está ligado a al,P,, um“milagre” feito por Deus. Em Êxodo 3.20, p. ex., Deus chama as 10pragas do Egito de “minhas maravilhas” porque libertarão Israel daescravidão. É também um dos títulos reais dados ao Messias (cf. Is9.5). A encarnação de Jesus Cristo, o Messias, se constitui nomaravilhoso milagre da salvação. Os maravilhosos milagres do SE-NHOR no AT eram ações que manifestavam seu poder e graça deforma proléptica.

Que maravilhas serão estas no texto? Curiosamente, nem Josué,nem a narrativa como tal antecipam muito. Mas este cenário lem-bra outro cenário tantas vezes repetido a esta nova geração porMoisés. Após a saída do Egito, Israel está com o mar à frente e oinimigo na retaguarda. Deus ordena Moisés que faça com que opovo se acampe junto ao mar. Ali o povo está perplexo e aterrori-

DÉCIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 112: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

112

zado. Moisés, porém, acalma o povo: “Não temais; aquietai-vos evede o livramento do SENHOR [...] O SENHOR pelejará por vós evós vos calareis” (Êx 14.13,14).

Por 3 dias o povo de Israel se prepara para ver as maravilhas deDeus. Quanto tempo nós hoje nos preparamos antes de encontrar-mos o SENHOR e receber Seus milagres no culto? Se experimentarum dos milagres do AT requer 3 dias, quantos dias serão precisospara que nós nos preparemos para receber o corpo e sangue deCristo na Ceia? (A propósito, um estudo mais amplo da expressão“três dias” no texto bíblico mostra que ela é uma expressão que serelaciona diretamente a Cristo e sua obra - cf. Êx 19,10-11, 16; Jn1.17; Mt 12.40; Mc 9.31; 15.58.) Dias que antecipam grandes mara-vilhas de Deus são dias de grande benefício para o povo de Deus.

Onde está o povo de Israel fixando os olhos ao atravessar oJordão? Nas águas turbulentas à sua frente? Nas muralhasintransponíveis? Nos inimigos gigantes? Onde nós fixamos os olhosna jornada para Terra Prometida e no exercício da missão salvadorade Deus? Frank Dicksee foi um grande pintor inglês do séc. 19. Umade suas pinturas a óleo denomina-se “Duas Coroas”. A pintura estánuma Galeria em Londres, mas você pode acessá-la pela Internet(www.allposters.com/-sp/The-Two-Crowns-Posters_i371755_.htm).No centro da pintura está um rei medieval num processional triun-fante montado em seu garboso cavalo branco. Donzelas lançampétalas de flores diante dele. Estandartes são desfraldados. Trom-betas são tocadas. Sobre a sua cabeça está uma coroa de pedraspreciosas. Quando você observa a pintura pela primeira vez pareceque tudo está centrado na figura do rei. Mas é aqui que se nota amaestria do pintor Dicksee. Muitos vão olhar a pintura, mas nãoirão realmente vê-la. Se você observar com mais cuidado você vaiolhar para o rosto do rei e verá que seu olhar está fixado num outrolugar. Seu olhar está leve e humildemente virado para o seu ladoesquerdo. Ali, em tons escuros, à direita da pintura, está um cruci-fixo. E naquela cruz, pregado nela, está um outro rei, que usa umacoroa de espinhos. Cristo é o referencial do rei, de Israel, nosso.Na nossa vida e na missão de Deus.

Acir RaymannSão Leopoldo, RS

Page 113: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

113

OS LIVROS HISTÓRICOS NO ANTIGO TESTAMENTO

O papel principal dos livros históricos do Antigo Testamento édescrever a história do povo da aliança e do Reino de Deus à luz doplano divino da salvação.

Deus afirma na história de Israel uma dupla verdade. Primeiro,que ele é o Deus Todo-Poderoso e Senhor sobre toda a terra.Segundo, que ele é o Rei de Israel e sua ação visa consumar aaliança da graça feita com Abraão, Isaque e Jacó. Ao guiar o povoque ele elegeu unicamente por amor (Dt 7.6-8), para a sua posse,não obstante sua natureza pecaminosa, o alvo de Deus era prepa-rar o caminho para a salvação do mundo inteiro e que foi manifes-tada mais tarde e na plenitude dos tempos a todas as nações (Gl4.4).

O LIVRO DE JOSUÉ

O livro de Josué é uma página significativa nas páginas que seseguem na história do povo de Deus e cujo cerne é a manifestaçãoda graça de Deus com a humanidade pecadora. O livro é uma ponteentre o Pentateuco e a posterior história do povo da aliança, operíodo dos juízes, dos reis, o exílio, o retorno e finalmente o pontoculminante no advento de Jesus Cristo.

O Pentateuco termina com o povo de Israel colocado na fronteirada terra prometida. Sem esse livro não saberíamos como a promessadessa posse se cumpriu e tornaria limitado nosso entendimento sobrea fidelidade de Deus no cumprimento de suas promessas.

Há grandes relatos no livro de Josué. Os espias e Raabe (Js 2);a passagem pelo Jordão (Js 3 e 4); a celebração da Páscoa (Js5.10-12); a queda dos muros de Jericó (Js 6); o Senhor interferindode maneira sobrenatural no curso da natureza em favor do seupovo (Js 10.12-15); a confissão e o testemunho de Josué (Js 24.15).Porém, o núcleo é a fidelidade de Deus e isto coloca em relevo aimportância deste livro no contexto maior da história da salvação eque encontra seu cumprimento na morte e ressurreição de Cristo,mas que ainda espera pela consumação final, quando o povo de

DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJOSUÉ 4

Page 114: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

114

Deus do Antigo e do Novo Testamento herdarão os novos céus e anova terra.

Os cristãos de todas as gerações podem se maravilhar e serrenovados em sua fé e serviço no Reino de Deus, meditando nessafértil porção das Escrituras, que retrata acima de tudo a fidelidadedo Senhor. “Nenhuma promessa falhou de todas as boas palavrasque o SENHOR falara à casa de Israel: tudo se cumpriu” (Js 21.45).

JOSUÉ 4

Deus se fez conhecer ao seu povo e às nações na passagempelo rio Jordão. Ao abrir as suas águas, o Senhor revelou a todosque ele é o Senhor sobre as águas, e não os deuses cananitas.Assim foi na passagem do Mar Vermelho, no dilúvio e na própriacriação. Somente ele é capaz de estabelecer a ordem no mundo.

Vv. 1-3: O Senhor dá uma ordem a Josué. É ele que inicia o quevai ocorrer. Tudo o que é necessário para a salvação provém dele eJosué é o líder escolhido pelo Senhor (Js 3.7;4.14).

A ordem está centralizada no ato de pegar pedras no exatolugar onde estão a arca e os sacerdotes e levá-las para onde opovo de Deus passará a noite. Cada tribo é envolvida. Israel é umcorpo de crentes.

A presença do Senhor na arca reforça a verdade que ele estádiretamente envolvido na passagem, segurando as águas e prote-gendo seu povo dos perigos. Deus não está distante (Js 3.10) e oseu povo pode ver com os seus próprios olhos o efeito de suapresença entre eles.

O memorial de pedras encontrado em outras partes do AntigoTestamento (Gn 28.18; 35.14,20) é lembrança visível das ordens,promessas e atos de Deus para um povo com tendência a esquecer(Nm 15.37-41).

Vv. 4-7: Josué transmite a ordem do Senhor para o povo. Hárepetições dos versículos anteriores, mas há detalhes novos. Aquias pedras têm a sua função ou intenção de Deus claramente defi-nida. Serão como um sinal-memorial. Elas serão como um sólidotrampolim para os pais ensinarem seus filhos sobre a maravilhosaobra do Senhor no Jordão. É um instrumento didático que ensinaráperpetuamente a graça divina. O Senhor prevê a curiosidade dosfilhos, assim como foi na Páscoa (Êx 12.26-13.14).

Page 115: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

115

Porém mais do que o fascínio pelo fato histórico, os filhos pode-rão saber que o Senhor da Aliança fez isto para a salvação ecrescimento na fé e lealdade ao Senhor fiel.

A intenção do milagre da passagem do Rio Jordão é múltipla:- Exaltar a Josué diante dos israelitas para que eles o respeitem

como líder (Js 3.7; 4.14);- Mostrar que Deus está com Josué, assim como ele esteve com

Moisés (Js 3.10);- Demonstrar seu propósito de eliminar os povos inimigos, o que

representa o julgamento divino sobre o pecado (Js 3.10);- Providenciar uma ferramenta didática para nutrir a fé das

futuras gerações (Js 4.6, 21);- Possibilitar a que todos os povos da terra conheçam o poder

salvador de Deus, a fim de que todos o temam e o sirvam (Js 4.24).As pedras e a responsabilidade dos pais também lembram aos

cristãos as palavras de Jesus no domingo de Ramos (Lc 19.40).Sua escolha inicial é pelo louvor e testemunho nos lábios do seupovo, mas se ele calar, as pedras cumprirão essa missão.

Para o povo de Deus na era do Novo Testamento, é a Palavra eos Sacramentos que relembram os atos salvadores de Deus, crian-do e inculcando a fé no Deus fiel e salvador nas gerações maisjovens. É responsabilidade dos pais ensinar seus filhos (2 Tm 3.15).A cada batismo surge uma oportunidade de ouro para os pais e aigreja ensinar sobre seu significado e relembrar as bênçãos de serum filho batizado de Deus.

Vv.8-13: Israel executa a ordem do Senhor. O povo de Deus ageexatamente do jeito que foi orientado. Aqui Josué levanta um se-gundo memorial de pedras, no meio do Rio Jordão, onde os sacer-dotes estiveram parados. A iniciativa de Josué pode estar relacio-nada ao seu sentimento de gratidão pelo fato do Senhor tê-loexaltado através do milagre (Js 3.7;4.14). Se bem que ele pode terrecebido instruções do Senhor para assim fazê-lo.

No v. 10 está repetida a localização exata dos sacerdotes. Elesforam os primeiros a entrar na água e os últimos a sair. Eles são ospastores que lideraram do início ao fim a travessia do rio. O que éimportante notar é que o desejo de Deus e as bênçãos acompa-nham o povo em sua ação obediente em fé.

Se, por um lado, a terra de Canaã é um presente gratuito doSenhor, ele escolheu empregar o exército armado da sua naçãocomo agente visível de vitória. A questão ética destas guerras nãoé abordada no livro, mas isto só pode ser entendido no contexto da

DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 116: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

116

história da salvação, na perspectiva da graça divina e do julga-mento.

V. 14: O alvo é alcançado. Josué é exaltado através do milagredo Senhor. Em sua graça o Senhor exalta a Josué como líder eservo dele para realizar a salvação do seu povo, segundo a vonta-de e poder do Senhor. Josué desfruta a mesma honra que o servoMoisés desfrutara. E aos servos de Deus se deve o respeito, oumesmo o temor, significado original do verbo (Pv 1.7;8.13).

Vv.15-17: O Senhor mostra que a arca da Aliança, aqui denomi-nada de “arca do testemunho”, continua no centro dos eventos dasalvação, como foi até agora. Embora a repetição nesses versículospossa ter a conotação de redundância, ela sublinha a pronta leal-dade de Josué às instruções do Senhor.

Vv. 18,19: Aqui está a consumação do grande milagre iniciado,operado e consumado pelo Senhor. O detalhe, nessa parte, atestapara a exclusão de interpretações naturais do fenômeno, pois tãologo os pés dos sacerdotes deixaram o rio, o curso de suas águasvoltou ao normal.

Vv. 20-24: Enquanto no v. 8 os 12 israelitas trouxeram as pe-dras, aqui o memorial é levantado pelo próprio Josué. Também ératificado o objetivo deste memorial, a contínua necessidade deensino dos atos salvadores do Senhor. As pedras estarão em silên-cio, mas funcionarão como uma ferramenta de ensino visível. No v.24 o milagre do Rio Jordão flui para dentro da vida de cada leitor dolivro de Josué. O milagre relatado pelo “Jesus” do Antigo Testa-mento tem como propósito fazer conhecido o nome do Senhor, queé fiel nas promessas, a todas as nações. O Deus de Israel desejaque cada um e em todos os tempos sobre a terra conheça, tema,ame e confie no Senhor e seu poder salvador.

Os israelitas receberam sua Canaã, mas ainda não o ÉdenCelestial. Eles foram os beneficiários e portadores do milagre dagraça de Deus. A Palavra e os Sacramentos também nos colocamna fronteira da nossa verdadeira pátria. Porém, um pouco mais,pois eles criam e nutrem a fé no Salvador Jesus, a qual nos faz tero que esperamos e conhecer o que não vemos (Hb 11.1,2).

Anselmo GraffSão Leopoldo, RS

Page 117: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

117

CONTEXTO HISTÓRICO

Assim como a passagem pelo mar Vermelho caracterizou umbatismo de libertação, tirando o povo da escravidão no Egito, apassagem pelo rio Jordão caracteriza um batismo de conquista,introduzindo o povo na terra prometida, em Canaã, o local da bên-ção. A passagem pelo mar Vermelho fala da ação de sair, e apassagem pelo rio Jordão fala da ação de entrar. Por meio deMoisés o povo sai da terra da escravidão; por meio de Josué opovo entra e conquista a terra da promessa. Com Moisés estava ageração do deserto, com Josué a geração da conquista.Hoje o Senhor quer lhe dar um tremendo batismo de conquista,mudando a mentalidade de errante no deserto para a mentalidadeda conquista da promessa!

GILGAL: LOCAL DE SELOS PROFÉTICOS DA NOVA IDENTIDADE

Logo após atravessar o Jordão, o povo de Deus chega a Gilgal,cidade importante porque nela são estabelecidos três selos memo-riais e proféticos da nova identidade, que devem preceder as açõesde conquista: as doze pedras, a circuncisão e a Páscoa.

As doze pedrasAs doze pedras lavradas, polidas pelo rio e arrumadas organiza-

damente, são um memorial de unidade e organização de um povo,cuja mensagem é: nosso Deus tem mão forte e vai à nossa frente,preparando nosso caminho na terra da conquista. Ao responderemàs gerações futuras o significado daquelas doze pedras, dirão quehá um povo em unidade com o seu Deus e um Deus comprometidocom o Seu povo. Do mesmo modo, precisamos ter a revelação deque nosso Deus tem mão forte a nosso favor, não só para nos tirarda “escravidão do Egito”, mas também para nos introduzir na terrada promessa, e que a unidade e organização do nosso povo devempreceder nossas conquistas. Nossas famílias e células precisam

DÉCIMO SEGUNDO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJOSUÉ 5

A circuncisão em Gilgal

Page 118: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

118

celebrar tal memorial, denunciando e recusando todo trauma dedesunião, desgoverno e rebelião.

A circuncisão (Js 5.2-9)Era um selo externo, na carne, de que aquele povo era proprie-

dade de Deus. Foi instituído como o sinal do pacto ou concerto deDeus com Abraão e seus descendentes (Gn 17.23-27). Moisés apraticou (Êx 4.24-26), de forma que a geração que foi consumidano deserto havia sido circuncidada. Mas a nova geração, nascidanos 40 anos de peregrinação no deserto, ainda não havia entradono pacto da circuncisão. Como nenhum incircunciso está em alian-ça com Deus, também não tem herança no Senhor. Aquela geraçãoestava debaixo de uma promessa, mas precisava entrar no pactode ser propriedade do Senhor antes de entrar na conquista dapromessa. Hoje a verdadeira circuncisão não se faz no prepúciodos homens, mas no coração dos homens e mulheres que têm fé noSenhor Jesus e o têm como Salvador e Senhor de suas vidas. Só osque são do Senhor são contemplados pelas promessas do Senhor.

A Páscoa (Js 5.10-12)É a festa da libertação, dos novos começos; fala de esperança

e vida. Marca o início da nova vida de Israel como povo de Deus.Páscoa é um selo de mudança da identidade de escravo para aidentidade de livre no Senhor. Significa isenção e vem de uma raizque quer dizer pular, saltar, poupar.

Hoje, Cristo é a nossa Páscoa, o Cordeiro de Deus que foi en-tregue à cruz e à morte pelos pecados da humanidade. Cristo é anossa libertação. Só entraremos no território da conquista, comoconquistadores de verdade, se Cristo nos libertar da escravidão dopassado. Muitos não conseguem desatar nos níveis mais elevadosde conquista porque não têm experimentado Cristo, a nossa Pás-coa, em profundidade.

A CONQUISTA DE JERICÓ: TOTALMENTEDEPENDENTE DO PODER DO SENHOR

Jericó foi a primeira cidade a ser conquistada, depois que pas-saram por Gilgal. Era uma cidade de grandes fortalezas e murosmuito altos que escondiam tudo o que havia em seu interior. Tinhauma característica: quando era ameaçada e o medo surgia, seushabitantes se recolhiam dentro dos seus muros, fechando-se. Con-

Page 119: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

119

quistar aquela cidade era estratégico por duas razões: primeiro,porque nada do que nela havia agradava a Deus e, segundo, por-que aquela fortaleza deveria exercer certa influência de inseguran-ça e medo no povo de Deus (parece-me que Josué olhava para elacom certo temor – Js 5.13-14). Conquistá-la e destruí-la liberaria opovo de Deus da contaminação de Jericó e da insegurança que elatrazia. Jericó é para nós uma figura da nossa alma. Assim comoJericó que se fechou por causa dos filhos de Israel, nossa alma sefecha por causa da nossa nova identidade. A alma que não forconquistada pelo Senhor, ela se oporá a toda conquista na terra dapromessa. As muralhas e fortalezas da nossa alma precisam serderrubadas e os inimigos escondidos atrás das muralhas precisamser identificados e derrotados. O Espírito Santo, mediante a Pala-vra da Promessa, o faz em nome de Jesus.

PROPOSTA DE ESTRUTURA DE SERMÃO

Tema: O SENHOR liberta seu povo

1- Josué JESUS SALVADOR

2- Circuncisão BATISMO PURIFICAÇÃO, PERTENÇA

3- Terra prometida CÉU LIBERTAÇÃO, BEM-AVENTURANÇA

Aplicação: No Senhor, por meio de Jesus, temos salvação, fo-mos circuncidados em nosso coração mediante o Batismo e temosa promessa de libertação plena, bem-aventurança, que já come-çou, pela fé.

Paulo Gerhard Pietzsch São Leopoldo, RS

DÉCIMO SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 120: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

120

INTRODUÇÃO

A COBIÇA - É um apetite desorganizado pelas coisas materiais;é um desejo veemente de ter coisas, possessões e poder alheio.Este ato se origina de uma idéia fixa de satisfação própria em todasas coisas. Nasce do egoísmo. É um mal que se desenvolve gradual-mente até que se torne um hábito e prende-se com cadeias quaseimpossíveis de serem tiradas. Este mal passou para todos nós. Hojeo maior problema de conflitos de pessoas, governos, lares e outros,são inspirados na cobiça. A Bíblia ilustra esta atitude humana,através do personagem triste (Acã) e da célebre ação de Deuscontra o pecado da cobiça.

1. CONTEXTO E INFORMAÇÕES HISTÓRICAS

A. Jericó - uma das maiores fortalezas da terra (daquele tem-po), a grande e rica cidade de Jericó, a pouca distância de Gilgal,onde o povo de Deus acampava. Esta cidade era a sede principal daidolatria e se dedicavam ao culto de Astarté, deusa da lua. Tinha osritos e cultos mais degradantes da religião cananéia. Josué vê que atomada de Jericó deveria ser o primeiro passo na conquista de Canaã.

B. Deus tomou a iniciativa e começou o trabalho de libertaçãodos cananeus.

1. Josué pediu a direção divina e esta lhe foi concedida (Js 6.2).2. Deus agora desejava que eles compreendessem o seguinte:

a) Que a vitória contra os habitantes de Jericó não seriadeles, mas do Senhor;b) Que eles não deveriam lutar por si mesmos, mas queseriam instrumentos nas mãos de Deus para executar Suavontade. Portanto, não deveriam procurar riquezas ou exal-tação própria, mas com toda a glória de Deus.

3. Deus, então, deu-lhes uma advertência muito séria: (Js6.17, 18).

DÉCIMO TERCEIRO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJOSUÉ 7

Todos sofrem por causa do pecado de um só

Page 121: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

121

a) A cidade será anátema (será destinada à destruição);b) Guardai-vos do anátema!- Não toqueis, não toqueis delas cousa alguma.c) Não torneis maldito o arraial de Israel e não vosperturbeis.

4. Deus esperava que seu povo tivesse confiança e obediênciatotal à Sua Palavra.

A queda de AcãDepois da destruição de Jericó, veio a tentação e:A. Acã prevaricou, caindo em pecado secreto. Sua atitude foi

desleal. A força da cobiça era mais forte que a sua vontade deservir a Deus. Ele tornou-se um anátema - (Js 7.21).

B. O povo não conhecia o pecado de Acã. Só Deus sabia detudo. Por isso fez a denúncia (Js 711): “Israel pecou, e violaram aminha aliança, [...] tomaram das cousas condenadas, e furtaram edissimularam [...]”

C. Acã: Tomou para si duas coisas:1. A capa babilônica - (estava destinada à destruição).2. Os 200 ciclos de prata e uma barra de ouro de 50 ciclos

(destinados ao Senhor e colocados no seu tesouro). Este pecadode um só homem tornou-se um desastre para toda a nação. Porquea Igreja de Deus é um corpo. O que um membro faz, afeta todo ocorpo. Este pecado teve um efeito cooperativo.

Deus voltaria para o seu povo se este eliminasse o anátemaA. Josué 7.12: O pecado da cobiça não seria consentido nem

tolerado. Sem a presença de Deus, o povo de Israel não teriaganho a luta, pois eles ocultaram o pecado. “[...] Já não sereiconvosco, se não eliminardes do vosso meio a coisa roubada”.

B. Deus ordena a Josué (7.13): “Dispõe-te, santifica opovo[...]”. Depois, ordena para julgar tribo por tribo. Um trabalhomuito delicado no qual participaram Deus e Josué. Mas o primeiroseria o trabalho espiritual de santificar a todos.

C. Julgamento - (Josué 7. 14-18, 19):1. Deus e Josué. Chegareis por indicação de Deus:

a) Tribo de Judá;b) Família dos Zeraítas;c) Casa de Zabdi;d) Foi tomado Acã.

2. Deus esperou algum tempo para que Acã se arrependesse, ejulgava as tribos e as famílias antes que ele chegasse. Mas ele não

DÉCIMO TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 122: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

122

se arrependeu.D. Confissão tardia de Acã - Josué 7.20, 21.E. Acã e sua família participaram do pecado da cobiça. Portan-

to, todos estavam sujeitos à condenação - (Js 7.25, 26).F. As coisas escondidas foram devolvidas - Josué 7.22, 23.G. Assim foi tirado o anátema. Deus voltou para seu povo.

2. TEXTO

Para compreender estes dois capítulos, precisamos conhecerpelo menos o significado de algumas palavras que correspondem àdestruição de Jericó.

A. Josué 7.1,13: a palavra ANÁTEMA.1. Esta palavra vem do substantivo hebreu jérem, que tem dois

significados:a) Coisas ou pessoas destinadas ou condenadas sob mal-dição à destruição (Lv 27.28, 29; Dt 7.2);b) Coisas ou pessoas destinadas ao uso sagrado;

2. Em caso da destruição de Jericó, aconteceram as duas coi-sas dos dois significados:

a) As cidades foram destruídas com todas as pessoas ecoisas, por causa da maldição que pesava sobre eles (ci-dade, pessoas, outros) - (Js 6.21).b) Mas também havia coisas destinadas ao uso sagrado.Raabe, a família de seu pai e tudo o que tinham, foi pre-servado (Js 6.23). Também a prata, o ouro, os vasos debronze e de ferro, deram para o tesouro da casa do Se-nhor.

B. Josué 6.19 - A pessoa de Acã, que quer dizer alvoroçador eperturbador.

C. Prevaricação = quer dizer “atuar secretamente”, “às es-condidas”, “deslealmente”. Equivale a trair, roubar, idolatria.

3. CONCLUSÃO

A. O pecado hoje parece estar ainda mais arraigado do queantes no meio do povo de Deus. A cobiça é totalmente contrária àlei de amor de Jesus, que é baseada em partilhar e no altruísmo.

B. Deus continua advertindo e chamando a toda humanidadepara viver plenamente em sua companhia. Deus quer que sejamos

Page 123: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

123

livres e nos mostra que a verdadeira liberdade consiste em termoso Senhor certo sobre nossas vidas.

C. Não somos em nada melhores do que Acã ou os demaispecadores. Deus espera verdadeiro arrependimento de seus filhose concede perdão, vida plena e salvação a todos os que crêem emseu nome.

D. Apesar de nossas fraquezas e limitações, vivemos o tempoda graça de Deus, revelada em Cristo. O perdão de Deus está aonosso alcance mediante a obra de Jesus Cristo, nosso Salvador.

4. SUGESTÕES HOMILÉTICAS

TEMA: O Deus da justiça é o mesmo Deus de amorI. Todos sofrem por causa do pecado de um homem só (Israel

por causa do pecado de Acã)II. O mundo todo sofre as conseqüências do pecado de um

homem só (Adão – “Maldita é a terra por tua causa”)III. Ao mundo todo é restituído o caminho de volta a Deus por

meio da justiça de um homem só (Jesus Cristo – O Justo).

Paulo Gerhard PietzschSão Leopoldo, RS

DÉCIMO TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 124: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

124

CONTEXTO HISTÓRICO

Em sua lenta e difícil “caminhada” (entenda-se aqui “batalhas”)rumo à terra prometida, o povo de Israel, sob a liderança de Josué,inicialmente concentrara suas forças em investidas na parte sul emeridional de Canaã. Chegando em Josué 11.1-15, vemos o relatoconciso da conquista e da ocupação da porção norte de Canaã.Israel encontrou resistência numerosa, organizada e liderada porJabim, rei de Hazor. O texto é claro em mostrar que a vitória deIsrael se deu pela mão do Senhor, pela sua providência. Já a parteseguinte (vv. 16-24 e ainda o capítulo 12) relata a conquista daterra de Canaã de forma geral. Porém, “ainda muitíssima terra ficoupara se possuir” (Js 13.1), como o território filisteu e alguma terrano norte da Palestina. E, de fato, boa parte da terra permaneceusem ser conquistada, especialmente nos interiores cananeus, ondemais tarde a idolatria seduziu os israelitas, levando-os a desobede-cer ao Deus da aliança amorosa.

TEXTO – MEDITAÇÃO PRÁTICA

As vitórias de Josué na parte sul e depois na parte meridional daPalestina chegaram aos ouvidos de Jabim, rei de Hazor. Hazor erauma importante e poderosa cidade cananéia (Js 11.10), com cercade 40.000 habitantes, e estrategicamente situada ao norte do lagoda Galiléia. Portanto, não era de se estranhar que Jabim tambémfosse o responsável por convocar outros reis para lutar contraJosué. Assim, Jabim enviou mensageiros para diversos reis: a Joa-be, rei de Madom, aos reis de Sinrom e Acsafe, aos reis da regiãomontanhosa do norte, aos do vale do Jordão e aos da planície e dolitoral. Amorreus, heteus, perizeus, jebuseus, heveus e cananeus(dos dois lados do rio Jordão) também foram alertados por Jabim.

A referência a esses últimos povos é importante, pois se tratado cumprimento de uma promessa feita pelo SENHOR. Em Deutero-nômio 7.1ss, Moisés confirma ao povo que Deus os acompanharia à

DÉCIMO QUARTO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJOSUÉ 11.23

“... e a terra repousou da guerra” (Js 11.23)

Page 125: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

125

medida que fossem avançando, e que a sua vitória seria dada porDeus. Essa vitória viria pela derrota de povos mais numerosos emais poderosos que Israel. Que povos? Justamente os amorreus,heteus, perizeus, jebuseus, heveus e cananeus (Dt 7.1), que saí-ram com seus exércitos para lutar contra Israel. Exércitos essesmuito numerosos (“muito povo, em multidão como a areia que estána praia do mar, e muitíssimos cavalos e carros” – Js 11.4).

O clímax da batalha está nos versos 6 a 9, não pela riqueza dedetalhes, mas pela evidência de que Deus estava no comando dabatalha, protegendo e animando Josué e seu povo. A vitória jáestava garantida, da parte do SENHOR, e Josué seria apenas seuinstrumento. A NTLH enfatiza esse monergismo divino: “Não fiquecom medo deles. Amanhã, a esta mesma hora, eu matarei todaessa gente para Israel” (v. 6). A ordem divina a Josué era “jarretaros cavalos e queimar seus carros” (v. 6). Jarretar significava cortaros tendões das pernas dos cavalos, o que os inutilizaria para aguerra. Queimar os carros de guerra faria com que os inimigos nãopudessem sobressair-se na luta, nem fugir com rapidez caso ne-cessário.

A batalha teve lugar perto das águas de Merom, provavelmenteuma cidade localizada a uns 15 quilômetros a oeste de Hazor, ecujas águas abasteciam as cidades vizinhas. O ataque de Josué eseu exército deu-se de surpresa. Apesar de numeroso e fortemen-te equipado, o exército organizado por Jabim não resistiu ao exér-cito israelita. “O SENHOR os entregou nas mãos de Israel” (v. 8). Abatalha resultou em perseguição até a região noroeste (Misrefote-Maim) e nordeste (Mispa). Josué obedeceu à ordem do Senhor,aleijando os cavalos e queimando os carros de guerra dos inimigos.

O desfecho se deu com a tomada de Hazor, que foi inteiramentequeimada, e seu rei e moradores mortos, assim como todos osexércitos e povos inimigos. O extermínio completo desses povosera uma ordem do SENHOR, anteriormente dada a Moisés (Dt 20.16-18) e posteriormente repassada a Josué, como líder do povo, su-cessor de Moisés. Josué foi obediente e “nem uma só palavra dei-xou de cumprir de tudo o que o SENHOR ordenara a Moisés” (v.15).

Os versículos 16 a 24 contam outras vitórias de Josué e o povode Deus, e as novas terras que foram sendo incorporadas às jáconquistadas: desde o monte Halaque (o limite das conquistas, aosul) até Baal-Gade (o limite das conquistas, ao norte). Essas bata-lhas duraram muito tempo. Estima-se em torno de cinco anos operíodo dessas lutas.1 Um detalhe interessante desse texto mostra

DÉCIMO QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 126: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

126

que era Deus mesmo que fazia com que os povos inimigos “teimas-sem em lutar contra o povo de Israel, para que, assim, fossemcompletamente destruídos e mortos sem dó nem piedade” (v. 20 –NTLH). Em outras palavras, isso implica dizer que o SENHOR iaadiante de seu povo, tomando todas as iniciativas, antes mesmoda batalha acontecer, para manifestar assim seu amor e seu podersalvador.

Depois de destruir os gigantes anaquins,2 conforme a ordem doSENHOR a Moisés, “Josué tomou a terra e a deu aos israelitas paraser propriedade deles. Josué dividiu a terra e deu uma parte a cadatribo. E assim a guerra acabou” (v. 23 – NTLH).

POSSIBILIDADES DE USO HOMILÉTICO

Alguns aspectos de toda essa narrativa merecem ser melhoranalisados. As alternativas abaixo não esgotam o texto. Antes,querem ser apenas ponto de partida para reflexões.

a) Josué, um grande líder, mas sempre dependentedo SENHOR Deus

É bastante provável, até mesmo pelos detalhes biográficos ínti-mos que o livro contêm, que o próprio Josué tenha sido o escritor ecompilador do livro. Apesar de toda a sua liderança, não é o prota-gonista do livro. Mesmo assim, merece nossa atenção. Josué, filhode Num, era um israelita da tribo de José. Nasceu no Egito e foiescolhido por Moisés para ser seu sucessor na tarefa de liderar opovo de Israel rumo à terra de Canaã. Josué vivenciara a liberta-ção do Egito, a entrega da lei no Sinai, os terríveis sofrimentos efrustrações no deserto e a liderança tremenda de Moisés. A figurade Josué, portanto, torna-se indissociável da história de Israel.

Sua tática como general de exército foi dividir a terra em duaspartes, tomando primeiro o sul e depois o norte. Entretanto, osucesso da conquista não deve ser atribuído simplesmente à sua

1 Segundo comentário na Bíblia Shedd, este tempo se baseia na idade de Calebe, que tinha85 anos quando recebeu sua herança (14.6-10) e tinha 40 anos quando saiu do Egito egastou mais 40 anos no deserto. Assim, tinha cerca de 80 anos quando entrou na Pales-tina. Flávio Josefo, nas Antiguidades Judaicas, concordou que a conquista custou cincoanos.2 Os anaquins (ou enaquins) eram uma raça de gigantes, descendentes de Arba, um dosfilhos de Hete (Js 15.13; Gn 23.3). Um exemplo desses gigantes era Golias, de Gate, quefoi morto por Davi.

Page 127: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

127

habilidade militar. Foi o SENHOR quem lutou nas batalhas por Josuétravadas. Foi o SENHOR quem deu a vitória ao seu povo. Josuéapenas foi seu servo, reconheceu isto, confiou no SENHOR e obe-deceu a Ele. Isso é o que chama a atenção! “O caráter de Josuéfaz parte da mensagem teológica do livro. Ele é retratado como umsegundo Moisés conduzindo o povo à vitória em nome e no poderde Javé. [...] Em justiça, sabedoria e lealdade ao Senhor, ele pare-ce encarnar as características necessárias a todos os líderes ser-vos. Ele é o único no Antigo Testamento a se levantar como heróipolítico e militar de história imaculada”.3

O papel dos líderes hoje não está divorciado do exemplo deJosué. Hoje, a exemplo de outrora, também precisamos de líderesdispostos a servir ao Senhor. Mais do que sua lealdade e obediên-cia ao SENHOR, o que fica claro no comportamento de Josué é suadependência do Deus Todo-Poderoso. Em outras palavras, a féde Josué é inspiradora e nos serve de modelo, também quandotudo parece difícil e improvável. Foi pela fé que ele aceitou e aco-lheu as ordens de Deus, foi obediente e alcançou êxito. Tudo co-meçou com o SENHOR, desde o seu chamamento até a sua obedi-ência. Era um dom divino, não um prêmio pelo esforço! Os líderesverdadeiros da igreja hoje também reconhecem sua dependênciade Deus e compreendem que todas as vitórias não são fruto de seuesforço, mas graça, graça pura!

b) A fidelidade de Deus tornada visível com CanaãMuito tempo antes, o SENHOR havia firmado uma aliança com

Abraão, prometendo dar a terra de Canaã a seus descendentes.Essa promessa também foi dada a Isaque e Jacó, renovada paraMoisés e repetida para o povo de Israel quando estava no deserto,e mais uma vez repetida quando Josué foi chamado para ser o líderdo povo. O SENHOR lutou pelo seu povo, indo até adiante dele (Js11.20), e lhe deu a vitória.

Quando Josué descreve os limites territoriais das tribos e asvitórias diante de povos mais numerosos e poderosos do que Isra-el, aí está o cumprimento, mesmo parcial, da promessa do SENHOR.Mesmo que uma parte da terra ainda não havia sido conquistada, oSENHOR orientou o povo a distribuir a terra herdada (Js 13.7).Deus cumpre a sua promessa (Js 21.45) e mostra sua fidelidade,libertando o povo da escravidão no Egito, sustentando o povo no

3 William S. Lasor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento,1999, p. 153.

DÉCIMO QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 128: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

128

deserto, dando-lhes a vitória batalha a batalha e agora dando-lhesa terra de Canaã. A fidelidade de Deus é a causa de tantas vezesos profetas conclamarem o povo a voltar para o seu Deus.

Especificamente aqui, Canaã é o sinal visível de fidelidade deDeus à sua palavra, de uma lealdade cujo reflexo tinha de ser aconduta fiel do povo eleito. Então, o estabelecimento do povo emCanaã não é uma mera conquista humana, mas um dom que Israelrecebe do Senhor. Cumpria ao povo enxergar isso, crer no seu Deuse ser fiel a Ele, pois, de outra parte, o SENHOR já dera provas desua incansável fidelidade.

Recebendo tamanha graça, o povo pôde, enfim, descansar. “E aterra repousou da guerra” quer justamente lembrar que Deus haviacumprido sua promessa. Agora não seria mais preciso lutar – ape-nas desfrutar! Por quê? Porque Deus havia sido fiel! Nós, um dia,também vamos poder “repousar da guerra”, quando nossa peregri-nação e luta até chegarmos na Canaã celeste cessar. Então pode-remos descansar e não mais lutar. Por quê? Porque Deus é fiel ecumpre suas promessas! Descansemos, hoje já, em suas promes-sas e certezas.

c) O porquê do extermínio dos cananeus e outros povosNas conquistas de Jericó, Ai, Hazor e outras, Josué registra que

os israelitas exterminaram completamente os habitantes, conformeo mandamento do próprio SENHOR. Precisa ser enfatizado aqui quea responsabilidade desta medida extrema ficava com Deus mais doque com os israelitas. Freqüentemente se ouve que os israelitaseram primitivos, quase selvagens, e que praticaram “tais atrocida-des” por causa do atraso no seu desenvolvimento religioso. O tex-to revela claramente que Josué estava simplesmente cumprindoordens divinas quando os habitantes foram exterminados. Para nós,hoje, tal ordem divina pode parecer ofensiva e até ultrajante. Masqual o porquê dessa ordem de exterminar tais povos? Há basica-mente duas razões:4

1) Aos olhos do SENHOR, os cananeus e os outros povos, comsua cultura e religião, eram pecadores extremamente maus, come-tendo não apenas abominações contra Deus, mas também tentadoseduzir Israel para que os acompanhassem nesses atos “religio-sos”. Politeísmo, prostituição religiosa, sacrifício de crianças e ou-tros aspectos dessa religião não eram tolerados pelo Santo Deus.Por isso, esses povos mereciam punição.

4 Extraídas de Lasor, Hubbard e Bush, op. cit., p. 159.

Page 129: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

129

2) Além disso, a pureza da religião israelita tinha de ser preser-vada. Aqui, Deus estava, na verdade, prestando um serviço, umfavor, ao seu povo. Os atrativos sensuais da religião cananéia im-punham uma séria ameaça ao povo de Deus. Assim como um médi-co não pensa duas vezes em remover um braço ou uma pernaquando a vida está em jogo, assim a própria existência de Israel (e,em última análise, a salvação do mundo) dependia desse ato enér-gico (“bênção”) de Deus.

Em todo o caso, esse massacre em nome do SENHOR (herem)não é um princípio permanente. Foi apenas designado por Deuspara uma situação imediata e específica, em Israel ocupar a terraque Deus havia prometido a seus pais. Portanto, não é justo aludira esses extermínios para justificar uma possível “guerra santa”, porexemplo, entre EUA e Iraque. Os israelitas não tinham, como nóshoje temos, o Sermão do Monte (“amai vossos inimigos”). Essacompreensão do amor precisava aguardar que o Novo Josué (Je-sus) a tornasse conhecida em sua vida e morte.

Fica, ainda, o princípio de tudo isso: não se deixar contaminarcom práticas pagãs, nem introduzi-las no seio da igreja. Boa partedo declínio em coisas espirituais e da apostasia que marcava ahistória de Israel (no tempo dos juízes – Jz 2.20–3.4) é atribuída àtolerância à religião depravada dos cananitas. Treva e luz nãopodem andar juntas (2 Co 6.14). Por isso, manter a pureza dapalavra de Deus e práticas subordinadas a essa mesma Palavra éum constante desafio a todos nós, que somos o Israel de Deus.

PROPOSTA DE ESTRUTURA DE SERMÃO

Tema: Uma questão de fidelidadea) de Deus para o seu povo (a conquista de Canaã e demais

provas do Seu amor);b) conosco para Deus (pela fé e depois em obediência à Sua

vontade).

Júlio JandtBarra do Garças, MT

DÉCIMO QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 130: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

130

Uma enorme celeuma em torno de um altar? Uma guerra civil,fratricida, por causa de um altar? Era exatamente isto que estavana iminência de acontecer.

O momento é muito especial na história de Israel. Coubera aJosué assumir, em lugar de Moisés, a liderança na marcha de Israelna ocupação da terra que Deus designara ao povo. Muito foi exigi-do de todos. Aprenderam ao longo de muitas lutas, conflitos edificuldades a depender de Deus e do seu porta-voz. Tem-se aimpressão, pelas palavras de encerramento do capítulo 21, queIsrael não somente aprendera a confiar em Deus, mas, além disto,aprenderam a se respeitar mutuamente e prezar grandemente aunidade como povo servidor do mesmo Deus.

Tanto assim é que as tribos, cujas terras ficavam além do Jor-dão, mesmo já tendo as suas terras asseguradas, não as ocuparamenquanto as demais ainda não tivessem posse das suas terras emCanaã, a oeste do Jordão. Tratava-se das tribos de Ruben, deGade e a meia tribo de Manassés.

Josué, então, publicamente reconhece a fidelidade destas tri-bos como sendo fidelidade a Deus e seu porta-voz Moisés. É ummomento de profunda gratidão que Josué marca como sinal paratodos. Ao continuarem ao lado dos demais, que ainda precisavamlutar e correr riscos de perdas de vidas, estas tribos ficaram aolado do seu Deus que se identifica com todas as tribos como sendoo seu povo, um só povo. As lutas de um eram as lutas de todos. ODeus de um era o Deus de todos. Ninguém tem vida própria sepa-rada do seu povo e do seu Deus.

Este momento também testemunha que dificuldades não sãocastigo nem esquecimento da parte de Deus. Dificuldades são es-cola de Deus para todos e para cada um. O Apóstolo Paulo refere-se a este fato em diferentes ocasiões. Aos romanos ele atesta:“[...] sabendo que a tribulação produz perseverança; a perseve-rança, experiência; e a experiência, esperança” (Rm 5.3b e 4).

É verdade que Deus quer nos dar coisas boas e nos estimula apedirmos por elas. Entretanto o “sim” de Deus pode vir oculto edisfarçado nas tribulações. Ou então, em dar algo inesperado. Ou

DÉCIMO QUINTO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJOSUÉ 22

Havia um só altar em Israel

Page 131: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

131

então, como no caso de Israel, o benefício recai sobre as próximasgerações. Esta é a geração que descansou dos seus inimigos, queviu o “outro lado” das promessas e que pode olhar para trás eagradecer às gerações precedentes pelas grandes lições aprendi-das e das quais agora podem viver como quem aprendeu na expe-riência de vida.

Entretanto, as lições ainda não acabaram. É necessário aindaaprender outra lição. Uma lição que Jesus, por várias vezes, repe-tiu também com os seus discípulos: “Nada julgueis antes do tem-po”.

Corre um rumor pelas cidades, “ouviram dizer” que exatamenteestas tribos da Transjordânia, tão recomendadas por Josué e pelosacerdote Eleazar, tinham construído um outro altar. Ora, isto paratodos só podia ter um significado: aquelas tribos estavam se sepa-rando do povo e constituindo uma nova identidade de povo. E,quem sabe, não estavam construindo uma nova identidade religio-sa, ou adorando um outro deus. E o povo todo foi tirar satisfações.

Quem sabe, as tribos da Transjordânia estavam chateadas por-que ficaram separadas das demais pelo rio Jordão, sentido-se des-prezadas ou “dispensáveis”? Quem sabe, ao construírem um altarpara si estariam revelando que fora a contragosto que ficaramlutando ao lado das demais tribos?

“Que infidelidade é esta?” são as palavras duras de saudaçãoque ouvem dos representantes de cada clã em cada tribo (v.16).Deixaram de seguir o Senhor! São rebeldes contra Deus! Se hojese revoltam contra Deus, amanhã estarão revoltados contra nós!Vocês são como Acã (Js 7.1-26) que, com a sua infidelidade, trou-xe a desgraça sobre todos. Querem nos desgraçar junto com vo-cês? Vocês não são melhores do que aqueles que se prostituíramcom as seguidoras de Baal que trouxeram desgraça sobre nós queainda sentimos hoje! (Nm 25).

As lições tinham sido aprendidas. Queriam ser fiéis a Deus. Nãotolerariam infidelidades. Infelizmente, julgaram pelo que tinham “ou-vido dizer” e condenaram sem ouvir aqueles a quem condenavam.O apóstolo Paulo também identifica este zelo nos judaizantes. EmRm 10 ele afirma: “Eles têm zelo por Deus, porém não com entendi-mento” (2b). Zelo necessita de entendimento. Paulo aprendeu estamesma lição às portas de Damasco. O zelo é bonito, tem boaaparência de piedade. Mas necessita de entendimento. Este en-tendimento aprendemos de Jesus sempre que ele encara o zelo dosfariseus pelo próprio cumprimento da lei e a ânsia de condenaremos “outros”, esquecendo que “não há homem justo sobre a terra

DÉCIMO QUINTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 132: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

132

que faça o bem e que não peque”. Paulo atesta com sinceridadeúnica: “Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo deagir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto [...] Porqueeu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem ne-nhum, pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo”(Rm 7.15,18).

O zelo de querer corrigir o que se vê como errado em muitoscasos é zelo humano que esquece ou não quer pensar nas própriasfaltas. Lutero, a respeito disto, tem algumas afirmações chocan-tes. Para deixar claro ao eleitor Frederico de que somos todospecadores, ele afirma que o não sentirmos a maldade, a capaci-dade de fazer mal que existe dentro de nós, é uma das grandesbênçãos de Deus. O “pior mal é aquele que mora dentro da pessoa.Os males que há dentro dela são muito mais numerosos e maioresdo que aqueles que ela sente. Porque se sentisse seu mal, sentiriao inferno”. É consolo poder dizer a si mesmo: “Ó ser humano, porenquanto ainda não sentes teu mal (maldade). Alegra-te e sêgrato porque não és obrigado a senti-lo” (in Catorze Consolações,Obras Selecionadas 2,17). A seriedade com que Lutero olha paraa lei fica mais evidente quando diz: “Quantas pessoas sãoenforcadas, afogadas ou mortas à espada (isto é, sentenciadaspela justiça) que talvez tenham cometido pecados muito menoresdo que nós! Sua morte e miséria são colocadas diante de nós porCristo também como espelho no qual podemos ver o que nósmerecemos [...] Quantos milhares estão no inferno e na conde-nação eterna que não têm a milésima parte de nossos pecados(Id. OS, 2, 23).

Quando, em vez de julgar, tentamos ouvir o que “ouvimos di-zer”, ou até presenciamos, com a humildade que Lutero aponta,certamente estaremos no caminho da construção e solidificaçãoda unidade no corpo de Cristo e na congregação cristã.

Os representantes do povo acharam que o “outro” altar que sepodia ver era prova irrefutável para tudo que queriam julgar osseus, até então, irmãos. Um outro altar somente poderia significara repetição dos grandes pecados a eles ligados, com todas asconseqüentes infidelidades de culto e de adoração, junto com apromiscuidade com outros povos e outros deuses.

Entretanto nada disso se comprovou. Havia outro altar? Sim,havia. Mas não havia infidelidade, não havia idolatria, não haviapromiscuidade cúltica. Havia, pelo contrário, um ato de devoção ede fidelidade pública para dizer que o Jordão que os separava nãofazia deles uma outra nação. Pelo contrário, queriam lembrar mais

Page 133: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

133

e melhor o altar de Siló, sinal da fidelidade de culto e adoração aDeus e de unidade como povo deste mesmo Deus.

Andar em humildade diante de Deus e do próximo também seaprende tropeçando na própria língua quando o “ouvir dizer” vemacompanhado de cócegas em julgar. É mais fácil ter opinião sobreos outros do que seguir no exercício que Paulo e depois Lutero nospropõem. Para nos ajudar, às vezes Deus permite que tropecemose descubramos a nossa enorme fragilidade. Esta é a estranhapedagogia de Deus, segundo Lutero: Permitir que sejamos afligidosem tempo pelos males, quando Deus às vezes até é visto comotendo se esquecido de nós. Mas é exatamente aí que Deus nos faztomar vias nas encruzilhadas da vida que nos levem à maior felici-dade.

E quando, então, Deus permite que o outro caia, Deus olha paranós e espera que tenhamos aprendido sua lição de amor.

Paulo P. WeirichSão Leopoldo, RS

DÉCIMO QUINTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 134: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

134

“Já sou velho e entrado em dias”. Custa muito ao ser humanoaceitar o fato de que o seu tempo tem limitadores. Há sinais exter-nos e internos que levam a dizer: O meu tempo já passou. Tempode quê?

Josué deve ter parecido ingênuo quando contrariou toda a gri-taria do povo de Israel que se apavorara com o relatório dos de-mais espias, impressionados com o poderio aparente dos habitan-tes de Canaã. “Não temais o povo desta terra, porque como pãoos podemos devorar” (Nm 14.9) opõe-se Josué ao clamor geral.

Pode ter parecido ingênuo aos olhos de todos. Entretanto, Isra-el estava fazendo o que a humanidade repete, no geral e no parti-cular, freqüentemente. O perigo próximo sempre parece maior emais temível do que o perigo distante. De um lado, o Egito, distan-te. De outro, Canaã, próxima. Enquanto o ser humano pensa edecide com a sua cabeça e com os seus próprios sentimentos, areação é nunca enfrentar nada. Fugir sempre para as promessasque parecem soluções, mas que nada mais são do que fuga dapalavra de Deus.

Mas quando o desespero começa a falar mais alto do que o bomsenso, ou quando o bom senso parece não deixar alternativa aodesespero, então é tempo de crer. Quem disse que o caminho éCanaã? Quem disse que o caminho é o Egito? Fé e desespero estãointimamente ligados. “Quando sou fraco, então é que sou forte”,registra o apóstolo Paulo. Pessoas que nada mais têm para mostrardo que uma promessa. Agarrados à promessa peregrinam nestemundo como quem nada mais espera do que a promessa ao final dajornada. Pelo autor aos Hebreus, Deus confirma: “Foram apedre-jados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio de espada;andaram peregrinos, vestidos de peles de ovelhas e de cabras,necessitados, afligidos, maltratados, errantes pelos desertos, pe-los montes, pelas covas, pelos antros da terra” (11. 37,38).

Meu tempo de apontar para cima e para a palavra da promessa,

DÉCIMO SEXTO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJOSUÉ 23

Um só homem entre vós perseguirá mil (deles),pois o Senhor, vosso Deus, é quem peleja por vós,

como já vos prometeu (v.10)

Page 135: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

135

o meu tempo de vos dizer: “Confiem”, este tempo está chegandoao fim, constata Josué. Mas o povo continua. Josué lembra como opovo prefere fazer opções. Nós não merecemos este destino. Nósnão podemos ser atingidos por nenhuma desgraça. Não somos nóso povo de Deus? Esta visão unilateral, míope, da relação que Deusestabelece com o povo que ele chama de seu tem sido a tentaçãomais permanente ao longo da existência da igreja de Deus. Estarcom Deus é estar livre de todo e qualquer sofrimento e ameaça, éo que se propaga também hoje como sendo evangelho.

Uma palavra de Deus capenga esta que vê somente a promes-sa. Ela ignora o que diz a Lei de Deus. “Visto nada merecermossenão castigo” é o que Lutero ensina ao pai de família que ensineem sua casa sobre aquilo que somos aos olhos de Deus. O que livrao crente no desespero da sua condição humana é somente umapromessa e a possibilidade de que Deus realmente está dispostofavoravelmente a acolher o pecador.

Josué nada mais tinha para mostrar do que a sua palavra, o seutestemunho de confiança na promessa. E o que leva a isto é aabsoluta consciência de que pessoalmente e como povo, nadamerecemos. Deus dá e Deus tira. Deus não necessita dar motivospara dar ou parar tirar. No caso de Israel, Deus até explica didati-camente: “Por dez vezes me puseram à prova” ( isto é, duvidaramde mim com atos de revolta), “nenhum deles verá a terra que, comjuramento, prometi a seus pais, sim, nenhum daqueles que medesprezaram a verá” (Nm 14.22,23).

Tudo o que somos ou deixamos de ser, tudo que se ganha ouperde, pertence a Deus dar ou tirar, “visto nada merecermos”.

Persistir na promessa quando tudo e todos gritam que é hora derevisar os conceitos da fé, é disto que fala o autor de Hebreus.Esta dimensão de fé somente é revelada na experiência dos gran-des traumas da vida.

De uma forma ou de outra, todos, em momentos especiais davida, fazem a experiência da fé em meio ao desespero. Luterochama isto de a bênção de Deus em disfarce. Ao permitir que malesnos atinjam, Deus atinge o nosso orgulho e soberba e impede queeles queiram ser a nossa fé, ocupando o lugar dela com oraçõescomo a do fariseu no templo. Se não é Jesus a dizer que o fariseunão desceu justificado para casa, dificilmente detectamos naquelaoração algo além de uma ação de graças pelas bênçãos recebidas.O que lhe faltava era a experiência da rejeição e do sofrimento.Destes ele fugia na medida em que se afastava dos pecadores edos perdidos como aquele publicano.

DÉCIMO SEXTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 136: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

136

Enfrentar mil inimigos não é expressão de uma teologia da gló-ria. É encarar uma multidão raivosa e irada, pronta a matar, que seatreve a contrariá-la e dizer um absurdo como este: “Cada um denós pode encarar mil daqueles homens de Canaã”.

Este Josué agora se despede: “Já sou velho e entrado em dias”.Para Josué nada mudou desde o dia em que enfrentara a multidãocom palavras de uma fé que se mostrava ingênua, irreal, quemsabe, no dizer de Paulo, “louca”. “O Senhor expulsou de diante devós grandes e fortes nações [...] ninguém vos resistiu até hoje”.

Na sua fé Josué aprendeu a ver a vida pelo avesso. Tendo emvista que “nada merecemos de Deus, senão castigo” (Lutero), comoexplicar que a cada dia acordamos cercados de coisas boas? Apren-damos a olhar ao nosso redor com esta perspectiva. Nada merece-mos. Então, quais coisas que me cercam, desde os bens até aspessoas, que são minhas de direito? Tenho feito por merecer ocarinho e atenção, a fidelidade com que sou tratado?

Não devo agradecer a Deus também pelos sofrimentos e pelaslimitações que se interpõem entre os meus sonhos e a minha reali-dade? Não servem eles ao propósito de me manter ocupado exa-tamente com aquilo que Deus me dá para estar ocupado?

Porque Deus, segundo Josué, cumpriu em nossas vidas e conti-nua cumprindo cada uma de suas promessas. Daí nasce o sincerodesejo e convite: Permaneçam na aliança e recebam com gratidãotudo o que o Senhor designar para a vossa vida. Tenham olhos dafé para ver que nada acontece por acaso ou sorte. A mão de Deusconduz os nossos caminhos, mesmo que a nossa razão e nossossentimentos queiram e, por vezes, gritem de revolta.

“Já sou velho e entrado em dias”, diz Josué. Uma geração inteirasucumbiu porque não quis confiar no Senhor. Que a nova geraçãotenha aprendido a distinguir a mão do Senhor em cadaacontecimento, por menor e de menos importância que possa pa-recer.

Paulo P. WeirichSão Leopoldo, RS

Page 137: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

137

CONTEXTO HISTÓRICO

Josué, filho de Num (um israelita da tribo de José, a meia-tribo deEfraim), nasceu no Egito e era jovem na época do Êxodo (Êx 33.11).Seu nome era Oséias, mas Moisés o chamou de Jesua ou Josué (Javéé a salvação) quando o mandou com outros a reconhecer a terra deCanaã. As referências bíblicas apontam sua entrada no cenário bíbli-co na primeira menção de Josué em Êxodo 17.9 como chefe doexército israelita e íntimo colaborador de Moisés. Aliás, pouco depoisé chamado de “servidor [auxiliar] de Moisés” (Êx 24.13; Nm 11.28;Dt 1.38), com quem subiu o Monte Sinai. Sabemos também que,quando o grande profeta entrava no tabernáculo para falar comDeus “face a face, como qualquer fala a seu amigo; então, voltavaMoisés para o arraial, porém o moço Josué, seu servidor, filho deNum, não se apartava da tenda” (Êx 33.11).

Valente na guerra, penetrante e sábio no conselho, tambémutilizava a palavra com eloqüência, e por isso ele tinha fixado aatenção de Moisés. Foi eleito para continuar a obra deste outrogrande homem e líder, e sustentou a honra de tal escolha pelafirmeza de seu caráter e heroísmo de sua fidelidade.

Auxiliar e, depois, sucessor de Moisés (Êx 17.8-13; Dt 31.1-8),Josué comandou a travessia do rio Jordão (Js 3) e tomou Jericó (Js6). Conquistou a terra de Canaã e a dividiu entre as tribos de Israel(Js 8-21).

No capítulo 24, Josué se despede do povo. Aqui temos o regis-tro da despedida e da morte deste líder do povo de Deus. A narra-tiva relata a história de Israel desde a travessia do Rio Jordão feitapelo exército de Josué, até que ele se retira do cenário, proferindoum discurso de despedida cuja estrutura traz um resumo históricocom as seguintes etapas: a eleição dos patriarcas (vv. 2-4); asaída do Egito (vv. 5-7) e a entrada do povo de Israel em Canaã, aTerra Prometida (vv. 8-13). Desta maneira, Josué relembra as açõesde Deus em favor do seu povo com vistas a despertar neles umafidelidade sem igual ao seu único e verdadeiro Senhor Deus. Umcompromisso público foi feito no qual os líderes asseguravam a

DÉCIMO SÉTIMO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJOSUÉ 24

O testemunho final de um líder do povo de Deus

Page 138: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

138

Josué de que serviriam ao Senhor. Após abençoar o povo e renovara aliança com Deus, Josué morreu com a idade de 110 anos (Js24). Após sua morte, Israel cumpriu de fato a promessa de servir aDeus somente enquanto vivia a geração mais antiga.

Os eventos registrados em Juízes estão intimamente ligadosaos acontecimentos ocorridos durante a vida de Josué. Os cana-neus ainda não haviam sido desalojados e a ocupação por Israeltambém não havia se completado, por isso prosseguiram as guer-ras, enquanto áreas ou cidades locais eram reocupadas no decor-rer do tempo. Os livros bíblicos de Josué e Juízes estão bem relaci-onados cronologicamente, sendo assim, é possível que sejam atésimultâneos.

TEXTO: MEDITAÇÃO PRÁTICA

O exemplo de Josué marcou profundamente o povo de Israel,mesmo depois de sua morte. A geração posterior de líderes, quetambém participou das experiências de vida com o serviço a Deus,continuou o trabalho iniciado por Josué e o povo permaneceu ser-vindo ao Senhor, ao menos em seu tempo. Josué deixou-lhes umaherança “incorruptível”. Além de um belo exemplo de vida e lideran-ça, fez com que o povo permanecesse fiel ao Senhor. No seu dis-curso final em Siquém1 relembrou os grandes feitos de Deus pelosque lhe pertencem pela fé. O livro Introdução ao Antigo Testamen-to de William S. Lasor et alii, apropriadamente destaca:

O caráter de Josué faz parte da mensagem teológica dolivro. Ele é retratado como um segundo Moisés conduzindoo povo à vitória em nome e no poder de Javé, como umprotótipo de um reinado ideal em Israel. Em justiça, sabe-doria e lealdade ao Senhor, ele parece encarnar ascaracterísticas necessárias a todos os líderes servos. Ele éo único no Antigo Testamento a se levantar como heróipolítico e militar de história imaculada.2

A Carta aos Hebreus 13.7 diz: “Lembrai-vos dos vossos guias,

1 [Ombro] Cidade, hoje chamada de Nablus, situada na Samaria, entre os montes Gerizime Ebal, 64 km ao norte de Jerusalém, onde havia um santuário ligado à história dospatriarcas (Gn 12.6-7; 33.18-20; Js 24.32; Jz 9; 1Rs 12.25)2 LASOR, William et alii. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999. p.153

Page 139: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

139

os quais vos pregaram a palavra de Deus; e, considerando aten-tamente o fim da sua vida, imitai a fé que tiveram”. Exemplos devida e liderança como o de Josué precisam ser constantementelembrados e considerados, pois são referenciais para a igreja doSenhor hoje. Além de Josué, o capítulo 24.29-33 também fazreferências ao fim de José, filho e sucessor de Jacó, e de Eleazar,filho e sucessor de Arão, homens (guias espirituais) que pregaramfielmente a palavra Deus. Assim, o autor de Hebreus nos convida“a [1] considerar atentamente o fim da sua vida” e a [2] imitar “afé que tiveram”.

Neste intuito, vale lembrar e destacar detalhes acerca do fimda vida de Josué, especialmente nas palavras finais de exortaçãoao povo de Deus. A motivação de Josué para as suas grandesconquistas consistia na memória dos grandes feitos de Deus pelopovo de Israel. Ele destaca as diversas intervenções de Deus nahistória por ele próprio experimentado e vivenciado. Assim, Israel éenviado ao mundo para testemunhar. Na primeira exortação apela àlembrança de como Deus cumpriu a sua palavra e os conduziu àTerra Prometida. Javé sempre esteve com eles, mesmo nas bata-lhas. Assim, a resposta do povo era traduzida em obediência, su-jeição e fidelidade. Eram sempre encorajados a enfrentar o futuro.Na segunda exortação, Josué lembra a fidelidade de Deus no cha-mado de Abraão, na libertação do Egito, a vitória dos amorreus, oplano frustrado de Balaão, a travessia do Jordão, a tomada deJericó e, não obstante, o fim dos cananeus. A intervenção divina é“bênção sobre bênção”!

Imitar a fé destes gloriosos antepassados significa obedecer,servir e se manter fiel a Deus. É reconhecer que Deus intervémhoje na nossa história com seus atos poderosos. Assim, ao con-templar tais feitos, como povo que pertence ao Senhor hoje, po-demos dizer que “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre”(Hb 13.8). Vivenciar esta fé é testemunhar a luz que se reveloupara a glória povo de Israel e aos não-judeus. Imitar a fé dos paisé perseverar na confiança em Deus mesmo em meio às batalhassempre com vistas à conquista da vitória. Sejamos, assim, bonsimitadores.

A meditação prática se resume nisto: em lembrar os grandesfeitos (intervenções) de Deus na história do seu povo e, conse-qüentemente, também na nossa história.

DÉCIMO SÉTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 140: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

140

POSSIBILIDADES DE USO HOMILÉTICOPrecisamos despertar em nossos líderes da igreja que hoje

podemos descortinar novos horizontes maiores do que os avista-dos pelos gigantes do passado se nos colocarmos em pé sobreseus ombros. Temos uma série de exemplos bíblicos, dentre asquais o exemplo de Josué, para uma liderança eficaz, atuante edeterminada. Líderes inspiram líderes. A própria história de Josuée o seu fim glorioso nos inspiram a conduzirmos o trabalho daigreja com esmero, obediência, dedicação e fidelidade. Foi-nosoutorgado um legado precioso que precisamos administrar fielmentea fim de que muitas pessoas conheçam Jesus Cristo, seu amor esalvação.

As sugestões abaixo precisam levar em consideração como fiocondutor a intervenção de Deus na história, pessoas que sedestacaram como líderes – instrumentos na mão de Deus – comoJosué e o envio do povo de Deus ao mundo para testemunho.

A primeira sugestão de possibilidade homilética seria de relem-brar, resumidamente, destacando os principais feitos de Deus naBíblia (a história da salvação), na história, na trajetória de umaparóquia ou congregação, ou mesmo na vida de uma ou mais pes-soas através de testemunhos, relacionando-os, assim, ao discursode Josué.

A segunda sugestão de possibilidade homilética é a de trabalhardiretamente a partir do discurso final de Josué, a partir da estrutu-ra do mesmo.

A terceira sugestão é a de levar junto de si ao púlpito e mostraruma lápide3, placa ou epígrafe que relembre/resgate parte da his-tória de alguma igreja ou de algum líder referencial (ver Js 24.26-28).

Dentro desta última idéia mesmo, confeccionar uma espécie de“epígrafe” (computador ajuda) de Josué conforme descrita em Js24.31:

“Serviu, pois, Israel ao SENHOR todos os dias de Josuée todos os dias dos anciãos que ainda sobreviveram pormuito tempo depois de Josué e que sabiam todas as obrasfeitas pelo SENHOR a Israel.”

3 (cf. Dicionário Houaiss) 1) pedra com inscrição que comemora um fato ou que celebra amemória de alguém; 2) laje que cobre o túmulo.

Page 141: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

141

O exemplo de Josué marcou profundamente o povo de Israel,mesmo após a sua morte. A geração posterior de líderes, que tam-bém participou das experiências de vida com o serviço a Deus,continuou o trabalho iniciado por Josué e o povo permaneceu ser-vindo ao Senhor. A reflexão seria em torno da temática: “Qual seriaa escrita da epígrafe da nossa vida?” ou ainda: “Qual a ‘herança’deixada ao nosso povo e sucessores?”

PROPOSTA DE ESTRUTURA DE SERMÃO (cf. Bíblia Ed. Revista eAtualizada)

Josué 24.14: “A exemplo de Josué e do povo de Israel: sirvamosa Javé”:

1. Com temor (Js 24.14a);2. Com integridade (Js 24.14b);3. Com fidelidade (Js 24.17c).Josué 24.15b: “Eu e minha casa serviremos ao Senhor!”1. “Porque o Senhor é o nosso Deus” (Js 24.17a);2. Porque Ele fez “grandes sinais aos nossos olhos” (Js 24.17b);3. Porque Ele “nos guardou por todo o caminho que andamos”

(Js 24.17c).Josué 24: “Miremo-nos nos exemplos de Josué e do povo de

Israel”1. “Que serviram ao Senhor todos os dias” (Js 24.31a);2. Que deixaram bons exemplos aos sucessores (Js 24.31b);3. “Que sabiam todas as obras feitas pelo Senhor” (Js 24.31c).

Wanderley Maycon LangeBalneário Camboriú, SC

DÉCIMO SÉTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 142: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

142

CONTEXTO

As tribos de Israel, sob a liderança de Josué, ocuparam a terraque Javé prometera a Abraão (Gn 12.1ss). Mas o processo deocupação foi doloroso. Esse período em que as tribos de Israelaprendem a conviver e precisam lidar com vizinhos indiferentes eaté mesmo hostis é conhecido como “Período dos Juízes”. Duroucerca de 200 anos. A história é contada no livro de Juízes.

Depois de descrever a situação política e religiosa da época(1.1-2,5), narra-se a história dos seis Juízes Maiores e dos seisJuízes Menores. Originariamente o verbo safat significava “resolveruma contenda entre dois oponentes”. Já que tal decisão indicavaquem estava certo e quem estava errado, safat significa “defendero direito de alguém”, “condenar alguém”. Vale lembrar que o termo“juiz” não se trata do mesmo juiz das nossas sociedades modernas.Não era uma magistratura fixa, nem uma função permanente. Soba pressão das circunstâncias, os juízes eram indicados por Javépor um determinado tempo.

“OUTRA GERAÇÃO SE LEVANTOU [...] QUE NÃO CONHECIAO SENHOR” (V. 10)

O texto de Juízes, capítulo 2, manifesta a problemática centraldessa época: os israelitas se esqueceram das obras grandiosas deJavé em favor do seu povo. Trocaram Javé pelas divindadescananéias. Quando da ocupação da terra, a ordem do anjo ao povoera clara: “Não fareis aliança com os moradores desta terra; an-tes, derribareis os seus altares” (Jz 2.2). Mas o povo não obede-ceu: “Foi também congregada a seus pais toda aquela geração; eoutra geração após eles se levantou, que não conhecia o Senhor,nem tampouco as obras que fizera a Israel” (Jz 2.10).

É interessante que o texto fala em “geração que não conheciao Senhor”. Será que podemos também falar assim hoje? Nossa

DÉCIMO OITAVO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJUÍZES 2

“Outra geração se levantou [...] que não conheciao Senhor” (v. 10).

Page 143: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

143

geração não conhece o Senhor? Richard Dawkins, considerado opapa do ateísmo, lançou um livro com o título The God Delusion(Uma ilusão chamada Deus). O autor da obra afirma categorica-mente que Deus é uma grande ilusão. Este livro é apenas um entreos muitos que compõem os novos armamentos da guerrilha ateístaque visa acabar definitivamente com a idéia de Deus. O assuntovirou até capa da revista Época e da revista americana Times.Outro dia li uma pesquisa sobre comportamento religioso. Eis aíuma das conclusões da pesquisa: “O número de jovens brasileirosna faixa etária entre 15 a 24 anos sem religião está aumentandocada vez mais. Hoje, eles são 10% da população jovem”.

Nossa geração se esqueceu de Deus? A resposta não é tãosimples, mas uma coisa é certa: as sociedades técnico-científicasdo nosso tempo baniram Deus de seus pensamentos e possibilida-des. Contudo, uma pergunta mais urgente se faz: Onde está opovo de Deus que vive nas sociedades contemporâneas? Ondeestá a geração que conhece a Deus? Onde estão os cristãos dehoje? Mais do que culpar nossa sociedade técnico-científica, épreciso olhar para nós mesmos, cristãos: Que testemunhas estamossendo de Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da Histó-ria?

É engraçado que a palavrinha “testemunha” vem do gregomartyria. Daí vem mártir, martírio. Ser testemunha de Jesus hojesignifica ser mártir em meio a uma geração perversa. Estamos nomundo, mas não somos do mundo (1 Jo 2.15-17). Estamos nomundo para interferir positivamente, contudo o mundo tem influen-ciado as igrejas negativamente. Temos nos colocado em pé deigualdade com o mundo. Barateamos o ser cristão no Ocidente.Barateamos a prática do Batismo e da Ceia. Barateamos a práticado ensino confirmatório. E o resultado? Igrejas amorfas, letárgicasde um lado. E do outro, Igrejas que apelam para um discursoemocionalista e curandeirista que passa bem longe da teologia cris-tã. Assim fica difícil impactar o mundo como acontecia com a igrejaprimitiva (At 8.4).

Precisamos fazer o retorno fundamental à Bíblia e nela seu con-teúdo essencial: Jesus. E sobre este Jesus, a nossa geração cristãdo século XXI deve lembrar das palavras de Pedro e João no livrode Atos: “Nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos eouvimos” (At 4.20). E lá está ele convocando-nos ao discipulado:“Vem e segue-me”. “Vai andando atrás de mim! Eis tudo. Segui-lo,eis uma coisa sem conteúdo. Isso de fato não constitui um progra-ma de vida cuja realização fizesse sentido; não é um objetivo, um

DÉCIMO OITAVO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 144: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

144

ideal pelo qual se deva lutar; nem é algo que, pelos padrões huma-nos, mereça o sacrifício de qualquer coisa ou de nós próprios. Eque acontece? O homem que foi chamado, larga tudo quanto tem,não para fazer algo que se revista de valor especial, mas simples-mente por causa daquele chamado, por, de outro modo, não poderseguir os passos de Jesus... O discípulo é arrancado de sua relativasegurança de vida e lançado à incerteza (isto é, na verdade, paraa absoluta segurança e proteção da comunhão com Jesus); deuma situação previsível e calculável (isto é, de uma situação total-mente imprevisível) para dentro do imprevisível e fortuito (na ver-dade, para dentro do que é unicamente necessário e previsível);do domínio das possibilidades finitas (isto é, na realidade as possi-bilidades infinitas) para o domínio das possibilidade infinitas (isto é,para a única realidade libertadora)” (Dietrich Bonhoeffer).

Por outro lado, o cristão que experimenta servir melhor a Jesus,seu Salvador, está sempre consciente - sem arranjar nisso descul-pa ou escusa – de ser aquele que falha, aquele que fica atrás emrelação aos dez mandamentos e ao resumo da lei: Ama a Deusacima de todas as coisas e o próximo com a ti mesmo (Rm 13.8-9).Assim, ser testemunha, discípulo de Jesus hoje, ser a geração queconhece a Deus também implica naquele reconhecimento de queestamos sempre envolvidos pelo amor de Deus que nos amou semlimites em Seu Filho Jesus. Implica ter sempre consciência de serpecador, mas que sempre de novo “sai sempre de sua própria falhae se volta para o que lhe está adiante” (Fp 3.12-16). Envolvidopela graça de Deus, o cristão sabe-se escravo e liberto que sem-pre se deve refugiar na graça de Deus. É sempre aquele que jamaisfaz cálculos perante Deus, mas, pelo contrário, entrega a Deus e àsua graça todo cálculo, todo esforço, toda provação que se lheimponha. É sempre aquele simul justus et peccator, como diziamAgostinho e Lutero.

Gelson Neri BourckhardtUberlândia, MG

Page 145: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

145

APONTAMENTOS EXEGÉTICOS (GRAMATICAIS E LÓGICOS)

Juízes é o texto por excelência da Teocracia, isto é, a formacomo Deus quer que seu povo seja conduzido depois de liberto doEgito. A forma de Deus “governar” e “conduzir” o seu povo é ca-racterizada por líderes que surgem para situações específicas deseu povo e para libertá-lo da opressão sofrida.

Os grandes temas do livro estão circunscritos a um aparenteciclo em Israel: fidelidade, infidelidade, ira divina e arrependimentodo povo. Dentro desta perspectiva cíclica, Deus tem falado ao seupovo, utilizando-se de seus “guias”, os juízes.

O cântico de Débora é a parte final deste ciclo em mais ummomento da história de Israel. A descrição do que acontece comIsrael começa no capítulo 4. A opressão sobre Israel já dura 20anos (v.3). Débora “julgava o povo naquela época” (v.4). Ela con-voca Baraque para que conduza a libertação do povo (v. 6).

O poema cântico de Débora pode ser dividido nas seguintespartes: a introdução, vv. 2-5, na qual são dadas glórias a Deuspela salvação; nos vv. 6-8 temos a descrição da situação de opressãodo povo; o poema segue convidando a todos para glorificar o nomede Deus porque o mal já deixou de existir, nos vv. 9-11; a formacomo ocorreu a vitória e quem são os vitoriosos é narrado nos vv.12-23; o destino final dos inimigos e o reinado de Deus em meio aoseu povo é descrito nos vv. 24-31.

APONTAMENTOS HOMILÉTICOS (RETÓRICOS)

Uma das situações mais constrangedoras para o pregador éanunciar a obra de Deus no domingo e na segunda perceber queaquilo não parece fazer sentido na vida de seu povo. É nesta linhaque conduzo as reflexões homiléticas para esta perícope.

Diferente do período dos Reis, os Juízes como anunciadores daobra de Deus foram circunstanciais na vida de Israel. Assim tam-bém é o ministério pastoral. Ele precisa estar presente na vida daspessoas quando há necessidade. A institucionalização do ministé-rio pode ser mais fácil na administração, mas não se pode perder

DÉCIMO NONO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJUÍZES 5

Page 146: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

146

de vista as circunstâncias da vida que exigem do ministério proxi-midade de seu povo.

A poesia como manifestação artística (aliás, há muitos exem-plos desta atividade no texto bíblico: Êx 15; Nm 21; Dt 32) é umadas belas formas de glorificar a Deus e dizer como Débora disse:“os que te amam brilham como o sol quando se levanta no seuesplendor” (v.31).

A teologia luterana tem seu proprium nesta dimensão circuns-tancial (e não institucional). O povo de Deus é identificado na suacaminhada rumo à eternidade e não tanto num determinismo naci-onal (uma vez cristão, sempre cristão). A dimensão do simultanea-mente justo e pecador transparece no poema e que precisa serampliado para que no final possa se dar glórias a Deus como Déborao fez.

O ministério, a forma de Deus comunicar sua vontade para opovo oprimido pelo pecado, tempera e ilumina (Sermão do Monte).Assim são os Juízes – eles se levantam para proclamar a mãovitoriosa de Deus sobre seus inimigos. Portanto, temos diante denós um belo texto para refletirmos sobre o papel do ministério, oconteúdo do seu anúncio, os resultados esperados (mesmo quecircunstanciais) e o desafio de repetidamente retomar o anúncio.

Clóvis Jair PrunzelSão Leopoldo, RS

Page 147: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

147

Israel foi estabelecido em Canaã no ministério de Josué. Juízesdescreve a vida de Israel na terra prometida, desde a morte deJosué até o início da monarquia. Muitas promessas que Deus fezaos patriarcas, aos pais, no deserto, se cumpriram. Agora Israelpodia descansar na terra que Deus providenciou. Deus havia dadomuitas maravilhas ao seu povo. Talvez por estar inseguro religiosae politicamente sobre questões na formação da nação, Israel seesquecia dos atos de Deus em seu favor. Isso fazia a nação cair emconstante idolatria e nas mãos das nações vizinhas. O círculo vici-oso em Juízes - desobediência e apostasia, opressão estrangeiracomo meio de chamar a atenção de Israel, o sofrimento e a agonia,a salvação e o livramento gracioso de Deus – contrasta a infideli-dade de Israel com a fidelidade e misericórdia de Deus à sua alian-ça, renovada a cada patriarca e nos momentos históricos impor-tantes de Israel. Estes dias são descritos assim: “Naqueles dias[...] cada qual fazia o que achava mais reto” (Jz 17.6). Adorava-se Baal por um lado e, por outro, Deus governava o povo de suaaliança com sua graça.

Israel fez novamente escolhas ruins. Deus o entrega nas mãosdos midianitas por sete anos (1). Neste momento, até o sustentode Israel precisa ser escondido em covas nos montes dos midianistas.Israel, novamente debilitado, pede a Deus o livramento. Deus cha-ma Gideão (11) que, na dúvida, diz: “Ai, senhor meu! Se o SENHORé conosco, por que nos sobreveio tudo isto? E que é feito de todasas suas maravilhas que nossos pais nos contaram, dizendo: Nãonos fez o SENHOR subir do Egito? Porém, agora, o SENHOR nosdesamparou e nos entregou nas mãos dos midianitas” (13,14).Gideão, com receio, argumenta ser o mais pobre da tribo (15), temseu chamado atestado por um milagre (21-24), destrói o altar deBaal e constrói um dedicado a Deus (25-27). Ainda temeroso antesda guerra, conversa com Deus, recebendo duas confirmações deque foi chamado por Deus (36-40); por fim, lidera o exército evence os midianitas. Deus tem muita paciência e, em sua miseri-córdia, sempre confirma suas promessas em meio ao caos e àdescrença.

VIGÉSIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

JUÍZES 6

O que é feito de todas as suas maravilhasque os pais nos contaram?

Page 148: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

148

Nos acontecimentos envolvendo Gideão, a graça de Deus éevidente da seguinte forma: foi por meio da misericórdia de Deusque Israel não foi absorvido pelas nações pagãs. O mesmo valepara nós: não fomos consumidos porque Jesus nos resgatou. Osjuízes, como libertadores políticos e religiosos, prefiguram Jesuscomo Salvador e Conselheiro do seu povo. Jesus como “juiz” aqui éo Libertador e Salvador na primeira vinda, ao mesmo tempo, o Juizque julga os vivos e os mortos da segunda vinda. É importanteobservar que “maravilhas” pode ser entendido também como “açãosacramental” de Deus em favor do seu povo (cf. Mt 21.15) e nãosó do ponto de vista “teofânico”, pois o termo em hebraico e emgrego na Septuaginta nos fornece essa possibilidade.

NO DESESPERO, AGONIA E QUASE ABANDONANDO TUDO ...

I. Não perca de vista a Palavra e o Espírito Santo...A. Concedido1. no Santo Batismo que nos tornou filhos de Deus;2. na pregação da Palavra do doce Evangelho concedido em

Cristo, que nos recebeu e perdoa tudo que incomoda nossa cons-ciência;

3. na Ceia que nos fortalece a fé, renova santidade, concedevida e antecipa a comunhão celestial.

B. Quando conversamos sobre as coisas terrenas da igreja,pois nossa pecaminosidade

1. gosta de julgar a “igreja”, irmãos, líderes, pastores e etc.a. e depois esperar que nossos filhos, amigos, e os que estão

na dúvida permaneçam na igreja;b. que consigam ver as maravilhas de Deus que os pais contaram.2. Deseja uma igreja e estruturaa. que concorde com nossas obras e pensamentos - que nos dê

o que pensamos ser melhor para nossas vidas;b. que não nos comprometa.3. Gosta de pensar que estamos prontos e não temos mais o

que aprender, assim,a. nos encontramos com corações frios, fechados, sem nenhu-

ma necessidade de aprender;b. sobrando muito pouco espaço para Deus agir com seu mara-

vilhoso Evangelho – esse mesmo que os pais nos contaram.II. Não se precipite, pensando que não somos abençoados

em nossa igreja

Page 149: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

149

A. Faça o caminho de volta,1. até a escola bíblica – lembram dos momentos com Jesus,

outras crianças e professor (a);2. até a instrução e juventude – lembra desses dias?3. até as leituras bíblicas nos cultos, estudos e vida devocional.B. Retorne às maravilhas que os pais - mesmo que com suas

limitações - lhe contaram e ensinaram1. encarar a realidade e ver as coisas como elas são nos desa-

fios da vida adulta;2. Relacionar nossa fé com o mundo, com os dons, com os

talentos e com os papéis que Jesus nos chamou e nos concedeu.

O QUE É FEITO DAS MARAVILHAS – O EVANGELHO – QUE OSPAIS NOS CONTARAM?

III. Na dúvida, converse com Deus, seu amigo misericor-dioso – lembra quem morreu por você e não leva seus peca-dos em conta?

A. Deus não é impassível, indiferente e distante aos seus sofri-mentos e dúvidas

1. muita aflição nossa resulta do erro de julgarmos o poder deDeus e valorizar as humanas;

2. muito de nossa esterilidade vem do “calar” a voz de Cristo –o seu gracioso Evangelho.

B. Deus sempre confirma suas promessas em meio a nossasincertezas e dúvidas

1. como fez com Gideão (6.21-24; 36-40);2. como tem feito conosco, que apesar de nós e nossa dureza,

sempre mostra que não fomos consumidos porque Jesus nos resga-tou.

José Aragão da SilvaGuará II - Brasília, DF

VIGÉSIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 150: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

150

CONTEXTO

O povo de Israel, afastado de Deus, estava dominado pelosmidianitas. O Anjo do Senhor apresenta-se a Gideão convocando-opara lutar por Israel. Gideão derruba um altar a Baal em Ofra epassa a ser chamado “Jerubaal” (6.32).

Vê-se novamente o constante cuidado de Deus em tirar seupovo da idolatria e a vitória militar mostraria ao povo o poder doverdadeiro e único Deus.

Gideão é citado como herói da fé (Hb 11.32) e a derrota dosmidianitas é citada no Sl 83.9 e em Is 10.26.

TEXTO

A. A AscensãoJz 7.2 – RA traz “gloriar contra mim” e a NTLH prefere “poderiam

pensar que venceram sem a minha ajuda”. Temos aqui uma açãopreventiva de Deus para que o povo fosse convencido de suadependência dele e não se orgulhasse em sua própria força. Veja Jr9.23.

Jz 7.9 – O próprio Deus ordena o ataque militar contra os midianitase garante a vitória. Desde o início Deus se revela o condutor dahistória do povo. Veja Jz 6.16.

B. A Armadilha8.27 – Após negar a ascensão política pessoal (8.22-23), Gideão

usa ouro para fazer um dApae. O mesmo termo aparece em Êx 28.4ssna descrição das vestes sacerdotais.

Gesenius traz como:1. “uma vestimenta do sumo sacerdote, vestida sobre a túnica

[...] Além dos sumo sacerdotes, outros usaram tal vestimenta;Davi, por exemplo, quando liderou a dança sagrada,

VIGÉSIMO PRIMEIRO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJUÍZES 8

Gideão, de herói escolhido por Deus a vilão (7.2,9 e 8.27)

Page 151: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

151

2Sm 6.14 (dB dApïae rWgàx dwId̈w); e Samuel, servo do sumo sacerdo-te, 1Sm 2.18,28; e também sacerdotes de ordem inferior.

2. “estátua, imagem de um ídolo, Jz 8.27; aparentemente tam-bém Jz 17.5; 18/17-20; Os 3.3.

Almeida (RA) opta pelo primeiro significado e traduz como“estola sacerdotal”; já a NTLH (SBB) prefere “ídolo”.

O dApa era especialmente usado pelo sumo sacerdote quandoDeus era consultado usando-se o Urim e o Tumim (1Sm 23.9; 30.7).O profeta Oséias refere-se a ele em Os 3.4 (numa aparente relaçãocom idolatria, como em Jz 17.5). Vários autores divergem sobre osignificado em Jz 8.27.

Qual o objetivo de Gideão com o dApa? Provavelmente usá-locomo instrumento de consulta ao Senhor. Também não é dito quemfez uso do objeto, se um sacerdote local ou se um sumo sacerdoteenviado a Ofra, ou se o próprio Gideão investiu-se de autoridadesacerdotal. Aliás, Keil e Delitzsch vêem nesta última suposição aprovável “armadilha”: “Seu pecado, portanto, consistiu principal-mente na transgressão da prerrogativa do sacerdócio araônico, afas-tando o povo do santuário legítimo, e assim não apenas minando aunião teocrática de Israel, mas também dando, após sua morte, umimpulso para a reincidência da nação ao culto a Baal”.

Mas a conseqüência é que todo o “Israel se prostitui ali após ela(a estola)” (8.27b), sendo o dApa um laço, armadilha, para Gideão esua gente. O que nos leva a inferir que, mesmo com boas inten-ções de culto e testemunho por parte de Gideão, a tendência deIsrael à idolatria tornou o objeto (ídolo de ouro ou estola, nãoimporta) um desvio da verdadeira adoração.

Um laço, uma armadilha vqE)Am – 1. literalmente usado quando sefala em pegar pássaros, por exemplo; e 2. metaforicamente usadocomo causa de injúria (Gesenius) como em Êx 10.7: “Até quandonos será por cilada este homem?”, ou seja, nos trará mal, desgraça.Veja também Êx 23.33; 34.12; Dt 7.16; Jo 23.13; Is 8.15 e Jz 2.3

Assim, mesmo não sendo possível concluir sobre o objeto em si(dApa) e sua utilização em Ofra, nos é feito saber as conseqüênciasdo ato de Gideão: desvio do culto verdadeiro a Deus.

PROPOSTA HOMILÉTICA

Uma maneira de aplicar o texto é fazer um contraponto entre oculto verdadeiro a Deus e a tendência humana à idolatria, mesmodiante dos feitos miraculosos de Deus. O papel do líder/autoridade

VIGÉSIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 152: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

152

pode ser destacado e é necessário sublinhar a maravilhosa com-paixão e paciência de Deus que, mesmo traído, abençoa e enviaum líder perfeito, seu próprio filho Jesus, para garantir salvação anós.

A vitória de Deus por nósA. Deus guia para a vitória1. Na história do povo de Israel

1.1 Escolhendo líderes (Jz 6.14) – Heróis da fé (Hb 11)1.2 Intervindo na história (Jz 7) com feitos miraculosos.

B. O líder humano falha1. Usando mal a autoridade conferida (Jz 8.27)

1.1 Mesmo com boas intenções (Jz 8.22-23), pode haverdesvio para a idolatria.1.2 Há necessidade da avaliação constante sob a Pala-vra de Deus para evitar as quedas e o sofrimento de todoo povo (Jz 7.2).

C. Deus dá a vitória por amor

D. Na nossa história1. Ele ama seu povo e intervém, mesmo com as falhas humanas.2. Ele envia o Salvador, que é o líder perfeito até no sofrimento(1Co 15.57).3. Mostra o verdadeiro culto (Jo 4.23-24) ao Deus da vitória.

Fernando H. HufSão Paulo, SP

Page 153: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

153

CONTEXTO

O autor de Juízes (provavelmente o profeta Samuel) relata commaiores detalhes a história de Sansão (Jz 13-16) em relação aosdemais juízes de Israel. A história do nascimento de Sansão ésemelhante à de Isaque, Samuel e João Batista. Ao nascer, é dedi-cado como nazireu (Nm 6.1-21), devendo se abster de bebidaalcoólica e de tudo que se possa fazer da uva, jamais cortaria ocabelo e nem se aproximaria de um cadáver. Mas durante sua vidaestas leis nem sempre foram seguidas, participava de banquetes(Jz 14.10), teve contato com cadáveres (Jz 14.8,9 e 15.15) e atédeixou cortar o seu cabelo (Jz 16.19).

A vida de Sansão foi marcada por altos e baixos. O Espírito doSENHOR estava presente em diversos momentos de sua vida (Jz13.25; 14.6; 14.19 e 15.14). É mencionado como um dos grandesheróis da fé (Hb 12.33). Também é marcada por façanhas como:matar um leão com suas próprias mãos (Jz 14.5ss.), matar trintahomens para ter suas túnicas (Jz 14.19), caçar trezentas raposaspara incendiar a plantação de trigo dos filisteus como tambémmatando muitos deles (Jz 15.4-8), com a queixada de um jumentomatar mil homens (Jz 15.15), arrancar o portão da cidade de Gazae carregá-lo em torno de sessenta e cinco quilômetros (Jz 16.3),derrubar o templo do deus Dagom com três mil filisteus (Jz 16.27),matando mais gente em sua morte do que durante a sua vida (Jz16.30). Este foi Sansão, um grande herói nacional individualista,incapaz de libertar Israel do poder dos filisteus como uma nação(Jz 15.11ss.).

Por outro lado, Sansão não teve (ou não quis ter) sorte com asmulheres. Durante a festa de seu casamento, lança um enigmabaseado num fato que vivenciou, porém sua esposa insiste tantoque ele acaba dando a resposta e perdendo a aposta (Jz 14.17).Em Gaza, relaciona-se com uma prostituta (Jz 16.1-3) e, por fim,conhece Dalila (Jz 16.4-22), que insistia em saber o segredo desua força excepcional até tê-lo conseguido. Além disso, é rejeitado

VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJUÍZES 15 e 16

Sansão: o poder de Deus na fragilidade humana

Page 154: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

154

e entregue pelos próprios compatriotas aos filisteus (Jz 15.11-12),e o orgulho e a confiança em si tomaram conta (Jz 16.20).

Sansão é filho do seu tempo, de um lado, pouco controlavaseus instintos; por outro lado, confiava em Deus. Uma figura tantopositiva como negativa, ou seja, justo e pecador.

TEXTO

Jz 15.1-8: Após a colheita do trigo (fim de maio e início de junho),coincidentemente com a festa de Pentecostes, Sansão já mais sere-no, foi visitar a sua mulher levando um cabrito, talvez para acalmá-la.Mas seu sogro, descontente com sua atitude, já a tinha oferecido aoseu padrinho. Para remediar, lhe oferece a filha mais nova. Para San-são, isso se torna uma justificativa para agir e se vingar. Caçou tre-zentas raposas (mas é de se admitir que fossem chacais, por seremmais fáceis de se capturar e por viverem em bandos, enquanto que asraposas viviam solitariamente) e queima não só todo o trigo, comotambém as oliveiras. Os filisteus se vingam queimando a sua mulher eseu sogro, pois era mais fácil se vingar contra eles do que capturarSansão. A esposa de Sansão teria sido sábia se logo tivesse informa-do dessa ameaça, durante a festa do casamento. Como uma vingan-ça atrai outra vingança, depois de queimar o trigo e as oliveiras, ter aesposa e o sogro queimados, Sansão atacou e matou muitos filisteus(ARA: grande carnificina).

Jz 15.9-20: Em resposta, um batalhão de mil homens foi até Leí.O que causa estranheza é a passividade dos israelitas que se jun-tam em três mil homens para entregar Sansão e não para ficar doseu lado e defendê-lo! Com a certeza de que não seria morto pelosisraelitas, deixa-se amarrar e ser levado aos filisteus, que em gran-de alegria vieram ao seu encontro. Contudo Sansão é fortalecidopelo Espírito do SENHOR e com uma queixada (mandíbula) de ju-mento úmida matou mil homens, visto que se fosse mais velha,seria mais seca e frágil. O cântico de Sansão foi um trocadilho comas palavras “jumento” e “montão”, que no hebraico ambas as pala-vras são parecidas, mas que na tradução ao português se perde agraça (como por exemplo, “esganar” e “enganar”). Depois da ex-traordinária batalha e vitória, o homem que se entregou sem medo,agora teme a morte pela sede e pelo retorno dos filisteus. MasDeus, em graça, amor e misericórdia, deixa de punir pela sua petu-lância e desesperança, e atende suas necessidades corporais.

Page 155: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

155

Jz 16.1-3: Sansão vai para Gaza, a cidade mais ao sul das cincocidades filistéias, e lá tem relações com uma prostituta. Homemcuja força física é monumental tem fraquezas que o levariam àqueda final com Dalila. Assim como Sansão, outros personagensbíblicos tiveram, bem como nós também temos. Sobre a questãoda dupla referência de “toda a noite” (v. 2), Kittel substitui oprimeiro “toda a noite” para “todo o dia” de forma a compreender-mos assim: embora os soldados de Gaza estivessem de vigia àcidade durante todo o dia, à noite diminuía essa vigilância, confia-dos na segurança do portão.1 Mas Sansão os surpreende durante anoite, arranca e carrega o portão por volta de sessenta e cincoquilômetros.

Jz 16.4-22: A sua primeira esposa lhe roubara a resposta doenigma (Jz 14.12-17), agora, a sua segunda paixão, Dalila (nomesemítico que significa “dedicada”) irá descobrir o maior segredo desua vida, pois Sansão não era muito prudente e responsável, nãoguardava as leis do nazireado e se apaixonava por mulheres es-trangeiras. De certa forma, os filisteus respeitavam e temiam San-são, mas a sua figura tornara-se numa ameaça nacional, por issoera preciso eliminá-lo. Para tal fim, os cinco príncipes filisteus con-trataram Dalila para descobrir o segredo de sua força, e por causado grande risco que ela iria correr, um grande suborno lhe seriapago (cada siclo era equivalente a uma de medida de 11,424g).

Valendo-se da paixão cega que Sansão sentia por ela, por trêsvezes Dalila tenta descobrir o segredo, mas ele encara isso numabrincadeira. A primeira com “sete tendões frescos” (v. 7 - ARA), asegunda com “cordas novas” (v. 11 - ARA) e a terceira (e maisperigosa por envolver seus cabelos) com “sete tranças e um pinode tear” (v. 13 - ARA). Apelando a um sentimentalismo hipócrita efalso, Dalila insistiu até conseguir a verdade, fazendo com queSansão perdesse a paciência e lhe revelasse o mistério, custando-lhe muito caro. Não somente por que foi traído e teve seus cabeloscortados (não que o cabelo era a fonte de sua força, a fonteestava em Deus, mas o cabelo não cortado simbolizava a força e apresença de Deus), mas a autoconfiança subira à sua cabeça (v.20: “Sairei ainda esta vez como dantes e me livrarei” - ARA).Tendo a força de um homem normal, não pôde resistir e teve seus

1 Conforme BRUCE, F. F. Juízes. In: DAVIDSON, F. (ed.) O novo comentário da Bíblia. 3. ed.São Paulo: Vida Nova, 2002, p. 291; e CUNDAL, Arthur E. Juízes: introdução e comen-tário. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1986, pp. 166-7.

VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 156: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

156

olhos furados e o colocaram a trabalhar no moinho da prisão. Mas agraça de Deus se faz presente em todas as situações. Agora ogrande Sansão estava cego, preso e sendo a força motriz de ummoinho. Tanto os filisteus, e talvez o próprio Sansão, esqueceramde um pequeno detalhe que fez toda a diferença: o cabelo come-çou a crescer de novo (v. 22).

Jz 16.23-31: Os filisteus se reuniram para um culto nacional deagradecimento ao deus Dagom (deus semita da vegetação e doscereais). Geralmente, nestas celebrações, o vinho corria livre e,naquela ocasião, o terrível inimigo da nação estava preso e nãoapresentava nenhum risco, logo, porque não se divertir com San-são e humilhá-lo mais ainda?

Agarrado a uma coluna, Sansão chamou a Deus (arq). Esseverbo tem a conotação de chamar alguém para uma tarefa especí-fica e o uso mais destacado diz respeito a invocar o nome deDeus.2 Sua última oração é marcada pela invocação de Adonai,Yahweh e Elohim, para que desse força a fim de se vingar pelaperda de seus olhos, a sua confiança estava depositada em Deus enão mais em si mesmo. Seu cadáver foi respeitado devido a suasfaçanhas e sua família o buscou para ser sepultado no túmulo deManoá, seu pai, no vale de Soreque, cenário de suas façanhas etambém de fracassos. Sua vida não foi em vão, mas retardou odomínio filisteu.

PROPOSTA HOMILÉTICA

Como estamos em Pentecostes, período marcado pelo cresci-mento da igreja através da ação de Deus, a história da vida deSansão também reafirma e demonstra que seu êxito e sucessoforam devido à ação de Deus em sua vida. Sem o poder de Deus,Sansão era frágil e incapaz.

Devido à sua irresponsabilidade, orgulho e confiança em si (ounos seus cabelos), Sansão foi abandonado por Deus porque pensa-va que a sua força vinha de seus cabelos (v. 17). Segundo Keil eDelitzsch, a sua força sobre-humana não residia no cabelo delecomo cabelo, mas no fato de que Yahweh era com ou perto dele.

2 Para maiores explicações, veja: HARRIS, R. Laird (org.). Dicionário internacional de teolo-gia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999, pp.1364-5, verbete: arq.

Page 157: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

157

Mas Yahweh estava com ele tão logo como manteve sua condiçãode nazireu.3 Este “abandono” de Deus fez com que Sansão refletis-se que ele também necessita viver a partir da graça e da misericór-dia divina. Como Sansão, nós também somos vulneráveis e sujeitosa nossa fragilidade.

Mas Deus foi fiel e continuou com ele. Fez com que o cabelologo crescesse (v. 22) e que os filisteus nem se dessem contadeste fato. Algo tão simples, pequeno e sem importância, que, noentanto, fizesse Sansão pensar na misericórdia e graça de Deus,visto que o cabelo simbolizava a presença e o poder de Deus.

Tema: O poder de Deus na fragilidade humana

I - Fragilidade humanaSansão: confiança em si e nos seus cabelos como fatores de-

terminantes para suas vitórias.Nós: a confiança em si e o desperceber detalhes que mostram a

fragilidade humana.

II - Poder de DeusSansão: crescimento do cabeloNós: pequenos detalhes em nossa vida que fazem toda a dife-

rença, onde o poder de Deus se demonstra indiretamente (PrimeiroArtigo).

Marcos Jair FesterSão Leopoldo, RS

3 KEIL, C. F. e DELITZSCH, F. Commentary on the Old Testament.Grand Rapids: Eerdmans, [s. d.], vol. 2, p. 423.

VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 158: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

158

CONTEXTO

O livro de Juízes, com suas particularidades, é o livro onde Deusapresenta os líderes militares e civis que Ele escolheu para livrarIsrael de seus opressores. Esses juízes, no entanto, não tinham asclassificações e formações para julgar que encontramos hoje emum juiz. Porém, foram escolhidos por Deus para tal e capacitadospor Ele.

No livro de Juízes encontramos o povo de Israel em uma grandedesobediência espiritual (1.1-3.6), numa destruição política da terra(3.7-16.31) e em uma depravação moral na terra (17.1-21.25), eesta última é a que nos interessa por hora.

O capítulo 19 de Juízes relata a depravação moral que o povovivia. Um levita havia tomado sua concubina e viajavam juntospara Efraim. No caminho procuraram abrigo em Gibeá, onde habita-vam muitos israelitas. Lá o levita imaginava encontrar abrigo segu-ro. Na verdade, com grande dificuldade alguém lhe ofereceu lugar.Um velho de Efraim que migrara para Gibeá lhe concedeu descansoem sua casa.

O que aconteceu daí em diante revela como vivia o povo deIsrael. Alguns homens vieram à casa do velho para ter relaçõessexuais com o levita. O velho ofereceu a sua filha virgem e aconcubina do levita. Os homens não aceitaram e o velho entregoua concubina do levita a eles. Os homens a estupraram e a deixaramà morte. Depois de tamanha atrocidade, o levita repartiu o corpodela em doze pedaços e enviou às tribos de Israel.

Essa era a cena de pano de fundo do final do livro de Juízes. Opovo que vivia em pecado e já não sabia mais o que era certo e oque era errado. Um ato que ficou caracterizado por muito tempocomo símbolo do caráter pecaminoso de Israel (cf. Os 9.9 e 10.9).

TEXTO

Juízes 20 e 21 relatam o resultado dessa tragédia em Gibeá. Nocapítulo 20 vemos a punição para os culpados. A lei da aliança

VIGÉSIMO TERCEIRO DOMINGOAPÓS PENTECOSTESJUÍZES 20 e 21

Juízo e perdão entre o povo de Deus

Page 159: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

159

exigia isso, que as tribos punissem todos os culpados em seu meiopara que não se tornassem eles próprios objetos da ira de Deus.

Seria simples a história, como em outros momentos, se a tribode Benjamin não estivesse a favor dos culpados (20.1-17). Como oconcerto com Deus era de que as pessoas culpadas deveriam serpunidas, a tribo de Benjamin, concordando com os estupradores,estava assinando sua carta de culpa, a sua sentença.

O Senhor então instruiu os homens de Israel à batalha contraseus irmãos de sangue, a tribo de Benjamin. Mas nas duas primei-ras tentativas os israelitas tiveram numerosas baixas, talvez umaforma de mostrar a Israel que Deus está no comando, e então naterceira Deus promete a vitória a eles. De fato, isso acontece.Israel vence e destrói, com a exceção de seiscentos sobreviven-tes, toda a tribo de Benjamin (20.18-48). Esse foi o julgamentojusto diante do povo: a morte dos culpados.

Já o capítulo 21 mostra um povo aos prantos pela tribo destruída.Eles precisavam manter a tribo viva com os seiscentos homens queficaram vivos. Mas nenhuma das onze tribos poderia dar suas mulhe-res a eles, pois haviam jurado em Mispa. Mas também decidiram quequem não viesse a essa assembléia seria morto (v.5). Eles chegaramà conclusão de que ninguém de Jades-Gileade esteve na assembléia.Doze mil homens atacaram Jades-Gileade e arrumaram em torno dequatrocentas mulheres para os seiscentos homens (21.1-18).

A busca pelas duzentas que faltavam foi “encerrada” pelosanciãos da congregação (v.16). Eles disseram que em Siló, de anoem ano, acontecia uma festa. Nesta festa, a festa da vindima, asmulheres que não tinham maridos procuravam por um. Uma ótimachance para eles. Os homens roubaram mais duzentas mulheres(21.19-24) e assim os seiscentos homens poderiam continuar atribo de Benjamin.

O texto de Juízes 21 e o livro como um todo termina com averdade e o espírito da época: “Naqueles dias, não havia rei emIsrael; cada um fazia o que achava mais reto” (v. 25).

SUGESTÕES HOMILÉTICAS

O texto tem como grande tema “O juízo e o perdão entre o povode Deus”. Não é difícil separar o juízo entre o povo (capítulo 20) eo perdão (capítulo 21). O povo que vivia uma grande imoralidadefoi punido por Deus pelas mãos de seus próprios irmãos. Mas estemesmo povo que foi punido recebeu o perdão de seus irmãos.

Page 160: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

160

Notem que o povo ficou, talvez pela primeira vez, unido “como sefora um só homem” (20.1).

Nesse período que estamos, logo após a Reforma, não podemosdeixar de lembrar o que o reformador Martinho Lutero passou porcausa da justiça de Deus. Lutero não entendia como Deus poderiaser justo em relação ao homem. Tudo acabaria como no texto deJuízes, onde, por causa de alguns que pecaram, a tribo toda foimorta! Essa é a justiça de Deus. Como dizia nosso mestre Dr.Deomar Roos (in memoriam): “No Antigo Testamento Deus mostraque com Ele não se brinca, mas o perdão sempre é oferecido”. Foiisso que Lutero também percebeu. Sempre há perdão para aqueleque vê a justiça de Deus em Jesus. No texto, os culpados sãoentregues à morte. Hoje os culpados também são entregues àmorte, mas a morte de Jesus. Essa é justiça de Deus.

O fato é que Benjamin acobertou os culpados. Foi cúmplice damorte da concubina do levita. E o crime precisava de castigo. Nãoreconhecer, acobertar, esconder e até lutar contra aquele que nosacusa (lei de Deus) é normal. Por isso a tribo de Benjamin foicastigada, por não reconhecer o seu erro.

Sem forçar, podemos ainda encontrar no versículo final de Juízesuma ponte para Cristo e os dias de hoje: “Naqueles dias, não haviarei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto”. Após esteperíodo, Deus instituiu reis na terra, para governar aqui, nestemundo. Mas podemos ter uma visão proléptica de Jesus aqui. Jesusé Rei. Não deste mundo, mas sendo Rei, pode afirmar, como o fezem João 14.6 que é o “caminho, a verdade e a vida”, e tambémafirmar em Mateus 22.34-40 (Marcos 12.28-34 e Lucas 10.25-28)que “amar a Deus e ao próximo” são os dois maiores mandamentos.Portanto, hoje, em meio ao caos que vivemos, temos um Rei quemostra aos seus súditos como fazer. O povo já não precisa fazer oque acha mais reto, basta olhar para a cruz.

Sugestão de tema: A justiça de Deus1. Destrói o pecado – velho homem, diabo e mundo.2. Ama o pecador – em Cristo.

Paulo Sérgio Kühl Novo Hamburgo, RS

Page 161: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

161

Elias não entendeu mal que Deus, na sua justiça final, podemandar o fogo destruir as maldades humanas. Deus pode mostrarque há limites que não podem jamais ser ultrapassados sem asconseqüências que lhes estão apegadas. Em vários momentos istoaconteceu.

Para buscarmos um contraponto, lembremos da cena em queAbraão intercede a favor de Sodoma e Gomorra. Enquanto que umcrente parece querer fazer com que Deus mude de idéia, Deus estádeterminado a fazer destas cidades um marco para a memória dahumanidade.

Em tempos de pós-modernidade, que alguns já chamam de pós-humanidade, é importante que a igreja afine a sua visão de mundoe de história com a perspectiva correta do que significa humani-dade. Pode-se dizer que nunca antes a sociedade tomou tantaconsciência do poder destruidor do ser humano. Nunca antes selevantaram vozes tão proeminentes para denunciar a corrida deautodestruição da humanidade. Mas também nunca tivemos tantomedo de que este processo não tenha mais reversão.

Deus não tem mais necessidade de anunciar o juízo sobre ahumanidade mandando fogo dos céus, nem Elias necessita maislevantar a sua espada para demarcar o território entre o cultoao mal e o culto a Deus. A humanidade clama pelo bem e pelapaz, mas nada efetivamente faz contra a corrupção, a explora-ção do homem pelo homem, do aviltamento dos valores morais efamiliares, a não ser o discurso hipócrita de quem somente vêmal no outro e nunca reconhece o mal em si e nas própriasatitudes. O culto ao Ego, ao meu, ao consumo, ao meu direito emeu prazer é a nova roupagem e do culto a Baal. Templos nãolhe faltam.

Onde estão os profetas que, a exemplo de Elias, podem orarpara que Deus dê sinais da sua presença para que o povo reconhe-ça que “só o SENHOR é Deus!”? Onde estão homens como Abraão,que reconhecem que Deus não pode estender sua paciência parasempre, mas que, ainda assim, buscam a sua misericórdia?

Jesus ensinou os seus discípulos a fazerem a leitura dos sinais

VIGÉSIMO QUARTO DOMINGOAPÓS PENTECOSTES1 REIS 18.20-40

Só o Senhor é Deus

Page 162: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

162

da presença de Deus e do seu juízo nas guerras e rumores deguerras, nos terremotos e cataclismos, nos sinais de mudança nanatureza, “sol, lua e estrelas”.

A idolatria a Baal não é diferente da idolatria dos temposatuais. Quando Lutero afirma que “àquilo a que apegas o teucoração, aquele é o teu Deus” (CM, 1º Mandamento) nada maisestá dizendo do que Elias e cada profeta em todos os temposdenunciaram: o ídolo real não é a estátua ou a coisa em si. Oídolo está dentro de cada um que somente aceita o que lheagrada. O ídolo é aquilo a que nos apegamos. Exteriormente lhechamamos “deus”. Mas somente o adoramos naquilo em queestamos satisfeitos em como nossos desejos e ideais se reali-zam. O homem é o seu próprio deus, mascarando isto com sím-bolos externos que se chamam Baal, ou mais modernamente, “omeu direito de ser feliz”.

Anunciar o juízo de Deus, ou mesmo pedir o juízo de Deussobre esta idolatria, não é somente um desejo de Elias, mas per-tence à própria natureza da pregação de cada profeta e discípu-lo. Pois as conseqüências que acompanham esta idolatria inevi-tavelmente manifestam a cegueira humana sobre tudo que sequer como justo. A destruição da criação de Deus, o aviltamentodas condições de vida das pessoas, o estado corrupto e corruptor,a mentira e hipocrisia dos governantes, as filas vergonhosas doSUS, revelam que nada mudou desde o tempo em que os profetascomo Elias denunciavam o abandono dos pobres e das viúvas, etodas as demais injustiças que a igreja e o estado de Israel pro-moviam.

E não vamos deixar de lado tudo que se faz de mal sob odisfarce do próprio nome de Deus, utilizando a sua palavra e trans-formando o Deus das Escrituras em deboche.

E quando no Antigo Testamento vemos Deus assumir para si porboca dos profetas o envio de pestilência, as guerras, os exílios, aestiagem, as forças brutais e destruidoras na natureza destruindoas plantações e os gados, distinguimos com clareza a função doprofeta. Onde estão estes profetas hoje?

Talvez porque em muitos casos os profetas não mais distingameste Deus como Senhor ainda agora do Universo e, as pessoas, emesmo cristãos, vivam neste mundo sem se perguntarem mais mui-to por Deus. “Quem é o Senhor?” e “Onde está o Senhor” sãoperguntas que Elias tinha muito claras para si. Tanto que Deus lhedeu evidência daquilo que Ele pode fazer na sua fúria sobre opecado e a maldade idólatra mandando o fogo consumir o altar.

Page 163: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

163

Não está Deus demonstrando ainda hoje, neste momento, aresposta a tais perguntas? Ou somos nós que desaprendemos a leros sinais da sua ira contra aqueles que enganam e não falam averdade a respeito do juízo de Deus sobre tudo o que é maldade,mentira e engano com que os homens acumulam privilégios à custae em prejuízo do mais fraco?

Os sinais que revelam da ira de Deus sobre toda a maldadehumana estão hoje diante de nós como estiveram diante do povono tempo de Elias. Mas era o papel de Elias revelar que a estiageme o fogo do céu não eram meros distúrbios do tempo, ou fenôme-nos naturais à busca de uma explicação, como o cientificismo dehoje nos quer fazer crer. Elias aponta para Deus, o Senhor doscéus e da terra, e chama o povo ao arrependimento e a buscar oDeus da aliança, o Deus da salvação.

Talvez a salvação eterna e o perdão dos pecados já não signifi-quem muito exatamente porque a maldade humana, e a ira de Deussobre ela, estejam desaparecidas da consciência da pregação daigreja. Para uns, o diabo serve de explicação para todo o mal, numdiscurso perigosamente dualista. Para outros, políticas governa-mentais equivocadas são a explicação para o mal que se abatesobre a sociedade. Para outros, o mau uso dos recursos naturais éo fenômeno que carrega a culpa de grande parte da fome e damiséria.

Os 40.000 mortos no trânsito das ruas e estradas no Brasil, onúmero de assassinatos que crescem, a insegurança de quemvoluntariamente e premido pela necessidade se tranca atrás demuros e alarmes, a selvageria de torcidas dentro e fora dos está-dios de futebol, o culto ao sexo sem freios (a lista da crescentemaldade não pára por aí), em tudo se buscam explicações super-ficiais como se algum lugar do futuro tudo isto venha a ter um fime a ordem se restabeleça graças ao novo ser humano que estásurgindo.

Elias diria: Sim, tudo isto é verdade. Mas a maldade humanaimpregnada em tudo exige que se aponte para Deus que em tudoisto nos chama ao arrependimento e à fé. A maldade humana nãotem freio nem forças que a possam conter. Ela carrega em si mes-ma a própria punição de Deus. E desta situação somente Deusmesmo pode salvar o ser humano.

É sintomático que é mais simples aceitar as denúncias que osprofetas lançaram diante de Israel, seus líderes políticos e religio-sos, do que reconhecer e apontar com clareza esta situação emnosso próprio contexto atual.

VIGÉSIMO QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 164: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

164

Tema: O SENHOR é DeusPortanto:1. A falsidade de Baal deve ser apontada2. A presença do Senhor tem de ser afirmada3. O culto ao Senhor, restabelecido.

Paulo P. WeirichSão Leopoldo, RS

Page 165: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

165

CONTEXTO

Israel acabara de ter três anos de seca e fome, conforme a profe-cia de Elias. Isto foi um castigo de Deus pela idolatria do rei Acabe ede sua esposa Jezabel e do povo em geral. Estavam seguindo a Baal.Além disso, Jezabel havia matado os profetas de Deus.

Ao final dos três anos de fome, ainda acontece o dramáticoencontro entre os profetas de Baal e Elias, provando-se que oSENHOR é Deus, pois mandara fogo para o altar de Elias.

Elias ora pedindo chuva e é atendido por Deus. Terminara a seca.Mas quando Acabe contou a Jezabel tudo o que Elias fizera,

esta enviou um recado a Elias, prometendo matá-lo. Elias fogepara o deserto e, finalmente, chega até o monte Horebe ou Sinai.Lá Deus lhe aparece.

TEXTO

Elias é ameaçado de morte por Jezabel, esposa do rei Acabe.Elias fica com medo e foge para o deserto. No deserto, queixa-sediante de Deus por se sentir só e fracassado. Depois, deita-sedebaixo de uma árvore e adormece. Acorda-se tocado por um anjoque lhe pede que coma. Ele vê um pão assado e água; come ebebe, e dorme novamente. A cena se repete e Elias come nova-mente. Ele tem uma longa jornada pela frente.

Chega ao Monte Sinai. Lá Deus lhe pergunta: “Que fazes aqui,Elias?” (v. 9). Elias faz a sua queixa, de que ele é o único profetaque sobrou, pois o povo de Israel havia matado todos os profetas.

Deus manda que Elias suba ao alto do monte para ficar diantedele. E Deus mandou primeiramente um vento forte, mas ele nãoestava no vento; depois, envia um terremoto, mas Deus não esta-va no terremoto; depois veio um fogo, mas Deus também nãoestava no fogo. Finalmente Deus se faz aparecer num “cicio tran-qüilo e suave” (num “sussurro calmo e suave” – NTLH). NovamenteElias ouve a voz: “Que fazes aqui, Elias?” Elias mais uma vez lheresponde a mesma coisa.

Deus manda Elias voltar e ungir um rei para a Síria e outro para

PENÚLTIMO DOMINGODO ANO ECLESIÁSTICO1 REIS 19

Page 166: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

166

Israel. Também manda ungir a Eliseu como profeta. E Deus lhe dá umconsolo: “Também conservei em Israel sete mil, todos os joelhos quenão se dobraram a Baal, e toda boca que o não beijou” (v. 18).

APLICAÇÕES HOMILÉTICAS

- Deus está conosco mesmo que não estejamos percebendo isso.- Elias fugiu do seu lugar de trabalho e Deus lhe pergunta: “Que

fazes aqui, Elias?”- Mesmo que não estejamos fugindo para outro local, Deus pode

estar nos perguntando a cada um de nós: “Que fazes aqui?” Quefazes aqui, professor? Estás realmente interessado no teu aluno, oupassou-se mais um dia e apenas fizeste a tua obrigação, cumprindoformalmente tua tarefa de ensino? Que fazes aqui, estudante? Pas-sou-se mais um dia e apenas estiveste de corpo presente nas tuasaulas, mas não puseste o teu coração e a tua dedicação nas tare-fas que querem preparar-te para seres um instrumento eficiente nomeu reino? Que fazes aqui, pai, mãe, filho, filha, patrão, empregado?Que fazes aqui, pastor, líder de congregação, membro da igreja?Estás cumprindo tua função de luz deste mundo?

- Deus não apareceu a Elias no vento forte, nem no terremoto enem no fogo. Isto lembra o julgamento de Deus conforme a sua leidada no Sinai. Naquela vez, vários séculos antes, Deus havia esta-belecido sua aliança com Israel (Êx 19) no furacão, no terremoto eno fogo. Mas, agora, estes fenômenos precederam um cicio tran-qüilo e suave. É assim que Deus aparece agora: no sussurro calmoe suave. Deus vem a nós com seu evangelho e as pessoas sãoconvertidas a ele, não pela força da lei, mas pela suavidade doevangelho. Nesta suavidade Deus lembra a Elias que é precisovoltar e continuar sua missão. Esta nova maneira de Deus se reve-lar também acentua a diferença entre o SENHOR e Baal, que eraconhecido como o deus das tormentas, do raio e dos fenômenosmeteorológicos (Bíblia de Estudo Almeida).

PROPOSTA HOMILÉTICA

O que você está fazendo aqui?I. Foi o que Deus perguntou a Elias.II. É o que nós precisamos saber responder.

Raul BlumSão Leopoldo, RS

Page 167: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

167

CONTEXTO LITÚRGICO

O último domingo do ano da Igreja traz tradicionalmente leiturasque dirigem a atenção do povo de Deus às coisas do fim. O retornode Cristo, o grande julgamento, os novos céus e a nova terra,condenação e salvação eternas são fatos que a Escritura consideradecisivos para a vida dos crentes. Estes eventos futuros não ape-nas designam o que ainda está por vir e que por isso devem seraguardados. São fatos que colocam numa perspectiva eterna a vidadiária do povo de Deus. Os eventos cósmicos (que envolvem toda acriação) levam para uma perspectiva global o fato de que para cadaindivíduo já a morte estabelece uma definição. Na verdade, a vidadiária, confrontada pela palavra de Deus, em Cristo, coloca diantede cada pessoa os dois caminhos definitivos (Jo 3.18).

Tendo em vista esta proclamação escatológica, tanto cósmicacomo individual, é próprio que neste período do ano a mensagemdo arrependimento seja proclamada, sobretudo da graça de Deus,que em Cristo anuncia um futuro bendito para o povo de Deus. Otexto bíblico escolhido para o dia retrata uma situação na vida deum homem ligado ao povo de Deus. Sua situação vivencial de certaforma exemplifica o tratamento de Deus para com o pecador emtodos os tempos e coloca este pecador na sua vida diária sob a luzda mensagem escatológica.

TEXTO

O contexto mostra uma história muito triste relatada pelo Anti-go Testamento. Acabe, rei de Israel, cobiça a vinha de seu vizinho.Não a podendo comprar, deixa o caminho aberto para a malignidadeda esposa Jezabel. Ela, com subterfúgios, consegue obter a vinhae agradar o esposo. Sob aparência de direito, Acabe toma posseda tão desejada propriedade. Tudo parece estar na normalidade,não fosse pela interferência do profeta de Deus. A situação descri-ta pelo texto tem diversas semelhanças com outra, talvez maisconhecida, aquela envolvendo o rei Davi, Bate-Seba e a morte de

ÚLTIMO DOMINGODO ANO ECLESIÁSTICO1 REIS 21.17-29

Page 168: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

168

Urias (1 Sm 11; 12): pecado – denúncia – arrependimento – perdão– conseqüências do ato.

O caráter de Acabe fica claramente exposto no texto, assimcomo no que o antecede o no que o segue. Ele não somentesucumbiu a uma tentação específica, fazendo o que era mau. Porduas vezes o texto denuncia seu caráter malévolo dizendo: “Já tevendeste para fazeres o que é mau perante o Senhor” (vv. 20,25;cf. 2 Rs 17.17). Em outras palavras, tornou-se um escravo dopecado, fez dele seu modo normal de viver. O pecado teve livrecurso sobre este homem, que dele se fez escravo. O apóstoloPaulo aplicou a si uma afirmação semelhante (“sou carnal, vendidoà escravidão do pecado” – Rm 7.14). No entanto, o apóstolo,iluminado pelo Espírito Santo, lamenta esta condição, que é a con-dição natural de todo ser humano. Em Acabe, porém, viver emfranca oposição a Deus, seja pela sua idolatria, seja pela ganância,pela vida ímpia, torna-se uma maneira “tranqüila” de viver. Até quevenha o profeta!

Esta não é a primeira vez que Elias anuncia juízo diante do rei(cf. 18.18). Não é para menos que o rei o saúde de forma tãohostil: “Já me achaste, inimigo meu?” (21.20). Quão desesperadoraé a condição de alguém quando vê no ministro de Deus seu inimigo,simplesmente porque este lhe anuncia a verdade! Neste caso é aprópria palavra do Senhor, transmitida pelo profeta, que se tornasua inimiga!

“Mataste e ainda por cima tomaste a herança?” (v. 19). Denada adianta a Acabe recorrer a explicações: “Foi minha mulher,Jezabel”, “eu não sabia o que estava acontecendo”. Ao tomar pos-se e deleitar-se com o fruto de um julgamento ímpio (21.13) ele setorna tão culpado quanto a esposa. O juízo de Deus não olhaapenas as circunstâncias exteriores; é juízo sobre o coração ímpio.Ele desvenda os mais íntimos desejos e projetos, por vezes enco-bertos e protegidos dos olhos humanos. Acabe é indesculpável.Seu pecado, assim como qualquer pecado, visto à luz do exameperfeito de Deus, não tem explicação.

O julgamento pronunciado por Elias é feito nos termos maisgraves (vv. 19,21-24): morte violenta, sangue acompanhando atéa sepultura e desgraça para sua posteridade ... uma dura realidadepara um homem orgulhoso e cheio de planos. As punições anuncia-das mesmo para após a morte (“cães lamberão o teu sangue”)podem ser vistas, em um contexto bíblico mais amplo, como anún-cio de uma miséria ainda maior que aguarda este homem após amorte.

Page 169: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

169

A atitude de Acabe em resposta ao anúncio profético é, decerta forma, perturbadora. E mais ainda é perturbadora a reaçãode Deus. Quem poderia acreditar que os gestos exteriores daqueleímpio (v. 27) seriam a expressão honesta de um arrependimentoverdadeiro? Quem lida com pessoas, talvez já calejado pelas de-cepções de falsas contrições, irá possivelmente dizer: isso estámais para teatro do que para uma manifestação autêntica. MasDeus não pensa assim. Ele diz ao profeta, como que deliciando-secom o que vê: “Não viste que Acabe se humilha perante mim?Portanto, visto que se humilha perante mim, não trarei este malnos seus dias” (v. 29). As conseqüências virão no futuro, na famíliade Acabe (v. 29). O pecado tem conseqüências – assim também ofoi no caso de Davi (2 Sm 12.14). Mas isto não invalida o fato doperdão!

A atitude de Deus parece retratar a mais pura ingenuidade! Masela tem nome: misericórdia! Deus se agrada em ter misericórdia dopecador. A proclamação de sua lei não tem outra finalidade senão ade abrir portas à proclamação da graça. Se isto se revela porocasião do arrependimento daquele que era segundo o coração deDeus, Davi (2 Sm 12.13), também se manifesta para Acabe, cujocoração já demonstrou tantas vezes estar longe do Senhor. Isto égraça, que não encontra na pessoa a razão de existir, mas está nocoração de Deus. E se regozija com o arrependimento do pecador ecom a perspectiva de uma vida deste pecador perdoado sob abênção da comunhão com Deus.

O restante da história de Acabe, infelizmente, volta ao que jáse sabia dele. Mas isto não invalida a verdade central expressapelo texto bíblico: Deus é rico em perdoar, ao ponto de pareceringênuo no seu amor pelo pecador.

PROPOSTA HOMILÉTICA

O texto bíblico traz para o pregador três elementos importantesque o ajudam na proclamação ao povo: 1) a clara articulação de leie evangelho; 2) um paralelo à temática do dia, último domingo doano da Igreja; 3) uma história – situação vivencial – que aproximanaturalmente os ouvintes à mensagem. Estes elementos sinalizamque uma aplicação do texto bíblico aos ouvintes poderá ser feitade maneira dinâmica (lei e evangelho) e criativa (a história de Eliase Acabe e a nossa história, como indivíduos e como humanidade).

Uma questão crítica a respeito da aplicação tem a ver com a

ÚLTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Page 170: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

170

identificação entre os ouvintes do sermão e os personagens dahistória relatada. Uma tentação pode se colocar para o pregador. Eesta é a de identificar seus ouvintes com Elias. E a partir dissofazer do sermão uma mensagem de incentivo para que cada cristãoseja um anunciador do juízo e da misericórdia de Deus. Sem negarque tal tema poderá ter seu lugar em algum momento na vida dapregação à Igreja, não nos parece ser o mais apropriado para otexto em estudo. Vale a pena o pregador explorar a situação daspessoas à luz de Acabe, como recipiente da proclamação de lei eevangelho. Afinal, todos precisamos ouvir a palavra de juízo, quedenuncia e condena mesmo o pecado mais enrustido e escondido.Sobretudo, é fundamental aos ouvintes receberem a palavra dagraça divina, que consola e vivifica cada pecador.

O texto é um grande incentivo para o povo de Deus se regozijarna misericórdia de Deus. Se Deus assim agiu com aquele pecador,por que eu não confiaria que sua misericórdia também se aplica amim?! E o mesmo vale, dentro de uma perspectiva da escatologiacósmica, para o mundo todo. Deus é gracioso não para um grupinhoapenas, mas para toda a humanidade. É preciso ouvir seu chamadoao arrependimento e sua manifestação de misericórdia.

Gerson L. LindenSão Leopoldo, RS

Page 171: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

171

ASPECTOS INTRODUTÓRIOS

Desde a Escola Dominical se aprende que o “juiz” bíblico nãotem nada a ver com o juiz de um processo jurídico hoje ou um juizde futebol. O conceito é antigo, mesmo fora do contexto bíblico.Desde Ugarite, Mari e Ebla há evidência do emprego do termo comosignificando “rei” ou, no mínimo, “governante”. No relato bíblicopode-se dizer que há uma correspondência com um sentido socio-lógico na medida em que eram “líderes carismáticos” que chegavamna hora “H” e obtinham sucesso e notoriedade. A atribuição bíblicado seu chamado como vindo do “Espírito” não é uma contradiçãoao conceito sociológico, embora não seja também uma equivalên-cia. O termo hebraico jPv.mi, muitas vezes traduzido por “justiça”,

“julgamento” e também “salvação” deriva da mesma raiz de ~yjip.vo,“juízes”. O uso bíblico do termo designa também um sentido maisespecífico de “juiz”, especialmente nos Salmos, onde o verbo ad-quire o significado teológico de “salvar, libertar”. Tanto reis comojuízes determinam “julgamentos” que podem resultar em absolviçãoou condenação. No AT, quando Deus é o sujeito do verbo, o resul-tado do Seu “julgamento” será absolvição ou condenação, na me-dida da fé ou desfé, fidelidade ou idolatria por parte do Seu povo.

Os dois juízes menores, Tola e Jair, representam a transição naera dos juízes em Israel assim como o fazem os juízes maiores,Gideão e Abimeleque. Ao analisar o livro dos Juízes como um todo,incluindo o caos e as tragédias dos capítulos finais (Jz 17-21), éque se nota esta transição. Os acontecimentos de 6.1-10.5 de-marcam uma grande reviravolta e um momento preciso de transi-ção e declínio. A primeira fase de transição (3.7-5.31) focou juízesfiéis e vitoriosos (Otniel, Eúde, Débora/Baraque). A segunda fase(6.1-10.5) narra sobre Gideão e seu filho Abimeleque, que repre-sentam o começo da queda dos juízes. Gideão teve sucesso aovencer os inimigos de Israel, dando-lhe paz por 40 anos. Entretan-to, a liderança de Gideão e Abimeleque degenera em idolatria religi-osa e atos particulares de violência endereçados não apenas ainimigos externos como a irmãos israelitas. A terceira fase (10.6-16.31) apresenta dois grandes juízes, a saber, Jefté e Sansão.Ambos continuam na linha descendente da desvinculação com Deus

DIA DA REFORMAJUÍZES 10.6-18

Page 172: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

172

e numa crescente inabilidade de unir e defender Israel contra osinimigos. Tanto Jefté quanto Sansão experimentam trágicas turbu-lências em suas vidas. Um voto impensado força Jefté a sacrificara vida da sua única filha e uma revelação ingênua a Dalila levaSansão à desgraça e à morte. As histórias individuais de tragédiase tornam precursoras da tragédia coletiva de Israel e da desinte-gração na parte final do livro. O nosso texto para esse Dia daReforma faz parte do texto de transição, que inicia a terceira fasedos juízes.

TEXTO E MENSAGEM

A idolatria de 7 facetas no v. 6 corresponde à opressão de 7facetas nos vv. 11-12. A listagem dos deuses a que Israel serve éprecedida pela fatídica e reiterada expressão no tempo dos juízes:“tornaram os filhos de Israel a fazer o que era mau perante oSENHOR e serviram aos...”. Além dos Baalins e Astarotes, que Isra-el já adorava anteriormente (cf. 2.11,13), surgem os deuses daSíria (Hadade = Baal, Mot, Anate e Rimom); de Sidom (a deusafenícia Astarte – cf. 1Rs 11.5); de Moabe (Camos, a principal – cf.1Rs 11.33 – e que se relacionava a Moloque – cf. Nm 21.19); deAmom (Milcom – 1Rs ou Moloque – este era muitas vezes adoradopor meio do sacrifício de crianças - cf. Lv 18.21; 20.2-5; 1Rs 23.10);e dos filisteus (Dagom – cf. 16.23 e Baal-Zebube, que era adoradoem Ecrom – 2Rs 1.2-3, 6, 16; originalmente o nome era Baal-Zebul“Baal é príncipe” mas os adoradores de Yahweh deliberadamentealteraram o nome para Baal-Zebube, “senhor das moscas [leia-se“varejeiras”]” – cf. Mt 10.25, 12.24).

Se compararmos a lista destes 7 deuses com os vv. 11 e 12,onde 7 nações são mencionadas de cujas mãos o SENHOR libertaraIsrael, a combinação do número 7 nestes dois casos são marcantes.Israel equilibrou o número de libertações divinas pelo mesmo núme-ro de ídolos que serviu, de maneira que a iniqüidade do povo en-cheu-se na mesma proporção da graciosa libertação de Deus. Estarelação 7 por 7 insinua uma barganha da parte do povo. Israel nãoaprendera a lição que Deus vem demonstrando na história, desde asaída do Egito. Deus não tolera a idolatria nem mesmo das naçõese por isso as destrói. A idolatria é inimiga de Deus. Sendo idólatra,Israel provoca e desafia a ira do SENHOR. Mas a ira de Deus paracom Israel ainda é penúltima. Ele açoita, mas ainda não mata.

Em nosso texto, o açoite de Deus sobre o Israel apóstata vem

Page 173: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

173

de direções contrárias: os filisteus pelo oeste e sudoeste e osamonitas pelo leste, do outro lado do Jordão. Israel ficaensanduichado. Como no episódio dos demais juízes, Israel clamaao SENHOR por ajuda (v.10, cf. 3.9, 15; 4.3; 6.7). Desta vez osisraelitas acrescentam elemento novo ao seu “clamor”. Falam pala-vra de arrependimento e remorso pelos seus pecados cometidos:“Contra ti havemos pecado” (v.10). Nunca Israel havia confessadoseu pecado desta forma na história dos juízes. Infelizmente a con-dição do povo havia deteriorado de tal forma que tais palavrasdiante de Yahweh são palavras ocas que visam manipular Deus. Overbo q[z significa “gritar”, “reclamar” quando se está em situaçãode desespero. Por exemplo, no cap. 12.2, Jefté emprega esse ver-bo ao “reclamar” dos efraimitas por não tê-lo ajudado contra osamonitas. O verbo também pode significar um chamado de protes-to simplesmente (Jó 31.38). No v. 12 Deus historia a sua açãosalvífica em prol de Israel. Neste versículo, quando o povo clama aDeus, o verbo q[c é empregado. ARA o traduz acertadamente por“clamar”, que envolve, não reclamação mas busca de socorro dealguém que se vê dependente de Deus. Em nosso texto, Israel nãoestá “clamando”, mas “reclamando”, “exigindo” (q[z) de Deus. Ostermos são homófonos, mas com sentido diferençado. Israel estáclamando num tom desafinado que só Deus pode perceber. Signifi-ca que, com o passar do tempo, Israel perdeu a maneira e o jeito(a oração?) de buscar a ajuda de Deus. O culto ganhou contornosestranhos com adoração e louvor a outros deuses (conhecidos hátempo) e a deuses estranhos. Israel adotara uma liturgia, um cultoe divindades pluralistas. Bem ao jeito do que hoje se propõe quan-do se fala em religião, ou seja, Israel transita numa realidade con-siderada politicamente correta, mas religiosamente compromete-dora. Acertar politicamente nem sempre equivale a acertar religio-samente.

Na Idade Média as coisas não eram muito diferentes. Havia umamultiplicidade de santos cuja ajuda poderia ser buscada para apla-car a ira de Deus. Não é sem razão que a proposta da Reforma sefixa na história no dia 31 de outubro, um dia antes do Dia de Todosos Santos. A igreja da época possuía um dia designado para cadasanto. Mas como havia mais santos do que dias disponíveis, ossantos menos populares foram todos despejados nesse único dia.No dia 1 de novembro de 1517 milhares de peregrinos se acotove-lavam em Wittenberg para apreciar e venerar a invejável coleçãode relíquias de Frederico, o Sábio e, em razão disso, receber indul-

DIA DA REFORMA

Page 174: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

174

gências. O historiador Harold Grimm afirma que esta coleção com-punha-se de um acervo de relíquias sagradas tal que poderia con-ceder um total de 127.799 anos e 116 dias no purgatório. A Refor-ma surge para dar um novo viés à teologia e à vida das pessoas. Asalvação vem pela graça exclusiva de Deus e não de outras fontes,sejam elas deuses ou santos.

No tempo dos juízes, o povo de Deus enveredou por outroscaminhos. Falharam os líderes, os sacerdotes, os profetas. “Cadaum faz o que é reto aos seus próprios olhos”. O clamor de Israeltem outro endereço que não o verdadeiro Deus. É necessário quehaja uma Reforma. Enquanto isso, o SENHOR vem com uma terrívele assustadora conclusão: “não vos livrarei mais”. O decreto divinoimplica a sentença de morte de Israel. Sem a presença de Deus,Israel está condenado. O SENHOR sugere que Israel busque socor-ro entre os deuses que por longo tempo tem adorado: “eles quevos livrem” (v. 14).

Israel é persistente, entretanto, e implora a Deus com umasegunda palavra de arrependimento (v.15). Materializam suas pa-lavras, ou seja, “tiraram os deuses alheios do meio de si”. Anterior-mente Israel servia a “outros deuses” (~yrIx]a; ~yhiloa/); no momento

Israel está servindo também a “deuses alheios” (rkNEh; yheloa/). Israellivra-se dos “deuses alheios”, mas não se livra dos “outros deuses”,a quem se havia apegado. A linha seguinte é crucial, mas polêmica.O SENHOR “já não pôde reter a sua compaixão por causa da des-graça de Israel” (v. 16). O verbo rcq freqüentemente tem aconotação de frustração, perda de paciência e exaspero (Nm 21.4-5; Zc 11.8-9). É verbo empregado quando Sansão se torna tãoexasperado com a constante importunação de Dalila que ele lherevela o segredo da sua força (16.16). Assim, é possível ler aresposta do SENHOR no v. 16 não como uma alegre aquiescênciadele para libertar a Israel motivado por genuíno arrependimento daparte do povo. Não. Não é uma ação ou reação do povo de Israelou nossa que fará com que o SENHOR se volte para ele e para nósde maneira misericordiosa e salvífica.

Além do mais, o SENHOR sabe que tal suposto arrependimento éde novo vazio e passageiro. Ou seja, o velho padrão já costumeirohaveria de repetir-se muitas vezes. Não é o arrependimento deIsrael que motiva Deus a não mais reter a sua compaixão. O quefaz Deus intervir na vida desesperada do seu povo de antes e dehoje é unicamente a Sua misericórdia. Não será uma força internano povo que levará o SENHOR a ser compassivo. Não é uma mu-

Page 175: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

175

dança interna ou externa, ex opere operato, que fará com queDeus seja gracioso com Israel, com a igreja da Idade Média, ouconosco. Talvez nós mesmos, antes de condenarmos Israel por sualerdeza de coração, faríamos bem em reconhecer nossa própriadependência da misericórdia de Deus.

O SENHOR torna claro a Israel, sem dúvida por meio de umprofeta (cf. 6.8), que a graça divina não é um artigo barato queestá disponível aos caprichos do ser humano. Deus não tem obri-gação nenhuma de perdoar abusos da sua bondade toda vez que opecador choraminga sob o cetro da ira de Deus. Ao mesmo tempocomo misteriosamente diabólico é o poder da iniqüidade sobre ocoração do ser humano, assim é também a misteriosa vitória damisericórdia sobre a justiça no coração de Deus. Ela está acima detoda a compreensão (Os 11.8ss.).

Deus se utiliza de várias e surpreendentes pessoas para atingirSeus propósitos através do livro de Juízes. Como Seus instrumen-tos, Deus inclui um assassino canhoto de nome Eúde; uma mulher –juíza e profetisa – chamada Débora; outra mulher - não israelita -chamada Jael; e um tímido Gideão, o mais frágil dos frágeis. Jefté,entretanto, parece ser a maior surpresa de Deus dentre todos osjuízes. Ele é filho de uma prostituta, desprezado pela família e líderde um bando de foras-da-lei. É também um barganhador na medidaem que obtém para si a posição de líder sobre todo Gileade emtroca da sua disposição em lutar contra os moabitas. Para os nos-sos padrões, Jefté talvez jamais estivesse qualificado para integraro quadro dos juízes que iriam julgar e salvar o povo de Deus.Contudo, Deus o escolhe para que julgue Israel por 6 anos (12.7),e Jefté será listado na carta aos Hebreus como um dos heróis da fé(Hb 11.32). Deus não se utiliza de santos de plástico, de pedra oude relíquias mas de seres humanos de carne e sangue, ao mesmotempo pecadores e santos, para efetivar a Sua vontade no mundo.Como Deus age com sua graça e misericórdia na história do seupovo no Antigo Testamento, assim Ele o faz na Idade Média com aSua igreja.

Martinho Lutero era filho de camponês. Martinho nasceu e logono dia seguinte foi batizado para homenagear o santo do dia: SãoMartinho. Contrariando seu pai, Martinho se torna monge, pois bus-cava aplacar a ira de Deus sobre os seus pecados. Por mais arre-pendido que estivesse, e a consciência a atormentá-lo, Lutero nãoencontra paz, perdão e salvação porque faz a procura nos santos,na idolatria, em si mesmo, na justiça própria, nas suas própriasobras. Deus não chama pessoas qualificadas; Ele qualifica as que

DIA DA REFORMA

Page 176: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

176

chama. Deus coloca pessoas, profetas no caminho de Lutero comoum Staupitz que lhe mostrará que o caminho para a paz com Deusestá na obra salvadora de Jesus Cristo. O justo viverá pela fé, porcausa da fidelidade de Jesus. Mais tarde o Reformador dirá: “Qual-quer pessoa que busca Deus fora de Cristo, jamais o encontrará”.Lutero se torna profeta e um libertador do seu tempo. Fomos agra-ciados por Deus por meio dele; somos profetas e profetisas deDeus para o nosso tempo.

Acir RaymannSão Leopoldo, RS

Page 177: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

177

Rute, ao perder marido e filhos em terra estrangeira, está redu-zida à pobreza extrema. Ela vive da bondade das pessoas paratudo. Levítico 19.9,10 registra uma provisão que Deus havia feitopara a sobrevivência dos pobres. Aí diz: “Quando também segaresa messe da tua terra, o canto do teu campo não segarás total-mente, nem as espigas caídas colherás da tua messe. Não rebus-carás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha.Deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o Senhor, vossoDeus”. Noemi está pobre. Rute, a nora que decidiu acompanhá-lano seu retorno à pátria e à sua família, é estrangeira. É tempo dacolheita da cevada. Rute se oferece para repassar os campos emcolheita para trazer alguma coisa na volta. Talvez lhe custa depen-der em tudo da bondade alheia.

É importante conhecermos a vida de Noemi. Por que ela decidiuvoltar? Não fazia idéia daquilo que a aguardava no seu retorno? Oua opção de ficar na terra dos moabitas lhe parecia pessoalmenteainda mais traumática? Verdade é que, ao sair com o marido Elime-leque de Belém para a terra de Moabe (Rt 1.1), Noemi já estavafugindo da fome e da miséria. Agora está de volta. Não há mais oflagelo da fome em Belém. Mas Noemi está à margem, na miséria,em sua própria terra. Ela diz: “Não me chameis de Noemi; chamai-me Mara (amarga), porque grande amargura me tem dado oTodo-Poderoso. Ditosa eu parti, porém o Senhor me fez voltarpobre” (1. 20,21).

Noemi não fala de sorte, azar, problemas, dificuldades. A sualinguagem e visão dos fatos é outra. “Grande amargura me temdado o Todo-Poderoso [...] Ele me fez retornar pobre.” Claramen-te Noemi pensa como Jó, numa fé simples e singela: “Temos rece-bido o bem de Deus e não receberíamos também o mal?” (Jó1.10). Ou aquela que Jesus indica aos seus seguidores: “Olhai oslírios do campo, olhai as aves do céu ...” (Mt 6) Ou quando diz:“Se não vos tornardes como crianças” (Mt 18.3). Noemi se colocadiante da vida como quem sabe apenas que nada se move noscéus ou na terra sem o consentimento e a ação de Deus.

Talvez para Noemi estivesse claro algo que as pessoas de todasas épocas sempre tiveram dificuldade de admitir para viver de acordo.Penso na noção que Lutero e os Reformadores de Wittenberg tão

AÇÃO DE GRAÇASRUTE 2.19

Bendito aquele que te acolheu favoravelmente

Page 178: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

178

bem recapturaram e que permite “deixar Deus ser Deus”. Isto é,fazer valer o que Isaías e o apóstolo Paulo, por exemplo, expressa-ram ao dizer: “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal quenão quero, este eu faço” (Rm 7.19). Ou: “Mas todos nós somoscomo o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo de imun-dícia” (Is. 64.6).

Debaixo da lei e sob a nossa condição humana, nada de bompodemos esperar, pedir ou reivindicar de Deus. “Nada merecemos,senão castigo” ensinamos aos confirmandos, conforme palavra deLutero. Contrário a isso, o ser humano expressa em tudo que diz efaz a convicção de que nasceu com o direito a uma vida longa,plena de coisas boas. Planeja e pensa como se a vida estivesse emdívida com ele. Para o ser humano a regra acima de todas as regrasé o seu direito ao bem-estar. Em momento nenhum passa-lhe pelacabeça a idéia de que os seus planos e aspirações são menosconsistentes do que uma fumaça que se dissipa logo.

O que acrescenta ainda outro ato falho do ser humano. Quandopensa em Deus, pensa em alguém que cedo ou tarde deverá ajudá-lo a obter o que ele, ser humano, julga como seu de direito. Elepode até pedir e agradecer a Deus. Mas pede e agradece comoalguém cujas vontades e desejos devam ser satisfeitos. Razãoporque, uma vez que seus sonhos não se realizam e experimentafrustrações, queixa-se da vida, das pessoas, do governo, da reali-dade econômica. E em nenhum momento se pergunta: o que Deusestá dizendo a mim nestas frustrações e necessidades que meatingem?

Noemi não deixou de lamentar o seu estado de miséria. Paramarcar a sua tristeza, pedia que a não mais chamassem de Noemi(minha doçura), mas de Mara (amarga). Ao mesmo tempo, sabeque sua vida, agora como antes, está nas mãos de Deus: “O Se-nhor me fez voltar pobre” (1.21). E por isso a vida continua.Noemi não espera por uma reviravolta. A sua vida agora é uma vidade pobre. Mas Deus, que a fez voltar pobre, é o seu Deus.

Ao pensarmos que Rute, a estrangeira, é da linhagem de Jesus,podemos ver nisto um sinal do reino do Messias, nascido em pobre-za e em busca dos perdidos. Ao mesmo tempo, sublinha a palavrade Jesus: “Os pobres sempre os tendes convosco”. É assim queDeus se revela e quer ser conhecido: O Deus daqueles que o mun-do não conhece. O que Jesus também coloca nos lábios de Abraãoquando diz ao rico, que estava no inferno: “Filho, lembra-te querecebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro, igualmente, osmales” (Lc 16.25).

Page 179: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

179

Submeter-se à vontade de Deus significou algo especial paraNoemi e Rute, como mais tarde à mãe do Salvador: “Uma espadatraspassará a tua alma” (Lc 2.35). Esta experiência da fé não estáreservada a todos da mesma maneira. Mas o sofrimento na alma éuma experiência por que todos passam em sua vida.

Rute, predecessora do Messias (Mt 1.5), está entre os pobres,colhendo espigas. O autor deste relato não menciona em que esta-do de espírito Rute se dispõe a viver como pobre entre os pobres.Como também não existe da parte de Deus um “jeito” de compen-sar no futuro os que sofrem hoje. Fato é que a nossa realidadehumana a nada mais pode aspirar por natureza do que sofrimento emorte. O natural para a natureza humana é sofrer as conseqüênci-as do seu estranhamento com Deus.

Entretanto, Deus quer que aprendamos a reconhecer-nos naimagem que a lei apresenta de nós. Admitindo que a nada temosdireito, nos perguntamos: E então? De onde vem o bem?

Paulo P. WeirichSão Leopoldo, RS

AÇÃO DE GRAÇAS

Page 180: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

180

Recensão de EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O queJesus não disse?: Quem mudou a Bíblia e por quê. Trad. Mar-cos Marcionilo. São Paulo: Prestígio, 2006.

Haveria vários motivos para levar a sério este livro do biblistanorte-americano Bart Ehrman: 1. É um livro que vendeu muito bemnos Estados Unidos e foi escrito por alguém que, na capa da tradu-ção brasileira, é apresentado como “A maior autoridade em Bíbliado mundo”. 2. Populariza um assunto técnico, que é a crítica tex-tual do Novo Testamento (NT), com todos os riscos envolvidosnum processo de popularização. 3. Aproveita a onda das “teoriasde conspiração” que ajudaram a alavancar as vendas de O Códigoda Vinci. Isto fica claro na informação – discutível, diga-se depassagem – que se encontra na quarta capa: “Este livro mostra ahistória que está por trás das alterações que eclesiásticos políticose copistas ignaros fizeram no NT, causando um impacto enorme(sic) na compreensão e interpretação da Bíblia que temos hoje”.

Bart Ehrman não é, com certeza, a maior autoridade em Bíbliado mundo. Dizer isso é simples estratégia de marketing. (Na ediçãooriginal inglesa, o atrativo parece estar no título: Misquoting Jesus,ou seja, citando Jesus de forma errada! Na verdade, poucas dasvariantes textuais discutidas têm algo a ver, diretamente, compalavras de Jesus. Neste sentido, em inglês, o título do livro éenganoso). Ehrman é uma autoridade, um especialista de renome,que escreveu uma série de livros sobre o NT. Atualmente leciona nauniversidade de Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Ajudou aproduzir edições revisadas de livros do renomado crítico de textoBruce M. Metzger, de quem foi aluno. (Maior autoridade do queEhrman é, sem dúvida, Bruce Metzger!) Escreveu, na década de1990, uma obra intitulada The Orthodox Corruption of Scripture (ACorrupção das Escrituras promovida pelos Ortodoxos), que é, arigor, a obra que ele está popularizando em O que Jesus disse? Oque Jesus não disse?

Uma das surpresas do livro é a Introdução. Nela, Ehrman des-creve a sua trajetória teológica, ou seja, como de fundamentalistade direita passou a uma postura liberal. Embora Ehrman estejaconvencido de que passou de fundamentalista de direita a pesqui-sador neutro, a impressão que se tem é que ele apenas mudou delado, ou seja, continua sendo fundamentalista, só que de esquer-

LIVROS

Page 181: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

181

da. Isto, é claro, tomando o termo fundamentalista no sentido depessoa radical que não consegue perceber nenhum tom cinza en-tre o preto e o branco.

O livro se tornou um best-seller nos Estados Unidos. Isto atésurpreende, pois aborda um tema bastante técnico ou especializa-do. Populariza a crítica textual do NT, um assunto que até teólogosprofissionais tendem a deixar de lado, em grande parte por suacomplexidade e, em muitos casos, por entenderem que não fazdiferença nenhuma. Neste sentido, é um bom livro que promove umassunto que deve interessar, sempre, especialmente a teólogos.Em especial, os quatro primeiros capítulos formam uma introduçãobastante acessível ao assunto da crítica textual do NT.

Não é nenhuma novidade afirmar que o texto grego do NT foipreservado através de um processo de cópia manuscrita e que,nesse processo, o texto foi, quase que inevitavelmente, alterado.Essas diferenças que aparecem na comparação entre manuscritossão chamadas de variantes textuais. Elas são milhares, no caso doNT. Num certo sentido, quanto mais cópias manuscritas (e, nestecaso, cada nova cópia é uma nova edição) se tiver à disposição,maior será o número de variantes textuais. E, no caso do NT,temos mais de cinco mil manuscritos gregos, desde pequenos frag-mentos até cópias completas, isto é, cópias que trazem o texto doNT na íntegra. Isto ajuda a multiplicar o número de variantes.Essas variantes, como é sabido, são de dois tipos: involuntárias,ou seja, modificações que entraram sem que os copistas se des-sem conta (saltar uma linha, trocar uma letra, etc.), e intencionais(corrigir a gramática do grego, eliminar uma frase que parecia ofen-siva, etc.). Nisto o livro de Ehrman não traz nenhuma novidade. Játemos algo parecido, em português, no livro de Wilson Paroschi,Crítica Textual do NT (Edições Vida Nova).

Há, no entanto, alguns problemas no livro de Ehrman, para osquais é necessário chamar a atenção. A rigor, é um problema só: oradicalismo ou a forma contundente como ele coloca as coisas.Portanto, o problema não é o que ele diz, mas a forma como diz e oque deixa de dizer.

Ehrman não sabe ou, provavelmente, não quer colocar a ques-tão textual do NT em perspectiva. Que se quer dizer com isso? Oseguinte: esse problema de erros no processo de cópia não selimita ao texto do NT. Todos os livros antigos que foram preserva-dos em processo de cópia manuscrita sofrem do mesmo problema.Ehrman dá a entender que só o NT foi vítima de “eclesiásticospolíticos e copistas ignaros”, o que não é verdade. Também não

LIVROS

Page 182: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

182

informa que, no caso do NT, temos uma riqueza de material (núme-ro de manuscritos ou cópias) que não temos para nenhum outrolivro antigo (textos de autores clássicos, por exemplo). Além disso,no caso do NT, as cópias mais antigas estão bem próximas dotempo em que viveram os escritores (o mais antigo fragmento deJoão é datado do ano 130, o que dá um intervalo de uns 40 anosentre o tempo em que se acredita que João tenha escrito seuEvangelho e o mais antigo fragmento subsistente). No caso deautores clássicos, as cópias mais antigas estão, em alguns casos,mais de mil anos afastadas do tempo em que viveram esses escri-tores!

Outro detalhe sobre o qual Ehrman não informa é este: essasalterações, que são milhares, são, em sua grande maioria, total-mente irrelevantes. Ou seja, são inocentes, não mudam nada. Quan-do a gente lê o livro de Ehrman tem a impressão de que o NT estácheio de problemas cabeludos como aqueles que ele cita, em espe-cial a perícope da mulher adúltera (João 8) e o final de Marcos. Elepróprio afirma, no segundo parágrafo da Conclusão (p. 217), que“seria um equívoco dizer – como as pessoas fazem às vezes – queas mudanças em nosso texto não têm peso real sobre aquilo que ostextos significam ou sobre as conclusões teológicas que sedepreendem deles”. Só que, neste caso, as pessoas que Ehrmancita, de forma genérica, são a absoluta maioria dos críticos detexto do NT. Ehrman tratou os assim chamados problemas clássi-cos. Tirante esses casos, a maioria das demais variantes são maisinteressantes do que importantes. Em outras palavras, esses pro-blemas textuais (variantes) afetam, no máximo, uns três por centodo texto do NT. Portanto, a situação não é tão séria quanto Ehrman,um alarmista, nos quer levar a crer. Temos quase certeza absolutade que o texto grego impresso hoje é o texto grego que saiu damão dos evangelistas e apóstolos. Kurt Aland morreu convicto deque o Nestle-Aland, vigésima sétima edição, é o texto original doNovo Testamento.

Ao contrário do que afirma Ehrman, as variantes textuais afe-tam em pouco ou nada “as conclusões teológicas que se depreendemdeles”, isto é, dos textos do NT. Nenhuma doutrina cristã é postaem dúvida ou poderia ser mudada a partir de (ou com base em)variantes textuais. Em outras palavras, essas variantes têm a vercom questões menos importantes, se comparadas com as grandesverdades afirmadas no NT (a ressurreição de Jesus, o amor deDeus em Cristo, etc.).

Um exemplo é a história da mulher adúltera em João 8. Ali temos

Page 183: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

183

um problema textual, pois muitos manuscritos antigos não trazemessa história. Outros a colocam no Evangelho de Lucas. A maioriados eruditos entende que, ainda que pareça estar fora do lugar, éuma história autêntica e, mais importante ainda, uma história que éparte do cânone bíblico. Agora, mesmo que não fizesse parte doNT (no que particularmente não acredito), em nada diminuiria amensagem de que Cristo aceita o pecador! Afinal, existem muitasoutras passagens que mostram isso também.

Outro exemplo é 1Jo 5.7-8, o famoso “parêntese joanino” quefala dos três que dão testemunho no céu: o Pai, a Palavra, eEspírito Santo. Ehrman nunca informa que este exemplo é único, ouseja, que não existe nenhum outro exemplo conhecido em toda ahistória da crítica textual em que algo tenha sido inserido no textodo NT, no século 16, com base em apenas um manuscrito copiadoao final da Idade Média. Além disso, Ehrman dá a entender que adoutrina da Trindade depende desse acréscimo espúrio. Diz ele: “éa única passagem na Bíblia inteira que delineia explicitamente adoutrina da Trindade” (p. 91). Diz mais: “Sem esse versículo, adoutrina da Trindade deve ser inferida de uma série de passagenscombinadas para mostrar que Cristo é Deus, assim como o Espíritoe o Pai, e que há, não obstante, um só Deus” (p. 91-92). Ehrmanfaz questão de ignorar as numerosas referências trinitárias do NT,a começar por Mt 28.19. Pensar que a doutrina da Trindade depen-de dessa passagem espúria mais uma vez aproxima Ehrman dosfundamentalistas de direita. Também estes temem que, se abrirmosmão do “parêntese joanino” (aceitando, por exemplo, os colchetesque aparecem na Almeida Revista e Atualizada), teremos negado adoutrina da Trindade, o que, a rigor, não é verdade.

Ehrman trabalha, também, com a hipótese de que os copistascristãos dos primeiros três séculos eram todos amadores e malpreparados para a tarefa. Em outras palavras, como diz na quartacapa, “copistas ignaros”. Segundo ele, apenas ao tempo deConstantino a tarefa de copiar os textos do NT teria passado aocuidado de profissionais. Embora verossímil, não há como provaressa tese. A evidência textual do segundo e terceiro séculos, em-bora menos numerosa do que a de séculos posteriores, não revelauma maior fluidez na tradição textual que pudesse fundamentar atese de Ehrman. Em outras palavras, tudo indica que os copistasdo período anterior a Constantino não eram mais nem menos des-cuidados do que os copistas de períodos posteriores.

Ao final do livro, Ehrman volta a falar de sua peregrinação teo-lógica, com destaque para a doutrina da inspiração da Bíblia. Afir-

LIVROS

Page 184: Revista Luterana 2008 - seminarioconcordia.com.br€¦ · Gerson Luis Linden Professores Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luís Linden,

IGREJA LUTERANA

184

ma que as variantes textuais levaram-no a abrir mão da doutrinada inspiração da Bíblia. Sua argumentação é a seguinte: “a únicarazão (pensava eu) de Deus inspirar a Bíblia seria para seu povo teras suas palavras reais; mas se ele realmente queria que as pessoastivessem suas palavras reais, certamente poderia ter preservadomiraculosamente essas palavras, assim como primeiramente as ins-pirara milagrosamente. Dadas as circunstâncias de que não preser-vou as palavras, a conclusão me pareceu inevitável: ele não sedeu ao trabalho de inspirá-las” (p. 221).

Em resposta, pode-se dizer que Ehrman não fundamenta oujustifica o pressuposto de que, se os textos fossem inspirados,Deus poderia e deveria ter preservado, sem erros, todas as cópiasfeitas em épocas posteriores. (Notar que este argumento se apro-xima, ainda que por via inversa, da tese dos defensores do textomajoritário: Deus não teria permitido que esse texto se espalhassetão amplamente caso não fosse, de fato, o texto original!) E mani-festa-se outra vez o radicalismo de Ehrman: ou tudo, ou nada. Aomesmo tempo, percebe-se que Ehrman opta pelo método indutivode fazer teologia: pela soma de dados é que se chega (ou não) àconclusão de que as Escrituras são inspiradas por Deus. A posiçãoevangélica clássica opera por dedução. Nunca ninguém afirmouque inspiração e inerrância são doutrinas que resultam de um exa-me dos fatos ligados aos textos bíblicos existentes. (Franz Pieperafirma que isto é algo que se sabe a priori.) Ao contrário, sãodecorrências ou conclusões que emanam da convicção, baseadana própria Escritura (2Tm 3.16; João 10.35; João 14.26), de queDeus é o autor desses textos – apesar das variantes textuais queos homens não tiveram como evitar.

Vilson Scholz