revista jurÍdica mater dei - volume 3

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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3 1 REVIST REVIST REVIST REVIST REVISTA JURÍDICA A JURÍDICA A JURÍDICA A JURÍDICA A JURÍDICA MA MA MA MA MATER DEI TER DEI TER DEI TER DEI TER DEI ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI ISSN 1676-1278 Volume 3 - Número 3 - jul./dez. 2002 - Semestral PATO BRANCO - PARANÁ

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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3

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REVISTREVISTREVISTREVISTREVISTA JURÍDICAA JURÍDICAA JURÍDICAA JURÍDICAA JURÍDICAMAMAMAMAMATER DEITER DEITER DEITER DEITER DEI

ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DEBACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI

ISSN 1676-1278

Volume 3 - Número 3 - jul./dez. 2002 - Semestral

PATO BRANCO - PARANÁ

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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3

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REVISTA JURÍDICA MATER DEI - COMPOSIÇÃO

DIRETOR GERAL DA

FACULDADE MATER DEI:

DR. GUIDO VICTOR GUERRA

EDITOR:

PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA

SUPERVISOR EDITORIAL:

PROF. DR. DIRCEU ANTONIO RUARO

CONSELHO EDITORIAL:

PROF. ALCIONE LUIZ PARZIANELLO

PROF. ANDREY HERGET

PROFª. ANGÉLICA SOCCA CESAR RECUERO

PROF. ANTONIO GERALDO SCUPINARI

PROF. CÁSSIO LISANDRO TELLES

PROF. CÉLIO ARMANDO JANCZESKI

PROF. ERLON ANTONIO DE MEDEIROS

PROF. FRANCISCO ADILSON DE ALMEIDA FILHO

PROF. GENÍRIO JOÃO FÁVERO

PROF. GÉRI NATALINO DUTRA

PROF. JEDERSON SUZIN

PROF. JORGE DA SILVA GIULIAN

PROFª. MAGDA DEMARTINI TASCA

PROF. NILSON DE FARIAS

PROF. RAMÃO MARQUES NETO

PROF. RODRIGO CORONA MENEGASSI

PROF. RUDI RIGO BÜRKLE

PROFª. SILVANA DE MELLO GUZZO

CONSELHO CONSULTIVO:

PROF. DR. ABILI LÁZARO CASTRO DE LIMA - UFPR

PROF. MS. ALCÍDIO SOARES JÚNIOR - UEPG

PROF. DR. ALFREDO ASSIS GONÇALVES NETO - UFPR

PROF. MSc. ALEXANDRE ALMEIDA ROCHA - UEPG

PROF. DR. ALVACIR ALFREDO NICZ - UFPR

PROF. DR. ALVACIR SANTOS

PROF. DR. CLAYTON REIS - UEM

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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3

4

PROF. DR. EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE - UFPR

PROF. DR. ELIMAR SZANIAWSKI - UFPR

PROF. DR. EROULTHS CORTIANO JÚNIOR - UFPR

PROF. DR. HOMAR PACZKOWSKI ANTUNES PINTO

PROF. DR. JOÃO BATISTA LOPES - PUC-SP

PROF. MSc. JOÃO PAULO CAPELLA NASCIMENTO-UEPG

PROF. DR. JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO-UFPR

PROF. DR. JOSÉ ANTONIO PERES GEDIEL - UFPR

PROF. DR. JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETO - PUC-SP

PROF. DR. JOSÉ ROBSON DA SILVA - UEPG

PROF. MSc. JÚLIO CESAR BACOVIS - CAMPO REAL

PROF. DR. LUIZ CARLOS DERBLI BITTENCOURT

PROF. DR. LUIZ EDSON FACHIN - UFPR

PROF. DR. LUIZ GUILHERME BITTENCOURT MARINONI - UFPR

PROF. DR. LUIZ RODRIGUES WAMBIER - UEPG

PROF. DR. MANOEL EDUARDO ALVES DE CAMARGO E

GOMES - UFPR

PROF. MSc. MIGUEL KFOURI NETO - ESCOLA DA

MAGISTRATURA DO PARANÁ

PROF. DR. ROMEU FELIPE BACELLAR FILHO - UFPR

PROFª. DRª. SILVANA SOUZA NETTO MANDALOZZO - UEPG

PROFª. DRª. TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER - PUC-SP

SECRETÁRIA EDITORIAL:

MARISOL TOMASINI DUTRA

REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA:

PROFª. SETEMBRINA ZUCCHI NUNES

RESUMOS -

PROF. RODRIGO SIMIONATO

VERSÃO DOS RESUMOS PARA A LÍNGUA INGLESA:

PROF. FRANCISCO ADILSON DE ALMEIDA FILHO

DIAGRAMAÇÃO E CAPA:

LILYANE HELENA SARTORI

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EQUIPE DA FACULDADE MATER DEI

DIRETOR GERAL

DR. GUIDO VICTOR GUERRA

VICE-DIRETORA GERAL

PROFª. IVONE MARIA PRETTO GUERRA

DIRETOR EXECUTIVO

PROF. RUBENS FAVA

ASSESSOR PEDAGÓGICO

PROF. DR. DIRCEU ANTONIO RUARO

COORDENADORA PEDAGÓGICA

PROFª. VANESSA PRETTO GUERRA

COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO

PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA

COORDENADOR DO NÚCLEO DE

PRÁTICA JURÍDICA

PROF. ANDREY HERGET

COORDENADOR DO NÚCLEO DE

PESQUISAS JURÍDICAS MATER DEI

PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA

COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM ADMINISTRAÇÃO

PROF. PAULO ROBERTO CENI RIESEMBERG

COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM SISTEMAS DE

INFORMAÇÃO

PROF. GÉRI NATALINO DUTRA

SECRETÁRIA ACADÊMICA

PROFª. WAINÊS SALLETE BASSO

SECRETÁRIO FINANCEIRO

PEDRINHO DE BORTOLI

BIBLIOTECÁRIA

BERENICE DE LIMA RODRIGUES

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APRESENTAÇÃO

O compromisso da Faculdade Mater Dei com a pesquisa

consolida-se com a edição do terceiro volume de sua Revista Jurídica.

No entender da Instituição, a educação jurídica deve transpor os limites

tradicionais do ensino dogmático e meramente reprodutor de

conhecimentos divorciados da realidade social.

Mais vinte dois artigos de autoria de Professores e Juristas -

Docentes da Faculdade Mater Dei e de outras Instituções de Ensino

Superior - enriquecem o Órgão de Divulgação Científica do Curso de

Direito Bacharelado em Direito da Faculdade Mater Dei, ensejando à

comunidade jurídica o debate sobre o Direito e as Ciências Sociais

com as quais mantém diálogo a Ciência Jurídica.

Registre-se o sincero agradecimento da Instituição em prol dos

que contribuíram para a publicação de mais um volume da Revista

Jurídica Mater Dei, pois tal contribuição enriquece a educação jurídica

nacional.

Para a Faculdade Mater Dei a trilogia ensino, pesquisa e

extensão é o caminho que conduz à solidez do conhecimento. O ensino

fundado em pesquisa visa a formação de Bacharéis aptos ao exercício

das diversas profissões jurídicas, mas também conscientes de seus

deveres como Cidadão.

DR. GUIDO VICTOR GUERRADIRETOR GERAL DA FACULDADE MATER DEI

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EDITORIAL

“A cidadania gestada na universidade tem como característica mais notávela de poder instrumentalizar-se mais que outras, no manejo e na produçãodo conhecimento. Esse tipo de competência alimenta-se crucialmente dapesquisa”.

MARIA FRANCISCA CARNEIRO. Metodologia da aprendizagem e pesquisa jurídica.Curitiba: Juruá, 1999, p. 85.

A educação jurídica produz conhecimento, impondo-se que osCursos Jurídicos incentivem a pesquisa como complemento indispen-sável às atividades de ensino e de extensão.

A educação completa, holística, deve preparar profissionais qua-lificados, mas ao mesmo tempo deve despertar nos Acadêmicos os ide-ais da Cidadania, a fim de que os futuros Bacharéis estejam aptos àconstrução de uma nova realidade social, mais justa e fraterna.

A pesquisa produz o saber, investiga, soluciona, afirma, com-prova, assenta os fundamentos de toda Ciência, inclusive do Direito, epara tanto, a Revista Jurídica Mater Dei oferece sua contribuição.

O terceiro volume - relativo ao segundo semestre de 2002 - con-tribui para a educação jurídica nacional na medida em que traz a lumetemas relevantes para o Direito e as Ciências Sociais na atualidade.

Com a notória qualidade dos artigos publicados, a Revista con-firma seu compromisso com a excelência. O Curso de Bachareladoem Direito da Faculdade Mater Dei espera que esta publicação revertaem prol de toda a Comunidade Acadêmica, Docente e Discente.

PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA

COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITOCOORDENADOR DO NÚCLEO DE PESQUISAS JURÍDICAS MATER DEI

EDITOR DA REVISTA JURÍDICA MATER DEI e dosCADERNOS DE ESTUDOS JURÍDICOS MATER DEI

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ARTIGOS

OS DIREITOS DE PERSONALIDADE E O NOVO CÓDIGOCIVIL BRASILEIRO - FLORI ANTONIO TASCA

MANAGEMENT PÚBLICO: POLÍTICA DE REFORMA E GA-RANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL E NA ITÁLIA -FRANCISCO CARLOS DUARTE

CRITÉRIOS JURÍDICOS PARA A DISTINÇÃO ENTRE A PRO-PRIEDADE IMOBILIÁRIA RURAL E URBANA: ALGUMAS CONSE-QÜÊNCIAS JURÍDICAS - JOSÉ ROBSON DA SILVA

VÍNCULO DE EMPREGO ENTRE POLICIAL MILITAR ESTA-DUAL (COMO EMPREGADO) E EMPREGADOR NO ÂMBITO PRI-VADO - SILVANA SOUZA NETTO MANDALOZZO

COMISSÕES DE CONCILIAÇÃO PRÉVIA : CULTURA EAUTOCOMPOSIÇÃO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO - VANDERLEISCHNEIDER DE LIMA

A RETROATIVIDADE BENIGNA DA LEI TRIBUTÁRIA E O ATONÃO DEFINITIVAMENTE JULGADO - CÉLIO ARMANDO JANCZESKI

JUIZ CRIMINAL E O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTAN-TIVO - CARLOS ALBERTO BAPTISTA

OS PRINCIPAIS TRATADOS DA UNIÃO EUROPÉIA - HOMARPACZKOWSKI ANTUNES PINTO

BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CI-VIL DO EMPREGADOR EM FACE DOS EMPREGADOS E A OBRI-GAÇÃO DE REPARAR OS DANOS - MARIA CLAYDE ALVES PACE

CONFLITO APARENTE DE NORMAS E ART. 10 DA LEI N°9.437/97 - RUDI RIGO BÜRKLE

OS FURTOS TENTADOS NOS MODERNOS ESTABELECI-MENTOS DE VENDA A VAREJO NA REALIDADE ATUAL - SILVIOCOUTO NETO

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JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA EM MATÉ-RIA DE LIMITAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS - SÍLVIA MARIADERBLI SCHAFRANSKI

ENSAIO SOBRE O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE - ANDREYHERGET

CORRETOR DE IMÓVEIS E O NOVO CÓDIGO CIVIL BRASI-LEIRO - ERLON ANTONIO DE MEDEIROS

PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO FUTURO DO DIREI-TO PENAL BRASILEIRO - PAULO CÉSAR BUSATO

A SÚMULA 233 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E ODESTINO DOS PROCESSOS DE EXECUÇÃO EM CURSO - ADRIANATIMÓTEO DOS SANTOS

SOBRE O PAPEL E ORIGENS DA SOCIOLOGIA - GUILHER-ME G. TELLES BAUER

ASPECTOS COMPORTAMENTAIS DAS EMPRESAS:ENFOQUE NA RESPONSABILIDADE JURÍDICA E SOCIAL DASEMPRESAS - MAGDA DEMARTINI TASCA

TRABALHO, LIBERALISMO E IDEÁRIO NEOLIBERAL -LINEU FERREIRA RIBAS

O DIREITO À DIFERENÇA, À IGUALDADE E À LIBERDADEDOS HOMOSSEXUAIS - JULIANE MAYER GRIGOLETO

REALIDADE E REPRESENTAÇÃO - RAFAEL AUGUSTUSSÊGA

DIREITO, JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO DO ADVOGADO -ROBERTO ANTONIO BUSATO

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OS DIREITOS DE PERSONALIDADE E ONOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO1

FLORI ANTONIO TASCA

PROFESSOR TITULAR e COORDENADOR DO CURSO DEBACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI. DOUTOR EMDIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS e MESTRE EM DIREITO PRIVADOPELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. ADVOGADO eCONSULTOR NO ESTADO DO PARANÁ.

RESUMO

O texto aborda o tema dos direitos de personalidade à luz da nova codificaçãocivil brasileira. Inicia tratando dos fundamentos teóricos da doutrina, passandopara a análise do conceito e a abrangência dos direitos personalíssimos, edestacando sua relação com a doutrina dos direitos fundamentais. O artigodescreve as inovações da Lei 10.406/2002 e as relações da temática com aspessoas jurídicas. Cuida ainda da incidência das normas de responsabilidadecivil em casos de atos ilícitos cometidos contra as pessoas, atentatóriosaos direitos personalíssimos. Como conclusão, o autor aponta o divórcioexistente entre o discurso jurídico (protetor das pessoas) e a realidade socialexcludente.

ABSTRACT

The text points to the theme of Entity Law according to the new Brazilian CivilCode. It starts talking about theory of fundaments in the issue, going to theanalysis of concept and how far the exclusive rights go , and pointing to itsrelation with the subject of basic rights. The article describes the innovationsof act # 10.406/2002 and the theme relation to the legal entity. It still caresabout the incidence of rules of civil liabilities in case of unlawful actcommitted against people, in attention to the exclusive rights. As a conclusion,the author points to the divorce between the law argument (people protector)and the social reality .

PALAVRAS CHAVE - Direito Civil; direitos de personalidade; novoCódigo Civil brasileiro; responsabilidade civil.

INTRODUÇÃO: FUNDAMENTOS TEÓRICOS

A vigência da Lei 10.406, de 10/01/2002 (novo Código Civil bra-sileiro - CCB) tem gerado ansiedade nos meios sociais, dada a1 Texto que fundamentou conferência proferida no evento “repensando o Direito Privado: uma jornada pelo

novo Código Civil brasileiro”, promovido pelo Departamento de Direito das Relações Sociais do Curso deBacharelado em Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa (segundo semestre de 2002).

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abrangência e a importância da legislação civil, a regular toda a vidaprivada, disciplinando as pessoas, as famílias, as obrigações, as em-presas, as coisas e as sucessões.

A comunidade jurídica tem discutido intensamente a novacodificação, sendo variados os temas que suscitam os mais acirradosdebates, podendo-se destacar (pela inovação e relevância) os direitosde personalidade, matéria prevista no Livro I da Parte Geral (Das Pes-soas), Título I (Das Pessoas Naturais), Capítulo II (Dos Direitos daPersonalidade), artigos 11 a 21.

A formulação teórica da teoria dos direitos de personalidade érelativamente recente e sujeita a discussões doutrinárias ejurisprudenciais, marcadas até então por lei arcaica (Código Civil bra-sileiro de 1916 : CCB-16), afastada dos ideais de proteção integral daspessoas.2

O Direito antigo (inclusive o Direito Romano) ignorava a tutelaintegral das pessoas, pois apesar de alguns povos terem elaboradonormas protetivas,3 inexistia a concepção de direitos oriundos da per-sonalidade jurídica. A teoria dos direitos personalíssimos foi fortalecidano Século XX, principalmente pelo Direito, o qual assentou as colunasde sustentação da doutrina.4

2 “A categoria dos direitos da personalidade constitui-se, portanto, em construção recente, fruto de

elaborações doutrinárias germânica e francesa da segunda metade do século XIX. Compreendem-se,sob a denominação de direitos da personalidade, os direitos atinentes à tutela da pessoa humana,considerados essenciais à sua dignidade e integridade. TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Riode Janeiro : Renovar, 1999, p. 24.3 Deve-se assinalar, no entanto, a existência no Direito Romano de normas que, pontualmente, visam a

proteção das pessoas, em especial no Direito das Obrigações, d’onde se destacam as obrigações quenascem dos delitos privados. Destaque-se, por exemplo, a existência do delito de injúria, o qual abrangia,em dadas circunstâncias, tanto ofensas físicas quanto agressões morais, ensejando reparação pecuniáriapelo ofensor em prol do ofendido.4 Na lição de Francesco Messineo, “los derechos de la personalidad constituyen una categoría desconocida

de los ordenamientos jurídicos antiguos; y son una conquista de la ciencia jurídica del último siglo. En elpasado, entre nosotros (y aun hoy, en otras legislaciones), se reconducían algunos de estos derechosbajo el concepto de derecho de propriedad sobre bienes inmateriales, considerándose bienes inmaterialesel nombre, las cartas misivas etc.; esto, con ocasión de indudable caráter absoluto de aquellos derechos,pero tanbién porque no se veía que los mismos estén desprovistos de carácter patrimonial y no se advertíaque, si todos los derechos reales son absolutos, no todos los derechos absolutos son reales”. Trad.: “Osdireitos da personalidade constituem uma categoria desconhecida dos ordenamentos jurídicos antigos;e são uma conquista da ciência jurídica do último século. No passado, entre nós (e ainda hoje, em outraslegislações), se ampliavam alguns destes direitos sob ao conceito de direito de propriedade sobre bensimateriais, considerando-se bens imateriais o nome, as cartas missivas, etc.; isto, em virtude do indubitávelcaráter absoluto daqueles direitos, mas também porque não se via que os mesmos estivessem desprovidos

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Nada obstante, vários fatores contribuíram para a gênese e odesenvolvimento da teoria dos direitos personalíssimos. Para CarlosAlberto Bittar destacam-se: a) a difusão do Cristianismo, assentando aidéia de dignidade do homem; b) a Escola Jusnaturalista, firmando anoção de direitos humanos e inatos ao homem, correspondentes à natu-reza humana e preexistentes ao reconhecimento do Estado; c) oIluminismo, cuja doutrina exigia maior respeito ao ser humano (cida-dão), combatendo a tirania do Estado.5

A controvérsia sobre o tema chegou a tanto que se questionoua própria existência dos direitos de personalidade como categoria jurí-dica autônoma, grassando o debate sobre a natureza jurídica, a ampli-tude e o conteúdo desses direitos.

Tal contexto contribuiu para o surgimento de “teoriasnegativistas”, as quais não admitiam sequer a existência dos direitospersonalíssimos no plano do Direito positivo.6

Bittar descreve o problema: O tema dos direitos da personalidade está eivado de dificul-

dades que decorrem, principalmente: a) das divergências entre osdoutrinadores com respeito à sua própria existência, à sua natureza, àsua extensão e à sua especificação; b) o caráter relativamente novode sua construção teórica; c) da ausência de uma conceituação globaldefinitiva; d) de seu enfoque, sob ângulos diferentes, pelo direito posi-tivo (público, de um lado, e privado, de outro), que lhe imprime feiçõese disciplinações distintas.7

A par das divergências, a doutrina atual reconhece que os direi-tos de personalidade afirmam-se diante da necessidade de proteção

de caráter patrimonial e não se advertia que, se todos os direitos reais são absolutos, nem todos osdireitos absolutos são reais.” MESSINEO, Francesco. Manual de derecho civil y comercial, tomo III.Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires, Argentina, 1954, p. 055 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade e o projeto do Código Civil brasileiro. In: Revista

de Informação Legislativa nº 60. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, outubroa dezembro de 1978, p.19.6 “Destacam-se, antes de mais, as chamadas teorias negativistas (Roubier; Unger; Dabin; Savigny; Thon;

Von Tuhr; Enneccerus; Zitelmann; Crome; Iellinek; Ravà; Simoncelli, dentre outros), que, no século passado,refutaram a categoria dos direitos da personalidade. Afirmava-se, em síntese estreita, que a personalidade,identificando-se com a titularidade de direitos, não poderia, ao mesmo tempo, ser considerado comoobjeto deles. Tratar-se-ia de contradição lógica.” TEPEDINO, Gustavo. Ob. cit., p. 25.7 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade e o projeto do Código Civil brasileiro, Ob. cit., p. 106.

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integral da pessoa humana, especialmente contra práticas e abusosatentatórios à sua dignidade.8 9

O tema é relevante e atual, pois o mundo moderno, caracteri-zado pelo avanço da ciência e da tecnologia, conduz a humanidade “alugares nunca dantes imaginados, mas que trazem consigo questõestormentosas e de dificílima solução para os juristas, dentre as quaispodem ser apontadas as atinentes à esfera dos direitos da personali-dade”.10

DIREITOS DE PERSONALIDADE: CONCEITO E ABRANGÊNCIA

Os direitos de personalidade são direitos subjetivos,11 medianteos quais a ordem jurídica concede ampla proteção à pessoa humana.

Tal conceito, porém, não é isento de controvérsias, entendendoparte da doutrina que não se pode reconhecer aos direitos

8 GOMES, Orlando. Direitos de personalidade. In: Revista Forense nº 216. Rio de Janeiro: Forense,

outubro a dezembro de 1966, p . 05.9 Sobre a proteção da pessoa, à luz do sistema da common law, escrevem Samuel Warren e Louis

Brandeis: “Es un principio tan viejo como el common law que el individuo debe gozar de total protecciónen su persona y en sus bienes; sin embargo, resulta necesario, de vez em cuando, redefinir comprecisión la naturaleza y la extensión de esta protección. Los cambios políticos, sociales y económicosimponen el reconocimiento de nuevos derechos, y el common law, en su eterna juventud, evolucionapara dar cabida a las demandas de la sociedad. Así pues, hace ya mucho tiempo, el derecho establecíamedios de reparación en caso de agresiones de hecho contra la vida y los bienes, por delitos vi etarmis.” Trad.: “Sobre a proteção da pessoa, à luz do sistema do common law, escrevem Samuel Warrene Louis Brandeis: “É um princípio tão velho como o common law que o indivíduo deve gozar de totalproteção à sua pessoa e aos seus bens; no entanto, resulta necessário, de vez em quando, redefinircom precisão a natureza e a extensão desta proteção. As mudanças políticas, sociais e econômicasimpõem o reconhecimento de novos direitos, e o common law, em sua eterna juventude, evolui para darguarida às demandas da sociedade. Assim pois, faz já muito tempo, o direito estabelecia meios dereparação em caso de agressões de fato contra a vida e os bens, por delitos vi et armis.” WARREN,Samuel & BRANDEIS, Louis. El derecho a la intimidad. Trad. Pilar Baselga. Madrid, Espanha : EditorialCivitas, 1995, p. 21.10

“Tal esfera, com efeito, tem sido continuamente provocada pelas dúvidas carreadas pelo progressocientífico e tecnológico sem par de nossos tempos, bem como tem sido alvo de mais e mais investidasdesse mesmo progresso. Daí a importância de que se reveste o estudo acurado das garantias e dosinstrumentos de salvaguarda dos direitos da personalidade – máxime dos previstos solenemente naConstituição, que traça as diretrizes fundamentais do Estado.”BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Os direitosda personalidade na Constituição de 1988. In: Revista dos Tribunais nº 733. São Paulo : RT, novembrode 1996, p. 83.11

“A melhor conceituação de direito subjetivo ainda é a velha expressão latina facultas agendi . Direitosubjetivo é a faculdade de agir conforme o que dispõe a norma objetiva (a norma agendi). Em outraspalavras : o direito objetivo confere um direito aos indivíduos; a estes cabe optar, ou não, pelo uso destedireito, sempre de acordo com a norma vigente. É um poder de ação, determinado pela vontade doindivíduo e disciplinada pela ordem jurídica, que vai recair sobre bens jurídicos.” CORTIANO JÚNIOR,Eroulths. A teoria geral dos direitos da personalidade. In: Revista da Procuradoria Geral do Estado doParaná nº 05. Curitiba : Imprensa Oficial do Estado, 1987, p. 21.

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personalíssimos o caráter de direitos subjetivos.12

A corrente majoritária, porém, reconhece que “a personalida-de é dotada (seja por fato da própria natureza, seja por concessãojurídica) de direitos subjetivos relativos à própria personalidade, quelhe vão permitir desenvolver-se, tornando o homem digno na socieda-de”, como bem esclarece Cortiano Júnior. 13

Afirma-se, assim, a existência dos direitos subjetivos de per-sonalidade, pois se o direito subjetivo pressupõe sempre um deverjurídico, é natural que se exija de todos o respeito aos semelhantes, àsoutras pessoas (mediante seus atributos de personalidade), exigênciaessa oponível erga omnes. 14

Para José Castan Tobenãs

Si el concepto del derecho subjetivo presupone un poder al que elordenamiento jurídico conceda una cierta autonomía, no puedenegarse la posibilidad técnica de que sean objetivados por el Derecho,separándolos y destacándolos de la personalidad, determinados atri-

12 Segundo Eroulths Cortiano Júnior, “muitos autores não categorizam os direitos da personalidade como

direitos subjetivos simplesmente porque cada qual parte de um seu particular conceito do que sejamdireitos subjetivos. Para alguns, estes não são direitos, mas ‘poderes’. Para outros tratam-se de ‘situaçõesjuridicamente estabelecidas’ ou ‘deveres da coletividade’. Tais posicionamentos não adicionam novidadesà tradicional teoria dos direitos subjetivos, que continua tendo aceitação plena da doutrina, da lei e dajurisprudência. Importa saber por ora que o indivíduo, perante a norma jurídica, tem uma faculdade de agirem relação aos bens jurídicos, do modo que melhor lhe aprouver, mas em consonância com a ordemjurídica, na busca de sua realização pessoal. Esta a caracterização dos direitos subjetivos, entre os quaisdestacam-se alguns tão intimamente ligados à personalidade que são imprescindíveis para a existênciadigna do homem. São os direitos da personalidade.” Idem, p. 23.13

“Direito subjetivo é a faculdade de agir, em conformidade com a ordem jurídica, sobre um determinadobem, que constitui o seu objeto. Qual o objeto dos direitos da personalidade ? Juridicamente, considera-se bem toda a utilidade, material ou imaterial, que incida na faculdade de agir do sujeito, porque lhedespertou interesse. É todo o interesse do homem, ideal ou econômico, munido de proteção jurídica. Maso interesse do homem não se dá apenas sobre bens externos a ele, mas também – e principalmente –sobre sua própria pessoa.” CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. A teoria geral dos direitos da personalidade,Ob. cit., p. 22-24.14

“En principio, no hay ciertamente razones decisivas para negar la existencia de la categoría jurídicaconstituída por los derechos subjetivos de la personalidad. Si el derecho subjetivo presupone siempre undeber jurídico, que haga posible una pretensión o exigencia, hay que reconocer que el derecho a la vida,a la integridad física, al honor, a la identidad personal, etc., penetran en el círculo del deber jurídico quepesa sobre todos, en el sentido de que no han de ser ilegítimamente lesionados.” Trad.: “Em princípio, nãohá certamente razões decisivas para negar a existência da categoria jurídica constituída pelos direitossubjetivos da personalidade. Se o direito subjetivo pressupõe sempre um dever jurídico, que faça possíveluma pretensão ou exigência, há que se reconhecer que o direito à vida , à integridade física, à honra, àidentidade pessoal, etc., penetram no círculo do dever jurídico que pesa sobre todos, no sentido de quenão devem ser ilegitimamente lesionados.” TOBENÃS, José Castan. Los derechos de la personalidad.Madrid, Espanha : Instituto Editorial Rèus, 1952, p. 21-22.

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butos suyos, que sean así elevados a bienes jurídicos yconsiguientemente a objetos de derecho, protegidos com una espe-cífica acción civil. En los derechos esenciales de la personalidad,ciertamente, pueden concurrir las cualidades propias de los derechossubjetivo, en cuanto se dé en ellos la atribución, por el ordenamientopositivo, de un poder jurídico a un titular frente a outra u otraspersonas, puesto a su libre disposición y tutelado por una acciónjudicial. Por lo demás, el problema de si el Derecho positivo reconocecomo un poder jurídico autónomo protegido por una acción a cadauno de los posibles derechos de la personalidad, sólo puederesolverse, caso por caso, según los principíos del ordenamientojurídico de que se trate. 15

Destaque-se o conceito de Limongi França, para quem os di-reitos de personalidade consideram-se “faculdades jurídicas cujo ob-jeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assimseus prolongamentos e projeções”. 16 17

A proteção da pessoa fundada na doutrina dos direitos de per-sonalidade volta-se a seus atributos imateriais, ensejando a preven-ção e impondo a reparação integral dos danos sofridos pelas vítimasde agressões físicas, morais ou intelectuais.

A multiplicidade de leituras possíveis dos direitos de personali-dade dificulta a formulação de uma idéia unívoca. Sua fundamentação écontroversa, como anota Orlando Gomes:

15 Trad.: “Se o conceito do direito subjetivo pressupõe um poder ao qual o ordenamento jurídico conceda

uma certa autonomia, não se pode negar a possibilidade técnica de que sejam objetivados pelo Direito,separando-os e destacando-os da personalidade, determinados atributos seus, que sejam assim elevadosa bens jurídicos e consequentemente a objetos de direito, protegidos com uma ação civil específica. Nosdireitos essenciais da personalidade, certamente, podem concorrer as qualidades próprias dos direitossubjetivos, enquanto se dê neles a atribuição pelo ordenamento positivo, de um poder jurídico a um titularfrente a outra ou outras pessoas, posto à sua livre disposição e tutelada por uma ação judicial. No mais,o problema de se o direito positivo reconhece como um poder jurídico autônomo protegido por uma açãoa cada um dos possíveis direitos da personalidade, somente se pode resolver, caso por caso, segundo osprincípios do ordenamento jurídico de que se trate.” Idem, ibidem.16

FRANÇA, Rubens Limongi. Direitos da personalidade. Coordenadas fundamentais. In: Revista dosTribunais nº 567. São Paulo : RT, janeiro de 1983, p. 09.17

“Mas vê-se presente a importância dos direitos da personalidade no mundo moderno, onde ainformatização tende a colocar tais direitos em plena vitrine, sujeitos, portanto, a quebras diuturnas.”FONSECA, Antonio Cezar Lima da. Anotações aos direitos da personalidade. In: Revista dos Tribunaisnº 715. São Paulo : RT, maio de 1995, p. 53.

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Noção mais clara, obtém-se mediante delimitação de seu objeto,em termos que nos parecem perfeitamente admissíveis. Constitu-em-no os bens jurídicos em que se convertem projeções físicas oupsíquicas da pessoa humana por determinação legal, que os indivi-dualize para lhes dispensar proteção.

Reclama, assim, a definição do direito de personalidade, o alarga-mento do conceito jurídico de bem, que lhe reconheça significaçãodiversa da que se lhe atribui em Economia. Em Direito, toda utilida-de, material ou não, que incide na faculdade de agir do sujeito, cons-titui um bem, podendo figurar como objeto da relação jurídica, por-que sua noção é histórica e não naturalística. Nada impede, em con-seqüência, que certas qualidades, atributos, expressões ou proje-ções da personalidade sejam tuteladas no ordenamento jurídico comoobjeto de direitos de natureza especial. 18

Os direitos de personalidade reportam-se às pessoas, 19 pro-tegendo a vida, a saúde, a integridade psicofísica, a liberdade, a hon-ra, o nome, a imagem, a intimidade e a vida privada, dentre outrosatributos.20

Talvez a maior polêmica em torno do tema diga respeito à ques-tão da limitação dos direitos de personalidade aos expressamente pre-vistos em lei (teoria da tipificação dos direitos de personalidade), con-trastando com a cláusula geral ou direito geral de personalidade, pro-tegendo integralmente a pessoa independente de previsão normativa.

Perlingieri expõe a controvérsia: “sobre os direitos da perso-nalidade distinguem-se concepções que tendem a reconhecer um ‘di-reito geral de personalidade’ e teorias que sustentam a existência deuma pluralidade de direitos da personalidade”. 21

18 GOMES, Orlando. Direitos de personalidade, Ob. cit., p. 06.

19 A doutrina dos direitos de personalidade abrange as pessoas físicas e as pessoas jurídicas. Há, no

entanto, diferenças essenciais entre a tutela das pessoas humanas em relação às jurídicas, dadas asdiferenças ontológicas entre ambas. Enquanto a pessoa natural é um ser físico, com existência bio-psíquica,a pessoa jurídica é um “ser” dotado de personalidade jurídica (conceito jurídico) real, porém é um “ser”imaterial.20

Mota Pinto afirma que os direitos de personalidade abrangem “um círculo de direitos necessários; umconteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa”. MOTA PINTO, Carlos Alberto daMota. Teoria geral do direito civil. Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 1996, p. 207.21

“No âmbito destas últimas – ditas concepções ‘atomísticas’- apontam-se aquelas que consideram aexistência de uma série aberta de direitos (atipicidade dos direitos da personalidade) ou fechada

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Merece crítica a posição doutrinária que limita a tutela jurídicados direitos de personalidade aos previstos (expressamente) em lei,revelando-se injustificável tamanha restrição. 22

A amplitude conceitual da cláusula geral de personalidade éassinalada por Judith Martins-Costa em seu livro “a boa-fé no direitoprivado”, 23 no qual a insigne jurista traça claramente os contornos doDireito Privado contemporâneo.

Impõe-se, hoje, reconhecer um direito geral de personalidade,nos moldes enunciados por Perlingieri, para quem “nenhuma previsãoespecial pode ser exaustiva e deixar de fora algumas manifestações eexigências da pessoa que, mesmo com o progredir da sociedade, exi-gem uma consideração positiva”. 24

A exegese da Constituição Federal do Brasil revela que o Di-reito positivo contempla uma “cláusula geral” de proteção à personalida-de jurídica, anotam (dentre outros) Tepedino 25 e Cortiano Junior. 26

(tipicidade). A contraposição entre tipicidade e atipicidade, aparentemente apenas técnica, encerraopções ideológicas e culturais. Na maioria das vezes, afirma-se que os direitos da personalidade sãotípicos: fora das hipóteses expressamente previstas, ou pelo Código Civil, ou pelas leis especiais, oupela Constituição, não existiriam outras. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Trad. Maria CristinaDe Cicco, 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 154.22

“A realização plena da dignidade humana, como quer o projeto constitucional em vigor, não seconforma com a setorização da tutela jurídica ou com a tipificação de situações previamente estipuladas,nas quais pudesse incidir o comportamento.” TEPEDINO, Gustavo. Ob. cit., p. 46.23

"Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui, portanto, uma disposiçãonormativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluida’,ou ‘vaga’, caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz demodo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complementeou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar forado sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual, reiterados no tempoos fundamentos da decisão, será viabilizada a ressistematização destes elementos originariamente extra-sistemáticos no interior do ordenamento jurídico.” MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado.São Paulo: RT, 1999, p. 303.24

“Afirmada a natureza necessariamente aberta da normativa, é da máxima importância constatar que apessoa se realiza não através de um único esquema de situação subjetiva ... A esta matéria não se podeaplicar o direito subjetivo elaborado sobre a categoria do ‘ter’. Na categoria do ‘ser’ não existe a dualidadeentre sujeito e objeto, porque ambos representam o ser, e a titularidade é institucional, orgânica. Onde oobjeto de tutela é a pessoa, a perspectiva pode mudar; tornando-se necessidade lógica reconhecer, pelaespecial natureza do interesse protegido, que é justamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo osujeito titular do direito e o ponto de referência objetivo de relação. A tutela da pessoa não pode serfracionada em isoladas fattispecie concretas, em autônomas hipóteses não comunicáveis entre si, masdeve ser apresentada como problema unitário, dado o seu fundamento representado pela unicidade dovalor da pessoa. Este não pode ser dividido em tantos interesses, em tantos bens, em isoladas ocasiões,como nas teorias atomísticas.” PERLINGIERI, Pietro. Ob. cit., p. 155-156.25

“Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada aoobjetivo fundamental de erradicação da pobreza e marginalização, e de redução das desigualdades

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Tal cláusula geral (de fundamento constitucional) objetiva tutelaramplamente os interesses das pessoas, as quais passam a ser vistascomo o centro do ordenamento jurídico.

Do Direito europeu colhe-se o exemplo lusitano. Para MotaPinto o artigo 70º do Código Civil português é norma geral de tutela dapersonalidade humana, consagrando um verdadeiro “direito geral depersonalidade”, permitindo “conceder tutela a bens pessoais nãotipificados, designadamente protegendo aspectos da personalidade cujalesão ou ameaça de violação só com a evolução dos tempos assu-mam um significado ilícito”. 27

Elimar Szaniawski, ilustre professor da Universidade Federaldo Paraná, observa que a “cláusula geral” de tutela da personalidadehumana está presente no Direito alemão:

O direito geral de personalidade ressurgiu e se afirmou no direitoalemão a partir da Lei Fundamental de Bonn, ou Grund Gesetz que,em seu artigo 1º, declara ser intangível a dignidade do homem e emseu art. 2º reconhece o livre desdobramento da personalidade. Adignidade do homem e o direito ao livre desdobramento de sua per-sonalidade são, portanto, elementos integrantes do direito geral depersonalidade que, através da ordem jurídica, são garantidos comoum direito subjetivo a respeito de todas as pessoas.28

A ampla e efetiva proteção das pessoas é a missão dos direi-tos de personalidade, previstos tanto no Direito Público quanto no Direi-to Privado, protegendo as pessoas de condutas lesivas e prescrevendoa reparação dos danos materiais e morais.29

sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitose garantias, adotados pelo textor maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoçãoda pessoa humana, tomada como valor máximo do ordenamento.” TEPEDINO, Gustavo. Ob. cit., p. 48.26

“Não podem restar dúvidas que o Brasil fez a opção pelo direito geral de personalidade (ao lado daproteção tipificada, seja em leis esparsas, seja no projeto do Código Civil, em afirmar que a liberdade, asegurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça são os valores supremos de nossasociedade, assegurados pelo Estado de Direito. Além disso, a dignidade da pessoa humana é fundamentoda República (art. 1º) e é garantida a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurançae à propriedade (art. 5º)”. CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos aos chamados direitos dapersonalidade. In: Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Coord. LuizEdson Fachin. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 47.27

PINTO, Carlos Alberto da Mota. Ob. cit., p. 208.28

SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. São Paulo: RT, 1993, p. 56 .29

“Tem por finalidade suas regras, algumas das quais apresentam às vezes cunho público ou penal, sem

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A doutrina aponta como características dos direitospersonalíssimos a extrapatrimonialidade, a essencialidade, aintransmissibilidade, a imprescritibilidade, a impenhorabilidade, a vita-liciedade, destacando o caráter absoluto, erga omnes. 30

Como explica Messineo:

De aquí, las características de los derechos de personalidad; loscuales, si bien no son reales, son todos absolutos (e implican paralos terceros un deber general de abstención; en el que se concretael respeto y la salvaguardia de ellos); y son también indisponibles,intrasmisibles al herredero, irrenunciables, no-susceptibles deadquisición por virtud de posesión (qun continuada), imprescriptibles,inexpropiables y no-susceptibles de estimación pecuniária (algunosson inmodificables en su contenido). Se adquieren por el hechomismo de ser sujeto de derechos (persona); y casi todos ellos naceny se extinguen, ope legis, con la persona ... La lesión de los derechosde la personalidad se manifesta en un daño a la persona, pero asumelos contornos del que se há llamado daño no-patrimonial. 31

As várias facetas dos direitos personalíssimos espelham suaimportância, pois há proteção da personalidade em diversos níveis doordenamento jurídico, tanto constitucional quanto civil, sem olvidar quea ciência criminal cuida também da matéria, tipificando delitos contraos direitos personalíssimos (calúnia, injúria e difamação).

embargo do privativismo que as cerca: 1º) proteger aqueles direitos de ofensas por ilícitos de outrosparticulares; 2º) proibir disposições ou limitações voluntárias que se choquem com o interesse geral(ordem, bons costumes), ou importem diminuição permanente da integridade física”. OLIVEIRA, Moacyr de.Evolução dos direitos de personalidade. In: Revista dos Tribunais nº 402. São Paulo: RT, abril de 1969,p. 31.30

Como afirma Carlos Alberto Bittar: “São os direitos que transcendem, pois, ao ordenamento jurídicopositivo, porque ínsitos na própria natureza do homem, como ente dotado de personalidade. Intimamenteligados ao homem, para sua proteção jurídica, independentes de relação imediata com o mundo exteriorou outra pessoa, são intangíveis, de lege lata, pelo Estado, ou pelos particulares”. BITTAR, Carlos Alberto.Os direitos da personalidade, 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 11.31

Trad.: “Daqui, as características dos direitos de personalidade, os quais, apesar de não serem reais,são todos absolutos (e implicam para os terceiros um dever geral de abstenção; no que se concretiza orespeito e a salvaguarda deles); e são também indisponíveis, intransmissíveis ao herdeiro, irrenunciáveis,não suscetíveis de aquisição em virtude de posse (mesmo que continuada), imprescritíveis, inexpropriáveise não suscetíveis de estimação pecuniária (alguns são inalteráveis em seu conteúdo). Se adquirem pelofato mesmo de ser sujeito de direitos (pessoa); e quase todos eles nascem e se extinguem, ope legis, coma pessoa ... A lesão dos direitos da personalidade se manifesta em um dano à pessoa, mas assume oscontornos do que se chamou dano não patrimonial”. MESSINEO, Francesco. Ob. cit., p. 04.

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DIREITOS DE PERSONALIDADE E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Há muito esteve o tema dos direitos de personalidade ligadoao Direito Público.32 Para Limongi França, se por um lado isso poderiase constituir em lacuna, por outro mostra “a importância desses Direi-tos, pois muitos deles integram as declarações constitucionais que ser-vem como garantia dos cidadãos contra as arbitrariedades do Estado”.33

Nada, obstante, a previsão dos direitos de personalidade naseara do Direito Privado, inegável a proximidade desses com os direi-tos fundamentais, previstos em normas de Direito Público.34

Capelo de Sousa, autor de “o direito geral de personalidade”,observa que a afinidade entre direitos de personalidade e direitos fun-damentais “emerge da parcial sobreposição ao nível da pessoa huma-na de dois planos jurídico-gnoseológicos: o de Direito Civil, onde sefundam os direitos da personalidade, e o de Direito Constitucional,d’onde irradiam os direitos fundamentais”.35

É do Direito Privado o domínio da doutrina dos direitos de per-sonalidade, considerados direitos subjetivos de ordem privada dota-dos de proteção civil, enquanto “la teoría de los derechos del hombrese preocupa, sobre todo, de su tutela publica, aspirando a poner alindividuo bajo la protección del Derecho político”, como sustenta CastanTobenãs.36

32 Tratando dos direitos de personalidade, escreve Moacyr de Oliveira que “fixados no decorrer do

século passado, por juristas alemães, foram durante muito tempo, como prerrogativas essenciais efundamentais da pessoa, considerados via de regra como matéria de Direito Público. Pertence a épocarecente sua caracterização no rumo privativista que lhe deram sobretudo na Alemanha, Itália, França eEspanha.” OLIVEIRA, Moacyr de. Ob. cit., p. 29.33

FRANÇA, Rubens Limongi. Ob. cit., p. 10.34

Segundo Ricardo Luis Lorenzetti, “os direitos fundamentais têm sido chamados de garantias de liberdade,direitos individuais, direitos participativos, direitos humanos ou direitos personalíssimos. Indicamos a origemhistórica e a indubitável referência aos valores que eles supõem, e que correspondem ao homem enquantotal, independente da ordem jurídica onde vive.” LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direitoprivado, Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo : RT, 1998, p. 283 .35

O autor observa que, embora haja larga coincidência entre os direitos de personalidade e os direitosfundamentais, isso “não significa assimilação ou perda de autonomia conceitual recíproca, pois taiscategorias jurídicas, mesmo quando tenham por objeto idênticos bens de personalidade, revestem umsentido, uma função e um âmbito distintos, em cada um dos planos em que se inserem” . SOUSA,Radinbranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra, Portugal : CoimbraEditora, 1995, p. 581-584.36

“La significación política que acompaña a la teoría de los derechos del hombre y del ciudadano,como a la de los llamados derechos individuales, es, en efecto, muy clara. Están vinculados a lasDeclaraciones de derechos formuladas a partir del siglo XVIII, cuyas fuentes doctrinales e históricas

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A despeito de enraizada no Direito Privado, vê-se com freqüên-cia a tutela dos direitos personalíssimos pelo Direito Público, por nor-mas e princípios consagrados em pactos e convenções internacionais,em especial as que têm por desiderato declarar os direitos fundamen-tais do homem.37

No dizer de Capelo de Sousa:

De todo o modo, apesar destas destrinças, verifica-se como vimos,uma tendência, face ao reconhecimento constitucional da dignidadeda pessoa humana no quadro das relações sociais, para os direitosde personalidade serem também tutelados, no plano constitucional,como direitos fundamentais. Inversamente, ocorre ainda outra ten-dência, face ao reconhecimento de uma dimensão relacional ‘eu’-mundo da personalidade, para os direitos fundamentais serem direi-tos de personalidade, mas aqui com o limite não subvertível do con-teúdo e do continente da personalidade humana enquanto bem juri-dicamente directamente tutelável. 38

Em perspectiva história, o Direito Privado nacional (CCB-16)negou tratamento sistemático aos direitos de personalidade,39 preven-do somente a tutela indireta desses direitos, mediante a incidência dos

se discuten, pero cuya doble característica, política e individualista, se manifiesta con mucho relieve.”Trad.: “O significado político que acompanha a teoria dos direitos do homem e do cidadão, como o doschamados direitos individuais, é, com efeito, muito claro. Estão vinculados às declarações de direitosformuladas a partir do século XVIII, cujas fontes doutrinárias e históricas se discutem, mas cuja duplacaracterística, política e individualista, se manifesta com muita relevância.” TOBENÃS, José Castan. Ob.cit., p. 12-13.37

Como escreve Jésus Gonzáles Pérez : “ciertamente, las facultades que integran la esfera imediata dela personalidad quedan relegadas a una zona de valor social secundario. Pero, desde principios de siglo,son evidentes los esfuerzos de la doctrina – acentuados los últimos años – por la costrucción jurídica delos derechos de la personalidad, ‘para poder acorazar a la persona humana en las relaciones de Derechoprivado’, sin que pueda desconocerse la influencia de las declaraciones de los derechos humanos.” Trad.:“Certamente, as faculdades que integram a esfera imediata da personalidade ficam relegadas a umazona de valor social secundário. Mas, desde o princípio do século, são evidentes os esforços da doutrina– acentuados nos últimos anos – pela construção jurídica dos direitos da personalidade, ‘para poderdefender a pessoa humana nas relações de Direito privado’, sem que se possa desconhecer a influênciadas declarações dos direitos humanos.” PÉREZ, Jesús González. La dignidad de la persona. Madrid,Espanha: Editorial Civitas, 1986, p. 124.38

“Por outro lado, há direitos fundamentais que, por não terem como objecto tutelado directamente apersonalidade humana, não se traduzem, ao nível juscivilístico ou nem sequer no plano da garantiajuspublicística, em direitos de personalidade. É, nomeadamente, o caso de garantia de acesso ao direitoe aos tribunais ..., das garantias contra a retroactividade da lei criminal ..., da maioria das garantias doprocesso criminal ...” SOUSA, Radinbranath Valentino Aleixo Capelo de. Ob. cit., p. 585-586.39

A tutela à pessoa humana, no Código Civil de 1916, se encontra nos dispositivos que tratam daliquidação das obrigações decorrentes de atos ilícitos, em especial nos artigos 1.537 a 1.553.

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princípios e normas da responsabilidade civil (reparação de danosextrapatrimoniais).

Nada obstante, a previsão dos direitos personalíssimos emmodernas codificações, inexistia na lei nacional normas adequadassobre a tutela preventiva e a tutela reparatória dos direitos de persona-lidade, sendo (de certo modo) um alento a previsão da matéria nonovo Código de iminente vigência.40

O arcaico patrimonialismo do CCB-16 foi combatido por ou-tras leis que, reconhecendo as mutações decorrentes de fatores soci-ais, culturais e éticos, passaram a valorizar as pessoas como criado-ras e destinatárias das normas jurídicas.

À evidência, houve (há) gradativa transformação no DireitoPrivado, passando o Direito Civil a ocupar-se mais das pessoas e seusdireitos inatos, para além de valorizar unicamente os bens materiais.41

A lacuna legislativa da codificação de 1916 ensejou a ediçãode outros diplomas legislativos, visando a proteger os direitos de per-sonalidade, cuidando da tutela indireta das pessoas, principalmentepela previsão de reparabilidade de danos extrapatrimoniais.42

40 Para Carlos Alberto Bittar, “os direitos de personalidade – tema sobre o qual se digladiam os autores

e sob diferentes aspectos não se alcançando, ainda, uma colocação definitiva, em face, principalmente,da construção teórica recente – vêm obtendo, gradativamente, a inserção em Códigos e projetosrecentes, fato que reflete tendência para o seu reconhecimento legislativo geral. Essa postura vempreencher lacunas existentes na orientação tradicional, pois os Códigos, especialmente os de influênciafrancesa, inspiraram-se na divisão dos direitos em pessoais, reais e obrigacionais, não se preocupandocom a inclusão dos da personalidade, cabendo à jurisprudência e à doutrina a sua afirmação”. BITTAR,Carlos Alberto. Os direitos da personalidade e o projeto do Código Civil brasileiro, Ob. cit., p.127.41

Como observa Eroulths Cortiano Junior: “No âmbito do direito privado deixa-se (rectius: está se deixando)atrás a velha concepção do patrimonialismo, marcante nas codificações que praticamente atravessarameste século. O direito civil deixa de ser marcado pela propriedade, contrato, testamento e família. Umacontemporânea visão do direito procura tutelar não apenas estas figuras pelo que elas representam em simesmas, mas deve tutelar certos valores tidos como merecedores de proteção: a última ratio do direito éo homem e os valores que traz encerrados em si. Neste sentido, revolta-se o direito contra as concepçõesque o colocavam como mero protetor dos interesses patrimoniais, para postar-se agora como protetordireto da pessoa humana. Ao proteger (ou regular) o patrimônio, se deve fazê-lo apenas e de acordo como que ele significa: suporte ao livre desenvolvimento da pessoa”. CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Algunsapontamentos sobre os chamados direitos da personalidade, Ob. cit., p. 32-33.42

São exemplos de leis que tutelam indiretamente direitos da personalidade, mediante a previsão dareparabilidade dos danos extrapatrimoniais: a) Lei 5.250/67, chamada Lei de Imprensa, que regula aliberdade de manifestação do pensamento e de informação; b) Lei 7.565, de 19/12/86, que instituiu oCódigo Brasileiro do Ar, disciplinando responsabilidade civil por acidentes aéreos e prevendo a reparaçãode danos pessoais; c) Lei 6.453, de 17/10/77, que dita regras sobre a responsabilidade civil decorrentede atividades nucleares; d) Lei 7.853, de 24/10/89, que tutela os interesses de pessoas portadoras de

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O texto constitucional transmou o Direito Privado, pois a Consti-tuição Federal consagrou os direitos fundamentais e os direitos de per-sonalidade como alicerces de uma sociedade fraterna, pluralista e de-mocrática, 43 anunciando a Lei Maior a supremacia do ser sobre o ter,dos valores humanos acima dos bens materiais.44

Orlando de Carvalho, consagrado jurista português, trata dotema sob o título “repersonalização do Direito Civil”, reconhecendo asupremacia da pessoa humana e de seus direitos imanentes, os quaisdevem ocupar o topo do ordenamento jurídico.45

Para Cortiano Junior o fenômeno da repersonalização “vai seimpondo como uma resposta à ordem criada e que não mais se encai-xa na moldura dos fatos, e tampouco nas esperanças do homem”, pois“o direito não está apenas centrado funcionalmente em torno do con-ceito de pessoa, mas também seu sentido e sua finalidade são a prote-ção da pessoa”. 46

deficiências físicas; e) Lei 8.069, de 13/07/90, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente, quedisciplina a proteção da infância e da juventude; f) Lei 8.078/90, chamada Código de Defesa do Consumidor,que elenca como direito básico do consumidor a prevenção e a reparação de danos, tanto materiaisquanto imateriais.43

Preâmbulo da Constituição Federal : “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em AssembléiaNacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitossociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiçacomo valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmoniasocial e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacíficas das controvérsias,promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. TítuloI. DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS. Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela uniãoindissociável dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático deDireito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV– os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa – V – o pluralismo político.”44

Sobre o assunto, escreve Gustavo Tepedino: “No caso brasileiro, em respeito ao texto constitucional,parece lícito considerar a personalidade não como um novo reduto de poder do indivíduo, no âmbito doqual seria exercido a sua titularidade, mas como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomiaprivada, capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de validade. A prioridade conferidaà cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III, CF), fundamentos da República, e a adoçãodo princípio da igualdade substancial (art. 3º, III), ao lado da isonomia formal do art. 5º, bem como agarantia residual estipulada pelo artigo 5º, § 2º, CF, condicionam o intérprete e o legislador ordinário,modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte”.TEPEDINO, Gustavo. Ob. cit, p. 47.45

A repersonalização do direito civil, ou a polarização da teoria em volta da pessoa, trata de “repor oindivíduo e os seus direitos no topo da regulamentação jure civile, não apenas como o actor que aíprivilegiadamente intervém mas, sobretudo, como o móbil que privilegiadamente explica a característicatécnica dessa regulamentação”. CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica – seusentido e limites (nota prévia), 2 ed. Coimbra: Centelha, 1981, p. 10.46

“O centro nuclear do direito civil é a pessoa humana. Todo e qualquer instituto jurídico só tem razão deser a partir do momento em que exista (e seja considerado) em função do homem. O próprio direito

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Vale citar ainda a poética lição de Lorenzetti, para quem “o gru-po de direitos fundamentais atua como um núcleo, ao redor do qual sepretende que gire o Direito Privado; um novo sistema solar, no qual oSol seja a pessoa”.47

A “repersonalização do Direito Civil” é relevante marco teóricopara a doutrina dos direitos de personalidade. Além disso, a teoria dosdireitos personalíssimos é construída sobre os princípios constitucio-nais que consagram às pessoas especial proteção.

Neste contexto, ao lado “repersonalização” destaca-se o fenô-meno da “constitucionalização do Direito Civil”, pois, no Brasil, é notexto constitucional que se encontram as normas fundamentais queconduzem à aceitação de um direito geral de personalidade, a tutelar(amplamente) os atributos existenciais das pessoas.48

José Antônio Peres Gediel, na obra “os transplantes de órgãose a invenção moderna do corpo”, escreve que “a revitalização do co-nhecimento jurídico, por meio dos textos constitucionais e da doutrinaconstitucionalizada, permitiu aos estudiosos do Direito Civil refundir osdireitos fundamentais, originalmente erigidos contra o Estado, com osdireitos de cunho privado, para destacarem o seu núcleo comum, loca-lizado na dignidade humana”.49

Convergindo, Maria Celina Bodin de Moraes afirma a

encontra sua razão de existir na noção de pessoa humana, que é anterior à ordem jurídica. Esta,construindo a noção de personalidade, o faz com base num dado pré-normativo, que é, ao mesmo tempoontológico (a pessoa é) e axiológico (a pessoa vale).” CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Algunsapontamentos sobre os chamados direitos da personalidade, Ob. cit., p. 41-53.47

LORENZETTI, Ricardo Luis. Ob. cit., p. 145.48

No dizer de Eroulths Cortiano Junior, a constitucionalização da proteção à personalidade deve serrefletida sob um duplo aspecto: 1º) a superação dos limites do direito privado clássico; 2º) a efetividade danorma constitucional de proteção à personalidade, dotada de concretude e aplicação imediata : “assim éque as normas constitucionais de proteção à personalidade não devem ser vistas apenas como normasprogramáticas (portanto não dotadas de concretude). Ao contrário. Se todo o sistema jurídico gravita emtorno da Constituição, tudo o que nela se contém forma e informa o direito ordinário. A ordem jurídica deuma sociedade é unitária, o que afasta a tradicional contraposição direito privado/direito público. Comoconseqüência, afasta-se também uma eventual contraposição direito civil/direito constitucional. A normaconstitucional é parte integrante da ordem normativa, não podendo restringir-se a mera diretrizhermenêutica ou regra limitadora da legislação ordinária ... Assim, não se fala mais em proteção humanapelo direito público e pelo direito privado, mas em proteção da pessoa humana pelo direito”. CORTIANOJUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade, Ob.cit, p. 37-38.49

GEDIEL, José Antônio Peres. Os transplantes de órgãos e a invenção moderna do corpo.Curitiba:Moinho do Verbo, 2000, p. 06.

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constitucionalização do Direito Civil, pela qual a dignidade da pessoahumana é erigida como um dos fundamentos da República Federativado Brasil, extinguindo o antagonismo entre Direito Público e DireitoPrivado.50

Para a respeitável jurista, a Constituição Federal deve orientare informar todos os ramos do Direito, impondo-se que a hermenêuticado Direito Privado seja guiada pela luz do texto constitucional.

Quando as Constituições mudam o caráter liberal (de meroinstrumento de limitação do poder político do Estado) buscando seruma Constituição dirigente, regulando e controlando a ordem econô-mica e social (como a Constituição brasileira em vigor), a norma cons-titucional passa a ocupar o lugar que pertencia à codificação civil.

No Brasil, a Constituição da República está no topo da pirâmi-de jurídica, garantindo a unidade do sistema jurídico. A Constituiçãoorienta as normas infraconstitucionais para a concretização dos ideaisenunciados no texto constitucional.

Em tal contexto, ressalta-se a rejeição do antagonismo rígidoentre Direito Público e Direito Privado, sem significar, no entanto, queo Direito Privado tenha perecido ou diminuído de importância, e que oDireito Público tenha tomado conta de todo o ordenamento jurídico.

Em verdade, pretende-se que o sistema normativo seja (re)vistoà luz do texto constitucional, com a “aplicação direta e efetiva dos va-lores e princípios da Constituição, não apenas na relação Estado-indi-víduo, mas também na relação interindividual, situada no âmbito dosmodelos próprios do Direito Privado”.51

Além da superação da clássica dicotomia entre Direito Públi-co e Direito Privado, merecem ser destacados outros pressupostosmetodológicos do tema, destacando-se a consciência da unidade dosistema e da hierarquização do ordenamento jurídico.

A Constituição é a norma fundamental do Direito Positivo. Con-tém valores éticos e morais que devem ser observados pelo legisladorinfraconstitucional na elaboração das leis públicas e privadas destina-50

TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. In: Revista deDireito Civil nº 65. São Paulo: RT, julho-setembro de 1993, p. 26.51

Idem, p. 28.

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das a regular a vida das pessoas.As Constituições representam bem mais do que meros “docu-

mentos políticos” que limitam o legislador com normas programáticas,reconhecendo-se, hoje, (no plano teórico) a necessidade daconcretização do princípio da efetividade das normas constitucionais,as quais são dotadas de aplicabilidade direta às relações de DireitoPúblico e de Direito Privado. Todo o sistema jurídico deve refletir osprincípios e valores da lei fundamental, à Constituição Federal.

Assim, os direitos de personalidade afirmam-se (em princípio)em nível constitucional, acolhendo a Constituição gama de direitos que(historicamente) estava relegada ao âmbito do Direito Privado.

A lição de Gediel sintetiza a nova visão (constitucional) dosdireitos de personalidade, pois os direitos personalíssimos integramos direitos fundamentais, ao se liberarem de sua origem puramenteindividualista e se apresentarem comprometidos com a solidariedadesocial.

As noções de direito subjetivo e de liberdade, até entãoconstruídas em torno do poder de decisão individual, passam a irradiardeveres especiais para o titular do direito com relação à sua própriacondição humana. A soberania do Estado, por sua vez, vem mitigadapelo dever de garantia dos direitos fundamentais aos cidadãos. [...]

A fundamentalidade dos direitos da personalidade rompe coma fragmentação das categorias jurídicas de Direito Público e Privado, àmedida que contempla, concomitantemente, poderes e deveres, quese unificam no ser humano e se projetam no sujeito e no cidadão. [...]

A aproximação entre os direitos fundamentais e os direitos dapersonalidade, nos textos constitucionais mais recentes, a exemplo doque ocorre com a CF, permite não só contemplar os direitos de perso-nalidade, a partir de uma cláusula geral de proteção (art. 1º), mas tam-bém consagrar, explicitamente, um rol desses direitos (art. 5º).

O movimento de constitucionalização dos direitos de personali-dade vem acompanhado de uma elaboração teórica, que inclui areapreciação de elementos da teoria clássica do Direito Civil. 52

52 GEDIEL, José Antônio Peres. Os transplantes de órgãos e a invenção moderna do corpo, cit., p. 48-50.

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A proteção das pessoas é prevista também em leis penais,tipificando variadas condutas delituosas como os crimes contra a vida,contra a integridade física e moral, a garantia de inviolabilidade da inti-midade, vida privada, dentre outros. 53

A tipificação de condutas violadoras dos direitos de personali-dade incide no âmbito específico do poder punitivo do Estado, o qualconsidera criminosos atos atentatórios à pessoa (natural ou jurídica),o que representa mais uma faceta da tutela jurídica da personalidade. 54

Além da tutela constitucional e penal, há a tutela civil preventi-va e reparatória, aquela buscando evitar que ocorra dano à pessoa,esta afirmando o dever de reparação, se presentes os pressupostosda responsabilidade civil.

O sistema brasileiro de proteção civil à personalidade afirma-se com ênfase no aspecto reparatório, pelo qual o Poder Judiciáriopode impor ao ofensor o pagamento de uma soma em dinheiro em prolda vítima de danos extrapatrimoniais (morais).

Nada obstante, (mesmo rara) vislumbra-se a possibilidade dereparação in natura ou reparação natural, como ocorre (por exemplo)com o direito de resposta em face de afirmações ofensivas ou da pu-blicação de sentença condenatória em delito contra a honra.

No plano civil verifica-se tendência de fortalecimento da tutelapreventiva dos direitos de personalidade, visando a evitar que ocorramdanos. No contexto, essencial o papel do Poder Judiciário, atuando

53 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade e o projeto do Código Civil brasileiro,

Ob. cit., p. 116.54

Carlos Alberto Bittar Filho, referindo-se à tutela dos direitos da personalidade, com ênfase para aproteção dos direitos autorais, assim escreve : “A fim de dar aos direitos da personalidade e aosautorais total amparo, o ordenamento jurídico prevê diversos modos de reação. Os objetivos específicosque o norteiam são, de maneira geral, os seguintes : a) cessação de práticas lesivas; b) apreensão demateriais oriundos de tais práticas; c) submissão do agente ao cumprimento de pena; d) reparação dedanos materiais e morais; e) perseguição criminal do agente. Aqui, a nota central é, sem dúvida, adignidade humana, que deve sempre ser preservada de todos os ataques da ilicitude. A tutela conferidaaos direitos da personalidade e aos autorais espraia-se por três esferas – a administrativa, a civil e apenal. O princípio básico que as inspira é o da independência (CC, art. 1.525): preenchidos, entretanto,os respectivos requisitos em concreto, há a possibilidade de uso simultâneo, em certos casos (e.g., umaprática civilmente ilícita e tipificada como crime para propiciar a ação do lesado nos juízos cível e criminal,a par de eventuais providências administrativas compatíveis).” BITTAR, Carlos Alberto & BITTAR FILHO.Tutela dos direitos da personalidade e dos direitos autorais nas atividades empresariais.São Paulo: RT, 1993, p. 12-13.

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mediante pedidos em ações cautelares ou de antecipação de tutela,instrumentos de urgência.

Em síntese, destaca-se a amplitude da proteção às pessoas(à personalidade e seus atributos imateriais) consagrada na Constitui-ção da República e em Leis Ordinárias, consolidando (no planolegislativo) a teoria dos direitos de personalidade.

A NOVA CODIFICAÇÃO E OS DIREITOS DE PERSONALIDADE

O artigo 11 do novo CCB abre o Capítulo “dos direitos da per-sonalidade” : “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos dapersonalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo oseu exercício sofrer limitação voluntária”.

A intenção do legislador em enunciar as características dosdireitos de personalidade é louvável. Entretanto, a norma é incomple-ta, deixando ao largo, outros atributos, como a extrapatrimonialidade,a impenhorabilidade, a oponibilidade erga omnes e outros.

O artigo 12 trata das modalidades de tutela concedidas aosdireitos personalíssimos: “pode-se exigir que cesse a ameaça, ou alesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, semprejuízo de outras sanções previstas em lei”.55

Referindo-se à cessação da ameaça, cuida a norma da cha-mada tutela preventiva dos direitos de personalidade, a qual objetivaevitar danos, prevenindo o ilícito ou (ao menos) amenizando sua gravi-dade.

Aludindo a “perdas e danos”, o novo Código impõe a responsa-bilidade civil aos ofensores dos direitos personalíssimos. A norma abran-ge tanto os danos materiais (danos emergentes e lucros cessantes)quanto (e principalmente) a efetiva reparação dos danosextrapatrimoniais decorrentes de ofensa aos direitos de personalidade.

A lei determina ainda que o responsável por ato ilícito contrárioaos direitos de personalidade sujeite-se a variadas sanções, como ocor-re com ato ilícito que seja tipificado penalmente, como ocorre com oscrimes contra a honra (artigos 138 a 140 do Código Penal).55

“Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista nesteartigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau”.

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É ampla a proteção da honra, pois a ofensa ao direitopersonalíssimo acarreta o dano moral, podendo ensejar prejuízos finan-ceiros positivos (danos emergentes) e negativos (lucros cessantes), alémde (eventualmente) incidir em um ou mais tipo(s) penal(is) : calúnia, injú-ria ou difamação.

Os artigos 13 a 15 do novo CCB cuidam de importantes aspec-tos ligados à proteção psicofísica das pessoas:

Artigo 13 – Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposi-ção do próprio corpo, quando importar diminuição permanente daintegridade física, ou contrariar os bons costumes.

Parágrafo único – O ato previsto neste artigo será admitido para finsde transplante, na forma estabelecida em lei especial.

Artigo 14 – É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposi-ção gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois damorte.

Parágrafo único – O ato de disposição pode ser livremente revoga-do a qualquer tempo.

Artigo 15 – Ninguém pode ser constrangido a submeter-se com ris-co de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

Do artigo 16 ao artigo 19 o novo Código protege o nome (pre-nome e sobrenome) e o pseudônimo:

Artigo 16 – Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos oprenome e o sobrenome.

Artigo 17 – O nome da pessoa não pode ser empregado por outremem publicações ou representações que a exponham ao desprezopúblico, ainda quando não haja intenção difamatória.

Artigo 18 – Sem autorização, não se pode usar o nome alheio empropaganda comercial.

Artigo 19 – O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza daproteção que se dá ao nome.

O artigo 20 reporta-se ao abuso na liberdade de manifestaçãode pensamento, cuidando de divulgação de escritos e da utilização daimagem:

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Artigo 20 – Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administra-ção da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação deescritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição oua utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seurequerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atin-girem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destina-rem a fins comerciais.

Parágrafo único – Em se tratando de morto ou de ausente, são par-tes legítimas para reclamar essa proteção o cônjuge, os ascenden-tes ou os descendentes.

O artigo 21 cuida da vida privada, importante direito de perso-nalidade, prevendo que “a vida privada da pessoa natural é inviolável,e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências ne-cessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.

Ressalte-se que o rol dos direitos de personalidade no novoCCB não deve ser considerado exaustivo, porque o direito geral de per-sonalidade consagrado no texto constitucional não limita a tutela dosdireitos personalíssimos (somente) aos previstos, norma expressa (lei).

Por um lado a nova codificação (no capítulo em comento) nãocuida exaustivamente dos direitos subjetivos de personalidade. Por ou-tro, afirma-se existir uma cláusula geral, pela qual todo e qualquer atri-buto da personalidade merece ampla e efetiva proteção, pois a dignida-de do ser humano é um dos pilares da República Federativa do Brasil,conforme artigo primeiro, inciso terceiro, da Constituição Federal.

OS DIREITOS DE PERSONALIDADE E A PESSOA JURÍDICA

Importante inovação da novel codificação é o reconhecimento(expresso) da titularidade dos direitos de personalidade pelas pessoasjurídicas, como previsto no artigo 52: “aplica-se às pessoas jurídicas,no que couber, a proteção dos direitos de personalidade”.

Mesmo tendo sido amplamente debatido na doutrina e juris-prudência, o tema “pessoa jurídica” ainda suscita controvérsias, multipli-cando-se as teorias sobre sua natureza e outros aspectos de sua perso-nalidade jurídica, acirrando-se o debate entre juristas e tribunais em todoo mundo.

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A doutrina ficcionista afirma que o Direito Romano só reconhe-cia como persona o ser humano, sabendo-se, entretanto, que a noçãode pessoa jurídica surgiu já naquele período quando se reconhececomo sujeito de direitos o estado romano (populus romanus), as ciutatese os municipia.

A elaboração teórica do conceito de pessoa jurídica foi obra doDireito Canônico, o qual considerou a Igreja um corpus mysticum oupersona ficta. A partir daí, o direito privado passou a atribuir o status depersona também às coletividades (associações) e patrimônios (fundações).

A doutrina da realidade da pessoa jurídica combate a idéiaficcionista, reconhecendo o Direito o fundamento social de agregaçãohumana, atribuindo às pessoas jurídicas personalidade real, com ca-pacidade jurídica para a prática dos atos necessários à implementaçãode seus objetivos sociais.

A afirmação da realidade da pessoa jurídica decorre de seucunho social subjacente, congregando pessoas naturais em torno defins comuns, podendo-se daí concluir que a existência das pessoasjurídicas decorre dos interesses humanos duradouros, de caráter co-mum ou coletivo, exigindo o concurso de várias pessoas para sua con-secução.

As pessoas jurídicas existem para servir às pessoas naturais,sendo instrumento de concretização dos objetivos comuns ou coleti-vos a impor a conjugação de esforços.

Há diferenças valorativas entre pessoas naturais e pessoasjurídicas, pois só as pessoas naturais têm existência física, corpórea,sendo sua tutela mais abrangente do que a das pessoas jurídicas.

Nada obstante, o fundamento social do fenômeno associativocriador das pessoas jurídicas, evidencia-se que somente o Direito po-sitivo pode atribuir personalidade jurídica aos entes coletivos, exigindoà lei diversos requisitos para sua constituição, existência e extinção.

O conceito de pessoa jurídica varia conforme o momento históricoe a ideologia da ordem jurídica, atribuindo-se o status de pessoa jurídicaaos entes que o Estado (mediante o Direito) reconhece como tal.

Sendo evidente a realidade jurídica dos entes coletivos, seu

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campo de atuação, é geralmente, patrimonial, manifestada na práticade negócios jurídicos que visem atingir a plenitude de seus objetivossociais.

Nada obstante, (para além de seu patrimônio econômico) a pes-soa jurídica possui esfera moral, abrangendo direitos de personalidade(extrapatrimoniais), como a honra objetiva e o nome (dentre outros).

Há doutrina e jurisprudência contrárias ao reconhecimento dedireitos extrapatrimoniais às pessoas jurídicas, sob o argumento dainexistência de personalidade jurídica dos entes coletivos, tudo combase nas teses ficcionistas.

A controvérsia tem sido superada pela admissão de algunsdireitos personalíssimos aos entes coletivos. Do contexto, verifica-seque a jurisprudência nacional indica a superação da postura negativistaquanto à compabitilidade de certos direitos de personalidade à pessoajurídica, bastando ver a Súmula de Jurisprudência Predominante doSTJ, verbete nº 227: “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.

Admite-se a possibilidade de a pessoa jurídica pleitear repara-ção por danos extrapatrimoniais, o que está previsto na própria Cons-tituição (art. 5º, V e X). A pessoa jurídica pode ser considerada vítimade danos imateriais, inexistindo no texto constitucional distinção entreas pessoas naturais e jurídicas.

A tutela da personalidade da pessoa jurídica é também previs-ta em leis como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Impren-sa, ambas acolhendo a reparabilidade do dano extrapatrimonial decor-rente da ofensa aos direitos de personalidade.

A proteção da pessoa jurídica abrange os direitos de persona-lidade, componentes de uma esfera moral, como o direito à honra ob-jetiva, ao nome, ao crédito, ao segredo, além de outros direitosextrapatrimoniais inerentes à personalidade jurídica e compatíveis comos entes coletivos.

Neste contexto, a análise dos direitos de personalidade com-patíveis com a pessoa jurídica revela que o ordenamento jurídico brasi-leiro tutela a honra objetiva da pessoa jurídica em dois planos: o civil e openal. O primeiro impõe a responsabilidade por danos e o segundo tu-

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tela criminalmente a honra objetiva (difamação ou calúnia).A pessoa jurídica tem direito ao nome como meio de

individualização e de reconhecimento na sociedade, tutelando o textoconstitucional o nome empresarial, decorrendo daí (analogicamente) aproteção do nome de qualquer pessoa jurídica, proibindo-se a usurpação.

O direito ao crédito integra a esfera moral da pessoa jurídica,merecendo tutela diante de qualquer ato que injustamente o abale,gerando danos materiais ou extrapatrimonais.

Verifica-se forte tendência doutrinária pela aceitação do direitoao segredo ou intimidade das pessoas jurídicas, protegendo-se o res-guardo do sigilo de suas atividades sociais; o segredo comercial eindustrial; o sigilo bancário, fiscal e de comunicações.

Para além desses direitos, a esfera moral da pessoa jurídicaacolhe outros atributos compatíveis com a personalidade jurídica dosentes coletivos, ainda que não expressamente previstos em texto legal.

DIREITOS DE PERSONALIDADE E RESPONSABILIDADE CIVIL

Os atos que agridem as pessoas (naturais e jurídicas) e maculamos direitos de personalidade são considerados atos ilícitos de naturezacivil, gerando danos extrapatrimoniais passíveis de reparação.

Segundo o artigo 927 do CCB, “aquele que, por ato ilícito (arts.186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”, dispondoseu parágrafo único que “haverá obrigação de reparar o dano, inde-pendentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando aatividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, porsua natureza, risco para os direitos de outrem”.56

Do artigo 927 ao artigo 943 o novo Código cuida “da obrigação

56 Novo Código Civil – DOS ATOS ILÍCITOS:

Artigo 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ecausar prejuízo a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.Artigo 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamenteos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.Artigo 188 – Não constituem atos ilícitos:I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.Parágrafo único – No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias otornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção doperigo.

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de indenizar”, traçando regras gerais de responsabilidade civil, dentreas quais destacam-se:

Artigo 931 – Ressalvados outros casos previstos em lei especial,os empresários individuais e as empresas respondem independen-temente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos emcirculação.

[...]

Artigo 935 – A responsabilidade civil é independente da criminal, nãose podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobrequem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decidi-das no juízo criminal.

[...]

Artigo 942 – Os bens do responsável pela ofensa ou violação dodireito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, sea ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamentepela reparação

[...]

Artigo 932 – O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-latransmitem-se com a herança.

O artigos 944 a 954 do CCB são dedicados à “indenização”, aqual é medida “pela extensão do dano”. Pela nova codificação, “sehouver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano,poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização” (artigo 944 eparágrafo único).

Destaque-se o artigo 945 do novo Código, pelo qual “se a víti-ma tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indeni-zação será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa emconfronto com a do autor do dano”.

Os demais dispositivos que tratam da “indenização” reportam-se, em geral, à modalidades de reparação de danos, como nos casosde homicídio; lesão ou ofensa à saúde; incapacidade laborativa;usurpação ou esbulho; injúria, difamação ou calúnia (ofensas contra ahonra) e ofensas à liberdade pessoal (cárcere privado; prisão por quei-

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xa ou denúncia falsa e de má-fé; prisão ilegal).Ao largo da reparação civil, é possível a incidência da respon-

sabilidade penal, desde que o ato gerador do dano seja tipificado comocrime, como se dá com os delitos contra a honra (calúnia, injúria edifamação), ensejando a ação penal (queixa-crime) visando a imposi-ção da pena criminal correspondente.

Certo é que a responsabilidade civil independe da criminal, im-pondo-se o dever de reparar sempre que presentes os elementos es-senciais da responsabilidade civil, independente do resultado doprocesso criminal, como dispõe o artigo 935 da novel codificação.

Destarte, o dever de reparar não está vinculado à condena-ção criminal do ofensor, porém a sentença penal condenatória impedea discussão, no juízo cível, sobre a autoria e materialidade do ilícito.

Ao largo da doutrina, a análise da jurisprudência é o meio ade-quado à investigação dos casos de ofensas contra as pessoas (natu-rais e jurídicas), os quais aplicam a responsabilidade civil em face daofensa aos direitos de personalidade.

A questão da natureza jurídica da reparação dos danosextrapatrimoniais é controvertida, podendo-se afirmar (ao mesmo tem-po) o caráter de penalidade para o ofensor e a função compensatóriapara a vítima.

O Direito atual tende a aceitar amplamente a teoria mista oueclética da reparabilidade do dano extrapatrimonial, reconhecida acomplexidade da natureza jurídica da reparação e afirmada a necessi-dade de conjugação dos seguintes objetivos: a punição do ofensor e acompensação da vítima.

Quanto à fixação do valor da reparação (quantum debeatur),verifica-se que (salvo exceções) inexistem critérios objetivos (totalmenteseguros) que guiem o magistrado na fixação do valor de reparaçõesde danos que, (diante de sua peculiar natureza) são insuscetíveis deapreciação econômica.

O Direito brasileiro filiou-se ao sistema aberto de responsabili-dade civil por danos extrapatrimoniais, não dispondo a lei, em regra,sobre critérios rígidos e previamente determinados para a

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ressarcibilidade das ofensas contra a esfera moral da pessoa.No Direito pátrio a fixação de valores para reparação de danos

extrapatrimoniais é tarefa exclusiva do magistrado, inexistindo limita-ção legal para a fixação do quantum, estando revogada a Lei de Im-prensa (Lei 5.250/67) quanto aos tetos máximos de reparação, confor-me tem afirmado a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

O arbítrio do magistrado é apontado como o fator determinantena reparação dos danos extrapatrimoniais, afirmando-se enfaticamen-te o caráter subjetivo do arbitramento.

Ao lado da subjetividade, impõe-se que o magistrado observediretrizes (princípios qualitativos e critérios quantitativos) que vêm sendodelineadas há décadas pela doutrina e jurisprudência.

Para a fixação do valor, deve o magistrado enfatizar o princí-pio da reparação mais completa possível, aquela que (efetivamente)proporcione (simultaneamente) punição exemplar para o ofensor e realcompensação para a vítima.

As decisões que concedem reparação de danosextrapatrimoniais geralmente assinalam que o valor deve ser arbitradocom razoabilidade, visando a coibir o possível enriquecimento ilícitoda vítima.

A leitura crítica da jurisprudência nacional conduz à conclusãode que, se, por um lado o princípio da razoabilidade da reparação devecoibir intenção de locupletamento da vítima, por outro, a função puniti-va da reparação deve ser ressaltada, devendo o valor atender satisfa-toriamente ao fim de sancionar o causador dos danos.

Em face do caráter emblemático que a função punitiva da repara-ção inflige ao causador do dano, não se justifica o arbitramento de valoresínfimos a título reparatório, como têm ocorrido freqüentemente nos tribu-nais pátrios ao argumento de que a reparação deve ser razoável.

Para a quantificação da reparação por danos extrapatrimoniaisdeve o magistrado considerar vários fatores na busca da justa reparação,ressaltando-se a gravidade do dano e a situação econômica das partes,especialmente a do ofensor, pois quanto maior for o potencial financeirodo causador do dano, tanto mais onerosa será a reparação devida.

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Nos casos em que os danos extrapatrimoniais sejam causadospor grandes empresas (gigantes) capitalistas, como (por exemplo) asinstituições financeiras, sustenta-se que a reparação deve privilegiar anatureza punitiva e exemplar da reparação, pois o potencial econômicodos bancos autoriza o arbitramento de valores adequados à justa repa-ração dos danos.

O grau de culpa do ofensor é relevante critério para dimensionaro valor reparatório, pois enfatiza o elemento volitivo, autorizando oagravamento (dolo) ou amenização (culpa leve) da situação do ofensorna fixação do valor da reparação.

A culpa concorrente também exerce influência na dosagem dareparação, pois o valor reparatório deverá ser diminuído quando a víti-ma haja contribuído para a ocorrência do evento danoso.

No tocante ao dano extrapatrimonial, sustenta-se que a obser-vância estrita do princípio da restituição integral (restitutio in integrum)é difícil, dada a impossibilidade de retorno ao estado anterior (statusquo ante) a danos que não têm repercussão imediata no patrimônioeconômico do ofendido.

Mesmo na ausência de critérios (precisos e objetivos) para areparação do dano imaterial, busca-se, ao máximo, a aproximação como princípio da reparação integral, ideal que deve ser perseguido pelomagistrado no exercício de sua subjetividade. Deve o juiz proferir asdecisões com prudente arbítrio.

Em face do princípio da reparação integral ou reparação maiscompleta possível deverá o julgador buscar o equilíbrio da dupla natu-reza da reparação: punitiva e compensatória.

Para isso, ressalta-se que a conjugação dos fatores de puni-ção e compensação deverá conduzir ao arbitramento de valores ade-quados (significativos) para a reparação de danos extrapatrimoniais.O valor do montante reparatório deverá ser expressivo, não meramen-te simbólico.

Destaca-se, quando possível, a faceta exemplar da reparação,devendo o valor ser agravado sempre que o ofensor (por sua posiçãoeconômica) seja reincidente no desrespeite os direitos (fundamentais e

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de personalidade) das pessoas.A jurisprudência atual evidencia decisões que relutam em de-

ferir valores significativos a título de reparação, sustentadas na idéiade moderação como vetor para a fixação do valor reparatório.

O tema “reparação do dano extrapatrimonial” necessita progre-dir em sua elaboração legislativa e teórica, pois a doutrina e a jurispru-dência são frágeis na caracterização das hipóteses de danos e vacilan-tes nos critérios para a fixação do valor reparatório.

Nada obstante, a matéria tende a ser pacificada (a longo pra-zo), pois há esforços dos legisladores, magistrados e cientistas paradelinear, mais claramente, os direitos de personalidade e sua tutela

À GUISA DE CONCLUSÃO – DISCURSO JURÍDICO E REALIDADESOCIAL

Luiz Edson Fachin, destacado professor da Universidade Fe-deral do Paraná e um dos maiores civilistas na atualidade, escreveque o Direito Civil “deve ser concebido como ‘serviço da vida’ a partirda sua raiz antropocêntrica”. 57

O pensamento do professor paranaense enseja reflexão acer-ca da teoria que afirma a posição privilegiada das pessoas, as quaisestariam, “no topo da pirâmide jurídica”, segundo o fenômeno da“repersonalização do Direito”.

A análise estrutural e conjuntural da realidade social revelaque a desigualdade marca a sociedade brasileira, impedindo aconcretização dos ideais enunciados nos textos legais: ConstituiçãoFederal, CCB e outras (inúmeras) leis.

57 “Numa expressão, o Direito Civil deve, com efeito, ser concebido como ‘serviço da vida’ a partir da sua

raiz antropocêntrica, não para retomar a biografia do sujeito jurídico, mas sim para se afastar dotecnicismo e do neutralismo. Não sucumbir, enfim, ao saber virtual. É certo que o legislador do Estadosocial não está mais desvinculado da realidade histórica concreta de seu tempo, pois a força normativados novos preceitos pode emergir de um verdadeiro estado de necessidade. Entre a resistência àtransformação e as necessidades que se impõem pelos fatos, o papel a ser exercido , nesse campo,pelos operadores do Direito, poderá antecipar, em parte, aquilo que virá. Nada obstante, não é possívelaceitar passivamente os resultados dessa aferição crítica. Essa mesma via há de ser submetida àprova: trata-se de uma renovação por dentro e ao fundo vai, ou são apenas retoques que operam naestrutura do projeto racionalista que fundou as codificações privadas ? Esta interrogação sugerepensar se o passo à frente que se esboça é uma mudança efetiva ou tão só a última fronteira de umsistema moribundo que agoniza, ainda não se esgotou.” FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direitocivil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 15-16.

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O Direito Civil evoluiu (principalmente desde o novo texto cons-titucional), e apesar disso a sociedade brasileira é marcada porgravíssimos contrastes, com crescente (e perigosa) exclusão social,geradora de massas populacionais marginalizadas, para as quais osdireitos fundamentais e os direitos de personalidade não passam de“direitos virtuais”, emprestando a expressão de Miaille.58

A idéia, mesma de “sujeito de direito”, compreendida como “oponto ao redor do qual circulam todas as categorias jurídicas”,59 é sub-metida a julgamento crítico diante da realidade (capitalista e globalizada)atual.

No dizer de Miaille:

A noção de sujeito de direito como equivalente de indivíduo estálonge de ser evidente conforme o sistema social no qual nos situa-mos. Não é ‘natural’ que todos os homens sejam sujeitos de direito.Isto é o efeito de uma estrutura social bem determinada: a socieda-de capitalista. Mas, então, por que é que isso é necessário nestasociedade? Precisamente para permitir a realização das trocas mer-cantis generalizadas. 60

É insuficiente, pois, que o Direito evolua teoricamente, rom-pendo com o patrimonialismo em prol de uma visão existencialista,voltada aos interesses das pessoas, como propala o Direito Civil con-temporâneo.

O Direito Civil submete-se a transformações por fenômenoscomo a descodificação, a constitucionalização ou a repersonalização,porém, a realidade social evidencia-se “desumana” para com grandeparcela pobre da população brasileira.

A política neoliberal e o fenômeno da globalização (marcantesno alvorecer deste novo milênio) selam as portas do “mercado capitalis-

58 MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 114 e ss.

59 “O sujeito de Direito é o ponto ao redor do qual circulam todas as categorias jurídicas. E mais, é no

sentido de garantir um determinado tipo de ‘liberdade’ que o Direito tutela os interesses deste mesmosujeito de Direito que, em essência, são interesses egoísticos que se contrapõem àqueles dos demaismembros da sociedade ... Do ponto de vista econômico, o sujeito de Direito encontra-se situado nomercado como um agente econômico, isto é, como comprador e vendedor de mercadorias.” Comentáriode Paulo Bessa, na apresentação da obra de Pasukanis. In PASUKANIS, E. B. A teoria geral do direitoe o marxismo. Trad. Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. XIII.60

MIAILLE, Michel. Ob. cit., p. 117.

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ta” a milhões de pessoas, vitimadas por uma injusta distribuição dasriquezas.

O Brasil vive um momento histórico difícil, prevalecendo umapolítica que se intitulou “social democrata”, mas que revelou uma dasfacetas nefastas do neoliberalismo, com a indiscriminada abertura dasfronteiras nacionais em prol do capital especulativo internacional e emfavor de poderosos grupos econômicos estrangeiros. Tudo em prejuí-zo da maioria marginalizada e empobrecida da população.

É missão do Direito concretizar seus próprios preceitos,ensejando a criação de mecanismos para que a igualdade meramenteformal saia do plano teórico e ganhe vida, contribuindo para a diminui-ção dos índices de miséria e de violência que dominam a sociedadebrasileira.

O Direito deve servir à vida, não somente mediante um discur-so avançado de proteção das pessoas, senão pela efetividade dasnormas jurídicas, para a qual devem contribuir todos os cidadãos.

Respeitar os direitos fundamentais e os direitos de personali-dade, representa contribuição para a construção da cidadania. Nestesentido, impõe-se o empenho dos melhores esforços da sociedadecivil organizada e das autoridades governamentais, todos irmanadosno mesmo ideal.

O ideal de “um Estado Democrático, destinado a assegurar oexercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, obem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valoressupremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e inter-nacional, com a solução pacífica das controvérsias”, como preconiza aConstituição da República.

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MANAGEMENT PÚBLICO: POLÍTICA DE REFORMA EGARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO

BRASIL E NA ITÁLIA 61

FRANCISCO CARLOS DUARTE 62

PROFESSOR TITULAR DO CURSO DE MESTRADO DA PUC - PR.DOUTOR EM DIREITO E PÓS-DOUTORANDO NO CENTRO DI STUDISUL RISCINIO DA UNIVERSITÀ DI LECCE, ITÁLIA.

RESUMO

O texto investiga a possível aplicação de políticas de reforma na altaadministração pública no Brasil, analisando os impasses gerados entre osaspectos jurídicos e administrativos dessas políticas de reforma. O autorpretende demonstrar que é possível que a gestão jurídica intra-institucionalseja mecanismo que garanta direitos fundamentais na reformulação do sistemada alta administração pública gerencial. O trabalho analisa a natureza política,jurídica e econômica da reforma da administração pública e suas relaçõescom as novas formas organizacionais dos sistemas gerenciais privados, combase no conceito de management da administração.

ABSTRACT

The text investigates the possibility of application of renewal politics in thehigh public administration in Brazil, analyzing what problems will appearbetween legal aspects and administrative ones in these renewal politics. Theauthor intends to demonstrate that it’s possible the juridical intra institutionaladministration to be a way to guarantee the basic rights in the renewal of thehigh public management. The paper analyses the political, juridical, andeconomical characteristics of the renewal in public administration and itsrelation to the new organizational ways in private management systems, takingas basis the concept of management.

PALAVRAS CHAVE

Direito Administrativo; reforma da administração pública; gestão jurídica intra-institucional; management da administração.

61 Este ensaio condensa alguns aspectos da investigação interdisciplinar de pós-doutoramento sobre

management público no Brasil e na Itália, que o autor realiza, desde março de 2002, na Università diLecce.62

Pós-doutorando no Centro di Studi Sul Riscinio da Università di Lecce, Itália, sob orientação do Prof.Dr. Raffaele De Giorgi. O autor desde logo agradece ao orientador pela sua hospitalidade e pela suadisponibilidade em discutir as idéias reunidas nesta pesquisa, em uma série de encontros e seminários.Esta orientação foi essencial no processo de produção científica desta pesquisa.

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem por objetivo verificar as possibilida-des e impossibilidades de aplicação das políticas de reforma na AltaAdministração Pública no Brasil63 . As reformas na gestão pública costu-mam gerar impasse na medida que entram em choque os aspectos jurí-dicos e os aspectos administrativos64 . Os aspectos jurídicos se referemao fato de que a reforma deve garantir a igualdade de direitos, poisconforme a teoria do garantismo, a reforma não deve ferir os direitosfundamentais65 . Por outro lado, a prática adminstrativa, aooperacionalizar a reforma, prioriza a eficiência, a produtividade e acompetitividade, o que nem sempre respeita os aspectos legais e osdireitos fundamentais. Como equacionar a teoria e a prática? Incideainda diretamente nessa questão os mercados econômicos internaci-onais, que atuam de forma determinante na implementação das políti-cas de reforma. Neste trabalho, pretende-se demonstrar que a GestãoJurídica intra-institucional pode operar como mecanismo de garantiade direitos fundamentais no contexto da reformulação do sistema daAlta Administração Pública Gerencial. Para tanto, a análise da nature-za política, jurídica e econômica da reforma da administração públicae sua interface com as novas formas organizacionais dos sistemasgerenciais privados é focalizada a partir do conceito de management66

da Administração.

63 A Alta Administração Pública, que entre outras coisas, define as políticas públicas, é peça-chave para

as reformas da gestão pública, e objetivo dos esforços de reforma, que estão atualmente em curso emvários países da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), conforme osCadernos ENAP n. 17, 1999.64

Nesse sentido, ver Corsi, 1998.65

Os impasses gerados no momento da implementação das políticas de reforma na administração públicasão também discutidos por Christensen y Per Laegreid, 2001; e por Grau, 1998.66

O conceito de management direcionado à Administração Pública é ressaltado no discurso do presidentedo conselho directivo do ICSCSP-UTL: “O management tem como elementos nucleares as quatro funçõesbásicas de planejar, organizar, liderar e controlar, pensadas para definir caminhos, enfrentar resistênciase superar obstáculos em ordem a alcançar os resultados que se procura. A sua essência é a posturamental de ordenamento metódico da acção. A mesma postura que inspira os procedimentos dasadministrações públicas, ainda que cuntinuamente construídos segundo a lógica do serviço do Estadoe da salvaguarda dos direitos dos cidadãos, e não necessariamente da optimização do uso de recursosraros para a obtenção de resultados mais interessantes na conjugação das colunas do dever e do haver.”(NETO, 2000. P. 09)

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REFERENCIAL TEÓRICO

Para observação e compreensão do Sistema Político, utiliza-seo arcabouço da “Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos” elaboradapor Niklas Luhmann67 e também a Teoria do Garantismo. A Teoria dosSistemas Sociais parte do pressuposto de que os sistemas sociais ope-ram e se reproduzem mediante mecanismos autopoiéticos,68 que seacoplam estruturalmente, porém, não se comunicam. Nesse sentido, sea administração pública abarca um sistema jurídico, um sistema políticoe um sistema econômico, na situação de reforma é preciso tomar deci-sões aplicáveis a cada sistema independentemente. Ou seja, mudan-ças no sistema político não podem levar a mudanças no sistema econô-mico, nem vice-versa.

A Teoria Geral do Garantismo, conforme Duarte (2001, p.33)está centrada no equilíbrio entre a pessoa humana e o poder, tantopúblico como privado. Ainda segundo Duarte (op. cit.)

toda a construção institucional do aparato de dominação constituídoem torno do Estado deve girar em função, unicamente, da pessoahumana e como tal, deve respeitar os limites impostos pelo prloabrangente conceito de liberdade que ela possui.

A análise das formas organizacionais da administração públi-ca não é exclusiva destas abordagens, senão que, a partir delas, setenta elaborar um acoplamento epistemológico com outras teorias daadministração gerencial contemporânea.

O PLANO DIRETOR DA REFORMA

A reforma da administração pública federal no Brasil foi deter-minada pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma doEstado, por meio da Câmara da Reforma do Estado, com a formalização

67 A expressão “autopoiéisis” provém da Biologia e foi cunhada por primeira vez por Maturana. Com essa

expressão este último autor quer expressar a forma em que sistemas biológicos se autoproduzem apartir de seus próprios elementos. Luhamnn translada esse conceito para os sistemas sociais: “Lossistemas autopoiéticos son los que se producen por sí miesmos no sólo sus estructuras, sino tambiénlos elementos (...) No hay imput no output de elementos en el sistema o desde el sistema: esto es loque se entiende com el concepto de autopoiesis”. Cfr. LUHMANN, Niklas e DE GIORGI, Raffaele. Teoriade la Sociedad. México: Doble Luna, 1993, p. 40. Especialmente sobre toda a arquitetura teórica daTeoria da Sociedade recomenda-se: LUHMANN, Niklas. Sistemi Sociali. Bologna: Il Mulino, 1991.68

Essa teoria é mais detalhadamente discutida em DUARTE (2002).

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de um Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que definiriaos objetivos e estabeleceria suas diretrizes, pois é preciso, agora, darum salto adiante, no sentido de uma administração pública que chama-ria de gerencial, baseada em conceitos atuais de administração e efici-ência, voltada para o controle dos resultados e descentralizada parapoder chegar ao cidadão, que, numa sociedade democrática, é quemdá legitimidade às instituições e que, portanto, se torna cliente privilegi-ado dos serviços prestados pelo Estado.69

Para a operacionalização das propostas veiculadas neste Pla-no Diretor, foi editada, entre outras, a Emenda Constitucional no 19/98,que modifica o regime e dispõe sobre princípios da Administração Pú-blica, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finançaspúblicas e custeio de atividade a cargo do distrito Federal. Em conse-qüência da sua aprovação, foram editadas leis complementares e or-dinárias, entre elas, a Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000,denominada Lei de Responsabilidade na gestão fiscal, que foi inspira-da em regras adotadas pela União Européia (Tratado de Maastricht),pelos Estados Unidos (Budget Enforcement Act) e pela Nova Zelândia(Fiscal Responsability Act). Essa lei se constitui em um mecanismoinstitucional para garantir a estabilidade fiscal, ou seja, o equilíbrio dosgastos públicos,70 regulamentando principalmente o Artigo 169 daConstituição Federal, que delega à Lei Complementar a função de li-mitar a despesa com o funcionalismo público.71

AS POSSIBILIDADES E LIMITES DA POLÍTICA DE REFORMA

O Estado Intervencionista ou de Bem-Estar representa umpacto social entre o trabalho e o capital, no qual, os cidadãos teorica-mente poderiam aspirar a níveis mínimos de Bem-Estar: educação,saúde, seguridade social, salário e moradia,- como direitos fundamen-tais que deveriam ser garantidos. Porém, a crise econômica do inícioda década de 70, pôs em questão esse modelo de Estado. É nesse

69 Cf. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Presidência da República, 1995, p. 10.

70 Na Argentina, foi editada a Lei n. 24.453/01, denominada de equilíbrio fiscal ou déficit zero. Tal lei foi

qualificada de inconstitucional por organizações de direitos humanos.71

Pessoa (200, p. 35-39) detalha especificamente a “Nova Administração Pública” de 1998.

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contexto que ganham força as idéias neoliberais, estruturadas de modoa romper o poder dos sindicatos, controlar rigidamente os gastos soci-ais e as intervenções econômicas72 .

O modelo neoliberal apregoa um mercado livre, baseado naprodutividade e eficiência, e por isso a liquidação das empresas esta-tais e o setor privado são vistos como modelos a serem seguidos. Jáas políticas do Estado são combatidas como ineficientes, improduti-vas, anti-econômicas e limitadoras da liberdade individual, além de res-tringirem a lucratividade.

De acordo com esses princípios, a formulação da política pú-blica é direcionada para a privatização e para a diminuição dos gastospúblicos. Para atingir esses objetivos, devem ser seguidas as deci-sões tomadas pelo chamado “Consenso de Washington”, primeiramenteimplementadas na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, e quedirecionam as ações da reforma a fim de promover a modernização eo aumento da eficiência da administração pública. As atividades esta-tais foram redirecionadas a partir da sua descentralização, transferin-do paulatinamente as responsabilidades do Estado para o mercado epara a comunidade. Esta passagem coloca o Estado na condição deregulador, com base nos critérios de mercado de eficiência, competi-ção e qualidade73 .

Os Estados Latino-Americanos seguiram essas transformações,ressaltando-se que diferentemente dos países do primeiro mundo, o Es-tado de Bem-Estar não havia conseguido implementar um sistema deseguridade social nesta região74 .. Assim, na década de 80, a maioria dosgovernos latino-americanos, inclusive o Brasil, passou por reformas ad-ministrativas e econômicas que primaram pela adoção da lógica de mer-cado nos organismos estatais. (MENEGHEL e LAMAR, 2002)

MANAGEMENT PÚBLICO NO BRASIL

O modelo desenhado pela Emenda Constitucional 19/98 paraa nova administração pública gerencial se apresenta como uma tenta-

72 A respeito, ver Meneghel e Lamar, 2002; Souto, 2001; Teixeira e Santana, 1994.

73 Nesse sentido, ver também Ramos (2001), Seabra (2001), Ferlie et al. (1996).

74 A questão das reformas na gestão pública latinoamerica é tratada em Bozzi, 2001

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tiva de quebra dos paradigmas estabelecidos pelo Estado Moderno,que de longa data, determinam as instituições públicas75 . Pensar emuma administração pública gerencial implica construir novos referenciaisque orientem o espaço público institucionalizado para adequação dacomplexidade contemporânea.76 Esse novo modelo gerencial se ins-pira na administração empresarial e se volta para77 :

a) a definição precisa dos objetivos que o administrador públi-co deverá atingir em sua unidade;

b) a garantia de autonomia do administrador na gestão dosrecursos humanos, materiais e financeiros que lhe forem colocados àdisposição a fim de que possa atingir os objetivos contratados;

c) para o controle ou cobrança a posteriori. Além disso, viabilizauma política de competição administrada no interior do próprio Estado,quando há possibilidade de estabelecer concorrência entre as unida-des internas.

O modelo apregoa que a reformulação do Estado vai além dasimples reforma administrativa78 . Implica, entre outras coisas, a que-bra dos princípios diretores do Estado Moderno, na medida que colocaem crise conceitos operacionais, tais como: bem comum, serviços pú-blicos, cidadania, etc. 79

VISÃO HISTÓRICA DA REFORMA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O objetivo essencial da reforma da administração pública é umaforma de adequar as velhas categorias da burocratização pública aomodelo de economia global contemporânea. Eis que o Estado, comocentro decisório determinante e regulador da economia, perdeu o espa-

75 Petrucci e Chwarz (1999) organizam uma coletânea de trabalhos cujo tema é a tentativa de reforma

gerencial na administração pública em 1995.76

Martins (1997) aborda mais detalhadamente essa questão.77

Ver mais detalhes em Bresser Pereira (1998) e Bresser Pereira (2001).78

Ver também FORUM DAS REFORMAS (1997).79

Consta da Exposição de Motivos Interministerial n. 49, de 18.08.95, por meio da qual os Ministros deEstado encaminharam ao Presidente da República proposta de emenda constitucional relativa àsdisposições que regem a administração pública, o regime jurídico e a disciplina da estabilidade dosservidores públicos civis, que: “A crise do Estado está na raiz do período de prolongada estagnaçãoeconômica que o Brasil experimentou nos últimos quinze anos. Nas suas múltiplas facetas, esta crise semanifestou como crise fiscal, crise do modo de intervenção do Estado na economia e crise do próprioaparelho estatal.

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ço decisório para as instâncias contingentes do capital privado80 . Comobem assinala Fiori (1995, p. 220):

(não) pairam mais dúvidas de que esta nova formatação econômicaenvolve aspectos e dimensões tecnológicas, organizacionais, políti-cas, comerciais e financeiras que se relacionam de maneira dinâmi-ca gerando uma reorganização espacial da atividade econômica euma claríssima re-hierarquização de seus centros decisórios.

O contexto econômico emergente virou ao avesso as formasorganizacionais e os valores que estruturaram e legitimaram o Estadode Bem-Estar Social que, em linhas gerais, estava orientado da se-guinte forma:

...(modificação) do jogo de forças do mercado em pelo menos trêsdireções: primeiro, garantindo aos indivíduo e às famílias uma ren-da mínima independentemente do valor de mercado de seu traba-lho ou de sua propriedade; segundo, restringindo o arco de insegu-rança para os indivíduos e famílias em fazer frente a certas contin-gências sociais (doença, velhice, desocupação), que, de outra ma-neira, conduziriam a crises individuais ou familiares; e terceiro, as-segurando que a todos os cidadãos, sem distinção de status ou clas-se, sejam oferecidos os padrões mais altos de uma gama reconhe-cida de serviços sociais.(BRIGSS & DRAIBE, 1989, p. 18)

É evidente que o Estado de Bem-Estar Social, apesar de suasdiferenças contextuais históricas e culturais (Welfare State, Êtat-Providence, etc.)81 , foi identificado, dentro do interior do sistema eco-nômico, como o modelo do mercado administrado, cujo suporte teóri-co era dado pela adoção da receita keynesiana82 .

A DESREGULAMENTAÇÃO DOS MERCADOS FINANCEIROSNACIONAIS

Os mercados financeiros têm grande influência na exigência dereformas na gestão pública, dada a sua relevância no contexto político-econômico atual. A ascensão do seu poder começa na década de ses-senta, quando as economias nacionais deixaram de crescer e os Esta-80

A esse respeito, ver a ótima discussão de Borón (2001).81

Nesse sentido, ver Ramos (2001).82

Freitas e Estevão (2002); Cardoso (2002) também tratam desse tema.

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dos perderam força ante as corporações empresariais, que começa-ram a se deslocar do setor produtivo para o financeiro, à procura dolucro sem esforço e sem maiores preocupações. 83

Mercados administrados e fiscalizados, contratos de trabalhofortemente regulamentados e a rigidez dos compromissos estatais comos programas de seguridade social e defesa seriam as causas do co-lapso que levariam à desarticulação do sistema de taxas de câmbiofixas e à cessação do crescimento econômico real. Harvey (1993)contextualiza essa transição histórica do capitalismo fordista-keynesiano(capital produtivo) para um novo sistema de acumulação flexível (Arrigui,1997, p. 3), definitivamente nos inícios dos anos noventa.84

Porém, a origem da desregulação dos mercados foi a decisãodo presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, de suspen-der, no mercado interno de seu país, a convertibilidade ouro/dólar. OsEstados Unidos, unilateralmente, desvincularam-se do sistema de ta-xas de câmbio fixas (gold exchange standard), que tinha sido acordadoem Bretton Woods, no crepúsculo da Segunda Guerra Mundial, quan-do, também, tinham sido criados seus guardiães internacionais, o Fun-do Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.

Nesse sentido, como bem esclarece Fiori (1995, p. 222), mes-mo que a crise tivesse sido identificada, contextualmente, em 1973/1975, foi somente na década de 80 que o movimento expansivo einternacionalizante dos capitais financeiros começou a mostrar osurgimento de uma nova face, que emergiu em conseqüência daspolíticas desregulacionistas universalizadas desde então. Dito em ou-tras palavras, a desregulamentação financeira só se tornou políticaexplícita no decorrer da década de oitenta.

As políticas desregulacionistas emergentes, desde então, as-sentam-se sob a égide de uma nova hegemonia liberal-conservadoraque, como assinala Dietrich, se autodenominou, propagandisticamente,de neoliberalismo85 .

83 A respeito da estrutura socio-econômica do neo-liberalismo, ver Fortuny (2000) e também Fleury (2001).

84 Paes de Paula (2002) aborda mais especificamente esse problema.

85 DIETRICH, Heinz. Crise Capitalista na aldeia global. In: Revista Plural. Florianópolis, UFSC, n° 10, ago/

dez,1998, p. 15

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São muitas as leituras feitas sobre a crise da economia mundiale suas conseqüências para os Estados e suas economias nacionais.Nos anos oitenta, o ultraliberalismo econômico, ancorado, principalmente,nas políticas dos governos de Ronald Reagan (Estados Unidos) e deMargareth Thatcher (Inglaterra), com vistas a fundamentar a liberaçãode todos os setores do mercado, ocupou-se em responsabilizar ointervencionismo estatal keynesiano por todas as inflações, crises fis-cais e recessões dos anos setenta e oitenta na Europa e nos EstadosUnidos.

Porém, as transformações assinaladas emergiram mais niti-damente na segunda metade da década de oitenta, por ocasião daarticulação dos novos centros de poder: Japão, Alemanha e EstadosUnidos. Como explicita Fiori (op. cit., p. 184):

Quando o cenário mundial se reordena e a estagnação é superada,o quadro econômico estrutural está radicalmente modificado. É cla-ra a existência, já em pleno funcionamento, de um novo padrãotecnológico e organizacional da produção. O sistema financeiro in-ternacional se altera radicalmente, e a divisão internacional do tra-balho entre corporações, países, regiões etc. é redesenhada.

Paralelamente, com a queda do muro de Berlim – que funcio-nou como um ícone para o desmoronamento dos sistemas econômi-cos socialistas ou de tendências intervencionistas, e com a vitória qua-se universal dos liberais conservadores, na maioria dos países centrais,a nova ordem econômica, aguda nos países industrializados, adquiriucontornos mundiais e se projetou como indiscutível.

Nesse contexto, é possível observar-se que adesregulamentação dos mercados financeiros nacionais acabou porestabelecer um mercado financeiro internacional “livre”, no qual as em-presas começaram a operar (investimentos especulativos de capitaisretirados do setor produtivo) à procura de lucros mais vantajosos acurto prazo. As empresas em expansão apoiaram a ascensão de umideário neo-conservador que prometia, de um lado, a abstenção decontroles em todos os âmbitos e, de outro, liberdade de jogo para asforças “naturais” do mercado.

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CONSEQÜÊNCIAS DA REFORMULAÇÃO DAS POLÍTICASECONÔMICAS

A reformulação das políticas econômicas no mercado trouxe,como conseqüência, a debilidade da política central dos Estados Na-ções. Não é em vão que o primeiro conceito posto em crise, no âmbitoda Teoria Política foi o de soberania. A crise do conceito de soberaniaestá intimamente associada à tese da morte do estado nacional comoconseqüência do deslocamento dos centros de poder do âmbito políticopara o econômico. O autor que teve notável relevância por esta tese é ojaponês Kenichi Ohmae com a publicação de sua obra The End of dethe Nation State, em 1996.

Faria (1996, p. 31) sintetiza, claramente, a nova conformação das

instâncias decisórias, da seguinte forma:

Com a erosão das fronteiras, no âmbito da economia globalizada, apolítica se “desterritorializa”. E com a proliferação de mecanismosde auto-regulação econômica, perde seu papel como instância pri-vilegiada de deliberação, decisão, direção e proteção, tendendo aoperar numa dimensão mais coordenadora, sob a forma de redesformais e informais articuladas por empresas sindicatos e entidadesrepresentativas preocupadas em negociar questões específicas eassegurar interesses particulares.

Como conseqüência de tais mudanças, o espaço do público,como representativo do “bem comum”, esvaziou-se de sentido, trans-formando os centros decisórios, antes políticos e públicos, em espa-ços privados de interesses definidos pelas contingênciasmacroeconômicas. Nesta perspectiva, a representatividade e alegitimação das instâncias políticas, que tanto foram questionadas nosdebates sobre a natureza do Estado, simplesmente se esfumaram, con-vertendo os parlamentos em arenas de lutas dos grupos de interessesestritamente econômicos. Nesse novo contexto, o que se altera não é opapel do poder político, são suas formas de atuação e de proteção dosespaços econômicos garantidos para seus capitais. (FIORI, 1997, p. 142)

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Conclui-se, então, que o referencial constitutivo das estruturassociais contemporâneas é dado pelo sistema econômico, porém, não apartir da pura racionalidade do mercado (entendida como racionalidadeinstrumental), mas sob a égide das contingências diárias baseadas,exclusivamente, na movimentação dos principais mercados financeiros.86

O exemplo mais nítido, pelo qual se pode observar o ideário neoliberalascendente dos organismos internacionais, destinado à América Latinaé o denominado “Consenso de Whashington” de 1989 (AYERBE, 1998,p. 28). Por ocasião de um seminário organizado pelo Institute forInternational Economics para discutir o ajuste das políticas latino-ameri-canas, com a participação do FMI, do Banco Mundial, do BancoInteramericano de Desenvolvimento e representantes do governo dosEstados Unidos e dos países de América Latina, surge uma espécie dereceituário para que os governos latino-americanos possam “consoli-dar” e, assim, ajustar a economia da região.

Os tópicos fundamentais podem ser agrupados em três cate-gorias:87

1. Equilíbrio das contas públicas, obtido a partir da redução de des-pesas e não pelo aumento de impostos.

2. Liberalização da economia pela abertura comercial e adesregulamentação. Ou seja, abstenção de controles governamen-tais ao setor privado e a não-discriminação em face do capital es-trangeiro.

3. Privatização das empresas públicas.

Essa retitude financeira (CHOMSKY: 2001) colocou os paísesda região diante de um dilema insolúvel. Para sair da crise econômicaendêmica que afeta, há décadas, toda a América Latina e conseguir atão desejada estabilidade econômica, os governos precisam de maiscréditos externos e refinanciamentos de suas dívidas externas por partedos credores internacionais, porém, somente terão refinanciamento einjeção de capitais externos se aplicarem as políticas corretas, debati-

86 Basta escolher qualquer canal de noticias para perceber que a comunicação sobre a movimentação

financeira ocupa o maior espaço na divulgação das informações quotidianas.87

O Código de Conduta da Administração federal (2000) segue esse princípios.

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das e aprovadas em Washington. Mais ainda: a aplicação do receituá-rio do consenso de Washington implica custos elevados a curto e médioprazo como recessão, desemprego, eliminação de subsídios e recortede gastos governamentais e reforma social.88

Nesta perspectiva, se, por um lado, os países desenvolvidosimpõem, cada vez com mais força, uma visão elitista da agenda inter-nacional com temas recorrentes como a desregulação dos capitais, ageração de formas cooperativas de interdependência econômica, aunificação monetária, a flexibilização dos sistemas de produção, aestandardização dos mercados, a criação de grandes blocos comerci-ais e a defesa dos cortes drásticos nos gastos públicos dos Estadosnacionais, especialmente por meio de medidas tais como a privatizaçãodos serviços públicos essenciais; por outro lado, os países latino-ame-ricanos, ao estarem compelidos a aderir à agenda internacional, setransformam em um contraponto explosivo ao processo de unificaçãoe flexibilização da economia mundial.

A REFORMA NA ALTA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DO BRASIL

É nesse contexto, então, que o Brasil tenta reformular osparâmetros organizacionais da Alta Administração Pública. Entende-se com o conceito de Alta Administração Pública o núcleo estratégico,isto é, o setor onde as decisões estratégicas são tomadas, quecorresponde aos Poderes Legislativos e Judiciário, ao Ministério Públi-co e, no Poder Executivo, ao Presidente da República, aos ministros eaos seus assessores diretos, enfim todos aqueles sujeitos que partici-pam do planejamento e da formulação das políticas públicas. (FARIA,1996, p. 52) 89

No Brasil, como já foi visto, este plano foi implantado através daEmenda Constitucional de 19 de junho de 1998 e está orientado, espe-cificamente, ao plano da administração pública federal. Após aprovadoo programa de estabilidade fiscal que abrange a sustentabilidade fiscal,a gestão dos gastos públicos e a gestão da dívida, foi liberado em janei-88

É interessante o capítulo de Kliksberg (1989) que trata da crise econômica e da necessidade dereformulação da máquina pública.89

É interessante notar também a abordagem de Kelly e Wanna (2001).

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ro de 2001, um empréstimo programático90 de reforma fiscal deU$S757,58 milhões pelo Banco Mundial.

Embora nem o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Esta-do e nem tampouco as Emendas Constitucionais contemplem os meca-nismos da gestão jurídica na nova administração pública, impõe-se asua adoção, entre outras, no planejamento e na formulação das políticaspúblicas e nos conselhos das agências públicas, na medida que se apre-senta como técnica funcionalmente adequada para garantir direitos fun-damentais.

O eixo principal da reforma gira em torno do conceito de efici-ência, ou seja, do conceito de qualidade de serviço dentro do referencialeconômico91 . Desta forma, o tradicional espaço público da decisãoorientado pelo princípio político do bem comum é deslocado para oâmbito do sistema econômico. Nesse contexto, as categorias quedeterminavam a seletividade do código binário da política, isto é, po-der/não-poder, ficam esvaziadas do sentido tradicional para determi-nar-se através de novos referenciais operativos: poder econômico/au-sência de poder econômico.

A partir de tal deslocamento de significantes, os velhosparadigmas da política carecem de sentido construtivo, pois deixaramde ser aptos para provocar a funcionalidade do sistema através daconstrução referencial. Nesse contexto emergente, os rumos da deci-são na Alta Administração Pública são demarcados pelo significante dosistema econômico.

CONSEQÜÊNCIAS DA REFORMA

O deslocamento referencial apontado trouxe como conseqüên-cia a crise de outros significantes da área da administração pública na90

Os Empréstimos Programáticos apóiam programas governamentais através de uma série deempréstimos efetuados ao longo de 3 a 5 anos, cada um deles baseado no anterior, com vistas a apoiarreformas estruturais e sociais sustentadas e seqüenciais. Eles atendem às necessidades dos paísesde obterem financiamento e aconselhamento do Banco Mundial para apoiar reformas estruturais esociais que envolvam mudanças contínuas e incrementais nas políticas e fortalecimento institucionaldurante vários anos. O enfoque desses empréstimos é em capacitação e reformas graduais, tipicamenteno setor público, com vistas as fortalecimento das gestão das despesas públicas e na melhoria daalocação de recursos e na prestação de serviços públicos. Esses empréstimos baseiam-se em trabalhosanalíticos nessas áreas.91

Bresser Pereira (1998) trata especificamente o assunto.

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medida em que estão direitamente vinculados ao componente referencial.Bem público, lucro estatal, bem comum, políticas públicas, patrimôniopúblico, poder político, são todos referentes que se contrapõem em seusentido tradicional, ao novo referencial de eficiência.

Portanto, o grande desafio do Estado contemporâneo residena gestão desses novos referenciais como construtores de novos es-paços estratégicos. Assim é que a gestão jurídica ocupa um papeldeterminante para a construção da legitimidade do emergente poderpolítico.

Por outro lado, os Estados europeus determinados pela for-mação da Comunidade Econômica Européia, há algumas décadas vêmdeslocando os velhos referenciais políticos por novas categorias noâmbito da construção da decisão pública. Especialmente a Itália, queteve de superar sua política protecionista estatal para conseguir sane-ar as bases econômicas sociais dependentes do aparelho estatal.

A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ITALIANA

O novo modelo de administração pública gerencial italiana ins-pirou-se na administração privada. Uma revisão histórica do processode mudança é apresentado por Sabino Cassese em “Le trasformazionidel diritto amministrativo dal XIX al XXI secolo”(2002). Contribui tam-bém para a construção do panorama da reforma o artigo de GiuseppePiperato (2002).

A administração pública italiana resistiu às diferentes tentati-vas de mudanças as quais foi submetida, como assinala Fedele (1998).Com a crise da idéia de gestão pública e estado social, foi decisivo opapel do programa de “endereçamento para a modernização”, o qualdelegou novas tarefas ao executivo, resumidas basicamente em sim-plificação, reforma dos aparatos ministeriais, separação entre políticae administração, definição dos standards de prestação de alguns servi-ços e incentivos de retribuição profissional do emprego público (FEDELE,op. cit., p. 85).

Seguindo esse programa, foi suprimido o controle prévio do Tri-bunal de Contas; uma diretiva de princípios sobre a prestação de servi-ços públicos foi promulgada; a grande maioria dos processos adminis-

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trativos foram simplificados; novos critérios de distribuição de pessoalentre as administrações foram estabelecidos; e foi confiada ao governouma delegação para reordenar as administrações sociais e as entida-des de previdência e assistência.

Porém, como destaca Fedele (op. cit., p. 86), “nenhuma admi-nistração pode modificar o próprio rendimento, se não mudar, ao mes-mo tempo, as prestações do pessoal que atua no seu interior. Isto por-que a distinção entre emprego público e emprego privado é, hoje, cadavez mais anacrônica”. Assim, a privatização da relação de trabalho dosservidores públicos se faz necessária. Antes, cabe uma questão: o queé oportuno que seja garantido pelo Estado e o que seria melhor confiarao mercado. Experiências européias demonstram que é positivo trans-ferir ao setor privado alguns serviços, particularmente previdência e saú-de. Na Itália, anteriormente à implementação do novo modelo de admi-nistração pública gerencial, estava sob a égide do Estado desde servi-ços de correio, assistência sanitária e transportes, até a produção detabaco em regime de monopólio. Com o advento do novo modelo, oEstado diminuiu a sua participação na prestação de serviços, delegan-do tal tarefa ao mercado. Eis que a redução da intervenção estatal tevecomo contrapartida a política de desconcentrar, descentralizar edesestatizar. Nesse contexto, a privatização serviu como operação deredução da função estatal e de transferência da propriedade e do con-trole de empresas estatais para o setor privado.

CONCLUSÕES

Todas as tentativas de implementar políticas de reforma nagestão pública, necessariamente passam pelo conflito entre os aspec-tos jurídicos, na garantia de direitos fundamentais, e os aspectos admi-nistrativos, que prioriza a eficiência, a produtividade e a competitividade,e nem sempre respeita os aspectos legais e os direitos fundamentais.

Outro grande impasse pelo qual passam as políticas de refor-ma na gestão pública é o fato de que o referencial constitutivo dasestruturas sociais contemporâneas é dado pelo sistema econômico, oque não está de acordo com a Teoria dos Sistemas de Luhmannn.

Deste modo, para implementar de fato as reformas na gestão

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pública, é preciso articular a proposta, no âmbito legal, com a prática, noâmbito do management adminstrativo público. Uma proposta bastanteinteressante é a do novo modelo de administração pública gerencial ita-liana - que apesar de ser fundamentada na administração privada92 - aqual oferece à sociedade um serviço público de melhor qualidade, vi-sando o cliente e não o dependente tutelado pelo Estado. A alternativaitaliana concilia os princípios da administração privada de eficiência,produtividade e competitividade, aos princípios polítíco-institucionais dequalidade, igualdade e eficácia, garantindo ao cidadão, e parece seruma excelente alternativa a ser aplicada nas reformas da gestão públicano Brasil.

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92 As reformas da administração gerencial francesa também seguem o modelo privado, conforme

salienta Trosa (2001).

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CRITÉRIOS JURÍDICOS PARA A DISTINÇÃO ENTRE APROPRIEDADE IMOBILIÁRIA RURAL E URBANA:

ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICAS

JOSÉ ROBSON DA SILVA

PROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA.DOUTOR EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS PELA UNIVERSIDADEFEDERAL DO PARANÁ. ADVOGADO DO INSTITUTO AMBIENTAL DOPARANÁ - IAP

RESUMO -

ABSTRACT -

PALAVRAS CHAVE

Neste artigo tem-se a preocupação de investigar a interpreta-ção e aplicação prática do conceito de propriedade, na Constituição,no Código Civil e em outras normativas com o fito de estabelecer li-nhas entre o direito privado e público.

Para fins de análise optamos por um único conceito de direitode propriedade. Não se desconsiderou, entretanto, que o direito depropriedade projeta-se sobre uma variedade de bens que são regula-dos de modo diferente, porém, sem que com isso constituam distintosconceitos de propriedade. Como se está a tratar de diferentes bens,urbano e rural, parece coerente que se realcem os traços distintivos nodireito positivo de um e outro.

Reafirme-se que a separação entre o rural e o urbano devereceber um novo aporte, que é o agrícola.93 Esse conceito abrangecidades “onde o sistema urbano é modificado pela presença de indús-trias agrícolas não urbanas, freqüentemente firmas hegemônicas, do-tadas não só de capacidade extremamente grande de adaptação, comoda força de transformação da estrutura, porque tem o poder de mu-dança tecnológica e de transformação institucional”.94

93 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 9, 119.

94 Idem, ibidem, p. 51.

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Os espaços urbano e rural tornam-se fluídos,95 a adoção de cri-térios rígidos — como é o caso da definição do perímetro urbano pelademarcação física do território — encontra-se em causa. O rural, condi-mentado pela exploração agrícola, projeta-se para dentro das cidadesdepositando os seus trabalhadores, que provavelmente habitarão a pe-riferia, e em espaços marcados pela frágil presença do Estado e pelainsegurança em relação à titularidade dominial.

A tendência é o aumento da população agrícola em relação àpopulação rural.96 Os dados estatísticos demonstram que tanto a po-pulação rural quanto a agrícola estão em declínio em relação à popu-lação urbana total do país, entretanto, a velocidade do decréscimo dapopulação agrícola é menor do que a população rural.

A definição jurídica do que sejam o imóvel urbano e rural deveconsiderar, portanto, múltiplas variáveis e incorporar o fato de que nãomais se pode restringir o debate a conceitos inflexíveis entre urbano erural. É preciso reconhecer o surgimento de uma população que desen-volva atividades agrícolas e industriais e que, portanto, desborde doâmbito rural.

No direito positivo, os critérios para se distinguir imóvel ruraldo urbano são tradicionalmente reduzidos a dois: o da localização e oda destinação. Essa proposição não tem apenas interesse acadêmi-co; repercute de modo decisivo no âmbito de variadas relações e situ-ações jurídicas que se travam na sociedade: contratos, tributação,usucapião, defesa do ambiente, Reforma Agrária, Reforma Urbana etc.Nesses tópicos, diferentes normativas incidirão, caso se eleja um ououtro critério; essas questões, portanto, encontram-se diretamente in-fluenciadas pela determinação do critério distintivo entre imóveis ru-rais e urbanos.

Alguns elegem o critério da localização para definir o imóvelrural, distinguindo-o do urbano. Se o imóvel encontrar-se-á no perímetro

95 Idem, ibidem, p. 36.

96 Esclarece-se que o conceito de população rural encontra-se marcado pela atividade e habitação da

pessoa, ou seja, pessoas que se encontram explorando atividade agrícola/rural e com residência nocampo. População agrícola é aquela que tem tal atividade, mas que reside nas cidades. Nos anexos,apresenta-se tabela que demonstra a velocidade da evolução da população rural e agrícola.

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urbano será assim considerado. Essa conclusão toma como parâmetrolegal o Código Tributário Nacional97 que, no artigo 32, utiliza o critériolocalização para definir a incidência do imposto sobre a propriedadepredial e territorial urbana.

Intensa polêmica é travada na doutrina nacional acerca do as-sunto. Alguns entendem que esse critério foi revogado pelo Decreto-Leinº. 57 de 18 de novembro de 1966 que, no artigo 15 dispunha: se oimóvel fosse utilizado para fins agrários mesmo que localizados no perí-metro urbano, receberia a incidência do ITR.98 A Lei federal n. 5.868, de12 de dezembro de 1972, criou o Sistema Nacional de Cadastro rural e,no artigo 6º, faz menção ao artigo 29 da Lei n. 5.172, de 25 de outubrode 1966, dispondo que imóvel rural será definido pelo critério dadestinação.

Esse dispositivo foi suspenso por inconstitucionalidade, atra-vés da Resolução do Senado Federal n.º 313, de 30 de junho de 1983.99

O Supremo Tribunal Federal concluiu que o dispositivo da Lei n.º 5.868/72 é inconstitucional porque, não sendo lei complementar, não poderiaestabelecer critérios que dizem respeito à matéria tratada por essaespécie de lei (lei complementar), como é o caso do Código TributárioNacional.

Com a promulgação da Constituição de 1967, a matéria ape-nas poderia ser tratada através de Lei complementar (artigos 18 § 1º e19 § 1º). Nesse âmbito, como afirma Paulo Guilherme de ALMEIDA, adecisão do Supremo Tribunal Federal é incensurável; entretanto: “Pas-sou despercebido, porém no aludido julgamento, que o art. 12 da lei5.868/72 revogara os arts. 14 e 15 do Decreto-Lei 57/66 [...]. A mesmaeiva de inconstitucionalidade viciava, entretanto, o art. 12 da lei 5.868/72, por ser lei ordinária”.100

O Código Tributário Nacional e o Decreto-lei n.º 57 de 18 de

97BRASIL. Lei Complementar n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Dispõe

sobre o sistema tributário nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estadose Municípios.98

ALMEIDA, Paulo Guilherme de. Aspectos jurídicos da reforma agrária no Brasil. São Paulo : LTR,1990, p. 29-30.99

OLIVEIRA, Juarez de [Org.]. Estatuto da terra. 6. ed. São Paulo : Saraiva, 1990, p. 236.100

ALMEIDA, op. cit., p. 32.

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novembro de 1966, foram recepcionados pela Constituição de 1967como normas complementares. Antes disso, o Decreto-lei n.º 57/66 jáhavia revogado o Código Tributário Nacional e adotado o critério dadestinação para identificar o imóvel rural. A não percepção pelo Supre-mo Tribunal Federal dessa situação promoveu equivocada repristinaçãodo Código Tributário Nacional.

O paradoxal, como afirma Paulo Guilherme de ALMEIDA, é oSupremo Tribunal Federal em acórdão prolatado na vigência da Lei n.º5.869/72 reconhecer a prevalência do Decreto-lei n.º 57/66 sobre oCódigo Tributário Nacional.101

A legislação atual, que regula o imposto territorial rural, utilizao critério da localização para definir o que seja imóvel urbano e ru-ral;102 esclareça-se porém, que essa normativa refere-se a imposto, ofim visado é precipuamente fiscal. Nesse âmbito, não se desconhecemuitos dos efeitos extrafiscais da lei.103

Para maior clareza, exemplifique-se que uma dada relaçãojurídica contratual que tenha por objeto um imóvel explorado para finsagrários, mas localizado no perímetro urbano, pela confusão de crité-rios, pode, quando da determinação das normativas que regulam talrelação, ser orientada pelo critério da localização. Essa opção afrontamuitos princípios do direito agrário, v. g., função social da propriedade,justiça distributiva, combate ao minifúndio e ao latifúndio.104

As normativas que regulam a posse e uso temporário do bem

101 “Recurso Extraordinário n. 76.057, do Paraná, recorrente: Jayme Canet Júnior e recorrido: a Prefeitura

Municipal de Bela Vista do Paraíso. Relator: Ministro Xavier Albulquerque, STF, 2.ª Turma, 10.5.74, inRTJ, vol. 70 pág. 479”. ALMEIDA, Paulo Guilherme de, op. cit., p. 33.102

Lei n.º 9.393 de 1996, regula a incidência do imposto territorial rural e elege o critério da localização nadefinição imóveis que serão tributados. Essa, entretanto, é uma lei ordinária e pode repor a questãoacerca da constitucionalidade do critério utilizado para fixar imóvel urbano e rural para fins tributários, poisa Constituição Federal dispõe no art. 146, I, II, III que essa matéria deverá ser tratada por lei complementar.BRASIL. Lei n. 9.393, de 19 de dezembro de 1996. Dispõe sobre o imposto sobre a propriedade territorialrural - ITR, sobre pagamento da dívida representada por títulos da Dívida Agrária e dá outras providências.103

Na lei, a definição do imóvel como urbano está, entretanto, especificamente vincada por aspectosfiscais. Sem entrar profundamente em questões relacionadas à pertinência lógica desse critério que,considera-se, deveria ser substituído pelo critério da destinação do bem, pois muitos problemas sãoproduzidos quando se utiliza um critério estabelecido para determinados fins para regular outros. Um dosefeitos extrafiscais que a lei visa alcançar, é a realização da Reforma Agrária através do princípio daprogressividade do imposto sobre imóveis improdutivos.104

BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 26.

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rural são marcadas por características específicas e apontam para umatutela diferenciada ao possuidor não proprietário. As leis agrárias queregulam os contratos determinam que estes deverão ter um prazo míni-mo de três a sete anos, dependendo da cultura e atividade a ser de-senvolvida. Na hipótese vertida no texto, se prevalecesse o critério dalocalização, poderia ter-se a incidência das leis civis e não das leis agrá-rias, o que é inaceitável, pois muitos direitos indisponíveis tornar-se-iamdisponíveis.105

Na definição do imóvel rural, quando este estiver sendo utiliza-do para a exploração agrícola, pecuária e florestal, deverá imperar ocritério da destinação. Nesse sentido, encontra-se uma das definiçõesfundamentais do Estatuto da Terra.106

Continuando na exemplificação dos efeitos dos critérios distin-tivos, tome-se o caso da usucapião especial. Essa modalidade de aqui-sição da propriedade encontra-se marcada pela posse-trabalho, pos-se qualificada pelo esforço do possuidor e de sua família. O critério dadestinação e/ou da localização tem, nesse assunto, uma importânciacrucial. José Carlos de Moraes SALLES afirma que:

O art. 191 da Constituição federal de 1988 adotou, entretanto,iniludivelmente, o critério da localização, ao utilizar a expressão “áreade terra em zona rural”. Por isso, para os efeitos do usucapião prólabore ou especial rural, é a que se situa em zona rural, destarte, oimóvel localizado em zona urbana, ainda que tenha destinação rural,não poderá ser considerado área rural para fins de usucapião prolabore.107

Com a devida venia, a interpretação do autor busca extrair daConstituição conseqüências que não se harmonizam com o potencialdo instituto, além de implicitamente considerar que a Constituição de-

105 O artigo 13 do Decreto n. 59.566, de 14 de novembro de 1966, determina a proibição de renúncia de

direitos e vantagens consignados na lei que regula os contratos agrários, Lei n. 4.947 de 1966. A funçãoda indisponibilidade das vantagens e direitos que a lei determina alcança contratos típicos e atípicos dodireito agrário. É uma disposição legal que corrige as eventuais disparidades econômicas e sociais quepodem marcar as relações contratuais agrárias.106

Inciso I do artigo 4. da lei n. 4.504 de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra e dáoutras providências.107

SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e móveis. 4. ed. São Paulo : 1997, p. 249.

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finiu o que seja zona rural e isto objetivamente não ocorreu. Antes dedeitar olhos sobre essa questão, cabe perfilhar a lição do professor CelsoRibeiro BASTOS “interpretar é atribuir sentido — um processo marcadopela criação —”.108 A usucapião especial tem por escopo a tutela dohomem, sendo esse o princípio hermenêutico que deve estar por detrásda interpretação. A vinculação a um critério estrito de zona rural, possi-velmente não se harmoniza com os princípios constitucionais da funçãosocial da propriedade, da dignidade da pessoa humana e da reduçãodas desigualdades regionais e sociais.

Como visto anteriormente, com fundamento na Ciência daGeografia, muito bem representada pelo doutor Milton Santos, o con-ceito de território é fluído e a rigidez da demarcação territorial não seharmoniza mais com a realidade. O urbano e o rural se interpenetramde tal modo que, aprisionar as relações sociais em critérios rígidos,como é o caso da demarcação topográfica, pode provocar umdistanciamento do Direito das relações da vida.

Nessa perspectiva, uma questão se impõe: o artigo 191 daConstituição, ao definir zona rural está vincado tão-somente por crité-rios topográficos? Pode-se responder com a análise do conceito dalocalização, posto no Código Tributário Nacional (CTN). Esse conceitoanatômico, no que concerne à zona urbana foi mitigado no Estatuto daTributação predial contido no CTN e deve ser precisado.

O CTN no artigo 32, ao tratar do imposto que incide sobre prédi-os na zona urbana determina que, para a incidência do imposto territorialurbano são necessários pelo menos dois dos equipamentos urbanos in-dicados nos incisos de I a V, quais sejam: meio-fio ou calçamento, comcanalização de águas pluviais; abastecimento de água; sistema de esgo-tos sanitários; rede de iluminação pública, com ou sem posteamento paradistribuição domiciliar; escola primária ou posto de saúde, a uma distân-cia máxima de três quilômetros do imóvel considerado.

O critério posto no Código Tributário Nacional, sabidamente to-pográfico, é temperado, portanto, por outros, com nítido caráter social ede saúde pública. Restringir assim o dispositivo constitucional que regula

108 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo : C. Bastos, 1997.

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a usucapião especial e tomar o conceito de zona rural apenas no sentidogeográfico clássico (que se preocupa tão-somente com a demarcaçãoterritorial do objeto), pode, repete-se, afastar o direito da realidade.

Nesse tópico, faz-se necessário esclarecer que não se perfilhaa idéia de que o Direito deve apenas se conformar à realidade, já queisto seria retirar do Direito a possibilidade de interferir e contribuir parao aperfeiçoamento das relações humanas. Assim, negar a usucapiãoespecial para pessoas que estão a trabalhar dando ao bem o atendi-mento à função social da propriedade, pelo fato de o imóvel localizar-se em zona urbana e estar identificada apenas pelo critério topográfi-co, parece descaracterizar o instituto. Fica-se com a lição que assimse configura: “Os limites urbanos nem sempre são definidos [...]. Ocritério seguro é o da destinação do imóvel, geralmente acatado noDireito Administrativo”.109

Entre o critério topográfico e o da destinação, o segundo é oque melhor se adapta ao nosso ordenamento jurídico. Ulderico Piresdos SANTOS, comentando o artigo 191 da Constituição, conclui que:“o fato de determinada área encontrar-se geograficamente situada noperímetro urbano por si só não quer dizer que ela se dispa de suacaracterística rural [...]. Pouco importa, assim, para a área ser conside-rada rústica que ela esteja localizada na zona urbana; o que lhe em-presta essa caracterização não é a sua localização geográfica e sim asua destinação”.110

Para ressaltar a importância da utilização dos critérios de dis-tinção entre imóvel urbano e rural, menciona-se um último tópico: aReforma Agrária. José Bonifácio Borges de ANDRADA afirma que oimóvel destinado à atividade agrícola, mas localizado em perímetrourbano, não poderá ser desapropriado para fins de Reforma Agrária. Oautor conclui que o artigo 4.º da Lei n.º 6.829/93 (Esta Lei regula osdispositivos constitucionais relativos à Reforma Agrária e o artigo esta-belece que para os fins colimados na normativa imóvel rural se caracte-

109 FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea: uma perspectiva

da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: S. Fabris, 1988, p. 89.110

SANTOS, Ulderico Pires dos. Usucapião constitucional, especial e comum: doutrina,jurisprudência e prática. São Paulo: Paumape, 1991.

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riza pela destinação) é inconstitucional.111

Essa doutrina não se harmoniza com os princípios constitucio-nais da propriedade. A função social da propriedade tornar-se-ia letramorta. Bastaria aos Municípios expandir os limites do perímetro urba-no ou definir áreas de urbanização futura, para que imóveis rurais im-produtivos ficassem a salvo da desapropriação para fins de ReformaAgrária.

Em conclusão, destaca-se que o critério da destinação e o dalocalização devem ser harmonizados. O descarte puro e simples dequalquer um, pode afetar direitos fundamentais e/ou implicar em gra-ves dificuldades de organização das cidades e do campo. A proprieda-de imobiliária rural e urbana deve ser trabalhada em uma perspectivaharmônica que considere variáveis, ou seja, a aquisição, ocupação euso do solo.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Paulo Guilherme de. Aspectos jurídicos da reforma agrá-ria no Brasil. São Paulo: LTR, 1990.

ANDRADA, José Bonifácio Borges de. A desapropriação para finsde Reforma Agrária e a Constituição. Revista de Direito Administra-tivo, Rio de Janeiro, v. 193, p. 85-86, 1993.

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucio-nal. São Paulo: C. Bastos, 1997.

BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. 6. ed.São Paulo: Saraiva, 1991.

FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade con-temporânea: uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. PortoAlegre: S. Fabris, 1988.

OLIVEIRA, Juarez de [Org.]. Estatuto da terra. 6. ed. São Paulo :Saraiva, 1990.

111 ANDRADA, José Bonifácio Borges de. A desapropriação para fins de Reforma Agrária e a Constituição.

Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 193, p. 85-86, 1993.

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SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis emóveis. 4. ed. São Paulo: 1997.

SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1996.

SANTOS, Ulderico Pires dos. Usucapião constitucional, especial e co-mum : doutrina, jurisprudência e prática. São Paulo: Paumape, 1991.

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VÍNCULO DE EMPREGO ENTRE POLICIAL MILITARESTADUAL (COMO EMPREGADO) E EMPREGADOR

NO ÂMBITO PRIVADO

SILVANA SOUZA NETTO MANDALOZZO

DOUTORA EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS PELA UFPR.PROFESSORA ADJUNTA NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTAGROSSA. JUÍZA DO TRABALHO EM PONTA GROSSA.

RESUMO

O artigo aborda a questão da possibilidade ou não de reconhecimento devínculo empregatício em face de policiais militares (funcionários públicos)que exercem outra atividade no âmbito privado. O trabalho é realizado emperspectiva interdisciplinar, abordando aspectos de Direito do Trabalho, DireitoConstitucional, Direito Administrativo e Direito Processual Civil. A autora ressaltaa existência de divergências doutrinárias, mas, baseada em interpretação dotexto constitucional e de outras leis, defende a idéia de que, muito embora opolicial militar não possa acumular qualquer outra função pública, é possívelque tenha outro emprego particular, estando na ativa.

ABSTRACT

The article points to the issue of a possibility or not to recognize theemployment relationship when police officers (public employees) that haveother activity in private companies. The work is done in a interdisciplinaryway, reaching aspects of the Labor Law, Constitutional Law, AdministrativeLaw, and Civil Procedural Law. The author points to the existence ofdoctrinaires divergences, but, based in the interpretation of the Constitutionaltext and of other acts , she defends the idea that, although a police officercannot accumulate other public function , its possible to the police officerhave other job, even being in public activity.

PALAVRA CHAVE - Direito do Trabalho; policial militar; vínculoempregatício e função pública.

INTRODUÇÃO

A opção se deu em relação a um tema que, invariavelmente,comporta interpretações divergentes. Esta diversidade de entendimen-tos mostra-se salutar, principalmente no âmbito acadêmico, onde asopiniões fundamentadas incentivam o contínuo estudo.

A nível prático a opção também se justifica, pois, no âmbito do

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judiciário trabalhista, muitas vezes a questão se apresenta, e via deregra, os “supostos empregadores” alegam a negativa de vínculo deemprego.

A questão abordada neste pequeno artigo, é a possibilidade ounão de reconhecimento de vínculo empregatício em face de policiaismilitares – na qualidade de empregados, quando exercem outra ativida-de no âmbito privado.

A apreciação se fará em relação à legislação federal, com rápi-da incursão sobre a situação dos policiais militares no Estado do Paraná.

Atualmente, a análise de um tema não se pode fazer somenteem relação a uma disciplina, como por exemplo, sob o ângulo do direitodo trabalho, pois assim, a conclusão se mostraria indene de dúvidas. Adisciplina, direito do trabalho, está atrelada a um sistema, e será neces-sário, ainda que de forma rápida, uma incursão sobre o direito proces-sual civil, direito administrativo, e direito constitucional.

Não se pretende esgotar o assunto, mas apresentar os marcosfundamentais do mesmo, demonstrando os caminhos para um e outroentendimento.

DIVERSIDADE DE OPINIÕES

Reina nos entendimentos judiciais uma discrepância de en-tendimentos em relação à questão proposta.

Uma das correntes, afirma que é possível o reconhecimentode vínculo empregatício em face de policiais militares; e a outra optapela negativa. Ambas possuem sólidos fundamentos, que devem serapreciados.

Para se ter uma idéia da diversidade de opiniões, na RevistaLTr, de Janeiro de 1999, foram publicadas 2 (duas) ementas, em sen-tidos opostos, as quais são transcritas:

“A relação do Policial Militar com a instituição é exclusivaporque a sua vinculação com a esfera privada induz à mercancia daSegurança Pública, em total afronta aos princípios da legalidade eda moralidade pública, pelo que não pode ser referendada pelo Ju-diciário qualquer pretensa relação empregatícia.” (TRT 2ª RegiãoRO 02970000894 – Ac. 02970664032, 18.11.97- Rel.: Juiz Francis-

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co Antonio de Oliveira)112

Tal decisão não foi unânime, mas por maioria de votos, res-tando vencidos 2 (dois) Juízes. Além dos princípios mencionados, adecisão se baseou nas disposições contidas no artigo 3º, “a”; e arti-go 22, ambos do Decreto-Lei 667/69. Foi citada uma ementa do E.TST (Tribunal Superior do Trabalho), onde foi Relator o Exmo. Minis-tro Almir Pazzianoto Pinto, no mesmo sentido - Recurso de Revista155.946/95.1, no Acórdão 3.518/95 da 4ª Turma. Neste sentido, ou-tras decisões foram observadas, como as contidas no repertório dejurisprudência da IOB, nº 18/96, p. 303; e no boletim informativo daJuruá, nº 208/99, p. 23.

A outra ementa, em sentido contrário a anterior, assim ficouredigida:

“Não há de se falar em impossibilidade de reconhecimento do vín-culo empregatício pelo fato de o trabalhador que prestou serviçosser Policial Militar, pois o que deve ser observado é o contrato-reali-dade, e este demonstra, inequivocadamente, que se tratava de ver-dadeira relação de emprego. Recurso desprovido, neste aspecto,por maioria.” (TRT 24ª Região RO 1.720/97 – Ac. TP 926/98, 29.04.98– Rel.: Juiz Desig. Geralda Pedroso)113

Esta decisão, também, não foi adotada por unanimidade, maspor maioria, como a anterior, estando baseada no contrato-realidade,e na subordinação que existiu por parte do reclamante em face dareclamada. Também houve citação de uma ementa, do E. TST, emsentido contrário a já declinada, onde foi Relator o Exmo. MinistroRonaldo Leal - Recurso de Revista 156.012/95.9, no Ac. SBDI1 n. 2.526/97. Outras decisões neste sentido, como as contidas no repertório dejurisprudência da IOB, nº 16/96, p. 271; nº 9/96, p. 130; e no boletiminformativo da Juruá nº 196/98, p. 516.

Vislumbra-se que, a matéria está longe da possibilidade desuscitar interpretação unânime, ou até mesmo dominante, eis que, a di-vergência reina, não só nos Tribunais Regionais, mas reinava tambémperante a mais alta Corte do Judiciário trabalhista.112

Revista LTr. 63 - 02/63. p. 63-64.113

Revista LTr. 63 – 02/63. P.65.

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POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO

Faz-se necessária a abordagem, ainda que sucinta da searaprocessual que envolve o assunto.

- Quando ajuizada uma ação onde o policial militar postula oreconhecimento de vínculo empregatício na esfera privada, poder-se-iaacatar a tese de impossibilidade jurídica do pedido, eventualmente ar-güida pelo Estado?

Como a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) é omissaneste aspecto processual, deve-se buscar a solução no CPC (Códigode Processo Civil), até mesmo como impõe o artigo 769 do primeirodiploma legal citado.

A possibilidade jurídica do pedido constitui uma das condiçõesda ação, como se denota pelo artigo 267, VI, do CPC; e a ausência damesma leva à extinção do processo sem julgamento do mérito, inter-pretação que se extrai também do artigo 301, X, do mesmo código.

A análise significativa da “possibilidade jurídica do pedido”, deveser efetuada em relação à noção atual que a matéria comporta.

Predominava na doutrina o exame de que, o pedido deveriaser adequado ao direito material invocado. Logo: “...Juridicamente im-possível seria, assim, o pedido que não encontrasse amparo no direitomaterial positivo”. Tal posicionamento não mais prevalece nos dias atu-ais, eis que, se assim fosse, ter-se-ia que adentrar no mérito da de-manda. O correto é o atrelamento desta análise ao aspecto processu-al, ou seja, somente em relação ao pedido imediato, sendo este “...apermissão, ou não, do direito positivo a que se instaure a relação pro-cessual em torno da pretensão do autor.”. Conclui Humberto TheodoroJúnior: “...o que o juiz vai decidir é que o pedido de tutela jurisdicionalé insuscetível de apreciação pelo Poder Judiciário, sem cogitar da suaprocedência ou improcedência diante das regras substanciais da or-dem jurídica”.114

Ovídio A. Baptista da Silva, cita exemplos onde existe a impos-sibilidade jurídica do pedido, ao abordar o tema “O conceito de condi-ções da ação na teoria eclética”. Tal doutrinador menciona dentre ou-114

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. p. 53-55.

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tros, o fato de um autor, que tenha sofrido lesão a seu direito líquido ecerto, tenha proposto ação de mandado de segurança contra um parti-cular – e o direito positivo brasileiro só admite esta espécie de açãocontra atos de autoridade.115

Manoel Antonio Teixeira Filho, explica que, melhor seria a de-nominação pedido juridicamente “inatendível” ou “inapreciável”. Comclareza peculiar, demonstra o alcance da expressa em enfoque:

“...Ora, para nós, o pedido somente poderá ser considerado juridi-camente impossível quando houver, no tocante a ele, um veto, umaproibição no ordenamento jurídico, quanto à sua formulação em juízo.Se, por exemplo, alguém pleitear uma indenização não prevista emlei, esse pedido deverá ser rejeitado por falta de previsão legal; caso,todavia, se formule um pedido fundado em dívida de jogo, aí sim seestará diante de um pedido juridicamente impossível, porquanto exis-te, na lei, um veto quando a essa formulação (CC, art. 1.147)”.116

Salvo melhor entendimento, que evidentemente comporta dis-cussões, quando um policial militar ajuiza uma ação pugnando peloreconhecimento do vínculo de emprego, em face de um particular, nãoexiste impossibilidade jurídica do pedido, eis que, o direito positivo bra-sileiro assim não apresenta tal proibição.

Poderá existir sim, o não reconhecimento do vínculo de em-prego, aspecto que atine ao pedido mediato, qual seja, o pleito dedireito material, e que levará à análise do mérito da demanda.

LEGISLAÇÃO FEDERAL APLICADA À ESPÉCIE

À União compete legislar sobre as “normas gerais de organi-zação, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilizaçãodas polícias militares e corpos de bombeiros militares”, segundo pre-ceito contido no artigo 22, XXI, da Constituição da República.

Saliente-se que, a Seção III, do Capítulo VIII, da Carta Maior,que atine à “Administração Pública”, é reservada aos “Militares dosEstados, do Distrito Federal e dos Territórios”, com regras expostas noartigo 42. A matéria foi regulada com nova redação conferida pela Emen-

115 SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso de processo civil. p. 104.

116 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Jurisdição, ação e processo. p. 48.

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das Constitucionais 18, de 05.02.98; e 20, de 15.12.98. A princípio, anorma maior não impõe a exclusividade como requisito para o exercícioda função de policial militar estadual. Mas, o artigo 42, § 1º, alude àexpressão “além do que vier a ser fixado em lei”. Este último dispositivolegal citado, explicita que, aos policiais militares se aplicam as disposi-ções do artigo 142, §§ 2º e 3º. Transcrevem-se os itens que embasam ainterpretação ora enfocada, do último dispositivo legal citado:

“§ 3º Os Membros das Forças Armadas são denominados milita-res, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, asseguintes disposições:

...

II – o militar em atividade que tomar posse em cargo ou empregopúblico civil permanente será transferido para a reserva, nos termosda lei;

III - o militar da ativa que, de acordo com a lei, tomar posse emcargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ain-da que da administração indireta, ficará agregado ao respectivo qua-dro, e só poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promo-vido por antigüidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenaspara aquela promoção ou transferência para a reserva, sendo de-pois de 2 (dois) anos de afastamento, contínuos ou não, transferidopara a reserva, nos termos da lei;

...”

Interpretando-se a lei maior, observa-se que, caso o policialmilitar – evidentemente, após prestar concurso na forma do artigo 37,II, do mesmo diploma legal; tome posse em cargo ou emprego públicocivil, será transferido para a reserva.

Esta norma deve ser interpretada restritivamente, ou seja, quenão existe possibilidade – relacionada à matéria, de um policial militarvincular-se a outra função pública, considerando-se esta, de qualquerfonte pagadora – União, Estados, Distrito Federal e Municípios, querlaborando para estas pessoas jurídicas, ou ainda para Autarquias e Fun-dações atreladas às mesmas, sem fins lucrativos, que fazem parte daAdministração Indireta.

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A princípio, a Constituição da República não veda o reconheci-mento do vínculo empregatício no âmbito privado. No âmbito público asituação não apresenta dúvidas, mesmo que se trate de emprego públi-co, porque, principalmente com o princípio de moralidade, a intenção évedar o acúmulo de remunerações. Isto, viria inclusive de encontro coma tendência política de combate ao “desemprego”, melhor traduzida,possibilitando a ocupação remunerada do maior número de pessoas,haja vista o crescimento da ausência de trabalho dentre a população.

A nível de legislação infraconstitucional, 2 (duas) abordagenspodem ser efetuadas, uma pela CLT (Consolidação das Leis do Traba-lho), e outra através do Decreto-Lei 667/69.

Pela CLT, segundo o artigo 3º, considera-se empregado aque-le que preenche os requisitos ali estabelecidos, quais sejam, serviçosnão eventuais, percepção de salário, e subordinação hierárquico-jurí-dica em relação ao empregador. Analisando-se esta norma, fria e se-camente, o vínculo de emprego para os policiais militares poderia serreconhecido. Mas, além desta norma, existe a outra mencionada.

No Decreto-Lei 667/69, no artigo 3º, “a”, assim está disposto:

“Instituída para a manutenção da ordem pública e segurança inter-na nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, compete àsPolícias Militares no âmbito de suas respectivas jurisdições:

a) executar com exclusividade, ressalvadas as missões peculiaresdas forças armadas e os casos estabelecidos em legislação especí-fica, o policiamento ostensivo, fardado, planejado pelas autoridadespoliciais competentes, a fim de assegurar o cumprimento da lei, amanutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituí-dos;”

Tal preceito nada diz respeito a existência de vínculo de em-prego dos policiais militares. No entanto, está disposto no artigo 22 doDecreto-Lei:

“Ao pessoal das Polícias Militares, em serviço ativo, é vedado fazerparte de firmas comerciais, de empresas industriais de qualquernatureza ou nelas exercer função ou emprego remunerados”.

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Duas interpretações são efetuadas, levando em consideraçãoo último dispositivo legal.

Na primeira, poder-se-ia, até, questionar se tal norma foi ou nãorecepcionada pela Constituição da República, já que a única vedaçãoexistente na lei maior é quanto ao exercício simultâneo de cargo ou em-prego público. Partindo-se desta premissa, não aprofundada, não exis-tiria vedação ao reconhecimento de vínculo empregatício. A partir da úl-tima Constituição, os impedimentos via de regra, foram inseridos namesma, ante a forma detalhada e específica a cada caso, tornando-seinclusive volumosa. Se existisse proibição de acúmulo com a remunera-ção na iniciativa privada, ali estaria consignado.

Na segunda, sob outro enfoque, como se trata de norma queimpõe limitações ao exercício de uma atividade, a interpretação deveser restritiva, e não ampliativa. Isto inclusive está em conformidadecom o artigo 1º, IV, da Constituição da República, sendo que o Brasilpossui como um dos fundamentos “os valores sociais do trabalho e dalivre iniciativa”. Desta forma, a interpretação é que os policiais militaresnão poderiam compor sociedades, de qualquer natureza, ou aindaexercer emprego nas mesmas. Porém, a legislação não consegueacompanhar os fatos. Cite-se como exemplo, o policial militar que pos-sui, na realidade, uma empresa, mas que no contrato social não figurecomo sócio, colocando outra pessoa como tal, somente utilizando onome da mesma. Mesmo interpretando-se literalmente a norma legal,existiriam situações onde os policiais seriam considerados emprega-dos, sem impedimento algum, como é o caso do labor como seguran-ça em residências particulares, em condomínios, em entidades filan-trópicas, em clubes sociais, já que estes são considerados emprega-dores, e não detém a qualificação de “firma comercial” ou “empresaindustrial”.

O primeiro entendimento é mais coerente com os dias atuais.

POSSIBILIDADE DA LEGISLAÇÃO ESTADUAL ABORDAR OASSUNTO

Os Estados, possuem competência para legislar sobre deter-minados assuntos, mormente porque são responsáveis pela manuten-

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ção da ordem interna. Podem assim estabelecer, a nível administrativoimposições a serem cumpridas pelos policiais militares, mas sempreem observância aos preceitos estabelecidos em legislação federal, ejamais contra a mesma.

Vale a mesma orientação já esposada, ou seja, normas restriti-vas devem ser interpretadas de acordo com a Constituição da Repúbli-ca.

A título de exemplo, a Lei Estadual do Paraná nº 1.943, de23.06.54, relativa ao “Código da Polícia Militar”, assim dispõe:

“Art. 107. Ao militar no exercício da profissão é vedado fazer parteativa de firma comercial, de empresa industrial de qualquer nature-za, nelas exercer função ou emprego remunerado.

§ 1º. O militar da reserva, quando convocado, fica inibido de tratarnos corpos, repartições públicas civis e militares, e em qualquer es-tabelecimento militar, de interesse da indústria ou comércio a queestiver associado.

§ 2º. Ao militar portador de diploma para o exercício de profissãoliberal é permitido desenvolver a prática profissional no meio civildesde que haja correlação com suas atividades na Corporação enão prejudique o serviço”.

O caput, é a cópia literal do artigo 22 do Decreto-Lei 667/69, eexiste inclusive uma nota de rodapé fazendo remissão ao mesmo.Entende-se que, esta norma foi revogada com o advento da Constitui-ção da República de 1988, pelos motivos já expostos. A norma estadu-al não teria o condão de modificar princípios constitucionais, e imporrestrições não mencionadas na Carta Maior.

Quanto aos parágrafos, o primeiro trata de situação excepcio-nal, ou seja, militar de reserva, convocado, o que foge aos limites des-te trabalho.

O segundo aborda a situação dos profissionais liberais, sendoexemplos clássicos, advogados, médicos, cirurgiões-dentistas, enge-nheiros, dentre outros. Esta distinção remonta ao direito romano, quefazia a distinção entre “liberais” e “iliberais”. Os serviços dos primeirosnão poderia ser objeto de locação, e também não existia salário, rece-

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bendo honoraria ou numera. Esta noção foi demonstrada por DélioMaranhão, que ensina:

“Mas os tempos mudaram. Os chamados profissionais liberais são,hoje, verdadeiros empregados, quando prestam serviços, subordi-nados, juridicamente, a outra pessoa. Em sintonia com o art. 7º,inciso XXXII, da nova Constituição, dispõe o parágrafo único do art.3º da Consolidação que não haverá distinções relativas à espéciede emprego e à condição do trabalhador, nem entre o trabalho inte-lectual, técnico ou manual. Negá-lo em nome de um conceito histó-rico da profissão liberal, ou invocando uma confiança que não é es-tranha, mas, ao contrário, própria do contrato de trabalho, é viverfora da realidade, é desconhecer o fenômeno da proletarização doprofissional liberal, de que nos fala Mario de La Cueva, e que é umacontingência dos dias que correm.”117

Duas situações podem existir como o profissional liberal. Po-dem ser empregadores, se contratarem empregados, como secretárias,por exemplo, nos termos do artigo 2º, § 1º, da CLT. Podem tambémlaborar como empregados, mas com a mesma restrição constitucionaljá aludida, desde que não desempenhem suas atividades no âmbitopúblico. A outra restrição imposta na lei estadual, de existência de corre-lação com suas atividades, não pode subsistir, uma vez que esta limita-ção não existe na Carta Maior. Aliás, esta vedação nem seria justa, eisque, via de regra, o Estado não contribui de forma alguma para que opolicial adquira o diploma, estudando às expensas próprias.

ANÁLISE DOUTRINÁRIA E ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL

Georgenor de Sousa Franco Filho abordou a questão, de for-ma muito mais ampla do que a ora adotada, sob o título “Relação deemprego com policial civil ou militar”. Elencou fator social pelo qual ospoliciais procuram emprego, qual seja, levados pelo baixo soldo,complementando a renda familiar. Com clareza e objetividade peculiar,assim conclui o ser trabalho:

117 SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas. Instituições de direito do trabalho. p.

301-302.

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“Feitas essas considerações, é possível formar as conclusões arespeito do assunto. Primus, é admissível a existência de vínculode emprego entre policial civil ou policial militar com empregadorprivado, desde que presentes os pressupostos legais dos arts. 2º e3º da CLT, em horário que atenda às conveniências das partes. Se-cundo, inexiste, à falta de vedação legal, acumulação de cargo,emprego ou função pública com emprego na órbita privada. Tertius,se a legislação estadual considera defeso ao policial militar ou civil oexercício de atividade privada, sua ocorrência importa em ilícito ad-ministrativo, devendo ser apurado no âmbito da administração públi-ca, sujeitando o infrator a sanções disciplinares, mas sem provocara nulidade do seu contrato de trabalho, contrato-realidade, regidopor legislação federal.”118

O entendimento mencionado está coerente com o pensamen-to ora adotado, para qualquer atividade de emprego exercida pelo po-licial no âmbito privado.

Mas, por argumentação, mesmo que se considerasse, pelaliteralidade da norma, que ainda se aplica o disposto no artigo 22 doDecreto-Lei 667/69, ou seja, quando um policial presta serviços emuma empresa comercial, reputa-se que o reconhecimento do vínculode emprego é plenamente viável de ser reconhecido.

A primeira razão seria porque, em não sendo reconhecido ovínculo, já que existiria a impossibilidade a tanto, declarar-se-ia a nulida-de da relação que teria existido entre empregado e empregador. Sabe-se que, os atos nulos, a rigor, nenhum efeito produzem. Mas, no direitodo trabalho seria impossível que assim fosse considerado, como expõeOrlando Gomes e Elson Gottschalk, na forma a seguir transcrita:

“A questão da ineficácia do contrato de trabalho seria resolvida emtermos tão simples se fora possível aplicar ao mesmo, com todorigor, a teoria civilista das nulidades. Mas a natureza especial darelação de emprego não se compadece com a retroatividade dosefeitos da decretação da nulidade. O princípio, segundo o qual o queé nulo nenhum efeito produz, não pode ser aplicado ao contrato detrabalho. É impossível aceitá-lo em face da natureza da prestação

118 FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Globalização & Desemprego. p. 20-23.

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devida pelo empregado. Consistindo em força-trabalho, que implicaem dispêndio de energia física e intelectual, é, por isso mesmo,insuscetível de restituição Se a nulidade absoluta tem efeito retroati-vo, se repõe os contratantes no estado em que se encontravam aoestipular o contrato nulo, como se não fora celebrado, nenhuma par-te tem o direito de exigir da outra o cumprimento da obrigação. Don-de se seguem que o empregado não tem o direito de cobrar o salá-rio ajustado. Esta seria a conseqüência inelutável do princípio daretroatividade da nulidade de pleno direito.”119

O vínculo de emprego deveria ser reconhecido, já que o traba-lho foi despendido, não podendo retornar ao titular. Caso contrário,existiria um enriquecimento ilícito de uma das partes, ou seja, do em-pregador. Adotar-se a teoria da nulidade, estaria incentivando os em-pregadores a contratarem os policiais, já que, nunca teriam que pagaros direitos previstos na CLT e na legislação esparsa.

Uma alternativa seria a não consideração do vínculo de em-prego, ante a nulidade mencionada, tendo o prestador de serviços di-reito a uma indenização. Sendo assim, o equivalente ao salário, queserve para remunerar a atividade bastaria. Ocorre que, existia um pro-blema a ser solucionado. Tal pedido, como não decorre de relação entreempregado e empregador, não estaria inserido na competência da Jus-tiça do Trabalho, como preceitua o artigo 114 da Constituição da Repú-blica. Deveria ser ajuizada ação perante a Justiça Comum, postulandotal indenização, o que acarretaria maiores ônus ao prestador de servi-ços, já que o processo civil não é regido pelo princípio da gratuidade,peculiar este ao processo do trabalho.

Não reconhecer o vínculo de emprego, estaria contrariando umdos princípios mais importantes, senão o mais essencial da disciplinade direito do trabalho, qual seja, o princípio protetor. O significado deste,é “...proteger uma das partes com o objetivo de, mediante essa prote-ção, alcançar-se uma igualdade substancial e verdadeira entre as par-tes”.120 O objeto deste princípio também é abordado por Alfredo J.Ruprecht, nos seguintes termos: “...criar uma norma mais favorável ao119

GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. p. 124.120

RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de direito do trabalho. p. 28.

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trabalhador, procurando assim compensar as desigualdades econômi-cas e sua fraqueza diante do empregador”.121

Por este princípio, não seria viável, o não reconhecimento dovínculo empregatício entre empregado e empregador. Caso contrário,estar-se-ia deixando de lado uma das fontes que inspiram o direitopositivo brasileiro, como previsto no caput do artigo 8º da CLT, prote-gendo o empregador, que inclusive poderia estar agindo de má-fé.

Não se pode olvidar, ainda que, o contrato de trabalho, no direi-to positivo brasileiro, se trata de contrato-realidade, importando os fatosque efetivamente ocorreram, segundo noção extraída do artigo 442 daCLT. Sobre o assunto, Mozart Victor Russomano assim se manifesta:“De qualquer modo, apesar de tudo, a lei trabalhista brasileira, dispon-do como dispõe, está voltada para a realidade prática e procura evitarque os excessivos formalismos exigidos para a contratação do empre-gado possam resultar em reiteradas nulidades.”122

Observando-se a realidade, o vínculo em discussão torna-seflagrante, até mesmo que uma das partes insista na não existência domesmo.

Feitas tais considerações, é importante ressaltar que, sob oângulo do magistrado, deve ser observado, evidentemente, se seriaviável o exercício simultâneo das 2 (duas) atividades, a de policial mi-litar – âmbito público, e a outra – âmbito privado, mormente levandoem consideração a compatibilidade de horários, e o desempenho acontento de ambas, ou seja, sem prejuízo de nenhuma delas. A títulode exemplo, nas 2 (duas) atividades, o prestador dos serviços deveriaestar atento, acordado e diligente. Se em uma delas não estiver cum-prindo com estas obrigações, ou outras contratuais, implicará nas puni-ções administrativas e trabalhistas, conforme o caso.

Em sendo reconhecido o vínculo de emprego, transitada emjulgado a decisão, interessante se faz a comunicação de tal fato ao Co-mandante da Corporação ao qual o policial militar está vinculado. Amesma servirá para efeitos administrativos, e eventualmente, a apura-

121 RUPRECHT, Alfredo. Os princípios do direito do trabalho. p. 9.

122 RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de direito do trabalho. p. 99.

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ção de algum ilícito neste nível, embora a princípio, esta última situaçãonão se verificaria.

Lembra-se que o reconhecimento do tempo de serviço comoempregado, nenhum benefício trará ao policial, uma vez que o mes-mo, no âmbito público já estará contando tempo para a PrevidênciaSocial. O interesse portanto, se fará mais em relação ao aspectopecuniário.

Vários argumentos poderiam ser levados em consideração,no sentido contrário.

Um deles, e relevante é que, uma das funções do pessoal quese discute é a “polícia ostensiva”, e para tanto, se exige um profissio-nal atento, exclusivo, e capaz de gerar segurança. Outro, como expos-to em uma das ementas citadas, é que, o exercício de outra funçãolevaria à mercancia da Segurança Pública, violando os princípios dalegalidade e moralidade.

Interessante artigo foi publicado pelo professor Ulysses Rena-to Pereira Rodrigues, abordando a situação do “policial militar da ativae prestação de serviços de segurança”, concluindo que, como agentedo Estado, este profissional tem o dever de prestar serviços relativos àsegurança do particular, sendo “verdadeiro braço armado da polícia doEstado”, e o recebimento de valores pela atividade particular importa-ria em bis in idem.123 Não se concorda com tal posição, eis que, opolicial recebe o soldo especialmente pelo horário que está à disposi-ção da Corporação, e caso detenha outra atividade particular, tambémmerece remuneração. Não se pode esquecer que, existe ainda a rela-ção com o verdadeiro “empregador”, que estaria sendo beneficiado casoo entendimento fosse contrário.

Mas, nenhuma das posições mencionadas se sobrepõem aosargumentos já expendidos, analisados sob o ângulo do direito do tra-balho, em confronto com as normas estabelecidas na Constituição daRepública.

Nesta esteira de enfoque, o E. TST, através da SDI (Seção deDissídios Individuais), apresentou a orientação jurisprudencial nº 167,123

RODRIGUES, Ulysses Renato Pereira. Repertório IOB de Jurisprudência nº 23/95. p. 322-323.

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inserido em 26.03.99, com o seguinte teor: “Preenchidos os requisitosdo art. 3º da CLT, é legítimo o reconhecimento da relação de empregoentre policial militar e empresa privada, independentemente do eventualcabimento de penalidade disciplinar prevista no Estatuto do Policial Mi-litar.” Embora não possua força vinculante, demonstra o lado para o qualpende a mais alta Corte trabalhista de nosso país.

CONCLUSÕES

Ante o enfoque atribuído ao assunto, ressalta-se que, a maté-ria é altamente discutível. As conclusões apresentadas podem e de-vem gerar polêmica, porque a questão envolve o exercício de funçãopública, e as atribuições dos policiais militares estaduais, quais sejam,polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, como definido noartigo 144, § 5º, da Constituição da República.

Pelo estudo efetuado, chegam-se as seguintes conclusões,ressalvando que, o entendimento é pessoal, existindo opiniões diver-gentes, cuja discussão só engrandece os operadores do direito:

- a análise da possibilidade ou não do reconhecimento de vín-culo empregatício com policiais militares estaduais, não se insere nascondições da ação, o que geraria a impossibilidade jurídica do pedido,levando à extinção do feito sem julgamento do mérito; mas no méritodo assunto, acarretando a procedência ou improcedência dos pleitos;

- os policiais militares estaduais não podem exercer cargo ouemprego público, ante expressa vedação constitucional;

- uma interpretação é que, o artigo 22 do Decreto 667/69, estáderrogado pela Constituição da República, podendo existir o reconhe-cimento do vínculo de emprego dos policiais militares estaduais emâmbito privado;

- mesmo que se entenda em vigor a norma citada anterior-mente, nada impede que policiais militares trabalhem como emprega-dos no âmbito privado, desde que não seja em firmas comerciais ouempresas industriais;

- considerando-se correta a terceira premissa ora formulada,nenhuma legislação estadual poderá dispor em contrário, eis que, esta-rá impondo restrição não delineada na Carta Maior;

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- o profissional liberal, sendo policial militar, poderá ser empre-gado, nas mesmas condições mencionadas; bem como, poderá serempregador;

- para a configuração do vínculo de emprego, será necessáriaa análise da compatibilidade em relação às funções exercidas, mor-mente em relação à disponibilidade de cumprimento de horário.

REFERÊNCIAS

· FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Globalização & Desem-prego. São Paulo: LTr, 1998.

· GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do tra-balho. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

· RODRIGUES, Ulysses Renato Pereira. Policial militar da ativa eprestação de serviços de segurança. In: Repertório de Jurisprudên-cia IOB, nº 23/95.

· RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de direito do trabalho. SãoPaulo: LTr, 1993.

· RUPRECHT, Alfredo J. Os princípios do direito do trabalho. SãoPaulo: LTr, 1995.

· RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de direito do trabalho.Curitiba: Juruá, 1993.

· SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso de processo civil. V. 1. 4 ed. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1998.

· SÜSSEKIND, Arnado; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas. Ins-tituições de direito do trabalho. V. 1. 12 ed. São Paulo: LTr, 1991.

· TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Jurisdição, ação e processo.Cadernos de processo civil. Vol. 1. São Paulo: LTr, 1999.

· THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil.V. 1. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

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COMISSÕES DE CONCILIAÇÃO PRÉVIA: CULTURA EAUTOCOMPOSIÇÃO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

VANDERLEI SCHNEIDER DE LIMA

PROFESSOR DE DIREITO DO TRABALHO NA FACULDADE MATER DEI.MESTRE EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PELA UNIVERSIDADEESTADUAL DE PONTA GROSSA

RESUMO

O artigo trata das inovações trazidas pela Lei nº. 9.958 de 2000, quecriou as Comissões de Conciliação Prévia. O autor desenvolve umareflexão crítica da nova legislação com o objetivo de diminuir as de-mandas na Justiça do Trabalho, mas por imprecisão técnica da lei,acabaria por acarretar na supressão de vários direitos dos trabalha-dores. O texto aborda outras impropriedades decorrentes da cha-mada “flexibilização do Direito do Trabalho”, enfatizando a afrontaao artigo 5º, incisos XXXV e LV, da Constituição Federal. O trabalhoaborda, enfim, a questão da falta de normas jurídicas para discipli-nar o processo de criação das comissões.

ABSTRACT

The article is about the innovations brought by act # 9.958 /2000, which hascreated the Commissions for Previous Conciliation. The author makes acritical thought of the new Laws with the goal to decrease the necessities inLabor Courts, but because of technical imprecision of the Law, it would endup to bring the suppression of several workers right. The text brings otheruncharacteristic come from the “flexibility of Labor Law”, emphasizing theconfront to the article 5th , paragraph XXXV and LV , of Federal Constitution.The paper is about the lack of juridical rules to discipline the procedure ofcreating commissions.

PALAVRAS CHAVE - Direito do Trabalho; Comissões de ConciliaçãoPrévia; flexibilização do Direito do Trabalho.

Tal como a Lei n.º 9.957124 de 2000, esta foi outra iniciativa do

124 De autoria do Poder Executivo, a Lei n.º 9.957 de 12 de janeiro de 2000 criou o procedimento

sumaríssimo na Justiça do Trabalho para as ações cujo valor não ultrapasse 40 salários mínimos nomomento da ajuização. A Lei 9.957 inovou apenas ao propor uma nova modalidade de rito processualvinculando-o apenas ao valor da causa, o que não resolve o problema principal da Justiça do Trabalhistaque é o de acúmulo de ações, isto porque com este valor é a grande maioria dos processos. O mais

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Poder Executivo que se tornou lei, sob a justificativa de desafogamento daJustiça do Trabalho.

A Lei nº. 9.958 de 2000, que criou as Comissões de ConciliaçãoPrévia explicita, sobremaneira, toda a problemática da flexibilização e dadesregulamentação do Direito do Trabalho nacional numa conjuntura desfa-vorável, pois se trata de forma de privatização da resolução das lides traba-lhistas, que no seu bojo pode suprimir vários direitos dos trabalhadores.

Através da inserção dos artigos 625-A, 625-B, 625-C, 625-D, 625-E, 625-F, 625-G e 625-H da Consolidação das Leis do Trabalho, possibili-tou a criação de comissões paritárias de empregados e empregadores, afuncionarem nas empresas ou nos sindicatos. Essas comissões analisa-rão os conflitos entre o empregado e seu patrão, na busca de conciliação, eem caso de sucesso lavrar-se-á termo com eficácia liberatória geral, queuma vez convalidado pelas partes não mais poderá ser reclamado na Jus-tiça do Trabalho, salvo quanto às parcelas expressamente ressalvadas notermo.

Essa possibilidade de autocomposição, tão ansiada pelos sin-dicalistas, acabou apenas compensando a extinção dos juízes classistasda Justiça do Trabalho.

A imprecisão técnica e a impropriedade da Lei trouxeram muitomais problemas para os conflitos trabalhistas - com longa margem paraocorrência de inúmeras fraudes - do que solução para o sufocadocontencioso judiciário trabalhista.

Como bem expressa João Augusto da Palma (2000, p.122), “oproblema fundamental é que, além de estar maculada por imperfeiçõestécnicas e aberrações políticas graves, a Lei das Comissões de Conci-liação Prévia também parece feita para outro país. Neste gigantescoBrasil continental, com realidades regionais díspares e organizaçõessindicais débeis, o novo modelo jurídico poderá ocasionar distorções eproblemas sociais graves”.

grave na Lei no. 9.957 de 2000 é que pode ocorrer condenação do reclamante que não cumprir os

requisitos mínimos para a formulação da reclamação trabalhista, principalmente quanto à liquidação dosvalores pedidos; nesse caso, além de ser arquivada a ação, o reclamante ainda pode ter de pagarcustas à Justiça. Saliente-se que, na exigência de cumprimento dos prazos para a resolução dos litígiospelo Rito Sumaríssimo na Justiça do Trabalho, o legislador ignorou as dificuldades estruturais (falta dejuízes e servidores ou insuficiência técnica e material), que vêm prejudicando essa Justiça Especializada.

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A primeira impropriedade é a obrigatoriedade de o trabalhadorencaminhar a questão à Comissão de Conciliação, antes de acionar aJustiça do Trabalho125 , o que confronta com o art. 5º, inciso XXXV, daConstituição Federal de 1988, que dispõe que “a lei não excluirá daapreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”; e inciso LV,“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusadosem geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meiose recursos a ela inerentes”;126

Todavia, Sérgio Pinto Martins entende que:

O procedimento adotado pelo artigo 625-D da CLT não éinconstitucional, pois as condições da ação devem ser estabelecidasem lei e não se está privando o empregado de ajuizar a ação, desdeque tente a conciliação. Ada Pellegrini Grinover menciona não serinconstitucional a proposta que estabelecesse a tentativa obrigatóriada conciliação prévia, que não iria contrariar o inciso XXXV, do artigo5º da Constituição, pois “o direito da ação não é absoluto, sujeitando-se a condições (as condições da ação), a serem estabelecidas pelolegislador”. Não haverá o interesse de agir da pessoa, postulando atutela jurisdicional, se não for observado o caminho alternativo da con-ciliação prévia, que seria uma situação bastante razoável, não fican-do mutilada a garantia constitucional do direito ao processo. KazuoWatanabe tem o mesmo pensamento. Se o empregado não tentar aconciliação, o juiz irá extinguir o processo sem o julgamento do méri-to, por não atender à condição da ação estabelecida na lei. A reivindi-cação só poderá ser feita diretamente à Justiça do Trabalho caso naempresa não exista a Comissão, nem tenha sido instituída no âmbitodo sindicato da categoria, porque não haveria como se passar porcomissão conciliatória. (MARTINS, 2000, p.65-68)

Apontaríamos, como segunda inconveniência da Lei no. 9.958/2000, a exigência da conciliação prévia em um contexto político desfavo-

125 De acordo com o art. 625-D da CLT, “Qualquer demanda de natureza trabalhista será submetida à

Comissão de Conciliação Prévia se, na localidade da prestação de serviços, houver sido instituída aComissão no âmbito da empresa ou do sindicato da categoria”.§ 2º Não prosperando a conciliação, será fornecida ao empregado e ao empregador declaração datentativa conciliatória frustrada com a descrição de seu objeto, firmada pelos membros da Comissão,que deverá ser juntada à eventual reclamação trabalhista”.126

Redação de acordo com o artigo 5º, incisos XXXV e LV, da Constituição Federal de 1998.

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rável aos trabalhadores, ainda insuficientemente organizados.Vejamos as considerações de Vicente José Malheiros da

Fonseca:

Creio, contudo, que não basta a simples previsão legal para institui-ção de meios extrajudiciais de solução de conflitos entre emprega-dos e empregadores. Faz-se necessário o desenvolvimento de umacultura motivada para conduzir as partes aos mecanismos alternati-vos de pacificação das questões entre o trabalho e o capital, o quenão se consegue sem que os interessados, sobretudo os trabalha-dores, tenham a confiança na atuação desses órgãos, tal como hojeconfiam na Justiça do Trabalho. (FONSECA, 2002)

Outra impropriedade é a falta de normas jurídicas para disci-plinar o processo de criação das comissões na empresa e a eleiçãodos representantes dos trabalhadores.

As Comissões de Conciliação Prévia podem tornar-se, no in-terior das empresas, ou em grupos de empresas, instrumentos con-correntes dos sindicatos, de forma a esvaziar a atuação sindical. Nãoserá difícil encontrar sindicalistas se queixando da dificuldade de acessoaos trabalhadores de uma dada empresa, por lá funcionar uma estru-tura paralela, formada a partir das comissões.

Poder-se-ia imaginar que, em algumas empresas, a Comis-são de Conciliação Prévia não passaria de mera extensão do Departa-mento de Recursos Humanos.

Por último, e mais grave, apontamos a inversão da lógica daquitação dos direitos trabalhistas, ao consagrar a eficácia liberatóriageral independentemente de demanda e transação expressa.

Observando-se o disposto no parágrafo único do artigo 625-E- “O termo de conciliação é título executivo extrajudicial e terá eficácialiberatória geral, exceto quanto às parcelas expressamente ressalva-das” - percebe-se uma inversão da lógica estipulada no enunciado 330do TST127 , do qual se deduziria que a liberação diz respeito somente ao

127 “A quitação passada pelo empregado, com assistência de entidade sindical de sua categoria, ao

empregador, com observância dos requisitos exigidos nos parágrafos do artigo 477, da CLT, tem eficácialiberatória em relação às parcelas expressamente consignadas no recibo, salvo se oposta ressalvaexpressa e especificada ao valor dado à parcela ou parcelas impugnadas”.

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que foi pago e não ao contrato de trabalho, salvo se assim for descritono termo. Prevê, ainda, o Código Civil que a quitação designará o valore a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por estepagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor oudo seu representante. Portanto, não há que se falar em eficácia liberatóriadaquilo que não foi pago, ao contrário do que se deduz do dispositivolegal supracitado.

Em análise ampla do assunto, pronunciou-se com muita propri-edade Reginaldo Melhado:

Na realidade, seria tolerável e até desejável – com organizaçõessindicais decentes, legítimas e representativas, ou comissões deempresa legitimamente instituídas – que a prática da negociaçãofosse revestida da maior autoridade. Nada obstante, nunca da for-ma como posta pelo legislador. A lei deveria estabelecer que a eficá-cia liberatória só ocorre em relação ao objeto da demanda submeti-da a comissão. Imagine-se, por exemplo, a hipótese de uma contro-vérsia banal sobre o acerto de contas na rescisão de um contrato deemprego (muitas vezes marcada por certa intranqüilidade entre osenvolvidos). Para a composição acerca de valores ou critérios decálculo, haverá o trabalhador de ressalvar imediatamente no “ter-mo” de conciliação todas as questões que pretende discutir em juízo.E deverá fazê-lo de inopino, sem consultar advogado, sem meditarsobre os anos passados do contrato ainda não alcançados pela pres-crição qüinqüenal, sem trocar idéias com familiares. Se nada lhevier à memória, haverá quitação geral. A considerar constitucional areferida Lei, por certo, doravante, muitos empregadores passarão aexigir que a “homologação” das rescisões contratuais se realizemperante as comissões. Tal como hoje em dia uns tantos já se valemdo artifício do aforamento de uma “demanda” judicial para o paga-mento de verbas rescisórias, buscando exatamente a eficácialiberatória genérica agora consagrada como regra, mais e mais em-presários passarão a correr às comissões prévias de conciliação. Oresultado disso poderá ser o sacrifício dos direitos de milhões dehumildes trabalhadores. Por que não estabelecer que a conciliaçãosó implica eficácia liberatória – isto é, só exime o devedor de qual-quer obrigação – quando pactuada expressamente? As razões são

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políticas, e seguramente inconfessáveis, ou são a manifestação daingenuidade coletiva de pelo menos uma parte dos membros doCongresso Nacional. Até mesmo uma sentença judicial deve estarlimitada à chamada res in iudicio deducta (não vemos repisar aqui ateoria da sentença, infra, ultra e extra petita, plasmada, grosso modo,no art. 460 do CPC). Como posta na Lei 9.958/2000, o termo deconciliação terá poder maior que aquele conferido à sentença, poisproduzirá a mesma conseqüência jurídica, sem qualquer formalida-de, sem contraditório, sem ampla defesa e principalmente sem oslimites da demanda. (MELHADO, 2000, p. 331-409)

Ao examinar as inovações advindas da Lei no. 9.958, JoséSalem Neto (2000, p. 50) assim emite o seu referendo: “concluímospela nossa experiência que foi mais uma lei imperfeita e infeliz do go-verno neoliberalista, que só provocará polêmica e debates no PoderJudiciário para afinal decidir os temas controvertidos decorrentes doconflito e atos das partes interessadas. O maior prejudicado será oempregado hipossuficiente”.

Vale ressaltar que os efeitos do Procedimento Sumaríssimo edas Comissões de Conciliação Prévia não puderam ser aprofundadosno parlamento devido ao regime de urgência. Aprovadas sem maioresreflexões por parte da sociedade e especialmente pelos estudiosos eprincipais usuários da Justiça Trabalhista, as leis deverão ser interpre-tadas no dia-a-dia jurisdicional, até que se solidifiquem como regrasjurisprudenciais. Até lá, muitas dúvidas de interpretação causarão pre-juízo a trabalhadores e, em menor parte, a empregadores.

Muito grande é o número de denúncias de fraudes nas Comis-sões de Conciliação Prévia, que incluem, a saber: cobrança de valoressobre as conciliações, com que os conciliadores chegam a ganhar até50 mil reais por mês, conforme publicou a revista Consultor Jurídico,de 03 de junho de 2002; quitação geral de direitos e não apenas deparcelas objeto de transação, mediante pagamentos ínfimos, se com-parados com o real crédito trabalhista; vedação do ingresso de advo-gados nos recintos das comissões; utilização de símbolos da Repúbli-ca e do Poder Judiciário nas audiências e notificações expedidas; au-sência de assistência sindical efetiva; falta de recolhimento de parcelas

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previdenciárias e fiscais incidentes sobre os valores pagos em virtudeda conciliação. Por isso o Ministério do Trabalho e Emprego expediu aPortaria nº. 264, de 05 de junho de 2002, fixando normas para o acom-panhamento e o levantamento de dados relacionados ao funcionamentodas Comissões de Conciliação Prévia, bem como para a fiscalizaçãodo trabalho ligado ao FGTS e às contribuições sociais decorrentes daconciliação.

Inclusive o Ministro do TST, Francisco Fausto, quando do lan-çamento da portaria mencionada, já admitia que “se mesmo assim, aspráticas irregulares persistirem e não houver sanções, sou favorável àextinção das comissões e até mesmo à revogação da Lei que as criou.Também podemos partir para uma nova legislação que acabe com asComissões de Conciliação Prévia e substituí-las por juízes do Traba-lho especializados em conciliação prévia, remunerados pelo Estado,ou seja, sem extorquir dinheiro dos trabalhadores” (TRIBUNAL, 2002).

Inegável que a negociação é o instrumento autônomo por ex-celência para solucionar conflitos oriundos da relação de trabalho, epor muito tempo foi aclamada pela classe trabalhadora organizada emsindicatos, já que nem sempre a jurisdição diz melhor o direito ou re-solve melhor o conflito.

Às vezes, a jurisdição estatal não diz nem o melhor, nem o piordireito. Simplesmente não o diz. Ou ainda, quando o diz, o faz tardia-mente. E em alguns casos diz o direito, mas a efetiva e real entrega daprestação jurisdicional, com a execução da sentença, é demorada, ejustiça tardia é injustiça (FONSECA, 2002, p. 2).

A solução extrajudicial dos conflitos individuais trabalhistas, porintermédio de Comissões de Conciliação Prévia, portanto, seria, emtese, uma alternativa válida para pacificar as questões entre emprega-dos e empregadores, não só após a extinção da relação de emprego,mas também durante o vínculo empregatício. Todavia não basta a sim-ples previsão legal, ainda mais quando eivada de imprecisões, para ainstituição e legitimação de meios extrajudiciais de solução de confli-tos trabalhistas.

Faz-se necessária a articulação de um complexo padrão de

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comportamento institucional e coletivo voltado para o uso eficaz e autên-tico desses meios extrajudiciais de solução de conflitos entre emprega-dos e empregadores. Tudo isso através da possibilidade de discussãoparitária dos interesses, sempre velando pela transparência, imparciali-dade e segurança, para que as disparidades e contrastes dos órgãosde classe das diferentes práticas sindicais do vasto território nacionalnão comprometam os interesses mínimos assegurados à classe traba-lhadora.

Portanto, na ausência dessa cultura de autocomposição entrecapital e trabalho, parece que essas Comissões estão fadadas ainoperância, permanecendo apenas como um entrave burocrático aoacionamento da jurisdição, cada vez mais afogada em processos. Destaforma parece ficar evidente que a prática do direito não se constrói decima para baixo, mas sim da vivência social, de políticas públicas es-truturais, da educação e do acúmulo de experiências entre os diversosatores da sociedade.

REFERÊNCIAS

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A RETROATIVIDADE BENIGNA DA LEI TRIBUTÁRIA EO ATO NÃO DEFINITIVAMENTE JULGADO

CÉLIO ARMANDO JANCZESKI

ADVOGADO EM SANTA CATARINA, PROFESSOR DE DIREITOTRIBUTÁRIO DA FACULDADE MATER DEI E PROFESSOR DA ESCOLASUPERIOR DA ADVOCACIA DA OAB/SC.

RESUMO

O artigo desenvolve a questão da retroatividade da lei tributária e do ato nãodefinitivamente julgado à luz do ordenamento constitucional e infra-constitucional. Primeiramente o autor faz uma reflexão a respeito do princípioda irretroatividade da lei tributária como direito fundamental do contribuinte,analisando de que maneira tal princípio não venha a impedir lei que concedauma vantagem ao contribuinte tenha incidência retroativa, seguindoposteriormente para a discussão acerca dos casos de retroatividade da leimais benigna aos contribuintes e responsáveis, desde que não trate-se deato não definitivamente julgado.

ABSTRACT

The article develops the question of retroactivity of the tax law and the act notdefinitively judged to the vision of Constitutional System and infra constitutional.First the author makes a though about the principle of irretroactivity of theTax Law as a basic right of the taxpayer, analyzing in what way such principledon’t disable the act that gives advantages to the taxpayer and have anretroactivity incidence, following, after that, to the discussion aboutretroactivity cases of a better act to the taxpayers, since it isn’t an act notdefinitively judged(res judicata).

PALAVRAS CHAVE - Direito Tributário; retroatividade e irretroatividadeda lei tributária; defesa do contribuinte.

A IRRETROATIVIDADE DA LEI TRIBUTÁRIA

A regra geral, é que a lei tributária deve reger o futuro, sem seestender a fatos ou circunstâncias ocorridas anteriormente ao início desua entrada em vigor. Só há legitimidade na norma se o contribuinteconhece de antemão a sua obrigação tributária e todos os elementosde mensuração. A certeza jurídica só é assegurada se os sujeitos sa-bem que todos os atos que praticarem durante a vigência de uma lei,serão regulados por esta, que foi a levada em conta, quando do planeja-

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mento e da realização desses atos. Não faz sentido o sujeito levar aefeito um empreendimento, planificando todos os custos e despesas domesmo, incluindo os reflexos tributários, se no futuro, lei poderá fazerincidir sobre o mesmo, tributo não incidente quando de suaimplementação, tornando-o desvantajoso ao empreendedor. Ocorrido ofato gerador, adquire o contribuinte o direito de se submeter ao regimefiscal vigente quando da ocorrência deste.

A Constituição Federal, estabelece como norma geral, que alei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisajulgada (inciso XXXVI, art. 5o.), estabelecendo que em matéria penal alei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (inciso XL, art. 5o). OCódigo Tributário Nacional, por seu turno, em seu art. 144, esclareceque o lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador daobrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormentemodificada ou revogada. Ao tratar do Sistema Tributário Nacional, oconstituinte originário alçou o princípio da irretroatividade da lei tributá-ria como direito fundamental do contribuinte (alínea a, do inciso III, doart. 150), estando ao abrigo das chamadas cláusulas pétreas (incisoIV, do parágrafo 4o., do art. 60) e como tal resguardado de qualquer ten-tativa de supressão (mesmo parcial) pelo poder constituinte derivado. Oprincípio não impede lei que conceda uma vantagem ao contribuinte quetenha incidência retroativa, já que como direito individual seu, só operacomo regra protetiva, isto é, quando a lei cria ou aumenta um tributo.128

128 Valdés COSTA apresenta bem elaborado panorama luso-hispano-americano a respeito da

irretroatividade: La Constitución de Bolivia dispone en general la irrretroactividad, excepto “en materiasocial cuando la ley expresamente lo determine y en materia penal cuando beneficie al delincuente”.Brasil, en su Constitución de 1988, establece como norma general, que la ley não perjudicará o direitoadquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; en materia penal, que “não retroagirá, salvo parabeneficiar o réu”(art. 5º, nums. XXXVI y XL); en materia tributaria, como limitación al poder de tributar,prohíbe establecer tributos sobre hechos generadores ocurridos con anterioridad a la ley, o en el mismoejercicio financiero en que esta haya sido publicada, en este último caso, con excepciones taxativamenteenumeradas relativas a impuestos indirectos (art. 150). Colombia, en su Constitución de 1991, en materiapenal establece que “nadie podrá ser juzgado sino conforme a leyes preexistentes...” y que “la ley permisivaa favorable, aun cuando fuere posterior, se aplicará de preferencia a la restrictiva o desfavorable”(art. 29).En materia tributaria dispone que las leyes “no se aplicarán con retroactividad”(art. 363) con especificaciónde la aplicación de este criterio a las normas “que graven hechos generadores periódicos (art. 338). Chileadmite expresamente la retroactividad de la ley que favorezca al afectado”(Constitución de 1980, art. 19).Ecuador, en su Constitución de 1978, dispone que “no se dictarán leyes tributarias en perjuicio de loscontribuyentes”. La Constitución de España garantiza la irretroactividad de las disposiciones“sancionadoras no favorables o restrictivas de derechos individuales”, debiendo anotarse la supresión

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RETROATIVIDADE BENIGNA

O Código Tributário Nacional, em seu art. 106, II, estipula trêscasos de retroatividade da lei mais benigna aos contribuintes e res-ponsáveis, tratando-se de ato não definitivamente julgado. O que deveser compreendido como ato não definitivamente julgado, veremos adi-ante. Este tópico, portanto, se preocupa com as três hipóteses em quea lei aplica-se a ato ou fato pretérito: a) quando deixaria de defini-locomo infração; b) quando deixaria de tratá-lo como contrário a qualquerexigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento enão tenha implicado em falta de pagamento de tributo; c) quando lhecominaria penalidade menos severa que a prevista na lei vigente aotempo de sua prática.

As três hipóteses de retroatividade estampadas pela lei, aca-bam por beneficiar o contribuinte, sem empecilhos do ordenamentoconstitucional, que só proíbe a retroação de lei que agrave sua situa-ção. Manifestando-se sobre o assunto, é a doutrina abalizada de HéctorBelisario Villegas, para quem la retroactividad es exigencia constitu-cional sólo en cuanto representa una tutela para los imputados. Sidespués de cometido el hecho, el legislador modifica favorablementelas consecuencias de la imputación, es objetivamente justo que no seniegue el beneficio a quien esté en condiciones de ampararse en lamayor benignidad. 129

de la referencia que el proyecto hacía a las disposiciones “fiscales”. México, en una disposición que haprovocado discrepancias sobre su alcance, dispone que “a ninguna ley se dará efecto retroactivo enperjuicio de persona alguna”(art. 14 de la Constitución). Paraguay, en su Constitución de 1992, en elcapítulo que regula la liberdad, dispone que “ninguna ley tendrá efecto retroactivo, salvo que sea másfavorable al encausado o al condenado”(art. 14), texto que se diferencia del anterior por suprimir lamención de “leyes penales” en la segunda parte de la disposición. Perú, como ya se anotó, modificó elrégimen suprimiendo la referencia a la retroactividad de las leyes laborales y tributarias más favorablesa los trabajadores y contribuyentes, manteniéndola solo para la “materia penal cuando favorece alreo”(art. 103). Igual solución rige em Portugal. Venezuela, en una solución similar a la de México, háestablecido en su Constitución, en forma general, que “ninguna disposición legislativa tendrá efectoretroactivo”, com la única excepción de la que “imponga menor pena” (art. 44). Argentina y Uruguay notienen normas constitucionales expresas sobre retroactividad, pero en sus códigos civiles se consagrael criterio de la irretroactividad como regla, que obviamente puede ser alterada por otras leyes, como hásucedido con los códigos penales y el C.T.U. Curso de Derecho Tributario. Buenos Aires: EdicionésDepalma, p. 244/245,1992.129

VILLEGAS, Héctor Belisario. Curso de Finanzas, derecho financiero e tributário, 8a. ed., Buenos Aires:

Astrea, p. 243,2002.

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Como observa com razão Hugo de Brito Machado, não se háde confundir aplicação “retroativa” nos termos do art. 106, II, com anistia,regulada nos arts. 180 a 182 do Código. Embora em ambas as hipóte-ses ocorra a aplicação da lei nova que elida efeitos da incidência de leianterior, na anistia não se opera alteração ou revogação da lei antiga.Não ocorre mudança na qualificação jurídica do ilícito. O que era infra-ção continua como tal. Apenas fica extinta a punibilidade relativamentea certos fatos. A anistia, portanto, não é questão pertinente ao direitointertemporal.130

As hipóteses das alíneas a e b, do inciso II, do art. 106, doCTN, autorizam a aplicação retroativa em casos de lei posterior deixarde definir um ato como infração (alínea a) ou deixar de tratá-lo contrá-rio a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenhasido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tri-buto (alínea b). Na hipótese da alínea a, não há condições exigidaspara a aplicação retroativa da lei, basta o desaparecimento da infraçãono texto novo. Na hipótese da alínea b, por sua vez, há exigência deque não tenha ocorrido fraude, nem omissão de pagamento de tributo.Apesar da semelhança das duas situações, afinal quando a lei deixade definir um ato como infração, também está deixando de tratá-lo comocontrário a qualquer exigência de ação ou omissão. A hipótese da alí-nea a, só pode ter aplicação, quando não se caracterizar a hipótese daalínea b, ou seja, a lei nova poderá ser utilizada pelo contribuinte sempreque a mesma deixar de definir um ato como infração, mas desde que ainfração não resulte de fraude, nem omissão de pagamento de tributodevido. Caracterizado fraude ou omissão de pagamento de tributo,advindo da infração praticada, aplica-se a lei tributária vigente na datada ocorrência do fato gerador, sem prejuízo de aplicação retroativa dalei penal (inciso XL, art. 5o, CF). A alínea b, trata-se de norma específicaque excepciona a regra geral da alínea a.

A hipótese da alínea c, do citado dispositivo, a lei nova continuaprevendo penalidade para o ato levado a efeito pelo contribuinte, mascomina a este ato uma pena menos severa. A penalidade mais severa

130 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 13

a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 71.

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decorrente da lei vigente na data da ocorrência do fato gerador, é subs-tituída por uma menos severa, advinda da lei nova.

No passado, a jurisprudência vinha distinguindo entre multamoratória e multa punitiva, para autorizar a retroatividade benigna ape-nas para a última. Hodiernamente, no entanto, a distinção apresenta-sesuperada na doutrina e na jurisprudência entende que uma vez assegu-rada correção monetária e juros moratórios, as sanções fiscais são sem-pre punitivas. É que, se já exigidos correção monetária e juros de mora,qualquer acréscimo pecuniário implicará em penalidade, pouco impor-tando a denominação utilizada. Se já não há dúvidas que a multa mora-tória constitui pena administrativa (Súmula 565, STF), como sanção fis-cal punitiva, não há razoes jurídicas para se afastar a aplicação de leinova mais benéfica, nos termos do inciso II, do art. 106, do CTN.131

ATO NÃO DEFINITIVAMENTE JULGADO

Apesar de ainda perdurar em parte da jurisprudência pátria, oentendimento de que, ato não definitivamente julgado, é aquele que nãofoi solucionado de forma definitiva em razão de impugnação ou recursoadministrativo pendente de julgamento e que, não havendo feito judicialpendente sobre a matéria, há ato administrativo perfeito e acabado, quejá consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou, estáprotegido contra a interferência da nova legislação pelo inciso XXXVI,do art. 5o, da CF (ato jurídico perfeito), tal posicionamento é minoritário.Mesmo aqueles que defendem este posicionamento, aceitam que a in-terpretação de ato não definitivamente julgado, compreende tanto o jul-gamento administrativo, como o judicial. Entendem, no entanto, que ten-do sido solucionado o feito na esfera administrativa e não tendo o contri-buinte aforado ação judicial com o objetivo de questionar o débito, res-tará impedido de se beneficiar de lei nova. É óbvio que não é esta ainterpretação que reclama o inciso II, do art. 106, já que não há qualquerexigência de que o contribuinte, após resolvido o feito administrativa-mente, tenha que, em seguida, procurar o Poder Judiciário. É perfeita-mente possível e inclusive é o caminho normalmente escolhido pelo con-131

O Pretório Excelso em sessão plena já referendou a tese de inexistir base jurídica para a distinção,como se verifica, p. ex. no julgamento do RE 79.625 in RTJ 80/104.

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tribuinte, o de esperar que o Fisco inscreva o título em dívida ativa epromova a cobrança via executivo fiscal. Afinal, se a exegese que seextrai do dispositivo legal é a de que prevalece, não só para a autorida-de administrativa como para a judiciária, não há de se ter o ato comodefinitivamente julgado. Ou como já se pronunciou o Pretório Excelso:se ainda comporta o ato recurso ao judiciário não há como dizer-se es-tar ele definitivamente julgado. 132

Estando o crédito tributário impugnado judicialmente, via açãoanulatória de débito fiscal ou qualquer ação aonde o contribuinte de-monstre seu inconformismo pela exigência, a retroatividade benignaprevista pelo Código Tributário poderá ser implementada até a extinçãodo feito. E na execução fiscal, quando é que o ato torna-se definitiva-mente julgado, impedindo a retroatividade benéfica da lei nova?

A matéria comporta duas correntes e ambas possuem defen-sores junto ao Egrégio Superior Tribunal de Justiça. Uma das corren-tes, entende que o momento processual, limite para a retroação, é atédecorrer o prazo assinalado para os embargos, eis que após, prosse-gue a execução somente com a prática de atos materiais, não dandomais lugar para incidentes próprios do processo de conhecimento.

Neste sentido o posicionamento da Segunda Turma, relatadopelo Eminente Ministro Ari Pargendler, nos autos do Recurso Especialn. 184.642/SP, verbis:

TRIBUTÁRIO. MULTA. REDUÇÃO. LEI MAIS BENIGNA. Constituiato não definitivamente julgado o lançamento fiscal impugnado pormeio de embargos do devedor em execução fiscal (CTN, art.106, II,c), mas o lançamento fiscal que já não pode sofrer ataque por meiode embargos de devedor, porque decorrido o prazo destes, é atodefinitivamente julgado, que não pode ser revisto por petição atra-vessada nos autos da execução fiscal. Recurso Especial conheci-do e provido.133

A Primeira Turma, por sua vez, entende que o ato definitiva-mente julgado deve ser entendido como ato consumado por decisão132

STF – RE 95.900-9, DJU 08.03.85, P. 2602.133

Resp. 184.642/SP. Julgada pelo STJ, em data de 27 de outubro de 1998, Rel. Min. Ari Pargendler. DJU07/12/1998, p. 78.

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judicial, não necessariamente por sentença. Na execução fiscal, o pro-cesso só se finda com sua extinção na forma do art. 794, do CPC, oucom a arrematação, adjudicação ou remição definitivamente realiza-dos, mesmo que transitada em julgado eventual sentença prolatada emembargos da executada.

A ementa do julgado, relatado pelo Eminente Ministro DemócritoReinaldo Recurso Especial n. 94.511/PR, porta a seguinte redação,literis:

EXECUÇÃO FISCAL. REDUÇÃO DE MULTA EM FACE DO DECRE-TO – LEI N° 2.471/88. ART. 106, II, C, DO CTN. RETROATIVIDADEDA LEI MAIS BENIGNA AO CONTRIBUINTE. POSSIBILIDADE.

O art. 106 do Código Tributário Nacional admite a retroatividade, emfavor do contribuinte, da lei mais benigna, nos casos não definitiva-mente julgados.

Sobrevindo, no curso da Execução Fiscal, o Decreto-Lei n° 2.471/88, que reduziu a multa moratória de 100% para 20% e, sendo pos-sível a aplicação da lei mais benigna, sem ofensa aos princípiosgerais do direito tributário.

Na execução fiscal, as decisões finais correspondem às fases daarrematação, da adjudicação ou remição, ainda não oportunizadas, ou,de outra feita, com a extinção do processo, nos termos do art. 794 doCódigo de Processo Civil. Recurso improvido. Decisão unânime. 134

Restando incontroverso nas duas correntes que a retroação doart. 106 pode atingir penalidades já em fase de cobrança executiva elevando-se em conta que os embargos previstos no artigo 16, da Lei6.830/80 têm a natureza de ação e como opção do devedor podemnão serem opostos, o que não impediria a retroação ser enfrentada naprópria peça executiva e levando-se em conta ainda que na execuçãofiscal não há sentença. O limite temporal há que ser efetivamente asdecisões finais promovidas na execução, que corresponde às fases daarrematação, da adjudicação ou da remição, ou com a extinção doprocesso, na forma do art. 794, do CPC.

134 Recurso Especial n° 94.511-96/PR. Julgado pelo STJ em 21 de outubro de 1996. Rel. Min. Demócrito

Reinaldo, DJU 25/11/96, p. 46.154.

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É que, enquanto não extinto o crédito tributário o ato não podeser tido como definitivamente julgado, sendo irrelevante se já houveou não a apresentação de embargos ou se estes já foram julgados, jáque ainda pendente aquele.

Sobrevindo lei nova que beneficie o contribuinte pela caracteri-zação de qualquer hipótese prevista em uma das alíneas do inciso II, docitado artigo, o interessado, em qualquer grau de jurisdição, enquantonão extinto o crédito, poderá apresentar petição demonstrando os fatos,cuja matéria há de se sobrepor à análise do mérito do crédito (em casode anteceder o julgamento – sentença ou acórdão – em sede de embar-gos ou ação ordinária) ou, no caso da apreciação se implementar emexecutivo fiscal, ser a manifestação conhecida como exceção de pré-executividade e anulado o débito fiscal excutido, já que há muito sepul-tado o posicionamento de inadmitir tal defesa em sede de execuçãofiscal. Afinal, mesmo líquido e certo, o título tornou-se inexigível (art. 618,I, CPC) por apresentar-se indevido em decorrência de expressa previ-são legal que determina a retroatividade benigna. E mais: Sempre quea lei nova não ressalve os efeitos da lei anterior, verificado uma dashipóteses do art. 106, o juiz, de ofício, pode anular o débito fiscal (alíneaa e b, do inciso II) ou reduzir a penalidade (alínea c, do inciso II), semimpingir máculas aos princípios gerais do direito tributário.

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O JUIZ CRIMINAL E O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO

CARLOS ALBERTO BAPTISTA

PROMOTOR DE JUSTIÇA NO PARANÁ, PROFESSOR DE DIREITOPENAL, PROCESSUAL PENAL E INFANTO-JUVENIL NA UNIVERDIDADEESTADUAL DE PONTA GROSSA, NA ESCOLA SUPERIOR DAMAGISTRATURA E NA ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO.ESPECIALISTA EM DIREITO CONTEMPORÂNEO E SUASINSTITUIÇÕES FUNDAMENTAIS IBEJ/PR E MESTRANDO EM DIREITOECONÔMICO E SOCIAL PUC/PR.

RESUMO

O texto aborda a temática da postura do juiz criminal diante do princípio do“devido processo legal substantivo”. O artigo aborda inicialmente a importânciados princípios na construção do ordenamento jurídico, analisando,posteriormente, o “devido processo legal”, em aspectos históricos econceituais, culminando com a análise do devido processo legal substantivoe suas relações com os princípios da razoabilidade ou proporcionalidade,inclusive as implicações para o Direito Penal.

ABSTRACT

The text is about the attitude of the criminal judge to the principle of “ObligatedSubstantive Legal Proceeding”. The article is about the importance of theprinciples of formation of legal system , analyzing , after that, “obligated legalproceeding” ,in historical and concept ional aspects , ending with the analysisof the Obligated Substantive Legal Proceeding and its relation with theprinciples of reasonability or proportion, including the implications to theCriminal Law.

PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; princípios jurídicos constitucionaise legais; princípio do devido processo legal.

INTRODUÇÃO

Publicado no último boletim do Instituto Brasileiro de CiênciasCriminais (ano 8, nº 101, abril/2001), a declaração de voto vencido doínclito magistrado paulista Celso Limongi em revisão criminal onde omesmo busca o princípio do devido processo legal substantivo comofundamento à absolvição do réu, constitui posicionamento de signifi-cativo avanço em sede de Direito Penal, ousadia da qual se furta amaioria dos doutrinadores penalistas e processualistas e a quase tota-lidade dos operadores do direito.

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Trata a revisão criminal de fato histórico de “estupro” com “vio-lência presumida” em “continuidade delitiva”.

Ora, o que tínhamos até então para fundamentar as absolviçõesocorridas em casos análogos, já considerando que a “presunção de vi-olência” não era absoluta, referiam-se à realidade social hodierna; àausência da innocentia consilii da vítima; à experiência sexual anteriorda vítima; à iniciativa da própria vítima; à dúvida pelo réu quanto à idadeda vítima ( embora pudesse caracterizar o dolo eventual ); à aparênciade idade superior da vítima, etc. Neste sentido Luis Régis Prado e CezarRoberto Bitencourt135 ; Julio Fabbrini Mirabete136 ; Celso Delmanto137 ;Damásio E. de Jesus138 ; Alberto Silva Franco139 , et alii.

Traz à baila, portanto, o magistrado do areópago paulista, ino-vação de análise de caso concreto, objeto de direito material, sob oenfoque principialista constitucional, naquilo que J. J. Gomes Canotilhodenomina de principialização da jurisprudência.

A este respeito convém trazer a colação o seu ensinamento:De igual forma, nestas obras mais representativas se encon-

trará a demonstração de que, hoje, a subordinação à lei e ao direitopor parte dos juízes reclama, de forma incontornável, a principializaçãoda jurisprudência, ou seja, a mediação judicativo-decisória dos princí-pios jurídicos relevantes para a solução materialmente justa dos feitossubmetidos à decisão jurisdicional.140

E prossegue o autor141 dizendo que o direito do Estado Cons-titucional Democrático e de Direito na atualidade; diferentemente do di-reito do Estado de Direito do século XIX e da primeira metade do sécu-lo XX, onde predominava o direito das regras dos códigos; é um direitoque leva a sério os princípios sendo, portanto, um direito de princípios.

A figuração desempenhada pelos magistrados, máxime a partirda década de noventa, sob o pálio da nova ordem constitucional institu-135

Código penal anotado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, p. 710 – 712.136

Código penal interpretado. 1ª Edição, 3ª Tiragem. São Paulo: Editora Atlas, 2000, p. 1313 – 1324.137

Código penal comentado. São Paulo: Edição Freitas Bastos, 1986, p. 361 –362.138

Código penal anotado. 2ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1991, p. 597 – 599.139

Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 3ª Edição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,1990, p. 1170 – 1175.140

A principialização da jurisprudência através da Constituição. RePro 98/83.141

Ob.cit., p. 84.

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ída com a carta de 1988, sobreleva de importância a atividadejurisdicional na esfera processual, em atender o seu princípio políticoconsistente em atingir a máxima garantia social com o mínimo de ônusà liberdade individual. Tal aprumo do magistrado densifica o estado cons-titucional democrático e de direito como quer Canotilho.

Interessante artigo de José Renato Nalini pode trazer mais lu-zes a tal assertiva, o qual, após evidenciar a importância do magistradoem seu labor raciocinar constitucionalmente, assim preleciona:

Aprimorar o processo de maneira a torná-lo menos compli-cado, conferindo-lhe eficácia e racionalidade [sem grifo no original], con-duz não apenas à maior efetividade das decisões judiciais, mas contri-bui para consolidação democrática.142

E prossegue o autor:É o desempenho racional na condução do processo, assim

conceituado o labor de quem, por conhecer a substância de seu mistere por imbuir-se de consciência de verdadeiro agente público – respon-sável pela reconquista da harmonia social – extraia de seu instrumen-to de trabalho todas as suas potencialidades como produto do saberhumano.143

Tais assertivas adquirem ainda maior importância na atualida-de, onde verificamos que, das duas últimas décadas para cá, o legisla-dor nacional tem se mostrado fugaz na edição de textos legais recons-truindo o sistema ao mesmo tempo em que desnorteia ainda mais ocipoal jurídico do país, e acaba se afastando de primados técnicos econstitucionais fundamentais. A tudo isto deve estar atento o operadordo direito no processo, pois este “tem passado por transformaçõesmarcantes que o afastaram do formalismo da velha praxe, para o re-forço de sua posição como garantia constitucional”.144

PRINCÍPIOS DE DIREITO

O vocábulo princípio provém do latim principium que quer dizercomeço, origem, ponto de partida.

142 O juiz e o processo constitucional. RT 687, jan/93, p. 243-246.

143 Ob. cit., p. 246.

144 OLIVEIRA BARACHO, José Alfredo. Processo e Constituição: o devido processo legal. RDP 68/55.

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Princípio é: “Ato de principiar; momento em que se faz algumacoisa pela primeira vez ou em que alguma coisa tem origem; a primeiraformação de uma coisa; causa primária, origem, começo, razão funda-mental; elemento que predomina na constituição de um corpo organiza-do; regra, teoria, preceito moral; estréia, germe, opinião; modo de ver.S.m.pl. Os princípios da vida; as primeiras épocas em que a vida surgiu;antecedentes, primícias, rendimentos; opiniões, convicções; regras fun-damentais e gerais de qualquer ciência ou arte; regra fundamental, dou-trina [sem grifos no original].”145

Toda forma de conhecimento filosófico ou científico implica naexistência de princípios.146

Em Direito, os princípios constituem-se em fontes básicas tantopara a sua formação como para sua interpretação, exercendo funçãoordenadora e função prospectiva no ordenamento jurídico. Na primeira,se vinculam, mais essencialmente, por servirem de diretrizes para a fi-xação de critérios de interpretação e de integração do direito dando,assim coerência geral ao sistema. Na segunda, pode-se afirmar que osprincípios têm capacidade de impor sugestões para a adoção de for-mulações novas ou de regras jurídicas mais atualizadas, tudo inspiradopela idéia do aprimoramento do direito aplicado.147

Adquirem, assim, os princípios, papel fundamental dentro doordenamento jurídico nacional como instrumento colocado ao alcancedos estudiosos e aplicadores do Direito para uma sua melhor compre-ensão e execução, máxime os que, implícita ou explicitamente, possu-em assento constitucional. São eles, precisamente, a síntese dos princi-pais valores da ordem jurídica.148

Sobre a importância dos princípios, em citação já clássica dosdoutrinadores, escreve Celso Antonio Bandeira de Mello:

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, ver-dadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre

145 Grande dicionário enciclopédico Rideel ilustrado. São Paulo: editora Rideel, 1980, vol. 8, p. 2162.

146 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 19ª Edição. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 299.

147 MIRANDA, Jorge. Manuel de Direito Constitucional. 2ª edição. Lisboa: Coimbra Editora, 1988, Tomo II,

p. 199-200.148

BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 3ª edição. Rio deJaneiro: Renovar, 1996, p.287.

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diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critériopara sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir alógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere atônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípiosque preside a intelecção das diferentes partes componentes do todounitário que há por nome sistema jurídico positivo.149

E prossegue o autor:

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma nor-ma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um es-pecífico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de coman-dos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,conforme o escalão do princípio atingido, porque representainsurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fun-damentais...150

J.J. Gomes Canotilho151 ao traçar as distinções entre princípioe regras, acaba densificando a importância daqueles. Diz ele que osprincípios possuem um caráter de fundamentalidade no sistema defontes do direito, tanto por sua posição hierárquica (princípios constitu-cionais), como por sua importância estruturada dentro do sistema jurídi-co (princípio do Estado de Direito). Ainda, que os princípios são “standars”juridicamente vinculantes, radicados nas exigências de “justiça” ou na“idéia de direito”. Por fim, para o autor lusitano, os princípios possuemnatureza normogenética por serem fundamento de regras, encontrando-se na base ou constituindo a razão das regras jurídicas.

Assim, diante de tais inconcussas assertivas, constata-se arelevância da construção principialista, máxime a constitucional, anortear todo ordenamento jurídico em não se afastar dos valores bási-cos do grupo social que por fim constituirá o seu destinatário.

A se prescindir dos princípios, resultaria um modelo ou sistema,no qual, embora alcançada a propalada “segurança jurídica”, seria ne-cessário um infinito legalismo a abarcar as infinitas situações da rea-lidade decorrentes de uma sociedade pluralista e aberta como a nossa.

149 Elementos de direito administrativo. São Paulo: Editora RT, 1986, p. 230.

150 Ob. cit., p. 230.

151 Direito Constitucional . 6ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 166-168.

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Este engessamento, temos que convir, não atenderia com justiça osdestinatários daquele modelo ou sistema.

A importância dos princípios assume mais destacado papeldentro do sistema de garantias dos direitos fundamentais do homem afazer prevalecer os valores de proteção à vida, liberdade e propriedade.José Augusto Delgado após identificar o fenômeno da complexidadedas relações sociais, econômicas, políticas, familiares, educacionais epatrimoniais e dos desafios vividos pelo ordenamento jurídico paraobservá-las, observa que:

A identificação da complexidade assinalada revela, conseqüente-mente, não ser possível o estudo das regras jurídicas processuaisque garantem os direitos dos cidadãos, apenas à luz singela da nor-ma positiva posta para execução, por exigir concepção muito maisalargada, que passa, necessariamente, por uma visualização dosprincípios informativos do direito processual, por eles serem trans-missores, de modo explícito ou implícito, das dificuldades já com-provadas de se tornarem eficazes às normas expressivas de taisprerrogativas.152

DEVIDO PROCESSO LEGAL – BREVE HISTÓRICO

O devido processo legal, segundo a maioria dos doutrinadorespesquisados, tem origem na Carta Magna de 1215 do rei João “SemTerra”, nos seguintes termos em seu artigo 39: “Nenhum homem livreserá detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus direitos ou seusbens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu ‘status’ dequalquer outra forma, nem procederemos nem mandaremos procedercontra ele senão mediante um julgamento legal pelos pares ou pelo cos-tume da terra”.

Em 1066, os normandos, provenientes da França, invadiram aInglaterra, tendo à frente das tropas, constituídas de 5 mil cavaleiros e6 mil soldados, o Duque de William da Normandia, denominado “OConquistador”, e puseram abaixo o reinado dos saxões, que findoucom Harold, Conde Essex. Não obstante reinar com mão-de-ferro,152

A supremacia dos princípios nas garantias processuais do cidadão, trabalho publicado na coletânea“As Garantias do Cidadão na Justiça”, coordenado pelo Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. São Paulo:Saraiva, 1993, p. 63.

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William e seus barões franceses, bem como seus sucessores, os sobe-ranos Henry I e Henry II, tiveram de conceder, de vez em quando, cartasde franquias, a fim de evitar rebeliões.

Ricardo Coração-de-Leão (Richard Coeur-de-Lion), filho deHenry II, que reinou no período de 1189 a 1199, participou da TerceiraCruzada, indo combater os mouros, considerados infiéis, na Palestina.Ao retornar, foi preso na Áustria, e solicitado seu resgate em dinheiro.Aproveitando a ocasião para tomar o poder, seu irmão, o príncipe John,chamado de Sem-Terra (lackland), estimulou rebeliões no reino, di-zendo que Ricardo jamais retornaria. Após, sua libertação, Ricardovoltou a reinar na Inglaterra, mas por pouco tempo, já que morreu emvirtude de um ferimento de flecha recebido em uma batalha.

Ao assumir a Coroa, John passou a exigir elevados tributos efez outras imposições decorrentes de sua tirania, o que levou os ba-rões a se insurgirem.

No confronto levado a efeito nos relvados de Runnymede, a15/6/1215, John foi obrigado a selar a carta que ficou conhecida comoMagna Carta, ou Great Charter, da qual ainda existem preservadosquatro exemplares originais. Por esse documento, o Rei John jurourespeitar os direitos, franquias e imunidades que ali foram outorgados,como salvaguarda das liberdades dos insurretos, entre eles a cláusulado devido processo legal (due process of law).153

Inicialmente denominado de law of de land partiu-se para o dueprocess of law, expressão surgida em 1354, quando a Magna Carta foitraduzida para o inglês por Eduardo III, consistente na garantia de leipreestabelecida e juiz competente. Tal princípio, desde então espraiou-se sendo inserto em vários textos constitucionais, inclusive o atual brasi-leiro, embora pela primeira vez de modo expresso, em seu artigo 5º,inciso LIV.

Trata-se, o dispositivo, de marco decisivo “na definição do di-reito do homem de ser submetido, em qualquer conflito de interessesem que se envolva, aos procedimentos de um justo processo, conformeprevisão legal”.154

153 SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 17-18.

154 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Anotações sobre o princípio do devido processo legal. RePro 63/57.

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DEVIDO PROCESSO LEGAL – CONCEITO

Inicialmente, o princípio assumiu sua característicamarcantemente processual consistente no “conjunto de garantias cons-titucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suasfaculdades e poderes processuais e, de outro, são indispensáveis aocorreto exercício da jurisdição”.155

Objetiva, assim, a garantia, tutelar a vida, a liberdade e a pro-priedade estabelecendo a necessidade de um justo processo. Comoem nosso país inexiste sanção que atinja a vida, dirige-se aos bensjurídicos liberdade e propriedade conforme textualmente dispõe a Cons-tituição Federal.

O devido processo legal consiste em assegurar à pessoa odireito de não ser privada de sua liberdade e de seus bens, sem agarantia de um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei,decorrendo do mesmo vários outros princípios, dentre os quais oscorolários da amplitude de defesa e do contraditório.

“No âmbito processual garante ao acusado a plenitude de de-fesa, compreendendo o direito de ser ouvido, de ser informado pesso-almente de todos os atos processuais, de ter acesso à defesa técnica,de ter a oportunidade de se manifestar sempre depois da acusação eem todas as oportunidades, à publicidade e motivação das decisões,ressalvadas às exceções legais, de ser julgado perante o juiz compe-tente, ao duplo grau de jurisdição, à revisão criminal e à imutabilidadedas decisões favoráveis transitadas em julgado.”156

Impõe-se o rigorismo de tal princípio máxime em seara penalonde visualizamos duas pretensões: de um lado o jus puniendi e o juspunitionis e do outro o jus libertatis. Incide, portanto, o processo em ma-téria penal sobre um dos valores mais fundamentais do homem, a sualiberdade.

Vicente Greco Filho, ao tratar da garantia do processo penal o faz:

Apesar de o Estado Moderno ser intervencionista, sua interferência

155 ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de. GRINOVER, Ada Pellegrini. R. DINAMARCO, Cândido. Teoria geral

do processo. 12ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 82.156

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 30.

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nos negócios jurídicos se dá no campo do domínio econômico, per-manecendo resguardada a integridade do indivíduo como pessoa,no campo penal. Na descrição dos delitos e cominação de penas, apreocupação é a mesma; todavia, é no processo que ela se revelacom maior amplitude, porque, na verdade, no processo penal nãose julga apenas um fato delituoso, mas também uma pessoa.

O processo constitucionalmente estruturado, portanto, atua comoindispensável garantia passiva contra o arbítrio do que eventual-mente representa o Estado, cabendo ao Poder Judiciário a efetivaçãodessa garantia.157

Embora originariamente o princípio se referisse ao seu aspec-to procedimental – procedural due process – como conjunto de garan-tias processuais da liberdade e da propriedade, passou-se a admitirtambém o princípio em outro aspecto – substancial due process – queé a aplicação do mesmo ao direito material analisando-se a suarazoabilidade frente ao sistema constitucional.

DEVIDO PROCESSO LEGAL – CONCEPÇÕES

Inspirada na Carta Magna e por influência da common law, odevido processo legal foi difundido inicialmente somente em sua con-cepção procedimental consubstanciada como garantia a ser observa-da, dirigindo-se à regularidade do processo penal, posteriormente tam-bém adotada no processo civil e no processo administrativo.

Recepcionado pelo sistema norte-americano, teve aplicabilidadesomente nesta concepção até 1856 quando o Judiciário (Wynehamer v.People, New York, 1856 – neste passou-se a entender que o devidoprocesso não deveria restringir-se ao modo do procedimento, mas tam-bém atingir o conteúdo substantivo da legislação) passou a cunhar a se-gunda concepção em seu caráter substantivo, entendendo-o como “ferra-menta viável e indispensável à proteção das garantias individuais bási-cas”158 com a jurisdicionalização constitucional.

Neste segundo tratamento do princípio enfocado, é tido o mes-mo como instrumento colocado ao alcance do Poder Judiciário, que

157 Manual de processo penal. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p.53.

158 SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido Processo legal. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1996, p.66.

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possibilita a análise dos atos emanados dos demais Poderes do Esta-do em sua substância com adequação ao texto constitucional dirigido àgarantia dos direitos fundamentais do homem. Trata-se de importantelimitador das atuações do legislativo e do executivo, aferido pelo judici-ário na estrita observância destes direitos. Não basta, por esta segundaconcepção, que o ato oriundo de um destes poderes tenha observado odevido processo legal quanto ao seu trâmite procedimental, apresen-tando-se como necessário, a lhe legitimar, esteja substantivamente diri-gido ao respeito dos direitos à vida, à liberdade e à propriedade.

Luis Roberto Barroso sobre esta faceta do devido processo le-gal faz o seguinte comentário;

De fato, ao lado do princípio da igualdade perante a lei, essa versãosubstantiva do devido processo legal tornou-se importante instru-mento de defesa dos direitos individuais, ensejando o controle doarbítrio do Legislativo e da discricionariedade governamental. É porseu intermédio que se procede ao exame de razoabilidade(reasonableness) e de racionalidade (rationality) das normas jurídi-cas e dos atos do Poder Público em geral.159

Desta maneira, qualquer restrição feita pelo legislador ou admi-nistrador a qualquer direito individual somente será reputada válida quan-do valorada a adequação entre os meios empregados por aqueles e osfins objetivados com este emprego, adentrando-se, inclusive, no exameda discricionariedade do ato do Poder Público.

Resumidamente pode-se dividir em três fases distintas a ado-ção do devido processo legal na sua concepção substantiva, a saber:a. sua ascensão e consolidação, do final do século XIX até a décadade 30; b. seu desprestígio e quase abandono no final da década de 30;c. seu renascimento triunfal na década de 50, no fluxo da revolução pro-gressista promovida pela Suprema Corte sob a presidência de EarlWarren.160 Para o mesmo autor, atualmente, a Suprema Corte reassumiuum perfil conservador e o uso daquele vive um momento de refluxo.

Não obstante este refluxo, o princípio do devido processo le-

159 Interpretação e aplicação da Constituição, 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p.210.

160 BARROSO, Luis Roberto. Ob. cit., p. 211.

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gal atualmente é visto sob esta dupla concepção161 , devendo atuartanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade e proprie-dade quanto no âmbito formal, referente ao procedimento.162

DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO E OS PRINCÍPIOS DARAZOABILIDADE OU PROPORCIONALIDADE

“O princípio da proporcionalidade dizia primitivamente respei-to ao problema da limitação do poder executivo, sendo consideradocomo medida para as restrições administrativas da liberdade individu-al. É com este sentido que a teoria do Estado o considera, já no séculoXVIII, como máxima suprapositiva, e que ele foi introduzido, no séculoXIX, no direito administrativo como princípio geral do direito de polícia(CFR, art. 272º/1). Posteriormente, o princípio da proporcionalidadeem sentido amplo, também conhecido por princípio da proibição deexcesso (übermassverbot), foi erigido à dignidade de princípio consti-tucional (CFR arts. 18º/2, 19º/4, 265º e 266º/2). Discutido é o seu fun-damento constitucional, pois enquanto alguns autores pretendem derivá-lo do princípio do Estado de Direito, outros acentuam que ele está inti-mamente conexionado com os direitos fundamentais (CFR Ac TC 364/91, DR I, Ac 23/8 – Caso das inelegibilidades locais).”163

Verifica-se, portanto, que embora o princípio que estará sobcomento já possua gênese remota, os doutrinadores pátrios do DireitoConstitucional e demais ramos do direito somente mais recentementevão se dando conta da necessidade de reconhecê-lo e empregá-lopara o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito.164

O princípio da proporcionalidade (o princípio dos princípios –segundo GUERRA FILHO) não possui expressa previsão no atual tex-to constitucional, no entanto, deve ser observado como “verdadeiro prin-cípio ordenador do direito”165 cuja essência e destinação é a preserva-ção dos direitos fundamentais.

161 ARRUDA ALVIM, Angélica. Princípios constitucionais do processo. RePro 74/21-22.

162 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Editora Atlas, 1997, p. 249.

163 CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito constitucional. 6ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 382.

164 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípios da isonomia e da proporcionalidade e privilégios processuais

da Fazenda Pública. RePro 82/74.165

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ob. cit., p. 75.

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Por decisão do STF prolatada em 11 de maio de 1994, foi esteprincípio alçado à posição de postulado constitucional assentado nacláusula do devido processo legal, em sua faceta de garantia material(substantive due process).166

Através deste princípio é que se possibilita a racional pondera-ção sobre a situação conflituosa surgida entre princípios, direitos fun-damentais, interesses e bens jurídicos, de modo a impor-se os meno-res sacrifícios às partes.

Importa o princípio da proporcionalidade na concreta avalia-ção a respeito da legitimidade dos meios e dos fins perseguidos comotambém da adequação desses meios à consecução dos propósitosdesejados, da necessidade de sua utilização e da razoabilidade, comojusta medida do sacrifício de um direito em detrimento de outro.

Estes três momentos encontram-se esquematizados porCANOTILHO167 quando trata do princípio da proibição de excesso, tidopor ele como super conceito, da seguinte maneira: princípio de confor-midade ou adequação de meios; princípio da exigibilidade ou da ne-cessidade e princípio da proporcionalidade em sentido estrito.

Tanto a cláusula como o princípio são conceitos relevantes aserem observados constantemente para a efetivação do “equilíbrio entreo exercício do poder e a preservação dos direitos dos cidadãos”, ser-vindo como parâmetros “dos atos do Poder Público para aferir se elesestão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurí-dico: a justiça”.168

A atividade normativa do Poder Público parte de situaçõesfáticas (Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale – fato, valor,norma), passando à eleição de meios para atingir determinados fins.Estes – fatos concretos, meios e fins - constituem os elementos para acriação do direito. Aqui surge a primeira função da razoabilidade aoaferir a racionalidade e a proporcionalidade entre estes elementos,dentro da própria lei; é a razoabilidade interna. Após, analisa-se a

166 Adin nº 958, rel. Min. Marco Aurélio, publicado no DJ de 16.5.94, p. 11.675, in A Constituição na visão

dos tribunais, TRF da 1ª Região, Gabinete da Revista, vol. 1, 1997, p. 368.167

Ob. cit., p. 382-384.168

BARROS, Luis Roberto. Ob. cit., p.215.

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razoabilidade externa consistente na compatibilidade normativa com osvalores que, explícita ou implicitamente, encontrem-se no texto constitu-cional. Por fim deve-se sopesar os danos resultantes com os objetivospretendidos, ou, no dizer de Canotilho “Meio e fim são colocados emequação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se omeio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se,pois, de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar umfim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens dofim.”169

O princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, inicial-mente, como já colocado, tinha aplicabilidade na área do Direito Admi-nistrativo, junto ao Poder Executivo, limitando sua potestade na rela-ção com os indivíduos da sociedade. Também junto ao Poder Judiciá-rio era utilizado para propiciar racionalidade e proporcionalidade nasdecisões, máxime quando da apreciação de medidas cautelares.

No entanto, já quanto a sua aplicabilidade referentemente aosatos do Poder Legislativo, encontra resistência calcada nas posiçõesclássicas advindas da separação dos poderes. Ao apreciar o atolegislativo sob o enfoque do princípio sob comento, considerando ostrês momentos já mencionados, o operador do direito ultrapassa a meraverificação de sua legalidade objetiva para analisar também o méritodaquele, inserto já na discricionariedade do legislador. Esta atuação édesaprovada sob o argumento de que não pode o julgador arvorar-sena posição de legislador, o que estaria ocorrendo se fosse permitidaesta análise. Embora verdadeira esta assertiva dentro de um EstadoDemocrático de Direito, não menos verdadeira é a necessidade deque o Judiciário esteja sempre atento à elaboração legiferante a qualdeve ser resultante da observância dos valores fixados constitucional-mente, máxime aqueles garantidores dos direitos fundamentais.

Embora o princípio não encontre expresso assento constituci-onal nem mesmo no atual texto, como já dito, é ele extraído da cláusu-la do devido processo legal em seu caráter substantivo, esta expressa-mente prevista no artigo 5º, inciso LIV.

169 Ob. cit., p. 383-384.

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A jurisprudência caminha no sentido de adoção deste postula-do, podendo ser citada a manifestação do Ministro Celso de Mello comorelator na ADIn nº 1.148-8- AM, STF:

A essência do substantive due process of law reside na ne-cessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contraqualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, comono caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade.

Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria dodesvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que estenão dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de formaimoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamentoinstitucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo,de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.

O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO (RAZOABILIDADEOU PROPORCIONALIDADE) E O DIREITO PENAL

Pois bem, se o princípio do substantive due process já vem,embora de forma tímida, sendo aplicado na esfera cível, o mesmo nãose pode dizer da esfera penal, máxime com a conotação feita pelo ma-gistrado em seu voto, tanto que foi vencido.

Cremos, no entanto, chegado o momento para ousadamente,e utilizando-se deste dogma constitucional, analisar os novos textoscriminalizantes sob a ótica da razoabilidade de suas normas em bus-car a garantia da justiça e da paz sociais e não como instrumentoopressor do Estado e prestidigitador das massas.

Em sede penal, máxime na segunda metade da década de 80e década de 90, temos assistido a atabalhoada atividade legiferantedespida dos mais comezinhos princípios da matéria penal como o daintervenção mínima, da fragmentariedade, da proporcionalidade daspenas, da ofensividade, da lesividade, etc.170

É o império do Movimento da Lei e da Ordem, onde cada vezmais se criminalizam condutas até então tidas como indiferentes penaise tornam-se mais rigorosas as penas com prevalência da privativa de

170 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoria del garantismo penal. Tercera edición. Madrid: Editorial

Trotta, 1998.

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liberdade, afastando-se ou dificultando benefícios de caráter prisional.Cria-se o fantasioso discurso do controle da criminalidade171 , desacre-ditando o direito penal e tornando-o cada vez mais instrumento violen-to de controle social172 .

Consistirá o princípio, ora tratado, num instrumento de supe-ração do juiz asséptico em busca de uma concreta realização dos di-reitos humanos.173

Significativo o papel do judiciário neste avanço conformeassertiva de Cármen Lúcia Antunes Rocha174 : “Os sistemas constituci-onais deste final de século encarecem o papel do Poder Judiciáriocomo aquele que se dota de melhores condições para assegurar aeficácia jurídica dos direitos fundamentais, especialmente quando seapresentar quadro de ameaça ou violação dos mesmos.”

É ele, o juiz, a quem cabe analisar o fato histórico tido comodelituoso, amoldando-o ao conjunto de elementos descritivos contidosno tipo penal produzido pelo legislador. Mas, neste mister deve conside-rar aquele conjunto de princípios norteadores da elaboração e da apli-cação da lei em sede penal, sob a mira dos direitos fundamentaisadvindos dos mandamentos constitucionais. Se deles o legislador seafasta, deve o juiz intervir.

Edmundo Oliveira em capítulo intitulado “Direitos Humanos eHumanismo Jurídico”, assim se manifesta sobre a atuação do legisla-dor em matéria penal:

Os elementos constitutivos do conceito contemporâneo de di-reitos humanos indicam que a ordem jurídica positiva não pode perder oequilíbrio, nem contrariar esses direitos, visto ser inadmissível que a di-mensão axiológica da lei, através da interpretação e da aplicação, entreem choque com as exigências de preservação da individualidade exis-tencial que o homem traz ao nascer para desenvolver no plano material,

171 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, do controle da violência à violência

do controle penal.. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1997.172

ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de derecho penal, parte general. Sexta Edicion. Buenos Aires:1996, p. 21-40.173

KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. 2ª edição. Rio de Janeiro: Luam Editora, 1993, p. 93-117.174

O constitucionalismo contemporâneo e a instrumentalização para a eficácia dos direitos fundamentais.Revista Trimestral de Direito úblico 16/54.

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moral, psíquico e espiritual. No terreno, por exemplo, do efeito desejadoem função do objetivo sócio-cultural da lei penal, cabe, primeiramente,ao legislador, cultivar a prudência de construir tipos penais que, efetiva-mente, além de espantar o marasmo decorrente da subida dacriminalidade, defendam também os valores inerentes aos direitos egarantias individuais, seguindo a orientação do mandamento constituci-onal.175

Ainda, sobre a atividade do legislador, convêm trazer manifes-tação de Luiz Otavio de Oliveira Rocha,o qual após tratar dos avançosnas concepções clássicas da ciência penal, assim se expressa:

A característica mais marcante desses avanços da ciência penaltalvez seja o intento que neles se assenta de fixar parâmetros para aatividade legislativa em matéria penal – de modo a sujeitá-la de formainarredável ao rol de garantias individuais mundialmente aceitas a par-tir da criação da ONU – segundo a concepção de que a função prote-ção dos bens jurídicos elegidos pelo legislador – segundo um critériode relevância social – que compete ao Direito Penal, somente se rea-liza em plano juridicamente viável se o meio plasmado na lei para con-cretizar essa proteção não é incompatível com os postulados do Estadode Direito.176

A tarefa não é fácil. Ainda temos aplicadores do direito que,mesmo sem serem expressamente sectários do Movimento da Lei eda Ordem, adotam sua ideologia, embora de há muito o ensinamentoseja o contrário. Cabe àqueles a adequação do legislador aos cânonesconstitucionais.

Veja-se que já Beccaria, como máximo representante ilustradono âmbito penal, tratava da necessidade de adequação legislativa entrecrime e pena: “para que uma pena seja justa não deve ter intensidadeem grau maior do que o que baste para separar os homens dodelito”.177 Também Montesquieu para quem: “é essencial que as penasestejam proporcionadas entre si, porque é mais essencial que se evi-

175 Direitos humanos. Revista Cónsules, ano V, nº 100, p. 23.

176 O princípio de proporcionalidade como instrumento de controle constitucional das normas penais. RT

772/476.177

De los delitos y de las penas. Madrid: Alianza Editorial, 1997, p. 84.

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tem os grandes crimes que os pequenos, o que ataca mais a sociedadeque o que a ofende menos”.178

Não podemos permitir a burocratização do segmento judicialcomo condicionamento do sistema penal a que fazem menção Zaffaronie Pierangeli, após analisarem os outros dois condicionamentos con-sistentes na criminalização e na fossilização, nos seguintes termos:

Em outro nível, o sistema penal procura compartir essamentalização ao segmento de magistrados, Ministério Público e funci-onários judiciais. Seleciona-os dentre as classes médias, não muitoelevadas, e lhes cria expectativas e metas sociais da classe média altaque, enquanto as leva a não criar problemas no trabalho e a não inovarpara não os ter, cria-lhes uma falsa sensação de poder, que os leva aidentificar-se com a função (sua própria identidade resulta comprome-tida) e os isola até da linguagem dos setores criminalizados efossilizados (pertencentes às classes mais humildes), de maneira aevitar qualquer comunicação que venha a sensibilizá-los demasiada-mente com a sua dor.179

É o princípio da proporcionalidade. É a razoabilidade da penaprevista, da aplicada e da executada, objeto de análise do substantivedue process.

As peias decorrentes do sistema do direito romano-germânico(Civil law) adotado em nosso país precisam ser mitigadas para incluiresta nova visão na esfera penal com revisitação da ordem constitucio-nal em toda sua estrutura principialista.

Embora não sejam institutos recentes, somente em um tempomais próximo passou-se a debater novas concepções de aplicabilidadeda lei penal, mas todos partem da necessidade de adequação ao textoconstitucional como ora expendemos. Entre estes institutos, a exemplodos princípios sob comento, temos a concepção da imputação objetiva,a qual nos leva a revisar os conceitos clássicos, máxime referentes àtipicidade. Esta teoria, entre outras conseqüências, segundo Damásiode Jesus, acarreta a seguinte:178

De l’espirit de lois. Livro VI, Capítulo 16.179

ZAFFARONI, Eugênio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, parte geral.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 77.

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O objeto jurídico é apreciado sob a ótica das normas constituci-onais, delas seguindo para análise das descrições típicas delitivas. Comisso se evita o mal clássico de interpretar as normas penaisincriminadoras a partir delas próprias, procurando auxílio nos preceitosconstitucionais somente nos casos de sérias dúvidas. E com a vanta-gem de poder apreciar o princípio da ofensividade num primeiro plano,de ordem constitucional, e não sob a ótica da legislação incriminadoraordinária.180

Assim proceder-se estaremos mais próximos de acompa-nhar a universalização dos direitos humanos com a compatibilizaçãodo Direito Penal com o Direito Constitucional, este receptáculo dosinstrumentos de proteção das garantias fundamentais dos cidadãos,hoje já globalizados.

Este é o desafio.

180 Imputação objetiva. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p.XVIII.

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OS PRINCIPAIS TRATADOS DA UNIÃO EUROPÉIA

HOMAR PACZKOWSKI ANTUNES PINTO

PROFESSOR DE FILOSOFIA JURÍDICA NO CESCAGE – DOUTOR EMDIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO PELA UNIVERSIDADED DELAS ISLAS BALEARES (PALMA DE MALLORCA, ESPANHA) –ADVOGADO NO ESTADO DO PARANÁ.

RESUMO

O artigo trata dos dois principais tratados que constituem a União Européia,o Tratado de Maastricht e o Tratado de Amsterdam. Em relação ao primeiro,também chamado de Tratado da União Européia, assinado por doze Estados-Membros, o autor destaca que este veio a trazer respostas e soluções aosdesafios gerados pela criação da União Européia e do Mercado Interno,principalmente no plano econômico e no plano político. O segundo Tratado,chamado de Tratado de Amsterdam, veio a alterar vários artigos do primeiroe de Tratados.

ABSTRACT

The article is about two main treats that represent the European Union , theMaastricht Treat and Amsterdam Treat. In relation to the first one , alsocalled The European Union Treat, assigned by twelve State/Members , theauthor says that this one came to bring answers and solutions to the challengesrisen by the creation of European Union and Intern Market, mainly in theeconomical and political system. The second treat ,called Amsterdam Treat,came to change several articles from the first one and others.

PALAVRAS CHAVE - Direito Internacional; União Européia; tratadosinternacionais.

O TRATADO DE MAASTRICHT

Também chamado de Tratado da União Européia, foi assinadopelos doze Estados-Membros da comunidade, no dia sete de fevereirode 1992, na cidade holandesa de Maastricht.

O início da década de 90, marca uma guinada fundamental nahistória européia, tanto dentro quanto fora da comunidade. Tal guinadase deve à uma série de fatores tais como:

1) O desaparecimento do bloco Leste, que gerou alterações noequilíbrio geopolítico da Europa, tais como o aparecimento de novosEstados no cenário Europeu.

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2) A concretização, em 01/01/93, do projeto do Mercado Internoque, eliminando os óbices da livre circulação de mercadorias, pessoas,serviços e capitais, encerra um ciclo no processo de integração euro-péia.

3) O combate contra o terrorismo, a criminalidade e a droga,que exige, no momento em que desaparecerem as fronteiras internasda comunidade, um esforço conjunto dos membros para garantir a se-gurança e o bem-estar do cidadão.

4) A crescente agressividade dos principais parceiros comer-ciais da Comunidade, tais como os Estados Unidos da América e oJapão, a qual denota uma necessidade de reforçar a coerência econô-mica global do espaço comunitário.

5) As grandes questões de defesa ambiental que, extravasan-do em muito as fronteiras internas da Comunidade, exigem um esforçoconjunto, não só da Europa, mas sim do mundo.

6) O grande desafio de a Comunidade se fazer representar nocenário internacional, como um único Estado com uma única voz ativa esolidária na defesa do interesse comum, seja na perspectiva dos valo-res da paz, democracia e Direitos do Homem, seja no flanco das rela-ções econômicas internacionais.

7) A exigência de uma reforçada dimensão política que permi-ta sustentando processo de integração econômica, consolidado com arealização do Mercado Interno e da União Econômica e Monetária.

O Tratado de Maastricht veio trazer respostas e soluções aosdesafios gerados pela criação da União Européia e do Mercado Interno.

No plano econômico, através da criação de uma União Econô-mica e Monetária que surge imediatamente após a criação do MercadoÚnico Europeu, a qual após uma delicada gestação, dará a luz em 01/01/99 ao EURO, moeda única européia.

No plano político, a transformação da cooperação política entreos membros comunitários, numa política comunitária, ou seja, a PolíticaExterna e de Segurança Comum (PESC), reflexo da necessidade dedar à Comunidade uma voz única, mais forte e ativa na cena internacio-nal; reforçando também a cooperação no domínio da justiça e dos as-

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suntos internos. Com estas duas medidas, a Comunidade inicia um pro-cesso condutor a uma União Política.

Com a União Econômica e Monetária e a União Política, aComunidade caminha em direção à União Européia, no quadro da qual,cada cidadão, de qualquer Estado-Membro, terá uma cidadania euro-péia. Esta cidadania européia é distinta da cidadania nacional, que as-sim se vê locupletada por um novo estatuto, mas não substituída.

Com o Tratado da União Européia, o processo de integraçãoultrapassa formalmente o seu estágio econômico, ganhando um perfilpróprio nos âmbitos político e social. Esta evolução é correspondidano plano das instituições pelo reforço do papel de liderança política doConselho Europeu, pelo acréscimo de funcionalidade do Conselho deMinistros, pelo maior peso que passa a ter o Parlamento Europeu noprocesso legislativo, pelo maior envolvimento dos parlamentos nacio-nais no processo comunitário e pela garantia do respeito das decisõesdo Tribunal de Justiça.

O Tratado de Maastricht é um passo num processo evolutivoque ganhou um ritmo acelerado nos anos 90. As Comunidades apre-sentam-se agora como o principal pólo de estabilidade no continenteeuropeu e como referência para muitos outros Estados europeus quejá solicitaram adesão ou a encaram como um objetivo a longo prazo. Éassim que novos alargamentos estão projetados para um futuro próxi-mo, tais quais o último alargamento com as adesões da Suécia, Fin-lândia e Áustria e de um novo a ser concretizado até 1999, estando emnegociação as adesões da Polônia, Hungria e República Tcheca.

A União Européia instituída pelo Tratado de Maastricht assen-tou três “pilares”.

a) O 1º Pilar, corresponde três comunidades predecessoras, ouseja, a Comunidade Econômica Européia (CEE), a Comunidade Euro-péia do Carvão e de Aço (CECA) e a Comunidade Européia da EnergiaAtômica (CEEA ou EURATOM) que se fortaleceram com o advento deMaastricht.

A Comunidade Econômica Européia, pedra fundamental daconstrução européia, é aquela que foi mais profundamente alterada,

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mudando a sua designação para simplesmente Comunidade Européia(CE); tendo a sua intervenção ampliado em novos domínios como asaúde, a educação e a cultura, a proteção ao consumidor, etc; vemreforçar a política comunitária de cooperação para o desenvolvimento,complementando as políticas dos Estados-Membros.

A Comunidade Européia vem a ter consolidada a sua ação noque se refere à promoção da investigação e do desenvolvimentotecnológico, reforçando o objetivo da melhoria da qualidade de vida doscidadãos, através de uma ação mais dinâmica na defesa do meio am-biente. A CE passou a promover uma maior proteção social dostrabalhadores, através do apoio a ações dos Estados-Membros quevisem a melhoria das condições de trabalho, a proteção da saúde esegurança dos trabalhadores, a igualdade de oportunidades entre ho-mens e mulheres, além da integração das pessoas excluídas do merca-do de trabalho, permitindo assim, responder com mais eficácia às reali-dades e necessidades do mundo trabalhista, estabelecendo uma com-petência no domínio industrial, orientada para reforçar a capacidade deconcorrência da indústria comunitária.

A introdução de uma nova competência comunitária, no domí-nio das redes transeuropéias de trasportes, energia e telecomunica-ções, com o objetivo de garatir a igualdade de condições de acesso aomercado comunitário pela atenuação das distâncias entre o centro e aperiferia.

A coesão econômica e social é um dos principais objetivos epara isto é criado um fundo de Coesão a favor de Portugal, Espanha,Grécia e Irlanda, o qual vem contribuindo para a realização de projetosnos domínios do ambiente e das redes transeuropéias de transportes.

É instituída a cidadania européia criando direitos próprios aoscidadãos comunitários, tais como o de votar e de ser eleito em eleiçõeslocais e européias, com base no critério do local de residência e não danacionalidade; o direito de proteção diplomática em países terceiros,onde, na ausência de uma Embaixada do seu Estado-Membro, o cida-dão se pode dirigir à representação diplomática de qualquer um dosdemais Estados-Membros, reclamando a proteção a que passa a ter

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direito; o direito de petição direta ao Parlamento Europeu onde serãoouvidas as suas opiniões, reclamações ou pretensões, além de um di-reito de acesso ao Provedor de Justiça Comunitária.

A instituição de uma União Econômica e Monetária, na suaforma mais expressiva, consiste na criação de uma moeda única, atu-almente chamada de ECU (Unidade de Conta Européia) sendo que asua futura designação, a partir de 1999, será EURO, para a Comunida-de. A UEM, ou seja, o locupletamento da realização do Mercado Internoe a adoção da moeda única permitirá potenciar as vantagens do mes-mo, consubstanciadas nas quatro liberdades: livre circulação de pesso-as, de bens, de serviços e de capitais.

A UEM carcteriza-se também, pela adoção de uma políticamonetária única, da responsabilidade de uma instituição nova, o BancoCentral Europeu. Este, e o conjunto dos Bancos Centrais nacionais (queconstituem o Sistema Europeu de Bancos Centrais), assumiram assim,como objetivo central da sua política a estabilidade dos preços no interi-or do Mercado Interno, como de um crescimento econômico duradouro,criador de emprego e de bem-estar.

A moeda única européia, por sua vez, veio a ser mais um in-centivo poderoso ao investimento, assegurando a transparência dosmercados e habitará a participação da Comunidade Européia numaeconomia mundial cada vez mais exigente em matéria de eficácia eco-nômica e de capacidade concorrencial.

As decisões na Comunidade são tomadas por maioria qualifi-cada, mantendo-se o recurso à rotação por unanimidade em algunscasos de exceção. A maioria qualificada é um sistema de votação quepermite adotar decisões, desde que se reunam 62 votos dos 87 queperfaz em o total dos votos ponderados dos quinze. Que estes 62 votossejam computados da soma dos votos, de pelo menos 10 Estados-Mem-bros. Há também uma minoria de bloqueio, de 26 votos, que pode impe-dir a realização de um acordo. Este sitema de votação assenta na se-guinte ponderação de votos:

· Alemanha = 10· Áustria = 4· Bélgica = 5

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· Dinamarca = 3· Espanha = 8· Finlândia =3· França = 10· Grécia = 5· Holanda = 5· Irlanda =3· Itália = 10· Luxemburgo =2· Portugal = 5· Reino Unido = 10

· Suécia = 4O alargamento das competências é acompanhado pela exten-

são da regra da maioria qualificada à generalidade das áreas de atua-ção da Comunidade, tendo-se salvaguardado, no entanto, aquelas que,por razões de natureza política, se entendeu continuar a sujeitar a umprocesso de decisão por unanimidade. É o caso de domínios que seprendem com a identidade de cada país como por exemplo, a cultura.

Ao reforço das competências da Comunidade, a que correspondeuma maior capacidade de intervenção da Comissão, no seu papel de“executivo comunitário”, corresponde, igualmente, um aumento da partici-pação dos cidadãos, representados pelos deputados com assento noParlamento Europeu. De fato, o Parlamento Europeu reparte, agora, como Conselho, o processo de decisão em matérias, tais quais o mercadointerno, o ambiente, a livre circulação dos trabalhadores, as redestranseuropéias, a política de consumidores, a política de investigação, aeducação, a cultura e a saúde. Assim se assegura uma maiordemocracidade do processo de decisão comunitário.

b) O 2º Pilar, corresponde à Política Externa de SegurançaComum (PESC): A PESC cria um processo evolutivo e progressivo nosentido de a Comunidade falar com uma só voz e de os Estados-Mem-bros agirem em conjunto na cena política internacional. Até então ha-via um mecanismo de Cooperação Política Européia (CPE), traduzidonum processo de cooperação de informação e consulta em matéria depolítica externa, o qual tem funcionado na base da busca de consensos.

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No âmbito da PESC, os membros da comunidade passaram a decidirações, sempre que reconhecessem, unanimemente, interesses impor-tantes que quisessem prosseguir em comum.

O processo de adoção de uma “ação comum”foi estabelecidopor forma a garantir a proteção dos pontos de vista de cada um dosEstados envolvidos e o respeito pelas respectivas vocações históricasassim sendo, as orientações gerais da PESC serão dadas pelos Che-fes de Estado e de Governo dos Países da Comunidade (ConselhoEuropeu).

A implementação das ações comuns é realizada com basenum processo de dicisão por maioria qualificada reforçada, isto é, exi-gindo sempre a concordância de pelo menos, onze Estados-Membros.

c) O 3º Pilar, correspondente à cooperação nos domínios dajustiça e dos assuntos internos: Os crescentes desafios de umacriminalidade e terrorismo internacionais, cada vez mais organizados,as pressões migratórias que se exercem sobre a Comunidade e a abo-lição dos controles nas fronteiras internas, tornam necessário o refor-ço da cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos internos.

Em termos de substância, no âmbito deste pilar, as priorida-des foram o estabelecimento de uma política de vistos, análise eharmonização de certos aspectos das políticas de asilo dos Estados-Membros e o desenvolvimento da cooperação policial, particularmen-te pela criação do sistema europeu de intercâmbio de informaçõescriminais (EUROPOL).

O Tratado da União assinalou uma nova etapa no processo decriação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa,em que as decisões passaram a ser tomadas ao nível mais próximo doscidadãos.

A existência destes três pilares resulta da necessidade de esta-belecer métodos diferenciados de tomada de decisão, correspondendoà variada natureza das matérias tratadas. À maior sensibilidade políticadas questões envolvidas no segundo e terceiro pilares, corresponde umaespecial proteção dos pontos de vista de cada um dos Estados-Mem-bros. A unidade e articulação de todo o sistema matém-se, porque são

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comuns aos três pilares as Instituições a quem cabe a faculdade de to-mar decisões, o Conselho Europeu, o Conselho de Ministros, a Comis-são, o Parlamento Europeu, o Tribunal de Justiça, o Tribunal de Contas;sobre os quais já foi tratado em linhas anteriores

O TRATADO DE AMSTERDAM

Tal Tratado alterou vários artigos do Tratado da União Européia(Tratado de Maastricht), além dos Tratados que instituiram as comuni-dades européias e alguns atos relativos a esses Tratados. Essas altera-ções ocorreram, principalmente, no direito substantivo, criado emMaastricht em 1992.

Vale, aprioristicamente, salientar que, o Tratado de Amsterdam,assinado em 07/06/97, não foi ainda ratificado e só quando isto acon-tecer é que ele realizará algumas das mudanças a serem citadas.

Amsterdam, tanto quanto Maastricht, são auxiliados pelos acor-dos de Schegen, 2 Tratados realizados em 1985 e 1990. O primeirodos acordos tem como marco um compêndio em matéria de estrangeria(Direito Internacional Privado), criando um visto comum para toda Co-munidade. Também tornam-se comuns os domicílios e a permanênciade extrangeiros.

Se por exemplo, Schegen for ratificado, é possível que umestrangeiro precise de um único visto para entrar e permanecer emtodos os países da Comunidade que tenham participado e endoçadoos Acordos de Schegen.

Outro ponto fundamental é que todas as decisões tomadas emSchegen passaram a fazer parte do Tratado de Amsterdam.

Entre outras coisas, o Tratado de Amsterdam atribui à UniãoEuropéia os seguintes objetivos:

a) A promoção do progresso econômico e social e de um ele-vado nível de emprego e a realização de um desenvolvimento equili-brado e sustentável, nomeadamente mediante a criação de um espa-ço sem fronteiras internas, o reforço da coesão econômica e social e oestabelecimento de uma união econômica e monetária, que incluirá aprazo, a adoção de uma moeda única, de acordo com as disposiçõesdo Tratado de Amstendam;

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b) A afirmação de sua identidade, na cena internacional, atra-vés da execução de uma política externa e de segurança comum, queinclua a definição gradual de uma política de defesa comum, que pode-rá conduzir à uma defesa comum;

c) O reforço da defesa dos direitos e dos interesses das nacio-nais dos seus Estados-Membros, mediante a instituição de uma cida-dania da União;

d) A manutenção e o desenvolvimento da União enquanto es-paço de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja asseguradaa livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequa-das em matéria de controles de fronteira externa, imigração e asilo,bem como de prevenção e combate à criminalidade;

e) A manutenção da integralidade do acervo comunitário e oseu desenvolvimento, a fim de analisar em que medida pode ser ne-cessário rever as políticas e formas de cooperação instituídas peloTratado de Amsterdam, com o objetivo de garantir a eficácia dos me-canismos e das Instituições da Comunidade.

A União assegurará, em especial, a coerência do conjunto desua ação externa no âmbito das políticas que adotar em matéria derelações externas, de segurança, de economia e de desenvolvimento,cabendo ao Conselho e à Comissão a responsabilidade de asseguraressa coerência, cooperando para o efeito. O Conselho e a Comissãoassegurarão a execução dessas políticas de acordo com as respecti-vas competências.

O Parlamento Europeu, O Conselho, a Comissão, o Tribunal deJustiça e o Tribunal de Contas exercem as suas competências nas con-dições e de acordo com os objetivos previstos, por um lado, nas dispo-sições dos Tratados que instituem as Comunidades Européias e nosTratados e atos subseqüentes que os alteram ou completaram e, poroutro, nas demais disposições do Tratado de Amsterdam.

A União assenta nos princípios da liberdade, da democracia,do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais,bem como do Estado de direito, princípios que são comuns aos Esta-dos-Membros. A União também respeitará as identidades nacionais dosEstados-Membros.

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VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS

O Conselho, reunido a nível de Chefes de Estado ou de Gover-no e deliberando por unanimidade, sob proposta de 1/3 dos Estados-Membros, ou da Comissão, após o parecer favorável do ParlamentoEuropeu, poderá verificar a existência de uma violação grave e persis-tente, por parte de um Estado-Membro, de alguns dos princípiossupramencionados, após ter convidado o governo desse Estado-Mem-bro a apresentar as suas observações sobre a questão.

Se tiver sido verificada a existência dessa violação o Conse-lho, deliberando por maioria qualificada, poderá decidir, suspender al-guns dos direitos decorrentes da aplicação do Tratado de Amsterdamao Estado Membro em questão, incluindo o direito de voto do repre-sentante do governo desse Estado-Membro no Conselho. Ao fazê-lo,o Conselho terá em conta as eventuais conseqüências dessa suspen-são nos direitos e obrigações das pessoas, físicas ou jurídicas.

O Estado-Membro em questão, continuará, de qualquer modo,vinculado às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado deAmsterdam.

O Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode poste-riormente decidir alterar ou revogar as medidas tomadas, se se alterara situação que motivou a imposição dessas medidas.

POLÍTICA EXTERNA E SEGURANÇA

A União Européia definirá uma política externa e de segurançacomum extensiva a todos os domínios da política externa e de seguran-ça, que terá por objetivos:

a) A salvaguarda dos valores comuns, dos interesses fundamen-tais, da independência e da integridade da União, de acordo com osprincípios da Carta das Nações Unidas;

b) O reforço da segurança da União, sob todas as formas;c) A manutenção da paz e o reforço da segurança internacional,

de acordo com os princípios da Carta das Nações Unidas, com os prin-cípios da Ata Final de Helsinque que e com os objetivos da Carta deParis, incluindo o respeito às fronteiras extenas;

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d) O fomento da cooperação internacional;e) O desenvolvimento e o reforço da democracia e do Estado

de direito, bem como o respeito dos direitos do Homem e das liberda-des fundamentais.

Os Estados-Membros apoiarão ativamente e sem reservas apolítica externa e de segurança da União, num espiríto de lealdade e desoliedariedade mútuas.

Os Estados-Membros atuarão de forma concertada a fim dereforçar e desenvolver a soliedariedade política mútua e abster-se-ãode empreender ações contrárias aos interesses da União, ou suscetí-veis de prejudicar a sua eficácia como força coerente nas relaçõesinternacionais. Sendo que o Conselho assegurará a observância des-tes princípios.

Os Estados-Membros que sejam igualmente membros do Con-selho de Segurança das Nações Unidas, consertar-se-ão e manterãoos outros Estados-Membros plenamente informados. Os Estados-Mem-bros que são membros permanentes do Conselho de Segurança dasNações Unidas, defenderão no exercício de suas funções, as posiçõese os interesses da União, sem prejuízo das responsabilidades que lhesincumbem por força da Carta das Nações Unidas.

As missões diplomáticas e consulares dos Estados-Membrose as delegações da Comissão nos países terceiros e nas Conferênci-as internacionais, bem como as respectivas representações junto dasOrganizações Internacionais, concertar-se-ão no sentido de assegurara observância e a execução das posições comuns e das ações comunsadotadas pelo Conselho.

OUTRAS CONSIDERAÇÕES

A Comunidade tem como missão, através da criação de ummercado comum e de uma união econômica e monetária e da aplica-ção das políticas ou ações comuns, promovendo em todo seu espaço,o desenvolvimento harmonioso, equilibrado e sustentável das ativida-des econômicas, um elevado nível de emprego e de proteção social, aigualdade entre homens, mulheres, um crescimento sustentável e nãoinflacionista, um alto grau de competividade e de convergência dos

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comportamentos das economias, um elevado nível de proteção e demelhoria da qualidade do ambiente, o aumento do nível e da qualidadede vida, a coesão econômica e social e a solidariedade entre os Esta-dos-Membros.

O Conselho adotará medidas relativa à elaboração de estatísti-cas, sempre que necessário, para a realização das atividades da Co-munidade. A elaboração das estatísticas comunitárias far-se-á no res-peito pela imparcialidade, fiabilidade, isenção científica, eficácia emrelação aos custos e pelo segredo estatístico, não devendo acarretarencargos excessivos para os agentes econômicos.

A partir de 1º de janeiro de 1999, os atos comunitários relati-vos à proteção das pessoas físicas em matéria de tratamento de da-dos de caráter pessoal e de livre circulação desses dados passaram aser aplicáveis às Instituições e órgãos instituídos pelo Tratado deAmsterdam, ou com base nele. Antes desta data, o Conselho haviacriado um órgão independente de supervisão, incumbido de fiscalizara aplicação dos citados atos comunitários às Instituições e órgãos daComunidade e tendo adotado as demais disposições o que se afigu-rassem adequadas.

Além das supramencionadas, o Tratado de Amsterdam alteroutambém os Tratados que instituem a Comunidade Européia do Carvãoe do Aço (CECA), e a Comunidade Européia da Energia Atômica(EURATOM).

Existem ainda alterações quanto ao Ato Relativo à Eleição dosRepresentantes ao parlamento Europeu, mas até a entrada em vigorde um processo eleitoral uniforme ou de um processo baseado emprincípios comuns, e sem prejuízo das demais disposições do presen-te Ato, o processo eleitoral será regulado, em cada um dos Estados-Membros, pelas disposições nacionais.

REFERÊNCIAS

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BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVILDO EMPREGADOR EM FACE DOS EMPREGADOS E A

OBRIGAÇÃO DE REPARAR OS DANOS

MARIA CLAYDE ALVES PACE

PROFESSORA UNIVERSITÁRIA. MESTRANDA E DOUTORANDA EMDIREITO. ESPECIALISTA EM DIREITO PELA PONTIFÍCIAUNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ. ADVOGADA NO ESTADO DOPARANÁ

RESUMO

O artigo aborda a responsabilidade civil do empregador, enfatizando a distinçãoda responsabilidade subjetiva da objetiva, questionando qual das teorias seriaaplicável nos casos de pedidos de indenização por responsabilidade civil doempregador. O tema é abordado mediante estudo do Direito Constitucional edo Direito Civil, com análise da lei, da doutrina e da jurisprudência, culminando,em suas conclusões, pela adoção da teoria objetiva da responsabilidade civilquando o empregado sofrer danos decorrentes de acidentes do trabalho.

ABSTRACT

The article talks about the employer civil liability, emphasizing the distinctionbetween subjective and objective liability, questioning what theories wouldbe suitable in cases of pleading of indemnity by employer Civil Liability. Theissue is treated through a study of the Civil Law and Constitutional Law, withan analysis of the act, of the doctrine and jurisprudence, ending with theconclusion by the adoption of the objective theory of the Civil Liability whenthe employee suffers damages because of labor related accidents

PALAVRAS CHAVE - Direito Civil; responsabilidade civil doempregador; responsabilidade civil objetiva.

INTRODUÇÃO

A partir do advento da Constituição Federal de 1988181 , no to-cante aos direitos sociais, nota-se um grande avanço legislativo emmatéria de responsabilidade civil a favor dos empregados urbanos erurais, com a instituição do seguro acidentário, a cargo do empregador,sem prejuízo da indenização comum, por danos causados aos empre-

181 Constituição Federal no art.7º, inciso XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do

empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.

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gados, sejam patrimoniais e ou extrapatrimoniais.É atual, na doutrina e na jurisprudência, o embate a cerca do

tema da responsabilidade civil do empregador, em face dos emprega-dos, quando da ocorrência de danos aos últimos.

Pacífica a obrigação de indenizar quando o empregador, con-correndo com dolo ou culpa grave, causar dano ao empregado.182

A celeuma é travada sobre qual teoria – subjetiva ou objetiva –seria a aplicável nos casos de pedidos de indenização por responsabili-dade civil do empregador, do direito comum, por acidentes de trabalho.

Neste quadrante, estas breves anotações.

ACIDENTE DE TRABALHO

Estando o trabalhador atado a um contrato de trabalho e dadaa subordinação do negócio jurídico, todo e qualquer dano que advenha,implícita ou explicitamente, deste liame poderá ser considerado aci-dente de trabalho.

Neste contexto, todo e qualquer evento danoso que sofra oempregado,183 seja ou não no local de trabalho, gerará o direito aindenização, desde que não ocorra uma das hipóteses de excludenteda culpa ou nexo de causalidade, ou seja, somente a ausência total deculpa do patrão (em hipótese de caso fortuito ou força maior, ou deculpa exclusiva da vítima) o desobrigará do dever de indenizar – paraa Teoria Subjetiva, ou, a total ausência de nexo de causalidade –Teoria Objetiva.

Assim, poderá o empregado pleitear a indenização, mesmoque o evento ocorra em tempo à disposição ou in itinere, seja em via-gens a serviço do empregador; a estudo e ou a trabalho. Desde queesteja atendendo aos interesses do empregador, ocorrendo o eventodanoso, haverá por si ou por seus herdeiros, o direito a indenização,

182 Art.159 do Código Civil - Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência,

violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.183

Art.19 a 21 da Lei 8.213/91, especialmente o art.21, inciso IV, letra “a” e “c”.Art.21 - Equiparam-se também ao acidente de trabalho, para efeitos desta lei. IV - o acidente sofrido pelosegurado, ainda que fora do local e horário de trabalho: a) na execução de ordem ou na realização deserviço sob a autoridade da empresa; c) em viagem a serviço da empresa, inclusive para estudo quandofinanciada por esta dentro de seus planos para melhor capacitação da mão-de-obra, independentementedo meio de locomoção utilizado, inclusive veículo de propriedade do segurado.

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fundamentando o pedido na responsabilidade civil do empregador.184

RESPONSABILIDADE CIVIL

A responsabilidade civil é o corolário do viver gregário.Desde os tempos mais remotos até passado próximo,185 nos

vem o preceito de direito que impõe o dever de indenizar a todo aqueleque se cause um dano ou uma ofensa. Origem no Direito Romano apartir da Lex Aquilia.

O nosso Código Civil de 1916 manteve-se fiel à correntesubjetivista, 186 adotando a noção de culpa, como elemento de fundo,ao conceito de responsabilidade civil contratual ou extracontratual,modernamente, extrapatrimonial ou dano moral.

A responsabilidade civil se assenta em três pressupostos, se-gundo a teoria clássica: um dano, a culpa do autor do dano e a relaçãode causalidade entre o fato culposo e o mesmo dano187

Este, o fundamento da Teoria Clássica, advindo da evolução dodireito romano ao direito francês, notadamente, no Código deNapoleão,188 aprimorando a concepção romana, a partir da Lex Aquilia.

A responsabilidade civil que gera o dever de indenizar decorreda violação de um dever geral de não lesar, por ação ou omissão, queo agente, por lei ou por contrato, detinha o poder de evitar a ofensa aopatrimônio jurídico de outrem.

184 STF SÚMULA 229. A indenização acidentária não exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa

grave do empregador.185

NORONHA. Carlos Silveira. A responsabilidade de indenizar nas situações de perigo. Ajuris v.62“Declaração das Liberdades Públicas, que embora tenha seus primeiros raios de luz na Idade Média coma Magna Carta de 1215 e em outras manifestações do direito inglês, só veio efetivamente formalizar-sena França, com a então chamada “Declaration des Droits de L’Homme et du citoyen”promulgada aos 27-08-1789. Deste marco histórioco-formal, expandiu-se universalmente, passando para as Constituiçõesmodernas e culminando com a Declaração dos Direitos do Hoem, pela ONU, em 10-12-48”186

Apud NORONHA, ob.cit.pg.79. O nosso Código Civil, editado em 1916, a par de sofrer o influxo dadoutrina positivista que dominava o mundo das idéias filosóficas, notadamente nas Escolas de Recife eSão Paulo, e ainda influenciado pelos ideais liberais que na época estavam presentes na consciência dehomens de ciência e políticos, adota, como regra geral para a reparação de danos, a teoria da culpa,como deflui da própria redação do art.159. Essa é a culpa aquiliana a que LIMONGI FRANÇA preferechamar responsabilidade aquiliana, que é definida por COLEHO DA ROCHA como “a omissão indeliberadada diligência devida”, ou , como ensina SAVATIER: “ culpa é a violação (intencional ou não) de um deverque o agente tinha possibilidade de conhecer e observar”.187

BESSON.André. La notion de garde dans la responsabilité du fair des choses. Paris, Dalloz,1927.p.5.188

Arts.1.382 e 1.383.

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O fundamento da responsabilidade civil, para a Teoria Clássica,é a culpa.

TEORIA SUBJETIVA

A partir da Lex Aquilia, em Roma, operou-se mudanças noquadrante da responsabilidade civil, passando-se a esboçar a idéia daculpa, e dela surgem os primeiros passos para a formação da teoriasubjetiva baseada no elemento culpa.

Verifica-se a partir destas concepções, que o dever de indeni-zar os danos causados a outrem tem, a partir de Roma, o conceito dereparação e não mais punição.

Passa-se, também, a desvincular a idéia de crime e a tomarcorpo a concepção da responsabilidade extracontratual e responsa-bilidade civil contratual.

Para a teoria subjetiva, somente haverá o dever de indenizarse o causador do dano agir com culpa ou dolo.

Com efeito, para a teoria subjetivista, apenas cabe perquirir dasubjetividade do causador do evento danoso, se quis o resultado ouatuou com negligência, imprudência ou imperícia.

Nesta esteira, os óbices para a ação da vítima é de grandemonta, pois acaba ela, isoladamente, suportando o ônus da prova,muitas vezes de difícil realização.

A Lei de Acidente do Trabalho e dos Riscos das Atividades Nu-cleares tratam da inversão do ônus da prova, bastando no primeiro caso,a comprovação do dano e o nexo de causalidade e no segundo caso,provar-se-á apenas o acidente nuclear.

Em se tratando de responsabilidade civil do empregador, oart.1.521,III do CCB, normatiza a presunção da culpa do empregador,por atos praticados pelo empregado, no exercício do trabalho189 , cau-sados a terceiros.

Concorrendo o empregador com culpa, mesmo que levíssima,no evento danoso sofrido pelo empregado, será civilmente obrigado a

189Art.1.521. São também responsáveis pela reparação civil:

III – o patrão, amo ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalhoque lhes competir, ou por ocasião dele (art.1.522).

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indenizar, eis que o legislador Constituinte e o Código Civil não tratamdos graus da culpa.

Neste sentido é pacífica a jurisprudência que ora colacionamosa título de ilustração ao estudo ora em curso.

Ementa IOB nº 15154 - caderno3/2/99-pág.27 - RESPONSABILI-DADE CIVIL - ACIDENTE AÉREO - TRANSPORTE DE TRABALHA-DORES POR HELICÓPTERO - PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA -CÓDIGO CIVIL - APLICAÇÃO.

Íntegra do voto do relator para o acórdão:

“ Não há que se confundir acidente decorrente de transporte de tra-balhadores, ainda que por helicóptero, com transporte aéreo - aci-dente de vôo.

Embora sutil a diferença, não há dúvida que na hipótese tendoo empregador escolhido esse tipo de transporte, tinha o dever de as-segurar a incolumidade física de seus transportados, do local de ori-gem até o destino.(grifamos).

A sua responsabilidade seria a mesma se tivesse escolhidooutro tipo de transporte, como lancha, navio ou até mesmo avião.(...)”

Ementa IOB nº 15549 - caderno3/10/99-pág.236 -

RESPONSABILIDADE CIVIL - ACIDENTE DO TRABALHO - ME-NOR - EMPREGADOR - CULPA “IN VIGILANDO” - INDENIZAÇÃODEVIDA.

“ Indenização - Acidente do Trabalho - Menor - Empregador - Culpa“in vigilando” - Se o patrão permite que criança de apenas 12 anostrabalhe próximo a máquina de alta periculosidade e execute tare-fas a esta ligadas, é culpado por acidente sofrido pelo menor, resi-dindo o nexo causal em sua atitude imprudente, ensejadora da per-da do braço da criança, pouco importando o fato do pai da vítimaestar nas imediações, uma vez que é do empregador a obrigaçãode exercer vigilância sobre os empregados e de bem distribuir astarefas” (Ac.una da 6ª C Civ. do TA MG - Ac 251.9633-5-Rel.JuizBelizário de Lacerda - j 10.08.98 - DJ MG 08.04.99,pp 16/7- ementaoficial). (grifamos)

Fundamentado o pedido de indenização por acidente do tra-

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balho em face da Previdência Social, a posição majoritária da doutrinae da jurisprudência e a adoção da Teoria Objetiva, dada a Lei daInfortunística.

Com efeito, a defesa da pessoa humana acidentada é coroláriodos direitos fundamentais e decorre da Lei a aplicação da Teoria Objetiva.

Porém, quando o pedido de indenização se dirige ao emprega-dor, fundada na responsabilidade civil comum, a doutrina predominanteainda é a da adoção da Teoria da Culpa190 , imputando ao empregadovítima, o ônus da comprovação do dano, do nexo de causalidade e da cul-pa do patrão, na contra-mão da evolução da Teoria Geral da Responsabili-dade Civil que caminha para a adoção da Teoria Objetiva.

Porém este posicionamento vem mudando gradativamente emnossos Tribunais, dado o avanço da doutrina majoritária que pugna pela

190 HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, apud GONÇALVES ob. cit. Refere que em artigo publicado na

RT,662:10, n.5, o Emérito Professor considerou o art.7º,XXVII, da nova Carta “uma grande e fundamentalinovação, pois, como ele, a responsabilidade civil do patrão caiu totalmente no regime do Código Civil.Não se cogita mais do tipo de culpa para impor o dever de reparar o dano regulado pelo Direito Comum.Qualquer que seja, portanto, o grau de culpa, terá o empregador de suportar o dever indenizatório,segundo regras do Direito Civil, sem qualquer compensação com a reparação concedida pela PrevidênciaSocial. Somente a ausência total de culpa do patrão(em hipótese de caso fortuito ou força maior, ou deculpa exclusiva da vítima) é que o isentará da responsabilidade civil concomitante à reparaçãoprevidenciária.” Aduziu ainda, que a “existência, enfim, de culpa grave ou dolo, até então exigida pelajurisprudência para condicionar a responsabilidade civil paralela à indenização acidentária, foi inteiramenteabolida nos termos da inovação trazida pelo art.7º,XXVIII, da Constituição Federal. Qualquer falta cometidapelo empregador, na ocasião de evento lesivo ao empregado, acarretar-lhe-á o dever indenizatório doart.159 do CC, mesmo as levíssimas, porque ‘ IN LEGE Aquilia et levíssima culpa venit’ “.(...) É essencial que ele tenha agido com culpa: por ação ou omissão voluntária, por negligência ouimprudência, como expressamente se exige no art.159 do Código Civil. Agir com culpa significa atuar oagente em termos de, pessoalmente, merecer a censura ou reprovação do direito. E o agente só pode serpessoalmente censurado, ou reprovado na sua conduta, quando em face das circunstâncias concretas dasituação, caiba afirmar que ele podia e devia ter agido de outro modo.(...) O prejuízo de reprovação próprio da culpa pode, pois, revestir-se de intensidade variável,correspondendo à clássica divisão da culpa em dolo e negligência, abrangendo esta última, hoje, aimprudência e a imperícia. Em qualquer das suas modalidades, entretanto, a culpa implica a violação deum dever de diligência, ou, em outras palavras, a violação do dever de previsão de certos fatos ilícitos ede adoção das medidas capazes de evitá-los. O critério para aferição da diligência exigível do agente,e, portanto, para caracterização da culpa, é o da comparação de seu comportamento com o do homomedius, do homem ideal, que diligentemente prevê o mal e precavidamente evita o perigo. A culpa strictusensu é também denominada culpa aquiliana.(...) O Código Civil, entretanto, não faz nenhuma distinção entre dolo e culpa, nem entre os graus deculpa, para fins de reparação do dano. Tenha o agente agido com dolo ou culpa levíssima, existirásempre a obrigação de indenizar, obrigação esta que será calculada exclusivamente sobre a extensãodo dano. Em outras palavras, mede-se a indenização pela extensão do dano e não pelo grau de culpa.Adotou o legislador a norma romana, segundo a qual a culpa, ainda que levíssima, obriga a indenizar(inlege Aquilia et levíssima culpa venit).Assim, provado o dano, deve ser ele ressarcido integralmente peloseu causador, tenha agido com dolo, culpa grave ou mesmo gravíssima.

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adoção da Teoria Objetiva ou do Risco Criado ou do Risco Proveito191 .A evolução passa pela inexigência da prova da subjetividade

do ato da vontade, culpa lato ou strictu senso para a teoria da assunçãodos riscos da atividade do empregador.

Assim libera-se a vítima do ônus da prova da subjetividade –culpa – devendo apenas se desincumbir da prova do dano e do nexode causalidade.

TEORIA OBJETIVA

Nos dizeres de Carlos Alberto Bittar192 todo aquele assume orisco da atividade que desenvolve, tem o dever de indenizar os danosque causar a esfera jurídica de outrem.

A transformação do enfoque da idéia da culpa para a do riscotanto na doutrina quanto na jurisprudência tem suas causas na evolu-ção industrial, social, econômica e tecnológica, especialmente após aII Guerra Mundial, ante as descobertas científicas e inventos tecnológicosvisando a preservação do SER, quando afetado pela invasão danosade outrem.191

GONÇALVES.Carlos Roberto, Responsabilidade Civil. Ed.Saraiva.5ª Ed. Pg. 18 especialmente a 29 eseguintes. Nota-se um grande avanço em termos de legislação, pois admitiu-se a possibilidade de serpleiteada a indenização pelo direito comum, cumulável com a acidentária, no caso de dolo ou culpa doempregador, sem fazer qualquer distinção quanto aos seus graus de culpa.O avanço, no entanto, não foi completo, adotada apenas a responsabilidade subjetiva, que condicionao pagamento de indenização à prova de culpa e ou dolo do empregador, enquanto a indenizaçãoacidentária e securitária é objetiva. Os novos rumos da responsabilidade civil, no entanto, caminham nosentido de considerar OBJETIVA a responsabilidade das empresas pelos danos causados aosempregados, cabendo a estes somente a prova do dano e do nexo causal.Estes dois requisitos não podem ser dispensados. Já se decidiu, com efeito, ser incabível a indenizaçãose não demonstrado que a vítima se encontrava em serviço e que tivesse se dirigido ao estabelecimentocomercial a mando ou no interesse da empresa, embora tivesse se apossado de trator desta para seutransporte pessoal(RT,608:98)192

BITTAR.Carlos Alberto, Responsabilidade Civil Teoria & Prática, Ed.Forense Universitária -1ªedição-ano 1989, ps..30 e 31.Com efeito, na teoria da culpa(ou “teoria subjetiva”), cabe perfazer-se a perquiriçãoda subjetividade do causador a fim de demonstra-se, em concreto, se quis o resultado(dolo), ou seatuou com imprudência, imperícia ou negligência(culpa em sentido estrito). A prova é, muitas vezes, dedifícil realização, criando óbices, pois, para a ação da vítima, que acaba, injustamente, suportando osrespectivos ônus. Daí, o avanço representado pela teoria do risco “ou “teoria objetiva”), em que basta asimples causação (causalidade extrínseca), sem cogitação da intenção do agente. (...) Assim, passou-se da exigência de ato de vontade, contrário à ordem jurídica - com base no princípio do neminemlaedere - à admissão do risco, introduzido na sociedade pelo exercício de atividades perigosas, comoesteio para a responsabilização do agente. De uma conduta antijurídica chegou-se a ação legítima, masperigosa, na teoria em análise, com a aplicação do princípio do ubi emolumentum,ibi ius ( ou ibi onus),de conformidade com a qual a pessoa que retira proveito dos riscos criados, deve arcar com asrespectivas conseqüências.”

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Para uma grande gama de eventos danosos, o sistema da res-ponsabilidade civil clássica tornou-se insuficiente para o devido res-sarcimento.

A Teoria Objetiva, nos dizeres de Noronha193 , despreza o indivi-dualista e o liberalismo da teoria clássica para privilegiar o homem nocontexto de parte de uma coletividade em confronto com as individuali-dades que o cercam.

Enquanto a teoria clássica fundamenta-se na culpa do agente,a responsabilidade objetiva vem hasteada na idéia de risco da ativi-dade e na vantagem obtida com esta.

O fundamento da Teoria Objetiva está na assunção do riscoou vantagem que, no caso em estudo, o empregador assume pelaatividade que desenvolve expondo a risco e causando danos,patrimonial ou extrapatrimonial, a seus empregados.

Seja por exposição do empregado a agentes nocivos e ou agres-sivos prejudiciais à saúde deste, seja por acidente de trabalho, in itinereou não, seja por doença profissional que seja equiparada a acidente detrabalho, tem o empregador o dever de indenizar quando ocorre o dano.

Pela Teoria Objetiva, o empregado deve provar apenas o danoe o nexo de causalidade, ou seja, que aquele dano adveio do exercícioda função ou por atividade direcionada para uma vantagem ao empre-gador.

Não se cogita da idéia da culpa e sim da idéia do risco-criadoou risco-proveito, pois todo aquele que tira proveito da atividade quedesenvolve e se a bem dela ocorre um dano, e neste caso, o emprega-dor é que detém a vantagem da atividade que desenvolve, ou seja, alucratividade, tem o dever social de indenizar pelas regras daresponsabilização civil.

Neste sentido, Caio Mário Pereira da Silva194 pois a Teoria do

193 NORONHA, ob.cit.pg.80/A e 81. Em suma, enquanto a responsabilidade subjetiva esteia-se na culpa

do agente, a responsabilidade objetiva baseia-se no risco. E nesta o pólo divisor encontra-se na próprianatureza da atividade executada pelo agente, cuja distinção se opera no sentido de ser ou não decaráter perigoso o obrar do agente, o que se verifica em face da sua natureza ou pelos meios empregadospara obter o resultado.194

PEREIRA. Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, 13ª edição-Editora Forense, ano 1992,págs.459 a 461 “Foi sob a inspiração de idéias que têm seguido esta linha de orientação, que nasceu a

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Risco está fundada no princípio de solidariedade social eis que a vítimanão pode suportar o ônus de seu sofrimento por dano que não causouou não contribuiu.

No mesmo diapasão a SÚMULA STJ – 37 - São cumuláveis asindenizações por dano material e moral oriundos do mesmo fato.

Colacionamos, a título de contribuição, alguns julgados queapontam para a evolução da adoção da Teoria Subjetiva para a daTeoria Objetiva:

chamada teoria da responsabilidade objetiva. Em verdade, a culpa, como fundamento daresponsabilidade civil, é insuficiente, pois deixa sem reparação danos sofridos por pessoas que nãoconseguem provar a falta do agente. O que importa é a causalidade entre o mal sofrido e o fatocausador, por influxo do princípio segundo o qual toda pessoa que cause a outra um dano está sujeitaà sua reparação, sem necessidade de se cogitar do problema da imputabilidade do evento à culpa doagente. O fundamento ético da doutrina está na caracterização da injustiça intrínseca, que encontra osseus extremos definidores em face da diminuição de um patrimônio pelo fato do titular de outro patrimônio.Ante uma perda econômica, pergunta-se qual dos dois patrimônios deve responder, se a vítima ou docausador do prejuízo. E, na resposta à indagação, deve o direito inclinar-se em favor daquela, porquedos dois é quem não tem o poder de evitá-lo, enquanto que o segundo estava em condições de retirarum proveito, sacar uma utilidade ou auferir um benefício da atividade que originou prejuízo. O fundamentoda teoria é mais humano do que o da culpa, e mais profundamente ligado ao sentimento de solidariedadesocial. Reparte, com maior dose de eqüidade, os efeitos dos danos sofridos, atendendo a que a vida emsociedade se tornou cada vez mais complexa, e o progresso material a todo instante aumenta os riscosa que estão sujeitos os indivíduos. No campo objetivista situa-se a teoria do risco proclamado ser demelhor justiça que todo aquele que disponha de um conforto oferecido pelo progresso OU QUE REALIZEUM EMPREENDIMENTO PORTADOR DE UTILIDADE OU PRAZER, DEVE SUPORTAR OS RISCOS A QUEEXPONHA OS OUTROS. CADA UM DEVE SOFRER O RISCO DE SEUS ATOS, SEM COGITAÇÃO DAIDÉIA DA CULPA, E, PORTANTO, O FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DESLOCA-SE DANOÇÃO DE CULPA PARA A IDÉIA DE RISCO. Ao entendê-lo, os doutrinadores o encaram ora comoRISCO-PROVEITO, que se funda no princípio, segundo é reparável o dano causado a outrem emconseqüência de uma atividade realizada em benefício do responsável. ( ubi emolumentun, ibi onus); oramais genericamente como RISCO-CRIADO, a que se subordina todo aquele que, sem indagação deculpa, EXPUSER ALGUÉM A SUPORTÁ-LO.(...)A teoria da culpa, em nosso direito, continua a ser fundamental na definição da responsabilidade civil,com os alargamentos que a jurisprudência lhe tem trazido.Não se pode, contudo, dizer que a teoria do risco haja sido relegada. sua aceitação, limitada embora, éuma realidade admitida no direito moderno, e que o nosso sistema acolhe francamente em alguns casos,expressamente tratados na lei, em que o dever de reparação abandona totalmente a noção de culpa,para fixar-se na idéia do risco, ou na definição pura e simples da responsabilidade sem culpa. Em futuro,entretanto, é de se prever o desenvolvimento do princípio da responsabilidade para além da culpa.Onde encontra mais sólido supedâneo entre nós, é na legislação quanto a acidentes do trabalho, cujoraciocínio básico esta neste princípio: todo aquele que se serve da atividade alheia, e dela auferebenefícios, responde pelos riscos a que expõe quem lhe presta aquela atividade. DAÍ A REGRA QUEOBRIGA O PATRÃO A INDENIZAR OS ACIDENTES NO TRABALHO, SOFRIDOS POR SEUS EMPREGADOS,definindo-se como acidente qualquer lesão corporal, perturbação funcional ou doença, que cause amorte ou a perda total ou parcial, temporária ou permanente, da capacidade para o trabalho. Ninguémcogita da culpa do patrão, QUE É SEMPRE OBRIGADO À REPARAÇÃO DO DANO SOFRIDO PELO SEUEMPREGADO, POR OCASIÃO DO TRABALHO.” (grifos nossos).

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ACIDENTE DO TRABALHO - ACIDENTE “IN ITINERE” - FATOOCORRIDO DURANTE EXCURSÃO PROMOVIDA PELA EMPRE-SA EM DIA DE FOLGA POR ELA CONCEDIDO AOS EMPREGA-DOS - INFORTÚNIO CARACTERIZADO.

O Acidente sofrido pelo empregado, ainda que fora do local e horáriode trabalho, estando ele na prestação espontânea de qualquer ser-viço à empresa para lhe proporcionar proveito, deve ser equiparadocomo acidente de trabalho, para fins de concessão dos previstos nalei acidentária (Ap.Sum.143.944, 3ª Câm.,Rel.Juiz Murilo Pinto,j.22.2.1983, JTACSP, Ed. Lex, 81:248).

ACIDENTE DO TRABALHO - ACIDENTE “IN ITINERE” - EVENTOOCORRIDO EM VIAGEM A SERVIÇO DA EMPRESA - CARACTE-RIZAÇÃO.

Os acidentes ocorridos fora do local e horário de trabalho são alcan-çados pela lei Infortunística sempre que o empregado lá se encon-tra por exigência de sua atividade laborativa. Vale dizer, será tidocomo acidente do trabalho o evento que, envolvendo o trabalhador,possa ligar-se, ainda que indiretamente, aos interesses doempregador.(EI 162.143, 4ª Câm.,Rel.Juiz Accioli Freire, j.7-8-1984,JTACSP, Revista dos Tribunais, 93:330).

ACIDENTE DO TRABALHO - ACIDENTE IN ITINERE - EVENTOOCORRIDO EM VIAGEM PARA A CIDADE ONDE TRABALHAVA -CARACTERIZAÇÃO.

Tendo o obreiro que assumir sua função em cidade diversa da quereside, configura acidente in itinere o evento ocorrido durante a via-gem, sobretudo envolvendo o veículo da empresa que o transporta-va( Ap.s?Ver.250.969, 1ª Câm.Rel.Juiz Quaglia Barbosa, j.22-11-1989, JTACSP, Revista dos Tribunais, 123:336).

ACIDENTE DO TRABALHO - ACIDENTE IN ITINERE - PROVA -TESTEMUNHA - COMPROVAÇÃO DO ACIDENTE - NÃO COMU-NICAÇÃO AO INPS - IRRELEVÂNCIA.

Havendo prova oral positivando a existência do atropelamento dotrabalhador quando este saía do seu serviço, considera-se compro-vado o acidente in itinere, sendo que a falta da comunicação deste

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não pode ser interpretada contra o obreiro(Ap.Sum.198.200, 5ªCâm.,Rel. Juiz Sebastião Amorim, j.8.7.1987).

ACIDENTE DO TRABALHO - MORTE - EVENTO OCORRIDO ES-TANDO OBREIRO A SERVIÇO DA EMPREGADORA - CARACTE-RIZAÇÃO.

Caracteriza-se como acidente do trabalho a morte do obreiro ocorri-da quando este se encontrava viajando, a serviço da empregadora(Ap.Sum.191.242, 7ªCâm.Juiz Boris Kauffmann, j.24-6-1986.

( TST,RR 101.373/93.0 José Francisco da Silva, Ac.2ª T. 3.402/94).

”Os riscos da atividade econômica devem ser assumidos pelo em-pregador, sendo vedada a sua transferência, pura e simplesmente,ao empregado. A responsabilidade por um ato qualquer não podeser atribuída abstratamente. A empresa deve provar que o dano foicausado pelo empregado.”

CONCLUSÃO

Como dito, não se pretendeu estudo aprofundado sobre otema e sim breve anotações.

Conclui-se que, hodiernamente, tanto a doutrina quanto a ju-risprudência caminham para a adoção da Teoria Objetiva quando oempregado sofrer qualquer dano seja em trajeto destinado a caminhoda empresa, seja por viagens, em estudo ou a trabalho, aos interessesdela, deve o empregador indenizar fundado na teoria do risco-criadoou risco –proveito como se disse alhures.

Importante ressaltar que a Teoria Objetiva é mais justa, no atu-al contexto humanitário, para o ressarcimento, à pessoa humana, dosdanos que sofreu e não contribuiu para o evento dolosamente.

A inversão do ônus da prova, pela culpa presumida do empre-gador, é de suma importância na proteção do pólo mais fraco, o em-pregado, eis que, no mais das vezes, a prova da culpa é impossíveldada a subjetividade dos atos de vontade do empregador.

Encerrando estas breves anotações fica o convite para reflexão.

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REFERÊNCIAS

NORONHA. Carlos Silveira. in a responsabilidade de indenizar nassituações de perigo. Ajuris v.62.

BESSON.André. La notion de garde dans la responsabilité du fairdes choses. Paris, Dalloz,1927.p.5.

GONÇALVES.Carlos Roberto, Responsabilidade Civil. Ed.Saraiva.5ªEd. Pg. 18 especialmente a 29 e seguintes.

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CONFLITO APARENTE DE NORMAS E ART. 10 DA LEIN° 9.437/97

RUDI RIGO BÜRKLE

PROMOTOR DE JUSTIÇA NO ESTADO DO PARANÁ. MESTRANDO EMCIÊNCIAS JURÍDICAS [ FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO ] PELAUNIVALI [ ITAJAÍ - SC ].

RESUM0

O artigo cuida da questão do aparente conflito de normas decorrente da Leinº 9.437/97, principalmente no que diz respeito à falta de critério objetivadona legislação para a solução de tal conflito, já que a criação em torno doinstituto é meramente doutrinária e jurisprudencial. O autor aborda princípioscomo o da alternatividade, o da especialidade, o da subsidiariedade e o daconsunção. Estudando a jurisprudência, conclui o autor pela nãocaracterização de conflito aparente de normas, afirmando que o delito tipificadono artigo 10 da Lei 9.437/97 deverá ser objeto de sanção autônoma comoregra e, excepcionalmente, quando descrito em algum outro tipo penal comoelementar ou circunstância do delito, deverá estar sujeito aos primados doconflito aparente de normas e, por conseqüência, não será objeto de sanção,restando absorvido.

ABSTRACT

The article takes care of the apparent conflict of rules coming from the Act #9.437/97 , mainly about the lack of criteria goaled in statutes for the solutionof such conflict, since the creation about the institute is only doctrinaire andjurisprudential. The author talks about some principles: the alternativelyprinciple, skill one, subsidiary and weakly principles. Studying thejurisprudence, the author concludes there is no characterization of apparentconflict of rules, saying that the specific crime in article 10 from Act # 9.437/97 must be object of autonomous sanction as a rule and, exceptionally ,when described in another specific penal as elementary or circumstance ofcrime , must be under the priority of apparent conflict of rules , and, as aconsequence , it won’t be object of sanction , being acquitted.

PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; conflito de normas; princípios deDireito Penal.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Com a promulgação da Lei n° 9.437/97, retomou-se o debatesobre o conflito aparente de normas, ou melhor, ganhou novo fôlego a

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discussão, tendo em vista que os casos mais comuns de sua aplicaçãoestavam diretamente ligados ao instrumento do crime e, em especial,as armas de fogo, pois que sempre teve regulamentação própria seuporte e registro, assim como também sempre fora grande a preocupa-ção das autoridades públicas em restringir o acesso dos cidadãos aesses armamentos.

E foi exatamente essa preocupação com a segurança públicaque trouxe a lume novas discussões sobre a regulamentação da propri-edade e porte de armas de fogo, na qual alguns sustentam a necessida-de da proibição plena de propriedade e porte; outros, preocupados como aumento da violência pessoal, afirmam que se deveria possibilitar oacesso de determinados cidadãos às armas de fogo, em razão, princi-palmente, de sua atividade, para segurança individual; e outros, ainda,mais céticos e conscientes da ineficiência estatal em garantir a segu-rança pública, buscam a liberação ampla das armas de fogo.

Porém não é essa a abordagem que se pretende no presentetexto, busca-se, situar juridicamente, o resultado da reforma legislativa,verificar qual deverá ser o alcance da norma que criminalizou a propri-edade e o porte ilegal de arma de fogo, até então considerada apenascontravenção penal, e a apenou mais severamente, prevendo a apli-cação de pena privativa de liberdade de 1 (um) a 4 (quatro) anos dereclusão.

De várias formas o tema já fora abordado após a entrada emvigor da Lei n° 9.437/97, algumas, a meu ver, fogem diretamente doproblema, por exemplo, afirmando que não é necessário enfrentar oconflito aparente de normas porque se pode e deve punir a conduta nomomento em que somente está a ocorrer o delito tipificado no art. 10da referida lei195 e, no segundo momento, as demais condutas, portan-to, desvinculando os atos antecedentes dos conseqüentes; enquantooutros apenas o contornam, pois não analisam o próprio conflito denormas, apenas qual das espécies entendem cabíveis ao caso, como195

Lei 9.437/97Art. 10 - Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, terem depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sobguarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinaçãolegal ou regulamentar. Pena - detenção de um a dois anos e multa.

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se o instituto fosse regulamentado.Conflito aparente de normasEm se buscando enfrentar o tema, é preciso ressaltar, inicial-

mente, que não há critério objetivado na legislação para solução do con-flito aparente de normas, a criação em torno do instituto é meramentedoutrinária e jurisprudencial, o que exige, portanto, que se faça uma revi-são conceitual do instituto, inclusive o diferenciando do concurso de cri-mes que é exatamente o seu revés.

Pois, como bem ensina Damásio E. de Jesus, “a ordem jurídica,constituída de distintas posições, é ordenada e harmônica. Algumas leissão independentes entre si, outras se coordenam de forma que se inte-gram ou se excluem reciprocamente. Não raro, precisa o intérprete re-solver qual das normas do ordenamento jurídico é aplicável ao caso edeverá fazê-lo para que torne o ordenamento completo196 .

Assim, é necessário definir se o que ora se perscruta é umasituação que se “subsume efetivamente em diversos tipos penais -concurso de crimes, ou se, ao revés, existe uma unidade típica que aobriga, embora aparentemente haja uma concorrência de tipos legaispara a adequação”197 - concurso aparente de normas.

Refere Nelson Hungria: “Ou o fato, apesar de unitário no seuprocesso material, é idealmente fragmentável, de modo que, conside-rado em suas partes representa violação concomitante de normas dis-tintas e autônomas (concurso formal de crimes), e então não há falar-seem conflito, pois todas as normas violadas têm aplicação simultânea(embora unificadas as penas, segundo o chamado “cúmulo jurídico”); ouo fato incide sob várias normas, mas estas apresentam entre si uma talrelação de dependência ou hierarquia, que só uma delas é aplicável,ficando excluídas ou absorvidas as outras”198 .

Ou ainda como lecionado por outros doutrinadores, de que tantono concurso aparente como no concurso formal, um mesmo fato estáconforme com dois tipos legais. No entanto, enquanto no concurso apa-rente as diversas partes do fato, correspondente, aos dois tipos legais

196 DE JESUS, Damásio E., Conflito Aparente de Normas, RT 415, maio 1970, p. 26;

197 PEDROSO, Fernando de Almeida, Conflito Aparente de Normas Penais, RT 673, p. 291/303;

198 HUNGRIA, Nelson, Comentários ao Código Penal, pp. 118/119;

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são as mesmas, no concurso formal uma parte do fato corresponde igual-mente aos tipos legais, e as outras partes do fato se conformam uma aum tipo legal e a outra a outro. Quer dizer, no concurso formal as duasdisposições tomam em consideração uma mesma parte do fato, e, alémdisso, cada uma distinta parte do fato mesmo.

Damásio E. de Jesus bem sintetiza o tema ao afirmar que doissão os pressupostos da concorrência de normas: “1ª - a unidade defato; 2ª - pluralidade de normas identificando o mesmo fato comodelituoso” e que inexistindo qualquer deles, não há conflito aparente denormas.199

Princípios norteadores do conflito aparente de normasPara que, no entanto, haja melhor compreensão do conflito

aparente de normas, faz-se necessário o estudo dos princípios que onorteiam, elencados, pela maioria da doutrina em número de quatro; oda alternatividade, o da especialidade, o da subsidiariedade e o daconsunção.

O princípio da especialidade tem por base o aforismo “lexspecialis derogat generali, semper specialia generalibus insunt; generiper speciem derogatur”. “Há relação de especialidade entre tipos le-gais delitivos sempre que um deles, comparado com o outro, contiveros mesmos elementos descritivos e circunstâncias essenciais, com aadição, porém, de outros caracteres, chamados elementosespecializantes. Estabelece-se, de tal arte, a correlação entre tipo ge-ral e tipo especial, envergando este todas as características daqueles,contudo com acréscimos especiais”200 .

Citam-se como exemplos da relação de especialidade: oinfanticídio (art. 123) em relação ao homicídio (art. 121); estupro (art.213) em relação ao constrangimento ilegal (art. 146); peculato (art. 312)em relação a apropriação indébita (art. 168)...(todos do Código PenalBrasileiro).201

199 DE JESUS, Damásio E., Conflito Aparente de Normas, RT 415, maio 1970, p. 26;

200 PEDROSO, Fernando de Almeirda, Conflito Aparente de Normas, RT 673. p. 293. Nov. 1991;

201 Código Penal Brasileiro:

Art. 121 - Matar alguém:Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após:

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Já pelo princípio da subsidiariedade, “a norma primária preferea subsidiária. Esta é a que pré-figura como crime um fato que outra nor-ma inclui na previsão legal de delito mais grave, como circunstância qua-litativa, agravante ou meio prático do proceder. ‘Lex primaria derogatlegi subsidiariae’. O delito contemplado pela norma subsidiária não sóé menos grave do que disposto na principal, mas dele difere quanto aomodo de execução, pois corresponde a uma parte desta. Nessas condi-ções, a figura subsidiária está inclusa na principal”. 202

A subsidiariedade pode ser expressa, quando declarada for-malmente em lei (ex.: arts. 238, 239, 249, 307, todos do Código PenalBrasileiro) ou tácita, quando a norma não condiciona taxativamente àinsubsistência do delito principal [ex. o crime de dano (art. 163) é sub-sidiário do furto qualificado (art. 155, § 4º, I)...] (todos artigos citadosdo Código Penal Brasileiro)203.

Pena - detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido,por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o queela não manda:Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa;Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ouparticular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.202

STEVENSON, Oscar. Conflito Aparente de Normas, Rev. Forense, p. 31;203

Código Penal Brasileiro:Art. 121 - Matar alguém: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.Art. 129 - Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1(um) ano.Art. 130 - Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstiavenérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um)ano, ou multa.Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: § 4º - A pena é de reclusão de 2 (dois) a8 (oito) anos, e multa, se o crime é cometido: I - com destruição ou rompimento de obstáculo à subtraçãoda coisa;Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, oumulta.Art. 238 - Atribuir-se falsamente autoridade para celebração de casamento: Pena - detenção, de 1 (um)a 3 (três) anos, se o fato não constitui crime mais grave.Art. 239 - Simular casamento mediante engano de outra pessoa: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três)anos, se o fato não constitui elemento de crime mais grave.Art. 249 - Subtrair menor de 18 (dezoito) anos ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda emvirtude de lei ou de ordem judicial: Pena - detenção, de 2 (dois) meses a 2 (dois) anos, se o fato nãoconstitui elemento de outro crime.

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O princípio da alternatividade, ao contrário do que pensam al-guns, incidirá no caso de concorrerem normas idênticas e não normasque se opõem, porque aí bastaria recorrer à tipicidade para solução doproblema. Para reconhecê-lo é necessário que os valores assegura-dos pelas regras que concorrem sejam equivalentes.

Exemplificando, para melhor compreensão, podemos dizer quesão “absolutamente iguais, do ponto-de-vista fático e jurídico, a tentativade homicídio ou lesão corporal com dolo eventual e os crimes de perigoconcreto consumados do art. 130 e s.s. do Código Penal Brasileiro. Quemquer causar perigo concreto à vida ou à saúde de alguém está assumin-do o risco de praticar os crimes do art. 121 ou do art. 129 da legislaçãopenal pátria”.204 205

Já pela regra da consunção, “lex consumens derogat legiconsumptae”, ocorre uma continência de tipos, restando alguns tiposabsorvidos e consumidos por outros, denominados consuntivos, den-tro de uma linha evolutiva ou de fusão, que os condensa numa relaçãode continente e conteúdo.

“Pelo princípio da consunção ou absorção a norma definidorade um crime, cuja execução atravessa fases em si representativas dodelito previsto em outra, exclui, por absorção, a aplicabilidade desta,bem como de outras que incriminem fatos anteriores e posteriores doagente, efetuados pelo mesmo fim prático”. 206

Exemplo da relação consuntiva é a absorção do delito tentadopelo consumado ou do furto qualificado (art. 155, § 4º, I) pelo delito dedano (art. 163),todos artigos do Código Penal Brasileiro207 .

Art. 307 - Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio oualheio, ou para causar dano a outrem: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa, se ofato não constitui elemento de crime mais grave.204

Código Penal Brasileiro:Art. 121 - Matar alguém: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.Art. 129 - Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.205

ROSA, Fábio Bittencourt da, Conflito Aparente de Normas, RT 537, julho 1990, p. 252;206

STEVENSON, Oscar. Conflito Aparente de Normas, Rev. Forense, p. 31;207

Código Penal Brasileiro:Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:§ 4º - A pena é de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, se o crime é cometido:I - com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

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Vê-se, portanto, necessário para o reconhecimento daconsunção que o crime-meio integre ou seja caminho para o crime-fime que também esse crime-meio possa ser identificado nas elementa-res ou demais circunstâncias do crime-fim, ou seja, haja uma diretarelação entre ambos, tanto o é, que alguns autores não lhe reconhe-cem “substantividade própria e distinta do da especialidade esubsidiariedade, porque os casos que envolve podem todos enqua-drarem-se em um ou outro desses critérios”. 208

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não sendo o porte ilegal de arma de fogo elementar ou circuns-tância de outro crime, consumado ou tentado, em que pese possa, se oreconhecer como crime-meio, uma vez praticado no desfecho dos fatosque culminaram com o delito, não se o poderá considerar absorvido e,portanto, não há carcaterização de conflito aparente de normas.

Outro já não era, inclusive, o entendimento esboçado pelos tri-bunais quando o delito de porte ilegal de arma ainda era contravençãopenal:

“As contravenções de porte de arma e de disparo de arma defogo são independentes, desde que, a última subsiste, ainda que não ocor-ra a primeira, não há como falar em absorção daquela por esta.” 209

“Só a licença da autoridade competente poderá retirar ao por-te de arma a conotação da antijuridicidade. A infração do artigo 19 daLCP não é absorvida pelo delito de lesões corporais culposas, pratica-das com a arma portada ilegalmente.” 210

“O crime de roubo a mão armada não absorve a contravençãode porte ilegal de arma, uma vez que se trata de infração anterior einteiramente autônoma.” (TACRIM - SP - AC - Rel. Ferreira Leite) 211

Outro argumento que se deve considerar é que a utilização dearma, embora seja meio empregado para a prática delitiva, não estavaa exigir que a mesma fosse ilegal ou seu porte desautorizado, ou me-

208 ROSA, Fábio Bittencourt da, RT 537, julho 1990, p. 252;

209 RT 454/399;

210 JUTACRIM 12/178;

211 JUTACRIM 026/318;

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lhor, o fato anterior impunível, restringe-se à posse de arma com registro eautorizada, portanto, o detentor ou possuidor de arma de uso permitidoque não tenha autorização ou o faça em desacordo com determinaçõeslegais ou regulamentares, pratica sim, em concurso material, o delito des-crito no artigo 10 do supracitado diploma legal, pois que consideraçãodiversa implicaria em dar tratamento igualitário para o que pratica o crimecom a arma legal e aquele que já, inicialmente, agia na ilegalidade.

Caso não sejam os argumentos suficientes para firmar o con-vencimento sobre a correta aplicação dos princípios que dirimem oconflito aparente de normas, ter-se-ia de questionar: aos que dão maisamplitude ao instituto, qual o posicionamento quando alguém, utilizan-do-se de uma arma de fogo, sem registro ou porte, para praticar o delitode lesão corporal leve? Punir-se-ia apenas a lesão corporal ou tambémo porte ilegal de arma de fogo? Como seria enfrentado o fato de sedeixar de punir crime mais grave em razão da consunção? Pois senãoveja-se.

Código Penal:

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.

Lei n.º 9.437, de 20-02-97

Art. 10. Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, exporà venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder,ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sobguarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorizaçãoe em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Pena - detenção de um a dois anos e multa.Por este último argumento resta evidenciado que a compreen-

são, sobre o conflito aparente de normas, diversa da preconizada nestetexto, poderá nos conduzir ao absurdo de não punirmos delito maisgrave, como exemplificado, para que se puna o “delito-fim”, de menorrelevância e com menor pena prevista.

Feitas essas considerações é possível afirmar que o delitotipificado no artigo 10 da Lei 9.437/97 deverá ser objeto de sanção au-

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tônoma como regra e, excepcionalmente, quando descrito em algum outrotipo penal como elementar ou circunstância do delito deverá estar sujei-to aos primados do conflito aparente de normas e, por conseqüência,não será objeto de sanção, restando absorvido.

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OS FURTOS TENTADOS NOS MODERNOSESTABELECIMENTOS DE VENDA A VAREJO NA

REALIDADE ATUAL

SILVIO COUTO NETO

PROMOTOR DE JUSTIÇA EM PONTA GROSSA. ESPECIALISTA EMDIREITO PROCESSUAL PENAL PELA PUC-PR. MESTRANDO EMCIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PELA UEPG. EX-PROFESSOR DEDIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITOCONSTITUCIONAL DA UEPG, DA FEMPAR E DA ESCOLA SUPERIORDA MAGISTRATURA.

RESUMO

O artigo trata da aplicação do tipo penal do furto, em sua modalidade tentada,em grandes estabelecimentos varejistas. O autor desenvolve o tema não apartir de uma visão positivista do Direito Penal, mas destacando a necessidadeda observação do contexto social em que se dá a ação analisada e a posterioraplicação da norma penal. Em sua conclusão, o autor culmina pelaconfiguração de um ato despido de potencial ofensivo, que não ofende anenhum bem jurídico relevante.

ABSTRACT

The article is about the application of what penal of larceny , in its triedmodel, in big stores. The author develops the issue not from a positivistvision of Criminal Law , but pointing to the necessity of observation of thesocial context in which happens the analyzed action and posterior applicationof the rule of penal . Concluding , the author points to the configuration ofan act without the offensive potential , it doesn’t offend any important juristicproperty.

PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; furto; potencial criminal ofensivo.

INTRODUÇÃO

O objetivo destas linhas é uma breve reflexão a respeito da apli-cação da lei penal, mais especificamente, da aplicação do tipo penal dofurto, em sua modalidade tentada, em uma situação bastante comumcom a qual se deparam no dia-a-dia os operadores do direito, que éaquela, na qual se apresenta como vítima, um grande hipermercado ououtro estabelecimento semelhante, que vende a varejo produtos indis-

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pensáveis à própria manutenção da vida e, ao lado disso, têm um siste-ma de segurança tão sofisticado e equipado que chega a lembrar aobra “1984”, de George Orwell, que fala do “Big Brother”.

Mais que isso, buscamos a análise dessa conduta humana que,em uma primeira observação nos leva a conclusão que se subsume aum tipo penal (subsunção mediata pela aplicação do artigo 14, II doCódigo Penal, é verdade), à luz de alguns fatores que serão comenta-dos no desenvolvimento de nosso raciocínio.

Entre esses fatores, nos parece que três não podem ser, emhipótese alguma, abstraídos do contexto em que, de regra, se dão taiscondutas, a saber: 1) a atual situação social vivida pela imensa maioriada população brasileira, que podemos estabelecer, à luz dos maiscomezinhos dados empíricos e sem necessidade de muita demonstra-ção e estudo, como de abandono pelos serviços estatais (apesar daspropagandas oficiais), de desesperança e falta de perspectiva de umfuturo mais digno, para cada indivíduo e sua família; 2) a natureza dosprodutos que se tenta subtrair de forma totalmente ingênua, e a efetivalesão – ou não - a um bem jurídico relevante, que mereça a tutela dodireito penal; e 3) a fantástica técnica de segurança empregada nessesgrandes estabelecimentos de venda a varejo, onde, entre outras coisas,existem sistemas de monitoramento por câmeras de vídeo ligadas acircuitos internos, vigiadas por pessoal treinado; circulação de seguran-ças ostensivos e dissimulados; existência de sensores que disparam oalarme quando mercadorias são retiradas dos mercados sem passa-rem pelos caixas para terem seus sistemas de alarme desativados, bemcomo seguranças que ficam nas saídas dos estabelecimentos para im-pedir que dali possam evadir-se pessoas que ao sair tenham disparadoo alarme (e que não raras vezes são responsáveis por situações deenorme constrangimento, quando há falha na retirada dos alarmes demercadorias e clientes que pagaram, são publicamente tratados comose estivessem tentando praticar furtos), ou surpreendidas pelas câmerasde vigilância.

DOGMÁTICA PENAL E POLÍTICA CRIMINAL

Pela simples aplicação mecânica de subsunção das condutas

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humanas às regras dispostas nas leis penais (no caso em análise, noCódigo Penal), não haveria dúvida que por uma operação de subsunçãomediata, como afirmamos acima, a conduta de alguém que, v.g. ocul-tando de qualquer modo uma determinada mercadoria, de regra de pe-queno valor, em suas roupas, sacolas, bolsas, etc, as tenta subtrair parasi de um determinado estabelecimento comercial, sendo surpreendidopor seguranças que invariavelmente frustram a ação e recuperam osprodutos, estaria praticando uma ação que poderia ser tipificada comofurto tentado.

Entretanto, não podemos compartilhar da clássica e já supera-da visão positivista do direito penal, que separa completamente essaobservação do contexto social real em que se dá a ação analisada e aaplicação da norma penal.

A escola do positivismo jurídico, certamente tem como seu mai-or expoente o prestigiado Hans Kelsen que, embora autor de inúmerose brilhantes trabalhos, entre eles a “bíblia” do positivismo jurídico, a “Te-oria Pura do Direito”, vem sendo há muito tempo contestado em suavisão hermética do mundo do “dever-ser” alheio completamente ao mundoreal, ou seja o mundo do “ser”.

O positivismo jurídico, segundo depreendemos, surge a partirda necessidade do direito se consolidar como uma ciência e, por issomesmo, com a necessidade de identificar seu “objeto próprio”. Tal es-cola jurídica foi inspirada, por um lado na visão cientificista do mundo,que se dá principalmente no século XIX, onde o que não era conceitu-ado ou conceituável como ciência não tinha prestígio junto à elite inte-lectual e perdia poder na própria sociedade e, por outro lado, encon-trando respaldo no positivismo filosófico, que para dizermos de umamaneira muito superficial, buscava explicações científicas de “causa eefeito”; evidentemente que este, por sua vez, sofrendo influência dasciências exatas, especialmente da física.

Assim, nada mais natural que transpor para o mundo jurídicouma visão inflexível de que o direito e seus aplicadores, deveriam sedesvencilhar de qualquer visão da realidade exterior, concentrando-seespecificamente em seu objeto, que seriam apenas as normas jurídicas

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positivadas, e fazer a aplicação mecânica dos casos apresentados aodireito posto.

É bem verdade que o próprio Kelsen, nas várias reedições desua obra acima mencionada, vai flexibilizando tal posicionamento, ad-mitindo a visão do real em alguns casos, segundo ele, em que não setratasse de uso científico do direito.

Todos sabemos que o próprio Kelsen é vítima de sua postura,quando afirma que do ponto de vista científico, a própria legislação na-zista era legítima, apesar de ser perseguido pelos nazistas e ter queviver exilado nos Estados Unidos da América.

No direito penal, essa visão positivista encontra na época, poróbvio, inúmeros e ilustres adeptos, que cuidam de difundi-la. Nesse pen-samento, o social e o político são completamente afastados da aplica-ção da lei penal, restando ao operador do direito, tão só a analise dofato e as normas penais atinentes à espécie. Dito de outro modo, a par-tir da criação do conceito de tipo penal e do nascimento da visão analí-tica de crime, o operador do direito penal deveria simplesmente, verifi-car se a ação se amolda às fórmulas, fórmulas estas que evidentementevão evoluindo com o passar do tempo.

Entre os expoentes do positivismo jurídico no direito penal,vale lembrar o brilhante Franz von Liszt que - e sem que vá aqui ne-nhum desdouro à sua brilhante obra, condizente com a época em quefoi produzida e em muitos aspectos até hoje de inestimável valor -afirmava, conforme nos demonstra ROXIN (2002)212 , que o direito pe-nal só poderia ser considerado como ciência enquanto se ocupasseda análise jurídico-conceitual das figuras positivadas no sistema e queapenas a política criminal deveria se preocupar com os conteúdos so-ciais e fins do direito penal.

Superado o tempo em que havia a imperiosa necessidade deestabelecer o direito como ciência, e mais, que para tal tarefa era mis-ter manter-se o jurista preso àquilo que se considerava o objeto exclu-sivo do direito, qual seja, a norma positivada, não há mais razão para

212 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico penal, tradução: Luiz Greco, Rio de Janeiro:

Renovar, 2002, 118 pág.

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o medo das considerações políticas e sociais quando da aplicação dalei, não há como deixar de observar-se a realidade que cerca o fatoaparentemente típico quando de sua subsunção às normas, sob penade estar-se incorrendo em enorme injustiça pela aplicação cega da leiigualmente a situações desiguais.

Esse o entendimento também de um dos maiores (se não omaior) doutrinador do direito penal da atualidade, o brilhante e já citadoROXIN (2002, pág. 14-15 e 20), que afirma

“...deve ser reconhecido também no direito penal – mantendointocadas e completamente íntegras todas as exigências garantísticas– que problemas político criminais constituem o conteúdo própriotambém da teoria geral do delito. O próprio princípio ‘nullum-crimem’possui, ao lado de sua função liberal de proteção, a finalidade defornecer diretrizes de comportamento; através disto, torna-se ele umsignificativo instrumento de regulação social.” E mais adiante pros-segue “De todo o exposto, fica claro que o caminho correto só podeser se deixar as decisões valorativas político-criminais introduzirem-se no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentaçãolegal, a clareza e a previsibilidade, as interações harmônicas e asconseqüências detalhadas deste sistema não fiquem a dever nadaà versão formal-positivista de providência lisztiana. Submissão aodireito e adequação a fins políticos-criminais (kriminalpolitischeZweckmässigkeit) não podem contradizer-se, mas devem ser uni-das numa síntese, da mesma forma que Estado de Direito e EstadoSocial não são opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidadedialética: uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado deDireito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação Esta-do Social um Estado planejador e providencialista que não acolhaas garantias de liberdade do Estado de Direito.” 213

Desse modo, utilizando-nos das normas penais positivadascomo limite máximo de punição, ou seja, partindo-se da observaçãodo princípio constitucional da reserva legal, da impossibilidade de sepunir se não quando a lei antecipadamente o permita, acatando-se oCódigo Penal como “a magna carta do delinqüente” como bem

213 Ob. cit., pág. 14-15 e 20.

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conceituou LISZT214 , podemos buscar efetivamente uma justiça subs-tancial, apanhando dados da realidade em que ocorrem os fatos e ade-quando cada comportamento ao seu real contexto, com liberdade paradeixar de aplicar a norma positivada, quando razões de política criminalassim demonstrem correto.

Por isso mesmo, nos casos em que miseráveis tentam subtra-ir pequenas mercadorias de grandes (hiper) mercados, não há comodeixar de observar a real situação em que tal conduta se deu, para so-mente depois, concluirmos se é ou não o caso de persegui-los buscan-do a aplicação da sanção penal.

E na busca dessa contextualização, necessariamente temosque passar pela análise do perfil do indivíduo que, de regra, pratica taltentativa de subtração, bem como considerar os motivos que ordinaria-mente o levam a tomar essa atitude irregular.

A NORMA PENAL E A REALIDADE SOCIAL DA GRANDE MAIORIADOS AUTORES DE TAIS FURTOS TENTADOS

Também numa visão positivista (agora filosoficamentepositivista) do homem que tenta subtrair mercadorias em um estabele-cimento comercial, poderíamos entendê-lo (aliás como faz mesmo acriminologia clássica ou positivista) como alguém desprovido dos frei-os psíquicos que impedem a prática de atos reprováveis ou que,deliberadamente, por ser uma pessoa que não tem apego às regrasde comportamento social, agindo impulsionado por uma tendência cri-minosa, por uma personalidade voltada ao crime, adota o comporta-mento “desviante”. Em síntese, por uma decisão individual, resolvedelinqüir.

A realidade, porém, é muito mais rica que essa pobre visãomencionada. Assim, entendemos indispensável uma rápida análisedialética do comportamento comentado, apresentando à tese positivistauma despretensiosa antítese, mais harmônica, com o pensamento dacriminologia crítica, buscando os reais e múltiplos fatores envolvidosno fenômeno, procurando ao menos as determinantes mais próximas

214 LISZT, Franz von, apud ROXIN, Calus. Ob. Cit. Pág. 3

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envolvidas na gênese desse comportamento.Primeiramente, enfocaremos o próprio indivíduo que age des-

sa maneira. Poderemos observar que, em muitos casos, é uma pessoaprimária e sem antecedentes, que apenas circunstancialmente se vêenvolvida com um comportamento teoricamente criminoso; é também,de regra, alguém sem esperanças de uma vida minimamente digna, bemcomo portador de uma idéia do Estado e da sociedade como inimigos,conforme veremos logo adiante.

Tais ponderações, imediatamente nos remetem a uma próxi-ma dimensão, na qual o fenômeno está inserido: o local em que viveesse homem; veremos que de regra, mora na cidade. Certamente quese pode, nessa dimensão, questionar o motivo que o faz um homemurbano: raramente o será por livre opção, na maioria das vezes é pornascimento e sem alternativas para deixar a cidade ou, quando nascidono campo, dele foi “expulso” pela falta de condições de lá se fixar, sendoum, ou descendente de um dos milhares que vieram para a urbe embusca de uma vida melhor e que nunca a encontraram.

Não se pode deixar de considerar que a cidade em que vive, éde médio a grande porte, diluindo os relacionamentos inter-subjetivos,onde o indivíduo sente-se tão-somente mais um na multidão, um nú-mero nas estatísticas, perdendo a sensação de que é parte de algomaior, cuja harmonia é indispensável para a felicidade de todos. Emais, na sociedade atual, eufemisticamente chama-se competitividadea necessidade de ser individualista, vale dizer, não se estimula real eefetivamente os valores comunitários, antes se diluem tais valores,acentuando-se o viés individualista.

Nesse mesmo contexto, é perceptível que, pelo fato de viverna cidade, por um lado, ele torna-se alvo de inúmeras formas de publi-cidade, que lhe impõem maciçamente padrões de comportamento elhe desenvolvem no imaginário a necessidade de, como já afirmouGALEANO215 “ter para ser” e, por outro, impede que satisfaça suasnecessidades básicas e as de sua família, através de sua própria inici-

215 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso, tradução de Sérgio Faraco,

Porto Alegre: L&PM, 1999.

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ativa, seja plantando ou criando animais. Assim, vivendo na cidade, necessariamente terá que deter ca-

pital e, dessa maneira, explorar o trabalho alheio ou, ao contrário, ven-der seu próprio trabalho, buscando a remuneração com a qual poderásatisfazer tais necessidades.

Tal assertiva nos leva ao próximo ponto a ser observado: aclasse social a que pertence o agente e o situaremos, com raríssimasexceções, como integrante da classe economicamente (mas não sóeconomicamente) excluída, que não tem acesso aos mais básicos eelementares direitos, assegurados retoricamente pela Constituição Fe-deral como: educação, saúde, moradia, trabalho, etc.

Procuraremos, então, saber como produz seu sustento e de suafamília (em regra numerosa pela falta da assistência teoricamente ga-rantida pela Carta Magna), e veremos que excluída a via ilícita da sub-tração, ora em observação, lhe restará apenas a esmola e as latas delixo. Ele não tem educação, ele não tem qualificação profissional e,portanto, é um elemento descartável para a sociedade atual. Os em-pregos, ainda que mais simples, estão ocupados por pessoas maisqualificadas.

Portanto, o mesmo sistema que lhe garante, em tese, todos osdireitos, lhe nega, na prática, esses mesmos direitos, e ainda lhe retiraqualquer possibilidade de vida digna. Por outro lado, exige-lhe o cum-primento de preceitos normativos, os quais, ele próprio, Estado, cria ese encarrega de violar, com conseqüências trágicas para esse agenteda tentativa de subtração.

É a tirânica imposição de uma conduta com o exemplo de ou-tra oposta. Ora, se o próprio Estado, que produz as normas não ascumpre, que se dispõe a ser um Estado de Bem-Estar Social em suaCarta Magna, mas nunca chega próximo a isso, como pode esse de-sesperado cidadão observar tais regras?

E ainda, a sociedade, pela mídia, impõe como meta de consu-mo e de felicidade a adoção de certos padrões: de beleza, de juventu-de eterna (certamente inatingível), da posse de determinados bens(cada vez em maior número, mais caros e mais descartáveis) e lhe

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fecha as portas quando pretende obtê-los.Daí o ódio e a revolta, a forma de ver a sociedade e o Estado

como inimigos, mencionada anteriormente, na análise do homem.Sabe-se que essa postura de abandono pelo Estado, que só

age como repressor e não provê o bem estar constitucionalmente pro-metido; de descarte pela sociedade em que o indivíduo, não tendocapacidade de consumo, é considerado um “não-ser”, estão motiva-das por uma ideologia que se impõe na atualidade, o neoliberalismo,cuja abordagem foge aos modestos propósitos deste trabalho, quepretende se ater apenas às sobredeterminações mais próximas.

Dessa forma, observamos que com a junção de todas essasdeterminantes, chegamos a uma imagem certamente diferente daque-la que o concreto figurado inicial nos mostrava, voltando agora àqueleponto de observação com outra forma de ver, podendo situar a ação dohomem que tenta furtar numa realidade mais conectada com as diver-sas causas que a produzem e ter um concreto, agora sim, muito maisreal, vez que pensado, conhecendo-o na sua essência, envolto por di-versas totalidades.

Nota-se que as mercadorias que são objeto de tentativa defurto, são sempre necessidades dos agentes que tentam subtraí-las,sejam necessidades vitais e indispensáveis à sobrevivência animal,como alimentos, sejam produtos de consumo “obrigatório” pelas ne-cessidades psicológicas criadas pela grande mídia, pelos “magos domarketing”.

Mas essas mercadorias, conquanto sejam necessidades paraesse homem, de regra são produtos de pequeno valor econômico, quemuito pouco podem representar para o patrimônio de uma grandeempresa.

Não há como deixar de se recordar, neste ponto, o adágio po-pular, utilizado pelo Desembargador Nogueira Camargo em lapidardecisão, que afirma: “quem rouba um pão é ladrão, quem rouba um mi-lhão é barão”216

Isso nos leva as considerações quanto ao bem jurídico lesado.216

FRANCO, Alberto Silva, et alli. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, 3ª edição, pág. 876,São Paulo: RT, 1993.

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O BEM JURÍDICO LESADO E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Longe vão os tempos em que se punia alguém pela prática deum “pecado”. Como sabemos, em épocas passadas, marcadamentena Idade Média, punia-se pelo simples fato de um comportamento con-trariar as leis (à época do Estado teocrático), em que o comportamentoem desacordo com a norma era contrário “à vontade de Deus”, mere-cendo por isso mesmo castigo, que inclusive, se acreditava, eximia oréu do pecado e lhe permitia a salvação da alma.

Em nossos dias, e desde o movimento Iluminista, dissocia-setotalmente o direito dos embasamentos teológicos, somente se admitepunir com um fundamento social. Daí as diversas justificativas para aaplicação da pena, seja de prevenção geral ou especial, seja de retri-buição.

Mais do que isso, porém, além de uma função social da pena,a própria eleição do comportamento a ser alçado à condição de crime,como tipo penal, deve se fundamentar no fato de ameaçar algum bemjuridicamente relevante.

Tal formulação vem com as teorias neokantianas, quando pas-sou-se a defender que na formulação do tipo deveria se ter em conta oaspecto teleológico do direito penal, em seu sentido de proteção debens jurídicos.

No início desta (então) nova fase do Direito Penal, o conteúdoque se apresenta é o do delito como violação de um direito subjetivovariável, de acordo com a espécie do delito, pertencente à pessoafísica, individual, direta ou imediatamente ofendida por tal ato ilícito.

O Direito Penal iluminista se expressou na teoria jus-privatista,da lesão de um bem/direito subjetivo. A conseqüência disso foi a afirma-ção do caráter acessório e sancionatório do Direito Penal e a noção dailicitude como a razão de ser do delito. Tal posição corresponde à ideo-logia liberal dominante à época.

Só posteriormente, desenvolve-se a concepção de que o deci-sivo para a tutela jurídica era a existência de um bem, assentado nomundo da realidade, importante para a pessoa e para a coletividade,que pudesse eventualmente ser lesionado por uma ação delitiva.

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Atualmente, conforme leciona PRADO (1997)217 , reconhece-sede maneira pacífica que o objetivo primordial do direito penal é a prote-ção de bens jurídicos, essenciais aos indivíduos e à comunidade. Atua odireito penal pelos princípios, dentre outros, da personalidade, da culpa-bilidade, pelo império da lei formal, como a “ultima ratio” em um EstadoDemocrático de Direito, e não podendo vir dissociado da noção de bemjurídico, sendo considerado legítimo constitucionalmente, quando soci-almente necessário.

A noção de bem jurídico, implica a realização de um juízo po-sitivo de valor, a respeito de uma determinada situação social ou obje-to, e de sua relevância para o desenvolvimento do ser humano.

Não pode ser um paradigma abstrato, desvinculado do mundoexterior, em respeito à dignidade da pessoa humana, que repousa so-bre os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade.

Ao lado da noção de bem jurídico, indispensável lembrar ou-tros dois princípios fundamentais das modernas doutrinas penais: asubsidiariedade e a fragmentariedade do direito penal.

Para dizer muito rápida e superficialmente o que seriasubsidiariedade, vale lembrar-se que dentro dos diversos ramos dodireito, o direito penal é apenas uma das muitas formas de se qualifi-car como ilícita uma conduta. Assim, por exemplo, o adultério, aindaque descriminalizado não seria lícito, vez que há preceitos cíveis quedisciplinam as obrigações de fidelidade recíproca entre os cônjuges.

De sorte que o direito penal, como “braço armado do direito” 218 ,só deve ser chamado a atuar quando todos os demais ramos do direitoforem insuficientes para coibir ou reparar eventual conduta ilícita.

Além disso, existem ainda os diversos “filtros sociais” que limi-tam a ação das pessoas, como a moral, a religião etc. QUEIROZ (1998,pág. 77) afirma que “Pode-se, assim, falar de subsidiariedade lógico-sistemática, considerando-o (o direito penal) em face do próprio direito,e em subsidiariedade sociopolítica, tendo-se em vista a ordem social, o

217 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e constituição, 2ª ed. revista e ampliada, São Paulo, Ed.

Revista dos Tribunais, 1997.218

A expressão é de PEREZ, Luiz Carlos apud QUEIROZ, Paulo de Souza, Do caráter subsidiário dodireito penal, lineamentos para um direito penal mínimo, pág. 71, Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

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sistema social global de controle.”219

E por fragmentariedade, pode-se entender, dito também de ma-neira muito rápida, que o direito penal só deve ser chamado a agir, não sórespeitando o princípio da subsidiariedade, como exposto acima, em re-lação à ofensa a bens jurídicos em que a atuação dos demais controlesjurídicos e sociais não sejam suficientes, mas também somente em rela-ção às ofensas mais graves aos mais importantes bens jurídicos.

O direito penal deve atuar, portanto, tão-somente quando essesbens jurídicos sejam extremamente importantes para a vida em socie-dade, e ainda, que a ofensa a eles seja de tal monta que justifique essagrave intervenção. Como já afirmou BATISTA (1990, pág. 86), há maisde um século Binding já registrou o caráter fragmentário do direito pe-nal, constituindo-se “um sistema descontínuo de ilicitudes” (...) “e impõeuma seleção seja dos bens jurídicos ofendidos a proteger-se, seja dasformas de ofensa”220

Portanto, quando falamos em fragmentariedade devemos noslembrar, como corolário, do princípio da lesividade ou ofensividade,vale dizer, para que esse direito violento, que indiscutivelmente é odireito penal, possa ter sua atuação legitimamente desencadeada contraum indivíduo, o ataque a um relevante bem juridicamente tutelado deveser efetivamente lesivo ou, e o que é o mesmo, ofensivo, isto é, devecausar uma lesão sensível em relação ao objeto dessa ação.

A moderna doutrina, acompanhada pela melhor jurisprudên-cia, vem entendendo que sequer há tipicidade em crimes de ataquemínimo, insignificante, a bens jurídicos, diante do princípio da insignifi-cância. Como leciona SANTOS (2000, pág. 37), “ações abrangidaspelo chamado ‘princípio da insignificância’ (Geringfügigkeitsprinzip), nãosão típicas”.221

E como afirma com clareza meridiana QUEIROZ (1998)

“a redação do tipo penal pretende certamente só incluir prejuízosgraves à ordem jurídica e social, porém não pode impedir que en-

219 QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal, lineamentos para um direito

penal mínimo, Belo Horizonte: Del Rey, 1998.220

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, pág. 86, Rio de Janeiro: Revan, 1990.221

SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.

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trem também em seu âmbito os casos mais leves, de ínfima signifi-cação social. Enfim, o que ‘in abstrato’ é penalmente relevante podenão o ser verdadeiramente, isto é, pode não assumir, ‘in concreto’,suficiente dignidade e significação jurídico penal. E esse exame par-ticularizado e casuístico de valoração penal cabe, naturalmente, aosintérpretes e aplicadores ‘vivos’ (Judiciário e Ministério Público) dodireito.” (...) “Por isso, qualquer lesão jurídica admite, em tese, quese afaste a tipicidade – para cuja compreensão não há de se exigir,assim, um mero juízo lógico-formal de adequação do fato à normapenal abstrata – pela aplicação do que se vem chamando de ‘princí-pio de insignificância’, posto que, pode esse bem jurídico fundamen-tal, protegido pela norma, não ser atingido ou ser atingido periferica-mente, apenas, em mínima intensidade e grau de extensão.” (...) “Eé, realmente, preciso ir-se além do convencional automatismo que,alheio à realidade, à gravidade do fato, à intensidade da lesão, con-cretamente valorados em função de suas conseqüências, sobretu-do, se perde e se desacredita na persecução de condutas de míni-ma ou nenhuma importância social. A intervenção penal – traumáti-ca, cirúrgica e negativa – há de ficar reservada para a repressão defatos que assumam magnitude penal incontrastável; havendo-se,assim, de recusar curso aos chamados delitos de bagatela.”

E para se ter noção da lesividade da conduta na realidade deuma determinada ação concreta, há que se levar em conta não só obem jurídico atacado e a gravidade desse ataque, como exposto aci-ma (e que no caso em análise, o primeiro de regra nem é afetado ou oé de maneira insignificante), mas também, a real importância dessemesmo bem jurídico para seu titular.

Indispensável um pequeno parêntesis aqui. O bem jurídico,como leciona WELZEL, “é todo estado social desejável que o direitoquer resguardar de lesões”.222 E de se ressaltar, ainda, “que não seconfunde bem jurídico com objeto material, embora em geral coincidam(a vida, no crime de homicídio). No crime de furto (CP. Art. 155), porexemplo, o bem jurídico é o ‘patrimônio’, ao passo que o objeto materialé a ‘coisa alheia móvel.’” (QUEIROZ, 1998, 70-71). Assim, esclarecido222

WELZEL, Hans, apud QUEIROZ, Paulo de Souza. Ob. cit. Pág. 70.

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que bem jurídico e objeto da ação nem sempre coincidem, podemosfechar o parêntesis pois julgamos elucidado o motivo de acreditarmosque não é afetado o bem jurídico (patrimônio) do proprietário dohipermercado com o furto (ou tentativa) de , p. ex., um litro de leite.

E o Superior Tribunal de Justiça, assim já entendeu em diversosjulgados, inclusive conforme menciona JESUS (2001), “Como entendeu a6ª Turma, no Recurso Especial 221.2929, rel. Ministro Fernandes Gonçal-ves, (...) é necessária a análise da relevância da lesão jurídica ‘sob o pris-ma do sujeito passivo do delito’ (j. 21.3.2000, DJU 10.4.2000, p. 138).” 223

E mais, o festejado professor e doutrinador ainda sustenta que, por coe-rência, salvo para ações em relação à vítimas de muito pequeno poderaquisitivo, se considere furto ou apropriação indébita de bagatela, aque-las cujos objetos sejam iguais ou inferiores a R$ 1.000,00.

Como mencionamos no início deste trabalho, o furto de um ob-jeto de pequeno valor pode significar algo para o dono de um pequenoarmazém, porém, dificilmente lesará gravemente uma grande rede devenda a varejo.

De todo o exposto, não há como deixar de concluir-se, ao nos-so ver, que a comentada tentativa de furto em grandes hipermercados,tem todas as características de crime de bagatela, sendo substancial-mente atípicas e impedindo-se, destarte, movimente-se a dispendiosae já abarrotada máquina do sistema penal, a pretexto de combatê-la.

Até mesmo por que a persecução de tais condutas bagatelarescomprometeria ainda mais o funcionamento do sistema penal - já difi-cultado pela conjuntura nacional - no combate à criminalidade séria,muitas vezes violenta, contra bens jurídicos indispensáveis à socieda-de e aos indivíduos.

A REALIDADE DOS GRANDES HIPERMERCADOS E AIMPOSSIBILIDADE DE CONSUMAÇÃO DO FURTO TENTADO

Como um argumento final, mas não menos verdadeiro e impor-tante, ainda que considerássemos errado todo o exposto antes, tería-

223 JESUS, Damásio Evangelista de. Crime de bagatela: reconhecimento do princípio da insignificância

no delito de descaminho e seu efeito nos tipos privilegiados do furto e da apropriação indébita, retiradodo “web site”: http://www.amperj.org.br/port/damasio2.htm, em 07.04.2001.

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mos que verificar da viabilidade da consumação do furto nos grandeshipermercados.

É fato notório e que dispensa qualquer argumento no sentidode demonstrar, com maior profundidade, a enorme quantidade de dis-positivos de segurança que possuem as grandes redes de lojas de ven-das a varejo (hipermercados, lojas de departamentos, etc.)

Começa-se pelos sistemas de câmeras de circuito interno,monitoradas por seguranças treinados, durante todo o tempo de funci-onamento das referidas lojas, colocadas em pontos estratégicos e que,apesar de não percebidas pelos clientes, estão sempre “enxergando”todos os seus movimentos, como já dissemos antes, tal qual o “BigBrother” de George Orwell. Isso quando não são ostensivas e acompa-nhadas das irônicas placas de “sorria, você está sendo filmado”.

Seria até o caso de se indagar se tal exposição não fere odireito à preservação da própria imagem que todos temos, mas istoseria assunto para outro trabalho a ser escrito por um civilista. Apenasregistramos: são verdadeiras agressões à dignidade; por vezes atémais as placas que propriamente as câmeras, vez que aquelas nosdão a certeza que somos todos suspeitos.

Qualquer movimento considerado “diferente” de clientes é logoinformado aos seguranças que entram em ação.

Depois, existem os seguranças (muitos deles policiais treina-dos pelo Estado e que face aos “minguados” salários fazem “bicos”nas empresas privadas); tanto os que ostensivamente portam rádio-comunicadores portáteis e coletes com as inscrições identificadoras,que os fazem parecer mais membros de esquadrões de elite da políciaque seguranças privados, quanto os que, dissimuladamente, se fa-zendo passar por clientes, circulam pelos estabelecimentos.

Referidos seguranças, verdadeiros “policiais privados”, tam-bém se fazem presentes, por todo o tempo de funcionamento das casascomerciais e são devidamente treinados e equipados, no sentido deperceber e vigiar atitudes consideradas suspeitas, impedindo qualquerataque ao patrimônio de seus empregadores. Quando ocorre o ataque– tentativa de furto - logo entram em ação e impedem a consumação.

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Vale destacar que tais seguranças, de regra, logo que entra al-guém que não se veste, no mínimo, de acordo com os padrões normal-mente assimilados pela classe média, diante da pregação midiática, istoé, alguém que se encontra despojadamente vestido, ou mesmo, demons-tra pertencer a uma camada menos favorecida da população (que tam-bém tem que comer e, portanto, às custas de enormes esforços dá lucroaos grandes hipermercados e congêneres), passam a vigiar tais pesso-as “diferentes” com atenção redobrada. Não é incomum que, ostensiva-mente, e de maneira pouco educada, tratem essas pessoas “diferentes”como “suspeitos”.

E há também os sensores de alarme, estrategicamente coloca-dos nas saídas dos estabelecimentos comerciais e que disparam estri-dentemente tão logo passe por ali uma mercadoria sem que antes tenhapassado pelo caixa e tenha seus dispositivos de alarme retirados. Nãopoucas vezes, tais sensores disparam, mesmo após o devido pagamen-to das mercadorias, por falha da retirada dos dispositivos acionadores dealarme, colocando em situação extremamente vexatória o consumidor“suspeito” que teve a infelicidade de ser uma vítima do aparato de segu-rança do estabelecimento. Recentemente houve a condenação de umaloja de departamentos por danos morais a uma cliente, exatamente porter ocorrido uma situação dessa natureza.

Pois bem, considerando apenas os sistemas mencionados aci-ma, percebe-se claramente que, é rigorosamente impossível aodesavisado excluído consumar o ilícito quando, sem aptidão para o crime,primário e de bons antecedentes que, premido por uma situação de ab-soluta necessidade, recorre à tentativa de furto para suprir uma carênciasua, seja material ou psicológica.

Encontramos nessa ação, mais um exemplo perfeito de crimeimpossível, também chamado pela moderna doutrina de tentativa inidônea.

A respeito do crime impossível leciona BITENCOURT (2001, pág.368) que “Muitas vezes, após a prática do fato, constata-se que o agentejamais conseguiria consumar o crime, quer pela ineficácia absoluta domeio empregado, quer pela absoluta impropriedade do objeto.”224

224 BITENCOURT, César Roberto. Manual de direito penal: parte geral, volume 1, 6ª ed. rev. e atual., São

Paulo: Saraiva, 2000.

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Ora, não pode haver meio mais absolutamente ineficaz que atentativa desastrada de alguém que, não sendo criminoso contumaz, tentesubtrair algo de uma loja tão vigiada quanto as modernas e grandesredes varejistas. Certamente será apanhado e o bem será restituído aoproprietário.

Como a teoria para a punibilidade da tentativa inidônea adota-da pelo Código Penal brasileiro é a objetiva, entendendo que em setratando de crime impossível não há perigo para o bem jurídico tutela-do e, de conseqüência, o agente não pode ser punido, está inviabilizadaqualquer possibilidade de persecução daquele que realiza tal conduta.

CONCLUSÃO

Diante dos argumentos acima esgrimidos, temos a pretensãode haver demonstrado à saciedade que a tentativa de furto em grandeslojas varejistas, dotadas dos modernos sistemas de segurança e comum grande número de seguranças privados, é ato despido de potencialofensivo, que não ofende a nenhum bem jurídico relevante para a vítimae que, de tal maneira, não merece a proteção do “braço armado dodireito” que é o direito penal. Inclui-se, certamente, no rol das açõesformalmente típicas, porém, de atipicidade substancial em face da reali-dade em que se processa e diante das condições da vítima.

Mais que isso, cremos haver demonstrado que, salvo se setratar de pessoa já acostumada à prática do crime, a tentativa de sub-tração de mercadorias de grandes lojas varejistas, é atividade impos-sível de se consumar, sendo por isso mesmo crime impossível.

Diante de todas essas constatações, não há porque se reali-zar prisão em flagrante como, lamentavelmente é de costume ocorrernesses casos (conduta que poderia ser evitada até pelo bom-sensodos gerentes dos estabelecimentos que não teriam necessidade dechamar a polícia num incidente despido de qualquer conseqüência), nemtampouco instaurar inquérito policial.

Se realizados esses atos, na esfera da polícia, não há porqueo Ministério Público oferecer denúncia; sendo esta oferecida, não deve-ria ser recebida e, em última hipótese, havendo a instauração da açãopenal, impõe-se a absolvição do réu.

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É claro que adotamos como paradigma para estas reflexões –e para a nossa atuação profissional - a moderna corrente do “DireitoPenal Mínimo” que é, ao nosso sentir, a única que pode ser assimiladanestes tempos de neoliberalismo e de Estado Social Mínimo, especial-mente para aqueles que, cada dia mais, são “empurrados” para a condi-ção de excluídos - que em nossos dias é sinônimo de descartáveis –justamente pelo discurso e prática do “Estado Mínimo” (social, é claro).

É certo, que tal pensamento é exatamente o contrário do que pre-gam os grandes meios massivos, que fazem questão de difundir a políticado medo da “criminalidade“ e postulam, num discurso maniqueísta, a pu-nição “dura e exemplar” dos “inimigos da sociedade”.

A sustentação midiática é de que o Estado Social deve sermínimo e o Estado Penal máximo, como se o direito penal fosse apanacéia aos problemas decorrentes de um absoluto abandono peloEstado das populações mais carentes, e o que é mais trágico, de umtotal desmonte do Estado que um dia, teve a pretensão de vir a serEstado de Bem Estar Social e que nunca alcançou tal posição emnosso país.

Evidente que o Estado não é um ente dotado de vontade pró-pria, como os próprios discursos privatizantes e desestatizantes que-rem fazer crer, mas age de acordo com a vontade da classe dominante.Se é ineficiente, não é por acaso ou acidente. Mas esse tema tambémrefoge aos modestos limites destas linhas

Entretanto, aos que labutamos na seara do direito penal, secomo cidadãos componentes de uma elite que tem, no mínimo, a for-mação em curso superior, temos a obrigação ética de lutar por condi-ções sociais mais dignas a todos, temos, por outro lado, uma obrigaçãoinafastável de, com uma visão límpida e não alienada pelo discurso úni-co, buscar uma justiça substancial na aplicação da lei penal.

E essa justiça somente se fará com a assimilação dos concei-tos do direito penal mínimo, conceitos estes pouco (ou nunca) divulga-dos pela mídia por razões óbvias, vez que, como já afirmamos acima ereiteramos, a um Estado Social Mínimo interessa um Estado repressorforte, que possa calar as massas insatisfeitas.

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Entretanto, em sede de justiça penal, não há outro caminho paraaproximar nosso país de uma democracia material, real e efetiva, paraque possamos sonhar com um legítimo Estado Democrático de Direito,efetivo para todos, que a adoção da prática de um direito penal conectadocom a realidade social, intercambiante com a política criminal e que as-simile, de imediato, as constatações da criminologia, especialmente acriminologia crítica.

E mais, que essas descobertas científicas e constatações so-ciais sejam aplicadas desde logo pelo operador do direito penal, espe-cialmente pelo Promotor de Justiça e Juiz de Direito, não se colocandoestes em uma postura cômoda de esperar a iniciativa do legisladorque, por vezes, pode nunca vir, ou o que é pior, pode vir na contra-mãodas necessidades sociais num discurso demagógico de solução dequestões sociais com leis penais, como de resto já comentamos rapi-damente.

Há que se posicionar o moderno operador do direito penal,não mais numa atitude puramente dogmática, mas sim numa condi-ção de verdadeiro observador e conhecedor da caótica realidade quepermeia a sociedade em nosso país (bem como a maior parte do mun-do) e, a partir desse conhecimento, abandonando o paradigmapositivista de neutralidade, já há muito desmentido, respeitando o di-reito positivo no que diz respeito à possibilidade de imputação penal,em atenção ao já mencionado princípio da anterioridade da lei e da re-serva legal, buscar a consecução de uma justiça substancial.

Para os pobres, os excluídos, os descartáveis do cruel modeloneoliberal, para eles também, e principalmente para eles, há que sepostular uma justiça material. Que não repitam os operadores do direitopenal, em relação a este sofrido segmento da população, a triste postu-ra de outros setores sociais, de negar qualquer amparo, qualquer opor-tunidade e mostrar a existência do Estado apenas como repressor epunidor.

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JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA EMMATÉRIA DE LIMITAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS

SÍLVIA MARIA DERBLI SCHAFRANSKI

ESPECIALISTA EM DIREITO TRIBUTÁRIO - DOUTORANDA EM DIREITOPÚBLICO PELA FACULDADE DE DIREITO DE EXTREMADURA-ES(CONVÊNIO COM A UNORP-SÃO JOSÉ DO RIO PRETO/SÃO PAULO).

RESUMO

O texto analisa os Direitos Humanos e as possíveis limitações a que podemser submetidos, a partir da Convenção Americana de Direitos Humanos e dajurisprudência da Corte Interamericana. Após afirmar a necessidade deproteção dos Direitos Humanos, a autora assinala a posição da CorteInteramericana, pela qual a suspensão de certas garantias, sob condiçõesexcepcionais, seria lícita. O artigo exemplifica os direitos que se podemlimitar ou suspender, em situações especiais, como nos casos de guerra,perigo público ou outra emergência, que ameace a independência ousegurança de um Estado-parte da Convenção Americana.

ABSTRACT

The text analyses the Human Rights and possible limitations they can besubmitted, after the American Convention of Human Rights and jurisprudenceof Inter American Court. After saying the necessity of protection of HumanRights , the author points to the position of Inter American Court , by who thesuppression of certain guarantee , under exceptional conditions, would belawful. The article gives examples of rights that can be limited or evencanceled, in special situations, as in the cases of war, public danger or anotheremergency that can threat the independence or security of a State part ofAmerican Convention.

PALAVRAS CHAVE - Direito Internacional; Direitos Humanos;Convenção Americana de Direitos Humanos; Corte Interamericana.

INTRODUÇÃO

A questão relativa às limitações aos direitos humanos, deveser analisada em âmbito Interamericano, partindo-se do art. 27(1)225 da225

“ Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ousegurança do Estado parte, este poderá adotar disposições que, na medida e pelo tempo estritamentelimitados às exigências da situação, suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Convenção,desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhe impõe o DireitoInternacional e não encerrem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma,religião ou origem social”.

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Convenção Americana de Direitos Humanos, que assinala condiçõesestritas que devem observar-se a fim de que o Estado Parte possa sus-pender as obrigações contraídas em virtude da mencionada Convenção.

O artigo 27 faculta aos Estados-partes a suspensão das obri-gações contraídas em virtude da Convenção em caso de guerra, deperigo público ou de outra emergência que ameace a independênciaou segurança do Estado afetado e sempre que tal decisão não impliquea suspensão ou derrogação de certos direitos básicos ou essenciaiscujo rol é enunciado pelo parágrafo segundo do artigo 27:

Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica.

Direito à vida.

Direito à integridade pessoal.

Proibição de escravidão e servidão.

Princípio da legalidade e da retroatividade

Liberdade de consciência e de religião.

Proteção da família

Direito ao nome

Direitos da criança

Direito à nacionalidade

Direitos políticos

Garantias indispensáveis para a proteção destes direitos.Conforme o entendimento da Corte Interamericana de Direitos

Humanos,226 o artigo 27.2 dispõe limites ao poder do Estado-parte notocante a suspensão de direitos e liberdades, ao estabelecer que háalguns que não podem ser suspensos em nenhuma circunstância, bemcomo ao incluir “as garantias judiciais indispensáveis para a proteçãode tais direitos”.

O artigo 27.2 trata dos direitos inalienáveis, isto é, os direitosque não podem ser suspensos ou derrogados. Nenhum dos direitos ali

226 Opinião consultiva n. 8/87 de 30 de janeiro de 1987-0 habeas corpus sob a suspensão de garantias,

parágrafos 23 e 24.

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previstos podem ser suspendidos ou derrogados em um estado de ex-ceção. Cada direito existe para todas as pessoas em todas as circuns-tâncias. Um Estado não pode, portanto, usar a imposição de um estadode emergência como escusa por deixar de proteger e assegurar cadaum desses direitos inalienáveis.

Os vários instrumentos regionais de direitos humanos tambémreconhecem estados de emergência. Enquanto o PIDCP somente men-ciona emergência pública, o artigo 15 da CEDH, o artigo 15 da CartaSocial Européia (CSE) e o artigo 27 da CADH todos também mencio-nam situações de guerra.

Segundo a Corte Interamericana, alguns destes direitos refe-rem-se à integridade da pessoa, como são: o direito ao reconhecimen-to da personalidade jurídica (art. 3º); o direito à vida (art. 4º); o direito àintegridade pessoal (art. 5º); a proibição à escravidão e servidão (art.6º) e o princípio de legalidade e de retroatividade (art. 9º) e que é tam-bém proibida a suspensão da liberdade de consciência e de religião(art. 12); a proteção à família (art. 17); o direito ao nome (art. 18); osdireitos da criança (art. 19); o direito à nacionalidade (art. 20) e os direi-tos políticos (art. 23).

Na opinião da Corte a suspensão de garantias constitui umasituação excepcional, pela qual é lícito ao governo aplicar determina-das medidas restritivas aos direitos e liberdades, que em condiçõesnormais estão proibidas ou submetidas a requisitos mais rigorosos.

A Convenção Americana artigo (27(2)), não autoriza ainda, asuspensão das garantias indispensáveis para a proteção de tais direi-tos, por que as suspensões transitórias não se aplicam a todos eles,donde justifica-se a necessidade dos mesmos serem tutelados.

Da opinião consultiva n. 8/87227 , extraem-se importantes con-siderações:

1º) O artigo 27.2 não vincula essas garantias judiciais a nenhumadisposição individualizada da Convenção, o que indica que o funda-mental é que os referidos procedimentos judiciais sejam indispen-sáveis para garantir esses direitos.

227 Idem, ibidem- parágrafos 27 a 30.

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2º) A determinação de que as garantias judiciais são “indispensá-veis” para a proteção dos direitos que não podem ser suspensos,será diferente conforme os direitos afetados. As garantias judiciais“indispensáveis” para assegurar os direitos relativos à integridadeda pessoa, necessariamente diferem daquelas que protegem, porexemplo, o direito ao nome, que também não se pode suspender.

3º) Devem ser consideradas como indispensáveis, para os efeitosdo artigo 27.2, aqueles procedimentos judiciais que ordinariamentesão idôneos para garantir a plenitude do exercício dos direitos e li-berdades a que se refere o mesmo e cuja supressão ou limitaçãocolocaria em perigo essa plenitude.

4º) As garantias devem ser não somente indispensáveis, mas tam-bém judiciais. O que implica na intervenção de um órgão judicialindependente e imparcial, pronto para determinar a legalidade dasatuações cumpridas dentro do estado de exceção.

O nono parecer da Corte Interamericana,228 pouco depois veionão somente a reiterar estas considerações, bem como estabeleceucritérios para precisar as características fundamentais das garantias ju-diciais.

Salientou que existe uma obrigação geral sob responsabilida-de de todo Estado-parte na Convenção de respeitar os direitos e liber-dades nela reconhecidos e de garantir seu livre e pleno exercício atoda pessoa que estiver sujeita à sua jurisdição” (art. 1º(1)), sendo quedesta obrigação deriva o direito de toda pessoa, prescrito no art.25.1.

Deste modo, precisamente sobre as garantias judiciais emestado de emergência, a Corte concluiu que devem ser consideradasalém do habeas corpus e do recurso de amparo não suspendíveis ain-da, qualquer outro recurso efetivo perante os juízes ou tribunais com-petentes ( art.25(1)), que tenha por escopo garantir direitos nãosuspendíveis.

Estabeleceu ainda que também devem considerar-se comogarantias judiciais indispensáveis que não podem suspender-se os

228 Opinião consultiva n. 9/87, de 06 de outubro de 1987- Garantias judiciais em estado de emergência-

parágrafos 20 a 22.

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procedimentos judiciais inerentes a forma democrática representativade governo ( art.29.c), previstos no direito interno dos Estados Partescomo idôneos a garantir a plenitude do exercício dos direitos a que serefere o artigo 27.2 da Convenção e cuja supressão ou limitação tornetais direitos desprovidos de garantia.

E, finalmente, pronunciou-se no sentido de que tais garantiasdevem exercer-se dentro do enunciado e segundo os princípios do devi-do processo legal, reconhecidos pelo artigo 8 da Convenção.

Assim, passaremos a análise desta questão, tendo em vistaque os direitos inderrogáveis são os direitos básicos e essenciais, bemcomo as garantias judiciais indispensáveis à proteção destes direitoscuja suspensão ou derrogação não está autorizada em nenhuma cir-cunstância .

DIREITOS QUE SE PODEM LIMITAR OU SUSPENDER

A análise jurídica dos direitos que se podem limitar ou suspen-der, implica previamente na necessidade de se observarem algumasquestões terminológicas que já foram objeto de pronunciamento pelaCorte Interamericana de Direitos Humanos:229

O artigo 27 da Convenção Interamericana de Direitos Huma-nos, traz em seus artigos, diferentes expressões que requerem atenção.

O título enunciado é “Suspensão de Garantias”, o parágrafo pri-meiro, refere-se a “Suspender as Obrigações Contraídas”, o parágrafosegundo trata da “ Suspensão dos Direitos” e o parágrafo terceiro, do “Direito de Suspensão”.

A interpretação dada pela Corte Interamericana de DireitosHumanos dos termos da Convenção no contexto destes, aponta por-tanto para o fato de que, efetivamente não se trata da suspensão dedireitos, já que “ sendo estes consubstanciais com a pessoa, o únicoque poderia ser suspenso ou impedido seria seu pleno e efetivo exer-cício”, ou seja, trata-se da suspensão do exercício de direitos.

Do mesmo modo, quando a expressão garantia é utilizada noparágrafo segundo, a mesma deve ser entendida como garantias judici-ais indispensáveis à proteção dos direitos elencados.229

Habeas corpus sob suspensão de garantias parágrafos 18 a 21.

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O art. 27, parágrafo primeiro, dispõe que: “ Em caso de guerra,de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independên-cia ou segurança do Estado Parte, este poderá adotar disposiçõesque, na medida e pelo tempo estritamente limitados às exigências dasituação, suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Con-venção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com asdemais obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encer-rem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idio-ma, religião ou origem social”.

Deste modo, o parágrafo primeiro do art. 27 enuncia uma regrade caráter geral, a qual é complementada pela norma contida no pará-grafo segundo, do art.27, que anuncia a vedação da suspensão de cer-tos direitos.

Uma análise apressada do artigo 27 levar-nos-íamos a concluirque todos os demais direitos cuja suspensão não está vedada pela Con-venção seriam passíveis de limitações ou suspensões.

É preciso ter presente, todavia, que, o artigo 27.2, cria a possi-bilidade de que os Estados Partes tomem medidas derrogatórias desuas obrigações contraídas em virtude da Convenção, mas somente emestados de exceção.

Deste modo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos uti-lizando-se de uma interpretação sistemática e teleológica , orienta-seno sentido de que o artigo 27 refere-se a um preceito concebido ape-nas para situações excepcionais, uma vez que a suspensão das ga-rantias pode ser, em algumas hipóteses, o único meio para atender àssituações de emergência pública e preservar os valores superiores dasociedade democrática.

Faz-se mister observar ainda que deve haver um requisito geralde “proporcionalidade” entre a restrição e a razão justificadora da res-trição.

Outrossim, a Corte prevendo os abusos a que pode dar lugara aplicação de medidas de exceção, quando não estiverem objetiva-mente justificadas em conformidade com os critérios estabelecidos noartigo 27 e com os princípios que, sobre a matéria, são deduzidos de

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outros instrumentos interamericanos, acabou por destacar que, dentrodos princípios que informam o sistema interamericano, a suspensão degarantias não pode se desvincular do “efetivo exercício da democraciarepresentativa” aludida no artigo 3º da Carta da OEA.

Em conformidade com a interpretação da Corte Interamericana,conclui-se, portanto, que nenhum direito reconhecido pela Convençãopode ser suspenso, salvo se cumpridas as condições estritas trazidaspelo art 27 (1)230 :

“ Por conseguinte, longe de adotar um critério favorável à suspen-são de direitos, a Convenção estabelece o princípio contrário, ouseja, de que todos os direitos devem ser respeitados e garantidos, amenos que circunstâncias muito especiais justifiquem a suspensãode alguns, enquanto que outros nunca podem ser suspensos, pormais grave que seja a emergência.”

Disto resulta que as limitações somente devem ser utilizadascomo meio de proteger os direitos enunciados pela Convenção Ame-ricana tendo em vista a preservação do Estado Democrático de Direitoe não como meio de destruição destes direitos.

RAZÕES DESTAS LIMITAÇÕES

O artigo 27 da Convenção Americana, regula a suspensão degarantias nos casos de guerra, perigo público ou outra emergência,que ameace a independência ou segurança de um Estado-parte, so-bre o que, este deverá informar aos demais Estados-partes, por inter-médio do Secretário Geral da OEA, “das disposições cuja aplicaçãotenha sido suspensa, dos motivos que tenham suscitado a suspensãoe da data na qual tenha sido dada por terminada a tal suspensão”.

As razões destas limitações estão adstritas à situações excep-cionais, quais sejam: casos de guerra, de perigo público ou outraemergência que ameace a independência ou segurança do Estado-parte.

Além deste requisito, as medidas tomadas não podem ser in-consistentes com as outras obrigações do Estado perante o direito in-

230 Habeas corpus sob suspensão de garantias- parágrafo 21.

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ternacional e não devem envolver discriminação fundada em motivos deraça, cor, sexo, idioma, religião, ou origem social. As “outras obrigaçõesperante o direito internacional” referem-se tanto aos princípios do direitocostumeiro internacional quanto ao direito internacional de tratados (pri-mariamente a outras convenções sobre direitos humanos e a tratadosno campo do direito internacional humanitário).

Cumpre salientar que, apesar de aparentemente restritas, taiscircunstâncias podem dar ensejo a uma diversidade de situações, emrazão de que, entende a Corte que as medidas que forem adotadasem qualquer destas emergências devem ser ajustadas “ as exigênciasda situação”, haja vista que o permissível em uma delas pode não serem outra.231

Esta é uma referência clara ao Princípio da Proporcionalidadeuma vez que o grau de interferência e o escopo da medida (ambos emtermos de território e duração) devem ser proporcionais ao que é real-mente necessário para se combater uma emergência que ameace aexistência da nação.

Neste diapasão, para que se possa mensurar a juridicidadedas medidas de exceção, será necessária a análise particularizada docontexto da emergência face à medida adotada232 :

“ A juridicidade das medidas que sejam adotadas para enfrentar cadauma das situações especiais a que se refere o art. 27.1 dependerá,então, do caráter, intensidade, profundidade e particular contexto daemergência, assim como da proporcionalidade e razoabilidade guar-dadas pelas medidas adotadas quanto à mesma”.

CONTROLE DESTES MOTIVOS

O artigo 27.3 da Convenção Americana de Direitos Humanosestipula que qualquer Estado Parte deverá informar imediatamente aosoutros Estados Partes, por intermédio do Secretário Geral da Organi-zação dos Estados Americanos, acerca das disposições suspensas,bem como os motivos determinantes dessa suspensão isto é, deveránotificar imediatamente o estado de exceção e da data em que haja231

Idem, parágrafo 22.232

Idem.

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dado por terminada tal suspensão.

Esta disposição visa portanto possibilitar aos demais Estados-partea fiscalização para prevenir derrogações de fato, bem como tentati-vas posteriores de justificar violações dos direitos humanos que játenham sido cometidas.

A maioria das constituições contém cláusulas de emergência queconferem ao chefe de Estado ou de governo o poder de tomar medi-das excepcionais (incluindo restrições ou suspensões dos direitosbásicos), com ou sem o consentimento do parlamento, em tempo deguerra ou em outras situações de exceção. É óbvio que tal privilégioestá sob a ameaça de abuso ou de mau uso. Os que detêm o poderpodem usá-lo para manter sua posição ou para suspender os direi-tos de participação política e oposição de adversários.

O direito internacional, portanto, tem a tarefa de achar um equilíbrioentre o reconhecimento do direito legítimo de Estados soberanos dedefender sua ordem constitucional e democrática e o mal uso dodireito de declarar um estado de emergência meramente para quese mantenham posições de poder.

De acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana deDireitos Humanos, dentro de um Estado de Direito, torna-se necessárioo exercício do controle de legalidade das medidas por parte de umórgão judicial autônomo e independente que verifique se a suspensãode algum direito ocorreu em conformidade com a sua causaautorizadora.

Neste sentido, pronunciou-se a Corte:233

“Assim sendo, é desde todo ponto de vista procedente, dentro deum Estado de Direito, o exercício do controle de legalidade de taismedidas por parte de um órgão judicial autônomo e independenteque verifique, por exemplo, se uma detenção, baseada na suspen-são da liberdade pessoal, é adequada aos termos nos quais o esta-do de exceção o autoriza. Aqui, o habeas corpus adquire uma novadimensão fundamental.”

Este entendimento é reiterado ainda na opinião consultiva

233 Idem, parágrafo 40.

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n.9/87234 , que vem a salientar que para a preservação do Estado deDireito faz-se necessário que haja um controle de legalidade das medi-das tomadas em situação de emergência.

Diante do exposto, entende-se, portanto, que deve haver um con-trole por parte de um órgão judicial que vise preservar a legalidade dassituações excepcionais de emergência, a fim de impedir que sejam es-tendidos a,lém de seus limites temporários, ou que se originem de atosdesprovidos de causalidade ou oriundos de manifestações contempla-das pelo abuso ou desvio de poder.

LIMITAÇÕES PROIBIDAS

As relações entre os direitos humanos e a democracia desper-tam grande interesse na atualidade, sobretudo do ponto de vistajurisprudencial.

O conceito de Democracia deve ser analisado em uma pers-pectiva dialética, o qual, segundo Flávia Piovesan235 “ invoca um concei-to aberto, dinâmico e plural, em constante processo de transformação”.

Para esta autora, na acepção formal a democracia compreen-de o respeito à legalidade, constituindo o chamado Governo das Leis,marcado pela subordinação do poder ao Direito, sendo que esta con-cepção enfatiza a legitimidade e o exercício do poder político, avaliandoquem governa e como se governa.

Já, na acepção material a autora destaca que a democracia não serestringe ao primado da legalidade, mas também pressupõe o res-peito aos direitos humanos:

“Isto é, além da instauração do Estado de Direito e das instituiçõesdemocráticas, a democratização requer o aprofundamento da de-mocracia no cotidiano, por meio do exercício da cidadania e da efe-tiva apropriação dos direitos humanos. Neste sentido, não há De-mocracia sem o exercício dos direitos e liberdades fundamentais. ADemocracia exige, assim, a igualdade no exercício de direitos civis,políticos, sociais, econômicos e culturais.”

234 CIDH- opinião consultiva n. 9/87, de 06 de outubro de 1987. Garantias Judiciais em Estado de

Emergência, parágrafo 37.235

Piovesan, Flávia. Democracia, Direitos Humanos e Globalização Econômica: Desafios e perspectivaspara construção da cidadania no Brasil. www.iedc.org.br

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Para Campos Bidart236 “ a democracia tem como núcleo essen-cial e constitutivo de seu conteúdo o reconhecimento, a tutela e a promo-ção dos direitos humanos”.

A democracia, pode ainda, ser invocada em uma dimensão so-cial objetivando proteger os direitos humanos de limitações que sejamindevidas de modo a assegurar sua plena vigência.

Os tratados de direitos humanos, e em especial a ConvençãoAmericana de Direitos Humanos237 trazem um liame de ligação dosdireitos humanos com a democracia, os quais segundo o ProfessorCançado Trindade238 “ ao dispor sobre limitações aos direitos consa-grados, estabelecem como limites de discricionariedade estatal os im-perativos e exigências de uma “sociedade democrática” .

Esta dimensão social da democracia tem sido utilizada portan-to como modo de controlar as possíveis invocações de limitações aoexercício dos direito humanos consagrados nos tratados.

Cançado Trindade239 ensina-nos que a inter-relação da demo-cracia com os direitos humanos contribui para a necessária interpretaçãorestritiva das limitações permissíveis ao exercício dos direitos humanos,sendo que tal interpretação restritiva foi reconhecida judicialmente.

Neste sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos temse manifestado tanto consultivamente como em exercício de sua com-petência contenciosa.

Na opinião consultiva referente ao habeas corpus sob suspen-

236 BIDART CAMPOS, German J. El Derecho Constitucional Humanitário. Sociedad Anónima Editora:

Buenos Ayres, 1996, p.95.No original: “ que la democracia tiene como núcleo esencial y constitutivo de su contenido al reconocimiento,la tutela y la promoción de los derechos humanos”.237

Convenção Americana de Direitos Humanos, arts15 e 16 (2).Art 15 “ É reconhecido o direito de reunião pacífica sem armas. O exercício de tal direito só pode estarsujeito às restrições previstas pela lei e que sejam necessárias, numa sociedade democrática, nointeresse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou amoral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas.”Art 16 (2) “ O exercício de tal direito só pode estar sujeito ás restrições previstas pela lei que sejamnecessárias, numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou daordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demaispessoas”.238

CANCADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito internacional dos Direitos Humanos,Vol. II, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 207.239

Idem, p. 222.

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são de garantias, parágrafo 20 e 26, a Corte vem a esclarecer que a sus-pensão de garantias não pode dissociar-se do sistema democrático:

“. 20. A suspensão das garantias pode ser, em algumas hipóteses, oúnico meio para atender às situações de emergência pública e pre-servar os valores superiores da sociedade democrática. Mas, a Cortenão pode abstrair-se dos abusos a que pode dar lugar, e os que defato ocorrerem em nosso hemisfério, a aplicação de medidas deexceção, quando não estão objetivamente justificadas, de acordocom os critérios que orientam o artigo 27 dos princípios que, sobre amatéria, são deduzidos de outros instrumentos interamericanos. Porisso, a Corte deve destacar que, dentro dos princípios que informamo sistema interamericano, a suspensão de garantias não pode sedesvincular do “efetivo exercício da democracia representativa” alu-dida no artigo 3º da Carta da OEA. Esta observação é especialmen-te válida no contexto da Convenção, cujo Preâmbulo reafirma o pro-pósito de “consolidar neste Continente, dentro do quadro das insti-tuições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiçasocial, fundamentado no respeito dos direitos essenciais do homem”.A suspensão de garantias carece de toda legitimidade, quando utili-zada para atentar contra o sistema democrático, que dispõe limitesinfranqueáveis quanto à vigência constante de certos direitos es-senciais da pessoa.”

“26. O conceito de direitos e liberdades e, conseqüentemente, o desuas garantias, é inseparável também do sistema de valores e prin-cípios que o inspira. Em uma sociedade democrática, os direitos eliberdades inerentes à pessoa, suas garantias e o Estado de Direitoconstituem uma tríade, onde cada um dos componentes se define,completa e adquire sentido, em função dos outros.”

Ainda neste sentido, pronunciou-se em opinião consultivarequerida pelo governo do Uruguai a respeito da interpretação da ex-pressão leis no art. 30,240 da Convenção Interamericana vindo a concluirque a mesma refere-se a norma jurídica, oriunda dos órgãos legislativosconstitucionalmente previstos e democraticamente eleitos, o que signifi-240

Art.30-“ As restrições permitidas, de acordo com esta Convenção, ao gozo e ao exercício dos direitose liberdades nela reconhecidos, não podem ser aplicadas senão de acordo com as leis que forempromulgadas por motivo de interesse geral e com o propósito para o qual houverem sido estabelecidas.”

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ca que as limitações ao exercício dos direitos humanos só podem advirde leis que estejam em consonância com a ordem democrática.

A mesma opinião consultiva em seu parágrafo 31, faz mençãoainda à opinião anterior exarada pela Corte em que esta determinouque os conceitos de ordem pública e bem comum, quando invocadoscomo fundamentos de limitações aos direitos humanos, devem ser ob-jeto de uma interpretação estritamente ligada às “justas exigências” de“uma sociedade democrática”, que leve em conta o equilíbrio entre osdiversos interesses em jogo e a necessidade de preservar o objetivo efinalidade da Convenção (A associação obrigatória de jornalistas arts.13 e 29 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), OpiniãoConsultiva OC n. 5/85 de 13 de novembro de 1985, Série A, n. 5, pará-grafos 66 e 67).

A proteção ao Estado de Direito241 é invocada novamente pelaCorte Interamericana ao decidir que as garantias que derivam da for-ma democrática de governo, devem entender-se como garantias judi-ciais destinadas ao controle da legalidade das medidas tomadas emsituação de emergência, em uma clara indicação que as limitaçõesaos direitos humanos, devem ser adequadas ao sistema democráticoe ao Estado de Direito.

Também em âmbito contencioso tem manifestado-se a Corte242

visando ressaltar o caráter limitado em que o Estado pode penetrar naesfera dos direitos humanos asseverando que, “o exercício da funçãopública tem limites derivados de que os direitos humanos são atributosinerentes à dignidade humana e, em conseqüência, superiores ao po-der do Estado.”

Deste modo, a Corte243 salienta que a proteção aos direitoshumanos implica na necessária restrição ao poder estatal, e o livre epleno exercício destes direitos implica no dever dos Estados-partes deorganizar todo o aparelho governamental e estruturas, através das quaismanifesta-se o exercício do poder público.

241 Neste sentido – Garantias Judiciais em Estados de Emergência, 1984, parágrafo 37.

242 Caso Velásquez Rodrigues (1988)- parágrafos 165 e 166.

243 Idem, ibidem.

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Diante de todo exposto, podemos concluir que apesar da juris-prudência da Corte Interamericana estar mais relacionada com situa-ções que violam os direitos reconhecidos na Convenção, tais comodesaparição forçada de pessoas, violações à liberdade pessoal e devi-do processo, algumas opiniões consultivas, bem como casoscontenciosos trazem importantes delineamentos sobre o tema das li-mitações.

REFERÊNCIAS

BIDART CAMPOS, German J. El Derecho Constitucional Humanitá-rio. Sociedad Anónima Editora: Buenos Ayres, 1996, p.95.

PIOVESAN, Flávia. Democracia, Direitos Humanos e GlobalizaçãoEconômica: Desafios e perspectivas para construção da cidadaniano Brasil. www.iedc.org.br em 02/04/2002.

CANCADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito inter-nacional dos Direitos Humanos, Vol. II, Porto Alegre: Sérgio AntonioFabris Editor, 1999.

Convenção Americana sobre Direitos Humanos assinada em SãoJosé da Costa Rica em 22 de novembro de 1969.

Opinião consultiva n. 8/87 de 30 de janeiro de 1987-0 habeas corpussob a suspensão de garantias, in www.corteidh.or.cr.

Opinião consultiva n. 9/87, de 06 de outubro de 1987- Garantiasjudiciais em estado de emergência, in www.corteidh.or.cr.

Caso Velásquez Rodrigues (1988), in www.corteidh.or.cr.

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ENSAIO SOBRE O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE

ANDREY HERGET

PROFESSOR NO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DAFACULDADE MATER DEI E COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICAJURÍDICA. ESPECIALISTA EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL PELAUNOESC. MESTRANDO EM DIREITO PROCESSUAL E CIDADANIA PELAUNIPAR. ADVOGADO NO ESTADO DO PARANÁ.

Especialista em Direito Processual civil ( UNOESC/SC)

RESUMO

O texto aborda o princípio da publicidade a partir do sistema constitucionalbrasileiro, um sistema aberto, composto por regras e princípios, tratandodesde a sua caracterização, as suas funções até as suas limitações. Fundadoem doutrina especializada, o autor ressalta a importância dessas limitações,chamando-as também de “limitadores do princípio da publicidade”, como odireito à intimidade, expresso na Constituição Federal brasileira.

ABSTRACT

The text points to the principle of advertising taking in account the BrazilianConstitutional system, an open system, full of rules and principles, talkingabout since its characterization, its functions until its limitations, calling themas “Limiter of the principle of Advertising”, as the right to the relationship,expressed in Brazilian federal Constitution.

PALAVRAS CHAVE - Direito Processual; princípio da publicidade.

INTRODUÇÃO

Configurar os principais contornos do princípio constitucionalda publicidade, será o principal desafio deste trabalho.

O tema, com todas as suas facetas, é deveras importante. Fonteprimária das normas, os princípios, axiomas e postulados são proposi-ções não deduzidas de nenhuma outra dentro do sistema; são, por isso,a própria essência do Direito; são o Direito essencial ou primordial. Porisso qualquer estudo correto de uma disciplina jurídica deve iniciar-sepor eles.

Desta forma, inicialmente determinar-se-á algumas generalida-des sobre o sistema constitucional assim como a importância e as fun-ções dos princípios dentro do Ordenamento Jurídico brasileiro.

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Após, será delimitado o histórico do princípio em estudo e suaevolução sócio-política até chegar-se aos seus limitadores – direito àintimidade e o interesse social.

Ainda será estudado a tendência mundial de efetivação doprocesso, analisando se o princípio da publicidade pode ser considera-do obstáculo para tal busca.

Observa-se finalmente, que, a finalidade precípua desse traba-lho não é, como nem seria possível ser, exaurir os assuntos apresenta-dos, mas apenas estudar mais detidamente o princípio da publicidade,seu conteúdo e aplicação dentro do sistema constitucional brasileiro.

DO SISTEMA CONSTITUCIONAL PRINCIPIOLÓGICO – NOÇÕESPRELIMINARES

Para que o Direito, em geral, possa ser bem aplicado e que anorma processual seja eficaz, o intérprete jurídico não pode prescindirde uma visão principiológica, fundada sempre na Lei Maior. Assim,todas as leis infraconstitucionais, inclusive as que nascem do poder cons-tituinte derivado reformador através das emendas constitucionais, de-vem buscar validade na norma situada no ponto culminante da hierar-quia, qual seja, a Constituição Federal.

Desta forma é imprescindível que antes da análise de um prin-cípio específico, estude-se, mesmo que brevemente, sobre o sistemaconstitucional em que está inserido, destacando ainda, a importânciados princípios em geral.

DO SISTEMA CONSTITUCIONAL PROPRIAMENTE DITO

Tem-se sedimentado cada vez mais o entendimento de que oDireito, como sistema, não prescinde de uma interpretação axiomáticae de uma hermenêutica que considere a Constituição como “norma-con-trole” da validade dos demais dispositivos que integram um dadoordenamento jurídico.

Desta forma, não há como desconsiderar, por primeiro, os prin-cípios fundamentais do Estado brasileiro para a boa aplicação do Di-reito neste País. Só assim será possível alcançar, na prática, um verda-deiro Estado Democrático de Direito, tanto mais, quando muitos dos

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diplomas legais vigentes no Brasil são anteriores à Constituição de 1988,que reformulou muitos conceitos, estabeleceu institutos processuaisdemocráticos, materializou outros tantos e introduziu uma verdadeira cartade direitos constante de seu artigo 5º.

Portanto, a Constituição brasileira é colocada dentro doordenamento jurídico interno, como o último elemento de validade se-mântica, que irradia efeitos para todo ele, condicionando-o. Paulo deBarros Carvalho1 conclui que o fundamento último de validade semânti-ca é a constituição do Brasil.

Assim, impõe-se compreender o sistema constitucional comoaquele que fundamenta toda a ordem jurídica interna, dada a condiçãode superioridade hierárquica de seus princípios e regras.

Ressalte-se, que a Constituição Federal, embora se constituacomo sendo um elemento sistêmico harmônico, não traduz umacompletude plena de seus dispositivos no ordenamento, denotando,assim, a impossibilidade de compreender-se o sistema constitucionalde forma fechada, completa. Não pode ele ser tratado de forma estáti-ca, o que, sem dúvida, torna a Constituição um sistema aberto de nor-mas e princípios.

É isto, inclusive, o que nos ensina o mestre Canotilho quandoafirma ser o sistema constitucional português um sistema aberto. Talensinamento é totalmente aplicável ao ordenamento brasileiro, por suassimilitudes, veja-se2 :

(...) O sistema jurídico do Estado de direito democrático português éum sistema normativo aberto de regras e princípios. Este ponto departida carece de descodificação:

(1) é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas;

(2) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica (Caliess),traduzida na disponibilidade e capacidade de aprendizagem das nor-mas constitucionais para captarem a mudança da realidade e esta-rem abertas às concepções cambiantes da verdade e da justiça;

1 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito Tributário. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p.137.

2 CANOTILHO, José J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Coimbra Ed.,

1994. p. 1085.

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(3) é um sistema normativo, porque a estruturação das expectativasreferentes à valores, programas, funções e pessoas, é feita atravésde normas; e,

(4) é um sistema de regras e de princípios, pois as normas do siste-ma tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob asua forma de regras.

Pode-se concluir, então, que o sistema jurídico constitucionalbrasileiro, configura-se aberto justamente porque necessita, para suaaplicabilidade, de se inter-relacionar com a realidade fática, estandopropenso às mudanças históricas e valorativas, pois não é a Constitui-ção um fim em si mesmo, fechada às estruturas de interpretaçãodialógicas, como bem ressaltou o mestre português Canotilho.

Por outro lado, é de suma importância ter consciência de quenão poderia um sistema constitucional ser meramente principiológico,dotado apenas de pautas direcionadoras das condutas, pois os princí-pios, como é sabido, são dotados de conceitos jurídicos indeterminados,ou seja, abstratos, que, apesar de possibilitar o contra-balanceamentode valores, tornaria a segurança jurídica um fenômeno quaseinexistente.

É novamente o mestre Canotilho que de forma magistral, sin-tetiza a questão lecionando da seguinte maneira3 :

A existência de regras e princípios, tal como se acaba de expor, per-mite a descodificação, em termos de um ‘constitucionalismo ade-quado’ (Alexy: gemassigte Konstitutionnalismus), da estruturasistêmica, isto é, possibilita a compreensão da Constituição comosistema aberto de regras e princípios.

Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras con-duzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática.Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa - legalismo -do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas eos resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia um ‘sistema desegurança’, mas não haveria qualquer espaço livre para acomplementação e o desenvolvimento de um sistema, como o cons-

3 CANOTILHO, José J. Gomes. op cit. p.p. 1088-1089 passim.

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titucional, que é necessariamente um sistema aberto. Por outro lado,um legalismo estrito de regras não permitiria a introdução dos confli-tos, das concordâncias, do balanceamento de valores e interesses,de uma sociedade pluralista e aberta. Corresponderia a uma organi-zação política monodimensional (Zagrebelsky).

O modelo ou o sistema baseado, exclusivamente, em princípios(Alexy: prinzipien - Modell des Rechtssystems) levar-nos-íamos auma conseqüência também inaceitável. A indeterminação, ainexistência de regras precisas, a coexistência de princípiosconflituantes, a dependência do ‘possível’ fático e jurídico, só poderi-am conduzir a um sistema falho de segurança jurídica etendencialmente incapaz de reduzir a complexidade do próprio sis-tema. Daí a proposta aqui sugerida. Qualquer sistema jurídico care-ce de regras jurídicas. Contudo, o sistema jurídico necessita de prin-cípios (ou os valores que eles exprimem)(...).

Portanto, outra não pode ser a conclusão, senão aquela queleva a afirmar ser o sistema constitucional brasileiro, em face das pre-missas já expostas, um sistema aberto de regras e princípios, tendo ainter-relação papel importantíssimo, quiçá, obrigatório.

DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

O professor Vicente Ráo4 , afirmava, já na década de 50, que aignorância dos princípios, quando não induz a erro, leva à criação derábulas em lugar de juristas. Contudo, não basta, ao operador do direi-to conhecer os princípios, insta saber o que são e para que servem,como pré-requisitos de uma correta aplicação.

Celso Antônio Bandeira de Mello em relação aos princípios emgeral, leciona5 :

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, ver-dadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobrediferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critériopara a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por defi-nir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe con-

4 RAÓ, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 5.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 48.

5 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1981. p. 230.

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fere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dosprincípios que preside a intelecção das diferentes partes compo-nentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.

Os princípios constituem-se em fontes basilares para qualquerramo do direito, influindo tanto em sua formação como em sua aplica-ção. Em relação ao direito processual não poderia ser diferente, já queos princípios estão presentes naqueles dois instantes, qual seja, em suaformação como na aplicação de suas normas.

O professor Miguel Reale6 ao conceituar os princípios lecionaque estes são certos enunciados lógicos admitidos como condição oubase de validade das demais asserções que compõem dado campo dosaber.

De Plácito e Silva7 , estudioso dos vocábulos jurídicos, defendeser os princípios um conjunto de regras ou preceitos que se fixam paraservir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando a conduta aser tida em uma operação jurídica.

Assim, é de fácil percepção a tamanha importância alcançadapelos princípios dentro do ordenamento jurídico brasileiro, chegandoMarcelo Abelha Rodrigues8 a afirmar que, ao se ferir uma norma, dire-tamente estar-se-á ferindo um princípio daquele sistema, que na suaessência estava embutido. Os princípios, portanto, afloram como pon-tos básicos que servem de base para a elaboração e aplicação dodireito.

DAS FUNÇÕES DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Sabe-se que os princípios, ao lado das regras, são normas jurídi-cas. Entretanto, princípios e regras, exercem funções diferentes dentro dosistema normativo. Estas, por descreverem fatos hipotéticos, possuem anítida função de regular, direta ou indiretamente, as relações jurídicas quese enquadrem nas molduras típicas por elas descritas. Já os princípios,são normas generalíssimas dentro desse mesmo sistema.

6 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 300.

7 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 3ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 447.

8 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1998. p. 50.

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Para Canotilho9 , os princípios são “multifuncionais”, apontandoo ilustre mestre três funções, para ele, básicas:

a) função de fonte subsidiária1 0;

b) função fundamentadora1 1; e,

c) função orientadora da interpretação1 2.

9 ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1999.

p. 46. No mesmo sentido, o jurista espanhol F. de Castro assim escreveu: a função de ser “fundamentoda ordem jurídica”, com “eficácia derrogatória e diretiva”, sem dúvida a mais relevante, de enormeprestígio no Direito Constitucional contemporâneo, a seguir, a função orientadora do trabalhointerpretativo e, finalmente, a de “fonte em caso de insuficiência da lei e do costume (apud BONAVIDES,Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7.ªed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998. p. 255).10

O ordenamento jurídico brasileiro, positivou esses dois princípios gerais nos seguintes dispositivos: 1)O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade na lei. No julgamento dalide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aosprincípios gerais de direito (art. 126 do Código de Processo Civil); e, 2) Quando a lei for omissa, o juizdecidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (art. 4.º da Lei deIntrodução ao Código Civil). Então, na qualidade de fonte subsidiária do direito, os princípios serviriamcomo elemento integrador ou forma de colmatação de lacunas do ordenamento jurídico, na hipótese deausência da lei aplicável à espécie típica. Portanto, caso o juiz não encontrasse disposições legaiscapazes de suprir a plena eficácia da norma constitucional definidora de direito, deveria buscar outrosmeios de fazer com que a norma atinja sua máxima efetividade, como a analogia, os costumes e, por fim,os princípios gerais de direito. Os princípios seriam, assim, a ultima ratio: não há lei? Utilize a integraçãoanalógica. Não é possível a analogia? Vá às regras consuetudinárias. Costumes não há? Ah, agora simvamos aplicar os princípios! Essa mentalidade, porém, parece estar ultrapassada. Ao conferir normatividadeaos princípios, estes perdem o caráter supletivo, passando a impor uma aplicação obrigatória. De fato,não é mais tão correto assim considerar os princípios mera fonte subsidiária do direito. Aliás, é até um erroutilizar o princípio como fonte subsidiária e não como fonte primária e imediata de direito. Ora, desde oinício deste estudo está-se enfatizando a força normativa dos princípios, de forma tal que não é de admitir-se que o princípio seja subjugado à condição de mero instrumento supletivo em caso de lacuna de lei. Éexatamente o contrário: é a lei que deve suprir, ou seja, completar e esclarecer os mandamentos dosprincípios. É nesse sentido a lição de PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 3.ª ed. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 1999. p. 14 : os princípios não são meros acessórios interpretativos. Sãoenunciados que consagram conquistas éticas da civilização e, por isso, estejam ou não previstos nalei, aplicam-se cogentemente a todos os casos concretos.11

Para MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dosTribunais, 1980. p.p. 230-254 passim, o princípio, enquanto mandamento nuclear de um sistema, exercea importante função de fundamentar a ordem jurídica em que se insere, fazendo com que todas asrelações jurídicas que adentram ao sistema busquem na principiologia constitucional o berço das estruturase instituições jurídicas. Os princípios são, por conseguinte, enquanto valores, a pedra de toque ou ocritério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada.12

Pode-se dizer, assim, que o princípio é a melodia que inspira a dança do intérprete, que deve estarsempre “afinado” com a música. A letra pode mudar. O compositor, também. E até o ritmo pode sofreralterações. Mas a melodia sempre será a mesma, e o intérprete, em sua dança hermenêutica, deverátentar acompanhá-la custe o que custar. Na concepção de BARROSO, Luís Roberto. Interpretação eaplicação da Constituição. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 141: o ponto de partida do intérprete háque ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologiada Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípiosconstitucionais são as normas eleitas pelo constituinte com fundamentos ou qualificações essenciaisda ordem jurídica que institui.

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Ao lado dessas três funções mencionadas por Canotilho, ou-tras existem, como por exemplo, as enumeradas por José de AlbuquerqueRocha1 3, in verbis:

Os princípios têm a função de qualificar, juridicamente, a própria rea-lidade a que se referem, indicando qual a posição que os agentesjurídicos devem tomar em relação a ela, ou seja, apontado o rumoque deve seguir a regulamentação da realidade, de modo a nãocontravir aos valores contidos no princípio e, tratando-se de princípioinserido na Constituição, a de revogar as normas anteriores e invali-dar as posteriores que lhes sejam irredutivelmente incompatíveis.

Ademais, servem os princípios como limite de atuação do jurista.Explica-se: no mesmo passo em que funciona como vetor de interpreta-ção, o princípio tem como função limitar a vontade subjetiva do aplicadordo direito, vale dizer, os princípios estabelecem balizamentos dentro dosquais o jurista exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e suacapacidade de fazer a justiça no caso concreto1 4.

Trabucchi e Bobbio1 5, ainda, aludem que os princípios, podemser vislumbrados em distintas dimensões: fundamentadora, interpretativa,supletiva, integrativa, diretiva e limitativa, contudo, não será analisado talconcepção mais detidamente por fugir à alçada deste trabalho, restandoadentrar ao estudo do objeto específico que ora interessa.

DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE

Entre os vários princípios existentes na Carta Máxima brasilei-ra, um reluz com específica importância, podendo ser considerado con-seqüência direta da existência de um Estado Democrático de Direito, apublicidade dos atos processuais.

Pouco se comenta ou é questionado a respeito desse princípio,supondo-se, talvez, que a apreensão de seu sentido e extensão sejamclaros, ou, ao menos, facilmente perceptíveis. Entretanto, esse estudose faz necessário ante sua grande importância dentro do OrdenamentoJurídico interno como restará demonstrado, tornando-se nítida a riquezade seus desdobramentos.13

ROCHA, José de Albuquerque. op. cit. p. 47.14

BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p. 256.15

apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7.ªed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998. p. 254.

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A Declaração Universal dos Direitos do Homem, solenementeproclamada pela Organização das Nações Unidas em 1948, no artigo10 garante o princípio da publicidade popular. E hoje, a Constituiçãobrasileira consagra tal princípio nos artigos 5.º, inc. LX e 93, inc. IX,antes assegurado apenas em legislações ordinárias como o CPC, art.155; CPP, art. 792; e, CLT, art. 770 .

O princípio da publicidade dos atos processuais constituiu pre-ciosa garantia do indivíduo em relação ao efetivo exercício da jurisdi-ção, pois se por um lado, permite a fiscalização externa, por outro, viade conseqüência, aumenta a responsabilidade das decisões judiciais.Nesse sentido é a lição de Cintra, Grinover e Dinamarco1 6 quandoescrevem que realmente, o sistema da publicidade dos atos processu-ais situa-se entre as maiores garantias de independência, imparciali-dade, autoridade e responsabilidade do juiz.

Na doutrina nacional, infelizmente, o que se encontra é o prin-cípio da publicidade ligado na maioria das vezes ao campo de aplica-ção do direito administrativo. Não se pode olvidar que neste ramo dodireito também esse princípio tem grande importância, mas restringi-loà essa área é errôneo. Os doutrinadores constitucionalistas pouco seocupam dele, e quando a ele se referem, derivam da matriz constituci-onal de um princípio administrativo, sempre reportando ao artigo 37 daCarta Magna, com raras exceções.

José Afonso da Silva1 7 leciona que:

A publicidade sempre foi tida como um princípio administrativo, por-que se entende que o Poder Público, por ser público, deve agir coma maior transparência possível, a fim de que os administrados te-nham, a toda hora, conhecimento do que os administradores estãofazendo.

Alexandre de Moraes1 8 afirma que o princípio é respeitado quan-do os atos da administração são inseridos no Diário Oficial do ente res-pectivo.

16 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria

Geral do Processo. 19.ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 69.17

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. p. 653.18

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999. p. 295.

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Maria Sylvia Zanella di Pietro1 9, traz à colação a importância doasseguramento, pelo dispositivo constitucional, do direito de informa-ção do cidadão, com base no art. 5.º, incisos XIV e XXXIII da CF/88, nãosó em face de interesse particular, mas, igualmente em face dos interes-ses coletivos ou gerais, de modo a operar uma forma mais eficiente decontrole popular da administração pública. Da mesma forma pensa Cel-so Antônio Bandeira de Mello2 0.

Já com base em Norberto Bobbio e Celso Lafer, OdeteMedauar2 1 ensina que: o tema da transparência e visibilidade, tambémtratado como publicidade da atuação administrativa, encontra-se as-sociado a reivindicação geral da democracia administrativa.

Entretanto, o âmbito no qual é tratado o princípio em estudo,deve ser ampliado para compreendê-lo mesmo entre os PrincípiosGerais de Direito. Essa corrente, ainda que minoritária, vem conquis-tando inúmeros adeptos, como por exemplo Antônio A. Queiroz Teles2 2

que sobre o assunto assevera:

(...)ora, os atos administrativos são espécies do ato jurídico, logo,nas mesmas condições, serão públicos. Basta tal raciocínio paraconcluir-se que o princípio da publicidade também não é particulardo direito administrativo, embora nele se manifeste com toda evi-dência.

Assim, na verdade paira sobre este princípio doisposicionamentos; os que sustentam que o princípio da publicidade seretém no âmbito administrativo, como elemento essencial de controleda Administração Pública, e de outro lado, os que vêem no referidoprincípio um campo de aplicação bem mais amplo, encaixando-o comoum verdadeiro princípio geral de direito. Parece mais acertada esta ulti-ma tese.

Tal assertiva, deve ser feita com muita cautela, pois, embo-ra concorde-se que o âmbito de aplicação desse princípio deva ser

19 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 1997. p. 68.

20 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 59

21 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p.139.

22 TELES, Antônio A. Queiroz. Introdução ao Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1995. p. 42.

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ampliado, não se pode abster de levar em consideração que asnormas constitucionais, assim como todas as demais, devam serinterpretadas de forma conjugada, ou seja, não são, nem podemser tidas por absolutas, haja vista, estarem inseridas dentro de umcontexto, qual seja, o Ordenamento Jurídico como um todo, daí di-zer-se que a Constituição Federal é um sistema normativo abertode regras e princípios, como já explanado.

O intérprete jurídico deve conciliar tal princípio dentro do siste-ma constitucional no qual encontra-se inserido, sob pena de desvio definalidade constitucional.

É nesse sentido que leciona Juarez Freitas, in verbis2 3:

A Constituição Federal há de ser sempre interpretada, pois somentepor meio da conjugação da letra do texto com as característicashistóricas, políticas, ideológicas do momento, se encontrará o me-lhor sentido da norma jurídica, em confronto com a realidadesociopolítico-econômica e almejando sua plena eficácia.

Assim, o intérprete jurídico deverá buscar a harmonia do textocom suas finalidades precípuas, adequando-as à realidade e pleitean-do a maior aplicabilidade dos direitos, garantias e liberdades públicas.

Desta forma, quando se diz em “ampliar o âmbito de alcance”,não está a defender-se que tal princípio deverá se impor absoluto,pelo contrário, o princípio da publicidade é limitado por vários outrosprincípios, além dos direitos e garantias individuais, de suma impor-tância, que devem ser respeitados; é o caso por exemplo do direito aintimidade e do interesse social caracterizados como um dos mais pro-eminentes limitadores do princípio objeto desse estudo o que se veráadiante.

Por agora, importante tratar-se de um ponto pouco exploradodentro do princípio da publicidade, já que esta prestação de publicida-de é obrigação de todas as funções da República – Judiciário, Legislativoe Executivo. Deste último, explicitamente o caput do art. 37 trata, ali-nhando outros princípios a que deve obediência o administrador. Dolegislativo, espera-se prestação de contas tanto do dinheiro público gasto

23 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. São Paulo: Malheiros Editores, 1996. p. 149.

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no seu sustento como do mandato popular, legitimada pelo voto.Quanto ao Judiciário, a própria Constituição estatui regramento

específico quanto à publicidade de seus atos conforme inscrito no incisoIX de seu art. 93. Estatui assim, a necessidade de fundamentação dosatos judiciais, pois é na publicidade destes atos que se constrói a ponteentre o juiz e o cidadão.

Desta forma, todos os seus atos, com exceção dos que pos-sam atingir a intimidade dos envolvidos ou quando o interesse socialassim o exigir, embora, seja forçoso admitir que o legislador deixou aomagistrado um amplo poder para decidir o que seria este “interessesocial”, o que está entabulado no inciso LX ,do artigo 5.º, da Constitui-ção é que a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuaisquando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.

No Judiciário, o princípio da publicidade deve estar presenteno processo. O artigo 155, do Código de Processo Civil, normatiza queos atos processuais são públicos. Correm, todavia, em segredo de jus-tiça, os processos (...) e no processo penal, o artigo 792, do Códex Cri-minal reafirma o caráter público das audiências, enquanto o parágrafoprimeiro deste artigo excepciona o princípio geral da publicidade, parasalvaguardar a ordem pública.

Essa dúplice vertente do princípio da publicidade no âmbito deatuação de Judiciário, é muito bem explanado por Nagib Slaibi Filho,veja-se2 4:

Vemos, assim, que o princípio da publicidade, no Poder Judiciário,funciona em dois níveis: no primeiro, no sentido de publicidade am-pla, absoluta ou externa em que a atuação do Estado-juiz deve serlevada ao conhecimento de toda a sociedade, como fator delegitimação do exercício do poder e, no segundo, como publicidaderelativa, restrita ou interna em que se restringe o conhecimento dosatos processuais tão-somente às partes e advogados.

Outros dispositivos da própria Constituição Federal, reafirmamdireta ou indiretamente a obrigação de respeito ao princípio da publici-dade. Da mesma forma o o ordenamento jurídico como um todo.

24 SLAIBI FILHO, Nagib. Sentença Cível. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 132.

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Em suma, têm-se que o controle dos atos públicos, sejam doExecutivo, do Legislativo ou do Judiciário, precisam ser de conhecimentopúblico, isto é, da coletividade que vê sua vida ser afetada por decisõese atos tomados por aqueles cuja legitimidade está, em última análise,na escolha do cidadão.

Contudo, é de crer-se que o legislador constituinte, quando ins-tituiu o princípio da publicidade, não teve em mente apenas a formalida-de da publicação da atuação dos três poderes, pelo contrário, o seuconteúdo também é de suma importância, pois o cidadão precisa com-preender o que está publicado. Se for publicado, mas não for entendido,é como se público, não fosse. Muito embora a Constituição Federal nãoseja expressa quanto a isto, basta uma interpretação sistemática, parase concluir que, a publicação de quaisquer atos públicos deve ser clara,e eficaz.

Desta forma, há que se concluir que as leis, principalmente asque contêm comandos dirigidos diretamente aos cidadãos, devem serclaras, para que cumpra sua finalidade que é o de comunicação entreo Estado e o cidadão, por meio da publicação.

Na jurisprudência pátria, inclusive do Supremo Tribunal Fede-ral, assim como a do Superior Tribunal de Justiça, está em discussãoexatamente a questão ora tratada.

A título de exemplo, traz-se a colação o REsp. 254710/PR (2000/0034508-3), relatado pelo ilustre Ministro Hamilton Carvalhido, julgadoem 11/10/2000, veja-se:

RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. DELEGADO DA POLÍ-CIA FEDERAL. EXAME PSICOTÉCNICO. LEGITIMIDADE.REVERSIBILIDADE E PUBLICIDADE. 1. O exame psicotécnico élegítimo haja ou não previsão legal, desde que subsista a necessi-dade de se proceder a avaliação psíquica do candidato aspirante aum cargo público. 2. Em face do objetivismo, o seu resultado é pas-sível de reversibilidade e publicidade, de modo a se excluir a subjeti-vidade do avaliador e a ofensa aos princípios constitucionais da le-galidade e da impessoalidade. 3. Recurso não conhecido.

Neste julgado, o eminente Ministro vislumbrou a ofensa ao prin-cípio da publicidade; foi observado, ainda, que o próprio edital, como

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norma abstrata, já deveria ser claro o suficiente para que o candidatopudesse ser avaliado por critérios claros, objetivos, a possibilitar a aná-lise do desempenho do candidato com base nestes mesmos critérios,sem necessidade de anulação do certame ou repetição do exame, oque conspira contra a economia, celeridade e eficiência da Administra-ção, com prejuízo último ao próprio cidadão, diretamente ao candidatoe indiretamente à coletividade.

Assim, constata-se que, o legislador constituinte originário nãose preocupou apenas com que os atos dos três poderes da Repúblicafossem publicados, mas antes, quis também que tais publicações se-jam compreendidas pelos seus destinatários finais, os cidadãos emgeral, servindo assim de ponte entre o Estado e o povo.

LIMITADORES DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE – DIREITO ÀINTIMIDADE E O INTERESSE SOCIAL

Ao tratar do princípio da publicidade, não há como deixar deevidenciar sua limitações, ou melhor, seus limitadores, por não se tra-tar, como já dito, de direito absoluto.

É nesse sentido a afirmação de Cintra, Grinover e Dinamarco2 5,veja-se:

(...), todas as precauções hão que ser tomadas contra a exaspera-ção do princípio da publicidade. Os modernos canais de comunica-ção de massa podem representar um perigo tão grande como opróprio segredo. As audiências televisionadas têm provocado emvários países profundas manifestações de protestos. Não só os juízessão perturbados por uma curiosidade malsã, como as próprias par-tes e as testemunhas vêem-se submetidas a excessos de publici-dade que infringem seu direito à intimidade, além de conduzirem àdistorção do próprio funcionamento da Justiça através de pressõesimpostas a todos os figurantes do drama judicial.

Publicidade, como garantia política – cuja finalidade é o controle daopinião pública nos serviços da justiça – não pode ser confundidacom o sensacionalismo que afronte a dignidade humana. Cabe àtécnica legislativa encontrar o justo equilíbrio e dar ao problema a

25 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. op. Cit. p. 70.

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solução mais consentânea em face da experiência e dos costumesde cada povo.

Atento a este, porém, o legislador constituinte de 1988 elencoudiversos regramentos limitadores desse princípio, entre eles encontra-se o direito de defesa da intimidade e o interesse público, expressosno artigo 5.º, inciso LX, da Constituição Federal dispondo que a lei sópoderá restringir a publicidade dos atos processuais quando adefesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

Sob o mesmo prisma normatiza no inciso X do mesmo artigo5.º que:

são invioláveis à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem daspessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material oumoral decorrente de sua violação;

Na mesma linha de pensamento encontra-se o artigo 93, incisoIX da Carta Maior:

todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públi-cos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade,podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, emdeterminados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou so-mente a estes;

Assim, no Brasil, em regra, o processo é público. A lei só pode-rá restringir a publicidade dos atos processuais, quando a defesa daintimidade ou o interesse social o exigirem.

Em verdade, é interesse da própria justiça que seus trabalhossejam públicos. A publicidade é um anteparo a qualquer investida contraa autoridade moral dos julgamentos. O ato praticado em público inspiramais confiança dos que o praticado às escondidas. Rui Portanova2 6 dizque a publicidade dos atos processuais, portanto, interessa igualmenteao Poder Judiciário e aos cidadãos em geral. A publicidade garantemais confiança e respeito, além de viabilizar a fiscalização sobre asatividades dos juízes.

Mas como visto, a publicidade não é absoluta. O interesse pú-blico que embasa a regra da publicidade, em algumas hipóteses pode26

PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 4.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 168.

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estar melhor resguardando se o conhecimento do processo for “à portasfechadas”. Com a vigência da atual Constituição, as regras de processodevem ser interpretadas e aplicadas de modo que resguardem a prote-ção do direito à intimidade. Este, segundo José Augusto Delgado2 7,encontra-se a cada ato processual praticado, ameaçado, pela possibili-dade de pessoas não envolvidas com o litígio terem conhecimento defatos concernentes à esfera íntima das partes.

Rui Portanova2 8 leciona que alguns temas costumam ensejara exceção ao princípio da publicidade. São exemplos: a defesa nacio-nal, a ordem pública, a intimidade dos interessados, a moral, os bonscostumes e a defesa da família.

Busca-se, com a restrição da publicidade, evitar a curiosidadegeral, as conseqüências desastrosas, a perturbação da ordem, a apre-ensão do povo, o alarme, o tumulto, o apavoramento, a marca negati-va e a afronta à dignidade das pessoas físicas e jurídicas, sejam dedireito privado ou público.

Fadel escreve sobre o assunto que2 9:

o segredo de justiça pode ser ordenado sempre que se trate dematéria que humilhe, rebaixe, vexe ou ponha a parte em situação deembaraço que dificulte o prosseguimento do ato, a consecução dafinalidade do processo, ou possa envolver revelação prejudicial àsociedade, ao Estado, ou a terceiro.

Para proteger tais situações, a mesma Constituição que insti-tui a regra da publicidade, viabiliza a exceção. Assim, a lei, se o direito aintimidade ou o interesse público o exigir, poderá, inclusive, limitar a pre-sença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados,ou somente a estes. (CF., art. 93, inc. IX, Segunda parte).

Para Rui Portanova3 0:

diz-se que corre em segredo de justiça os processos com publici-dade restrita. O CPC optou por dividir em dois incisos as hipóteses

27 DELGADO, José Augusto. Alguns aspectos controvertido no processo de conhecimento. São Paulo:

Revista dos Tribunais. v. 664, 1991. p. 31.28

PORTANOVA, Rui. op cit. p. 169.29

FADEL, Sérgio Sahione. Código de Processo Civil Comentado. 3.ª ed. v.1, 1975. p. 265.30

PORTANOVA, Rui. op cit. p. 170.

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de exceção à publicidade. A primeira utiliza-se de acepção ampla.Cada caso dirá, a critério do juiz, quando o interesse público exigesegredo (CPC., art. 155, inc. I). Na Segunda hipótese, o legisladoroptou pela enumeração legal de critérios objetivamente considera-dos. Assim, é limitado às partes e aos advogados o acesso às açõesque dizem respeito a casamento, filiação, separação dos cônjuges,conversão desta em divórcio, alimento e guarda de menores.

Além dessas hipóteses, que atingem o processo em todos os seusatos, o CPC prevê outras em que o segredo é limitado a determina-dos atos. Assim, o interesse em que não se frustem medidasliminares, são previstos casos de restrição à publicidade na justifi-cação prévia para o arresto (CPC., art. 815), para seqüestro (CPC.,art. 823) e para a busca e apreensão (CPC., art. 841).

Por outro lado, em processos que despertam muito interessena sociedade, tem-se garantido o princípio da publicidade, limitando-se o acesso ao público ao número de lugares em determinado recinto.Fora dessa hipótese, interessa à publicidade o livre acesso do públicoà audiência. Admite-se a porta esteja encostada, seja para impedir acomunicação entre as testemunhas, seja para o funcionamento do arcondicionado3 1.

Enfim, ao sistema processual democrático, a publicidade éessencial. Assim, garante-se às partes uma participação efetiva noprocesso e respalda-se o direito de peticionar e de provar. A par disso,obriga o Poder Judiciário a prestar contas de seus atos.

Finalizando, o autor Arruda Alvim3 2 qualifica o princípio da pu-blicidade dos atos no processo, antes de mais nada como um princípioético, mencionando que:

A publicidade é garantia para o povo de uma justiça justa, que nadatem a esconder; e, por outro lado, é também garantia para a própriaMagistratura diante do povo, pois agindo publicamente, permite averificação de seus atos.

31 veja-se: Revista dos Tribunais. v. 684, p. 331.

32 ALVIM, José Manoel Arruda. Manual de Direito Processual Civil (ampliado a atualizado de acordo

com a Constituição de 1988). 4.ed. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p.84.

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Pode-se assim, sintetizar o exposto afirmando que a publicida-de dos atos processuais está elencada como direito fundamental docidadão, mas a própria Constituição Federal faz referência aos casosem que a lei admitirá a restrição desse princípio, quais sejam entre ou-tros o direito à intimidade e o interesse social.

CONCLUSÃO

O mundo moderno impõe a busca de novas alternativas condi-zentes com o turbulento e dinâmico macroambiente desta “aldeia glo-bal” (Mcluhan), que tem no signo do efêmero sua qualificadoraindissociável.

Realmente, o impacto revolucionário das novas tecnologias -internet correio eletrônico, telefone celular, computadores portáteis, fax,software - e dos mais modernos meios de comunicação - TV a cabo,via satélite, videoconferência, etc - parecem ser incompatíveis com asegurança jurídica, que é a razão de ser do Ordenamento Jurídico equiçá do próprio direito em sua essência.

E é nesse conturbado cenário que surge a importância maiordos princípios constitucionais: servir justamente para dar o norte paraonde o hermeneuta deve seguir nessa difícil atividade de adaptaçãodo direito posto às novas situações jurídicas que vão surgindo numplaneta globalizado, completamente diferente de tudo que já existiu.

Os princípios são, pois, neste momento de incertezas e trans-formações, o estado da arte na interpretação evolutiva, a única capazde dar vida ao direito. E eles (os princípios) estão aí espalhados portodo o Ordenamento Jurídico.

A Constituição está cheia deles, já que é Lei Fundamental a“ambiência natural dos princípios”, segundo Willis Guerra Filho. Cabea nós “descobri-los” e utilizá-los de forma adequada e satisfatória. Pa-rafraseando J. J. Calmon de Passos, diríamos que, assim como osmandamentos de Deus de nada valem para os que não têm fé, denada valem os princípios constitucionais para os que não têm a consci-ência de sua potencialidade.

Nesse contexto que se insere, o princípio da publicidade; esteprincípio está sempre em conflito com o seu oposto, que é o segredo;

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de um lado, interessa que o público saiba tudo o que ocorre nos tribu-nais, mas, de outro lado, não deixa de ser prejudicial a curiosidade gra-tuita; a Constituição Federal assim como o Código de Processo Civil eas demais normas infraconstitucionais, ficam no meio-termo e adotam oprincípio da publicidade restrita; a regra é serem os atos judiciais públi-cos, mas certas causas correm em segredo de justiça, “à portas fecha-das”, como as referentes a casamento, união estável, filiação, separa-ção judicial, alimentos etc.

Desta forma, é forçoso reconhecer a existência de limites cons-titucionais ao princípio da publicidade. De acordo com nossa Lei Mai-or, ele jamais poderá vir a ser compreendido, de modo a que propicie aviolação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem daspessoas (art. 5.º, X, c/c. art. 37, § 3.º, II (32), da CF), do sigilo da fontequando necessário ao exercício profissional (art. 5.º, XIV, da CF), oucom violação de sigilo tido como imprescindível à segurança da socie-dade e do Estado (art. 5.º, XXXIII, c/c. art. 37, § 3.º, II, da CF).

Assim, muito claro e objetivo é o inciso LX do artigo 5.º daConstituição Federal, que estatui ser a publicidade dos atos processu-ais a regra, só podendo ser restringido quando a defesa da intimidadeou o interesse social o exigirem.

Crendo ter contribuído, ao menos um pouco, para maior

compreensão do princípio da publicidade, finalizo este ensaio,

apropriando das palavras do brilhante Rui Barbosa: Pouca importância

dão, em geral, os nossos publicistas às “questões de princípios”. Mas

os princípios são tudo. Os interesses materiais da nação movem-se de

redor deles, ou, por melhor dizermos, dentro deles.

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O CORRETOR DE IMÓVEIS E O NOVO CÓDIGO CIVILBRASILEIRO

ERLON ANTONIO DE MEDEIROS

PROFESSOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DAFACULDADE MATER DEI. ESPECIALISTA EM DIREITO PROCESSUALCIVIL PELA UFPR-MATER DEI. ADVOGADO NO PARANÁ.

RESUMO

O artigo cuida da criação de uma nova figura jurídica com o advento do novoCódigo Civil brasileiro (Lei 10.406/2002), o “corretor”, não apenas o corretorde imóveis, mas corretores em geral, matéria que era tratada em legislaçãoesparsa. O texto inicia caracterizando quem seja considerado legalmentecorretor, diferenciando este da figura do mandatário, e explicando as distinçõesexistentes, inclusive entre “corretagem” e “prestação de serviços”.

ABSTRACT

The article is about the new juridical figure that appeared with the new BrazilianCivil Code ( act # 10.406/2002), the “broker”, not only the real state brokerbut all kinds of brokers , issue that was treated in a dispersive statute. Thetext begins characterizing who is considered legally a broker, different fromthe figure of a sender and explaining the differences between what is brokerageand rendering of services.

PALAVRAS CHAVE - Direito Civil; novo Código Civil brasileiro;corretagem e corretor.

Em razão do bastante próximo advento do Novo Código CivilBrasileiro (Lei 10.406/2002), que se dará a partir da zero hora (come-ço) do dia 11 de janeiro de 2003, e considerando que tal legislaçãopassa a contemplar a figura do Corretor, embora não apenas o deimóveis e sim dos corretores em geral, procuramos traçar nestebrevíssimo estudo algumas idéias gerais acerca do tema, debruçando-nos, porém, especificamente sobre a corretagem de imóveis.

Para facilitar o entendimento e evitar alongamentos desneces-sários, as referências a artigos, quando não especificadas sobre a quallegislação pertencem, e estando separadas por barra, serão semprenesta ordem: Código Civil atual (Lei 3.071/1916) / Novo Código Civil(Lei 10.406/2002).

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Como já se disse, a figura do Corretor não vinha contempladana legislação civil até a promulgação e publicação da lei 10.406/2002244 .Antes, vinha regulada em legislação esparsa (lei 6.530/78 e Dec. 81.871/78) eprincipalmente, no Código Comercial, nos arts. 36 a 67.

O Novo Código Civil, nos arts. 722 a 729, traz disposições ge-rais sobre o que chama de Contrato de Corretagem, definindo-o comoquando “uma pessoa, não ligada a outra em virtude de mandato, de pres-tação de serviços ou por qualquer relação de dependência, obriga-se aobter para o segundo um ou mais negócios, conforme as instruções re-cebidas” (NCC, art. 722).

Já que o Código as diferencia, mister definir o que seja a rela-ção de mandato e a de prestação de serviços (além das “relações dedependência”), para marcar definitivamente sua distinção com a cor-retagem.

O mandato, definido no Código Civil atual nos arts. 1.288 até o1.330, com correspondência nos arts. 653 a 692 do Novo Código Civil,em que pesem as várias alterações, está definido em ambos como “aprática de atos ou a administração de interesses de uma pessoa poroutra, mediante poderes conferidos em um instrumento”. “A procura-ção é o instrumento do mandato” (art. 1.288 / art. 653).

Assim, sempre que houver uma procuração estabelecendo po-deres para efetuar a venda ou a compra (ou permuta, etc., conforme art.3.º da Lei 6.530/78) de determinado imóvel (ou imóveis), esta relaçãoestará dissociada da corretagem, não incidindo, portanto, nenhuma dasprerrogativas conferidas aos corretores, as quais, ainda que de formabreve e sucinta, serão adiante abordadas.

Interessante mencionar que, atualmente, o procurador encarre-gado de vender um imóvel, não poderá comprá-lo jamais, sob pena denulidade absoluta, proibição esta que desaparecerá com o advento doNovo Código Civil (art.1.133 / art. 497).

O mandato, pois, ou mais especificamente, a procuração outor-gada pelo vendedor ou pelo comprador (permutantes, locador, etc.) exclui244

O Novo Código Civil já foi promulgado, ou seja, em linhas gerais, já existe, ante a sanção presidencial,e já é obrigatório, o que se dá pela publicação. Apenas não terá vigência, isto é, aplicação efetiva, antesde 11/01/2003.

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a prática da corretagem e seus efeitos, isso lógico, sendo perfeitamenteconstituído, ou seja, não padecendo o mandato de quaisquer dos víciosque possam inquinar a prática de um ato ou negócio jurídico, tais comoerro, dolo, coação, simulação, lesão, estado de perigo, etc.

De outro lado, a simples prática de atos distintos pelo mandatá-rio, e não abrangidos na procuração outorgada, quais sejam, de um ladoa atividade própria do Corretor, e de outro, absolutamente distinta, aatividade de mandatário, poderá, frise-se bem, poderá fazer com quecoexistam as duas figuras, e bem assim as remunerações específicasde cada uma delas, na medida em que, embora o art. 722 do Novo Có-digo Civil deixe genérica a definição, referindo-se apenas a “uma pes-soa, não ligada a outra em virtude de mandato”, não se poderá conce-ber que efetuando trabalhos distintos não possa a mesma pessoa serremunerada por ambos, desde que não decorrentes, especificamente,de obrigatoriedade originada em um ou em outro vínculo.

Não é, pois, qualquer ato outorgado, por meio de mandato, quefará desaparecer a relação de corretagem. E vamos mais longe: ape-nas o mandato que efetivamente prever atribuições relacionadas coma mediação da corretagem é que poderá expungi-la, por incompatível.Caso contrário, permanecerão hígidas as disposições acerca da cor-retagem.

Em linhas gerais, são estas as diferenças entre mandatário ecorretor. Há outra, importantíssima, que será mencionada adiante, naconclusão deste ensaio, eis que necessária, para melhor delinear-lheos contornos, a abordagem do tema “prestação de serviços”:

Aparentemente, mais difícil é a diferenciação da Corretagemcom a Prestação de Serviços, e bem assim quando é que uma excluiou não a outra.

A par de poder caracterizar uma relação própria de emprego,se encontrar correspondência fática na definição de empregado do art.3.º, da Consolidação das Leis do Trabalho, a Prestação de Serviços épara o direito civil um instituto que se define como a cessão temporáriade trabalho em alguma especialidade técnica do locador, que a empre-gará com liberdade na busca de um resultado ou de uma obra certa,

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embora sem vinculação com o resultado do empreendimento, medianteremuneração paga pelo locatário.

Aparentadas, sem dúvida, a Prestação de Serviços e a Corre-tagem. Em ambas “alguém” “contrata” outro alguém para conseguir de-terminado fim, sendo a especialidade técnica uma evidente decorrên-cia dessa contratação. Melhor traduzindo, o “alguém”, para a mediaçãoda corretagem, contratará pessoa habilitada para tanto, assim como emqualquer prestação de serviço se dará. Às escâncaras se poderá dizerque Corretagem é uma espécie do gênero Prestação de Serviços.

Diferem, porém, os institutos, no seguinte: a Prestação de Ser-viços é de unânimes Doutrina e Jurisprudência definida como sendouma obrigação de meio, isto é, não está obrigado o locador de serviçosa alcançar um fim, ainda que tal fim venha determinado no contrato, masapenas obrigado a empregar seus esforços e sua especialidade dabusca do objetivo indicado. Assim é, em regra, a obrigação do médico(prestação de serviços médicos): não estará ele obrigado à cura dopaciente, mas apenas obrigado a empregar seus esforços, seu conhe-cimento, os meios que tiver à disposição (sua especialidade), na buscadessa cura (objetivo). Se o próprio objetivo é o objeto da contratação,como por exemplo, ainda no campo da medicina, a cirurgia plástica, naqual ao profissional médico não basta o simples emprego de seus es-forços, não basta a simples busca do resultado, mas precipuamenteimporta o próprio resultado, temos figura que refoge ao conceito de pres-tação de serviços, beirando, ainda que não exatamente, ao de emprei-tada, embora esta seja quase especificamente ligada à construções ouexecuções de obras.

Na obrigação de meio, prestação de serviços, o profissional éremunerado proporcionalmente “ao tempo que dedicou ao trabalho,independente do sucesso do empreendimento”245 .245

RODRIGUES, Silvio.(Direito Civil, v.3. Dos contratos e das declarações unilaterais da vontade – SãoPaulo: Saraiva, 2002. Com o perdão do grande mestre, acredito que a afirmação do trecho que transcrevo,quando se faz na obra em questão a diferenciação entre Prestação de Serviços e Empreitada, é pordemais sumária. O simples “tempo” empregado na prestação de serviço não é exatamente o escopo daremuneração do contrato em questão. Melhor andaríamos, concessa maxima venia, se definíssemosque o profissional prestador de serviços é remunerado pela sua especialidade; ou pelo tempo docontrato ou o que a prestação do serviço requer; ou por atos efetivos desenvolvidos na execuçãodesses serviços, ou por tudo isso somado – tema de ensaio próximo, aliás.

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A corretagem, por sua vez, tem previsão especial na codificaçãocivil como sendo um contrato de resultado, o que deflui expressamentedo art. 725 do Novo Código Civil, com a seguinte redação: “A remunera-ção é devida ao corretor uma vez que tenha conseguido o resultado pre-visto no contrato de mediação, ou ainda que este não se efetive emvirtude de arrependimento das partes”.

Ora, se somente com o “resultado previsto no contrato demediação” é que se torna obrigatória a remuneração do corretor, evi-dente que o contrato de Corretagem somente se aperfeiçoa com a con-secução desse resultado, vale dizer, apenas com as partes, compradore vendedor, permutantes, etc., ajustados, ligados por meio de um con-trato de compra e venda ou de um compromisso de compra e venda (ououtros, previstos na legislação especial ou no contrato de corretagem),é que o corretor fará jus a percepção da comissão, ante o cumprimentode sua obrigação no liame contratual que oportunizava seus serviços.

Da mesma maneira que o problema gerado com o mandato, écerto que se irá instaurar celeuma apenas quando o contrato de pres-tação de serviços prever funções referentes à corretagem. Do contrário,como já afirmado para o mandatário, se o prestador de serviços execu-tar trabalho dessemelhante ao do corretor, as duas figuras poderão co-existir pacificamente, sem nenhum óbice de direito, devendo ser remu-nerada cada qual isoladamente.

Quando conflitam as duas funções, de prestador de serviços ede corretor, a única resposta plausível e sustentável juridicamente paraa solução do problema é encontrada na legislação especial. Vejamos:

Dispõe a Lei 6.530, de 12 de maio de 1978, que regulamenta aProfissão de Corretor de Imóveis, disciplinando ainda o funcionamen-to de seus órgãos de fiscalização, logo no seu art. 2.º, que “O exercícioda profissão de corretor de imóveis será permitido ao possuidor de títu-lo de técnico em transações imobiliárias”.

Determina ainda, a obrigatoriedade de inscrição perante o Con-selho Federal de Corretores de Imóveis, que é, juntamente com osConselhos Regionais, órgão “de disciplina e fiscalização do exercícioda profissão de corretor de imóveis, constituídos em autarquia, dotada

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de personalidade jurídica de direito público, vinculada ao Ministério doTrabalho, com autonomia administrativa, operacional e financeira” (arts.4.º e 5.º da Lei 6.530/78).

Também o art. 20, inc. II, da Lei 6.530/78, prevê expressa vedaçãoao corretor de imóveis no sentido de “auxiliar, ou por qualquer meio faci-litar, o exercício da profissão aos não inscritos”.

Assim, pode-se dizer que o Novo Código Civil veio disciplinar anecessidade de permitir apenas ao técnico corretor de imóveis regular-mente inscrito no órgão de classe, a execução da mediação referenteao contrato de corretagem.

A medida é extremamente salutar, ao tempo em que traz segu-rança nas relações jurídicas desenvolvidas em função de um efetivo exer-cício técnico e profissional da corretagem, já que a Lei 6.530/78, prevêcominação de sanção (multas, perda de registro, responsabilização porperdas e danos, etc.) em caso de inexecução das obrigações referenteà profissão, ou mesmo desídia, entre outras figuras típicas que possam,eventualmente, causar algum prejuízo ao cliente do corretor regularmen-te inscrito.

Às pessoas não registradas no Conselho Federal dos Correto-res de Imóveis, não obstante, é permitida a prestação de serviços damesma natureza, já que não há vedação legal ao exercício da ativida-de apenas aos ali inscritos, como ocorre, por exemplo, com os mem-bros da Advocacia, que têm privativas as funções inerentes à profissão(Lei 8.906/94). O contrato, porém, para o qual concorrerão tais pesso-as, jamais será um contrato de corretagem, com as disposições a elereferentes no Novo Código Civil e na lei 6.530/78, mas apenas e tãosomente pelas disposições concernentes ao mandato (art. 1288 e ss /art. 653 e ss.), como já visto, ou da prestação de serviços (art. 1.216 ess. / art. 593 e ss.), ou ainda, em uma relação de emprego, gerada pelodesvirtuamento de um contrato de prestação de serviços.

Dessa maneira, conflitando as duas figuras, ou seja, coexistin-do em uma única pessoa o contrato de prestação de serviços e a regu-lar inscrição como corretor, prevendo ambos o exercício da mediaçãopara a aquisição, permuta, locação e outros serviços inerentes a fun-

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ção de Corretor de Imóveis, prevalecerá sempre as disposições espe-cíficas da função de Corretor de Imóveis, de nada valendo eventual ex-clusão contratual dessas disposições.

Por último, cabe explicitar o princípio de direito enunciado pelalocução latina lex specialis derrogat lex generalis, que significa,conceitualmente, que uma lei especial que regulamente determinadoscasos específicos prefere as leis gerais que eventualmente regulamen-tem, somente que em maior âmbito, a mesma situação.

Assim é, por exemplo, com as relações de consumo. Em quepesem encontrarem disposições no Código Comercial e no Código Ci-vil, são reguladas pela Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumi-dor, que é a lei especial para as estritas relações entre fornecedores econsumidores. Encontrando disposição no Código de Defesa do Con-sumidor, não se aplicam as disposições do Código Comercial ou doCódigo Civil. Não havendo regulação do fato em si na lei especial, acompetência novamente será das leis gerais, , para o caso, ou CódigoComercial ou Código Civil.

O mesmo ocorre com relação aos corretores de imóveis. Ha-vendo lei especial regulando tal atividade, que no caso é a Lei 6.530/78,as disposições do Novo Código Civil (e de outras leis quaisquer) somen-te terão aplicabilidade se não houver nada específico na lei especial.Isto está, inclusive, explícito no art. 729 do Novo Código Civil, que dispõeo seguinte: “Os preceitos sobre corretagem constantes deste Código nãoexcluem a aplicação de outras normas da legislação especial”.

Com relação as “outras relações de dependência” que o art. 722do Novo Código Civil menciona como excludentes da atividade do corre-tor, mencionamos apenas a questão do desvirtuamento do contrato deprestação de serviços, transmudando-se em relação de emprego propri-amente dita, ou seja, contrato de trabalho. Fica valendo, de qualquer modo,as considerações exaradas sobre a prestação de serviços.

Em conclusão, asseveramos que o Novo Código Civil trouxe acerteza de que o contrato de corretagem, na essência entendido comoa mediação efetuada por uma pessoa em benefício da outra para aobtenção de um ou mais negócios, no campo de imóveis, somente

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poderá ser validamente executado por Corretores de Imóveis devida eregularmente cadastrados no Conselho Federal dos Corretores deImóveis.

As pessoas comuns, não regularmente inscritas como Correto-res de Imóveis, é permitida a intermediação nesse mesmo sentido, des-de que, não com regularidade e habitualidade, já que assim estariampraticando a profissão sem inscrição regular, podendo sofrer sançõesadministrativas, civis e penais, a serem postuladas pelos órgãosfiscalizadores da classe, Conselho Federal e Conselhos Regionais. To-davia, salvo nestes casos: habitualidade e burla a lei, jamais aos nãoinscritos poder-se-á atribuir as disposições referentes ao Contrato deCorretagem ou aos Corretores de Imóveis propriamente ditos (com ins-crição regular), mas apenas, e tão somente, aquelas referentes ao con-trato de prestação de serviços, ao mandato, ou ainda, outras legisla-ções que, eventualmente, regulem a situação especial na qual estejainserido o indivíduo.

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O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO FUTURO DODIREITO PENAL BRASILEIRO

PAULO CÉSAR BUSATO

PROMOTOR DE JUSTIÇA NO ESTADO DO PARANÁ. PROFESSOR DEDIREITO PENAL NA FUNDAÇÃO ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DOESTADO DO PARANÁ, NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTAGROSSA E NA FACULDADE DE DIREITO DOS CAMPOS GERAIS.DOUTORANDO EM PROBLEMAS ATUAIS DO DIREITO PENAL PELAUNIVERSAIDADE PABLO DE OLAVIDE, EM SEVILLA, ESPANHA.

RESUMO

O artigo trata da evolução institucional do Ministério Público Brasileiro e oseu novo perfil à luz da Constituição Federal de 1988. O autor destaca aindependência institucional do Ministério Público e suas novas atribuições,tais como a atuação de fiscalização no emprego do dinheiro público, a defesados direitos e garantias constitucionais do cidadão e do meio ambiente,dentre outras. O texto desenvolve reflexão crítica acerca da necessidade dosprofissionais que trabalham com o Direito Penal optarem por uma nova “políticacriminal” face aos problemas que se apresentam na atualidade.

ABSTRACT

The article is about the institutional evolution of the Brazilian Department ofand its new function to the Federal Constitution of 1988. The author points tothe institutional independence of the Department of Justice and its newattributions , as the action in inspecting about where the public money isused, the defense of Constitutional rights and guarantee of the citizen andenvironment, among others. The text develops a critical thought about thenecessity of professionals that work with the Criminal Law choose a new“criminal politics” because of the problems that appear nowadays.

PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; Ministério Público; política criminal.

A RECENTE EVOLUÇÃO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIOPÚBLICO BRASILEIRO

O CRESCIMENTO DO PERFIL INSTITUCIONAL MINISTERIALDEPOIS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Certamente não constitui nenhuma novidade comentar a re-cente evolução do Ministério Público em termos institucionais. Dizer quese trata de uma instituição que recebeu um espaço constitucional ímpar

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na história da sociedade brasileira, tampouco constitui algo que já nãotenha sido esgotado em sucessivos e intensos debates dentro e fora dopróprio Órgão.

Ao invés de repisarmos estes aspectos que já fazem parte deum discurso esgotado, convém medirmos, isto sim, as conseqüênciasdessas mudanças. Basta condizer que a Carta Magna brasileira deter-mina ao Ministério Público, instituição independente dos poderes e es-sencial à prestação jurisdicional, deveres como a salvaguarda do regi-me democrático.

Para o concreto desenvolvimento de atividades, no âmbitoinstitucional do Ministério Público, que possam corresponder a essa atri-buição, é mais que nunca, imprescindível a elaboração de políticasinstitucionais voltadas claramente para dito propósito.

É sabido que a eleição de uma adequada política institucional émedida necessária para corresponder à responsabilidade social outor-gada aos Promotores e Procuradores pela via constitucional.

Essa política vem sendo intensamente debatida e posta emprática, de modo a tornar o Ministério Público uma constante presençanas movimentações sociais em busca de um país mais equilibrado,mais humano, mais justo. A formação de Conselhos Municipais fomen-tada pelos agentes ministeriais em distintos pontos do país, é um exem-plo claro de que o Órgão serve de catalisador de uma sociedade me-lhor, orientada, politicamente, no sentido da participação social. As atu-ações em áreas de interesse coletivo como o meio ambiente, o bemestar dos menores, das pessoas portadoras de deficiências, de fiscali-zação da gerência da rés pública vêm mostrando a atual amplitude eimportância que tomou a Instituição.

De outro lado, inclusive em virtude da dimensão do alarga-mento do perfil ministerial, parece-me que não foram ainda exploradasadequadamente, algumas das fronteiras dessa expansão. Há pontosde necessárias eleições de políticas institucionais que resultarão deci-sivas não só em termos institucionais como, principalmente, em termossociais.

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AS NOVAS ATRIBUIÇÕES

Convém ressaltar, antes de mais nada, que o perfil institucionalde que o Ministério Público brasileiro foi dotado pela Constituição Fe-deral de 1988 é impar. Foram congregadas em uma mesma figura oprosecutor americano e o umbudsman nórdico e ademais, acrescidasoutras funções que nenhuma das duas figuras possui.

Temos um órgão de acusação criminal que ao mesmo tempo éencarregado de fiscalizar a atuação dos demais poderes, com absolu-ta independência institucional. Ademais, este mesmo órgão pode dis-parar distintos mecanismos de investigação e inclusive propor açõescivis públicas. Pode atuar em defesa de interesses coletivos e indivi-duais homogêneos.

A atuação de fiscalização do emprego do dinheiro público é oponto chave da persecução de um ideal de representatividade políticaséria e adequada. As investigações disparadas pelos agentes do Mi-nistério Público têm valorizado a classe política, livrando-a de pessoasque denigrem a imagem de nossas instituições, e pela via de exclu-são, elevando o valor daquelas que nelas são preservadas.

Além disso, o Ministério Público foi dotado de um claro espíritopolítico democrático, na medida em que entendemos democracia comouma expressão de governo que respeita os interesses dos grupos so-ciais oprimidos. Isso se identifica na medida em que se lhe incumbe adefesa dos interesses dos menores, das pessoas portadoras de defici-ência, da saúde dos trabalhadores, dos consumidores, entre outros.Ora, bem se vê, que nesses casos, o interesse político constitucionalfoi de fazer com que o Ministério Público atuasse ombro a ombro emfavor dos pólos considerados frágeis dentro das relações sociais.

Incumbe ainda, ao Ministério Público pós-Constituição de 1988,a defesa de alguns pontos considerados essenciais à sobrevivênciada própria nação brasileira, como os direitos e garantias constitucio-nais do cidadão e o meio ambiente.

A defesa do meio ambiente no Brasil, é tarefa das mais árduas.De um lado, pelo estupendo manancial biológico de que somos dota-dos, que nos situa em patamar de importância planetária nesse aspec-

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to, e de outro, pelas dificuldades operacionais de coadunar nossas as-pirações de progresso como nação e da proteção desse manancial.Cumpre ressaltar que mesmo os países dotados de largos recursoseconômicos têm imensas dificuldades na proteção do meio ambiente.

A atribuição de proteção dos direitos e garantias individuaisconstitucionais do cidadão se traduz, acima de tudo, em um símbolo daconfiança que o Brasil deposita na instituição.

Ou seja, o Ministério Público pretendido pela nação brasileiraé de tal magnitude que a própria segurança dos cidadãos, em seus di-reitos mais fundamentais, lhe é entregue nas mãos.

Todas estas orientações devem estar em harmonia e equilíbriocom a garantia do próprio regime democrático, que culmina por ser oponto determinante e referente máximo da política institucional.

A dose de responsabilidade que acompanha esta decisão cons-titucional é de larga envergadura. Convém lembrar, a esse propósito,que as convulsões sociais e agruras econômicas que são suportadasno cotidiano do hemisfério sul, fomentam, constantes turbulências políti-cas que não raro irrompem em quedas bruscas de regimes e eclosãode revoluções patrocinadas por grupos de insatisfeitos. Estas atroci-dades foram, recentemente, e ainda são vividas inclusive, em algunspaíses fronteiriços ao nosso. Basta lembrar, a respeito, como exem-plos, o opressor governo Fujimori no Peru e o atual cotidiano de guer-rilhas na Colômbia, sem falar, é claro, nas turbulências dos governosargentino e venezuelano.

Ser o responsável pela preservação do regime democrático éuma evidente mostra do legislador constituinte de que o Ministério Pú-blico deve ser a instituição mais operante, mobilizada e atenta do país.

NOVAS PERSPECTIVAS DAS ATRIBUIÇÕES CLÁSSICAS

Um Ministério Público, até então historicamente dependente dosdemais poderes, com não mais que a singela preocupação da liça fo-rense, manejada então nos estreitos limites da mera aplicação ipsis literisda lei foi colhido de chofre por esse repentino alargamento de funções.

Está fora de qualquer dúvida que as atenções teriam que ser,como foram, divididas e espalhadas para os distintos novos campos de

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atuação institucional. Estas tarefas vêm sendo desempenhadas de ma-neira cada vez melhor, com a galhardia institucional que guindou o Mi-nistério Público a esta posição de destaque que hoje ocupa, ainda queclaramente as dimensões dessa responsabilidade apontam haver mui-tíssimo por fazer. Não se vê, a curto ou médio prazo, a possibilidade deque se alcance um equilíbrio de recursos humanos e materiais suficien-tes a suprir as necessidades que demandam as estupendas atribuiçõesministeriais atuais. É bastante evidente que a atuação do MinistérioPúblico em seus novos campos de intervenção, ainda demanda muitocrescimento e melhoria de qualidade. E também é certo que esta ex-pansão toma muito da concentração de forças institucionais.

Porém, este crescimento não livra o Ministério Público de umarevisão de suas clássicas atribuições. Já não é aceitável que o aumentode áreas de atuação, que já dura treze anos, sirva de escusa para justi-ficar a falta de uma revisão na política institucional, no âmbito penal.

O ALARGAMENTO DE RESPONSABILIDADES SOCIAIS DOMINISTÉRIO PÚBLICO NO ÂMBITO PENAL

Com esta nova perspectiva de perfil institucional, a atuação doMinistério Público, no campo penal, tende a uma clara mudança de ru-mos. É que se agrega à missão de vigília pelo controle da intervençãopenal limitativa dos excessos nas interrelações sociais, mediante intran-sigente defesa do princípio da legalidade, cuja perspectiva é obviamen-te neutral, a necessidade de fazer uma clara opção em defesa de outroscaracteres principiológicos próprios do Estado social e democrático deDireito, cuja perspectiva é marcadamente política.

Nesse sentido, para além da correta aplicação da lei, o Minis-tério Público passa a representar uma instância com clarodirecionamento ideológico em favor de uma igualdade material, que érequisito básico de admissão dos níveis de liberdade, exigidos por umregime verdadeiramente democrático.

Na seara penal, isso significa a adoção de uma perspectiva igua-litária, transcendente à mera dogmática, que admita vieses criminológicose político criminais como filtros interpretativos do papel do Promotor deJustiça no processo penal.

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Torna-se indispensável a adoção de certos referentes como umapostura de mínima intervenção, de consideração de fatores sociais comofiltros interpretativos e ampliação da perspectiva de defesa individual,frente ao interesse coletivo.

Para um desenvolvimento de uma política institucional que al-cance as dimensões propostas, convém volver os olhos às perspectivasde atuação, que oferece o direito penal moderno, situando os pontosem que a dogmática expressa, pela legislação e jurisprudência pátriasdevem ser abandonadas em prol de um redimensionamento do fenô-meno do controle penal.

UMA PERSPECTIVA DA EVOLUÇÃO DO DIREITO PENAL PÓSFINALISMO.

Não há nenhuma dúvida a respeito de que a luta de escolasentre o finalismo e o causalismo contribuiu enormemente para o de-senvolvimento da dogmática jurídico penal, legando às futuras gera-ções um instrumento sistemático de manejo do jus puniendi de grandeserventia246 .

De outro lado, também é certo que a obediência cega a umsistema, por mais perfeito que pareça, nunca é capaz de fazer frente àrealidade social com todos os matizes que apresenta.

O manejo cotidiano da dogmática jurídico penal vai gerandonos operadores do direito, reações automáticas e raciocínios que ten-dem a ser tanto menos refletidos quanto mais aperfeiçoado é o siste-ma empregado.

Acontece que, na medida em que nos especializamos em umdeterminado estudo específico, tendemos a esquecer-nos do contextoem que se produzem as teorias.

246 Nesse sentido reconhecem ROXIN, Claus, (1998), “Contribuição para a crítica da teoría final da

acção”, em Problemas básicos de Direito Penal, trad. de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz, 3ªEd. Veja, Lisboa, p. 95, e o mesmo em (1997), Derecho penal, Parte General, Tomo I. Fundamentos. Laestructura de la teoría del delito, trad. da 2ª edição alemã por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz yGarcía Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Editorial Civitas S.A., Madri, p. 244; JAKOBS, Günther,(1997, 2ª Ed.), Derecho Penal parte general. Fundamentos y teoría de la imputación, trad. de JoaquinCuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo, Marcial Pons, Madri, p. 162; e DIAS, Jorge deFigueiredo, (1999), “Sobre a construção dogmática da doutrina do fato punível”, em Questõesfundamentais do Direito penal revisitadas, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 198-199.

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Por isso, parece-me oportuno lembrar que a discussãocausalismo-finalismo, trabalhada no ensino acadêmico do Direito penal,vem sendo abordada, de modo geral, sem nenhuma consideração a res-peito do contexto geográfico e histórico em que se produziu a menciona-da discussão. E mais ainda, graças à intensa influência exercida até hojepor Nélson Hungria sobre boa parte da doutrina penal brasileira, perma-necemos ancorados naquele ponto da evolução da ciência penal marca-do pelo isolamento nefando do estudo dogmático das consideraçõescriminológicas e principalmente de política criminal.

O discurso pesado e influente de Nélson Hungria, no 1o Con-gresso Nacional do Ministério Público, no Teatro Municipal de São Paulo,Julho em 1942, cujos excertos são citados por Nilo Batista,247 em maisde uma obra, como “um texto brasileiro que não apenas propôs o divór-cio irremediável entre os saberes criminológicos e os jurídico-penais,mas também influenciou – no foro e na academia – diversas geraçõesnesse sentido”, verbis:

“Referindo-se à criminologia como “hipótese de trabalho”, Hungriafrisava que sua conjugação à reflexão jurídica implicaria na criaçãode um “produto híbrido, infecundo, maninho, estéril”. Uma filosofiado direito penal produziria tão somente “devaneios”, e a própria his-tória do direito penal – talvez o único lugar da verdade, em todasessas construções – estaria reduzida a mero “subsidio ao estudodas normas penais vigentes””, complementando que “essa teia dePenélope que se intitula criminologia nenhuma afinidade ou relaçãonecessária”. Naturalmente, não podíamos “dispensar o auxílio deoutras ciências”, que seriam, claro, a medicina legal e a psiquiatriaforense, desde que tratassem de “acomodar-se aos critérios jurídi-cos” - coisa que, diga-se de passagem, era tudo o que elas semprepretenderam, desde sua invenção. No fecho da conferência, a “nos-sa doutrina de Monroe: o direito penal é para os juristas, exclusiva-mente para os juristas” e uma advertência severa quanto a “qual-quer indébita intromissão em nosso Lebensraum, em nosso

247 Em BATISTA, Nilo, (1999, 5ª Ed.) Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, Revan, Rio de Janeiro,

p. 28, nota 9, também do mesmo autor, o Prefacio de SANTOS, Juarez Cirino dos, (2000), A modernateoria do fato punível, Livraria Freitas Bastos Editora, Rio de Janeiro, p. IX-X.

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indeclinável espaço vital”, advertência que, devidamentecontextualizada – estávamos em 1942 – sugere mais acerca de lasbrumas ideológicas daquela conjuntura do que acerca de algumcompromisso, que a obra fecunda do conferencista não permitiriareconhecer.”

Evidentemente, um discurso tão incisivo proferido por pessoatão respeitada e influente, fez com que centrássemos o estudo jurídicoem uma dogmática alijada de quaisquer considerações político crimi-nais. Estudamos “como responsabilizar penalmente alguém”, e nosesquecemos de considerar “porque aplicamos pena a alguém”. O es-tudante de direito é condicionado a justificar a aplicação da pena pelosimples enquadramento da conduta ao tipo, sem qualquer considera-ção com respeito aos fins da pena, é dizer, com respaldo unicamentedo sistema dogmático, sem considerações de política criminal.

Ocorre, que esse isolamento, por influência do discurso cientí-fico de antanho, não foi devidamente contextualizado.

Recentemente, trabalhos investigativos realizados por MuñozConde248 revelaram que, o isolamento dogmático em consideraçõesabstratas e totalmente desvinculadas da política criminal promovidopelas discussões encetadas por Mezger (causalista) e Welzel (finalista)tinham como objetivo central desviar a discussão penal para um campoavalorativo, que permitisse cair no esquecimento o então recente pas-sado nazista do primeiro. Muñoz Conde, em seu livro, principalmente nasegunda edição, lançada já em 2001, apresenta diversos trabalhos jurí-dicos de Mezger, perfeitamente conjugados com o estado nacional-so-cialista.

A par da evidentemente positiva colaboração da discussãodogmática causalista-finalista para o crescimento do estudo de um sis-tema jurídico-penal, não se pode esquecer que o direito penal não pode,simplesmente, isolar-se de considerações políticas. Aliás, se pode di-zer justamente o contrário, que o Direito penal é a parte mais ideologizadado direito249 .248

MUÑOZ CONDE, Francisco, (2ª ed. 2001), Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo. Losorígenes ideológicos de la polémica entre causalismo y finalismo, Tirant lo Blanch, Valencia.249

Conforme MUÑOZ CONDE, Francisco, (2000), Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo. Losorígenes ideológicos de la polémica entre causalismo y finalismo, Tirant lo Blanch, Valencia, p. 48.

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A SUPERAÇÃO DO MODELO FINALISTA

A discussão entre o modelo causal e o finalista de ação, tiveramcomo campo de discussão, a dogmática jurídico penal. Por cerca decinqüenta anos, os principais juristas do mundo tentaram demonstrar aprevalência desta ou daquela proposta de ação, mediante a demonstra-ção de que sua escolha levava a melhores soluções pelos efeitos quetinha na configuração sistemática. Assim que sucessivamente as cate-gorias do delito se foram aprimorando mediante constantes e sucessi-vas lapidações. O resultado final foi a existência hoje de um modelodogmático bastante aperfeiçoado, com prevalência da tese finalista.

O finalismo, em termos estritamente “welzelianos”, ainda man-tém importância dogmática, ademais de possuir respeitados defenso-res como Juarez Cirino dos Santos250 , Hirsh, Zafaroni251 e Cerezo Mir252 .

Mas, de todo o modo, a maioria da doutrina penal espanhola ealemã, que hoje são, reconhecidamente, as mais desenvolvidas do mun-do, vem apontando para uma superação desse modelo, menos por ques-tões internas do próprio sistema e mais por outras relacionadas com osresultados de sua aplicação.

É que a inegável perfeição interna do sistema dogmático nãolivrou-o da produção de resultados práticos que podem ser qualifica-dos, historicamente, como nada menos do que «injustos». A face doamargor prático restou evidenciada, conforme narra Hassemer253 , nasituação do pós 2a Guerra Mundial, na Alemanha, com a impossibilida-de de buscar a punibilidade de “delatores cujos informes expuseram osdenunciados à violência estatal e a punibilidade dos juízes que aplica-ram “leis injustas” então vigentes”.

Ora, era evidente que os que atuaram de acordo com o siste-ma, nem sequer chegaram a praticar delitos por falta de ação típica.

250 SANTOS, Juarez Cirino dos, Op. cit., p. 31.

251 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, (1996, 6ª Ed.), Manual de Derecho Penal – parte general, Ediar, Buenos

Aires, p. 338 y ss.252

CEREZO MIR, José, (1995), “O finalismo, hoje”, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 12,Outubro-Dezembro de 1995, p. 39-49, trad. de Luiz Régis Prado, Editora Revista dos Tribunais, SãoPaulo, pp. 42-43.253

HASSEMER, Winfried, (1994), “História das idéias penais na Alemanha do Pós-Guerra”, em RevistaBrasileira de Ciências Criminais, n. 06, Abril-Junho de 1994, p. 36-71, trad. de Carlos EduardoVasconcelos, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 38.

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Assim, a base positivista que vincula o sistema legal a postula-dos de verdade absoluta e irrenunciável, que no caso nazista, foram asnoções de raça e povo, não tem como criticar o resultado da aplicaçãodo sistema. Menciona ainda Hassemer,254 que “quem não estiver dis-posto, pelas mais variadas razões, a reconhecer uma diferença entre lei(positiva) e Direito (justo), não consegue discutir o fenômeno [...] nãoconsegue sequer ver onde está o problema”.

Justamente, considerações dessa ordem deram seguimento àevolução do Direito penal que encontrou um importante marco com aedição, em 1970, da famosa monografia de Claus Roxin Kriminalpolitikund Strafrechtssystem, na qual o brilhante jurista alemão propõe umareleitura da dogmática jurídico penal, a partir de considerações políticocriminais. O trabalho de Roxin segue sendo um marco do que se de-nominou “funcionalismo”, e que se traduz na elaboração dogmática doDireito penal que leva em conta as conseqüências de sua própria apli-cação. O controle social expresso pelo sistema penal carecia de umajustificativa, ou seja, tinha que identificar-se com uma função útil paraa sociedade e não com uma mera forma de dominação.

Esta proposta funcionalista, no dizer de Figueiredo Dias255 , é oque “alavancou” um novo Direito penal.

As propostas de Roxin põem em cheque a utilidade e justiçade um “sistema penal”, incitando-nos perguntar até que ponto é vantajo-sa a utilização de um sistema, na medida em que ele não produz resulta-dos justos. A dogmática se decantou então pela recuperação de um sen-tido axiológico das premissas sistemáticas, o que originou um giro àperspectiva funcionalista. O reconhecimento de que um sistema, porperfeito que pudesse ser, gerava decisões injustas, fez com que se con-cluísse pela falsidade das premissas absolutas de cunho positivista quenutriam o sistema e se voltasse a propor o reconhecimento de categori-as básicas de cunho valorativo, dando ensejo ao giro fincionalista.

Evidentemente, a interpenetração de considerações políticoscriminais no sistema dogmático, não significa anarquismo. Quer dizer, a

254 Ibid., p. 38.

255 DIAS, Jorge de Figueiredo, Op. cit., p. 204.

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proposta funcionalista não implica no abandono completo do sistemaherdado do finalismo. Inclusive, porque é absolutamente necessária uma“gramática jurídica” que possa gerar decisões coerentes. A proposta dofuncionalismo consiste em valorar as conseqüências da aplicabilidadedesse sistema, procurando interpretar os indispensáveis conceitos sis-temáticos de acordo com uma política criminal situada em critérios dejustiça, que se encontram nos princípios básicos do Direito penal.

Assim, para Roxin, o tipo penal deve ser estruturado a partir doprincipio de legalidade ou reserva legal. Quer dizer, é atípica a condutaque não obedeça estritamente às quatro vertentes desse princípio256 . Aantijuridicidade é vista como o “âmbito de solução dos conflitos de inte-resse”257 , onde importa fixar a existência da antijuridicidade material,configurada a partir do dano ou do perigo a um bem jurídico fundamentalpara o desenvolvimento social do indivíduo. Finalmente, a culpabilidadese traslada para o campo estritamente normativo de considerar “como eaté que ponto é preciso aplicar a pena a um comportamento em princí-pio punível”258 .

Um estudo moderno de Direito penal não pode deixar de ocu-par-se de considerações político criminais.

Finalmente, com o sustentáculo filosófico das obras deHabermas e Wittgenstein, se pode pensar hoje, como faz Vives Antón259 ,em propostas sistemáticas para o direito penal cujas categorias bási-cas estão situadas de modo eqüidistante do ponto de vista do sujeito edo objeto.

A CRISE DO DIREITO PENAL MODERNO

A vida do homem em sociedade tem algumas peculiaridades.Existem limites de tolerabilidade. Ou seja, os homens, vivendo em soci-edade, se inter-relacionam, o que faz com que as esferas de direitos eobrigações entrem em sucessivas interseções.256

Para uma análise detalhada das vertentes do princípio de legalidade recomenda-se TOLEDO, Franciscode Assis, (1994) Princípios básicos de Direito Penal, Editora RT, São Paulo.257

ROXIN, Claus, (2000), Política criminal y sistema jurídico-penal, trad. Luís Greco, Renovar, Rio deJaneiro, pp. 30 e ss.258

Ibid., p. 31.259

Para mais detalhes a respeito desta proposta, ver VIVES ANTÓN, Tomás Salvador, (1996), Fundamentosdel Sistema Penal, Tirant lo Blanch, Valencia.

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Evidentemente, que esta sociedade, para se manter viva, temque lançar mão de alguns mecanismos, para regrar estes pontos deinterseção de modo a evitar que sua principal característica se convertaem causa de sua destruição. Assim se criam as normas. O controle so-cial é exercido por várias instâncias como família, religião, ambiente detrabalho, etc., e é exercido em diferentes graus de profundidade. Quantomais grave o desvio de comportamento, mais grave a resposta.

Evidentemente, neste sentido, a organização mais complexagerada pela sociedade, que é o Estado, acaba encarregado de ser oresponsável pelo controle social, nos casos, em que os desvios, em re-lação ao comportamento indesejável, atingem os níveis mais arriscadose insuportáveis para essa mesma sociedade. Com isso se formaliza anorma e as regras de controle, através da realização do Direito. E den-tre todas as situações submetidas ao regramento normativo estatal, sãoaquelas mais intoleráveis e agressivas de bens mais essenciais quevem a merecer a intervenção do Direito penal.

Acontece que, o Direito penal, com o tempo, passou a viver su-cessivas modificações de seu campo de incidência que foram im-pulsionando, como já mencionamos, sucessivas mudanças estrutu-rais e de configuração.

Atualmente, as exigências sociais levaram o Direito penal mo-derno a um ponto de quase saturação.

A doutrina tem apontado para alguns focos que tem levado oDireito penal a perder suas características de instrumento de última in-tervenção, seu perfil de formalização e certeza e se convertendo emum instrumento meramente simbólico e com reduzida efetividade.

O primeiro ponto é a questão do bem jurídico. A sociedade en-contra, no Direito penal, a expressão mais contundente do controle esta-tal e postula que sua intervenção se espraie, cada vez mais por setoresque já não correspondem mais aos bens jurídicos de cuja proteção, clas-sicamente, ele se encarregava. Agora, já não se trata mais de protegera vida, a saúde, a liberdade ou o patrimônio individual, mas sim de pro-teger a saúde pública, o meio ambiente, o correto funcionamento domercado, um sistema econômico. Isso porque, ao contrário do clássico

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perfil de cirtério negativo, limitador da intervenção estatal, o bem jurídico“se converteu em critério positivo para justificar decisõescriminalizadoras”260 .

Evidentemente, como anota Hassemer261 , “esta política temcomo fundamento a idéia de que o Direito penal é um instrumentonormativamente aceitável e realmente efetivo de condução”, no senti-do de levar a uma obediência à proibição normativa.

Aqui, não se trata de questionar, até que ponto os novos bensjurídicos coletivos são ou não “essenciais ao desenvolvimento indivi-dual do cidadão” para justificarem uma intervenção do Direito penal,mas isto sim, constatar como é levada a cabo dita proteção.

É cediço, que as mudanças de conceitos operadas em campostão vastos como podem ser considerados conceitos como “meio ambi-ente” ou “economia popular”, são velocíssimas. Estas mudanças leva-riam a um anacronismo precoce e indesejado dos tipos penais eventu-almente centrados em uma disposição precisamente determinada. Essarealidade conduz o legislador a lançar mão da técnica das normas penalem branco com assustadora freqüência. A par disso, a dificuldade dereparação e a extensão dos danos identificados em bens jurídicos, me-tas individuais têm levado os legisladores a recorrerem também amiú-de, ao recurso do adiantamento das barreiras político criminais atravésda tipificação penal de condutas de perigo, notadamente de perigo abs-trato. A tudo isso, Hassemer, nomina “exacerbo da idéia de prevenção”262 .

A par disso, a busca de uma justiça penal mais eficiente se temtraduzido, também, em uma desformalização do processo263 que con-duz, de um lado, à redução das garantias processuais, onde o princípioda legalidade cada vez mais cede espaço às idéias de oportunidade,de outro, à busca de uma efetividade que é mais simbólica do que efe-tiva, uma vez que conduz a, rapidamente, a uma pena que, de regra éinepta a alcançar os objetivos a que se propõe.260

Assim em HASSEMER, Winfried, (1999), Persona, Mundo y Responsabilidad, trad. de FranciscoMuñoz Conde e María del Mar Díaz Pita, Tirant lo Blanch, Velencia, p. 47.261

HASSEMER, Winfried, (1996), Crítica al Derecho penal de hoy, Trad. de Patrícia S. Ziffer, Ad-Hoc,Buenos Aires, p. 59.262

HASSEMER, Winfried, (1999), Op. cit., p. 49.263

HASSEMER, Winfried, (1994), Op. cit., p. 63.

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Finalmente, convém observar que o discurso da “necessidadede providências” nas áreas de meio ambiente, criminalidade organiza-da, delitos informáticos e outras, corresponde a um Direito penal mera-mente simbólico, que tem levado à substituição de um modelo de ultimaratio a uma intervenção máxima, com sucessivas legislações nestescampos, procurando dar algum tipo de proteção à áreas tão amplasquanto inabarcáveis pelo instrumental manejado pelo Direito penal.

Porém, esse mesmo direito penal moderno, em cada um des-ses pontos chega a não cumprir seus objetivos e ademais, arrasta aciência penal a um sumidouro.

Hassemer264 apresenta os problemas do Direito penal moder-no como situações que são produtos do funcionalismo, da orientaçãoda dogmática às suas conseqüências, que conduziram a própria pro-posta funcionalista a uma crise, chegando a afirmar que “[...] o Direitopenal funcional despedaçou a ratio original da orientação para as con-seqüências”.265

Segundo nos parece, estes mesmos problemas evolutivos doDireito penal, sempre estiveram presentes, claro que cada qual com suasvicissitudes próprias do momento histórico-social vivido, com a diferen-ça que sob um referente positivista, eles simplesmente eram despreza-dos. Os conflitos vividos pelo Direito penal moderno não são pois, pro-priamente, “produtos” do direcionamento funcionalista, senão que as-sim é sua percepção.

De outro lado a orientação às conseqüências, mais do quelocalizar os problemas que vive o direito penal, nos incita a proporsoluções para eles, ao contrário de simplesmente esquecê-los ou vol-ver-lhes as costas, soluções estas que devem ser buscadas no própriomodelo funcionalista.

OPÇÕES POLÍTICO CRIMINAIS DO DIREITO PENAL MODERNO.

A partir dessa situação de crise dos paradigmas penais,estamos, claramente, vivendo um momento histórico, em que se faz ne-cessário, que cada operador do Direito penal anuncie sua opção políti-264

Ibid., p. 69.265

Ibid., p. 70.

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co criminal. A crise de paradigmas determina, no dizer de Kuhn266 o apa-recimento de um novo referente para solucionar o problema apresentado.

Dada a necessidade de superação do isolamento da dogmáticae da política criminal, as modernas correntes doutrinárias do Direitopenal apontam para a necessidade de fazer escolhas entre distintasdireções, com vistas a responder duas perguntas principais.

Em primeiro lugar, incumbe decidir: o moderno Direito penaldeve intervir nos novos campos de atuação que para ele reserva asociedade moderna, ou deve ceder passo a outros mecanismos decontrole?

Em segundo lugar, se propondo a intervir, constatada a evi-dente contradição entre o tradicional sistema dogmático e amodernidade dos objetos sobre os quais se debruça, que tipo de postu-ra sistemática melhor responde a estes desafios?

Com relação à primeira pergunta, convém ressaltar que nãosão poucos os juristas de renome que, diante do evidente conflito entrea dogmática tradicional do Direito penal e as modernas exigências quelhe têm sido lançadas, entendem que estes novos campos não devemfazer parte das preocupações do Direito penal.

Entre os que assim entendem, a proposta é, que campos comoo meio ambiente, as relações de consumo e outros cuja maleabilidadeconceptual e imprecisão de bens jurídicos torna difícil o encaixe de seusdispositivos nas garantias da parte geral do Direito penal legislado, de-vem ser transferidos para uma outra esfera de intervenção estatal, ge-rando um formado de um Direito de intervenção267 , ou mesmo um novoe diferente Direito penal, mais ágil e menos rígido quanto a garantias,

266 Para Kuhn, quando um problema científico apresenta características de ser insolúvel mediante as

regras dominantes da ciência que se ocupa de seu estudo, se instaura uma crise que origina um cambiode paradigmas, o o que finalmente conduz à «ciência extraordinária», ou seja, à reordenação dospadrões científicos para o estabelecimento de novos paradigmas. Para comentários em detalhes, verKUHN, Thomas S., (1989), ¿Qué son las revoluciones científicas? y otros ensayos, trad. de José RomoFeito, Ediciones Paidós, Barcelona, pp. 21 e ss., e o mesmo, (1987), La estructura de las revolucionescientíficas, Ed. Fondo de Cultura Económica, Madri, pp. 26 e ss.267

Nesse sentido HASSEMER, Winfried, (1999), P. Cit., p. 67, menciona que “A solução está em eliminaruma parte da mordernidade do atual direito penal, levando a cabo uma dupla tarefa: por um lado,reduzindo o verdadeiro direito penal ao que se denomina «direito penal básico», y, por outro,potencializando a criação de um «direito de intervenção» que permita tratar adequadamente os problemasque só de maneira forçada se podem tratar dentro do direito penal clássico.

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fazendo com que fiquemos com um Direito penal de duas velocidades268 .De outro lado, caso se entenda que o Direito penal deve aceitar

a missão que a sociedade moderna dele vem solicitando, incumbe re-solver as inegáveis incompatibilidades, por exemplo, entre a inseguran-ça do uso freqüente e desmedido de normas penais em branco e ostipos de perigo e as garantias oriundas do princípio de legalidade. In-cumbe revisar e definir, claramente, os fins da pena, e finalmente, incum-be fazer uma clara abordagem do conceito de bem jurídico que devemerecer a proteção penal.

Assim, uma vez que se opte pelo enfrentamento do desafio domoderno direito penal, através de uma dogmática funcionalista, incum-be saber de que modelo de funcionalismo estamos falando.

Se apresentam, aqui, duas vertentes que podem seridentificadas como funcionalismo sistêmico ou estratégico e funciona-lismo teleológico.

A idéia de funcionalismo sistêmico provém, principalmente, daobra de Günther Jakobs, que se baseando nas concepções sociológi-cas de Luhmann, transfere a teoria dos sistemas para o campo doDireito. Propõe, portanto, uma reorientação do sistema desde o pontode vista do indivíduo para o ponto de vista do próprio sistema. Ou seja, aestabilização normativa passa a ser o objetivo principal da aplicação dosistema jurídico. Com isso, a fundamentação da pena, o que justifica apunição, é a busca de afirmação de validade da norma, posto que suaviolação é disfuncional ao sistema.

Resolve-se a questão do bem jurídico convertendo a norma emcentro de interesse. Ou seja, independentemente, do bem jurídico viola-do pela conduta incriminada, esta sempre se traduzirá em lesão da pró-pria norma, justificando a reação do sistema com vistas a afirmar a validezda norma e motivar a confiança da sociedade, no sentido de sua confir-mação.

268 Nesse sentido SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María, (1999), La expansión do Derecho penal. Aspectos de

la política criminal en las sociedades post-industriales. Cuadernos Civitas, Civitas Ediciones, Madri,propõe a adoção de um “Direito penal de duas velocidades”, mantendo, de um lado, a estrutura do Direitopenal clássico e de outro, acrescentando um “novo Direito penal”, mais flexível, encarregado de lidarcom as exigências atuais.

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O grau de legalidade ou ilegalidade das técnicas deincriminação, finalmente, também terá pecessor referente estabilizaçãosocial pela via da estabilização normativa. Ou seja, toda técnica deincriminação que produza uma norma não conflitiva com o sentido deestabilização do sistema será válida. Somente cobrará ilegitimidade anorma criada mediante uma técnica de incriminação que gere resulta-dos, sistematicamente, disfuncionais, independentemente da necessi-dade ou não de flexibilização principiológica. Até porque, os própriosprincípios podem, eventualmente, conflitar com o sentido de confiançada sociedade na efetividade normativa, caso em que, deverá ceder oespaço à norma.

A outra opção, traduzida no chamado funcionalismo teleológicoparte da concepção de uma necessidade revisional do sistema combase em seus resultados, propondo um método, a um só tempo dedu-tivo e indutivo. Roxin, o principal defensor desta postura, propõe des-de seus primeiros trabalhos, que se mantenha o sistema sob permanen-te correção de seus resultados. Assim, entende que deve haver aplica-ção de um sistema geral ao caso concreto, após o que, analisar os des-vios produzidos pela aplicação do sistema ao referido caso,realimentando o sistema com as correções de rumo necessárias à pro-dução do resultado justo, desde um ponto de vista principiológico.

Segundo esta concepção, deve haver uma constante revisãocategorial da sistemática do delito, sem que isso implique na migraçãopara uma total casuística.

Assim, segundo Roxin, e os partidários desta vertente, os prin-cípios orientadores da política criminal penetram e influenciam o pró-prio sistema dogmático, pelo que, as técnicas de incriminação que even-tualmente conflitarem com os princípios e garantias devem serrechaçadas.

De outro lado, o bem jurídico individual, enquanto imprescindí-vel ao desenvolvimento social do indivíduo, segue sendo o ponto de re-ferência de proteção do Direito penal, posto que se trata de uma conse-qüência direta do princípio de intervenção mínima.

Finalmente, a pena deve orientar-se também

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principiologicamente, excluindo de sua fundamentação tudo o que nãocorresponda à função de garantia dos limites mínimos de progressosocial dos cidadãos. Nesse sentido, Roxin anuncia que “se o Direitopenal tem que servir à proteção subsidiária de bens jurídicos y com issoao livre desenvolvimento do indivíduo, assim como à manutenção deuma ordem social, baseada neste princípio, isso só; e bastante paradeterminar que conduta o Estado pode punir”269 .

Estas são, em suma, as questões de que a política criminal emgeral, deve ocupar-se no tocante ao Direito penal moderno.

O MINISTÉRIO PÚBLICO E O FUTURO DIREITO PENALBRASILEIRO

A NECESSIDADE DE UMA OPÇÃO POLÍTICO CRIMINALINSTITUCIONAL DENTRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

É possível e necessária uma revisão da política institucionaldo Ministério Público, no que se refere à sua atuação no processo pe-nal. Mais que isto, é urgente para adequar-se à função primordial deguardião do regime democrático, à vista de que o Direito penal é justa-mente a arma mais contundente de que dispõe o Estado para manterum grau de controle necessário sobre as inter-relações sociais.

Não é aceitável que a complexidade do atual perfil de atribui-ções converta os agentes de execução do Ministério Público em sim-ples “despachantes criminais”, ocupados de pleitear meramente oemprego do rigor sistemático de dogmática jurídico penal, ademais demeros fiscais da aplicação sistemática e anódina da pena.

É justamente o amplo perfil constitucional conferido à Instituiçãoministerial que lhe empresta o mesmo cariz que se pretende do Estadobrasileiro como um todo. Pode-se dizer, dado o volume e importânciadas atribuições conferidas ao Ministério Público, atualmente, que ele éresponsável por grande parte da configuração da postura da sociedadebrasileira, frente ao Direito, notadamente, frente ao Direito penal.

Porém, esta relação é de mão dupla. Do mesmo modo que aintervenção do Ministério Público brasileiro determina, politicamente, o

269 ROXIN Claus, (1997), Op. cit., p. 81.

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perfil social do país, esta mesma atuação deve estar sintonizada aosanseios populares. Da mesma maneira com que a atuação dos Promo-tores de Justiça e Procuradores politiza a sociedade brasileira, a socie-dade, por seu turno, exige que os seus defensores mais ferrenhos epoderosos batalhem pela consecução dos objetivos que realmente lheinteressam, e da forma que lhe interessa.

Ao assumir cargo da defesa do regime democrático, o Ministé-rio Público fez uma necessária opção em favor da sociedade brasileira,e os pontos de insatisfação social passam a ser prioridades. Onde asociedade não está satisfeita com o sistema, incumbe ao MinistérioPúblico convertê-lo em um modelo correspondente àquelas aspirações.

Nesse ponto, convém ressaltar a clara insatisfação social paracom o modelo penal que manejamos atualmente. A Justiça penal no Bra-sil, tem funcionado majoritariamente mediante a pura e simples aplica-ção sistemática da lei ao caso concreto, seguindo um modelo herdadoda tradição positivista mais arraigada. Com exceção das propostas dedireito alternativo ou de uso alternativo do direito, muito pouco se temfeito no sentido da adoção de uma alteração real de perspectivas naseara penal.

Se faz oportuno lembrar que nosso modelo legislativo confereprimazia à ação penal pública incondicionada. Ainda que a Lei 9.099/95,tenha conduzido aos Juizados Especiais Criminais, uma boa parte dasdemandas, as chamadas “de menor potencial ofensivo”, abrindo espaço,lá, para matizações da implacável aplicação sistemática da lei, grandeparte da “demanda criminal” segue nas varas da Justiça comum. Ade-mais, mesmo nos Juizados Especiais, o Ministério Público goza de atu-ação preponderante e é muito reduzido o espaço de intervenção queexclui sua participação.

Diante de um quadro com estas dimensões, fica evidente queos Promotores e Procuradores de Justiça têm decisiva influência nosrumos político criminais brasileiros e não podem fugir, portanto, à defini-ção muito clara de suas propostas institucionais nesse campo.

Não é aceitável justificar uma inércia mediante a afirmação deque a legislação é que determina o modelo político criminal e que esta é

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anacrônica. Isso por dois motivos. Primeiro que o anacronismo legislativoé genérico e não específico, é congênito e não passageiro. Digo issoporque as legislações de que dispomos não são inadequadas e/ou in-suficientes somente no âmbito penal, senão em todas as esferas, inclu-sive naquelas outras áreas em que o Ministério Público atua desde hápouco. É também impossível que a legislação acompanhe o atual ritmode desenvolvimento científico das demais áreas da ciência, onde estecrescimento ocorre de modo exponencial. A regulação legislativa sem-pre se encontrará muitos passos atrás da evolução social e tecnológica.Basta ver, a esse respeito, as dificuldades em regular os negócios e osdelitos cibernéticos. O segundo motivo resulta também evidente: é quepor mais que se a legislação possa ser vinculante, a eleição a respeitoda oportunidade de sua efetiva aplicação é prerrogativa exclusiva einarredável dos agentes de execução ministeriais e mais, nenhum con-ceito jurídico penal pode ser considerado absolutamente isento de crité-rios de interpretação, já que a ciência penal é criação humana.

Uma postura de inação quanto ao estabelecimento de diretri-zes político criminais, não pode ser considerada confortável, na atuali-dade. Os criminólogos há muito tempo, e os penalistas mais recente-mente, vêm apontando com estarrecedora freqüência para o inegávelfato de que o sistema penal tem contribuído historicamente para amanutenção do sistema de poder e para a preservação de desigualda-des sociais270 . Ora, uma postura de conformismo quanto às revisõesdas políticas institucionais, no campo penal, converte o Ministério Públi-co em uma entidade conivente com um sistema díspar que se opõe jus-tamente à função de guarda do regime democrático.

Se ao Ministério Público incumbe tomar a frente da responsabi-lidade pela política criminal, e se esta atuação deve corresponder aosanseios sociais de um Estado democrático de Direito, convém estabe-lecer escolhas modernas e adequadas nesse âmbito, revisando porcompleto os posicionamentos a respeito da aplicação sistemática dalei, no campo penal.270

Ver, neste sentido, com mais detalhes, SANTOS, Cláudia, (2001), O Crime do colarinho branco (daorigem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiçapenal), Coimbra Editora, pp. 132 e ss. e ZAFFARONI, Eugenio Raúl, (1996, 6

a Ed.), Op. cit., p. 34 e ss..

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Como já referido, a existência de um sistema, em si, não é má.O problema está em que este sistema não corresponda aos anseiossociais de Justiça. Não é aceitável mais que a simples vigência de umCódigo Penal, inspirado por um modelo finalista, datado de um períodode exasperação dogmática signifique a presença de grilhões políticocriminais que impeçam o Ministério Público de dar resposta aos deve-res que têm perante a Justiça social penal.

OS EFEITOS DE UMA OPÇÃO POLÍTICO CRIMINAL MINISTERIALPARA O DIREITO PENAL BRASILEIRO

Como já mencionado alhures, o Ministério Público detém umaabsoluta primazia no manejo do instrumental penal. O perfil de nossalegislação transpira a clara intenção de manter a vítima afastada do con-flito, mediante a intervenção estatal. O Estado manifesta, com isso, aintenção clara de reservar a si próprio, com quase exclusividade, aconcreção do jus puniendi. A maioria dos processos criminais seguesendo de iniciativa do Ministério Público.

É sabido que a realidade social é a mola impulsora do desenvol-vimento das ciências sociais entre elas o Direito. O Direito penal, em seuestudo dogmático responde, à toda evidência, principalmente aos fatosreais com que se depara a jurisprudência. O estudo sistemático do Direi-to penal ganha vida somente em sua aplicação ao caso concreto.

Logo, as questões dogmáticas e político criminais que vão sen-do trazidas ao processo penal são os pontos de referência para o deba-te e aperfeiçoamento dogmático.

Assim que as eleições de diretrizes político criminais referentesà atuação do Ministério Público, tem necessariamente grande influêncianos rumos que seguirá o Direito penal brasileiro, tanto no estudo dadogmática, da política criminal como no desenvolvimento de uma ne-cessária linguagem própria que corresponda aos objetivos visados peloEstado com a aplicação das conseqüências jurídicas do delito. Não te-nho qualquer dúvida de que cada Promotor de Justiça, em sua atuaçãopolítico criminal cotidiana, onde decide a respeito dos rumosinterpretativos de cada impulso da Justiça Criminal, traz a lume os pon-tos que vão ser objeto de discussão técnico-jurídica.

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Vivemos em um momento de superação de um modelo de siste-ma jurídico-penal, encerrado em grades ontológicas, para a passagema um Direito penal “vivo”, que tem em conta sua capacidade de dar umaadequada resposta social ao problema da criminalidade (sua funciona-lidade).

Assim é muito importante que o Ministério Público esteja cons-ciente do papel determinante que exerce na evolução do desenvolvi-mento dogmático do Direito penal brasileiro, dado que suas opçõespolítico-criminais representam um papel de verdadeiro “filtro” das ques-tões que doravante tendem a ser postas em discussão.

ODE EM DEFESA DE UM DIREITO PENAL GARANTISTA

Ressalto antes de tudo, neste ponto da análise, que as própri-as características da instituição ministerial revelam a mais absoluta in-dependência dos seus membros quanto à escolhas e opiniões, o quegera uma saudável e constante divergência.

De qualquer modo, nossa pretensão ao passar às considera-ções seguintes não é – longe disso – de buscar uma uniformização depensamento, no campo de atuação criminal. O que se pretende é tão sópôr a lume alguns tópicos merecedores de atenção dos órgãos respon-sáveis pela política institucional do Ministério Público. Ao lado disso, seoferece um ponto de vista a respeito das questões postas, com tão só opropósito de oferecer um ponto de partida para as discussões.

Para isso voltamos aos dois pontos de enfrentamento.Quanto ao primeiro, a questão do chamamento do Direito penal

ao enfrentamento de novos fronts e, com isso, o reconhecimento de quese amplie o seu âmbito de aplicação, cumpre fazer algumas reservas.

Parece que o temor a respeito do chamado fenômeno de «ex-pansão» do Direito penal271 , merece ser esmiuçado. A análise realizadapela doutrina européia, ao trasladar-se para a nossa realidade, procedeapenas em parte. Silva Sánchez situa a origem do referido processo maisalém de uma perversidade estatal em legislar com o simbólico, mais exa-

271 Segundo Silva Sánchez um tal fenómeno se traduz na “Criação de novos “bens jurídico-penais”, ampliação

dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativizaçãodos princípios jurídico-criminais de garantia”. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María, Op. cit., p. 17-18.

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tamente no modelo social que se formou nos últimos decênios,272 origina-do da chamada Risikogesellschaft (sociedade de riscos) e da crise domodelo de bem estar social. Ocorre que, na verdade, na América Latinaeste duplo fundamento não pode ser apontado.

O que sucede é, desde o ponto de vista cultural, que a Améri-ca Latina ainda se debate por livrar-se do estigma colonial, e isso éretratado, claramente, nos modelos de Estado adotados, sendo que nãose pode falar absolutamente, em termos de Brasil, na falência de umEstado Social que, historicamente, não foi vivido.

Assim, a justificativa da expansão parece não ser a mesma.As críticas quanto à expansão do modelo penal provêm mais uma vezde estarmos procedendo uma nociva «importação de conceitos».

Ademais, o Direito penal, como outra qualquer ciência sofreconstantes modificações e se vivemos um fenômeno de neo-criminalização, também vivemos, paralelamente, um movimento dedescriminalização. Parece, isto sim, que mais que um movimento deexpansão, o Direito penal vive um fenômeno de «migração», posto queao mesmo tempo que surgem novas áreas de interesse penal como omeio ambiente, a economia popular, se debate à possibilidade de dimi-nuir a intervenção em outros campos como os crimes contra os costu-mes, o uso de entorpecentes, o aborto, etc..

Convêm admitir, porque é absolutamente verdadeiro, que emtermos brasileiros, os processos de novas incriminações têm sido farta-mente mais extensos e rápidos que os de descriminalização. Porém,este fato, que sem dúvida merece ser atacado, é um fenômeno à parte,ligado com o que foi muito bem identificado por Zaffaroni273 como «in-justo jushumanista», e não tira a característica migratória dos camposde interesse do Direito penal.

272 Ibid., p. 19-20.

273 Zaffaroni explica que “Toda a América Latina está sofrendo as conseqüências de uma agressão aos

Direitos Humanos (que chamamos de injusto jushumanista), que afeta o nosso direito ao desenvolvimento,que se encontra consagrado no Art. 22 (e disposições concordantes) da Declaração Universal dosDireitos Humanos.” E continua, afirmando que “este injusto jushumanista de violacão do nosso direito aodesenvolvimento não pode ser obstaculado, una vez que pertence à distribuição planetária do poder.Todavia, faz-se necessário que se resguarde de seus efeitos”. Ver ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI,José Henrique, (1997), Manual de Direito Penal Brasileiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, pp. 80 e ss.

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Assim sendo, vista a migração dos interesses jurídico penaiscomo característica permanente, própria da evolução social, não é pos-sível amparar-se nela para justificar que o Direito penal não deva seguiratuando nos campos cujas agressões sejam consideradas as mais im-portantes, desde um ponto de vista da proteção dos bens jurídicos es-senciais, ao desenvolvimento do cidadão na sociedade.

Importa acrescentar que a alternativa, quer seja a adoção deum sistema de dupla via (ambas penais) ou a criação de um novo ramode direito público sancionador implica, necessariamente, na criação deum híbrido entre o atual direito administrativo e o direito penal.

Entretanto, nada garante que este híbrido responderá às aspi-rações vaticinadas, já por um longínquo Radbruch274 de “alguma coisade melhor que o direito penal, e simultaneamente, de mais inteligentee mais humano do que ele”. Na verdade, o temor é que ocorra justa-mente o contrário, ou seja, que este “novo ramo do direito” que venhaa intervir nos novos campos de proteção, combine não já a leveza dassanções administrativas e as garantias dos princípios penais, mas acontundência da pena e a falta de garantias da intervenção administrativa.

Assim, se não por outra, por razões de simples medo de veracentuada a divisão entre poderosos e subjugados, convém rechaçar aadoção de um novo Direito de intervenção.

Ademais, o mundo mudou desde o ponto de vista da ciência.Da lógica cartesiana à biología, todas as ciências foram afetadas pelasmudanças do mundo. Não se trata de uma escolha sobre “se ” o Direitopenal deve ou não mudar de perfil e sim uma decisão sobre “para que”perfil o Direito penal mudará. Assim, mesmo que nós entendamos queele não deve atuar no âmbito de proteção que lhe cobra a sociedademoderna, de qualquer modo seu conteúdo não seguirá sendo o de trêsséculos atrás, pelo que, o mais sábio é desde logo promover sua adap-tação preservando ao máximo suas garantias e tratando seu âmbito deaplicação como resultado e não determinante de tal câmbio.

Pois bem, uma vez que se confirma a opção pela manutenção

274 RADBRUCH, Gustav, (1979, 6ª Ed.), Filosofia do Direito, trad. por L. Cabral de Moncada, Armênio

Amado Editor, Coimbra, p. 324.

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do chamado “Direito penal moderno”, é o momento de optar por ummodelo de sistemática funcionalista que melhor responda aos desafiostrazidos pelos novos problemas dogmáticos.

É decisão inserta na Constituição Federal que o órgão repre-sentativo do Estado, nos misteres de comando da persecutio criminisserá o Ministério Público. Este fato, posto ao lado do perfil que a Lexmaxima dá ao referido órgão, permite, desde logo, duas conclusões.

A primeira, é que, o legislador constituinte entendeu não havercontradição entre a intervenção estatal referente à persecução crimi-nal e a preservação do Estado democrático ao elencar no mesmo dis-positivo constitucional, entre todas as atribuições do Ministério Público,o exercício exclusivo da ação penal pública e a salvaguarda do mencio-nado regime.

A segunda, é que, se não pode haver contradições entre as fun-ções entregues ao Parquet, o desempenho de todas e cada uma destasatribuições deve corresponder, internamente, a um perfil de defesa dademocracia.

Assim, as decisões político criminais referentes à atuação doMinistério Público, no tocante ao exercício da ação penal pública devemcorresponder a uma orientação claramente adequada à defesa de umEstado social e democrático de Direito.

Nesse sentido, tendo em vista os rumos tomados pela modernadogmática jurídico penal, convém fazer uma opção clara pelo modelo deorientação dogmática a seguir que dê melhor guarida a uns tais interesses.

Se este é o perfil que se espera da instituição ministerial, nãose pode, de entrada, abrir mão dos princípios iluministas. Evidentemen-te, uma vez que estamos falando – ao menos teóricamente - de um Es-tado social e democrático de Direito, a intervenção punitiva deve restrin-gir-se aos ataques mais graves aos bens jurídicos mais importantes parao desenvolvimento do cidadão na sociedade (princípio de intervençãomínima)275 .

Um breve repasso entre as concepções já descritas como

275 MUÑOZ CONDE, Francisco e GARCÍA ARÁN, Mercedes, (2000, 4ª Ed.), Direito penal, parte general,

Tirant lo Blanch, Valencia, p. 88.

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modelos de tendências modernas da interpretação dogmática apontainduvidosamente, para a existência de uma única opção que correspondeàs aspirações democráticas pretendidas por nosso modelo de Estado:o funcionalismo teleológico.

Isto porque queda clara a opção radical que hace Jakobs porestabelecer as bases de sua teoria em fundamentos eminentementenormativos. Vives Antón se dá tem clara percepção do fato, quandoreflete que “Jakobs se desfez de todo compromisso ontológico em umsentido muito mais radical”276 partindo para justificar o sistema de modototalmente axiológico. Ou seja, trasladou o fundamento da estruturasistemática para dentro dela mesma. A validez da própria norma justifi-ca sua imposição. A conseqüência inevitável disso é que seu sistemase torna compatível com quaisquer orientações político criminais, postoque, na medida em que a norma não carece de justificativa de fundosenão que justifica a si mesma, ela é válida, independentemente, de suaorigem. Com isso, ainda que estejamos diante de regras impostas porum Estado totalitário, despótico, a norma não perde sua capacidade deauto justificar-se. Logo, um conjunto de regras normativas que sustenteum sistema aflitivo de um Estado social e democrático de Direito tam-bém se encontraria justificado.

Muñoz Conde277 aponta os riscos de assunção da propostafuncionalista sistêmica em razão de sua compatibilidade com “sistemaspolíticos ditatoriais, brutalmente negadores dos direitos humanos maiselementares”. Assim entende que “desde o ponto de vista de uma con-cepção político-criminal característica de um Estado de Direito”, umaproposta como esta deve ser rechaçada, posto que “converte a Dogmáticajurídico-penal em um instrumento de legitimação de ditos sistemas, quan-do não em cúmplice servil de seus excessos”.

O mesmo aspecto é também percebido por Baratta278 que aler-ta, referindo-se à proposta luhmaniana, que serve de base às conside-

276 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador, Op. cit., p. 443.

277 MUÑOZ CONDE, FRANCISCO, (2000), Edmund Mezger[...] Op. cit., p. 75.

278 BARATTA, Alessandro, (1984), “Integración-prevención: una “nueva” fundamentación de la pena

dentro de la teoría sistémica”, en Cuadernos de política criminal, n. 24, 1984, Edersa editoriales deDerecho reunidas, Madrid, p. 533-551, p. 534.

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rações de Jakobs279 , que “se o direito garante um grau indispensável deorientação da ação e de estabilização das expectativas, sua função re-sulta independente do conteúdo específico das normas”.

O própio Jakobs deixou transparecer os tons absolutistas desua concepção jurídica baseada na obediência irrestrita à norma quan-do, em uma conferência que proferiu na Universidad Pablo de Olavide,en Sevilha, Espanha, em 2000, qualificou a reação do Direito penalmoderno contra aquele que não se porta dentro de um padrão espera-do de uma pessoa, ou seja, o autor de delito como “uma reação contraum inimigo”280 .

Observa Muñoz Conde281 que “desde logo, em um Estado de Di-reito democrático e respeitoso com a dignidade do ser humano nem o «ini-migo», nem ninguém pode ser nunca definido como «não pessoa»”.

Isto posto, parece claro que o funcionalismo sistêmico não podeservir de via corretiva da dogmática político criminal institucional de umainstituição responsável pela salvaguarda do regime democrático.

Assim, resta propor, como resultado de depuração, a necessida-de de rever as posições da política institucional do Ministério Público, nocampo criminal, com base em um funcionalismo teleológico. Nesse senti-do, em clara opção pelo Estado de Direito, comenta Roxin282 a respeito desuas propostas que “uma ordem jurídica sem justiça social não é um Esta-do de Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação Esta-do Social, um Estado planejador e providencialista que não acolha as ga-rantias de liberdade do Estado de Direito”.

Isso significa, dentro dos tópicos principais, já referenciados,que os agentes de execução desta política devem primar, em sua atu-ação, pela preservação dos princípios gerais de um Estado democrá-tico de direito, notadamente, o princípio de intervenção mínima e o prin-cípio da legalidade.

No campo do moderno direito penal, isso se traduz em uma

279 MUÑOZ CONDE, Francisco, (2000), Edmund Mezger[...] Op. cit., p. 73.

280 JAKOBS, Günther, (2000), “La ciencia del Derecho penal ante las exigencias del presente”, Seminário

proferido na Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, España, trad. de Teresa Manso Porto, Sevilla, 2000, p. 15.281

MUÑOZ CONDE, Francisco, (2000), Edmund Mezger[...] Op. cit., p. 75.282

ROXIN, Claus, (2000), Op. cit., p. 20.

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postura crítica das modernas técnicas de imputação, consistente, pri-meiramente, na rejeição da atribuição de responsabilidade penal porcondutas cuja tipicidade esteja definida por figuras que dada suavolatilidade pelo exacerbo do emprego da norma penal em branco per-cam o conteúdo de certeza, afligindo o princípio de legalidade (lex cer-ta); em segundo lugar, em idêntica rejeição de aplicabilidade das nor-mas que representem um avanço de proteção exacerbado (tipos deperigo abstrato), cujo emprego signifique uma afronta ao princípio demínima intervenção do Direito penal. A rejeição das normas, nestes doiscasos, pode se dar pela via da inconstitucionalidade, na medida em quesua aplicação é aflitiva dos princípios de proteção do regime democrá-tico, cuja defesa incumbe ao Ministério Público.

Mais ainda, a adoção de uma política criminal consentâneacom o funcionalismo teleológico significa, ter em conta, o bem jurídicocomo referência normativa, ou seja, significa rejeitar in limine, o em-prego de toda a norma incriminadora, que não corresponda à proteçãode um bem jurídico que seja indispensável ao desenvolvimento socialdo indivíduo. Ou seja, a interpretação de proteção aos bens jurídicosmeta individuais trazidas à baila pelo moderno Direito penal, deve so-frer as filtragem do princípio da fragmentariedade, incumbindo reconhe-cer como válida somente a proteção a um bem jurídico coletivo, por trásdo qual se possa identificar, claramente, o interesse de indivíduos deter-minados.

Finalmente, esta opção se traduz em utilizar a proteção do bemjurídico essencial ao desenvolvimento social do indivíduo, como funçãoprimordial do direito penal e logo, como fundamento da aplicação dapena. A aplicação da pena só pode ser justificada enquanto o fim busca-do não é conflitivo com a defesa desses bens jurídicos, inclusive no quese refere à própria pessoa do apenado.

Enfim, o Ministério Público, com sua metamorfose institucionaloriunda da carta penal de 1988, tem, hoje, missões mais importantes doque simplesmente vigiar a aplicação da lei. Isso, no campo penal, repre-senta a necessidade de uma revisão de suas bases dogmáticas funda-mentais. O direito penal moderno apresenta novos problemas a serem

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enfrentados. Da leitura político-institucional que o Ministério Público fi-zer desta nova situação, depende, em grande parte, o rumo do estudoda dogmática jurídico penal do futuro. Esta opção institucional não deveser de transferência de foco para uma nova disciplina incriminadora esim de abordagem dos temas, no próprio campo do direito penal. E,finalmente, a adoção dessa postura representa a necessária opção pelarevisão interpretativa da dogmática jurídico-penal segundo os cânonesdo funcionalismo teleológico.

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A SÚMULA 233 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EO DESTINO DOS PROCESSOS DE EXECUÇÃO EM

CURSO *

ADRIANA TIMÓTEO DOS SANTOS

PROFESSORA COLABORADORA NO CURSO DE DIREITO DA UEPG -MESTRANDA EM DIREITO PELA PUC-PR - ADVOGADA NO PARANÁ.

RESUMO

A autora aborda algumas das alterações havidas no Código de ProcessoCivil desde 1994 e a nova postura do STJ, mediante a edição da Súmula 233,que trata da execução de título extrajudicial embasada em contrato de aberturade conta corrente, o que acabou por uniformizar o entendimento de que referidocontrato, ainda subscrito pelo devedor e por duas testemunhas e acompanhadodos extratos de conta-corrente, não é considerado título executivo.

ABSTRACT

The author talks about some of the modifications happened in Civil ProcedureCode since 1994 and the new function of the Supreme Court of State (SCS), because of the edition of Stare Decisis 233 , what is about the execution ofan extra judicial paper based in contract to the current account opening , andit ended by equaling the understanding of the referred contract , subscribedby the debtor and two testimonies and accompanied by current accountresumes is not considered executive paper.

PALAVRAS CHAVE - Direito Processual Civil; reforma do Código deProcesso Civil; processo de execução;

INTRODUÇÃO

O Código de Processo Civil tem sofrido alterações a partir de1994, objetivando-se alcançar aquilo que se convencionou denominarde ‘efetividade processual’. Também no âmbito da tutela executiva algu-mas alterações legais ocorreram, porém, não só a lei foi alterada, comotambém alterou-se a posição do Superior Tribunal de Justiça a respeitoda execução de título extrajudicial embasada em contrato de aberturade conta corrente.

* Trabalho apresentado junto ao Mestrado em Direito Econômico e Social da Pontifícia UniversidadeCatólica do Paraná – PUC/PR na disciplina Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais II ministradapelo Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier

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Face a quantidade de ações desse tipo em trâmite e a reper-cussão que as decisões do STJ têm provocado, relevante mostra-se oestudo do tema.

O TÍTULO EXECUTIVO

O título executivo é criação legal-processual, logo, é a lei proces-sual que elenca quais são os títulos executivos, porém, o art. 585 CPCnão é exaustivo, leis esparsas podem criar novos títulos, mas somente alei pode reconhecer (e qualificar) um documento como hábil a ensejar oprocesso de execução. É a regra “nullus titulus sine lege”283 .

A Lei 9.307/96 alterou a redação do art. 584 CPC e a lei 8953/94 operou inovações no processo de execução no tocante aos títulosexecutivos, incluindo-se o instrumento de transação assinado por defen-sores públicos e advogados das partes e os documentos relativos àobrigações de entregar coisa infungível, fazer e não fazer. Dessa for-ma, documentos, antes não autorizadores da ação executiva, com tal leipassaram a sê-lo.

O DIREITO INTERTEMPORAL E A AÇÃO EXECUTIVA

Considerando-se as recentes alterações legais sobre a maté-ria, relevante o estudo das regras de direito intertemporal.

Relativamente ao direito processual (como o caso em tela), re-feridas regras dispõem que aplica-se a lei vigente no momento da práti-ca do ato processual.

Desta forma, conforme ensinam WAMBIER, TALAMINI EALMEIDA284 “se a ação de execução vai ser proposta agora, o rele-vante é que, agora, aqueles atos sejam título executivo, pouco importan-do que antes não fossem. Do mesmo modo, caso a lei elimine algumahipótese de título executivo, todos os atos que nela se enquadravam,

283 Conforme ensina Cândido Rangel Dinamarco, “em hipótese alguma é lícito ao intérprete acrescer, sob

pena de legítima violação da esfera de direitos do (suposto) devedor. Sequer o próprio obrigado podeconferir executividade aos seus atos com que constitui ou reconhece dívida, a cláusula executiva (...)é absolutamente incompatível com o sistema e por isso inadmissível”. Face esse posicionamento o autornão reconhece como título executivo os contratos de abertura de crédito em conta-corrente bancária. InExecução Civil, São Paulo, Malheiros,1998. p.459.284

WAMBIER, Luiz Rodrigues, TALAMINI, Eduardo e ALMEIDA, Flávio Renato Correia. Curso Avançadode Processo Civil. 3ª ed., vol. 2, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 60.

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mesmo os formados antes da alteração legislativa, não possibilitarãomais pedido de execução”.

Desta forma, importa a lei vigente à época da propositura daação para verificar se o título é executivo ou não. As ações ajuizadascom fulcro em título executivo que deixa de sê-lo face a revogação da leique o considerava como tal, deverão subsistir, pois à época doajuizamento, a lei qualificava o documento como título executivo. Pode-se falar em direito adquirido processual, onde a regra do art. 1211 docódigo processual é relativizada.

Já as ações ajuizadas, posteriormente à nova lei, serão extin-tas, pois houve a desqualificação do documento como título executivo,tornando nulo285 o processo de execução pela ausência de seu requisitoessencial: o título executivo (conforme artigo 618, I CPC - nulla executiosine titulo).

Havendo nulidade processual, cabe ao próprio juiz, de ofício oua requerimento da parte (via embargos ou objeção de executividade)extinguir o processo executivo em curso.

A EDIÇÃO DA SÚMULA 233 STJ E OS PROCESSOS DE EXECUÇÃO

EM CURSOA propositura de ação executiva, fundada em contrato de aber-

tura de crédito rotativo, sempre suscitou dúvidas na doutrina face a suanão inclusão expressa no rol dos títulos executivos extrajudiciais previs-tos no art. 585 CPC.

HUMBERTO THEODORO JUNIOR286 , em análise sobre o tema,afirma que até a edição da Súmula 233, notava-se “um dissídio entre a 3ªe 4ª Turmas do STJ, acerca da possibilidade, ou não, de qualificar-se ocontrato bancário de abertura de crédito como título executivo judicial”. Aquestão girava em torno da iliquidez de referido documento eis que nelenão se encontra a obrigação de pagar determinada quantia em dinheiro enão se poderia completá-lo pelo extrato de conta porque este seria docu-mento unilateral do credor (vide REsp 36.981-8-MG, publ. DJU 23.05.94).

285 Conforme SERGIO SHIMURA in Título executivo, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 136.

286 HUMBERTO THEODORO JUNIOR. O contrato de abertura de crédito e sua natureza de título

executivo. In Processo de Execução e assuntos afins. Coord. Teresa Arruda Alvim Wambier. SãoPaulo, Revista dos Tribunais, 1998

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Após a edição da Súmula 233 do STJ (em 08.02.00), uniformizou-se o entendimento de que referido contrato, ainda que subscrito pelodevedor com duas testemunhas e acompanhado dos extratos de conta-corrente, não é título executivo. Desta forma, inexistindo título, para oSTJ, a execução é nula, determinando-se a sua extinção por ocasião dojulgamento de recurso, ainda que, a parte não tenha argüido a matériaem razões recursais.

Observa-se que no REsp 280.995-RS, o STJ enfrentou a ques-tão afirmando que, na espécie, não haveria reformatio in pejus eis quea falta de uma das condições da ação é matéria de ordem pública, po-dendo ser analisada de ofício.

EVARISTO ARAGÃO FERREIRA DOS SANTOS287 analisan-do acórdão onde o Tribunal, em julgamento de agravo referente a de-cisão sobre a penhora de bens, decidiu pela extinção da execução combase na Súmula 233 STJ (pois a carência da ação poderia ser decreta-da de ofício, a qualquer tempo), afirma: “o problema, no entanto, é queesse é o atual entendimento do STJ. Ou seja, trata-se apenas de inter-pretação do STJ, para determinada situação em determinado momentohistórico. (...) Isso é suficiente para significar, porém, que nenhum ma-gistrado está adstrito a decidir nesse mesmo sentido, quando depa-rar-se com situação semelhante”.

GLAUCO GUMERATO RAMOS288 , ao comentar a referidaSúmula afirma que, padecendo o processo de execução de nulidadeabsoluta, pois aparelhado em documento que não representa um títu-lo executivo, a rigor, o juiz já deveria ter extinto o processo, o que permi-te ao executado lançar mão da objeção de pré-executividade.

Outrossim, em que pese a existência da Súmula 233 STJ, emnosso sistema, a mesma não tem efeito vinculante289 , o que significa287

EVARISTO ARAGÃO FERREIRA DOS SANTOS. Possibilidade de o Tribunal julgar agravo eextinguir o processo conhecendo matéria não objeto do agravo. In RePro 99/295.288

GLAUCO GUMERATO RAMOS. Contrato de abertura de crédito em conta corrente. In RePro 102/317.289

Ao analisar o recurso de agravo e os poderes do relator ante a existência de súmula em entendimentocontrário, VALENTINA J. C. ALLA

289, afirma que “o art. 557 deve ser interpretado no sentido de que

poderá (e não deverá) o relator negar seguimento ao agravo naqueles casos, sob pena de se configurarindevida e inconstitucional a atribuição de efeito vinculante à súmula”. (sem destaque no original)No mesmo sentido TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER afirma que “embora pareça-nos positiva a adoçãoda súmula vinculante pelo nosso sistema, parece que está na dependência de reforma constitucional”.Ob. Cit., p.444. (sem destaque no original)

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que o julgador não é “obrigado” a extinguir eventuais execuções em cur-so, ante a existência da Súmula.

Entendimento contrário não é o que melhor se harmoniza com oprincípio da efetividade do processo, eis que, as ações foram ajuizadas àépoca onde referido título era considerado executivo pela maioria da dou-trina e havia considerável divergência na jurisprudência.

Por estas razões, MARCOS PAULO FÉLIX DA SILVA290 pugnapela “sobrevivência da execução quando a mesma foi instaurada antesda uniformização do entendimento jurisprudencial do STJ” eis que, “aopção do credor pela via executória deu-se à época em que prevaleciaconsiderável vacilação jurisprudencial a respeito do cabimento ou nãoda execução” arrimada em referido documento.

Os juízes não devem simplesmente extinguir a execução tãosomente pela mudança de entendimento do STJ, eis que a mesma nãovincula os juízes de 1º grau ou 2º grau, veja-se que, mesmo quando alei é alterada (o que é muito mais grave, face a imperatividade legal)prevalece a disposição legal vigente à época da propositura da ação,logo, o entendimento atual do STJ, jamais deveria ser suficiente parapor fim às ações executivas em curso.

Ad argumentandum, caso o tribunal opte pela extinção da exe-cução e não havendo sucesso em grau recursal, seria cabível a conver-são da execução embargada em ação monitória – o que é admitido porparte da doutrina291 -292 – ou em ação de cobrança, porém, não deverá oTribunal extinguir a ação em curso por carência da ação e conseqüentenulidade processual.

Esta posição justifica-se ante o princípio da instrumentalidadedas formas e do aproveitamento dos atos processuais já praticados,evitando-se a repropositura de ações, agora sob o procedimentomonitório ou ação de cobrança, onerando-se as partes com novas cus-

290 MARCOS PAULO FÉLIX DA SILVA. Inexequibilidade do contrato de abertura de crédito rotativo em

conta corrente e a possibilidade de adequação da forma processual. In RT 788/137.291

Vide MARCOS PAULO FÉLIX DA SILVA, Ob. Cit. , p. 140-142.292

Contra, entendendo ser incabível a conversão em ação monitória na hipótese prevista na Sumula 233STJ, ver: SANDRO GILBERT MARTINS. O contrato de abertura de crédito em conta corrente –como objeto do procedimento monitório. In RePro 100/247.

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tas processuais e indo de encontro à efetividade e celeridade processu-al, tudo em conformidade com o art. 250 CPC293 .

Ínsito ao princípio da instrumentalidade está a idéia de prejuízoprocessual, pois, na sistemática vigente, somente serão declarados nu-los aqueles atos que não possam ser aproveitados e que causem preju-ízos às partes (arts. 244 e 249, § 1º do CPC294 ).

GLEYDSON KLEBER LOPES DE OLIVEIRA295 , citando LUIZGUILHERME MARINONI afirma que a teoria das nulidades deve estarinserida na idéia de instrumentalidade concluindo que, deverá o tribu-nal “verificar se a finalidade a que estava destinado o citado ato foiconcretizada, uma vez que, atingida aquela, embora de forma viciada,não há que se cogitar a decretação do vício em atenção ao princípioda instrumentalidade”.

No caso presente, questionável é a extinção do processo pornulidade processual, matéria não sujeita à preclusão e examinávelde ofício, pois não verifica-se de imediato a carência da ação, tampoucopode-se afirmar de plano a violação de norma de interesse público,havendo na espécie apenas entendimento jurisprudencial acerca dainexistência do título executivo.

CONCLUSÃO

A alteração do entendimento do Superior Tribunal de Justiça econseqüente edição da Súmula 233, não vinculam os juízos de 1º e 2ºgraus, não devendo os processos de execução em curso serem extintos.

Pelo princípio da máxima utilidade da execução entende-se queo credor deverá receber tudo aquilo a que faria jus se não houvesse a

293 Art. 250 – O erro de forma do processo acarreta unicamente a anulação dos atos que não possam

ser aproveitados, devendo praticar-se os atos que forem necessários, a fim de se observarem, quantopossível, as prescrições legais.294

Art. 244 – Quando a lei não prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juizconsiderará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.Art. 249 – O juiz, ao pronunciar a nulidade, declarará que atos são atingidos, ordenando as providênciasnecessárias, a fim de que sejam repetidos, ou retificados.§ 1º - O ato não se repetirá nem se lhe suprirá a falta quando não prejudicar a parte.295

GLEYDSON KLEBER LOPES DE OLIVEIRA. Recursos de efeito devolutivo restrito e a possibilidade dedecisão acerca de questão de ordem pública sem que se trate da matéria impugnada. In Aspectospolêmicos e atuais dos recursos. Coord. Eduardo Pellegrini de Arruda Alvim, Nelson Nery Júnior eTeresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 268.

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violação ao seu direito, ou o mais próximo disso possível. A análise doprincípio leva a uma contradição: imagina-se que, ajuizada ação execu-tiva embasada em título executivo (entendido como tal até então), julgadaprocedente e rejeitados os embargos do devedor, o credor, após todademora própria do processo, poderá ver desconstituída tal decisão.

Como fica a efetividade, segurança e economia processual es-pecialmente num país onde as partes sofrem com as dificuldades finan-ceiras para suportar as altas custas processuais e a demora quaseinsuportável das decisões proferidas pelo Poder Judiciário abarrotadode processos?

Na hipótese do credor eleger um determinado título executivopara representar seu crédito, orientado pela lei vigente à época oupela reiterada posição do tribunal, vendo sua ação de execução decla-rada nula, com conseqüente condenação na sucumbência, implicará,conforme menciona MARCOS PAULO FÉLIX DA SILVA296 , “autênticoenriquecimento ilícito do devedor-embargante, à medida que, além debeneficiar-se da anulação da execução, permanecerá inadimplente sabe-se lá por mais quanto tempo.”

Pode-se afirmar que a extinção do processo na hipótese, re-metendo-se o credor à via ordinária de cobrança ou monitória, fere oprincípio da máxima utilidade da execução.

Finalmente, conclui-se que, ainda que se entenda que o contra-to de conta corrente não é título executivo, os atos processuais pratica-dos deverão ser aproveitados face o princípio da instrumentalidade. Aconversão da ação executiva embargada em monitória ou ação de co-brança é possível porque trata-se de processos de conhecimento inter-pretando-se, sistematicamente, o art. 295, V, CPC, que estatui somenteser indeferida a petição inicial, quando o tipo de procedimento escolhi-do pelo autor não puder adaptar-se ao procedimento legal.

296 MARCOS PAULO FÉLIX DA SILVA, Ob. Cit., p. 140.

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SOBRE O PAPEL E ORIGENS DA SOCIOLOGIA

GUILHERME G. TELLES BAUER

PROFESSOR DE SOCIOLOGIA JURÍDICA NA UNIVERSIDADE TUIUTIDO PARANÁ. DOUTOR PELA UNIVERSIDADE RUPERT KARL EMHEIDELBERG - FACULDADE DE FILOSOFIA E HISTÓRIA (1990), COMDIPLOMA REVALIDADO PELA UNIVERSIDADE DE CAMPINAS COMODOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS (1998-1999)

RESUMO

O texto, subdividido em quatro partes, procura demonstrar que a Sociologia,mesmo havendo nos últimos anos perdido seu prestígio e relevância, continuasendo um instrumento válido para a interpretação crítica da realidade social.

ABSTRACT

The text, subdivided in four parts, wants to demonstrate that Sociology, even ithas lost its prestige and importance during the last years , keeps on being avalid instrument to the critical interpretation of the social reality. Analyzing thepieces of knowledge nowadays, the author questions the function of Sociology,talking about the importance of a sociological thought to the comprehensionof social power which has been changing so deep human life.

PALAVRAS CHAVE

se quisermos, como devemos, ser sociólogos de nossa circunstância,deveremos começar pelo contexto sócio-temporal de que emergem asnossas perplexidades. (...) A rapidez e a intensidade que tudo temacontecido se, por um lado, torna a realidade hiper-real, por outro lado,trivializa-a, banaliza-a, uma realidade sem capacidade para nos surpreenderou empolgar. (...) A tradição da sociologia é neste domínio ambígua. Temoscilado entre a distância crítica em relação ao poder instituído e ocomprometimento orgânico com ele, entre o guiar e o servir. Os desafiosque nos são colocados exigem de nós que saiamos deste pêndulo. Nemguiar nem servir. Em vez de distância crítica, a proximidade crítica. Em vezde compromisso orgânico, o envolvimento livre. Em vez de serenidadeautocomplacente, a capacidade de espanto e de revolta. 297

INTRODUÇÃO

O presente texto, baseado em apontamentos para a sala deaula, derivados de leituras diversas, pretende realçar alguns aspectos

297 Sousa Santos, Boaventura – Pela Mão de Alice, 5ª ed., 1999, São Paulo, Cortez Editor

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que podem demonstrar que, a “ciência da sociedade”, apesar de seustropeços e impasses, continua a ter importância para a ação dos ho-mens, atuando e interagindo na sociedade.

Apesar de a Sociologia haver nas últimas décadas perdido oseu élan, sua relevância e prestígio como o alcançado à época da rebe-lião estudantil dos anos 60 e 70, continua sendo, como em seusprimórdios, um instrumento válido para a compreensão crítica da reali-dade social, fornecendo subsídios para sua transformação.

Buscando demonstrar esse papel, que faz parte das própriasorigens da Sociologia, o texto foi subdivido em quatro partes.

A primeira, aborda aspectos tratados pela Sociologia, que pos-sibilitam um engajamento maior e autêntico dos indivíduos em sua atua-ção na sociedade.

A segunda, aponta para a crise enfrentada pela sociedadeglobalizada, tocando em aspectos relevantes que fazem parte da análi-se sociológica.

A terceira parte busca refletir a perplexidade decorrente do pro-cesso da globalização no âmbito individual, ocasionando mudanças nosvalores e no comportamento dos indivíduos.

A última parte discorre sobre as origens, papel e promessas daSociologia.

OBSERVAÇÕES INICIAIS SOBRE SOCIOLOGIA

Essa palavra híbrida, meio grega e latina, cunhada a contra-gosto por Auguste Comte em meados do século 19 (ele preferia a de-signação “física social”), trata afinal do quê?

Do homem. Não do homem como indivíduo, mas do homemsocial, do homem coletivo, do homem vivendo em sociedade, dos seusatos, suas ações, dos efeitos desses atos e ações, das instituições,regras e normas, dos relacionamentos e inter-relacionamentos sociaisentre homens, grupos e sociedades.

Como nos lembra Peter Berger298 , a Sociologia trata dos fatosque cativam as convicções supremas dos homens, de seus momentos

298 Perspectivas Sociológicas, uma visão humanística, 19ª ed., 1986, Petrópolis, Vozes

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de grandezas, tragédias e êxtases. Mas também das trivialidades davivência cotidiana. Ou seja, a Sociologia observa os homens, procuracompreender as coisas humanas, a sociedade. E toda e qualquer so-ciedade é constituída por uma rede de papéis sociais. Nossa existênciapermanece vinculada a diversos papéis sociais que desempenhamos,cotidianamente, e no decorrer de nossas vidas, amarrados a localiza-ções sociais específicas. Representamos esses papéis de forma cons-ciente ou inconscientemente, sendo que muitas vezes sequer nos aper-cebemos deles. Mas, se os desempenhamos com convicção, cônsciosdeles, podemos transformá-los num instrumento de nossas decisões,assumindo a responsabilidade pelo que fazemos. Somente assim nãoestaremos escudando-nos nos costumes, nas tradições, nas regras edeterminações burocráticas ou ideológicas, refugiando-nos por trás deuma Charaktermaske que encobre nossa responsabilidade tal comodescrito por Hannah Arendt299 , no caso da figura cruelmente banal de A.Eichmann. Esse ex-comandante da SS, raptado por um comando doMossad, na Argentina, onde estava refugiado, foi o burocrata responsá-vel pela organização do transporte dos milhões de judeus para os cam-pos de concentração nazistas e, portanto, para a morte. Surpreendente-mente, durante todo o desenrolar do processo contra ele movido emIsrael por suas ex-vítimas (aliás, H. Arendt questiona veementemente alegitimidade do processo), mal conseguia entender o que estava ocor-rendo, considerando-se, até no momento de sua execução, tão somen-te um funcionário exemplar, mero cumpridor de seus deveres, não con-seguindo enxergar ou perceber sua responsabilidade moral, incapaz deassumir qualquer sentimento de culpa pelos crimes e atrocidades co-metidas direta ou indiretamente sob suas ordens.

Na verdade, a própria sociedade auxilia-nos a escamotear arealidade das coisas, protegendo-nos dos questionamentos, mais pro-fundos, dos porquês. Se nos questionamos eventualmente, as respos-tas acabam sendo rapidamente sufocadas pelas explicações conven-cionais: a sociedade oferece-nos sistemas religiosos, mitos sociais e

299 Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal, 1999, São Paulo, Companhia das

Letras

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políticos que nos libertam dos questionamentos, possibilitando-nos acei-tar o mundo sem questionamentos. A vivência num mundo socialmenteconstruído e justificado se impõe como a normalidade de nossa vivênciacotidiana e assim, mais aceitável, menos problemático.

A vida humana, exercida e praticada como uma existênciaautêntica e livre, só é possível, no entanto, na convivência com osoutros, dentro da sociedade. Somos o que somos, inseridos na vivênciasocial, somos o produto das relações sociais, da cultura, da história,da sociedade em que vivemos e atuamos. Nossos valores, seus signi-ficados nos são transmitidos através de processos sociais. A Sociolo-gia pode auxiliar-nos a obtermos uma visão mais clara dessa realidade,na qual estamos inseridos, contribuindo na desmistificação dasautojustificações, e, sobretudo, das falácias, dos engodos e mitologias,e mais, revelando-nos também, relações de poder e opressão e as ma-nipulações delas decorrentes, às quais estamos submetidos, muitasvezes sem delas nos apercebermos mais claramente. Ela pode contri-buir para nos revelar a realidade tal como ela de fato é, mostrando-nosque o homem é aquilo que a sociedade faz dele e que ele, dispondodesse conhecimento, pode tentar ser outra coisa, alguém que ele mes-mo possa escolher ser. Pode lançar luz sobre as mistificações que en-cobrem muitas vezes as ações humanas, revelando seu real caráter,esclarecendo o que se esconde por traz das aparências, justificativas,convenções, muitas vezes utilizadas como instrumento inclusive de auto-engano, quando não de manipulação e opressão300 .

A Sociologia ocupa-se, como afirma Peter Berger, de um temaprincipal que é a própria condição humana. Trata dos homens inseri-dos e interagindo no meio social, buscando compreender suas ações,reações, interações dentro da sociedade.

Ocorre que a vivência em sociedade, de uns com outros, impli-ca, necessariamente, na observância de regras e normas que permitemo conviver de pessoas dotadas das mais diversas necessidades e as-

300 Esses, aliás, são temas recorrentes na filosofia e moral sartreana, permeando todo o texto de P.

Berger, que nos serviu de subsídio nesta parte do trabalho. Ver Sartre, Jean-Paul – Questão de Método,1987, São Paulo, Abril Cultural

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pirações, tantas vezes divergentes, seja no grupo familiar, no trabalho,no lazer, na sociedade em geral.

No entanto, deparamo-nos sempre com nossas tendências decunho mais individualista, com nossa vontade de romper com normase regras, de refugiarmo-nos vez ou outra em algum isolamento (comonossos filhos, os jovens, nós mesmos). Mas se o fazemos, é apenastemporariamente.

Não estou referindo-me, certamente, ao jovem norte-america-no, como noticiado na imprensa, algum tempo atrás, que, na tentativa decomprovar a eficiência da tecnologia moderna, sobretudo da Internet,buscou isolar-se, fisicamente, do mundo dos homens, durante um anotodo, reduzindo seu relacionamento e interação social aos encontroscibernéticos. Há, inegavelmente, uma tendência muito forte nas socie-dades contemporâneas das pessoas isolarem-se ou circunscreveremseus inter-relacionamentos ou interações sociais, apenas aos seus“iguais” (como nos condomínios fechados), buscando reduzir ao míni-mo, a própria convivência humana. O sociólogo Robert Castells, numseminário ocorrido em 1997 sobre a Globalização (PUC São Paulo,1997), fez um relato pungente sobre os efeitos sociais e psicológicos doprocesso da globalização, no mundo do trabalho da sociedade france-sa, refletindo-se, tragicamente, na esfera pessoal daqueles que vierama perder seu emprego. Exemplificou o problema no caso de um ex-mi-neiro de 44 anos de idade, que, ao mesmo tempo, muito jovem paraparar de trabalhar e muito velho para reaprender outra profissão, encon-trava-se, no contexto do final dos anos 90, após haver sido expelido doseu lugar de trabalho, definitivamente condenado ao desemprego. Semqualquer perspectiva, sente vergonha de si mesmo. Teme e evita o con-tato com os outros, isolando-se cada vez mais dentro das quatro pare-des de sua sala. Cerra as cortinas como a querer distanciar-se do mun-do externo, largando-se frente à televisão, num universo reduzido à ima-gens fugidias. Sente-se inútil, imprestável, descartável. Seu mundo nãotem mais sentido. Depressivo e sem saída, torna-se um candidato evitima potencial do suicídio.

No entanto, o homem continua sendo um ser social. Algo nos

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impulsiona, nos obriga à vivência com os outros. Como se fosse uminstinto, algo atávico, genético, oriundo de nossos antepassadospaleolíticos (o filme Guerra do Fogo aponta para isso). E essa vivênciaimplica, necessariamente, numa permanente adequação à regras deconvivência, as quais nos submetemos, como nos submetemos a deter-minados padrões comportamentais que possibilitam, viabilizam nossorelacionamento e inter-relacionamento com os outros. Cada um de nósdesenvolve tendências comportamentais das mais variadas, exigindoregras e normas de comportamento, que nos são ensinadas, impostas,e as quais nos submetemos, justamente para permitir a adequação denossas condutas ao grupo social em que atuamos. Sem essa adequa-ção, não subsiste um entendimento mais geral, que permite a sobrevi-vência no grupo e do próprio grupo. Cada grupo social inculca em seusintegrantes, padrões de comportamento, buscando uma maiorhomogeneidade social. Assim, cada um de nós, aprendendo, aceitandoos valores, regras e normas prevalecentes no grupo, mais facilmenteestaremos nos habilitando a satisfazer nossas próprias necessidades easpirações, que não entrarão em choque com os anseios e padrõescomportamentais, usuais no grupo, pois estaremos utilizando meios,modos e maneiras de agir socialmente reconhecidos. No decorrer dotempo, acabamos reconhecendo que isolados, pouco se alcança e quesomente em conjunto com outros poderemos mais facilmente atingirnossos fins. Para nossa vivência (ou sobrevivência) em grupo, acaba-mos entendendo ser necessário submetermo-nos às regras e maneirasde ser, adequadas a como o grupo vive e age. Aprendemos esses com-portamentos e regras num processo educacional contínuo, através doprocesso de socialização, que nos acompanha desde a infância. Re-gras para comer, dormir, direitos, normas e deveres nos são inculcados,somos forçados a segui-los sob pena de sanções, sendo que acaba-mos internalizando-os. Eles passam a fazer parte de nossa vivência, donosso cotidiano301 . Percebemos que crianças, em seu processo de so-cialização, mesmo nas suas brincadeiras, buscam imitar o que conside-

301 Esses seriam fatos sociais como quer Émile Durkheim. Ver seu texto As Regras do Método Sociológico,

1983, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural

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ram ser o comportamento de adultos, assumindo e antecipando, até certoponto, papéis sociais, mesmo que estereotipados, típicos do que ima-ginam ser o comportamento feminino ou masculino, identificando-se comeles. Aprendem, às vezes, a duras penas, que seu comportamento, suamaneira de agir, deve ser aquela mais aceita pelo grupo. Castigos ouafagos, reprimendas ou louvores, ensinam crianças a distinguirem entreo certo e o errado, criando nelas hábitos e maneiras de agir adequadasà vivência no grupo, em que estão interagindo (na família, na escola, nogrupo de amigos).

Ora, o processo de adequação à regras e normas de convivên-cia, que são aceitas e defendidas pelo grupo, não implica necessaria-mente que essas regras, normas e valores, sejam de fato os mais ade-quados ou moralmente defensáveis. Basta lembrarmo-nos dos padrõescomportamentais decorrentes de uma cultura racista, da intolerânciareligiosa ou político-ideológica, amplamente aceitos e praticados pordeterminados agrupamentos sociais, justificando inclusive ações cruéise desumanas.302 Por outro lado, um processo de adequação permanen-te, subentende, de certa forma, também, uma supressão da nossa livreescolha, até certo ponto, de nossa própria liberdade. Por isso, a rebel-dia dos filhos adolescentes, não é apenas a busca da própria identida-de, de sua afirmação como indivíduo, mas também uma espécie de pro-testo, inconsciente na maior parte das vezes, contra aquilo que é senti-do como a “tirania” dos pais, contra a supressão de sua liberdade (aCarta ao Pai de Franz Kafka é um exemplo belo e trágico da tentativa deum acerto de contas, tardio e frustrado, do filho com o pai) 303 .

Mesmo que já tenhamos nos acomodado de tal modo àsinjunções, aceitando inconscientes e, passivamente, o que ocorre, ospadrões estabelecidos vistos como imutáveis (“é assim mesmo”), aca-bamos em determinados momentos de discernimento, percebendo apressão e o desacerto das coisas. Nem sempre, mas muitas vezes aca-bamos levantando a cabeça, rebelando-nos contra a situação, como quebuscando reafirmar nossa dignidade, lutando por nossa liberdade.302

Ver Arendt, Hannah – Origens do Totalitarismo, São Paulo, Companhia de Letras; e o instiganteBaumann, Sygmund – Modernidade e Holocausto, 1998, Rio de Janeiro, JZE303

Coleção A Obra Prima de Cada Autor, 2001, São Paulo, Martin Claret

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J. P. Sartre304 , autor que com sua obra e atuação pessoal, mar-cou profundamente o século XX;305 Afirma que os homens foram conde-nados a serem livres. Ele refere-se à liberdade de escolha, de se optar,de determinar nosso próprio caminho. Mas esse caminho é sempre umcaminhar junto com outros. Fazemos nossas escolhas e arcamos comsuas conseqüências, com a responsabilidade de nossa decisão. E essaescolha repercute na nossa vida e na vida de todos os outros. Em OExistencialismo é um Humanismo Sartre exemplifica a questão, relatandosobre um aluno que o procurou à época da ocupação alemã na França,perguntando-lhe o que fazer. Pois, ao mesmo tempo em que queria engajar-se na Resistência a fim de combater os nazistas, o que implicaria na suaida imediata para a Inglaterra, sua mãe, muito doente, necessitava de suapresença ao seu lado. Sartre respondeu-lhe que ele já havia, antecipada-mente, tomado sua decisão ao procurá-lo e não a um padre. A decisãoera dele e apenas a ele cabia a responsabilidade por ela.

É nesse sentido também que a Sociologia pode contribuir paraclarear nossa situação, auxiliando-nos assumir efetivamente, sem es-camotear, a responsabilidade de nossas decisões, muitas vezes dolo-rosas, na medida que fornece os subsídios necessários para um me-lhor entendimento do contexto em que vivemos e atuamos.

A CRISE DO MUNDO MODERNO

Como afirma Boaventura de Souza Santos306 o mundo moder-no encontra-se em crise. Desde a década de 80 vem aprofundando-senos países metropolitanos a crise do Estado do Bem-Estar Social, agra-vando-se as desigualdades e os processos de exclusão social. Muitasvezes, esses países estão apresentando características típicas de paí-ses periféricos. Já nos países periféricos, as condições sociais, de sitão precárias, agravaram-se ainda mais brutalmente. Ao lado do cresci-mento do endividamento externo, acentua-se a desvalorização dos pro-dutos de exportação, com a marginalização cada vez maior dos países

304 Sartre, Jean Paul – O Existencialismo é um Humanismo, São Paulo, Coleção Os Pensadores, 1987,

São Paulo, Abril Cultural305

Conforme Lévy, Bernard-Henri –O Século de Sartre, 2001, Rio de Janeiro, Nova Fronteira306

Pela mão de Alice, 5ª ed., 1999, São Paulo, Cortez Editor

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periféricos no mercado mundial. Como se não bastasse, foram restrin-gidos, drasticamente, os subsídios vindos do exterior, estagnando asatividades econômicas. São fatores que levaram alguns dos países pe-riféricos à beira do colapso, ou a enfrentarem dificuldades muito sérias,ultrapassando o âmbito social e econômico, pondo em risco a própriagovernabilidade (o que vem ocorrendo na Argentina neste começo doano 2002, e agora, mais recentemente, pelo Brasil e Uruguai, são exem-plos disso). Não por acaso, designou-se os anos 80 como “a décadaperdida”, acentuando-se as disparidades entre os países periféricos ecentrais, dentro da lógica da nova ordem econômica mundial. Por sinal,não há ainda nenhuma designação para caracterizar as agruras enfren-tadas pelos países do Cone Sul, neste começo de século.

De fato, os efeitos do novo processo de acumulação a nível in-ternacional, designado como “globalização” ou “mundialização” , comoquer François Chesnais307 , vem provocando profundas modificaçõese restruturações nos mecanismos de funcionamento das sociedades eEstados. Exige-se, não apenas dos indivíduos, mas dos segmentosorganizados da sociedade, como dos próprios governos, adequações,revisões profundas em suas práticas, ações e modos de agir, mudan-ças em seus conceitos, valores, normas e regras308 .

Transformações aceleradas nos sistemas produtivos e nasrelações de trabalho e sociais e no exercício do próprio poder político,nas funções do Estado e no papel do cidadão, mal acompanhando osavanços tecnológicos e das ciências, estão modificando as regras, nor-mas, direitos e deveres das pessoas, dos grupos e classes sociais.

São mudanças que tornam as questões sociais cada vez maisproblemáticas.

307 Ver seu elucidativo e didático texto A Globalização e o Curso do Capitalismo de fim-de-século, in

Economia e Sociedade n° 5, Dezembro 1995, Campinas. Sobre a Globalização existe hoje vasta bibliografia,vale destacar Beck, Ulrich O que é Globalização, UNESP, 2000, o interessante estudo de Dupas,Gilberto – Ética e Poder na sociedade da Informação, 2ª ed., 2001, São Paulo, UNESP e Castro, ClaudioHenrique de – A Globalização: definição, efeitos e possibilidades no Direito, 2001, Curitiba, Ed. I.Scherer Ltda. Sobre o impacto da Globalização no Direito, ver especialmente Faria, José Eduardo – ODireito na Economia Globalizada, 1999, São Paulo, Malheiros Editores308

Ver a primeira parte de Fukuyama, Francis – A Grande Ruptura, a Natureza Humana e a Reconstituiçãoda Ordem Social, 2000, Rio de Janeiro, Rocco

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Encaramos impotentes e perplexos o declínio de empresas que,no atual contexto, se não estão falindo, buscam fusões, “racionalizações”,“modernizações”, que resultam em violenta retração no nível de empre-go. As carreiras tradicionais, no mundo do trabalho, que avançavam, háalguns anos atrás, pelos corredores de uma ou duas empresas / institui-ções estão a fenecer cada vez mais; mesmo o conjunto de qualificaçõesobtidas no decorrer de uma vida de trabalho e aprendizado, perde suafunção, uma vez que o mercado vem impondo trocas nas aptidões bási-cas adquiridas, de acordo com sempre novas necessidades da organi-zação da produção e da economia. Cresce o trabalho de curto prazo eepisódico, adequado às exigências das organizações ditas“flexibilizadas”. Como nota Richard Sennett309 “as condições da novaeconomia alimentam (...) a experiência com a deriva no tempo, de lugarem lugar, de emprego em emprego”. As classes médias estão enco-lhendo, apertando os cintos, frustrando suas aspirações consumistas,buscando manter minimamente seus padrões de vida anteriores. Ossetores vitais da economia, na indústria, comércio e agricultura, nãoapenas estão “modernizando-se”, deixando assim de absorver mão deobra formal, mas, crescentemente, estão excluindo enormes contingen-tes populacionais do próprio mundo do trabalho310 . Crescem, assusta-doramente, os índices de desemprego em todos os setores da econo-mia, atingindo não apenas a mão-de-obra braçal, mas os próprios qua-dros técnicos especializados. Como as empresas se dividem ou fun-dem-se em ritmo acelerado, empregos surgem e desaparecem, comofatos desconexos, e sobre os quais, a sociedade ou os diretamente atin-gidos não exercem qualquer influência311 . Amplia-se o desemprego es-trutural, expandindo-se a economia informal, os “bicos”, os vendedoresambulantes, a prestação de serviços eventuais, etc.. O setor terciárioinformal que vem crescendo, assustadoramente, nos centros urbanosbrasileiros, e que encontra seu correlato de longa data (desde 1962) nosetor rural, na figura do “bóia-fria”, constitui uma das formas mais co-

309 A Corrosão do Caráter, 1998, Rio de Janeiro, Record

310 Ver no contexto dos países metropolitanos FORRESTER, V. - O Horror Econômico, 1997, São Paulo, UNESP

311 A obra de R. Sennett acima citada é bastante elucidativa sobre os efeitos sociais e psicológicos das

transformações estruturais em andamento no mundo do trabalho.

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muns atualmente de se enfrentar a crise do desemprego. De formaconcomitante, cresce o volume de pessoas pobres e miseráveis (bastaum olhar para as periferias urbanas em expansão). A ascensão dos índi-ces de criminalidade e violência é assustador. Tráfico e consumo dedrogas florescem em todos os segmentos sociais, atingindo cada vezmais jovens e crianças. Com o retrocesso das atividades econômicas,o Estado arrecada menos, diminuindo ainda mais os recursos para amanutenção da infra-estrutura e serviços urbanos básicos, contribuindopara a deterioração da qualidade de vida nas cidades. No entanto, asdiscussões e propostas políticas parecem passar ao largo dessas ques-tões, circunscrevendo-se a temas periféricos e paroquiais, deixando delado o que realmente seria importante para a sociedade e o País. Emque pese nos encontrarmos às vésperas de eleições, o clima, sintoma-ticamente, é de quarta-feira de cinzas, nenhum dos candidatos certa-mente consegue acender qualquer fagulha de emoção ou interesse, cadaqual com propostas e idéias decalcadas umas nas outras, imperandouma sensação modorrenta do deja vue, de falta de perspectivas. Umacaracterística, aliás, que não é privilégio brasileiro, mas tônica inclusivede países centrais.312

As questões citadas revelam uma situação de crise que vemcrescendo assustadoramente, ameaçando com uma deterioração cadavez maior da vivência social, pondo em risco, não somente o já precáriojogo democrático, mas a própria estrutura da sociedade civil e política.

São questões que exigem um aprofundamento na capacidadede se buscar compreender o que ocorre e por que está ocorrendo, vi-sando detectar o rumo dos acontecimentos, para não sermos apanha-dos, como diz Boaventura de Sousa Santos313 , na armadilha da aceita-ção passiva e autocomplacente dos fatos.

A FRAGMENTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

A busca dessa compreensão é uma empreitada difícil, sendoque muitas vezes parece-nos não haver saídas plausíveis para proble-312

Ver Génereux, Jacques - O Horror Político, o horror não é econômico, 1998, Rio de Janeiro, Record,que traça um painel assustador do esvaziamento de conteúdo na política num país metropolitano atérecentemente altamente politizado como a França.313

Pela Mão de Alice

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mas que se apresentam como crônicos e incuráveis. Ainda mais que aexperiência nos chega de forma mais e mais fragmentada, aos peda-ços. Basta observarmos mais atentamente os programas e notíciasdivulgadas pelos meios de comunicação de massas, ou a possibilidadede pular, instantaneamente, de canal, escolhendo entre milhares de ima-gens fugidias, despejando sobre nossos olhos e mente, um fluxo de in-formações que mal conseguimos absorver. Basta ligarmos a televisãopara obtermos uma gama infinda de informações em centenas de ca-nais, com enorme oferta de programas variados, inibindo qualquer pro-cesso reflexivo. É diante desse quadro que Giovanni Sartori314 chega aafirmar que “a televisão criou e está criando um homem que não lê, querevela um alarmante entorpecimento mental, um ‘molóide criado pelovídeo’, um viciado na vida dos videogames.” Pois, prossegue ele, “atelevisão produz imagens e apaga conceitos; mas desse modo atrofia anossa capacidade de abstração e com ela toda a nossa capacidade decompreender”. Percebemos tão somente imagens, pedaços de infor-mações visualizadas e não refletidas, inibindo qualquer senso mais crí-tico. Mesmo as chamadas artes modernas refletem sensivelmente essafragmentação (um Pollock nas artes plásticas, o Concretismo na poe-sia, entre outras tantas expressões). Os próprios alimentos passam aserem absorvidos em porções balanceadas e embalados para seremconsumidas rapidamente, perdendo-se cada vez mais os ritualísticos edemorados atos de união e fraternização contidos nas refeiçõesefetuadas nas famílias, cada vez mais esfaceladas. Especialistas tra-tam de partes do corpo, num todo constituído de corpo e mente (talvezdaí o enorme crescer na busca de práticas alternativas na área da saú-de). Os jovens, exímios internautas, reduzem a convivência e interaçãosocial aos encontros cibernéticos e virtuais, ou às demoradas visitasaos novos templos da religião consumista dos shopping‘s center.

Inegavelmente, através da Internet, o processo de acesso à infor-mação e comunicação entre as pessoas, cresceu de forma inimaginável,todavia ao preço de evitar-se e inibir-se o contato pessoal. Desse modo,cria-se, como que uma nova “cultura juvenil”, pela qual, como observado

314 Homo Videns,Televisão e pós-pensamento, 2001, Bauru, EDUSC

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por arguto crítico italiano, “os jovens caminham no mundo adulto daescola, do estado [...] da profissão como clandestinos. Na escola ou-vem, preguiçosamente, lições [...] que rapidamente esquecem. Nãolêem os jornais [...] Ficam trancados no próprio quarto junto com ospôsteres dos seus heróis, olham os próprios programas, andam pelarua mergulhados na sua música preferida. Despertam novamente sóquando, de noite, encontram-se na discoteca. Finalmente, quando sa-boreiam a ebriedade de estarem juntos, experimentam a satisfaçãode existir como um único corpo coletivo dançante”315 .

Dificilmente conseguimos uma percepção mais geral e amplados acontecimentos. É como se estivéssemos perdendo o sentido decoesão da vida, reduzida a pedaços de sensações, fragmentos devivência, arrancados do fluxo das experiências, do contexto de signifi-cados mais abrangentes que decorrem da vivência histórica, do inter-relacionamento dos homens entre si. Numa sociedade composta deepisódios e fragmentos, como poderá o homem manter intacta suahistória de vida e sua própria identidade? Cada vez mais, aqueles quepodem, amedrontados pelo crescimento exacerbado da violência ecriminalidade, refugiam-se em “enclaves fortificados”, nos condomíni-os fechados, convivendo entre iguais, separados do restante da soci-edade ameaçadora, sem aperceberem-se de seu isolamento e aliena-ção, criando uma cultura segregacionista em relação aos de fora, au-mentando o fosso que distancia as classes sociais.316 Até que ponto oódio revelado pelos filhos da classe média e alta na queima do índiopataxó, em Brasília, não é fruto dessa segregação?

Em parte, essa fragmentação e alienação decorre da demandamanipulada de necessidades, criadas muitas vezes, artificialmente317 .Há um incentivo e valorização exaltada da novidade, do atual, do mo-derno, refletindo, culturalmente, no crescente desapego pela história,pelos valores, normas e regras que compõem o convívio social, que

315 conforme artigo citado em Sartori, pg. 25

316 ver o artigo de Tereza Pires do Rio Caldeira - Enclaves Fortificados: a nova segregação urbana, in

Novos Estudos CEBRAP n°47, março 1997, São Paulo317

ver a análise de Herbert Marcuse em sua crítica demolidora à ideologia da sociedade capitalistaindustrial, em A Ideologia da Sociedade industrial, 1982, Rio de Janeiro, Zahar

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moldam e caracterizam o modo de ser de uma sociedade, de um povo.318

Entretanto, em meio à frenética busca de sensações e emo-ções fugidias, que meramente preenchem, momentaneamente, o pra-zer hedonista, de consumo imediato e descartável, emerge a sensa-ção de angústia, de perda, de insatisfação, a falta de sentido, o vaziode vidas que se revelam ocas, destituídas de perspectivas, além dopróximo momento e sensação319 . São aspectos de vivência que atin-gem, sobretudo, os segmentos altos e médios da estrutura social (umretrato cruel e irônico dessa vivência nos é transmitido pelo filme Bele-za Americana), refletindo-se, perversamente, nos anseios dos seg-mentos mais pobres da população, que induzidos pela culturaconsumista, almejam dela participar. O crescimento da violência e dacriminalidade e sua banalização tem, aí, em parte, sua origem. Comotambém a busca de amparo emocional nas seitas religiosas em ex-pansão, que representam um refúgio num mundo cada vez mais frio ecruel.

A questão que se coloca então, é como procurar entender eatuar sobre um mundo que se nos apresenta fragmentado e caótico etantas vezes opressivo? Uma maneira poderia ser a de buscarmos umnexo por detrás dos acontecimentos, começando “pelo contexto sóciocultural de que emergem nossas perplexidades”, como proposto porSousa Santos na epígrafe inicial deste texto.

ORIGENS E PROMESSAS DA SOCIOLOGIA

A sociologia propõe-se a buscar compreender a sociedade, aação dos homens vivendo em sociedade. Busca descobrir semelhançase diferenças nessas ações, perceber contigüidades, causalidades, rela-ções entre fatores, tentando vislumbrar uma ordem, uma lógica, um sen-tido no caos que constitui a vida em sociedade. Apenas a partir dessacompreensão, seria possível ao homem poder atuar, agir sobre o mundo,fornecendo os conhecimentos necessários para sua transformação.318

Ver Lasch, Christhopher – A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia, 1995, Rio de Janeiro,Ediouro319

A análise de Christopher Lasch em A Cultura do Narcisismo, 1987, Imago, sobre a sociedade norteamericana apresenta semelhanças gritantes com o contexto brasileiro. O filme Psicopata Americano, érevelador, de forma irônica e perversa, dessa tendência na sociedade norte americana.

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A busca do conhecimento, o pensar sobre o que ocorre, pressu-põe haver um mínimo de regularidade nos acontecimentos. Que existemcausas, fatores que impelem, possibilitam, que podem adequar os acon-tecimentos, que influenciam o agir, a ação humana. Ou seja, que na vivênciados homens em sociedade ocorrem padrões e uniformidades no com-portamento e ação humana, que se modificam, transformam-se, adequa-dos à interação das pessoas, grupos e classes sociais (exemplo: as mo-dificações ocorridas no papel e comportamento das mulheres nos últimos20 anos) de acordo com novas necessidades decorrentes de mudançasestruturais e culturais na sociedade.

As sociedades humanas não são entidades estáticas, orga-nismos parados no tempo. Sem uma compreensão mais clara de comoa sociedade transforma-se, historicamente, dificilmente conseguire-mos entender os efeitos e influências das modificações, na vivênciados homens, que também se modificam.

Como nos lembra Bottomore320 , por milhares de anos, os ho-mens vêm observando e refletindo sobre o meio social, sobre os agru-pamentos humanos, sobre as sociedades em que vivem. No entanto,a Sociologia constitui uma ciência nova, com pouco mais de cento ecinqüenta anos.

Certamente, encontramos em autores clássicos, filósofos, mes-tres religiosos, legisladores nas mais variadas civilizações e épocas,preocupações relativas a aspectos da convivência humana em suasrespectivas sociedades, desenvolvendo reflexões teóricas sobre o modode vida em suas comunidades. Muitas de suas observações e idéiascontinuam sendo relevantes para o conhecimento sociológico. De fato,a reflexão sobre a vida dos homens na sociedade, acompanha o pen-samento ocidental, pelo menos desde a Grécia antiga. No entanto,essas observações e idéias, como observa Franco Ferrarotti321, nãoforjaram uma reflexão sociológica. Sociologia não é um nome novo,uma nova etiqueta para o pensamento e reflexão social praticada, nodecorrer dos séculos, pelos estudiosos. Nenhum deles chegou a enun-ciar com clareza o pressuposto básico da Sociologia: a possibilidade320

Sociology, a guide to problems and literature, 1966, Londres, Unwin university Books321

Sociologia, 1986, Lisboa, Editorial Teorema

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implícita na própria sociedade de desenvolver um processo de conhe-cimento crítico sobre si mesma, sobre suas funções, comportamen-tos, instituições, etc..

A Sociologia, como ciência da sociedade, representa a tentati-va de encontrar respostas aos problemas e necessidades historica-mente determinados. Surge como produto e resultado da necessida-de da própria sociedade de se entender a si mesma.

Como ciência institucionalizada, a Sociologia surgiu em conse-qüência de um determinado desenvolvimento histórico, em cujo desen-rolar, a própria sociedade passa a ser questionada. Até então, até oalvorecer da sociedade industrial, as sociedades possuíam uma tal so-ciabilidade que lhes permitia não serem questionadas. A questão, por-tanto, não é apenas buscar esclarecer porque as sociedades européiasdo final do século 18, e no decorrer do século 19, passaram a experi-mentar e refletir sua sociabilidade como questionável, mas entendertambém, porque as sociedades anteriores não expressaram essa ne-cessidade.

O conhecimento clássico falava em termos de evidências einevitabilidades, ancoradas no que ocorria no seu meio. As socieda-des tradicionais pré-industriais eram baseadas na tradição e nos cos-tumes, assentadas numa economia de subsistência. A essas socieda-des, bastava a referência à “autoridade do eterno ontem” (F. Ferrarotti),no sentido de que “sempre fora assim e assim continuaria sendo”.

Eram sociedades tradicionais e por isso mesmo, amplamenteestáticas, repetitivas, regidas por uma economia fechada, com funcio-namento cíclico e previsível. Prevalecia uma concepção orgânica do tem-po, amarrada à própria atividade rural, baseada na mudança das esta-ções e no crescimento cíclico das plantas e animais.

Eram sociedades socialmente rígidas, nas quais o indivíduo ti-nha poucas chances de romper caminhos, fora e além do seu grupo deorigem ou de posicionar-se contra ele. Nascia-se com o destino previa-mente traçado. Eram as instituições, os costumes e a religião que deter-minavam as fases previsíveis da vida, verificadas na placidez das roti-nas, seguidas, tradicionalmente, pelas gerações que se sucediam.

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Não havia a necessidade da Sociologia nessas sociedades.Bastavam-se a si mesmas.

É apenas quando a tradição, os costumes e a religião comofontes de obrigações e legitimação começam a perder terreno, quan-do já não bastam mais como respaldo, explicação e consolo, é que aSociologia começa a emergir como um instrumento de auto-ausculta-ção da sociedade. As necessidades da economia e sociedade bur-guesa em gestação, estavam a exigir, crescentemente, transforma-ções profundas e abrangentes, nos modos tradicionais de vida, colo-cados cada vez mais de pernas para o ar. Refletia a decadência dosistema de produção feudal, estruturado até então através de ligaçõescom o solo e de relações de parentesco, embasadas em relações ex-tra-econômicas, unindo os senhores feudais com os servos das glebas.Revelava o deslocamento do eixo das atividades e do pensamentoeconômico, do espaço agrário, para o tempo urbano-mercantil, condi-zente às modificações profundas em andamento, nos novos métodosde fazer comércio e nas formas de produção.322

A ética escolástica, que até então determinara a economia, foisendo paulatinamente substituída pela noção pura e fria do cálculo. Oapego a valores morais eternos deu lugar ao cálculo de ganhos e per-das, à avaliação de interesses e à projeção de cálculos sobre lucros eperdas futuras.

Começam a surgir as primeiras manufaturas (já em Veneza doséculo 14!), depois os barracões fabris, transferindo a produção casei-ra familiar e auto-suficiente, para unidades produtivas fora dos lares,visando o “mercado”. Os ex-camponeses, expulsos de suas glebas,num processo de séculos de duração, iriam aos poucos, constituir umnovo tipo de mão-de-obra, empregada nas manufaturas e fábricas,trabalhando sob condições ignóbeis e vilmente explorada. Introduz-seuma nova noção e experiência de tempo, que é mecânica. O tempo dotrabalho passa a ser determinado pelo espaço de tempo utilizado notrabalho, que seria cada vez mais vendido e comprado como mera

322 Para uma compreensão mais aprofundada do desenvolvimento do capitalismo, ver o clássico Dobb,

Maurice – A Evolução do Capitalismo, Coleção Os Economistas, 1983, São Paulo, Abril Cultural

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mercadoria. Para tanto, fez-se necessário um novo disciplinamento doshomens, novas regras de convivência, novas formas de relações soci-ais, novas formas de ordenação e organização da sociedade (o filmeDaens, um grito de Justiça, é revelador dessas mudanças).

Não é um processo abrupto, imediato, mas que iria cristalizar-se aos poucos, acompanhando a evolução e maturação da sociedadecada vez mais cindida entre classes antagônicas.

A Sociologia que começa a despontar no final do século 18 e nodecorrer do século 19, constitui uma tentativa da sociedade em transfor-mação, de encontrar respostas aos problemas e necessidades históri-cos emergentes, surgindo como um produto e resultado da própria soci-edade de entender-se a si mesma. A Sociologia nasce da crise, da gi-gantesca ruptura histórica que possibilitou o surgimento da sociedadeindustrial moderna.

A Sociologia é a ciência da sociedade. Não de qualquer socie-dade, mas daquela que em função de suas transformações, renunciouàs certezas recebidas do passado, passando a exprimir por si, do seuinterior, valores novos, mundanos, materiais. Equivale a um momento deprofundas transformações, quando se faz a travessia do conceito desociedade como dado imutável, para o de sociedade como projeto raci-onal e como produto da cultura.

O nexo entre a sociedade industrial e o surgimento da Sociolo-gia, não é meramente cronológico. Corresponde a características pró-prias da sociedade industrial. Ao contrário da sociedade tradicional, es-tática e essencialmente repetitiva, a sociedade que se estava formandoera dinâmica, inovadora, revolucionária. Enquanto a sociedade tradicio-nal tinha em vista o consumo, não o lucro, imperando o costume e nãose calculando o tempo, a sociedade industrial iria colocar por terra apasmaceira bucólica de que nos fala Marx no Manifesto, transforman-do-a radicalmente, criando novas classes e relações sociais, novos pro-blemas e impasses. O impulso inovador partiria, sobretudo dos próprioslocais de produção, das manufaturas e das incipientes indústrias.

Face às mudanças revolucionárias no processo produtivo, àsprofundas transformações sociais, à ascensão da burguesia como clas-

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se dominante da sociedade, ao surgimento do trabalhador fabril comonovo segmento social, constituindo-se como classe – o proletariado –que começa a questionar as relações sociais e a própria sociedade, aquestão social transforma-se em força propulsora da nova ciência.

A crescente dissolução dos sistemas tradicionais deordenamento social, o pauperismo e gritante exploração de amplossegmentos sociais, o surgimento e a transformação das organizaçõespolíticas, os incipientes agrupamentos políticos sociais emergentes noseio das camadas mais pobres da população, constituíram fatores queexigiam o questionamento do desenvolvimento social. O saber, os co-nhecimentos, as concepções de mundo foram atingidas pelas transfor-mações que ocorriam na sociedade. Conceitos científicos, a avaliaçãoda própria concepção de ciência, precisavam ser revistos. A revoluçãocientífica, as transformações econômicas, tecnológicas e sociais emandamento, libertou a sociedade das concepções de ordem e valoresmetafísicos prevalecentes, até então, percebidos cada vez mais comoultrapassados ou insuficientes. Quando as ciências da natureza al-cançaram, no decorrer do século 19, seu apogeu, aumentando a con-fiança do homem em conhecer e dominar a natureza, a concepçãoreligiosa de mundo, até aí prevalecente, seria duramente questiona-da. A religião como fonte e suporte do saber, como base explicativa domundo, perde cada vez mais sua razão de ser.

A Sociologia, a nova ciência que começa a se impor nessecontexto, buscava analisar as causas e conseqüências das transfor-mações socioeconômicas, tentando elaborar propostas para possíveissoluções das questões sociais que corroíam a sociedade.

A ciência da sociedade não surge repentinamente, pronta eacabada. Percorre um longo e árduo processo de gestação, embasadaem conhecimentos anteriores. Surge com e através da reflexão sobresaberes anteriores, estimulados pelas necessidades sociais e cultu-rais do meio em que emerge.

T. Bottomore323 acentua que a Sociologia encontra suas ori-gens no século 18, sobretudo na filosofia da história, nos levantamen-

323 Sociology, a guide to problems and literature, 1966, Londres, Unwin university Books

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tos estatísticos sobre as condições sociais das populações urbanasinglesas e nas idéias gerais do Iluminismo. A Sociologia surge enraizadanos saberes de diversas áreas do conhecimento, utilizando-os na ten-tativa de entender e solucionar os problemas sociais. Miséria e deses-pero crescentes nos centros urbanos, paralelamente, ao aumento ver-tiginoso do potencial produtivo e das riquezas concentradas nas mãosde poucos, gerariam atritos, frustrações, rebeldias e ódios contra o statusquo que desembocariam em tentativas de auto-organização dos traba-lhadores fabris324 , aderindo aos incipientes agrupamentos anarquistase socialistas em gestação, recorrendo em seus ideais às premissas daRevolução Francesa. A pobreza cessa de ser considerada e aceita comofenômeno natural, condição pré-determinada, desígnio divino, destino.Transforma-se em problema social, aberto ao estudo, a exigir medidase soluções. Passa-se a questionar o ordenamento social, a própria so-ciedade, procurando desenvolver uma concepção mais precisa do queera ou poderia ser o inter-relacionamento entre os homens e as clas-ses sociais. A sociedade transforma-se em objeto de estudos, buscan-do desenvolver princípios e métodos adequados para sua interpreta-ção. As atenções voltam-se, principalmente para os problemas decor-rentes da estrutura e desenvolvimento do capitalismo industrial, pro-curando encontrar respostas às mudanças ocorridas na vida dos ho-mens, aos crescentes questionamentos provocados pelo avolumar domovimento operário e à disseminação das idéias socialistas (a extensae riquíssima obra de Marx constitui um exemplo dessa tendência de bus-car compreender e transformar essa nova realidade).

A questão de como entender e analisar a sociedade acentue-se, contrapondo-se a análise histórico-estrutural efetuada por Marx325 ,foi inicialmente tentada buscando-se aplicar métodos de pesquisa de-

324 “A fúria não é de modo nenhum uma reação automática diante da miséria e do sofrimento em si

mesmos; ninguém se enfurece com uma doença incurável ou um tremor de terra, ou com condiçõessociais que pareçam impossíveis de mudar. A fúria irrompe somente quando há boas razões para crerque tais condições poderiam ser mudadas e não o são. Só manifestamos uma reação de fúria quandonosso senso de justiça é injuriado; tal reação em absoluto não se produz por nos sentirmos pessoalmen-te vítimas da injustiça, como prova toda a história das revoluções, nas quais o movimento começou poriniciativa de membros das classes superiores, conduzindo à revolta dos oprimidos e miseráveis”. Arendt,Hannah – Crises of the Republic, 1969, Nova York, Harcourt Brace Jovanovich; ver também Moore Jr.,Barrington – Injustiça, as bases sociais da desobediência e da revolta, 1987, São Paulo, Brasiliense

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senvolvidos no âmbito das ciências naturais. Como nestas, buscou-seanalisar, avaliar, comparar o que existe e a partir daí, tecer previsões.Em parte, esse viés iria mostrar-se bastante pernicioso, pois dificil-mente poderemos reduzir a vivência humana à experiências de labo-ratório ou a fórmulas matemáticas e correlações estatísticas. Foi oque tentou fazer Auguste Comte, com um agravante. Sua pretensão,como nota Peter Berger326 , de transformar a Sociologia em “doutrinado progresso, sucessora secularizada da teologia como senhora dasciências”, aspirando transformar a Sociologia em coroamento de to-das as ciências, reflete essa tendência, que se revelaria como preten-siosa e inócua. A busca incessante de E. Durkheim327 no final do sécu-lo 19, certamente uma das mais criativas e frutíferas tentativas de de-senvolver métodos e regras próprias, fornecendo à Sociologia statusde ciência autônoma, não conseguiu tampouco superar o viésmetodológico derivado das ciências naturais, procurando adequá-lasà pesquisa sociológica, revelando desse modo, o enorme complexode inferioridade, até hoje não totalmente superado, que acompanha aciência em gestação, incapaz de alcançar o nível de exatidão das ci-ências da natureza. Desde o início, enfrentando enormes dificuldadespara constituir-se como ciência, espelhou-se e buscou nos métodosde pesquisa desenvolvidos nas ciências naturais, os instrumentos ini-ciais para averiguar e interpretar a sociedade. Entretanto, dificilmentepoderemos querer igualar fenômenos que ocorrem na natureza com avivência social dos homens, reduzindo a vivência humana a fórmulasmatemáticas e a correlações estatísticas, desconsiderando-se o quenão se pode quantificar, como tentado ainda hoje, de forma preponde-rante, por amplos setores da Sociologia norte-americana328 , aspectotão duramente criticado por Wright Mills329 já nos anos 50.

Dos autores clássicos da nova ciência apenas Max Weber, aolado de Marx, iria de fato buscar uma metodologia nova, desvinculada

325 Ver O Capital, vol. I, na excelente tradução coordenada por Paulo Singer, Coleção Os Economistas,

São Paulo, Abril Cultural326

Berger, Peter – Perspectivas Sociológicas, 19ª ed., 1986, Petrópolis, Vozes327

Ver seu texto As Regras do Método Sociológico, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural328

GIDDENS, A –Em Defesa da Sociologia, Ensaio, interpretações e tréplicas, 2001, São Paulo, UNESP329

A Imaginação Sociológica, cap. 3, 1969, Rio de Janeiro, Zahar

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de métodos derivados das ciências naturais, buscando compreendere interpretar a sociedade, a partir da ação social dos homens330 . ComoMarx, considerava a história como fator imprescindível para essa com-preensão. Mas ao contrário dele, apesar de reconhecer a importânciado fator econômico no desenvolvimento das sociedades, não o consi-derava como primordial, desdenhando o que ele criticava comomonocausal na teoria marxista331 .

Em que pese suas divergências, toda a discussão posteriorsobre a Sociologia, seus métodos, papel e relevância, assenta-se ba-sicamente nos pressupostos teóricos desenvolvidos, inicialmente, porMarx, Durkheim e Weber, considerados como os pais fundadores danova ciência.

Desde seus primórdios, e os textos desses autores é testemu-nho disso, a Sociologia vem preocupando-se, sobretudo, com os pro-blemas derivados da modernidade, com o caráter e a dinâmica dassociedades modernas industrializadas, buscando entendê-las,interpretá-las, dar-lhes sentido e apontar seus rumos. A partir da déca-da de 50/60 até meados dos anos 80, a preocupação sociológica (comotambém da economia e ciência política) voltou-se, ao lado da questãodo Estado, em especial o Welfare State, sobretudo para a problemáti-ca dos países periféricos, buscando-se desvendar os mecanismos eos efeitos da sua inserção desigual no sistema capitalista internacio-nal, através de laços de dependência. A contribuição das ciências so-ciais latino-americanas, sobretudo a brasileira, foi nessa época extre-mamente fecunda, marcando e dando novos rumos à interpretação eentendimento da sociedade. Foi a época áurea da Sociologia, mas decurta duração. Desde o final dos anos 80, a ciência da sociedade en-tra em recesso, como que fazendo eco aos novos paradigmas quevêm impondo-se e acompanhando, aparentemente, a marcha triunfal

330 Em seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Coleção A Obra Prima de Cada Autor, 2001, São

Paulo, Martin Claret, o método compreensivo weberiano é utilizado de forma exemplar, constituindo suainterpretação, uma complementação interessantíssima à obra de Marx sobre a gênese do capitalismo.331

Sobre as divergências e complementação entre Weber e Marx ver Giddens, Anthony – Política, Soci-ologia e Teoria Social, Encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo, cap. 1 e 2, 1998,São Paulo, UNESP

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do neoliberalismo e da globalização332 . Decai seu prestígio e importância,refletida na diminuição de sua demanda, cursos e departamentos sendoeliminados, proeminentes cientistas sociais debandando para outras áre-as mais específicas como planejamento urbano, criminologia, jurispru-dência, etc., diminuindo a capacidade da Sociologia de oferecer-se comopólo aglutinador para as diversas áreas da pesquisa social.333

Estará então a Sociologia fadada a desaparecer? Considera-mos que não. Mais do que nunca a reflexão sociológica se faz necessá-ria para a compreensão das forças sociais que vêm transformando deforma tão profunda a vida humana. Como observa Anthony Giddens,334

“a maior parte dos debates que ‘fazem as manchetes’ intelectuais dehoje, nas ciências sociais e mesmo na área de humanidades, é dotadade forte carga sociológica. Os autores da sociologia foram os pioneirosem discussões sobre o pós-modernismo, a sociedade pós-industrial eda informação, a globalização, a transformação da vida cotidiana, dogênero e da sexualidade, a natureza mutável do trabalho e da família, a‘subclasse’ e a etnia”.

Nesse sentido, retomando a questão colocada no início, o quepoderia e deveria ser então a essência da reflexão e do saber socioló-gico? Nas palavras de Theodor Adorno,335 não deveria ser outra coisasenão a busca do conhecimento sobre a sociedade, sobre o que lhe éfundamental, o conhecimento sobre o que é. Mas sempre no sentidode que esse conhecimento seja crítico, enraizado historicamente. Pois,segundo ele, “não existe nada sob a luz do sol transmitido pela inteli-gência e pensamento humano, que não fosse transmitido pela socie-dade”. De relevância fundamental para o saber sociológico, seriam,portanto, “as leis objetivas de movimento da sociedade, que decidemsobre o destino das pessoas”. Essa compreensão implica por sua vez,na percepção que “existe a possibilidade das coisas (dos aconteci-

332 Ver Heller, Agnes et allii – A Crise dos Paradigmas em Ciências Sociais e os Desafios para o século

XXI, 1999, Rio de Janeiro, Contraponto; Giddens, Anthony – Em Defesa da Sociologia,Ensaios,Interpretações e tréplicas, 2001, São Paulo, UNESP333

Giddens, Anthony – Em Defesa da Sociologia, Ensaios, Interpretações e Tréplicas, 1998, São Paulo,UNESP334

Em Defesa da Sociologia, cap. 1335

Vorlesung zur Einleitung in die Soziologie, 1973, Junius Drucke, Frankfurt

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mentos) virem a ser diferentes do que são, que a vivência dos homenspoderá vir a ser outra, que a sociedade poderá deixar de ser umaassociação forçada e na qual fomos lançados”. Dotados dessa com-preensão, estaremos, efetivamente, mais habilitados a comparar o queé a realidade social com o que a própria sociedade aspira ser. Pois “édessa contradição, a partir dela que se deverá buscar descobrir aspotencialidades, as possibilidades de transformação da totalidadeconstitutiva da sociedade”. E para isso, se faz necessário recorrer àquiloque tempos atrás C. Wright Mills denominou de imaginação sociológi-ca336 , buscando “conhecer o sentido social e histórico do indivíduo nasociedade e no período no qual sua qualidade e seu ser se manifes-tam”, impedindo que o homem torne-se presa fácil e impotente deforças acima de seu controle. Mas ao contrário, dotando-o do conheci-mento necessário para controlar de forma consciente seu próprio destino.

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ASPECTOS COMPORTAMENTAIS DAS EMPRESAS:ENFOQUE NA RESPONSABILIDADE JURÍDICA E

SOCIAL DAS EMPRESAS

MAGDA DEMARTINI TASCA

PROFESSORA DE DIREITO EMPRESARIAL NA FACULDADE MATER DEI- ESPECIALISTA EM ADMINISTRAÇÃO PELO IBPEX - M.B.A.EMPRESARIAL PELA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS - MESTRANDA EMCIÊNCIAS SOCIAIS APLICÁVEIS NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DEPONTA GROSSA - ADVOGADA E CONSULTORA NO ESTADO DOPARANÁ.

RESUMO

O artigo cuida do perfil das empresas a partir das inovações do novo CódigoCivil Brasileiro, com a inclusão do capítulo denominado Direito Empresarial.Segundo a autora, este novo capítulo está baseado na valorização do homeme evidencia a necessidade das empresas agirem com “responsabilidadesocial”, principalmente quanto à valorização dos empregados, clientes,fornecedores, consumidores, meio ambiente, bem como para com acomunidade onde está inserida.

ABSTRACT

The is about the function of companies from the innovations of the newBrazilian Civil Code , with the inclusion of a chapter called CommercialLaw. According to the author , this new chapter is based on human valoriza-tion and points to the necessity of companies act with “social liability” ,mainly to the valorization of employees, clients, consumers, environment,as well as to the community where the company is settled.

PALAVRAS CHAVE - Novo Código Civil brasileiro; Direito Empresarial;responsabilidade social das empresas.

INTRODUÇÃO

As empresas, nos últimos tempos, necessitam de adaptação,é o impõe o desenvolvimento da humanidade, principalmente por meioda tecnologia que expandiu a comunicação mundial entre os povos.

Métodos modernos e rápidos, capazes de interligar em temporeal diversos países, diversas culturas, possibilitando o raciocínio dacomparação que tiveram grande influência na evolução transformadora

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do pensamento da sociedade como povo.Uma postura responsável está sendo cobrada das empresas.

A sociedade organizada (associações, sindicatos, soc. civis, etc) jáconseguiu muitos progressos quanto às ações éticas pelas empresas.

Novas regras administrativas e comportamentais estão sendodesenvolvidas, uma delas é justamente a cobrança para que as em-presas pratiquem atos com responsabilidade social. Muitas conquis-tas já ocorrera, é o caso do meio ambiente que hoje é protegido pelalei.

Neste contexto, observa-se que a responsabilidade social játem suas primeiras manifestações protegidas e exigidas pela lei. A pró-pria legislação trabalhista poderia se dizer que é uma das imposiçõesde condutas responsável das empresas para com seus funcionários.

Portanto, neste texto serão discutidas algumas destas trans-formações, com ênfase na responsabilidade da empresa, perante acomunidade, onde ela está inserida, bem como dos reflexos geradospelo seu comportamento positivo e negativo.

Serão abordadas algumas transformações do direito, como onovo enfoque deste que passa para a defesa da pessoa humana enão mais do patrimônio da pessoa. Logo, em seguida serão aborda-das algumas transformações, ocorridas no âmbito empresarial, comoefeito da globalização, novas técnicas administrativas são elaboradas.

É neste universo que a responsabilidade social inicia a suajornada, por mais que ainda não exista uma definição única, as em-presas têm voltado a sua atenção para atitudes mais responsáveis.Quais são os objetivos das empresas? Será que ela está, finalmente,criando consciência de sua posição na comunidade, ou mais uma vez,como um camaleão, procuram uma nova aparência como instinto desobrevivência?

A PESSOA COMO O NÚCLEO DO DIREITO

Toda a transformação, gerada pela evolução da sociedade, temreflexos diretos na legislação brasileira, a qual tem emitido considerávelesforço para cumprir sua finalidade que é regular, de conformidadecom a segurança da maioria, a vida do homem em sociedade.

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Neste sentido é que, em janeiro de 2003, entrou em vigor onovo Código Civil Brasileiro (CCB), o qual vem como necessidade deadaptação de nossas leis civis à luz dos novos conceitos.

O novo CCB substituiu conceitos construídos a partir de ummodelo social refletido em meados dos anos 1916, ou seja, numa soci-edade ruralista e conservadora, hoje ultrapassada. Neste sentido oProfessor Luiz Edson Facchin (FACCHIN, 2000, p. 288) comenta so-bre a sua eficácia : “Se o Código não é apto a ensejar a discussão e oreconhecimento das transformações da realidade, é um instrumentode sua conservação”.

Os valores que se buscavam proteger, naquela época(1916), estavam ligados, basicamente, a proteção da propriedade,restando pouca proteção ao indivíduo como ser humano, razão deser da sociedade.

Sobre o código da época (1916) e sua elaboração escreveFacchin (FACCHIN, 200, p. 287) : “À época da elaboração do CódigoCivil estava em conflito um conjunto de idéias que permite afirmar-seque ele não foi, em sua derradeira formulação, obra e graça da pala-vra intelectual de um homem insular, mas um produto de valores do-minantes”.

O novo CCB transforma tais valores, valorizando como pri-oridade a pessoa humana, o que se constata através da leitura donovo capítulo intitulado “Dos Direitos da Personalidade”, ao mesmotempo que protege o patrimônio como direito do homem, limita estedireito a uma finalidade social.

Com isto, a nova legislação veio sacramentar que opatrimônio serve ao homem, devendo sempre ter uma finalidade sociale útil para que toda a sociedade se desenvolva.

Este pensamento também é observado na obra do Profes-sor Facchin ( FACCHIN, 2000, p. 78), onde ele expõe:

“...recolhendo traços pretéritos, pretendem decodificar o presente evislumbrar o porvir, diz respeito, de perto, à própria fundamentaçãodo privado e de seu Direito, o direito dos civis. Por isso, tem relevo,nessa perspectiva, conferir passagens e compreensões do mundo

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como tal recriado para a ordem jurídica. É que o sujeito medievalremetido somente a uma essência teocêntrica, apta a conferir-lheuniversalidade, instaura a moderna razão da igualdade formal entretodos os seres humanos a partir dos conceitos. O conceito de sujei-to passa a ocupar esse lugar de universal, deixando para o singularo concreto do indivíduo. Liberdade e igualdade formal, mesmo ilu-minadas por tal racionalidade, fundam, na associação humana e noexercício das autonomias individuais, um novo medievo, projetando-se, para o Direito, bases do positivismo jurídico.”

Toda essa transformação, desde a valorização do homem atéa globalização desenfreada, influenciou diretamente nos conceitosessenciais do homem. Neste sentido diz José Carlos Figueiredo(FIGUEIREDO, 1999, p. 92):

“É o homem que faz o mundo girar e todo movimento é feito à base daemoção do sentimento. O que são as grandes mudanças a não ser oproduto da emoção de seres humanos? O que são as grandes inven-ções a não ser o resultado de grandes emoções em forma de inspira-ção? O que seria o mundo se a emoção humana não existisse?”

Com base na valorização do homem, a responsabilidade soci-al das empresas está ficando evidente, principalmente quanto à valo-rização de seus funcionários, clientes, fornecedores e consumidores,meio ambiente, bem como para com a comunidade onde está inserida.

Hoje, poucas empresas têm se destacado neste sentido, mui-tas ainda estão presas ao velho individualismo do lucro sem finalidadesocial, mas isto está mudando.

Algumas, para que seus funcionários acompanhem o desen-volvimento global, utilizam métodos motivacionais, principalmente coma prática do voluntariado visando a mudança da comunidade, onde aempresa está inserida.

Esta interação, empresa comunidade tem sido cada vez maisexigida, seja pela imposição da lei seja pela cobrança da sociedade,originando o despertar das empresas para a realidade social. É nestesentido que surge o novo direito empresarial.

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O DIREITO EMPRESARIAL

Dentre as diversas modificações sofridas pelo novo CCB, ainclusão do capítulo denominado Direito Empresarial, foi outra das gran-des novidades, pois sugere a mudança de denominação de comercian-te para “empresário”, bem como transporta conceitos antes pertencen-tes ao direito comercial para o direito civil.

O CCB inseriu novos conceitos, e considera “empresário quemexerce, profissionalmente, atividade econômica organizada para a pro-dução ou a circulação de bens ou de serviços”. É o que diz o artigo 966do Novo Código Civil Brasileiro.

Mesmo sendo objeto de evolução da sociedade, o novo CCBainda traz muitas omissões. Uma delas é que o novo CCB não defineo que seja empresa, deixando em aberto para que os analistas dodireito a conceituem de diferentes formas.

Esta omissão fez com que vários conceitos fossem formula-dos e colocados em discussão, muitos estão diretamente ligado a defi-nição de empresário, o que nem sempre é viável, pois empresa vaialém. Ela é a atividade, que é dimensionada tendo em vista sua impor-tância na comunidade onde está inserida.

Muitos entendem que o único objetivo das empresas seria aobtenção do lucro, como anota o jurista Fábio Ulhoa Coelho (COE-LHO, 1994, p. 12), para quem tais atividades têm como: “marca es-sencial à obtenção de lucros com o oferecimento ao mercado de bensou serviços gerados mediante a organização dos fatores de produção,os quais, no capitalismo, compreendem a força de trabalho, a matéria-prima, o capital e, segundo alguns enfoques, também a tecnologia”.

Mas, outros doutrinadores, principalmente da área de adminis-tração de empresas como Eric Klei e John B. Izzo, entendem que o lucroé uma conseqüência do sistema estrutural de que é composta a empre-sa. No mesmo sentido diz John (KLEIN & IZZO, 1998, p. 08):

“Aqueles momentos de reflexão me conduziram a uma percepçãoque iria representar uma mudança de vida: as organizações preci-savam de uma alma. E o mais importante, eu queria ajudá-las aobtê-la. Não se tratava de querer que elas tivessem uma religião. O

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que mais precisavam era algo mais que lucro, mais do que o desen-volvimento de equipes, mais do que uma mudança de atitude. Havianecessidade de se criar um ambiente que pudesse alimentar a alma.”

Para que isto seja possível, a empresa deverá, em primeirolugar, praticar a responsabilidade social combinada com a ética, criarvalor à instituição que vai além do simples mercantilismo de produtos.Isto é o que nos ensina Maria Cecilia Coutinho de Arruda (ARRUDA,2002, p. XII) quando diz: “Hoje os dirigentes de empresas e outrasinstituições brasileiras já se deram conta de que a ética é algo sérioque começa a fazer sentido. Poderíamos ir mais longe, dizendo queagora a ética significa a sobrevivência das organizações”.

Mas, tais ações são praticadas por poucos empresários visioná-rios. A realidade é que por uma questão de sobrevivência, as empresasestão tentando caminhos mais responsáveis para conquistar seu consu-midor, estão demonstrando maior interesse para com o ser humano.

As empresas iniciaram este processo evolutivo por meio do re-conhecimento de seu capital humano, o qual até então só havia conse-guido alguma dignidade diante da imposição da legislação trabalhista.

As diversas legislações hoje existentes, como direito ambiental,trabalhista, consumidor, dentre outras, têm tido real influência na trans-formação dos conceitos empresariais.

Ressaltando a relevância assumida pelo novo direito de empre-sa, na forma que escreve Fábio Konder (COMPARATO, 1990, p. 03):“caso deseja-se indicar uma instituição social que, pela sua influência,dinamismo e poder de transformação, sirva de elemento explicativo edefinidor da civilização contemporânea, a escolha é indubitável: essainstituição é a empresa”.

A valorização dos direitos coletivos tem conquistado muitos es-paços no contexto do direito, e os empresários sabem disto. A principalfonte vem das legislações que têm sido adotadas em nosso país, comdestaque para o Código do Consumidor e a Lei Ambiental.

O direito ambiental trouxe maior responsabilidade para as em-presas, em razão das pesadas multas impostas para aqueles que viola-rem o meio ambiente, as empresas vêm se adaptando a estas normas.

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Na verdade, as multas são estímulos que despertam os empre-sários para a verdadeira função do negócio que fundou. Alguns nãoestão pensando na comunidade que está sendo beneficiada com estaconduta, mas nas pequenas fortunas que terão que desembolsar, casovenham a sofrer punições em razão de danos ao meio ambiente.

Mesmo que por coação (aplicação das multas), a norma temgerado reflexos reais nas organizações, mudando o perfil do supostofuturo do nosso planeta, que terá maiores chances de permanecerpreservado para a gerações seguintes.

No mesmo sentido, o Código de Defesa do Consumidor (CDC)veio para revolucionar a relação entre as empresas e seus clientes.Como conseqüência da mudança de mentalidade da sociedade estalegislação defende os direitos do consumidor e regula a relação entreo consumidor final e as empresas.

Considerado hipossuficiente pelo CDC, o consumidor conquis-tou algumas garantias, e às empresas foram impostas algumas respon-sabilidades.

De um modo geral as legislações seguem o ritmo do desen-volvimento da sociedade, sendo apenas um reflexo desta.

Neste sentido, outros fatores também têm influenciado na mu-dança comportamental das empresas, um destes fatores é justamen-te a globalização, que traz consigo uma nova forma de visualizar asresponsabilidades de uma empresa. É a chamada responsabilidadesocial.

A RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS

Neste contexto é que surge a chamada responsabilidade soci-al. O tema é novo, ainda pouco debatido. Por não ter uma definiçãocerta, alguns autores entendem que ele apresenta várias faces.

A Professora Patricia Ashley (ASHLEY, 2002, p. 37/38) co-menta a respeito de orientações sobre o tema:

Na orientação para os acionistas, a responsabilidade social daempresa é entendida como a maximização do lucro... na orienta-ção para o Estado ou governo, a responsabilidade social da em-presa está no estrito cumprimento de suas obrigações definidas e

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regulamentadas em lei...na orientação para a comunidade, a res-ponsabilidade social da empresa é vista como um ato voluntário dadireção, de forma esporádica ou estratégica...orientação para osempregados vê a responsabilidade social como forma de atrair ereter funcionários com qualificação, além de alcançar mercados combarreiras não tarifárias.

Em razão de uma maior conscientização das pessoas, a co-brança exercida sobre as empresas privadas também cresceu nos úl-timos anos e isso levou-as a um repensar.

Os órgãos de proteção da sociedade, sejam eles representan-tes dos consumidores (Procons), dos trabalhadores (sindicatos) ou dosambientalistas, tiveram um papel preponderante para o início dessequestionar da empresa quanto à sua responsabilidade social.

Há estudiosos do tema cujo entendimento salienta que a práti-ca da responsabilidade social não representa benefício somente para asociedade, mas também traz benefícios para a própria organização,melhorando sua imagem e contribuindo para o bem-estar dos empre-gados, por meio de incentivo à ações voluntárias.

Tais atos poderiam ainda servir de propaganda para atrair no-vos consumidores, principalmente os preocupados com a proteção domeio ambiente ou com a qualidade dos produtos que são colocados àdisposição para o consumo.

As empresas fazem parte de uma grande rede de relaçõesque com ela interagem, e em tal sentido elas devem procurar tratarseus empregados, fornecedores e consumidores de forma ética.

Mas nem sempre isso ocorre, muitas vezes as empresas atuammais eticamente com aqueles stakeholders que possuem alguma influ-ência sobre a organização, como fornecedores, sem os quais não épossível fabricar seus produtos, ou mediante a intervenção de empre-gados chaves.

Diante disso, será que as empresas agem devido àconscientização de responsabilidade, perante a sociedade, onde es-tão inseridas? Ou as empresas praticam a responsabilidade social ten-do em vista a manutenção ou a conquista de mercados?

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Difícil responder, mas caso a resposta à última indagação sejapositiva, a sociedade estaria novamente à mercê do mercado, poisseria ele quem ditaria as ações que deveriam ser praticadas, mas nãoa sociedade em relação às suas reais necessidades.

A questão é complexa, pois às vezes podem ser impostas con-dutas dispendiosas em termos financeiros, sem que a empresa possavislumbrar um meio de aumentar seu capital. Afinal, a empresa estáinserida no sistema capitalista, onde impera a lei do mais forte.

Neste contexto, a legislação obriga algumas condutas por par-te das empresas, é o caso das regulamentações ambientais, trabalhis-tas, etc. Mas o direito também vem se transformando em relação àsempresas, constatado quando se fala em função social da empresa.

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

Muito se discute sobre qual seja a função social que a empresadeve exercer, procurando identificar os limites de suas responsabilida-des, mas como já exposto anteriormente ainda não se tem um con-senso sobre o assunto.

Hoje, uma empresa não pode mais, simplesmente, retirar re-cursos naturais do meio onde está localizada sem oferecer nenhumaretribuição, ela tem uma obrigação maior, ou seja, a de zelar e preser-var o meio onde se encontra.

Quanto a isto, pode-se dizer, em primeiro lugar, que a princi-pal função de uma empresa é gerar empregos para a sociedade, masnão se resume a isto, pois o trabalhador brasileiro não estava prepara-do para a grande transformação imposta pela globalização, não pos-suía especialização diante da informatização do processo de produ-ção das grandes empresas que chegaram ao mercado. Isto fez comque, até hoje, sobrem trabalhadores no mercado, ao mesmo tempoem que sobram vagas para serem preenchidas.

A grande maioria das empresas, nacionais ou multinacionais,não encontra mão-de-obra qualificada para assumir as novas funçõescriadas pela nova tecnologia lançada ao mercado. Em razão do altoíndice de analfabetos, ou da baixa escolaridade dos alfabetizados, ostrabalhadores brasileiros não se enquadram nos novos padrões exigi-

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dos pelo mercado, ficando, ou continuando, excluídos.O que vem ocorrendo é que as empresas buscam em outros

mercados, mesmo que internacionais, profissionais qualificados paradesempenharem as funções necessárias para o andamento da em-presa, causando com isto um desvirtuamento da primeira função soci-al da empresa, criação de empregos para a comunidade onde estáinserida.

E aí, de quem é a responsabilidade pela educação desta co-munidade? Aqui poderia estar a segunda função social da empresa,que é a de proporcionar o desenvolvimento humano, na comunidadeonde ela está, mais conhecida como responsabilidade social da em-presa. Isto poderá ser alcançado por meio de planos desenvolvidospela empresa a qual motiva seus funcionários ao trabalho social,disponibilizando pessoas qualificadas para fazer palestras sobre edu-cação, higiene, meio ambiente, etc, cursos profissionalizantes e por quenão oferecer o ensino básico para as pessoas e crianças carentes daregião?

Sobre o assunto escreve a Professora Dra. Maria CecíliaCoutinho de Arruda (ASHLEY, 2002, p. XVI): “O equilíbrio de uma so-ciedade, em última instância, depende de três grandes fatores: gover-no, família e empresa. Em minha modesta opinião, o futuro do Brasilestá na mão das empresas.”

Para Patrícia Almeida Ashley (ASHLEY, 2002, p. 8), o públicobeneficiado com a responsabilidade social empresarial é amplo, abran-gendo “funcionários, clientes, fornecedores, competidores e outros comos quais a empresa mantenha transações comerciais”.

O mundo dos negócios exige crescente e elevado padrão éticodos partícipes do processo econômico, pois, como adverte Maria CecíliaCoutinho de Arruda (ARRUDA, 2002, p. 8), “hoje, os dirigentes de empre-sas e outras instituições brasileiras já se deram conta de que a ética éalgo sério que começa a fazer sentido. Poderíamos ir mais longe, dizendoque agora a ética significa a sobrevivência das organizações”.

Enriquecendo a compreensão da nova realidade empresarial, inse-re-se a obra de John Elkington (ELKINGTON, 2001, p. 45), alertando que:

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“...em todo o mundo, os executivos estão acordando para o fato deque os mercados-chave estão às margens de uma rápida mudançade direção devido aos padrões ambientais e exigência dos clientes.Como resultado, novos pilares estão sendo acrescentados às anti-gas instruções de lucros e perdas.”

Trata-se de uma nova postura das empresas, frente aos ne-gócios, na qual o “capital humano” é valorizado,337 tanto no âmbitointerno das empresas, colaboradores e fornecedores, quanto externa-mente, clientela em geral, gerando empregos; respeitando direitos tra-balhistas; valorizando direitos do consumidor; respeitando e protegen-do o meio ambiente; contribuindo para a arrecadação pública pelo pa-gamento de tributos; colaborando com a sociedade civil em projetosassistenciais; além de outras posturas e ações que, efetivamente, con-tribuam para a prática da responsabilidade social.

Mas estas iniciativas ainda não são tomadas pela minoria dasempresas atuantes, a maioria se restringe a obrigação de cumprir as leis.

As empresas têm o poder de modificar o ambiente onde vi-vem, mas para isto é necessário que se tenha vontade e ética nassuas condutas.

Saber com exatidão quais as responsabilidades a que as em-presas estariam sujeitas, ainda está longe de ser definida, mesmo por-que vários fatores influenciam nas ações empresariais. Neste contex-to, estudar a globalização é um fator importante para a compreensãodo tema.

A GLOBALIZAÇÃO E AS EMPRESAS BRASILEIRAS

A grande transformação econômica vivida desde o início do mi-lênio, trouxe como destaque a globalização, como anuncia Liszt Vieira(VIEIRA, 1998) “ao lado de uma sociedade global, entendida como soci-edade internacional, haveria hoje uma comunidade global emergente,entendida como comunidade planetária em processo de formação”.

Sobre as modernas tendências econômicas observa JoséCarlos Figueiredo (FIGUEIREDO, 1999, p.13), para quem “o processode globalização impõe regras totalmente inéditas na relação das em-presas com seus colaboradores”, causando, com a crescente e acele-

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rada internacionalização dos negócios, “impactos nas economias, há-bitos, valores, emoções e comportamento dos seres humanos”.

O mesmo autor (FIGUEIREDO, 1999, p. 14), ressalta que:

“...não se pode mais negar a globalização. Por mais que algunsprovem seus movimentos cíclicos, ela é uma realidade num mundoconectado por redes de computador e alimentado por informaçõesonline. A globalização está conectando raças e culturas complemen-tares diferentes, que buscam o mesmo objetivo. Independentemen-te do estágio atual em que se encontram, todas se unem pela pre-sença de seres humanos que lutam pela sua felicidade e realizaçãoprofissional.”

Em razão da comunicação entre os povos, e da diversidade deinformações disponíveis, as empresas sentiram necessidade de mudan-ça para que pudessem competir no mercado internacional, influencian-do diretamente no seu comportamento perante a sociedade.

Quando o processo de globalização tornou-se inevitável, e asnossas fronteiras foram abertas ao mercado internacional, as empre-sas brasileiras não estavam preparadas para este desafio, devido aoexcessivo protecionismo estatal de que gozavam as empresas (altastaxas de importação), vem como pela falta de planejamento (pelo Es-tado) para a abertura do mercado.

Como conseqüência, várias empresas foram obrigadas a fecharas portas, incapazes de adaptar-se ao novo modelo econômico, váriaspessoas foram demitidas elevando o número de desempregados.

Mas hoje, já em busca do novo modelo exigido pelo mercado,as empresas se deparam com outros problemas, gerados principalmentepelos incentivos abusivos às multinacionais em detrimentos das em-presas nacionais.

Não é novidade que as empresas multinacionais, após a aber-tura das fronteiras para o mercado internacional, instalaram-se no Brasil,em busca de mão-de-obra barata, mercado consumidor suficiente, isen-ções de impostos, incentivos como terrenos, dentre outros benefícios.Mas, as empresas brasileiras não recebendo o mesmo incentivo so-frem para competir.

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A globalização é inevitável, é uma das conseqüências da evolu-ção da sociedade, contudo o direcionamento que lhe é dado, pode-sequestionar. Por que multinacionais recebem tantos benefícios e as em-presas nacionais são cada vez mais taxadas por impostos?

O que se prega é o livre comércio, mas vemos que aquelesque assim pregam (EUA), assim não fazem, pois protegem seu mer-cado interno de concorrentes mais competentes.

Portanto, a globalização é um fenômeno extremamente im-portante e que não deve e não pode ser bloqueado, porém o que sedeve ter é um controle, como ocorre nos países de primeiro mundo,onde suas empresas são a base do crescimento do país, e por isto,são colocadas em primeiro lugar.

Este pode ser o caminho para uma relativa independência eco-nômica.

CONCLUSÃO

As empresas estão inseridas num mundo global, sendo assimestão sujeitas às inovações. E é neste sentido que o comportamentodas empresas se amolda.

No século XX muitas transformações ocorreram, todavia aconscientização da sociedade, quanto à responsabilidade social, queas empresas devem desenvolver é uma das mais difundidas.

Esta idéia já tem ganhado forças, para isto pode ser compro-vado com as legislações atuais que passaram a valorizar o homemcomo principal fonte de proteção do direito, e conseqüentemente, omeio onde ele vive, também deve ser respeitado. Neste sentido, asleis ambientais, que impõem às empresas uma conduta eticamenteresponsável para com a natureza, pode ser citado como um dentreinúmeros exemplos.

A sociedade, é a principal interessada, por isto interage atravésdos chamados stakerolders (rede de relacionamento da empresa), emcomo através de entidades públicas e privadas (Procons, sociedadescivis, associações, sindicatos, etc), que impõem limites ao poder de-senfreado das grandes empresas.

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Mesmo assim, observa-se, que muitas empresas, ainda cum-prem somente aquilo que a legislação assim determina, com medodas punições que possam sofrer, mas isto está mudando.

Não se pode definir quais sejam todas as responsabilidadessociais das empresas, mas seus dirigentes já possuem o conhecimentopara saber que, brevemente, ações responsáveis farão parte da so-brevivência das empresas e não mais de mera opção. As empresasmudarão seu comportamento tendo em vista a sua sobrevivência nomercado.

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TRABALHO, LIBERALISMO E IDEÁRIO NEOLIBERAL

LINEU FERREIRA RIBAS

ESPECIALISTA EM ECONOMIA DO TRABALHO PELA UNIVERSIDADEFEDERAL DO PARANÁ. ESPECIALISTA EM DIREITO E PROCESSO DOTRABALHO PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA.MESTRANDO EM CIÊNCIAS SOCIAS APLICADAS PELA UNIVERSIDADEESTADUAL DE PONTA GROSSA. ADVOGADO NO ESTADO DO PARANÁ.

RESUMO

O artigo trata das origens de fenômenos como o liberalismo, o neoliberalismoe a globalização, contextualizando-os com o trabalho humano e com o Direitodo Trabalho. Partindo de uma análise histórica, o autor ressalta o surgimentodo liberalismo como um movimento que enfraqueceu o feudalismo e fortaleceua burguesia. O texto realiza, em seguida, crítica do neoliberalismo em relaçãoàs suas conseqüências para o mercado de trabalho, fazendo surgir um“exército industrial de reserva”.

ABSTRACTThe article is about the origins of currents as liberalism and new liberalismand the globalization , putting it together with human labor and with LaborLaw. From a historical analysis , the author points to the happening ofliberalism as a current that made Feudalism weak and made burgess strong.The text brings a critics to the new liberalism in relation to its consequencesto the labor area , making the appearance of a big industrial reserve .

PALAVRAS CHAVE - Direito do Trabalho; liberalismo; neoliberalismo;globalização.

INTRODUÇÃO

Sempre que tratamos de liberalismo e neoliberalismo, somosreportados, quase que, instantaneamente, ao mundo do trabalho e, emparticular, ao campo do Direito do Trabalho.

É de grande atualidade o tema que ora nos propomos a dis-sertar, pois muito se fala e ouve-se falar em “neoliberalismo” e“globalização”, sem contudo ater-se às suas diferenças, nem tampoucolevantar uma maior reflexão acerca de sua existência e, até mesmo,sobre possíveis imposições econômicas e políticas.

Diante disso, chamamos a atenção para uma contemporizaçãodo tema, para que então o pesquisador possa ater-se a seus verdadei-

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ros contornos, percebendo seus objetivos e criando uma idéia de pers-pectivas, especialmente na esfera do trabalho e desdobramentos noDireito do Trabalho.

PONTOS COMUNS ENTRE LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO

Ambas as ideologias têm pontos comuns, daí porque, evidente-mente, uma ser o espelho da outra, dando ensejo ao nome da segun-da, conhecida como “neoliberalismo”.

Ocorre que, em virtude do contexto histórico acabam por dife-renciar-se bastante, distanciando-se uma da outra. Por isso, de sumaimportância para o pesquisador ter em mente, com clareza, quais ospontos comuns e quais a divergências entre essas ideologias.

Assim, destacando primeiramente os pontos comuns entre li-beralismo e neoliberalismo, podemos afirmar que ambas as ideologi-as pregam um “Estado”, como ente governamental, afastado das rela-ções interpessoais, deixando que os sujeitos tenham plena “liberda-de”, ou seja, pregam que há maior igualdade entre as partes na medi-da em que há o afastamento da intervenção Estatal.

O slogan dessas ideologias pode ser assim sintetizado: O me-lhor Estado é o Estado que menos governa.1

No que interessa ao campo da Economia e do Direito do Traba-lho, prega-se um afastamento do Estado na tutela do salário, deixandocom que o sistema financeiro “naturalmente” regule os níveis salariais.

Nesta linha de raciocínio, quando as empresas estivessem emsituações mais favoráveis economicamente, naturalmente que os salári-os dos trabalhadores também seriam elevados. Ao passo que, quandoem situações desfavoráveis, ditadas pela conjuntura econômica, como,por exemplo, em tempo de grande competitividade no mercado interno eexterno, aberturas alfandegárias, quedas nos câmbios, supervalorizaçãoda moeda nacional e outras, os salários teriam que ser compactados, afim de viabilizar a permanência das empresas no mercado.

Desta forma, os salários dos trabalhadores seriam sempre re-gulados pelo mercado e nunca pelo Estado, como acontece com o salá-

1 PETRAS, James. Os fundamentos do neoliberalismo. In: RAMPINELLI, et al (orgas.) No fio da nava-lha: críticas das reformas neoliberais de FHC. p 16.

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rio mínimo, no qual o Estado regula um piso mínimo a ser respeitadopelo capital, o que não deveria ocorrer em ambas as ideologias, caben-do aos trabalhadores, individualmente, ou organizados por meio de sin-dicatos a negociação para diminuição ou aumento desses salários, den-tro de um contexto conjuntural econômico.

Para viabilização desse afastamento do Estado das relaçõesinterpessoais, faz-se necessária uma desregulamentação doordenamento legal existente, flexibilizando as leis para que a “liberdade”almejada seja possível.

Tanto uma como outra ideologia defendem a derrubada dasbarreiras comerciais, sejam internas ou externas, para que as empre-sas possam participar de um mundo globalizado, vendendo seus pro-dutos e serviços a outros países de forma livre e sem empecilhos,bem abrir seu mercado interno para os produtos desenvolvidos e fa-bricados em outros países.

Desta forma, liberalismo e neoliberalismo alcançariam seusprincipais objetivos, pautados na livre circulação de bens e capitais.

DIFERENÇAS ENTRE LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO PELOCONTEXTO HISTÓRICO

Como sugerido acima, liberalismo e neoliberalismo têm pon-tos comuns, mas à medida que se contextualiza uma e outra ideologiapassa-se a perceber suas diferenças, que são bastante marcantes.

Assim, podemos lembrar que o liberalismo teve maior evidên-cia entre meados do séculos XVII e XVIII, época em que eram fortesos modelos econômicos feudais, aos quais o liberalismo combateu,pois o feudalismo opunha restrições ao novo modelo que se implantavana sociedade, mais tarde conhecido como “capitalismo”. 2

O neoliberalismo, por sua vez, combate a existência de sindica-tos de trabalhadores fortes, que impõem restrições aos objetivos docapitalismo já enraizado na sociedade contemporânea.

Busca combater os sindicatos, de forma a não permitir a conti-nuidade de conquistas no campo social e econômico, que poderiamdificultar ou impedir o desenvolvimento das empresas. Para tanto en-

2 ZARPELLON, Carlos Fernando. Curso de relações do trabalho para pequenos e médios empresários. p 32.

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contra formas de enfraquecer o sistema sindical.O liberalismo pregava a necessidade de exportação do produto

interno. Para tanto prejudicou a economia agrícola dos pequenos campo-neses, os quais foram transformados em empregados das indústrias.

Por outro lado, o neoliberalismo, que também prega a exporta-ção, como necessidade de desenvolvimento e fortalecimento da econo-mia nacional, 3 acaba por desmantelar sua própria indústria nacional,pública e privada. 4

Acaba com a indústria pública porque nesse modelo neoliberal,onde se busca um afastamento do estado, não cabe um estado protetivo,o qual deve deixar a indústria ao capital privado administrar e, no casobrasileiro, de preferência ao capital privado internacional, com o fimde atrair moeda estrangeira, mais precisamente o “dólar”.

Paralelamente, o modelo neoliberal, também afeta a indústrianacional privada, pois ao abrir as barreiras comerciais, ao invés de bene-ficiar a indústria nacional para competir no exterior - o que só ocorre nateoria, pois no caso do Brasil, nossa indústria acaba por não encontrarmercado consumidor, pois já saturado e sedento apenas de novastecnologias o que não é nossa produção -, oferece na verdade um merca-do consumidor interno, rico de consumidores sedentos por bens primári-os, tais como eletrodomésticos, acesso à saúde, moradia, e outros.

Neste contexto, o liberalismo acabou com o feudalismo, pauta-do no mercado interno entre feudos vizinhos, expulsando os campone-ses do campo para as cidades, aglomerando-os nos burgos, enquantoque o neoliberalismo quebrando com as barreiras alfandegárias, abreas portas do país para o mercado internacional, visando a criação deum “mercado globalizado”.

No liberalismo, aqueles camponeses, que foram para as cida-des, acabaram-se tornando a massa de trabalhadores explorados na in-dústria, especialmente com elastecidas jornadas de trabalho, que iam donascer ao pôr do sol, o que só piorou com o advento da luz elétrica, a qual

3 BEIJAMIM, Cesar. O Plano Real: Componentes estruturais e consequências. Palestra proferi-da no VII congresso da APP-Sindicato de 24 a 26 de outubro de 1996.4 PETRAS, James. Os fundamentos do neoliberalismo. In: RAMPINELLI, et al (orgas.) No fio da navalha:críticas das reformas neoliberais de FHC. p 17.

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possibilitou ao capital a exploração do trabalhador até que suas forçasse esvaíssem.

Houve também intensa exploração da mão-de-obra feminina einfantil, ao passo que o neoliberalismo transformou trabalhadores em-pregados em desempregados, empurrando-os para o “exército indus-trial de reserva”, 5 ou até mesmo para a “massa marginal”, 6 compostapor aqueles trabalhadores que já não são aproveitados pelo sistemacapitalista por uma série de fatores, tais como idade ou falta de quali-ficação profissional.

Desta forma, o neoliberalismo transfere esses trabalhadoresdo exército industrial de reserva e da massa marginal, da situaçãoanterior de assalariados para uma nova posição, a de trabalhadoresautônomos ou informais, além de causar uma pressão aos trabalha-dores empregados, que diante do alto nível de desempregados, aca-bam por sujeitar-se a aceitar condições mais precárias de trabalho, commaior intensidade de afazeres.

Nesta esteira, grande é a diferença que se visualiza entre o libe-ralismo e o neoliberalismo, porque aquele quando reuniu trabalhadoresdentro da indústria foi impelido a aceitar e legislar acerca de um Direitodo Trabalho, pois possibilitou o surgimento de classes sociais bemdelineadas, que se fortificaram por uma série de fatores, como por exem-plo: a encíclica papal Rerum Novarum do Papa Leão XIII, pela qual aIgreja fez despertar um espírito de solidarismo e de necessidade de di-visão de riquezas. Além disso, tais trabalhadores foram fortificadoscom a primeira grande guerra mundial, quando então o capital depen-deu da força de trabalho para a indústria pesada e mobilização derecursos humanos para o campo de batalha. 7

Já o neoliberalismo, ao contrário do anterior movimento que acei-tou o Direito do Trabalho, o desestrutura mediante políticas deflexibilização e de desregulamentação, afastando o Estado das rela-ções de trabalho e deixando que o mercado dite as normas a serem

5 MARX, Karl. Apud NUN, José. La Marginalid en América Latina, p 5.6 Idem.7 MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução ao Direito do Trabalho. Apud. ZARPELLON, CarlosFernando. Curso de relações do trabalho para pequenos e médios empresários. p 36.

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observadas por empresas e empregados.As cidades foram beneficiadas com o advento do liberalismo,

pois houve grande movimento demográfico do campo para as cidades,que acabaram por formar os burgos, os quais ensejaram o surgimentode uma nova classe social: a burguesia.

Por outro lado, essas mesmas cidades foram prejudicadas peloneoliberalismo, visto que este movimento transforma muitos centrosurbanos em enormes favelas, evidenciando as diferenças entre clas-ses sociais, fortalecendo os ricos e deixando os pobres cada vez maispobres, com a paulatina eliminação da “classe média”. 8

Na verdade, o neoliberalismo faz com que tudo o que era consi-derado sólido, já não o seja mais, 9 como, por exemplo, a formaçãoprofissional em nível de graduação (terceiro grau regular), como requi-sito para encontrar trabalho empregado, ensejando uma vida estávele confortável, o que já não ocorre com tranqüilidade e já não pode sermais considerado como objetivo único de vida, pois, a graduação já nãooportuniza de imediato a conquista de emprego, tampouco garante oingresso do profissional no mercado de trabalho.

ELEMENTOS ESTRUTURAIS E CONJUNTURAIS DO PAÍS

Nesta análise somos arremessados a uma observação dialéticada sociedade brasileira, numa estrutura onde se observa que da jun-ção de povos indígenas e portugueses nasceu um novo povo, umanova nação, denominada Brasil, com um processo histórico de constru-ção nacional ainda em desenvolvimento.

Esta mesma dialética nos mostra que passado e presente es-tabelecem um relacionamento marcante, especialmente no delineardo futuro do Direito do Trabalho.

Assim, uma nação que surgiu como território colonizado, comcaracterística econômica de fornecedora de produtos para exporta-ção, desenvolveu-se para um crescente mercado interno.

Desta maneira, o país surgiu com um povo aberto para o mun-

8 PETRAS, James. Os fundamentos do neoliberalismo. In: RAMPINELLI, et al (orgas.) No fio da navalha:críticas das reformas neoliberais de FHC. p 17.9 MARX, Karl. O manifesto comunista. p 14.

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do, demográfica e culturalmente, o que continua e continuará presenteem nossas raízes, como um relacionamento entre o passado e o pre-sente, ditando contornos para o futuro, o que se desvirtuou com a im-plantação do Plano Real, quando então o país obrigou-se definitivamen-te a observar as regras neoliberais de abertura comercial e estagnaçãoda economia.

Oportuno ressaltar que, uma verdadeira nação, necessariamente,precisa ter quatro pilares, um calcado num território nacional reconheci-do pelo mundo, outro num povo (cidadãos), outro num grau suficiente deautonomia decisória e, o último, num Estado que expresse uma ordemjurídica-política legítima e eficaz, expressando, em outros termos, toda asoberania nacional. 10

Desta forma, ressalte-se que, os dois primeiros pilares já foramassentados pelo Brasil, ao passo que os outros dois últimos pilares vêmsofrendo fortes impactos, principalmente decorrentes da estagnação dodesenvolvimento, ocorrida para (em tese) conter a inflação esupervalorizar a moeda nacional em relação ao dólar.

Com a industrialização ocorrida no campo, a migração de tra-balhadores rurais para as cidades foi imensa, pois não encontrando maistrabalho foram para as cidades, as quais tornaram-se muito cheias, enas últimas décadas deixaram de assimilar essa mão-de-obra e passa-ram igualmente a reduzi-la.

CONCLUSÃO

O Brasil assumiu a posição periférica, espontaneamente, im-pedindo o desenvolvimento de sua indústria nacional privada e acaban-do com a pública.

Isso fez com que os trabalhadores dessas empresas fossemparar na informalidade, seguindo exatamente a cartilha ditada peloneoliberalismo, criando um tumulto social nas cidades e no campo, oque agrava o problema fiscal nacional, fazendo com que o Estado pre-cisa de mais dinheiro para solucionar tais questões e nunca o faz,porque se assim o fizer, importaria tirar dinheiro das mãos de investido-

10 BENJAMIN, César et al. A opção brasileira. p 71.

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res estrangeiros, aumentando o “risco Brasil”, o que provavelmente afas-taria o capital volátil de forma tão rápida que desencadearia, provavel-mente, uma crise, ainda pior.

Essa dinâmica, deveras complexa, acaba por atingir a partemais fraca na escala de poderes, qual seja, a classe dos trabalhadores.Os operários ficam sem emprego. Procuram qualificar-se profissional-mente para um “fictício” mercado de trabalho, já saturado e sem postospara todos, o qual, ao revés, está cada vez mais a reduzir postos detrabalho sob o pretexto da competitividade internacional, para enfrentara globalização.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Lúcio Flávio Rocrigues de. De JK a FHC: apontamentospara a análise das lutas sociais no Brasil contemporâneo. Apud.RAMPINELLI, Waldir José e OURIQUES, Nildo Domingos (orgs.).No fio da navalha: críticas das reformas neoliberais de FHC.São Paulo: Xamã, 1997.

ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. Apud. SADER, Emire GENTILI (orgs.). Pósneoliberalismo: as políticas sociais e oEstado democrático. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1996.

BENJAMIN, César et al. A opção brasileira. Rio de Janeiro:Contrataponto, 1999.

HAYEK, F. A. O caminho da servidão. 5. ed. Rio de Janeiro: InstitutoLiberal, 1990.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 2001.

NUN, José. La Marginalidad en América. Revista Latinoamericanade Sociologia. Ed. Especial. V. 2. 1969a.

PETRAS, James. Neoliberalismo: América Latina, Estados Uni-dos e Europa. Blumenau: EFURB, 1999.

ZARPELLON, Carlos Fernando. Curso de relações trabalhistaspara pequenos e médios empresários. São Paulo: LTR, 1996.

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O DIREITO À DIFERENÇA, À IGUALDADE E ÀLIBERDADE DOS HOMOSSEXUAIS

JULIANE MAYER GRIGOLETO

RESUMO

O texto analisa o surgimento do Estado moderno como o ambiente necessárioà proliferação do individualismo, o qual fundamentou o aparecimento dedeclarações de direitos dos indivíduos, adotados pelas constituições doEstados modernos em maior ou menor grau. Atualmente, no Brasil, o DireitoCivil, após sofrer um processo denominado repersonalização, abrangeu nacategoria dos direitos de personalidade os direitos individuais. Na esfera daindividualidade e da especificidade, nasceu o direito à diferença. A autoraprocura enfatizar o direito à diferença como direito individual, tendo comoprincipais destinatários, dentre outros, os homossexuais.

ABSTRACT - RIGHT TO THE DIFFERENCE, TO THE IGUALITY ANDTHE LIBERTY OF THE HOMOSEXUALS

The text analyses the happening of a modern state as the place necessaryto the proliferation of the individualism , which fundament the appearance ofindividuals Bill of Rights , adopted by the modern State Constitutions . Nowa-days, in Brazil, Civil Law , after a process called personalization, has cov-ered in the category of entity rights the individual rights. In the individualitypart and its specification , the right for the difference has born. The authorwants to emphasize the right for the difference as an individual right , havingas destiny , among others, the homosexual people.

KEY-WORDS - individual rights, right to the difference, homosexuals.

PALAVRAS CHAVE - Direito Civil; declarações de direitos individuais;direitos dos homossexuais.

INTRODUÇÃOA existência de direitos humanos individuais remonta a forma-

ção do Estado Moderno e da filosofia de pensamento que conduziu asrevoluções históricas, como a Revolução Francesa.

Para este estudo foram analisadas as teorias de Hobbes eLocke e suas contribuições para o nascimento do Estado.

O Estado moderno frutificou com a constitucionalização dos di-reitos individuais, os quais, atualmente, fazem parte da codificação bra-

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sileira de Direito Privado, o Novo Código Civil.A repersonalização do Direito Civil e a inclusão de direitos de

personalidade serão examinados no decorrer deste ensaio, a fim defundamentar a existência de uma quarta geração de direitos, o direitoà diferença.

O direito à diferença é tema relevante e atual no que concerneaos direitos dos homossexuais.

Assim, para tratar de igualdades e liberdades dos homossexu-ais foi traçado um panorama histórico da formação do Estado modernoe o surgimento dos direitos individuais, perpassando pela análise darepersonalização do Direito Civil e da nova categoria de direitos, odireito à diferença, enfocando como atores a que estes direitos sedestinam os homossexuais.

SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO E O NASCIMENTO DOSDIREITOS INDIVIDUAIS

Na Antigüidade, o Estado se caracterizava pelo absolutismo eo rei era elevado à categoria de Deus. Com essa forma endeusada osoberano garantia a paz, mantendo um exército de soldados profissio-nais, enquanto os cidadãos cuidavam de si próprios e de gozarem assuas vidas. (SCHILLING, 1966, p. 102)

Dizia-se, portanto, que as pessoas na Antigüidade desconheci-am direitos individuais. Possuíam liberdades políticas, pois os cidadãosgregos, por exemplo, participavam do governo, votando e sendo vota-dos. Os demais habitantes gregos eram os estrangeiros, consideradosinimigos ou semi-escravos e os escravos, os quais tampouco poderi-am ser considerados sujeitos de direitos. Assim, o Direito Público oudo Império era o Direito Administrativo do monarca e o Direito Privadoera o dos homens reduzidos a si mesmos e às suas relações, para asquais não havia interferência do Estado. Os interesses individuais eramresolvidos pelos envolvidos e conforme suas necessidades e as decisõesnão eram tomadas com base na igualdade. (SCHILLING, 1966, p. 103)

Em Roma também o povo participou do governo durante a Re-pública. Entretanto, com o Império, a liberdade política dos romanos foisufocada pela lei do imperador.

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A queda do Império Romano fez ruir a liberdade política e esvairoutras oportunidades de exercício da liberdade. Conseqüentemente, oshomens fracos, desguarnecidos de um Estado que lhes oferecesse segu-rança, buscavam a proteção dos mais fortes. As relações de proteçãoserviram de base para o feudalismo. Os senhores feudais protegiam osservos em troca dos serviços destes. (AZAMBUJA, 1969, p. 155 e 156)

Durante o século XVII, o confronto entre o rei e o parlamentogerou correntes de pensamento político que se dividiam na defesa deum e de outro lado. Destacaram-se os filósofos Thomas Hobbes (1588/1679), ferrenho defensor do absolutismo e John Locke (1632/1704), te-órico do liberalismo.

Hobbes ensina que, no início, todos os homens viviam no es-tado natural, sem estarem sujeitos a qualquer lei. Por isso, não haviasegurança, pois a luta de uns contra os outros era constante. Paraescapar a esse estado de guerra, os indivíduos estabeleceram entre sium ‘’contrato”, pelo qual cediam todos os seus direitos a um só ente,suficientemente forte para protegê-los contra a violência, dando ori-gem a uma sociedade política, o Estado. A vontade única do soberanovai representar a vontade de todos.

O Estado permanecia absoluto e o poder do príncipe arbitrário,pois todo e qualquer direito era uma concessão do príncipe. Por conse-qüência gerava-se uma resistência individual e o indivíduo não era vistocomo portador de direitos em relação ao Estado. (DIREITO MENEZES,1968, p. 80)

Já o escritor inglês John Locke (1632/1704) personificou, naInglaterra do final do século XVII, as tendências liberais opostas aoabsolutismo de Hobbes.

O ponto de partida de Locke é mesmo de Hobbes, ou seja, oestado de natureza ao que se segue um contrato entre os homens,que criou a sociedade e o governo civil. Mas, Locke chega a conclusõesopostas às de Hobbes, pois, sustenta que, mesmo no estado de nature-za, o homem é dotado de razão. Dessa forma, cada indivíduo pode con-servar sua liberdade pessoal e gozar do fruto de seu trabalho. Entretan-to, nesse estado natural faltam leis estabelecidas e aprovadas por to-dos e um poder capaz de fazer cumprir essas leis. Os indivíduos então

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consentem em abrir mão de uma parte de seus direitos individuais, con-cedendo ao Estado a faculdade de julgar, punir e fazer a defesa externa.Porém, se a autoridade pública, a quem foi confiada a tarefa de a todosproteger, abusar de seu poder, o povo tem o direito de romper o contratoe recuperar a sua soberania original. Assim, Locke defendia o direito dopovo em se sublevar contra o governo e justificava a derrubada e a subs-tituição de um soberano legítimo por outro.

A passagem do “estado natural” para o “estado social” só podeser feita pelo consentimento dos homens e se todos os homens sãoiguais e livres, nenhum pode ser tirado desse estado e submetido aopoder político de outrem, sem o seu próprio consentimento.

Entre os direitos que, segundo Locke, o homem possuía quan-do no estado de natureza, está o da propriedade privada que é frutode seu trabalho. O Estado deve, portanto, reconhecer e proteger apropriedade. Locke defende também que a religião seja livre e quenão dependa do Estado. (BOBBIO, 1980)

E é desta maneira que a sociedade civil substitui o estado natu-ral. Esta sociedade possui dois poderes essenciais: o Legislativo, quedetermina como o Estado deve agir para a conservação da sociedadee de seus membros e o Executivo, que assegura a execução das leispromulgadas, sendo que ambos devem estar em mãos diferentes paraevitar possíveis abusos.

Dessas correntes de enfrentamento do absolutismo surgiramos movimentos revolucionários na Inglaterra (1688), na América do Nor-te (1776) e na França (1789). O saldo destas revoluções foram o Bill ofRights (Inlgaterra, 1688), a Declaração de Direitos do Bom Povo daVirgínia (Estados Unidos da América, 1776) e a Declaração de Direitosdo Homem e do Cidadão (França, 1789) que previam medidasassecuratórias de direitos fundamentais individuais limitando os pode-res da monarquia constitucional; considerando todos os homens livres,iguais e independentes; garantindo a democracia e que o Estado/go-verno deve ser instituído para o bem comum do povo; o direito de defe-sa criminal, com juiz imparcial; a liberdade de imprensa e de religião; odireito de propriedade; o habeas corpus e o voto das mulheres, para

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citar alguns. Todos esses direitos vigoraram sob as premissas da liber-dade, da igualdade e da fraternidade e com o intuito de uma sociedademais humana e justa. (SILVA, 1993, p. 144)

Após este marco, as Constituições dos Estados modernos passa-ram a conter em maior ou menor número a declaração dos direitos individu-ais, sendo a diferença primordial entre o Estado Antigo e o Estado Moder-no a inclusão da pessoa humana como ente de direitos frente ao Estado,sendo que estes direitos não podem ser violados pelo Estado.

OS DIREITOS INDIVIDUAIS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICAFEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 E OS DIREITOS DEPERSONALIDADE NO NOVO CÓDIGO CIVIL

A origem dos direitos do homem como pessoa consideradaem si mesmo remonta o surgimento do Estado Moderno e as Consti-tuições. E esses, como os demais direitos, sempre surgiram das ne-cessidades de cada tempo e da luta empreendida para conseguirefetivá-los através de leis.

Quando o homem vivia em pequenos grupos, as dificuldadesque emergiam eram resolvidas ou pela ardilosidade ou pela força bru-ta. Conforme as sociedades foram tornando-se mais complexas, foi evi-denciando-se a necessidade do estabelecimento de normas, de pactospara a sua organização econômica, política, social e até religiosa.

Como se percebe, depois das revoluções e para atender aosanseios do indivíduo, corroborado pelo pensamento de Hobbes, Lockee Rousseau, surgiram os direitos individuais. Entende-se por direitosindividuais “os direitos do indivíduo isolado. Ressumbra individualismoque fundamentou o aparecimento das declarações do século XVIII. É aterminologia que a doutrina tende a desprezar cada vez mais. Contudo,é ainda empregada para denotar um grupo dos direitos fundamentais,correspondente ao que se tem denominado direitos civis ou liberdadescivis.” (SILVA, 1993, p. 162)

Esses direitos estão assegurados no caput do artigo 5° da Cons-tituição da República Federativa do Brasil, de 1988: direito à vida, àliberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Com a chamada repersonalização do Direito Civil que ocorre

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com a gradativa transmutação do ter, de origem patrimonialista, para oser, os direitos do homem vêm superando o materialismo do CódigoCivil de 1916 (TASCA, 2003, p. 10)

O fenômeno da repersonalização338 do Código Civil está acom-panhado da constitucionalização deste direito. No Brasil, a Constituiçãoé chamada de Carta Magna ou Lei Maior e, portanto, figura como a maisimportante codificação do País, fundamentando os demaisordenamentos. Fato este que enseja a que os direitos de personalida-de emanem dos direitos fundamentais individuais assegurados pelaConstituição.

Os direitos de personalidade estão enunciados no Novo Códi-go Civil, a partir de seu artigo 11, e mantém as características inerentesaos direitos individuais como a intransmissibilidade e airrenunciabilidade. São considerados direitos de personalidade, conso-ante o Novo Código Civil: a) a disposição do próprio corpo gratuitamen-te para fins humanísticos como transplante, objetivo científico, oualtruístico, pós-morte; b) a proteção do nome, sobrenome e pseudôni-mo; c) honra; d) boa fama; d) imagem e e) vida privada.

Em que pese as inovações trazidas por este novo ordenamentojurídico, algumas questões relativas aos direitos de personalidade ain-da ficaram de fora. Entretanto, já está em trâmite, no Congresso Nacio-nal, o Projeto de Lei n. 6920/02, de iniciativa do Deputado Ricardo Fiúza,o qual visa proceder algumas modificações no que concerne aos direi-tos de personalidade relativos, especificamente, ao comportamento se-xual. É intenção deste projeto que se inclua a possibilidade de livre ma-nifestação da sexualidade para se assegurar aos homossexuais a liber-dade de expressão de sua sexualidade assim como a possibilidade dereconhecimento de sua união civil.

Já que o Novo Código Civil busca a aproximação entre os di-reitos fundamentais e os direitos de personalidade, bem como, dado

338O DIREITO À DIFERENÇA, À IGUALDADE E À LIBERDADE DOS HOMOSSEXUAIS338 Repersonalização

– preocupação em valorizar o sujeito como ser humano e em salvaguardar sua dignidade, colocando oindivíduo como centro, como principal destinatário da ordem jurídica. (SZANIAWSKI, E. Limites epossibilidades do direito de redesignação do estado sexual: estudo sobre o transexualismo –aspectos médicos e jurídicos. Tese de Doutorado da Universidade Federal do Paraná, 1997, p. 14)

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que em matéria de lei os brasileiros são extremamente positivistas, ne-cessitando sempre de uma lei para garantir direitos, mister se faz pen-sar nos direitos dos homossexuais. E, para tanto, como entende FIÚZA(2003) “é preciso, todavia, que se afastem as posturas farisáicas ousimplesmente ortodoxas e que se atente que em todo o Capítulo da Fa-mília o Novo Código dá especial ênfase às relações afetivas. Nessecaso, deveríamos reconhecer que a busca da felicidade entre duaspessoas extrapolou a rigidez e o engessamento do direito positivo.”

Trabalhando neste sentido, estão os movimentos homossexu-ais que buscam assegurar o direito à diferença.

O DIREITO À DIFERENÇA, À IGUALDADE E À LIBERDADE DOSHOMOSSEXUAIS

O direito à diferença se situa na quarta geração de direitos.Houve a necessidade de criação desta quarta categoria porque atéentão os direitos anteriores (liberdade, econômico-sociais e qualidadede vida) se dirigiam a todos os indivíduos de forma grupal. Entretanto,existem direitos que surgem “de um processo de diferenciação de umindivíduo em relação ao outro.” (LORENZETTI, 1998, p. 154). É o caso,por exemplo, dos portadores de deficiência, das pessoas que dese-jam trocar de sexo, daquelas mulheres que querem abortar, das pes-soas que recusam tratamentos médicos que levem à morte e dos ho-mossexuais.

Algumas pesquisas mostram que os homossexuais sentem anecessidade humana de afeto e de viver a vida com um parceiro. Emseu Relatório sobre s Homossexualidade, BON e D’ARC (1979, p. 235e 237) chegaram ao percentual de 61% dos entrevistados que dese-jam um parceiro para a vida e 56% que lastimam a inexistência docasamento homófilo. Juntando esses dados, à referência de que 10%da população brasileira é homossexual, em torno de 16 milhões de pes-soas (fonte www.terra.com.br/istoe/1604/brasil/1604/luzrosa.htm e Gru-po Gay da Bahia), o número de famílias homossexuais é considerável,para que a legislação demore tanto tempo para se adequar a esta rea-lidade. CASTELLS (1999, p. 262) aponta alguns números sobre a quan-tidade de lares homossexuais nos Estados Unidos e segundo sua esti-

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mativa, cerca de 20% da população masculina gay já foi casada e entre20 e 50% tiveram filhos. Muitas vezes lésbicas são mães, quase sem-pre em conseqüência de casamentos heterossexuais anteriores. Umaavaliação bastante abrangente indica que o número de crianças, nosEstados Unidos, que vive com mães lésbicas varia entre 1,5 e 3,3 mi-lhões. O número de crianças que vivem com pai gay ou mãe lésbicasitua-se entre 4 e 6 milhões.

Por isso, a necessidade de se pensar no direito à diferença, poisdada a diversidade de manifestações da sexualidade (heterossexuais,bissexuais, transexuais, homossexuais) não se pode reivindicar direitosiguais para todos, é necessário a especificidade, pois “ ... temos o direitode ser iguais quando a diferença nos inferioriza e a ser diferentes quandoa igualdade nos descaracteriza.” SANTOS (2002, p. 75), pensamentocorroborado por TOURAINE (1998, p. 72): “Somos iguais entre nós so-mente por que somos diferentes uns dos outros.” Até porque “a graça nãoestá na diversidade?” (PEREIRA, 2002, p. 23)

O direito à diferença para os homossexuais representa a possi-bilidade de serem tratados com dignidade e porque: “a sexualidade é,assim, um elemento integrante da própria natureza humana, seja indivi-dualmente, seja genericamente considerada. Sem liberdade sexual,sem o direito ao livre exercício da sexualidade, sem opção sexual li-vre, o indivíduo humano – e, mais amplamente, o próprio gênero hu-mano – não se realiza, resta marginalizado, do mesmo modo quandolhe falta qualquer outra das chamadas liberdades ou direitos funda-mentais.” (DIAS, 2000, p. 164)

O Brasil, por meio do Programa Nacional de Direitos Huma-nos busca assegurar a todas as pessoas: mulheres, negros, índios, ido-sos, portadores de deficiências, estrangeiros, imigrantes, refugiados,portadores de HIV positivo, crianças e adolescentes, policiais, presos,despossuídos e os que têm acesso à riqueza, a proteção do direito àvida, à liberdade, ao tratamento igualitário perante a lei, entre outrosdireitos fundamentais (ALVES, 2002, p. 10).

A própria Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso III fazreferência a que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, o qual

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tem como um de seus princípios a dignidade da pessoa humana, nãopodendo, portanto, haver qualquer discriminação por causa da orienta-ção sexual. (RIOS, 2002, p. 13)

Para o ordenamento jurídico brasileiro a Constituição está ele-vada à categoria de conjunto de normas e princípios que não podem serinfringidos por normas inferiores sob pena de lhes serem argüidas ainconstitucionalidade. Portanto, com base nos postulados constitucio-nais, as leis devem ser escritas e interpretadas de forma a não divergi-rem da Carta Magna. Nesse sentido, é pertinente que:

a interpretação da legislação infraconstitucional e a proposiçãode projetos de lei (campos de claríssima manifestação do poder políti-co) não podem ignorar o respeito às diversas modalidades de orienta-ção sexual, socialmente presentes, dentre as quais a homossexualida-de se insere. Isso seja pelo respeito à vida privada e à intimidade, sejapelo caráter plural e participativo inerentes ao Estado Democrático deDireito delineado constitucionalmente. (RIOS, 2002, p. 2)

Há quem acredite que não ocorre a discriminação e que os ho-mossexuais já são tratados com igualdade por comungarem de que oprincípio da igualdade é obedecido toda vez que se trate com igualdadeaos iguais e com desigualdade aos desiguais. Utilizar esta linha de raci-ocínio é dar margem ao preconceito porque os homossexuais são dife-rentes dos heterossexuais apenas na orientação do seu desejo sexual,no mais podem ser ricos, pobres, letrados ou analfabetos, desempre-gados ou trabalhadores, é anular a diversidade.

As leis, devido à sua casuística, procuram regular situaçõesprevisíveis para que se estabeleça a boa convivência, mas não preven-do tudo o que possa acontecer, não traz definições para tudo. Então, cabeao operador do direito analisar o fato concreto e buscar a integração danorma jurídica por meio da interpretação. E a interpretação mais adequa-da para se garantir o direito aos homossexuais é aquela que busca en-quadrar o direito à realidade social, “sustentando que a obediência à nor-ma decorre do respaldo social para sua eficácia e não da determinaçãoadvinda da criação formal.” (FIGUEIRÊDO, 2002, p. 54)

A realidade social mostra que “em graus variados, a maioria

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dos países adotou leis de proteção às diferenças.” (ANTUNES, 2003, p.78) A França, por exemplo, em 1999, legalizou a união entre pessoas domesmo sexo denominando-a de pacto civil de solidariedade. A Holandatambém prevê casamento entre homossexuais e o direito à adoção decrianças desde 2000. Ainda na Europa, a partir de fevereiro de 2003será admitida aos casais homossexuais suecos a adoção de crianças.Na Dinamarca a união civil entre homossexuais foi legalizada em 1989e na Noruega, em 1992. E, é possível que outros países europeus apro-vem leis semelhantes, “principalmente pela necessidade de igualdadede direitos dentro da União Européia, e pelo processo de globalizaçãoda economia.” (FARIAS, 2002, p.11). Nos Estados Unidos dezenas decidades, entre elas Nova Iorque (1993) e São Francisco (1991) reco-nhecem direitos patrimoniais, seguro saúde e outros a casais homosse-xuais. Na América Latina, a Argentina foi pioneira, aprovando no dia 13de dezembro de 2002, em Buenos Aires, uma lei que autoriza a uniãocivil entre homossexuais, que entrará em vigor em abril de 2003.

Percebe-se que, da mesma forma que a aquisição de direitosindividuais pelo cidadão foi conseguida após intensas batalhas, oshomossexuais estão no mesmo caminho:

Os gays já foram considerados criminosos – e julgados porisso. A Inglaterra do século XIX enforcou dezenas deles. Na mesmaépoca, as autoridades russas mandavam o muzhelozhstvo (que querdizer ‘homem que dorme com homem’) passar até cinco anos naSibéria. A Alemanha nazista deu aos homossexuais o mesmo trata-mento reservado aos judeus. Num dos mais famosos julgamentos dahistória, ocorrido em 1895, o escritor irlandês Oscar Wilde foi acusadode sodomia e comportamento indecente. Diante do juiz, definiu a atra-ção física entre dois homens como o ‘amor que não ousa dizer o nome.’Wilde acabou condenado e sentenciado a dois anos de prisão e traba-lhos forçados. Numa fase seguinte, os homossexuais passaram a sertratados não mais como criminosos, mas como doentes, ‘portadoresde uma anomalia’ que podia conduzi-los à depressão e ao suicídio,donos de uma propensão especial à prática de crimes. Somente hápouco mais de dez anos, a Organização Mundial de Saúde retirou a

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homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças. Atualmen-te os especialistas já não discutem o que leva alguém aohomossexualismo. Trata-se de uma mistura de fatores, resultado deinfluências biológicas, psicológicas e socioculturais, sem peso maiorpara uma ou para outra – nunca uma determinação genética ou umaopção racional. (ANTUNES, 2003, p. 75)

Portanto, os homossexuais existem, são pessoas e merecemter seus direitos assegurados como qualquer outro ser humano. Dado ofato de que ainda não existe aceitação maciça da sociedade os ho-mossexuais, assim como as demais minorias, se organizaram emmovimentos que buscam melhorar suas condições psicológicas, soci-ais e jurídicas.

Em relação à garantia do Direito à Liberdade de OrientaçãoSexual, por exemplo, as propostas dos movimentos homossexuais são:

a) emenda à Constituição Federal para incluir a garantia do di-reito à livre orientação sexual e a proibição da discriminação por orien-tação sexual;

b) apoiar a regulamentação da parceria civil registrada entrepessoas do mesmo sexo e a regulamentação da lei de redesignaçãode sexo e mudança de registro civil para transexuais;

c) aperfeiçoar a legislação penal no que se refere à discrimina-ção e à violência motivadas por orientação sexual;

d) excluir o termo “pederastia” do Código Penal Militar;e) incluir nos censos demográficos e pesquisas oficiais dados

relativos à orientação sexual. (fonte: http://www.mj.gov.br/pndh/index.htm In:http://www.redesaude.org.br/jr24/html/body_jr24-pndh.html)

No que se refere aos Direitos de Igualdade, os Gays, as Lésbi-cas, os Travestis e os Bissexuais (GLTTB) buscam:

Promover a coleta e a divulgação de informações estatísticassobre a situação sociodemográfica dos GLTTB, assim como pesqui-sas que tenham como objeto as situações de violência e discriminaçãopraticadas em razão de orientação sexual.

Implementar programas de prevenção e combate à violênciacontra os GLTTB, incluindo campanhas de esclarecimento e divulgação

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de informações relativas à legislação que garante seus direitos.Apoiar programas de capacitação de profissionais de educa-

ção, policiais, juízes e operadores do direito em geral, para promover acompreensão e a consciência ética sobre as diferenças individuais e aeliminação dos estereótipos depreciativos com relação aos GLTTB.

Inserir, nos programas de formação de agentes de segurançapública e operadores do direito, o tema da livre orientação sexual.

Apoiar a criação de instâncias especializadas de atendimentoa casos de discriminação e violência contra GLTTB no Poder Judiciá-rio, no Ministério Público e no sistema de segurança pública.

Estimular a formulação, implementação e avaliação de políticaspúblicas para a promoção social e econômica da comunidade GLTTB.

Incentivar ações que contribuam para a preservação da memó-ria e fomento à produção cultural da comunidade GLTTB no Brasil.

Incentivar programas de orientação familiar e escolar para aresolução de conflitos relacionados à livre orientação sexual, com o ob-jetivo de prevenir atitudes hostis e violentas.

Estimular a inclusão, em programas de direitos humanos esta-duais e municipais, da defesa da livre orientação sexual e da cidadaniados GLTTB.

Promover campanha junto aos profissionais da saúde e do di-reito para o esclarecimento de conceitos científicos e éticos relaciona-dos à comunidade GLTTB.

Promover a sensibilização dos profissionais de comunicaçãopara a questão dos direitos dos GLTTB. (fonte: http://www.mj.gov.br/pndh/index.htm In:http://www.redesaude.org.br/jr24/html/body_jr24-pndh.html)

A falta da garantia dessas igualdades e liberdades para os ho-mossexuais compromete a vida afetiva deles que querem casar, adotarcrianças, receber e transmitir direitos hereditários, declarar imposto derenda em conjunto, adquirir a casa própria com o mesmo financiamento,que é assegurado aos casais heterossexuais, ter direitos previdenciáriosde casal. Enfim, eles querem o direito de ser feliz a dois, com ou semfilhos, podendo ser considerados família para gozarem de todas as prer-rogativas que o Estado e a sociedade asseguram a esta instituição.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo estudo realizado, pode-se concluir que há necessidade dese repensar a legislação brasileira, principalmente pela ótica dos direi-tos da personalidade no Novo Código Civil e da inclusão, na categoriados direitos individuais constitucionais, do direito à diferença, para as-segurar igualdades e liberdades aos homossexuais.

A homossexualidade é uma orientação sexual de um indiví-duo para outro do mesmo sexo, portanto, uma manifestação da sexu-alidade, não é doença ou opção. Os homossexuais são pessoas comoos heterossexuais, os bissexuais que se casam ou vivem solteiros,trabalham, estudam, ajudam a eleger os membros do Poder Legislativoque fazem as leis que não os incluem.

Demonstrou-se que existem países considerados desenvolvi-dos que já adotaram leis de proteção à diversidade e que estas socie-dades modificaram o seu pensamento e buscaram a inclusão dos ho-mossexuais, por meio do direito à diferença, respeitando a manifesta-ção da sexualidade.

Assim, o Brasil também pode dar efetividade à Constituição,no que se refere à dignidade da pessoa humana, à liberdade e à igual-dade, ao se assegurar aos homossexuais, que vivem em união está-vel ou criam filhos, o direito de serem abrangidos no conceito jurídico defamília. E que esta inclusão possibilitaria às famílias homossexuais go-zarem de todas as prerrogativas legais a que faz jus esta instituição.

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REALIDADE E REPRESENTAÇÃO

RAFAEL AUGUSTUS SÊGA

PROFESSOR NO CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA,UNIDADE DE PATO BRANCO. DOUTOR EM HISTÓRIA PELAUNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

RESUMO

O artigo faz um paralelo, uma contraposição, entre o estilo homérico e orelato bíblico. Esclarece o autor que no estilo homérico os instrumentossintáticos são delimitados e graduados, não deixando nada do que émencionado na penumbra ou inacabado, e por assim dizer, não existindodessa forma, fenômenos obscuros ou fragmentados. Já no relato bíblico, aocontrário, não se tem a função de manifestar ou exteriorizar pensamentos,pois se procura aludir algo tácito, que continua inexpresso.

ABSTRACT

The article makes a comparison between the Homeric stile and the BiblicalStile. The author makes clear that in Homeric Stile the syntactic instru-ments are delimitated and graduated , not leaving anything of what is men-tioned in doubt or not finished, and , this way, it doesn’t happen to occur anyobscure information or piece of it . In the Biblical Stile , on the other hand,there is not the worry of manifestation or exteriorization of thoughts , be-cause it makes an illusion of a tacit act that is still inexpressive.

PALAVRAS CHAVE - Filosofia; literatura; estilo homérico e relato bíblico;realidade e representação.

Em seu livro Mimesis, no texto “A cicatriz de Ulisses”, EricAuerbach refere-se a uma passagem da “Odisséia”, quando Ulisses re-gressa à casa e sua antiga ama o reconhece através de uma cicatriz nacoxa. Analisando o estilo homérico, vê-se que a epopéia decisivamenteinfluenciou os escritores da Antigüidade, não deixando nada do que émencionado na penumbra ou inacabado. Todos os instrumentos sintáti-cos são delimitados e graduados, assim como os personagens e ascoisas vêm à luz, perfeitamente, modelados, não existe, dessa forma,fenômenos obscuros ou fragmentados. Esse desfile de fenômenos são,em um presente espacial e temporal, nem por isso o texto fica repleto deinterpolações.

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Para contrapor a singularidade do estilo homérico, Auerbach uti-liza outro texto antigo: o relato do sacrifício de Isaac. Essa contraposiçãode estilos é fundamental para entender tais representações da realidade,se uma descreve os acontecimentos através de suas exteriorizações, ooutro vai procurar sugerir o que não foi expresso.

No relato desse episódio do antigo testamento, os interlocutoresnão se manifestam abertamente, as palavras se chocam sem nenhumapreparação anterior, tornando a representação obscura.

O relato bíblico não tem a função de manifestar ou exteriorizarpensamentos, como no relato homérico. Pelo contrário, procura aludiralgo tácito, que continua inexpresso. Deus dá ordens através de discur-so indireto...

Os poemas homéricos procuram expressar a relação dos ho-mens com a realidade da vida que descrevem, isto já não acontece nosrelatos bíblicos, o encantamento sensorial não importa tanto, mas sim ocaráter ético e religioso que se concretiza na realidade da vida.

Os relatos da Bíblia, segundo Auerbach, pretendem ser umarealidade histórica, a única verdade, ai daquele que duvidar! Sua inten-ção é fazer o crente sentir-se membro de uma estrutura histórico-univer-sal, preocupação que não aparece em Homero, uma vez que seus rela-tos permanecem no campo do mítico, do lendário.

A contraposição desses dois estilos representa, por um lado, adescrição modeladora, uniforme, sem interpolações e por outro, aproblematicidade (sic) humana, o obscurecimento e a falta de cone-xão. Os dois estilos influenciaram fortemente a noção corrente de re-alidade e representação literária.

Já em “Fortunata”, no mesmo livro, Auerbach se refere a umtrecho do romance de Petrônio, o banquete de Trimalcião.

A descrição de Encólpio também retrata a si próprio, sua lingua-gem e escala de valores que utiliza e dão uma clara idéia de sua persona-lidade. Também há diferenças com o estilo homérico, o estilo de Encólpioé extremamente subjetivo e a realidade objetiva é influenciada pelos seusdevaneios. Esse processo cria uma ilusão mais sensível e concreta davida, o ponto de vista é introduzido na narrativa, ganhando profundidade.

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Em Fortunata, a vulgaridade da linguagem não está destinadaa ser apreciada pela multidão, mas pela elite. Em sua descrição é res-saltada a história pregressa de seus personagens. Com isto, a inten-ção não é provocar a impressão de uma mudança histórica e sim a ilu-são de uma fundamentação firme e imutável da constituição social.

A peculiaridade mais significativa desse relato reside no fato deser a representação da realidade que mais se aproxima da moderna repre-sentação, sobretudo pela fixação exata, nada esquemática, do meio social.

Petrônio, assim como um realista moderno, tece uma represen-tação não estilizada de seu meio cotidiano, deixando que os persona-gens falem sua própria linguagem, gírias, cacoetes verbais, etc. No en-tanto, quando Petrônio retrata seus personagens, tudo é colocado comose seus vícios ou manias fossem facetas estritamente individuais, o panode fundo histórico não é levado em consideração.

Auerbach associa Petrônio a Tácito em oposição ao evange-lho de São Marcos. Tácito caracteriza a retórica da historiografia daAntigüidade e evidencia os limites históricos desse realismo.

São Marcos ignora a regra da separação dos estilos, onde arepresentação do cotidiano é incompatível ao Sublime (Deus). O estiloelevado, divino, é diferente do estilo baixo. A tragédia prende-se ao pri-meiro e a comédia ao segundo.

Nesse sentido, a vulgarização da linguagem em São Marcosestá destinada aos homens individualmente. As diferenças de estiloentre os textos antigos em os primeiros textos cristãos se devem aofato de que foram escritos a partir de diferentes pontos de vista e des-tinados a homens diferentes. Além disso, as representações realistasgreco-romanas ignoravam o antagonismo entre a aparência sensívele o significado, o que já caracteriza a visão da realidade própria docristianismo primitivo, ou até mesmo do cristianismo em geral.

Se Auerbach tem por objetivo a interpretação da realidade atra-vés da literatura, Gombrich vai procurar interpretar a realidade por meioda representação “fictícia” da imagem pictórica.

Em seu livro “Arte e ilusão”, no texto “Verdade e estereótipo”,Gombrich ressalta a importância do temperamento ou da personalida-

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de do artista, na produção de um quadro, por exemplo, suas preferênci-as seletivas, seu “estilo”. A esse ajustamento natural ao qual todos nósfazemos mudanças quando olhamos uma ilustração, o autor chama de“contexto mental”.

Comparando diversas reproduções pictóricas com fotografias,Gombrich ressalta as diferenças, todavia ele frisa que não pretende pro-var com os exemplos que toda representação é necessariamente inexataou que todos os documentos visuais anteriores à invenção da fotografiasão enganosos. O que ele quer provar é que tal modificação é um proces-so paulatino, cuja dificuldade depende da schemata (esquema mental) aser adaptada para o objetivo de servir como retrato. A informação visualindividual, as características distintivas, são acrescentadas à obra comose o artista estivesse preenchendo um formulário, o artista olha para ummotivo e busca classificá-lo e enquadrá-lo em uma schemata.

O familiar é o ponto de partida para a representação do desco-nhecido, uma representação que já existia sempre exerce um fascíniosobre o artista.

Já em seu outro texto, no mesmo livro, “Condições de ilusão”,Gombrich coloca que toda representação depende do prévio conheci-mento daquilo que se está representando. A esse fenômeno ele chamade “projeção dirigida”.

Mais ainda, quando estamos apreensivos com um resultadoou quando somos sugestionados a uma percepção fantasmagórica,esse contexto cria condições de ilusão. Existe, hoje em dia, uma ten-dência de tomar as coisas como elas literalmente são, o que pode levaras pessoas a inusitadas ilusões, onde a mente é induzida a antecipar-se aos fatos, buscando um nexo que não é tão fácil de ser encontrado.

O artista, ao tentar reproduzir uma realidade, parte de uma “fa-culdade imitativa” da mesma para que a ilusão funcione. Por isso que apintura contém uma quantidade enorme de informações, ajudando napersuasão da ilusão. É preciso acreditar na adivinhação, na aferição depossibilidades e nessa atitude reside uma interpretação do material sim-bólico da nossa vida real. Ao que se chama de “contexto mental”, podeser aquele estado de prontidão para se começar a projetar e captar

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cores e imagens fantasmáticas (sic) que adejam à nossa percepção.Muitos são os relatos da grande variedade de coisas contraditórias queobservadores comuns “juram ter visto”.

Por fim, podemos concluir que a ambigüidade é a chave detodo processo de representação da realidade, quer seja literária, querseja pictórica. Nas palavras do próprio Gombrich: “A representação ésempre uma rua de mão dupla, pois cria um elo e ensina-nos a passarde uma interpretação para outra.”

REFERÊNCIAS

AUERBACH, Eric. A cicatriz de Ulisses e Fortunata. In: Mimesis.São Paulo: Perspectiva, 1971.

GOMBRICH, Eric. Verdade e estereótipo e Condições de Ilusão. In:Arte e ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

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DIREITO, JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO DOADVOGADO339

ROBERTO ANTONIO BUSATO

ADVOGADO E VICE PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DAORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

RESUMO

O texto é iniciado por uma leitura crítica do Poder Judiciário no Brasil naatualidade, com a análise de alguns problemas vividos por este Poder, muitosdos quais decorrentes de atitudes do Poder Executivo e do Poder Legislativo.Partindo desse diagnóstico, o autor aborda aspectos da Advocacia,ressaltando a função social do Advogado e a importância de sua atuaçãopara a defesa da sociedade e para a efetivação dos direitos fundamentaisdos cidadãos.

ABSTRACT

The text is begun by a critical reading of Judicial Department in Brazil nowa-days, with an analysis of some problems in this Department , many of themcome from Legislative Department and attitudes of Executive Department.Taking as basis this diagnostic , the author points to the aspects of Advo-cacy, calling attention to the social function of the Lawyer and the impor-tance of his/her job for the defense of the society and for the effectuation ofthe fundamental rights of the citizens.

PALAVRAS CHAVE - Advocacia; Poder Judiciário; função social doAdvogado; Ordem dos Advogados do Brasil.

TEM FÉ - tem fé no direito, como o melhor instrumento para a convivênciahumana; na justiça, como destino normal do direito; na paz, como substitutobenevolente da justiça, e sobretudo, tem fé na liberdade, sem a qual não hádireito, nem justiça, nem paz. EDUARDO COUTURE - 8º mandamento.

Já disse igualmente o festejado jurista uruguaio autor do pensa-mento ora lido que DIREITO é CIÊNCIA - JUSTIÇA é RELIGIÃO - ADVO-CACIA é ARTE.

Na sociedade desigual e conflitiva em que vivemos, permeadapor interesses antagônicos, em que o descrédito atinge e solapa asinstituições, a Justiça não poderia ficar à margem e protegida deste

339 Conferência proferida em 29/11/2002, no Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Mater Dei,

Pato Branco, Paraná.

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processo degeneratório.Como todo aglomerado humano e moldado pelo mundo que

o cerca, o Judiciário apresenta virtudes e defeitos, acertos e erros,altivez e mesquinharias, facetas por certo vivenciadas por todos nós.

As mazelas estão presentes no largo espírito corporativista,no intrincado modelo dos ritos processuais, na estreita porta deacesso à população, a pouca sensibilidade aos anseios sociais e areiterada barreira para um controle externo por parte da sociedade.

No dizer de CALHEIROS BONFIM, há Juizes e Serventuáriosque se portam de forma tão pretensiosa e autoritária que parecemconvencidos de que a Justiça existe para que eles tenham seuscargos e empregos, e não para que a ela recorram aqueles que sesentem lesados em seus direitos. Esquecem que não é o Judiciárioque justifica a existência da população, mas são os interessesdesta que justificam sua existência.

A par disso, outros problemas afligem o Judiciário. NoBrasil, a prática reiterada de abusos, ilegalidades einconstitucionalidades cometidas pelo Executivo e Legislativo, o pri-meiro deságua inúmeros projetos de leis eivados dos adjetivosafirmados, enquanto que o segundo se submete a vontade daquele,aprovando projetos que violam garantias constitucionais, como aigualdade, o devido processo legal, os princípios sociais, os tributá-rios, a hierarquia dos diplomas legais e outros.

A cada insensatez destes poderes, milhares de processosdão entrada no foro já entulhado e desestruturado e aí vem aUnião Federal e suas Autarquias a fazer

Advocacia de má-fé, praticando chicanas visando procrastinaro pronunciamento jurisdicional. Este quadro, eminentes participantesdesta Sessão podem ter certeza grassa em toda a América Latina,conforme testemunhei como representante da Ordem dos Advoga-dos do Brasil em Congresso patrocinado pela New York Bar Association,realizado no Rio de Janeiro com presença de advogados latino-americanos.

Ao contrário desta realidade, na França, aprovada uma Lei

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no Parlamento, ela é imediatamente remetida a um Conselho Cons-titucional que decide logo se ela é ou não inconstitucional. Conside-rada uma lei constitucional, os franceses não podem mais questioná-la em Juízo. O Conselho Francês é constituído de três membrosnomeados pelo Presidente da República, três pelo Presidente daAssembléia Nacional e três pelo Presidente do Senado, sem ne-nhum membro do Judiciário, pois este não é Poder na França.

Diga-se, aqui, que o Conselho Federal da Ordem dosAdvogados do Brasil, tem manejado bastante o instituto da Adin(Ação Direta de Inconstitucionalidade), sendo vencedora na suagrande maioria, o que comprova o lamentável quadro ora retratado.

Outra questão que atinge o Judiciário é a aprovação de leisprocessuais complexas. A morosidade do processo civil é culpadireta e final dos congressistas, mas, os culpados de origem são osjuristas teóricos que adoram firulas do direito processual e sedeleitam em conferências, palestras, simpósios e mantêm um pro-cesso civil complicado e cheio de armadilhas. Já se diz que noBrasil, conseguimos “inventar” um processo que não acaba nunca.

Já se disse também, que sendo as normas processuaiscomplexas, acarretou a existência de uma indústria editorial delivros processuais, que devem ser os de maior número de livrosjurídicos.

Aparelha-se o Judiciário com alguns verdadeiros palácios,principalmente em Brasília e nas Capitais dos Estados, enquantode outro lado, remunera-se mal o Magistrado, não se destina, parasua função, de meios adequados de trabalho, principalmente nointerior o que torna mais caótica a situação, sem se falar dopaupérrimo número de Magistrados em nosso gigantesco Brasil,onde temos, cotejando o número de habitantes, um décimo dosMagistrados existentes, por exemplo, da Alemanha.

Senhoras e Senhores:

Quando fui convidado para, hoje, aqui estar e abordar otema ‘Direito Justiça e Participação do Advogado’, procurei noConselho Federal obras e matérias afins ao tema para alinhavar

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meus pensamentos e encontrei um texto intitulado “O JUDICIÁRIONAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS”, sem menção de seu autor.Trabalho este que abordava desde a Carta de 1824, até a atualConstituição de 1988, retrata ao fazer uma digressão histórica so-bre o assunto “direito e judiciário”, que a situação está em nossopaís cristalizada, desde os tempos dos eminentes Juristas Euzébiode Queiróz e Nabuco de Araújo. O texto, após abordar cada umadas Constituições Brasileiras, em sua conclusão assim grafava:

“... Um confronto das sucessivas Constituições que regeram avida brasileira parece deixar evidente que os sucessivos textosconstitucionais sob os quais vivemos, em quase dois séculosde vida independente, nada mais fizeram do que incorporar àvida institucional do país, em relação ao Poder Judiciário, osmodelos criados, adaptados ou instituídos pelo Executivo queas Constituintes nada fizeram do que aceitar sem virtualmentediscuti-los. Assim é que a de 1824 simplesmente transplantoupara o Brasil o modelo português, da mesma forma como, como advento do federalismo segundo o viés norte-americano, a de1891 nada mais fez que incorporar as inovações decretadasdurante o governo republicano provisório, em 1890. A Constitui-ção de 34 inspirada no modelo alemão de Weimar, apenasaceitou, também sem maior discussão, a elevação à dignidadeconstitucional, da justiça militar, da mesma forma como a de1946 incorporou à estrutura judiciária, a justiça do trabalhocriada pelo Estado Novo. Nem mesmo a Constituinte de 88 foicapaz de se livrar das inovações decorrentes do regime militar,cujo maior exemplo é a manutenção da justiça militar estadualde segunda instância.”

Este traço da cultura jurídica do país terminou por refletir nopróprio ordenamento jurídico, cujos principais códigos e consolida-ções resultaram, com a exceção dos Códigos Penal e de Processode 1830 e 1832, do Comercial de 1850 e o do Civil de 1916, deatos do Executivo. A dificuldade de se modernizar as práticas,processos e instituições judiciárias encontrou sempre, na resistên-cia do Legislativo, as inovações, a consagração de mudanças muito

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limitadas, através de pequenas alterações que Euzébio de Queiróz,um dos grandes reformistas brasileiros, denominou de carretilha, orecurso para consumar pequenas reformas, sem despertar o imobilismoe o conservadorismo que se tornaram clássicos no Brasil.

A tendência a “constitucionalizar” as estruturas judiciárias, comode resto ocorreu também com tantas outras instituições jurídicas epolíticas no país, tornou as mudanças cada vez mais difíceis. Acriação de novos Tribunais e a incorporação de novas justiçasespecializadas, que se generalizaram, nos últimos 60 anos, dificulta-ram a modernização face a interesses de segmentos.

As sucessivas pesquisas de opinião apontam, invariavel-mente, os poderes do Estado como os de menor credibilidade eaqueles em que a população menos confia. Mais significativa aindaé a persistência dos problemas decorrentes da crescente complexi-dade do sistema legal brasileiro, como o da impunidade a que sereferia Nabuco de Araújo, outro dos grandes reformadores brasi-leiros, quando apontava para essa circunstância que, um séculoapós, continua a pôr em risco a própria coesão e a solidariedadesocial.

Lamentavelmente, é cada vez mais procedente outra nãomenos relevante constatação, quanto ao imobilismo do sistema polí-tico brasileiro, diagnosticada pelo Senador Melo Matos que, emsessão de 16 de março de 1943, concluía com inteira razão ...”o queeu vejo é que, quando se dá o caso da necessidade, ou quandoaparece a urgência de uma medida, tudo se pode fazer, tudo sequer fazer e por fim nada se faz; toma-se uma medida interina eessa fica para sempre, porque, passada a crise se esquece a urgên-cia”. Quase 60 anos após a situação é semelhante.

Num país, em que até boa parte das normas legais setornou provisória, talvez seja chegada a hora de, finalmente, trocar-mos as meias medidas provisórias e limitadas a maioria delas, porum grande pacto político que, finalmente, contribua para legitimar asinstituições nacionais, não apenas pelas boas idéias e belas inten-ções, mas sobretudo por seu procedimento, colocando-as a serviço

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da sociedade brasileira.O texto, em sua última linha sentencia “ATÉ AGORA, NOS

TEM FALTADO DECISÃO E CORAGEM.”Afigura-me que apenas falta abordar, nesta noite a última

parte do tema a que me propôs esta instituição de ensino e a valorosaSubseção de Pato Branco, que é a PARTICIPAÇÃO DO ADVOGADO.

Diga-se desde logo, a advocacia não é neutra, indefinida,mas um instrumento de aperfeiçoamento jurídico e de transforma-ção da sociedade.

Cabe a nós advogados a ousadia, a utilização de novosmeios e institutos jurídicos procurando sempre em seus postuladosbuscar a dignidade da pessoa. Deve procurar sempre a soluçãopacífica dos conflitos, buscar a redução das desigualdades sociais,procurar a adequação maior possível entre a Lei dissociada dosprincípios gerais de direito. Provocar os Juízes com este objetivo étarefa e dever dos advogados, que assim estarão contribuindo paracrítica à legislação existente, o aprimoramento da ordem jurídica, ocumprimento da Constituição e a efetiva realização da Justiça, poisnós, os advogados, temos a nos diferenciar dentro da Sociedade o“munus publicum” que caracteriza nossa função perante os demaisconcidadãos.

CALHEIROS BONFIM, falando da advocacia, traçou o se-guinte quadro ... “ É comum o advogado preocupar-se apenas comsua profissão, isolar-se em seu escritório, voltado unicamente paraos processos e a clientela, indiferente ao mundo que o cerca. Oprofissional que assim procede é meio advogado e meio cidadão”.

Continua o eminente advogado:

“É preciso formar a consciência de que a advocacia é umaatividade política-jurídica, possui munus público, conteúdo éticoe social, constitui uma forma de participação, de inserção nacomunidade, de opção pela Justiça, de luta pelo direito e pelaliberdade, de tutela dos interesses da sociedade, de defesa dosdireitos jurídicos e princípios fundamentais do homem e dadignidade do trabalho”.

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O advogado é o palanque mais avançado na defesa daSociedade, que consiste em tornar concretos os direitos fundamen-tais dos cidadãos. A indispensável presença do advogado é quepermite o equilíbrio das relações jurídicas, quer nas composiçõesdas lides, quer na composição dos litígios, contribuindo, decidida-mente, para a paz social.

Ao dizer-se que o advogado é o defensor da Sociedade,significa dizer que é através de sua ação positiva que os direitos egarantias individuais, se efetivam e se concretizam. É, desse modo,um agente indispensável à paz social. Ele é o primeiro formador daopinião, o formador da jurisprudência e da ação da justiça. É o elocriativo, que faz aplicar a abstração da norma ao fato, tem portantouma relevante função social.

Ressalte-se que a advocacia brasileira sempre participoudas memoráveis páginas da vida institucional do Brasil, mesmoantes da criação da Ordem dos Advogados do Brasil, como aIndependência do país, a abolição da escravatura, a proclamaçãoda República, a produção de nossas Constituições, as lutas contrao autoritarismo e em favor do estabelecimento de um Estado dedireito democrático; pela ética na política, contra os atos deimprobidade administrativa e de corrupção.

No dizer de FABIO KONDER COMPARATO, “o papel socialdo advogado está ligado à própria evolução da noção da cidadania”.

De outro, MIGUEL REALE JÚNIOR, quando da sua posse nacadeira de titular de Direito Penal na Universidade de São Paulo,definiu a importância da participação da advocacia no plano consti-tucional, aliás, a única é a brasileira em todo o mundo. Afirmou orenomado professor: “Mais que um espírito corporativo de restritasrepercussões classistas, a consagração constitucional da dignidade,imprescindibilidade, relevância e inviolabilidade da advocacia interes-sa à plenitude de proteção, à personalidade humana, centro devalores, fonte de expressão de cultura e seu ponto de convergência.”

A advocacia brasileira luta bravamente para manter suasprerrogativas o que é seu dever já que as mesmas existem em

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favor da sociedade que dela se socorre.Há alguns dias, acompanhei a direção da Seccional da

OAB do Rio Grande do Norte para entrega de um memorial aoEminente Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ministro PeçanhaMartins, oriundo da classe dos advogados e que ainda não desvestiua beca, mas sobrepôs a esta, a toga de Magistrado e defendeu,naquela ocasião veementemente, as prerrogativas do advogado departicipar, sempre, do julgamento dos processos, em todos osgraus de jurisdição, afirmando que hoje dois terços dos julgamentosno STJ são realizados de forma monocrática, deles não participandoos advogados o que segundo ele acarreta prejuízo à defesa, com asupressão da publicidade e do uso da tribuna pelos advogados,afetando por último, a prestação da justiça.

Em trabalho escrito, o Eminente Ministro citado afirma aimoportância prática da advocacia no manejo do processo e desuas prerrogativas:

A presença dos advogados na tribuna conduz, não raro, aoreexame de votos pré-elaborados pelos Relatores e, sobretudo,a um melhor exame pelos componentes da Turma ou Seção.Não foram poucas vezes que tive que proferir novo voto ou deemendá-lo diante das ponderações tribunícias do advogado. Enão há negar da atenção maior dos julgadores quando natribuna está o causídico. Demais disso, a jurisprudência não éimutável. A inteligência dos advogados, promotores e magistra-dos conduz invariavelmente à descoberta de facetas antesdesconhecidas e mesmo ignoradas na hipóteses julgadas eformadora de súmulas.

Este pensamento do Eminente Ministro Peçanha Martins ébastante significativo quanto à participação do advogado no dizerdo direito pelo Judiciário, aliás, negar a participação do advogado,lembra-nos a definição do insigne Jurista Prado Kelly: “Só há Justiçaonde possa haver o magistério independente, corajoso e probo dosadvogados. Os Tribunais de onde eles desertem serão menos otemplo do que o túmulo da Justiça.”

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Tendo iniciado citando um mandamento do Decálogo de umJurista Uruguaio, Eduardo Couture, encerro com o décimo man-damento do decálogo de nosso patrono Rui Barbosa. Estededico aos advogados aqui presentes : “Não ser baixo com osgrandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulen-tos com altivez e aos indigentes com caridade. Amar a pátria,estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e nobem.”

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